Artigo 1 - Forma e Conteúdo
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O senso comum difundiu a idéia de que os sentimentos são o conteúdo da música e que
sua função como arte é despertar estes sentimentos. Portanto, na música, o fator sentimento
assumiria uma dupla utilidade, pois seria ao mesmo tempo conteúdo e função. Eduard
Hanslick1 questiona esta idéia a partir de uma análise científica do que é o conteúdo da
música. Os sentimentos não podem representar o conteúdo da música, pois estes são o
resultado da contemplação estética desta. Os sentimentos são o efeito da forma e do conteúdo
da música sobre quem a contempla. O conteúdo da música pode ser dado, assim como em
qualquer outra arte, como sendo a representação da espiritualidade do artista e seu
significado, a mensagem subjetiva existente no contexto global da obra. A música utiliza-se
do meio físico sonoro para transmitir sua mensagem. Este meio, não sendo constituído de
palavras, mas sim de sons abstratos organizados no tempo não nos permite uma análise
segura do seu conteúdo por não apresentar uma linguagem concreta, onde a convenção do
1
Hanslick, Eduard. Do belo musical - Uma contribuição para a revisão da estética musical. Unicamp. Campinas -
SP. 1992
significado dos símbolos desta linguagem aponte uma seqüência lógica de argumentos. A
música tem o poder de nos remeter a determinados estados de espírito derivados da percepção
dos sons musicais. Mas isto não é exclusividade da música e aplica-se de maneira geral a
todas as artes. Também uma pintura nos suscita sentimentos ante a sua contemplação ou uma
poesia ou uma escultura. O sentimento como sendo o conteúdo da música, por muito tempo
preencheu o vazio de não termos uma resposta concreta acerca do que é conteúdo na música
instrumental.
Os formalistas diriam que averiguar sobre a existência ou não de um conteúdo social
na música não era relevante. O ponto de partida da criação musical para eles era a música na
sua essência formal. Os efeitos sonoros possíveis em um determinado instrumento. A maneira
da disposição dos sons na melodia, o riqueza harmônica da distribuição dos acordes, segundo
seu ponto de vista falariam por si. Mas na música, como em qualquer outra arte, forma e
conteúdo não são duas coisas distintas, mas sim duas faces complementares de uma mesma
moeda e assim como qualquer outro artista, no momento da criação musical, o músico, além
do domínio da forma inerente a sua arte, também expressa a sua espiritualidade, não no
sentido metafísico, mas no sentido adotado por Pareyson2 de espiritualidade como sendo a
consciência do artista de sua época, de seus valores religiosos e morais. Se então, no
momento da criação musical, o artista inclui na sua música a sua visão do mundo,
subentende-se que queira dizer algo mais do que simplesmente expressar o seu conhecimento
da técnica musical. Citando o exemplo de Beethoven, é acertado o que nos diz Fischer3 à
respeito do caráter político da Eroica. A influência do contexto histórico em que foi
produzida, se não explica totalmente o caráter da obra, é extremamente importante para a
compreensão da personalidade de Beethoven, de suas posições frente aos acontecimentos de
uma época revolucionária. Estas atitudes frente aos fatos estão implícitas na obra musical por
fazerem parte da espiritualidade do artista e é esta, a espiritualidade, o conteúdo de qualquer
obra de arte, e por conseguinte, da música..Tanto a análise formalista quanto a conteudística
da música pecam em não vê-la como um todo composto de forma e de conteúdo. Stravinsky4
afirma que a música suscita não a um sentimento específico, mas sim um sentimento genérico
ou em abstracto. Mas, retornando ainda ao exemplo de Beethoven, Fischer refuta este
2
Pareyson, Luigi. Estética. Teoria da Formatividade. Ed. Vozes. São Paulo, 1993.
3
Fischer, Ernst. a necessidade da arte. Ed. Zahar. Rio de Janeiro, 1979
4
Cf. Fischer, Ernest. Op. Cit. p208
argumento ressaltando que o sentimento de alegria evocada pelo coral da Nona Sinfonia, não
é a mesma alegria proveniente da colheita farta, ou do nascimento de um filho. É uma alegria
carregada da atmosfera da superação das contradições do sistema. Não é, portanto, uma
alegria genérica. O conteúdo da música, por ser expresso de uma maneira abstrata, pode
utilizar-se da forma para dar o seu recado, porém, ainda assim está subjugado a
espiritualidade do artista. Por serem forma e conteúdo, dois fatores interligados na
manifestação musical, uma inovação da forma só pode subentender uma nova concepção de
espírito frente aos acontecimentos. Um exemplo claro disto é o da música medieval, que só
admitia a voz como instrumento sagrado e o seu conteúdo era sempre o mesmo. O ser
humano como pecador deveria temer a Deus e se renegar a sua insignificância perante a obra
divina. No renascimento, a música instrumental volta a desenvolver-se e até mesmo a ser
aceita pela Igreja. Esta mudança na forma (vocal para instrumental, monofônica para
polifônica), se deve a uma mudança de pensamento,e por conseguinte, de espírito, que foi o
resgate do humanismo pelos renascentistas. Isto nos leva a concluir que o conteúdo da música
não é originário da ausência do homem, porque quem produz a música é um indivíduo que
participa do contexto histórico. Ainda, segundo Fischer5, é necessário fazer-se uma
diferenciação entre a música cujo único objetivo é o de criar uma mentalidade ou uma
atmosfera uniforme, e este é o caso das marchas militares e da música de igreja, seja a da
Idade Média ou a música Gospel americana do sec. XX, da música dos salões de dança
profana da idade média ao Dance Music deste final de século, entre outras, e a música cujo
significado esteja na expressão de sentimentos, idéias, experiências, enfim, expressão da
espiritualidade do artista, visto que o até agora pressuposto somente é válido à segunda
espécie de manifestação musical. A música sacra da idade média, ou a música militar
possuem um caráter objetivo que por si só representa o seu conteúdo. Na concepção da
música sacra da Idade Média, a forma não era tão relevante quanto a sua utilidade. Não se
esperava desta música que fosse bela, apenas que cumprisse sua função como elemento
importante na imposição de uma mentalidade submissa coletiva. Mas o que representa afinal
a música? - Ela, como qualquer outra arte representa o belo, na música, explicado por
Hanslick6 como sendo a fantasia do artista transformada em sons musicais por este e captada
pelo ouvinte, ou contemplador da obra como mensagem desta. Em busca da representação
5
Fischer, Ernst. Op. Cit. p.215
6
Hanslick, Eduard. Op. Cit. p.18
ideal desta fantasia, o artista busca o aperfeiçoamento da forma e é nela, na forma que está a
beleza da música.
Bibliografia