CANGUÇU, Arte e Vida Clínica e Estéticas Da Existência PDF
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FACULDADE DE EDUCAÇÃO
Arte e vida
ambientações clínicas e estéticas da existência
SÃO PAULO
2012
DANIELA FIGUEIREDO CANGUÇU
Arte e vida
ambientações clínicas e estéticas da existência
Área de concentração:
Linguagem e Educação
Orientação:
Prof. Dr. Celso Fernando Favaretto
SÃO PAULO
2012
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
213 p.
Banca Examinadora
Meu terno e eterno agradecimento à Evany e aos meus tios, Sônia e Sérgio,
pelo apoio constante. À Ana Massochi, pelo estímulo. A Antônio, Bela,
Karina, Mirella, Cristiano e Rebeca, pelo afeto. À Maria, pela ajuda diária
indispensável, e a todos com quem pude contar para tantas coisas
inumeráveis. A Nelson, Benjamim e Heloísa, obrigada!
O tema da dor é o meu campo de trabalho. Para dar significado e forma à frustração e ao
sofrimento. O que acontece com o meu corpo tem de receber uma forma abstrata formal. Então,
pode-se dizer que a dor é o preço pago pela libertação do formalismo.
[...] Para mim, a escultura é o corpo. Meu corpo é minha escultura.
Louise Bourgeois
Não tenho preocupações formais. Não quero fazer esculturas de formas – não me interessa, na
verdade. Quero fazer escultura sobre crença, paixão, experiência, alheio às preocupações
materiais.
Anish Kapoor
(...) o conceito de escultura pode ser estendido aos materiais invisíveis usados por todos:
Formas pensantes – como moldamos nossos pensamentos ou Formas falantes – como lapidamos
nossos pensamentos em palavras ou Escultura social – como moldamos e esculpimos o mundo em
que vivemos...
Joseph Beuys
CANGUÇU, D. F. Arte e vida: ambientações clínicas e estéticas da existência. 213p.
Dissertação. (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Educação, Linha de pesquisa
Linguagem e Educação, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo –
FEUSP. São Paulo, 2012.
RESUMO
ABSTRACT
The writing of this dissertation was based on the privilege of the circumstantial
meeting among distinct theoretical fields in an attempt of articulation of theory and
concepts, in view of the event and the experience. For this purpose, the task kept on the
approach or the fusion between art and life in which the statements of dadaism and
surrealism have made expressive contributions. The clinical experiences, considered
settings, were exposed on narrative form that is the method on which this research was
based. Inspired on authors from psychoanalysis, philosophy, arts, and literature, some of
them have become constant supports for this research – Freud, Lacan, Guattari, Foucault,
Benjamin and Lyotard, besides artists and writers. The issues proposed or developed on
this dissertation were problematized from an interdisciplinary perspective that surmises
connections between the clinical environments and an aesthetics of existence.
Keywords: art and psychoanalysis; dadaism and surrealism; clinical settings; insanity and
psychosis; aesthetics of existence.
SUMÁRIO
II – Arte e vida................................................................................................... 64
Façamos justiça a estas declarações contraditórias aceitando que de vez em quando 2 x 2 são 5.
Hans Richter
Difícil estabelecer quando tudo começou, pois, como assegura Michel Foucault1
(1981/2007), a determinação de uma origem é sempre imprecisa e no limite plural; assim,
o que era embrionário no projeto desta pesquisa pode ser referido a uma região nomeada
por uma pergunta-constatação: como o declínio do modelo da representação opera nas
questões do corpo, na clínica e nas artes?
1
Foucault (1981/2007), em As palavras e as coisas, afirma que a ideia de origem se perdeu de forma
definitiva na modernidade, inscrevendo-se desde Kant, no registro do incognoscível.
2
A partir do século XIX, “as coisas e as palavras vão separar-se. O olho será destinado somente a ver; o
ouvido somente a ouvir. O discurso terá realmente por tarefa dizer o que é, mas não será nada mais o que
ele diz” (1881/2007, p.59). Examinando o livro de Cervantes - Dom Quixote -, Foucault afirma que se trata
da primeira das obras modernas em que se verifica que “a linguagem rompe o seu velho parentesco com as
coisas, para entrar nessa soberania solitária donde só reaparecerá, em seu ser absoluto, tornada literatura;
pois que aí a semelhança entra numa idade que é, para ela, a da desrazão e da imaginação” (p.67). Nesse
sentido, é com essas palavras que Foucault fala da morte da representação: “Livre da relação, a
representação pode se dar como pura apresentação” (1981/2007).
22
A conjunção de corpo, arte e vida, por ser dotada de uma abrangência extensa e
indefinida que poderia ameaçar a possibilidade de um recorte suficiente para um trabalho
científico, constitui, paradoxalmente, uma questão norteadora para esta pesquisa e define
o dispositivo conceitual que sustenta seu debate. Após diversos movimentos
ziguezagueantes em torno deste tema, já com boa parte do material em mãos; e após
interlocuções importantes nas orientações e na qualificação da pesquisa, alguns critérios
predominaram e precipitaram seu título: Arte e vida: ambientações clínicas e estéticas da
existência.
‘acalmar os mortos’ e reunir toda a espécie de aparatos em uma aparência de presença que
é a própria representação” (DE CERTEAU, 2011, p. 51). Na evidência de que a
representação é posta em xeque, este autor fala sobre os funcionamentos possíveis da
ficção no discurso do historiador. Para ele, a própria historiografia enquanto disciplina já
é, em certa medida, uma mistura de ciência e ficção, sendo esta última “um discurso que
dá forma (informe) ao real, sem qualquer pretensão de representá-lo ou ser credenciado
por ele” (DE CERTEAU, 2011, p. 48). No tocante à travessia das disciplinas, realizada
amiúde ao longo de seu trabalho, ele chegou a ser criticado, às vezes, por não habitar
inteiramente qualquer um dos papéis exigidos por uma suposta identidade profissional.
Para explicar o seu procedimento, tinha o costume de dizer que se limitara a “dar um
passo para o lado” (GIARD apud DE CERTEAU, 2011, p.9).
Desse ponto de vista, é possível acentuar que a ciência não está situada em uma
margem e as artes em outra, quer dizer, ao invés de se pensar que elas estão em oposição,
é importante pensar que coexistem, muito mais do que se imagina. Talvez esta seja a força
maior dos trabalhos que assumem que articulações entre ciência e arte se impõem
demasiadamente, acarretando conclusões precipitadas às quais restaria apenas aceitar.
Deste modo, é necessário dizer que, nesta dissertação, estas articulações, apesar de
apresentarem algumas dificuldades, foram muito bem-vindas, sem contudo serem
imediatamente aceitas ou naturalizadas. Este foi o procedimento prioritário da pesquisa:
pretendeu abrir-se para outras áreas do conhecimento por mais que em muitos pontos
houvesse incitações para que se produzissem fechamentos e conclusões. Para evitar estes
encerramentos e manter-se no enfrentamento das questões impulsionadoras surgidas no
26
É tentador retomar a epígrafe e, agora, advertidos por ela, é possível afirmar que,
com relação ao primeiro movimento, “por princípio, por capricho ou por espírito de
contradição fundamental, Dadá sempre propiciou toda a classe de equívocos”3
(RICHTER, 1973, p. 9). Embora a palavra dadá, em francês, signifique “cavalo de pau”,
o seu uso marca a falta de sentido que pode ter a linguagem, como gostam de acentuar
alguns dadaístas que argumentavam que a escolha desse nome foi aleatória, acidental. É o
que diz um de seus precursores que “dadá não significa nada”. Sucede que, com forte
tendência anárquica, foi um movimento relâmpago, na opinião de alguns que acreditaram
que perdurou por poucos anos – aliás, consta que dadá “colheu o que semeou” – mas que,
desde sempre, não ambicionava ser eterno (RICHTER, 1973). À primeira vista, tal
subversão dadaísta traz consequências com relação ao significado das palavras, impelindo
a supor que há limites na linguagem, trazendo, inevitavelmente, à lembrança que, para a
psicanálise, no dizer de Lacan, a linguagem não pode tudo, algo sempre vai lhe escapar. O
verbo dadaísta se presta a indicar que a arte, em suas prerrogativas tradicionais, vê-se
abalada na modernidade e um novo jogo se agencia neste campo. Sem querer estabelecer
uma problemática comparativa e evolucionista, dicotomizada por um antes e um depois
do movimento, tal ocorrência é plena de consequências, pois “Dadá não teve
características formais unitárias, como outros estilos, senão uma nova ética artística, da
qual nasceram – a bem da verdade, de modo inesperado – formas inéditas de expressão”
(RICHTER, 1973, p. 9-10).
3
Tradução livre de Richter, H. História Del dadaísmo. Buenos Aires: Ediciones Nueva Vision, 1973. A
tradução dos trechos seguintes, deste mesmo livro, é também de nossa responsabilidade.
28
enviesadas por sua condição experimental, seu ineditismo e sua radical singularidade,
cujo traço extraordinário está na efemeridade do acontecimento, quer se trate da clínica,
das artes, da literatura, da vida...
É possível, ainda, assumir, como será desenvolvido mais adiante, que não se trata
de um trabalho sobre instituições nem práticas institucionais, nem sobre a clínica
psicanalítica e suas possibilidades de tratamento da psicose, nem da criação na loucura,
nem tampouco sobre as mutações da arte, embora estes assuntos não tenham sido
negligenciados porque exerceram efetivamente uma função no engendramento dos
elementos cruciais para pensar que a estética da existência não é coincidente à existência
de obra.
29
Meu trabalho inicial é o medo de cair. Depois se tornou a arte de cair. Como cair sem se machucar. Mais
tarde é a arte de se manter no ar.
Louise Bourgeois
4
O que é irrepresentável para Freud é a pulsão de morte, pois a ideia de morte não possui possibilidade de
se inscrever no inconsciente. Segundo Monzani (1989), a pulsão de morte seria irrepresentável por
excelência sendo ela o mais pulsional da pulsão. Para Lacan, é o real e o gozo que não se deixam
representar.
30
montagem histórica e singular, é bastante plástica: será possível verificar que vários
caminhos podem satisfazê-la (que eles podem se combinar inclusive), que a satisfação de
uma pulsão pode ser parcial ou inibida em sua finalidade, além disso, que o próprio
objeto, elemento através do qual uma pulsão se satisfaz, é extremamente variável e que
pode se modificar ao longo da vida erótica de acordo com as conveniências da satisfação
(CRUXÊN, 2004).
5
Paulo César de Souza discute amplamente em seu livro As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e
suas versões (2010), alguns termos fundamentais da teoria psicanalítica, ao considerar as traduções e suas
implicações. Ao expor alguns destes termos, que se ocupará ao longo desse livro, justifica que eles têm “em
comum o fato de não serem ‘ponto pacífico’, mas pomo de discórdia entre estudiosos e praticantes da
psicanálise, em suas respectivas línguas, e de serem, na língua original, termos ambíguos ou de grande
riqueza de significados e ressonâncias (SOUZA, 2010, p.21). No caso do termo Trieb, ao examinar as
edições (a inglesa e a francesa), ele verifica grande divergência entre ambas, o que repercute em duas
linhagens teóricas um tanto distintas. Segundo o tradutor e autor, a principal crítica à versão por “instinto”
foi encampada pelos teóricos franceses, difundindo, principalmente a partir de Lacan, a expressão pulsion,
adotada em outras línguas neolatinas. Ao propor essa discussão, ele chamará a atenção para ambas,
afirmando que tanto na versão instinto quanto na pulsão existem perdas e ganhos. Entretanto, ele faz uma
advertência ao dizer que no caso desta última, “as perdas são maiores que os ganhos, e naquele os ganhos
ainda superam as perdas” (SOUZA, 2010, p.261). Os argumentos que insistem no instinto decorrem do fato
de atribuir a ele um equivalente mais amplo, vago e rico em associações e, diferentemente do termo pulsão,
que seria mais no rol dos abstratos e pobres em associações. Nas suas palavras: “Tomar um neologismo em
detrimento de um ‘velho conhecido’ significa menosprezar as relações associativas. E a psicanálise, como a
língua, vive de associações (SOUZA, 2010, 257-258). Mesmo considerando a pertinência dos argumentos
deste autor, que tem se dedicado a traduzir a obra de Freud diretamente do alemão, privilegiou-se, nessa
dissertação, o termo pulsão em detrimento de instinto. Considerando que o vocábulo alemão tem uma
notória polissemia, sendo validado como um conceito freudiano por excelência, talvez a postura mais
sensata e assertiva fosse desertar as versões e assumir o Trieb, por considerá-lo um termo que escapa às
possibilidades de tradução. Também aqui há perdas e ganhos ao constatarmos que a tradução de uma língua
para outra não deve ser tomada como um impossível. Face ao exposto, a escolha aqui se vê sustentada pelo
fato de a pulsão ser um termo mais corrente na língua portuguesa, mas, sobretudo, pela relação tangencial
dessa dissertação com o surrealismo, optou-se por posicionar em favor do neologismo.
31
Contudo, é o próprio Freud que dá à pulsão esta atribuição, pois, como diz Lacan,
“é essencial, primeiro, lembrar que Freud mesmo nos diz, no começo deste artigo, que a
pulsão é um Grundbegriff, um conceito fundamental” (1964/2008b, p. 161). Ao introduzir
a discussão no artigo de 1915, “Pulsão e os destinos da pulsão”, diz que nenhuma ciência,
mesmo aquela mais exata, começa com conceitos bem estabelecidos e precisos, julgando
que, de início e antes de confiná-los a definições, é necessário manipulá-los com certa
dose de indefinição. E mesmo depois de termos condições de formular os conceitos com
maior exatidão, para ele o avanço do conhecimento não tolera qualquer rigidez, mesmo
quando se trata de definições (FREUD, 1915/2004).
É isso mesmo que Freud prevê. O progresso do conhecimento não suporta nenhuma
Starrheit, nenhuma fascinação das definições. Ele diz em algum lugar alhures que a pulsão
faz parte de nossos mitos. Afastarei, de minha parte, esse termo de mito – aliás, nesse
mesmo texto, no primeiro parágrafo, Freud emprega o termo Konvention, convenção, que
está mais perto do que se trata, e que chamarei com um termo benthamiano que fiz notar
àqueles que me seguem, uma ficção. Termo, diga de passagem, inteiramente preferível ao
de modelo, de que muito se abusou. Em todo caso, o modelo não é jamais um Grundbegriff,
pois, num certo campo, vários modelos podem funcionar correlativamente. O mesmo não
acontece com o Grundbegriff, com um conceito fundamental, nem com uma ficção
fundamental (1964/2008b, p.161).
interessam pela psicanálise. O mitológico, conforme a sua hipótese, talvez se refira àquilo
que na teoria psicanalítica aponta para o que a pulsão tem de conceito-limite, conceito que
direciona para os limites da própria teoria e também diz respeito ao fato de ser um
conceito fronteiriço entre o anímico e o somático.
Este caráter de conceito fronteiriço não nos deve conduzir a elucubrações metafísicas a
respeito de uma possível entidade substancial, intermediária entre o corpo e a alma,
encarregada de fazer a ligação entre ambos. O termo “mítico” não se refere a uma
substância que não é nem corpo nem alma, mas que se situasse a meio caminho entre os
dois. Freud não está introduzindo aqui uma quarta substância, além das três cartesianas (res
cogitans, re extensa, res infinita), mas, introduzindo um conceito que, embora articule
corpo e alma, não possui como referente uma substância, seja ela de que natureza for
(GARCIA-ROZA, 1995, p. 66).
De fato, não há qualquer determinação a priori no que concerne às pulsões, como não há
também nenhuma diferença qualitativa entre elas. As pulsões são pura potência
indeterminada; toda e qualquer determinação será decorrente de sua captura pelo aparato
psíquico (ou, segundo Lacan, pela rede de significantes) e não de alguma ordem inerente às
pulsões (GARCIA-ROZA,1995, p.67).
e-vir da pulsão Lacan diz que “o que é fundamental, no nível de cada pulsão, é o vaivém
em que ela se estrutura” (1964/2008b, p.175), já que não há nenhum objeto passível de
satisfazê-la.
A pulsão apreendendo o seu objeto, apreende de algum modo que não é por aí que ela se
satisfaz. Pois se se distingue, no começo da dialética da pulsão, o Not e o Bedürfnis, a
necessidade e a exigência pulsional – é justamente porque nenhum objeto de nenhum Not,
necessidade, pode satisfazer a pulsão (LACAN, 1964/2008, p.165).
[...] “a pulsão” nos aparece como um conceito limite entre o psíquico e o somático, como o
representante psíquico das excitações, oriundas do interior do corpo e chegando ao
psiquismo, como medida da exigência de trabalho que é imposta ao psíquico em
consequência de sua ligação ao corporal (1915/1993, p.117)6.
6
Quando se optou pela edição argentina, as traduções para o português dos textos freudianos em espanhol
foram de nossa responsabilidade.
34
Um conceito desse tipo não nasce pronto, com os seus contornos plenamente definidos,
suas articulações com os conceitos plenamente estabelecidas, perfeitamente transparente e
livre de ambigüidade. Sua opacidade inicial é na verdade a marca de sua novidade, de sua
extravagância quando comparado aos conceitos existentes. A criação ou construção de um
conceito como este implica avanços e recuos, desvios, atalhos, eliminação de caminhos
desnecessários e estabelecimentos de novas articulações. E isto sem que tenha previamente
indicações claras quanto aos caminhos a percorrer. Esta é a razão pela qual, vinte anos
depois de ter proposto o conceito de pulsão, Freud declara que “a doutrina das pulsões é a
peça mais importante, mas também a mais inconclusa, da teoria psicanalítica” (2008, p. 80-
81).
A tese de Freud sobre a pulsão, em suma, diz que o aparato psíquico é um aparato
de captura do disperso pulsional que, portanto, impõe às pulsões, destinos. O discurso
freudiano, ao falar deles, foca-os na pulsão sexual, por sustentar que ela é axial no
aparelho psíquico:
Uma investigação sobre os diferentes destinos que as pulsões poderão ter ao longo de seu
desenvolvimento e de sua vida terá de se limitar às pulsões sexuais, pois são estas que
conhecemos melhor. A observação mostra que os destinos de tais pulsões podem ser:
A transformação em seu contrário.
O redirecionamento contra a própria pessoa.
O recalque.
A sublimação. (FREUD, 1915/2004, p.152).
Garcia-Rosa observa que a palavra, utilizada por Freud, Schicksal possui alguns
significados, isto é, destino, aventura, vicissitude. Desse modo, argumenta que a
35
Na experiência analítica é preciso compreender o risco fatal que constitui para certos
sujeitos um projeto de engajamento e respeitar a dimensão de ruptura, não como uma
resistência, uma inaptidão à análise, mas como medida de proteção vital que se inscreve no
projeto de sobrevivência. Cabe ao analista tornar-se a testemunha desse projeto, com todas
as atividades cunhadas pela atividade desobrigante das pulsões anarquistas: a lucidez, a
antecipação, a transformação da vontade de destruição em resistência à morte, a solidão, a
intensidade frágil dos laços afetivos, a primazia do objeto-resto, a sobrevivência como
triunfo sobre a destruição, como última garantia de pertinência à espécie humana.
A narrativa das pulsões de morte no inconsciente divide suas figuras com o registro
libidinal, mas as ordena diferentemente. As organizações de desejo deixam transparecer,
além do princípio do prazer, a ossatura descarnada das organizações de necessidade. A
exploração desse ordenamento diferente torna analisáveis: ‘a reação terapêutica negativa’, o
‘masoquismo primário’, a ‘compulsão à repetição’ para além do princípio do prazer; em
suma, torna possível a análise de todos esses fenômenos que, precisamente, conduziram
Freud ao discernimento do domínio das pulsões de morte, sua dimensão de protesto vital, é
interromper a catalogação duvidosa e impotente dos estraga-festas da higiene mental e dos
fracassados da prática analítica protocolar: os fugitivos, os toxicômanos, os caracteriais, os
‘psicossomáticos’ e todos os outros....
Devolver às pulsões de morte suas formas de vida psíquica, deixar de reduzi-las a um
negativo das pulsões libidinais, sexuais e narcísicas, possibilita a abertura de impasses
terapêuticos. Ignorar essa narrativa, continuar a abafar a parte analítica no conforto de Eros,
é reforçar a solidão mortífera e fragilmente salvadora daquele que não espera que o analista
se recuse para recusá-lo antecipadamente como testemunha de sua luta anarquista. (1993, p.
91-92).
E finalmente:
Dito de outro modo, o que ele quer problematizar é em qual solo incluir a
psicanálise: a concepção de uma natureza regida por princípios a priori que constitui as
filosofias da identidade ou a concepções de uma natureza desviante que constitui as
chamadas filosofias da diferença? (GARCIA-ROZA, 1995).
Sobre este constructo que Freud desenvolve acerca da pulsão, Lacan dá uma
imagem bastante interessante: “direi que, se há algo com que se parece a pulsão, é com
uma montagem” (1964/2008b, p.167). E, não à toa, pela condição destes termos sempre
aparecerem disjuntos e não harmônicos ou em perfeita composição, ele os associa a uma
37
Dentro deste percurso teórico sobre o conceito, cabe sublinhar que a associação da
pulsão de morte à destruição, a depender de como essa articulação é realizada, torna-se
bastante restritivo. Nas considerações de Vladimir Safatle, Lacan é o responsável pela
reforma do conceito de pulsão e para ele “toda pulsão é virtualmente pulsão de morte”
(LACAN, 1996, p. 848), daí o termo aparece no singular. Nas palavras lacanianas:
No lugar das bandeiras e dos troféus, as cavalgadas descabeladas e enraivecidas das civilizações do tipo
octogonal, surrealistas e crítico-paranóicas passarão sob o arco histérico das estruturas moles,
encabeçadas por jaquetões afrodisíacos e aritméticos, cintilantes de urina e esmeralda.
Salvador Dalí
No trabalho com campos teóricos distintos, esta escrita se agencia com a pretensão
de fugir da tentação da totalidade. Considerando que estes campos não necessitam um do
outro, o que aqui se opera busca descartar qualquer fantasia de união estável. Assim, tal
aproximação entre arte, psicanálise e filosofia deve ser tomada para além de um arranjo
de complementaridade; estes campos fazem vizinhança, entretanto, não é algo contínuo e
que ocorre em todas as suas extensões, neste caso; costuma-se dizer: se há fronteira, há
também litoral.
Desse modo, a relação entre arte e psicanálise não pode ser tomada como algo
simples e sem entraves. Aspectos do pensamento freudiano foram apropriados por muitos
teóricos e críticos na análise das obras modernas e contemporâneas; no entanto Freud,
mesmo reconhecendo os efeitos que a arte exercia sobre ele, ao abordar este assunto
sempre o fazia com muita reserva (LIMA, 2009). Muitos estudiosos concordam sobre a
qualidade literária da sua produção escrita, embora a metapsicologia estivesse voltada à
fundamentação da psicanálise como discurso científico. Desta forma, “Freud cunhou este
39
termo para se referir ao discurso psicanalítico na sua especificidade teórica. Forjou assim,
um neologismo para fazer menção à singularidade conceitual da psicanálise” (BIRMAN,
2009, p.26).
Com isso, a tentativa era a de que seu discurso, além de ser legitimado pela
ciência, fosse uma leitura outra da psicologia, pois, “a palavra metapsicologia remete ao
conjunto de procedimentos teóricos e metodológicos que Freud começara a conceber para
construir a sua leitura do psiquismo” (BIRMAN, 2009, p.28). Diante de suas inclinações
e de seus empreendimentos com a psicanálise, ele mantém-se numa espécie de borda
entre a ciência e as artes – sobretudo a própria arte de escrever.
A psicanálise se constitui como corte em relação a outros saberes; não à toa, tal
perspectiva não prescinde de uma conexão, direta ou não, com outros campos. Ademais, a
ressonância do pensamento freudiano no pensamento moderno pode ser traduzida pela
desconfiança que ambos trazem a respeito da racionalidade. Em outras palavras, há uma
quebra do absoluto e da autonomia da razão. No tocante à modernidade, é útil
acompanhar a análise foucaultiana, que, à primeira vista, parece ser paradoxal, pois a sua
crítica recai sobre a ideia iluminista de razão. Em seu texto de 1984, “O que são as
luzes?”, Foucault problematiza um ensaio de Kant de 1784, “Resposta à pergunta: o que é
Esclarecimento (Aufklärung)?”. Ao longo deste seu escrito, Foucault diz que na
modernidade, as luzes, foram tantas que nos ofuscaram, de modo que este excesso que
deveria iluminar acabou por criar obscuridades. Desse modo, ele convoca a pensar uma
atitude filosófica que pode ser extensiva ao campo da pesquisa. Foucault, no arremate
desse texto, diz:
Não sei se é preciso dizer hoje que o trabalho crítico também implica a fé nas luzes: ele
sempre implica, penso, o trabalho sobre os nossos limites, ou seja, um trabalho paciente
que dá forma à impaciência da liberdade (1984/2000, p. 351).
40
A arte foi um dos terrenos sobre o qual a psicanálise mais rapidamente exerceu influência.
Havia uma forte ressonância entre as idéias modernas da arte e o pensamento psicanalítico,
ambos surgidos de um solo comum e constituídos em torno de uma concepção de
subjetividade bastante próxima, no centro da qual está o inconsciente que se revelaria em
palavras, em sonhos e em obras, por intermédio da linguagem (LIMA, 2009, p. 77).
7
É possível afirmar a existência de uma teoria freudiana da psicose, mas que não se desdobrou em uma
teoria do tratamento da mesma, tal como ocorreu com Lacan, já que “embora Freud tome os casos de
psicose como paradigmáticos de certos mecanismos do funcionamento psíquico, ele não propõe uma
terapêutica para a psicose, diferente do que faz com a neurose” (METZGER, 2008, p.10).
41
com Salvador Dalí deu vários frutos. Ademais, os surrealistas representaram uma
importante influência em seu itinerário. É neste caldo temperado com muitas referências
que sustentaram (e porque não, determinaram) a edificação de um campo teórico
idiossincrático que, posteriormente, derivou um sistema de pensamento:
entretanto, as motivações e os gostos pelo ato de colecionar são, para ambos, distintos.
Como se sabe, Lacan teve sob sua posse, vários objetos, livros raros e quadros de vários
pintores. Uma de suas aquisições foi “A origem do mundo”, óleo de Gustave Coubert, de
1866, quadro que causou na época bastante escândalo, por representar abertamente o sexo
feminino. Isto é apenas um pinçar de referências que se encerra por aqui, pois, se a
escolha fosse mapeá-las com maior precisão e justificá-las tomaria um longo tempo,
entretanto, não é este o intuito desta dissertação, evidentemente.
Ao gravitar por estes campos por vezes distintos e assumir os riscos das
contradições e ambiguidades em sua produção teórica, Lacan ancorava o seu saber no
freudismo e, sobretudo, para além dele, operando diferentemente de outros seguidores de
Freud. Como observa Roudinesco:
8
Primeiro livro por ele publicado, que resultou de sua tese de doutorado em psiquiatria, na qual trabalhou o
caso Aimée, o seu único “caso clínico” em 50 anos de atividade profissional (SAFATLE, 2007). Marguerite
Pantaine, verdadeiro nome da paciente, fora internada, em 1931, no Hospital de Sainte-Anne, local que
Lacan trabalhava. Sua internação se deu após esfaquear uma famosa atriz parisiense, por acreditar que a
mesma participava de um complô para assassinar o seu filho. Inspirado em um romance que ela não
conseguira publicar, o nome Aimée serviu para dissimular a sua identidade, assim, como outros recursos
utilizados por Lacan e que são amiúdes necessários à construção de um caso clínico. Inicialmente com essa
tese, a sua ambição foi confrontar a tradição francesa e a germânica que compreendiam as afecções mentais
de forma bastante distinta, adotando, na época uma perspectiva psicogênica, isto é, “uma perspectiva que
insistia na irredutibilidade de um certo quadro de distúrbios mentais a toda e qualquer explicação causal de
natureza orgânica ou mesmo funcional” (SAFATLE, 2007, p.15). A tese de Lacan teve muitos alcances e foi
um passo importante para o que a psicanálise compreende até hoje por paranóia, uma das modalidades da
psicose. Roudinesco ressalta que Lacan “[...] mostra bem o lugar que ocupa a tese em seu itinerário: ela é
ainda uma obra de psiquiatria, embora já sendo um texto psicanalítico” (ROUDINESCO, 2008, p.77).
43
Essa acolhida tinha uma razão clara: com sua tese, Lacan procurava constituir uma teoria
na qual clínica, reflexão social e tematização da produção estética se articulam de maneira
orgânica. Desde o início, essa teoria é um programa interdisciplinar cuidadosamente
montado que, através da reconstrução dos modos de determinação do normal e do
patológico, fornece os subsídios para uma crítica da razão que guarda semelhança com as
expectativas de ruptura da vanguarda estética (2007, p.15).
Por outro lado, os textos de Dalí que cobrem um período de 40 anos foram
reunidos e agrupados, redundando em um livro chamado Sim ou a paranóia. Estes
trabalhos que abrangiam as artes, a psicanálise, a política foram publicados, inicialmente,
na Le Minotaure, no supracitado artigo - “Le surrealisme au service de la revolution” -,
ou sob a forma de fascículos, conforme consta no prefácio do editor9. Nesta coletânea, é
com essas palavras que Dalí fala sobre a tese de Lacan:
Ao contrário das novas intervenções de raciocínio coercitivo de natureza a fazer impor uma
outra intervenção da ideia de sistematização sobre os conteúdos delirantes, a consideração
do mecanismo paranóico como força e poder ativo na própria base do fenômeno da
personalidade, e seu caráter “homogêneo”, “total”, “repentino” das suas características de
“permanência”, de “acréscimos”, de “positividade” inerentes ao fato sistemático apenas
vem confirmar-se, de uma maneira rigorosa, a leitura da admirável tese de Lacan: Dela
psychose paranoïaque dans sés rapports avec la personalité. É a ela que devemos a
motivação de conseguirmos, pela primeira vez, uma ideia homogênea e total do fenômeno,
fora das misérias mecânicas onde se atola a psiquiatria corrente. O seu autor se levanta
especialmente contra as ideias gerais das teorias constitucionalistas que arrasam o abstrato,
conforme as quais a sistematização seria elaborada posteriormente por causa do
desenvolvimento de alguns, muito tênues, fatores constitucionais, o que contribui para criar
os equívocos grosseiros da “loucura do raciocínio”. Esta última noção, anulando a essência
concreta e verdadeiramente fenomenológica do problema, mais ainda faz ressaltar, pelo seu
estatismo unilateral, toda a ofuscante significação dialética do processo paranóico que não
pode, nessa ocasião, deixar de parecer-nos como eminentemente exemplar. O trabalho de
Lacan dá conta, perfeitamente da hiper-acuidade objetiva e “comunicável” do fenômeno,
graças ao qual o declínio toma esse caráter ambíguo e impossível de ser contradito que o
coloca mesmo nos antípodas da estereotipia do automatismo e do sonho. Longe de
construir um elemento passivo, propício à interpretação e apto a intervenção como estes, o
delírio paranóico constitui já, por si próprio, uma forma de interpretação. É precisamente
esse elemento ativo nascido da “presença sistemática” que, além das considerações gerais
que precedem, intervém como princípio dessa contradição na qual reside, para mim, o
drama poético do surrealismo. Essa contradição nunca poderá encontrar uma melhor
conciliação dialética que nas ideias novas que surgem a respeito da paranóia e, conforme as
quais, o delírio surgiria já todo sistematizado (DALÍ, 1974, p. 31-32).
9
Álvaro Pacheco.
44
É possível dizer que desde muito cedo Lacan interessou-se pelo dadaísmo e a sua
ligação com o surrealismo nos dá a ver que, posteriormente, ele reconheceu a influência
surrealista na sua obra. Alguns dizem que Jacques Lacan conheceu Breton antes mesmo
de ler Freud. E, em 1929, escreveu “Hiatus irrationalis”, poema à moda dos surrealistas.
Lacan que, logo em seguida, encontrou-se com aquela que seria a “Aimée” - nome
retirado de um dos romances de sua paciente Marguerite –, reconheceu o valor literário de
seus escritos, como ocorrido com os surrealistas. Jean Allouch faz a seguinte associação
ao afirmar que “os temas desse poema [de Lacan], a água, o fogo, a natureza são a dos
escritos de Marguerite” (ALLOUCH, 1997, p.511).
Dois anos antes de Lacan escrever a sua tese, Dalí cria a atividade crítico-
paranoica - batizada por Breton de método. Aliás, para sermos mais exatos, neste ano de
1929, ele “começou a dar atenção aos mecanismos internos dos fenômenos paranóicos,
encarando a possibilidade de um método experimental baseado no poder imediato das
associações sistemáticas próprias à paranóia; esse método iria tornar-se, em seguida, a
síntese delirante crítica que tem o nome de atividade crítico-paranóica” (DALÍ, 1974,
p.18-19). Com estas palavras, Dalí a define:
Outro fato digno de nota: o contato com o texto de Dalí “O asno podre” - onde o
artista apresentou a teoria que incidirá sobre a sua produção pictórica da década de 30 -
foi determinante no início da elaboração teórica de Lacan (RIVERA, 2005).
Mas, devo dizer - e espero que a maioria dos leitores da história concordem – que o tema da
boneca aparentemente viva, Olímpia, não é o único nem o principal efeito
incomparavelmente inquietante da narrativa. [...] No centro da história acha-se um outro
elemento, que ademais lhe empresta o título, e que também retorna nas personagens
decisivas: o tema do Homem da Areia, que arranca os olhos das crianças (FREUD,
1919/2010d, p. 341).
2010, p.155). Esse é um traço peculiar da narrativa que Freud procura ressaltar, já que o
elemento inquietante é por ele relacionado a uma angústia bastante conhecida:
A experiência psicanalítica nos diz, por outro lado, que o medo de ferir ou perder os olhos é
uma terrível angústia infantil. Muitos adultos a conservam e, mais que qualquer outra lesão
física, temem a lesão ocular. Não há o costume de dizer que uma pessoa cuida de algo
como “a menina de seus olhos”? O estudo do sonho, das fantasias e dos mitos nos ensinou
que o medo em relação aos olhos, o medo de ficar cego, é frequentemente um substituto
para o medo da castração. O ato de cegar a si mesmo, do mítico criminoso Édipo, é apenas
uma forma atenuada do castigo da castração, o único que lhe seria apropriado, conforme a
lei de Talião. Pode-se procurar rejeitar, pensando de maneira racionalista, a derivação do
medo relacionado aos olhos do medo da castração; acha-se compreensível que um órgão
precioso como os olhos seja guardado por um medo correspondente enorme, que por trás
do medo da castração não haja segredo profundo nem significado diverso. Mas assim não
se leva em conta a relação substitutiva entre olho e membro viril, manifestada em sonhos,
fantasias e mitos, e não se pode contrariar a impressão de que um sentimento bastante forte
e obscuro dirige-se precisamente contra a ameaça de perder o membro sexual, e de apenas
esse sentimento confere ressonância à ideia de perda de outros órgãos. Qualquer outra
dúvida desaparece quando nos inteiramos, nas análises de pacientes neuróticos, dos
detalhes do “complexo da castração”, e conhecemos o enorme papel que ele tem em suas
vidas psíquicas (FREUD, 1919/2010d, p. 346-347).
realiza, por exemplo, seria algo de profundo interesse – dito de outro modo, aquilo de que
não há discurso possível, assimilável. Ao operar no vazio das certezas, no hiato dos
discursos, a experiência psicanalítica e a experiência estética tornam-se cúmplices, sendo
oportuno reafirmar que, na arte e na psicanálise, há relações a serem exploradas.
Entretanto e, como é de se esperar, é com Lacan, o maior teórico do descentramento do
sujeito, que este intercâmbio será mais pungente e agudo.
[...] Lacan era uma espécie de anti-herói, inapto à normalidade, prometido à extravagância e
incapaz de obedecer à multidão de comportamentos comuns. Donde seu apego excessivo a
um discurso da loucura que era o único a permitir interrogar a desrazão do mundo (2008,
p.101).
Seria preciso desconstruir as certezas narcísicas, que nos remetem sempre ao mesmo numa
repetição infinita, para que o “outro” como diferença possa acontecer efetivamente. Dessa
maneira, sonhar devanear, jogar e pensar são experiências de alto risco, nas quais, de forma
trágica e alegre, realizamos efetivamente algo da ordem da transgressão (...).
Tudo isso estaria presente na experiência psicanalítica. Como se sabe, Freud reconheceu
bem posteriormente, ao ser interpretado por Ferenczi, como o método psicanalítico,
centrado nas figuras das livres associações, foi inventado a partir de um modelo estético de
criação. Baseando-se num livro em que os poetas deveriam fazer para criar, Freud o
transpôs como método por excelência para o dispositivo analítico (BIRMAN, 2002, p.129).
Resta a loucura, “a loucura que se trancafia”, como já houve quem dissesse tão
acertadamente. Esta ou a outra... Sabem todos, com efeito, que a única razão pela qual os
loucos estão internados é um pequeno número de atos legalmente repreensíveis e que, na
ausência de tais atos, a liberdade deles (aquilo que se vê da liberdade deles) não estaria
ameaçada. Que eles, em maior ou menor grau, sejam vítimas de sua imaginação, estou
pronto a admiti-lo, no sentido em que ela os induz a não observar determinadas regras cuja
inobservância faz com que nossa espécie sinta ameaçada, como todos têm o desprazer de
saber. Mas a profunda indiferença que eles demonstram em relação às críticas que lhe
fazemos e até mesmo às diversas punições que lhes são infligidas leva a crer que eles
50
haurem um grande conforto na própria imaginação, que eles saboreiam o próprio delírio a
ponto de suportarem que ele não tenha validade para os outros. E a verdade é que as
alucinações, as ilusões, etc., constituem uma fonte considerável de prazer [...]. As
confidências dos loucos são algo que eu passaria toda a minha vida a suscitar. Eles são
criaturas de uma honestidade escrupulosa cuja inocência só se pode comparar à minha. Foi
preciso que Colombo embarcasse na companhia de loucos para descobrir a América. E é de
ver como essa loucura tomou corpo e tem durado (1924/2001, p. 17-18).
Seu sentido só pode aparecer diante do médico e do filósofo, isto é, daqueles que são
capazes de conhecer a sua natureza profunda, dominá-la em seu não-ser e de ultrapassá-la
na direção da verdade. Em si mesma, é coisa muda: não existe, na era clássica da literatura
da loucura, no sentido em que não há para a loucura uma linguagem autônoma, uma
possibilidade de que ela pudesse manter uma linguagem que fosse verdadeira. Reconhecia-
se a linguagem secreta do delírio; faziam-se, sobre ela, discursos verdadeiros. Mas ela não
tinha o poder de operar sobre si mesma, por um direito primitivo e por sua própria virtude,
a síntese de sua linguagem e da verdade. Sua verdade só podia ser envolvida num discurso
que lhe permanecia exterior. Mas, fazer o quê, “são loucos...” Decartes, no movimento pelo
qual chega à verdade, torna impossível o lirismo do desatino (FOUCAULT, 1972/1995, p.
509-510).
Chaim Samuel Katz, diz que Foucault, em sua História da loucura na Idade
Clássica, conclui que “a loucura é um outro da razão e que a razão não se exclui da
loucura” (2001, p. 45). Mas o que isso quer dizer? Para situar o que alguns autores
escrevem ao aludirem a Michel Foucault, julga-se necessário explicitar, mesmo que
pontualmente, qual o seu posicionamento perante a modernidade.
Se na época clássica, inexistia uma separação entre o físico e o mental, a maneira como se
relacionava socialmente com o louco não era guiada pelo conhecimento que se tinha da
loucura; na modernidade em contrapartida, isso se dá de forma diferente, já que o médico,
na medida em que cria a categoria de doença mental, detém o poder de diagnosticá-la e
tratá-la. A psiquiatria, desse modo, é uma invenção moderna que se funda na distinção
entre o físico e o mental; o conceito de doença mental sustentado por essa racionalidade
médica, por conseguinte, vai justificar, deste momento em diante, as práticas asilares e a
existência dos grandes hospícios, mas agora, sob a alcunha de tratamento.
Não é o registro da simples Wille, no sentido schopenhaueriano do termo, uma vez que ao contrário da
representação, Schopennhauer quer fazer da essência da vida seu suporte.
Jacques Lacan
O campo que analisarei é constituído por textos que pretendem estabelecer regras, dar
opiniões, conselho, para se comportar como convém: textos ‘práticos que são eles próprios,
objetos de ‘prática’ na medida em que eram feitos para serem lidos, aprendidos, meditados,
utilizados, postos à prova, e visavam, no final das contas, constituir a armadura da conduta
cotidiana (1984/2010, p. 19-20).
como arte da conduta recíproca entre o homem e o rapaz na relação de amor (1984/2010, p.
114-115).
Aqui parece que a aproximação arte e vida ganha algum destaque e talvez nem a
ideia de aproximação mostra-se tão efetiva, tampouco precisa, já que seria algo da ordem
da justaposição, junção, impregnação ou algo do tipo que se encontra marcado pela
capacidade de imbricação de uma coisa na outra. Para aproximar-se precisa estar
separado, antes de mais nada. Isso talvez impossibilita-nos julgar tais condutas da
antiguidade como estéticas uma vez que, dentro do que diagnosticamos como arte hoje é
da ordem do incomum, em outras palavras, não há algo comum a todos e regido por uma
regra de condução em que todos podem/devem participar:
Deve-se entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens
não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar,
modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos
valores estéticos e responda a certos critérios de estilo. Essas “artes de existência”, essas
técnicas de si perderam, sem dúvida, uma certa parte de sua importância e de sua
autonomia quando, com o cristianismo, foram integradas no exercício de um poder pastoral
e, mais tarde, em práticas de tipo educativo, médico ou psicológico (FOUCAULT,
1984/2010, p. 17-18).
ideologia da “boa filha” e da “mãe sábia e boa esposa”, que a sociedade patriarcal da
Coréia impingiu nelas (apud LAGNADO; PEDROSA, 2006a, p.216).
A sua resposta à pergunta, “porque você sente e age dessa maneira?”, provém da
constatação de que os sistemas que presidem à vida na Coréia levaram-na à invenção de
artefatos e artifícios para verificar a existência e a pregnância deles. Ora, os
procedimentos de interrogar e verificar, constitutivos da sua pesquisa como artista, dão
coerência a seus trabalhos, sendo perceptíveis em sua poética. Em um trabalho mais
antigo, a artista recolheu e apagou livros de exercícios - espécie de cartilha ou livro
didático comumente utilizado nas escolas normais que tratam de um material de ensino
bastante padronizado - deixando as marcas que cada aluno utilizava em seu processo de
aprendizado (grifos, palavras destacadas, anotações na marginália, etc). O que ela queria
verificar e acentuar eram “as marcas do aprender”.
Estou interessada apenas em “mim”. O “mim” aqui se refere a uma mulher, nascida na
classe média da Coréia do Sul, heterossexual, sem nenhuma deficiência. Em relação a isso,
não se trata de um eu individual. É muito claro que o grupo a que pertenço é um estrato
social distinto. É também claro que existe uma memória coletiva e um padrão de
comportamento a serem compartilhados, bem como uma ética que diz respeito a esse grupo
(apud LAGNADO; PEDROSA, 2006a, p.216).
que, ao examinar essa história geral das “técnicas de si”, dedicou-se também a
problematizar o comportamento sexual na antiguidade. Nesta investigação, Foucault
recupera a noção de aphrodisia, que na experiência grega, são atos, gestos, condutas, que
proporcionam uma certa forma de prazer e resgata outras duas palavras na língua clássica
para designar essa forma de relação consigo, essa atitude que é necessária à moral dos
prazeres: a enkrateia e a sophrosune. Apesar de ambas aparecerem como acepções bem
próximas, ele ressalta que ainda faltaria muito para serem sinônimas e teria sido
Aristóleles o primeiro a fazer essa distinção. A enkrateia, com o seu oposto akrasia se
situa sobre o eixo da luta, da resistência e do combate: ela é comedimento, tensão,
“continência”. A sophrosune, por sua vez, pelo exercício do domínio e pelo comedimento
na prática dos prazeres, é caracterizada como uma liberdade. Essa espécie de dominação
de si implica para Foucault numa relação agonística e, não por acaso, a relação com os
desejos e prazeres é concebida como uma relação de confronto:
A batalha a ser travada, a vitória a ser conseguida e a derrota que se corre o risco de sofrer
são processos e acontecimentos que ocorrem de si para consigo. Os adversários que o
indivíduo deve combater não estão simplesmente nele ou perto dele. São parte dele mesmo
(1984/2010, p. 84).
Nesta prática moral dos prazeres, para o pensamento grego, “o indivíduo deve
instaurar uma relação de si para consigo que é do tipo “dominação-obediência”,
“comando-submissão”, “domínio-docilidade” (e não, como é o caso na espiritualidade
cristã, uma relação do tipo “elucidação-renúncia”, “decifração-purificação”)
(FOUCAULT, 1984/2010, p.87). Aquele que não domina os seus prazeres não detém a
liberdade, justamente porque para “ser livre em relação aos prazeres é não estar a seu
serviço, é não ser seu escravo (FOUCAULT, 1984/2010, p.98). Mais do que leis e suas
formas de aplicação, o que importa a Foucault são as atitudes que fazem com que as
mesmas sejam respeitadas:
A ênfase é colocada na relação consigo que permite não se deixar levar pelos apetites e
pelos prazeres, que permite ter, em relação a eles, domínio e superioridade, manter os seus
sentidos em um estado de tranqüilidade, permanecer livre de qualquer escravidão interna
das paixões, e atingir a um modo de ser que pode ser definido pelo pleno gozo de si ou pela
soberania de si sobre si mesmo (1984/2010, p. 40).
que -, ela aponta para uma “estilização da atitude” e uma “estética da existência”, pois o
uso dos prazeres é um exercício de liberdade que toma a forma no domínio de si e este
domínio se manifesta na maneira como o sujeito se relaciona consigo e com os outros
(1984/2010). A persistência neste pensamento implica em reconhecer que a estética e,
neste caso, a estética da existência, para este pensador, encontra-se atrelada à dimensão
ética.
Este campo investigativo nos dá a ver que sobre esse material incidiu a análise
foucaultiana do homem de desejo e, para tanto, argumenta que o entrecruzamento entre
uma arqueologia das problematizações e uma genealogia das práticas de si foi necessário.
Na História da sexualidade II: o uso dos prazeres, Foucault assim caracteriza o seu
método investigativo:
Daí, pode-se dizer que Foucault opera a história de modo diferente dos
historiadores; alguns atribuem a ele a denominação filósofo-historiador na tentativa de
demarcar de que lugar ele está falando, um lugar que, no mínimo, comporta trânsitos e
contaminações entre um campo e outro. Para efeito de exemplificação, sobre o seu estilo
de fazer a história, na História da sexualidade I: a vontade de saber, ao listar inúmeras
formas em que o sexo era proibido, censurado, reprimido, escondido, Foucault (1988)
salienta que, por isso mesmo, ou melhor, com todas estas práticas de silenciamento, nunca
se falou tanto dele. Desse modo, ele explicita os eventos numa relação paradoxal, que
questiona o modelo de causalidade mais recorrente na produção da história, e dispõe os
elementos de investigação num agenciamento complexo que impede a produção de uma
versão exclusiva dos acontecimentos, não permite a reiteração de uma verdade. Em suma,
o próprio método genealógico se recusa ao estabelecimento de uma origem, ao contrário
disso, a defesa é que se pode começar a história de vários pontos diferentes e,
consequentemente, o começo é sempre um começo e as origens podem ser variadas a
depender de onde se começa.
57
Artifício e novo triunfo da loucura: esse mundo que acredita avaliá-la, justificá-la através
da psicologia, deve justificar-se diante dela, uma vez que em seu esforço e em seus debates
ele se mede por obras desmedidas como a de Nietzsche, de Van Gogh, de Artaud. E nele
não há nada, especialmente aquilo que pode conhecer da loucura, capaz de assegurar-lhe
que essas obras da loucura o justificam (1972/1995, p. 530).
59
Gosto da palavra crer. Em geral, quando alguém diz eu sei, não sabe, acredita. [...] Viver é crer – ao menos
é isso que eu creio.
Marcel Duchamp
Grosso modo, tal caráter pode ser explicitado quando Freud atribui ao delírio de
Schreber compatibilidade à psicanálise. Em uma das últimas páginas do texto “O caso
Schreber: notas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia
paranoides)”, Freud fez algumas observações relacionando o processo de reconstrução do
Presidente aos fundamentos propostos em sua teoria da libido e da paranoia:
Os “raios divinos” de Schreber, feitos de uma condensação de raios solares, fibras nervosas
e espermatozóides, não são outra coisa senão os investimentos libidinais concretamente
representados e projetados para fora, e conferem ao seu delírio uma espantosa concordância
com nossa teoria (1911/2010b, p.103).
Mas não se trata de uma exceção, tal identificação entre os pressupostos teóricos da
Psicanálise e o discurso louco de Schreber para Freud. E sim de uma constatação
60
permanente, que diz respeito ao estatuto da loucura e seus traços diferenciais similares aos
da Psicanálise enquanto teoria sobre a loucura (KATZ, 2001, p. 52).
Estas ideias mostram que, com relação à loucura, pode haver alguns pontos de
contato entre esses pensadores, sem, contudo, desconsiderar que há muitas diferenças.
Embora Foucault tenha com a psicanálise, como preferem alguns, uma relação
ambivalente - pois se de um lado, enaltece-a por ter rompido com a polaridade normal e o
patológico, de outro, atribui a ela uma “reconstituição do poder médico, produtor de
verdade, num espaço preparado para que esta produção permaneça sempre adequada ao
poder” (apud COUTINHO, 2001, p.79). Sobre esta relação com a psicanálise, alguns
autores afirmam que, mesmo quando Foucault não menciona Lacan, em alguns de seus
textos, é com ele o diálogo.
Se num cacho de uvas não há duas iguais, por que tenho eu de descrever uma uva
baseando-me em outra, em todas as outras, ou supor que ela se presta a ser comida? A
mania incurável em reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificável, só serve de
entorpecer o cérebro (BRETON, 1924/2001, p.22).
Eu estou completamente consciente de que nunca escrevi nada além de ficções. Com isso
não quero dizer que elas estejam fora da verdade. Parece-me plausível fazer um trabalho de
ficção dentro da verdade, introduzir efeitos de verdade dentro de um discurso ficcional e, de
algum modo, fazer com que o discurso permita surgir, fabrique algo que não existe,
portanto, ficcione algo. Ficciona-se a história partindo de uma realidade política que a torna
verdadeira; ficciona-se uma política que ainda não existe partindo de uma realidade
histórica (apud COUTINHO, 2001, p.67).
Como diz Deleuze, em um livro com alguns ensaios que versam sobre o
pensamento foucaultiano, “a obra de Foucault entra na corrente das grandes obras que
alteraram, para nós, o que significa pensar” (2005, p. 128). E, a partir da citação de
61
Foucault: “nunca escrevi senão ficções...” que aqui se retoma, acrescenta: “mas a ficção
nunca produziu, tanto, verdade e realidade” (DELEUZE, 2005, p. 128).
Desse modo, convém destacar que a psicanálise implica subjetividades, não mais
identificadas com a consciência e a racionalidade, mas com uma relação com a produção
de verdade dimensionada à ordem do sujeito. E neste sentido, a psicanálise não vai
colocar “a questão do sujeito da verdade, mas a questão da verdade do sujeito”
(GARCIA, 1996). Quando se trata de pesquisa em psicanálise, Freud considerou
impróprias as categorias de racionalidade e objetividade, em função do mundo simbólico
da linguagem a que o homem está imerso. Frente aos impasses na clínica é que a
produção do saber se agencia. Diante dessas considerações, o ato de clinicar é coincidente
ao de investigar, justamente porque:
Freud construiu conhecimento a partir dos impasses da clínica, formulando o seu método –
como quando chamou os efeitos de amor na relação terapêutica de transferência – e
reformulando toda a sua própria teoria a partir de novos impasses. O método é a escuta e
interpretação do sujeito do desejo, em que o saber está no sujeito, um saber que ele não
sabe que tem e que se produz na relação que será chamada de transferencial. Nessa medida,
o psicanalista escuta o sofrimento e descobre que não deve eliminá-lo, mas criar uma nova
posição diante de seu sentido (ROSA, 2004, p.341).
Cumpre sermos gratos às descobertas de Freud. Baseada nelas delineia-se, enfim, uma
corrente de opinião graças à qual o explorador humano poderá ir mais longe em suas
investigações, uma vez que estará autorizado a não levar em conta tão-somente as
realidades sumárias. É possível que a imaginação esteja prestes a recobrar seus direitos. Se
as profundezas de nossa mente albergam estranhas forças, capazes de aumentar as forças da
superfície ou de lutar vitoriosamente contra elas, é do maior interesse capturá-las: capturá-
las para em seguida, se for o caso, submetê-las ao controle da razão. Os próprios analistas
nisso só têm a ganhar. Mas é preciso notar que não há nenhum meio designado a priori para
levar a cabo este empreendimento; que, até segunda ordem, ele pode ser considerado tanto
da alçada dos poetas quanto da dos homens; e que seu bom êxito não depende dos métodos
mais ou menos arbitrários que serão seguidos (BRETON, 1924/2001, p.23-24).
Quanto ao motivo que me impulsionou foi muito simples. Para alguns, espero, esse motivo
poderá ser suficiente por ele mesmo. É a curiosidade – em todo caso, a única espécie de
63
curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aquela que
procura assimilar o que convém conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo. De
que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos
e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece?
Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do
que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir. Talvez me digam que esses
jogos consigo mesmo têm que permanecer nos bastidores; e que no máximo eles fazem
parte desses trabalhos de preparação que desaparecem por si sós a partir do momento em
que produzem seus efeitos. Mas o que é filosofar hoje em dia – quero dizer, a atividade
filosófica – senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não
consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em
vez de legitimar o que já se sabe? Existe sempre algo de irrisório no discurso filosófico
quando ele quer, do exterior, fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde está a sua verdade e
de que maneira encontrá-la, ou quando pretende demonstrar-se por positividade ingênua;
mas é seu direito explorar o que pode ser mudado, no seu próprio pensamento, através do
exercício de um saber que lhe é estranho. O “ensaio” – que é necessário entender como
experiência modificadora de si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora
de outrem para fins de comunicação – é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for
ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma “ascese”, um exercício de si sobre o pensamento
(1984/2010, p.15-16).
64
II - Arte e vida
Marcel Duchamp
Para discutir esta aproximação do campo da arte com a vida, na perspectiva das
estéticas da existência não há como fugir de algumas temáticas que não cessam de
aparecer nos discursos atuais que vão da perspectiva da modernidade ao contemporâneo.
Houve uma modernidade para cada pintor antigo: a maior parte dos belos retratos que nos
provém das épocas passadas está revestida de costumes da própria época. São
perfeitamente harmoniosos; assim a indumentária, o penteado e mesmo o gesto, o olhar e o
sorriso (cada época tem seu porte, seu olhar e seu sorriso) formam um todo de completa
vitalidade. Não temos o direito de desprezar ou de prescindir desse elemento transitório,
fugidio, cujas metamorfoses são tão freqüentes. Suprimindo-os, caímos forçosamente no
vazio de uma beleza abstrata e indefinível, como a da única mulher antes do primeiro
pecado (BAUDELAIRE, 1859/1996, p.26).
10
O pintor da vida moderna.
66
Quando um verdadeiro artista chega à execução definitiva de sua obra, o modelo lhe será
mais um embaraço do que um auxílio [...]. Estabelece-se assim um duelo entre a vontade
de tudo ver, de nada esquecer, e a faculdade da memória, que adquiriu o hábito de absorver
com vivacidade a cor geral e a silhueta, o arabesco do contorno. Um artista que tem o
sentimento perfeito da forma, mas acostumado a exercitar sobretudo a memória e a
imaginação, encontra-se então como que assaltado por uma turba de detalhes, todos
reclamando justiça com a mesma fúria de uma multidão ávida por igualdade absoluta. Toda
justiça acha-se forçosamente violada, toda harmonia destruída e sacrificada; muitas
trivialidades assumem importância, muitos detalhes sem importância tornam-se
usurpadores. Quanto mais o artista se curva com imparcialidade sobre o detalhe, mais
aumenta a anarquia. Se for míope ou presbita, toda hierarquia e toda subordinação
desaparecem. É um acidente que aparece constantemente nas obras de um de nossos
pintores mais em voga, cujos defeitos, aliás, são tão bem apropriados aos da multidão que
contribuíram singularmente para sua popularidade (BAUDELAIRE, 1859/1996, p. 32-33).
Nada dos inóspitos rochedos de outrora, onde criaturas monstruosas ameaçavam solitários
viajantes. Quando André Breton publica Nadja, 1928, os enigmas humanos já ecoam em
novo endereço há muito tempo. É nas cidades que eles repercutem, quase sempre nos
ouvidos de caminhantes entregues aos próprios devaneios ao burburinho da multidão. Pelo
menos desde meados do século XIX, as modernas capitais européias se converteram em
espaço privilegiado das grandes interrogações metafísicas, acolhendo a inquietude dos
espíritos sensíveis que não cessam de explorar suas esquinas mais obscuras. Nessa
cartografia, de referências a um só tempo concretas e imaginárias, a cidade de Paris ocupa
um lugar especial, sobretudo nos escritos literários que não raro a envolvem numa
misteriosa aura (MORAES, 2007, p.7).
No centro desse mundo de coisas está o mais onírico dos seus objetos, a própria cidade de
Paris. Mas somente a revolta desvenda inteiramente o seu rosto surrealista (ruas desertas,
em que a decisão é ditada por apitos e tiros). E nenhum rosto é tão surrealista quanto o
rosto verdadeiro de uma cidade. Nenhum quadro de De Chirico ou de Max Ernest pode
comparar-se aos fortes traços de suas fortalezas internas, que precisam primeiro ser
conquistadas e ocupadas, antes que possamos controlar o seu destino e, em seu destino, no
destinos das suas massas, o nosso próprio destino.
[...] Também a Paris dos surrealistas é um “pequeno mundo”. Ou seja, no grande, no
cosmos, as coisas têm o mesmo aspecto. Também ali existem encruzilhadas, nas quais
sinais fantasmagóricos cintilam através do tráfico; também ali se inscrevem na ordem do
dia inconcebíveis analogias e acontecimentos entrecruzados. É esse espaço que a lírica
surrealista descreve (1929/1994b, p.26-27).
Evidentemente, com suas análises sobre a vida moderna - deste mundo que se
ergue como múltiplo e extremamente proliferante - Baudelaire chama a atenção para
extrair o eterno do transitório, e, desse modo, prenunciam-se os movimentos de
vanguarda, o que o eleva à condição de precursor da estética moderna: “Em poucas
palavras, para que a Modernidade seja digna de tornar-se Antiguidade, é necessário que
dela se extraia a beleza misteriosa que a vida humana involuntariamente lhe confere”
(1859/1996, p.27).
Baudelaire não é nem um poeta kitsch romântico, que ficaria preso à nostalgia do passado,
nem um poeta triunfalista modernoso, que limitar-se-ia à apologia do presente. A sua
verdadeira modernidade consiste em ousar afirmar, ao mesmo tempo e com a mesma
intensidade, a força e a fragilidade da lembrança, o desejo de volta e a impossibilidade de
retorno, o vigor do presente e a sua morte próxima. Se essa tensão define, na leitura
benjaminiana, a modernidade de Baudelaire, talvez possamos afirmar que ela também
descreve, na nossa interpretação, a modernidade de Benjamin (1997, p.154).
Uma pergunta relevante deve ser feita: de que modernidade estamos falando?
E ainda:
11
Freud inventou este conceito para dar conta de fatos da experiência clínica que mostravam que o
conhecimento do esquecido não apaziguava a angústia. O termo perlaboração é reservado ao tipo específico
de elaboração psíquica que ocorre na situação analítica e consiste no trabalho realizado pelo analisado.
Baseada, sobretudo, nas construções freudianas, Laplanche e Pontalis (2000), ao discorrerem sobre o termo
perlaboração, acentuam a dificuldade de tradução da palavra alemã Durcharbeitung (ou Durcharbeiten) e a
definição que propõem aponta para uma espécie de “elaboração interpretativa”, justamente por
corresponder ao “processo pelo qual a análise integra uma interpretação e supera as resistências que ela
suscita. Seria uma espécie de trabalho psíquico que permitiria ao sujeito aceitar certos elementos recalcados
e libertar-se da influência dos mecanismos repetitivos. A perlaboração é constante no tratamento, mas atua
mais particularmente em certas fases em que o tratamento parece estagnar e em que persiste uma
resistência, ainda que interpretada” (Laplanche; Pontalis, 2000, p. 339).
70
Há cinquenta anos, não se prestava a atenção a um lapso que escapava durante uma
conversa. Não se via senão uma simples anomalia, talvez, no fato de que esse lapso pudesse
abrir bruscamente perspectivas profundas sobre uma conversa que parecia desenrolar-se de
um modo mais normal. Mas depois da Psicopatologia da vida cotidiana, as coisas mudaram
muito. O método de Freud, ao mesmo tempo que as isolava, permitiu análises de realidades
que até então se perdiam, sem que isso fosse notado na grande vaga do percebido (1935-
1936/ 1969, p. 38).
A regra diz em suma: não ter preconceitos, suspender o julgamento, receber, dar a mesma
atenção a tudo o que acontece e à forma como acontece. Por outro lado, o paciente deve
respeitar a simetria: libertar as palavras, dar livre curso a todas as ‘ideias’, figuras, cenas,
nomes, frases da forma como surgem na sua boca e no seu corpo, em ‘desordem’, sem
selecção nem repressão (LYOTARD, s/d, p. 38-9).
É portanto este o diferendo: a estética moderna é uma estética do sublime, mas nostálgica;
permite que o ‘impresentificável’ seja alegado apenas como um conteúdo ausente, mas a
forma continua a proporcionar ao leitor ou ao espectador, graças à sua consistência
reconhecível, matéria para consolação e prazer. Ora estes sentimentos não formam o
verdadeiro sentimento sublime, que é uma combinação intrínseca entre prazer e dor: o
prazer de que a razão exceda qualquer ‘presentificação’, a dor de que a imaginação ou a
sensibilidade não estejam à altura do conceito (1987, p.26).
Com a explosão das vanguardas nas primeiras décadas do século, a obra de arte passou a
ser tudo e qualquer coisa. Nenhum ideal teórico, nenhum princípio formal poderiam mais
defini-la ou qualificá-la a priori. Seguindo um movimento paralelo ao da ciência – e até da
própria realidade, com o afluxo das massas – a arte tornou-se Estranha (1980, p.5).
O conjunto denominado arte, a partir deste momento, não pode mais restringir-se à
ideia de obra de arte, sendo necessário pensar a criação de um território que compreenda
práticas, gestos, discursos e percursos, que pode ser chamado o campo das artes, sem com
isso suplantar sua transitoriedade.
Estas mudanças de termos não dão conta desse território vasto e múltiplo da arte e,
desse modo, toda e qualquer tentativa de definir ou significar pode ser tomada como uma
ameaça de restringir ou de acentuar a imprecisão.
A palavra “obra de arte” parece ser insuficiente para pensar a arte hoje - com todas
essas mudanças e com o modo como ela se insere no contexto dito contemporâneo.
Partindo da discussão de Walter Benjamin quando refere o declínio da aura da obra de
arte e suas consequências, Gérard Lebrun (1983), em seu texto sobre “A mutação da obra
de arte” diz que a expressão obra de arte que referimos hoje muito se distingue do século
passado. Esta mutação é mais do que transformação, ela é brutal, chegando a ser uma
inversão, pois, para ele, trata-se de uma mutação “conceptual”, nas suas palavras: ela é –
“talvez tão profunda que possa estar dando à palavra ‘arte’, sem o percebermos, um
sentido que já não tenha nada a ver com o corrente no século passado” (LEBRUN, 1983,
p.21). E esta mutação, tão bem pressentida por Walter Benjamin, cuja investigação em
seu ensaio emblemático que procurou elucidar como as técnicas de reprodução chegam a
73
transformar a própria noção de arte. Com base no texto de Benjamin, Lebrun (1983) nos
conduz a pensar que, neste caso, as palavras se mantiveram, mas, entretanto, não se trata
mais da mesma coisa.
Não se pinta para o mercado assim como se pintava para um mecenas. Não se concebe o
Centro Beaubourg como se concebia um castelo de recreação do rei. As palavras ‘pintura’,
‘arquitetura’, ‘decoração’ podem permanecer, mas não se trata mais do mesmo tipo de
produção (LEBRUN, 1983, p.23).
Lacan diz algo similar quando afirma que, para avaliar a sublimação, deve-se
considerar que a produção na arte, especialmente das Belas-Artes, é historicamente
datada, pois:
Não se pinta na época de Picasso como se pintava na época de Velázquez, não se escreve
tampouco um romance em 1930 como se escrevia no tempo de Stendhal. Este é um
elemento absolutamente essencial que não devemos, por enquanto, conotar no registro do
coletivo ou do individual – coloquemo-lo no registro do cultural (1959-1960/2008a, p.132).
Walter Benjamin formula esta transição considerando que “no tempo das técnicas
de reprodução, o que é atingido na obra de arte é a sua aura” (1935-1936/1969, p.19).
Entende-se por aura “a única aparição de uma realidade longínqua - por mais próxima que
ela possa estar” e mais “aquilo que é essencialmente longínquo é o inaproximável”
(BENJAMIN, 1935-1936/1969, p.22).
A obra de arte, então, não convidava mais o seu receptor a sonhar com base nela, mas a
analisar a sua percepção a partir das indicações que ela fornecia. Assim, o olho, que
aprendera somente a ser espectador passivo, achava-se em presença de uma arte cujo
objetivo não era mais mostrar o mundo, porém balizar a minha construção de mundo. O
olho foi educado para olhar; e propunham-lhes que escutasse (LEBRUN, 1983, p.30).
74
Nas atitudes, que implicam operações como as de Duchamp e Oiticica – que deslocam a
ênfase da produção de obras de arte para idéias, gestos, ações, objetos e comportamento -, o
que se designa como arte e experiência estética concentra-se em proposições que acentuam
o processual e o conceitual; no fundo, ressaltando a atitude crítica sobre a arte e o sistema
cultural que lhe dá sustentação (FAVARETTO, 2004, p.103).
Em relação à obra, ela pode ser, para Duchamp, “qualquer coisa, mas numa hora
determinada” (apud CAUQUELIN, 2005, p.94). Percebe-se que, neste deslocamento, o
valor desertou o objeto e agora está relacionado ao lugar e ao tempo. “O autor desaparece
como artista-pintor, ele é apenas aquele que mostra. Basta-lhe apontar, assinalar”
(CAUQUELIN, 2005, p.94).
12
Talvez a melhor tradução aqui fosse curandeiro.
76
[...] [ela] exalta o corpo lacerado, o corpo mutilado, a carne oferecida às incisões do bisturi,
à lâmina de navalha... Essa ação de exibir o corpo em todos os seus estados de lesão vem,
primeiro, opor-se à longa tradição do papel atribuído à arte de transfigurar a verdade
orgânica do corpo. De uma maneira geral, o interior corporal e suas secreções são
considerados feios. E a feiúra dessa vida orgância “interna” é sinal tangível de nossa
degenerescência. Assim, Nietzsche invoca “o que há de esteticamente ofensivo no interior
do homem sem epiderme: massas sangrentas, intestinos carregados de excrementos,
vísceras, todos esses monstros que sorvem e aspiram e sugam, informes ou feios ou
grotescos, e dos mais temíveis ao olfato”. O invólucro do corpo tem por função esconder
essa mecânica que produz a putrefação, e a arte não deve, sobretudo, revelar essa verdade
orgânica. O que Nietzsche propõe é a idéia de um corpo que supera a si mesmo. “Admite-se
aqui que todo o organismo pensa, que todas as formações orgânicas participam do pensar,
do sentir, do querer, e, em consequência, que o cérebro é apenas um enorme aparelho de
concentração”. Mas, o corpo é o ponto de partida, o Si, ele não deve ser reduzido a uma
máquina orgânica. Ao contrário, o body art parece encenar o corpo orgânico como a origem
natural absoluta que se inverte em negação de pensamento. O que está em jogo é
demonstrar com um certo cinismo da zombaria que, mesmo que o corpo pareça belo,
mesmo que a consciência seja imagem dessa beleza, trata-se apenas de uma ilusão.
77
* * *
13
Nesta versão da bienal ocorrida em 2006; o título “Como viver-junto” foi pensado com base nos
seminários de Roland Barthes, realizados no Colège de France, na década de 70. Outra presença na
concepção desta bienal foi o artista Hélio Oiticica e seu Programa Ambiental.
79
porque isto estava previsto, entretanto, no momento de sua chegada verificava-se que esta
previsão era inviável. Tomados por uma espécie de incapacidade de conduzi-los, mas
convocados a responder àquela tarefa institucional, restava aos monitores construir uma
mediação a partir do próprio acontecimento daquela chegada, pautada inicialmente na
experiência impregnada de susto, paralisias e, ao mesmo tempo, curiosidade e desafio. O
próprio encontro já fornecia material para inventar não somente um roteiro mais
adequado, mas um manejo, uma maneira singular de apresentação da mostra. A abertura
para isso que não se sabe e a construção conjunta entre a monitora e os supostos
“espectadores” são condições para quem se lança neste tipo de trabalho. Tal postura pôde
contar com a própria tendência das produções artísticas contemporâneas que privilegiam
cada vez mais o comportamento de quem participa. Um olhar aguçado e ao mesmo tempo
abrangente faz-se necessário ao monitor, para disponibilizar-se ao risco desta
aproximação, de modo a construir um percurso com aqueles que vêm ao encontro desta
experiência.
O trabalho de Alberto Baraya para a 27ª Bienal de Artes de São Paulo contava
com o projeto de um “Herbáreo de plantas artificiales”, em que o artista recolheu plantas
e flores artificiais que enfeitavam as casas de moradores da Amazônia, dispondo no
museu essa sua coleção, e especificando-a como faz um botânico. Esse procedimento era
reincidente em sua obra, presente em outros momentos de sua produção, mas
especificamente sobre esta experiência, e a respeito do encontro com estas plantas e flores
de plástico, o artista declarou que:
O fato de deparar com elas, acabou sendo uma espécie de confirmação daquilo que eu
denominava as “leis da decoração”. Até mesmo os lugares mais “naturais” precisam ser
ornamentados, custe o que custar. Assim, a globalização penetra nos lugares mais remotos
do mundo e evidencia uma ruptura das fronteiras culturais (apud LAGNADO; PEDROSA,
2006a, p.24).
Evidentemente, o trabalho de Baraya chama a atenção não somente pelo que ele
recolhe, adorna e dispõe nos museus sob a alcunha de obra, mas, sobretudo, por sua
80
atitude, pelo gesto florescido, por exemplo, no contato com os seringueiros e com a
população daquela região, quando residiu alguns meses no Brasil - proposição desta
Bienal. Considera-se que a força do trabalho localiza-se mais na experiência de morar em
outro lugar, de ocupá-lo (mesmo que por alguns meses) e de apreender aquele ambiente,
atribuindo, muitas vezes, ao produto final ou àquilo que se concretizou como obra, uma
parte desta e, às vezes, para ser visualizada, ela se acentua, como dependente da
experiência quando não uma mera função de registro. Para o artista-residente, aceitar esta
proposição já é um gesto, pois sabemos que a arte do século XX tem esta obstinação:
“uma grande arte deste século parece mobilizada pela intenção de apagar as fronteiras
entre a obra e seus entornos, entre a cena e seu espectador, entre a religião da arte e o
mundo comum” (GALARD, 2008, p.16).
E a propósito da palavra gesto, cabe destacar aqui o que nos explicita Jean Galard,
em seu livro A beleza do gesto, cuja defesa é que a arte do comportamento, mesmo sendo
a mais rudimentar e desprovida de categorias estilísticas, apresenta-se como a mais
necessária; se se considera que “forma de agir, maneira, jeito” são algumas de suas
significações, conforme nos traz o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa – o autor
chega a qualificá-la como “a arte ao pé da letra” e, deste modo, eleva o gesto à sua
proposição radical.
Se é verdade que toda a reação é socialmente modelada, que nossos gestos inclusive os
mais elementares, são educados, a arte que se dedicasse a eles não contradiria o “natural”,
substituiria uma arte anterior, uma estética implícita, pouco consciente, que regula o porte e
a atitude, a continência e as conveniências, que subentende a exigência da contenção,
quando não do comedimento. Uma arte deliberada, associada às condutas, não teria como
objetivo opor seus eventuais refinamentos aos extravasamentos dos instintos; ela
experimentaria gestos inusitados, que a estética herdada exclui.
É preciso entender aqui o “gesto” na maior extensão do termo: não só no sentido próprio
(os movimentos do corpo, os usos corporais), mas também na acepção figurada.
Permanecer resolutamente exposto a um perigo, enfrentar um adversário mais forte, lançar-
se em nome da honra numa aventura sem esperança é “agir pela beleza do gesto” – como se
um sistema estético, de princípios constantemente ativos, mas informulados, nos incitasse a
acreditar que a beleza nunca pode aparecer tão bem como nas poses de desafio, nas reações
suicidas, no brilho e na gratuidade (GALARD, 2008, p.21-22).
abordar as pessoas e recolher estas plantas artificiais nas casas e nas ruas. Para efeito
desta pesquisa, vale ressaltar que este delicadíssimo trabalho inscreve-se como obra de
arte a partir do que a modernidade constelou no cenário artístico.
E sob este aspecto, é difícil falar do gesto e das poéticas da atitude sem aludir ao
corpo. Sem ambicionar que não havia a presença do corpo em outras artes, neste âmbito
da arte moderna e suas extensões contemporâneas, surgem e ganham relevo os trabalhos
que incidem sobre a descoberta do corpo ou que o tomam como matéria – como é o caso
da body art e das performances – derivando, inclusive, numa “nova” terminologia, quiçá,
categoria ao designar o corpo como suporte quando reportamos a estes trabalhos. As
produções de artistas contemporâneos não comportam mais certas denominações que se
mostram insuficientes ou imprecisas para situá-las:
No início dos anos 60 ainda era possível pensar nas obras de arte como pertencentes a uma
de duas amplas categorias: a pintura e a escultura. As colagens cubistas e outras, a
performance futurista e os eventos dadaístas já haviam começado a desafiar este singelo
“duopólio”, e a fotografia reivindicava, cada vez mais, seu reconhecimento como expressão
artística. No entanto, ainda persistia a noção de que a arte compreende essencialmente
aqueles produtos do esforço criativo humano que gostaríamos de chamar de pintura e
escultura. Depois de 1960 houve uma decomposição das certezas quanto a este sistema de
classificação. Sem dúvida, alguns artistas ainda pintam e outros fazem aquilo a que a
tradição se referiria como escultura, mas estas práticas agora ocorrem num espectro muito
mais amplo de atividades (ARCHER, 2001, p.1).
Isso ocorre com o artista Javacheff Christo - e da sua dupla Jeanne-Claude - que
em decorrência de suas intervenções em espaços públicos em que embrulha objetos de
grandes dimensões e encobre grandes extensões (monumentos, ilhas, parques, estradas,
vales etc) é conhecido como “escultor ambiental”. Este procedimento de retirar o objeto
do olhar para chamar a atenção para ele faz saltar aos nossos olhos a tônica de seus
trabalhos; como sua ocorrência se dá em espaços/monumentos públicos, o tempo e as
negociações necessárias para conseguirem autorização, bem como os recursos para sua
realização fazem parte do resultado final.
A “body sculture” da alemã Rebecca Horn parece seguir a mesma linha quando se
trata da procura de uma expressão mais precisa para efeito de nomeação; entretanto, as
diferenças entre estes dois artistas se intensificam na medida em que se observa a
intencionalidade e a própria forma de apresentação de seus trabalhos radicalmente
diversa; neste último caso, a escultura é feita a partir do seu corpo, mas não se funde a
ele. Acoplando-se nele estruturas de materiais diversos o que deseja provocar são
extensões, prolonga-se o corpo, amplia-se e alastra-se o movimento que dele parte. Em
outro momento, estas estruturas abandonam o seu corpo e outro mecanismo é implantado
nelas para garantir a movimentação:
As obras feitas por Horn serviram como vestuário em seus primeiros filmes. Normalmente
projetadas para serem usadas, elas exageravam ou atenuavam algum aspecto da anatomia
ou de uma função do corpo: estendendo a cabeça, como em Unicórnio (1970-72), e, em
outras ocasiões, prolongando os dedos, cobrindo o corpo com penas ou amarrando
cuidadosamente as pernas e braços de dois protagonistas uns nos outros de modo que o
movimento independente se tornasse impossível (ARCHER, 2001, p. 103).
Não é a gordura sobre a cadeira que é exposta, mas a gordura em todos os seus estados,
considerados em sua evolução, até chegar ao apodrecimento: “a natureza de minhas
esculturas não é imutável e definitiva. Várias operações se dão na maior parte delas:
reações químicas, fermentações, mudanças de cor, degradação, ressecamento. Tudo está em
estado de mudança” (BORER, 2001, p. 26).
83
A partir dos anos 50, Beuys passa a utilizar os materiais “pobres”: feltro, gordura,
animais mortos, cobre, enxofre, mel, sangue, ossos etc., mesmo constatando que outros
artistas fizeram uso dos materiais considerados indignos da arte (levando-os a criar a Arte
Povera, no final da década de 60), alguns deles – como é o caso do feltro e da gordura –
são imediatamente associados a sua poética, ressaltando-se que nunca o artista havia
estimulando tanto a capacidade olfativa nas artes. E mesmo quando se constata
similaridade formal entre a sua obra e a dos artistas minimalistas – ao observar como ele
apresenta os objetos e os materiais - acentua-se a afirmação de que a forma como cada
artista se aproxima da vida é absolutamente distinta. E isto também se aplica às suas
ações e aos eventos.
Em termos mais gerais, a distinção entre a arte americana e a alemã do período também
poderia ser demonstrada por uma comparação entre o caráter dos Happenings e dos eventos
do Fluxus. Ambos recorriam ao Dadá, mas enquanto os Happenings eram extensivos, uma
multiplicidade de coisas, os eventos do Fluxus eram simples e unitários na concepção.
Além disso, a “antiarte” dos artistas do Fluxus, e isto obviamente incluía Beuys, visava
reconectar a arte com a vida num sentido plenamente político (ARCHER, 2002, p. 116).
intervenções, ainda que não feitas por suas mãos e, assim, é designado como objeto de
arte: “dei o meu corpo a arte” é o que declara Orlan (JEUDY, 2002, p.118).
Tudo o que Orlan faz para transfigurar o seu corpo em objeto de arte deve frustrar as
significações cirúrgicas e se opor ao funcionalismo biológico que associa esse gênero de
operação a experiências futuristas. Em semelhantes performances, ela arrisca tornar-se
vítima das técnicas que utiliza sobre seu próprio corpo. É a obstinação de defender a idéia
do advento do corpo como objeto de arte que lhe permite contornar e imitar qualquer
significação “tecnicista” de suas operações (JEUDY, 2002, p.119).
Face ao exposto, constata-se que, no âmbito das artes, esta expressão – “arte
carnal” - só diz respeito a estas intervenções e nem pode ser aplicado a outras da mesma
artista que, apesar de ter sempre o corpo como temática central de suas obras e mesmo
quando lança mão de outros suportes, seus trabalhos são evidentemente, de natureza
diferente, coexistindo uma relação de extrema coerência entre eles.
implica no exame do que é arte, atividade esta necessária à produção artística e relevante
para a arte contemporânea.
É neste sentido que se pode referir ao projeto de uma arte desestetizada que é
sempre uma arte do corpo e da vida, afinal não seria este o deslocamento propiciado pelo
movimento das vanguardas?
Sabe-se muito bem do deslocamento produzido pelo trabalho das vanguardas: desidealizou
a idéia de arte e seus objetos. Elaborando-se sobre as teorias, as ações, os resíduos e os
fragmentos da arte moderna; atravessando e utilizando suas obras, o trabalho
86
contemporâneo, que está em curso pelo menos desde a redistribuição estética promovida
pela pop art, está reconfigurando a imagem da arte, suas atividades, obras e outras
manifestações (FAVARETTO, 2004, p.98).
Podemos acordar ainda que, com relação às artes de hoje, esse campo se expande
indefinidamente, se mantém à revelia de quaisquer denominações fixas e precisas, resiste
a modelos e procedimentos rígidos, comporta trabalhos um tanto discrepantes entre si e
exige sempre uma construção de um pensar contínuo que se desdobra a partir de cada
poética. Com o fim das vanguardas e, por conseguinte, com a inexistência da ruptura e do
fracasso da instauração do novo, “o que vigora é a indeterminação que necessita inventar
suas regras e categorias singulares de modo a definir-se a cada caso” (FAVARETTO,
2008, p.15), esta paisagem se mostra consoante ao procedimento clínico: “Esta arte vale
para a clínica, na medida da impossibilidade de qualquer situação tornar-se modelo, pois a
resposta que qualquer um encontra, furtivamente, à pergunta que muitas vezes ignora, não
serve, sequer convém a outrem” (INFORSATO, 2010, p. 169).
88
III – Ambientações
Le Corbusier
14
A obra “Playground duplo (pavilhão – marquise)”, 2006, é assim descrita: ambiente site specific com 36
colunas de compensado, dimensões variáveis.
89
parte dela, neste caso, ela só vale ali, em outro espaço, perde–se aquela obra ou tem-se
outra inédita.
Sua origem, no entanto, remonta aos environments dos dadaístas. Mais tarde o
Environmental Art e a Land Art tomariam não apenas o contexto da galeria, mas todo o seu
entorno, a natureza inteira, como objeto de apreciação estética. [...] Antes do uso geral do
termo Instalação, que se popularizou só nos anos 70, as expressões Ambiente, Environment
e Assemblage nomeavam, mais frequentemente, operações nas quais os artistas reuniam os
mais diferentes materiais num dado espaço (FREIRE, 1999, p.91).
A atmosfera destas questões no campo das artes talvez sustente aquilo que, a partir
de situações clínicas em tangência com outras áreas, aparece nesta pesquisa sob a ideia de
ambiente. A apresentação das narrativas presentes nesta dissertação encontrou sua forma
predominante nesta noção, admitindo-a, no limite, como seu próprio método. O ambiente
é tomado aqui para além de sua acepção vocabular corriqueira de “recinto, espaço, âmbito
em que se vive” (HOUAISS, 2009). A dimensão física do espaço compõe a ideia de um
ambiente, mas não o restringe. Aqui, importa que ao ambiente também estejam
relacionados a escuta, o campo transferencial, o espaço psíquico, o corpo, o cotidiano e a
linguagem.
Outras experiências com a noção ambiental que podem compor para o trabalho
desta pesquisa encontram-se no âmbito da clínica psicanalítica. A expressão “psicanálise
sem divã” passou a ser comumente referida para situar trabalhos clínicos realizados por
profissionais que tomam a psicanálise como um referencial, levando em consideração a
sua técnica e a sua ética e que, contudo, ocorrem em situações não idênticas ao seu
exercício clássico. No âmbito da saúde mental, quando atravessado pela psicanálise,
encontramos nos equipamentos destinados ao cuidado de casos graves, que demandam
intensidade, o ultrapassamento das questões relacionadas às circunscrições do espaço
físico, em prol da construção de um ambiente clínico que acolha esta necessidade. Esta
possibilidade relaciona-se ao panorama atual da saúde mental, em que os serviços estão
pensados e planejados em espaços arquitetônicos diferentes do modelo arquitetural do
manicômio. Nesse sentido, interessa pensar que a passagem que revoluciona a noção de
espaço de tratamento em saúde mental é um plano importante daquilo que aqui se
constituiu sob a ideia de ambiente. Esta mudança advém não só da intercessão dos
estudos psicanalíticos, mas de uma série de acontecimentos na história que se
desdobraram no tensionamento e, por vezes, na desmontagem daquela estruturação
espacial.
O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre: esta é
vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é
dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas
janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o
exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na
torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou
um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente
sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos
pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e
constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem
ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido;
ou antes, de suas três funções: - trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira
e se exprime as outras duas. A plena luz e um olhar de um vigia captam melhor que a
15
Segundo Roberto Machado, a formulação da questão do poder ocorreu para dar seguimento à pesquisa a
qual Foucault se dedicava sobre a história da penalidade. “Colocou-se então o problema de uma relação
específica de poder sobre os indivíduos enclausurados que incidia sobre os seus corpos e utilizava uma
tecnologia própria de controle. E essa tecnologia não era exclusiva da prisão, encontrando-se também em
outras instituições, como o hospital, o exército, a escola, a fábrica, como inclusive indicava o texto mais
expressivo sobre o assunto, o Panopticon, de Jeremy Bentham” (1979, p. XVII).
92
Para isso, é ao mesmo tempo excessivo e muito pouco que o prisioneiro seja observado sem
cessar por um vigia: muito pouco, pois o essencial é que ele saiba vigiado; excessivo,
porque ele não tem necessidade de sê-lo efetivamente (1975/2011, p. 191).
Aquilo que conhecemos como saúde mental hoje não passou ileso destas
transformações mundiais, pois, além dos três movimentos - da reforma psiquiátrica - já
mencionados, tem-se a descoberta do primeiro psicofármaco, a partir de um anestésico
que, como outros medicamentos que vieram a seguir passaram a ser referidos como
“camisa de força química” por permitir que a contenção física da loucura pudesse ser
suprimida como prática habitual, e ser posta em questão; o lançamento do livro A história
da loucura, de Michel Foucault e suas repercussões em diversos campos; e, ainda, o
avanço da psicanálise no tratamento das psicoses; dentre outros.
pelos princípios reformistas, devem ser planejados para acontecer em rede, distribuídos
por toda a cidade, seguindo critérios de regionalização, o que implica, cada vez mais, a
noção de território.
Nesse sentido, podemos pensar que trabalhar sob a lógica do território, no campo
da saúde mental, contrapõe-se radicalmente ao asilamento, em que o hospital encarnava a
única medida de tratamento e ocupava um lugar central das práticas clínicas sem
nenhuma conexão com o seu entorno. Trata-se, pois, não somente de substituir o
manicômio, mas, sobretudo, de instalar um modo de pensar e fazer a clínica em que os
ambientes dos pacientes e os decorrentes laços sociais que estes fazem com os seus
territórios sejam determinantes na condução de um projeto terapêutico singular, que
ocorra na vida com todas as suas limitações, precariedades e potencialidades que ela
possa enfrentar.
16
Tal incumbência está prescrita na lei e os CAPS de todo o território nacional são atualmente
regulamentados pela portaria 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002 e integram a rede de serviços do Sistema
Único de Saúde (SUS). Outros serviços como as Unidades Básicas de Saúde (UBS) e os Núcleos de Apoio
à Saúde da Família (NASF) foram criados pelo Ministério da Saúde, expandido a rede de atendimento à
população. Nesse sentido, uma das atribuições de um CAPS é articular com outros equipamentos através do
Apoio Matricial.
95
Uma das primeiras condições para que esse trabalho possa ser exercido reside na
desalienação do hospital psiquiátrico – o ambiente tem um valor estrutural na edificação de
96
uma parte da síndrome psiquiátrica de tal modo que o ambiente no qual o doente é colocado
frequentemente altera o estilo da doença [...]. Nesse sentido, um trabalho contínuo deve ser
feito para que o hospital possa ser hospitaleiro – podendo acolher o outro – de um modo
não traumatizante e estabelecendo com ele relações de autenticidade (apud SILVA, 2001,
p.102).
Nesta perspectiva, os espaços informais passaram a ser vistos como uma ocasião
privilegiada para a clínica e por isso mesmo trazem grandes possibilidades terapêuticas,
não por acaso, ao longo dos anos, passaram a ser contemplados e reconhecidos como
lugares de acontecimentos, de múltiplas transferências e, portanto, passíveis de escuta e
intervenção (SOUZA, 2003).
Cena 1
ainda: quer segurar em suas mãos, flores de cemitérios, mas tem medo de ser repreendido
pela polícia ao furtá-las de um túmulo qualquer. Com a ajuda de alguns, compra as flores
em uma banca e passeia com elas pelo cemitério para que se contaminem e se tornem
flores fúnebres, enquanto isso, confessa que acredita na imortalidade, que é um imortal.
Retorna e deixa as flores secando por entre páginas de um velho e pesado livro, um dos
volumes de uma enciclopédia. Quer prensá-las entre vários vidros ou porta-retratos e
fazer disto a sua escultura, uma “escultura gótica”.
O diagnóstico inicial era que se tratava de alguém que não sustentava nenhum
projeto. Algo deveria ser feito, mas não se sabia o quê. O seu percurso foi acompanhado
minuciosamente, garantindo que, aos poucos e à sua maneira, viesse a participar de um
ateliê, dentro da instituição. Sabia que era autor de muitas ideias e percebeu que precisaria
de certa ajuda para viabilizá-las, então, aquele que inicialmente “não esquentava lugar”
passou a ser frequentador assíduo.
Cena 2
“precisava falar para o universo”. Dada a sua condição - refiro-me aqui à obesidade
mórbida, decorrente destes vários anos no leito - tinha dificuldades para fazer qualquer
coisa, mesmo tarefas mais simples, de modo que sentar-se numa cadeira ou poltrona era
algo muito exigente para o seu corpo enorme. No passado, cursou Filosofia e chegou a ser
professora universitária. O seu repertório era vasto: recitava Fernando Pessoa com o
mesmo apreço que cantava músicas da dupla sertaneja Bruno e Marrone, versava sobre o
suicídio e a teoria de Durkheim, mas também se interessava pela história das santas, em
especial, de Nossa Senhora de Aparecida. Dentre muitas convicções, havia uma muito
peculiar que afirmava em quase todos os atendimentos: “tive 24 filhos sem nunca ter tido
relação sexual”. Em virtude da dificuldade em acompanhá-la por sua incontinência verbal
e no intuito de fazer um recorte dos assuntos que trazia propus (caso me autorizasse)
escrever tudo aquilo que me dizia (caso conseguisse) e, depois (se quisesse), poderia ler.
Por um período, foi assim que funcionamos: ela vinha, eu escrevia e depois lia. Alguns
meses depois, passa a vir com óculos (não os usava mais há muitos anos), e ocorre uma
sensível mudança: eu escrevo, ela rasura, rabisca por cima dos meus escritos, corta
palavras ou frases, acrescenta ao texto outras, algumas vezes, toma para si a tarefa de ler
e, durante a sua leitura, pula períodos, emenda palavras, faz aliterações. O seu ato
interventivo poderia ser lido como uma quebra de enquadre ou uma inadequação; ao
invés disso e - por mais difícil que possa ser o manejo diante desta situação
desconcertante - era visto como satisfatório na medida em que fez precipitar, diante de
certa letargia, um acontecimento. Alguns dias depois, o seu irmão informa que ela
espontaneamente saiu do quarto e ficou com todos na sala durante uma hora. E não se
tratava de um fato qualquer, fazia 25 anos que isso não ocorria naquela casa.
Cena 3
Dentro da instituição de tratamento, o que mais se escutava sobre ele era que era
muito trabalhoso para equipe porque possuía muita dificuldade em seguir os combinados.
Vivia de pequenas vendas: comprava algo por R$ 2,00 pela manhã e vendia por R$ 2,50 à
tarde. Apesar de parecer meio malandro, sempre se dava muito mal neste seu pequeno
negócio, mais perdia dinheiro do que ganhava. Por alguns meses, ficou na porta da
instituição, recusando-se a entrar mesmo quando convidado. Não saía dali, ficou vários
99
dias, talvez meses, na porta, sempre falando ou perguntando algo para os que entravam ou
saíam. Certa vez deixa no hall do casarão, onde funciona o serviço em que se trata, uma
enorme mala, muito antiga e mal conservada, com um papel escrito e colado nela:
“vende-se”. A mala fica ali por alguns dias, alguns a mudavam de lugar: ora próximo à
lareira, ora da escada ou do banheiro... - ninguém se interessava em comprá-la, nem
outros usuários nem funcionários, mas todos paravam para olhá-la, sem entender do que
se tratava. Havia muitas dúvidas com relação a este rapaz que não tinha nenhum suporte
familiar: havia dúvida diagnóstica, dúvida sobre os manejos, dúvida sobre a sua história...
Tropeçar neste objeto fora de lugar poderia desencadear condutas: livrar-se daquilo
retirando do espaço; perguntar o que aquilo faz ali; indagar sobre o que estamos fazendo
ali.
Cena 4
Cena 5
* * *
O CAPS é um serviço estratégico uma vez que o seu modelo de intervenção deve
ser substitutivo ao modelo centrado nas internações psiquiátricas e a sua criação ocorreu
102
Essa multiplicidade parece estar sustentada, como defende Jean Oury - um dos
fundadores da Clínica de La Borde na França - pela ideia de multirreferencialidade da
transferência, e consequentemente, do espaço de tratamento (MOURA, 2003):
Disto resulta que a transferência no psicótico só pode se fazer sobre uma multiplicidade de
pontos: pessoas, lugares, coisas, linguagens, hábitos. Ora, essa multiplicidade de pontos de
transferência necessita da presença de várias pessoas e de diferentes lugares (OURY, 1995,
p. 96).
A oposição entre psicologia individual e psicologia social ou de grupo, que à primeira vista
pode parecer plena de significações, perde grande parte de sua nitidez quando examinada
mais a fundo. É verdade que a psicologia individual relaciona-se com o ser humano
singular e explora os caminhos pelos quais ele busca encontrar satisfação para seus
impulsos pulsionais; contudo, apenas raramente e sob certas condições excepcionais, a
psicologia individual se acha em posição de desprezar a relação dos indivíduos com os
outros. Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um
modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a
psicologia individual, neste sentido ampliado, mas inteiramente legítimo das palavras, é, ao
mesmo tempo, também psicologia social (1921/2004, p. 91).
no trabalho que fazemos, justamente, uma medida que existe entre a ação e o desejo de
cada um.
Neste mesmo trabalho, Oury (2009) nos fala da função diacrítica como uma
função essencial do Coletivo. Na medicina, os sintomas diacríticos servem para distinguir
uma doença de outra quando estas possuem uma sintomatologia muito semelhante. Na
gramática, este termo refere certos signos que permitem marcar a diferença com outro
signo, como por exemplo, nas palavras “pais” e “país”, o acento agudo faz a distinção
entre uma e outra e, assim, ele se comporta como um sinal diacrítico. Na instituição, a
diacrítica só pode funcionar se tiver uma função de decisão, que pode ser traduzida como
uma tentativa de romper com o estabelecido e, seguindo este raciocínio, os
acontecimentos importantes merecem ser ressaltados, mas sem correr o risco de cair
numa espécie de hábito interpretativo que ao invés de provocar uma ruptura pode ser da
ordem da repetição, portanto, do instituído:
É evidente que o CAPS surge de outras influências, mas interessa aqui priorizar a
psicoterapia institucional na tentativa de identificar determinados conceitos que servem
para pensar que clínica é essa, que constela um certo número de pessoas, coisas, lugares,
projetos em torno de um paciente que, pela via da transferência, vai endereçar seus
significantes.
106
* * *
De acordo com as descrições de Jean Aymè (1994), embora desde a metade dos
anos 40, a corrente da psicoterapia institucional já existisse, foi em 1952, que se
pronunciou pela primeira vez este sintagma por Georges Daumézon, indicando, por assim
dizer, a sua dupla origem: a psicanálise e a psiquiatria pública. Obviamente não é algo
que surge da noite para o dia e, sim, resultado de um processo que se iniciou no encontro
dos herdeiros de Pinel com os de Freud. Em 1925, ano da criação da revista L´Évolution
Psychiatrique, deu-se um período de muitas reflexões no plano clínico, psicopatológico e
epistemológico, contudo, sem incidências práticas nas estruturas de tratamento. Com o
fim da II guerra mundial, a corrente da psicoterapia institucional encontra condições mais
favoráveis e se desenvolve, posteriormente, em complementaridade à instalação da
política de setor na França. E é por meio dos embates políticos e no campo psicanalítico
que se desenrola a história da psicoterapia institucional em que muitos pareciam
concordar sobre a necessidade de transformar o dispositivo de tratamento, rompendo com
a lógica asilar. A psicoterapia institucional é, em alguma medida, sem abrir mão de uma
certa contenção, o paradigma de substituição do manicômio na França.
17
Tosquelles é considerado o precursor da psicoterapia institucional mesmo antes dela receber esta
denominação e foi em Saint-Alban onde tudo começou. Ao relatar esta experiência, ele conta que, em um
determinado momento, aquele hospital estava “povoado de loucos e estrangeiros”, visto que passou a
acolher pessoas que fugiam em massa do campo. Dentre os refugiados que acolheu estavam George
Canguilhem e sua família, Bonnafé e sua esposa, Paul Éluard, dentre outros. Através de Bonnafé os artistas
e escritores chegaram a Saint-Alban e isto foi determinante para formular aquela experiência. Nas
passagens de Tosquelles: “os artistas de St.-Alban eram também surrealistas e foi graças a Bonnafé que esta
inteligência foi colocada a serviço das práticas”. [...] “Foi então que um novo capítulo começou, o que
retrata o papel do surrealismo na minha formação intelectual e na vida de St.-Alban, naqueles anos. Porque
eu era catalão e o surrealismo tem seus rumos com Dalí e aragoneses com Buñuel. Os surrealistas fizeram
da loucura um movimento experimental, produto da sociedade, mostrando as ligações profundas com o
sexo, as pulsões, a libido. Colocaram o freudismo ao alcance da cidade, antes que transformasse numa série
de truques para se vender um produto. Foram os surrealistas que conduziram experimentos acerca de como
tornar alguém insano, muito antes que os analfabetos americanos descobrissem, através da seriedade da
psiquiatria, que a família se coloca de acordo para tornar um de seus membros louco” (TOSQUELLES apud
GALLIO & CONSTANTINO, 1993, p.105). Desde modo, a partir do que Tosquelles relata nesta entrevista,
é perceptível a proximidade e influências mútuas entre a corrente e o movimento.
107
Muitas coisas, por conseguinte, já haviam sido tentadas no mundo para “humanizar os
destinos dos pobres doentes mentais”; mas o esforço sistemático de revolução psiquiátrica
nos planos teóricos e práticos só veio a se estruturar de fato no hospital psiquiátrico de
Saint-Alban, em Lozère, pelas mãos das sucessivas equipes que se constituíram em torno
de François Tosquelles (GUATTARI, 2004, p.59).
E não poderia ser de outra forma para uma atitude que se funda sobre o equívoco e o
precário. Todo enunciado é recheado de palavras com duplo sentido, de esquecimentos, de
lapsos, ele é marcado de incertezas, de ambiguidade, de equívoco. O equívoco é a essência
da atitude freudiana que distingue o conteúdo manifesto do latente, ou para dizê-lo em
termos lacanianos, o enunciado da enunciação. É esta imperfeição do discurso que permite
a interpretação no enquadre da transferência. Quanto ao precário, ele designa o destino
reservado a toda instituição se ela quer continuar viva e visível, por oposição às instituições
acabadas e imutáveis, por isto, mesmo totalitárias (OURY apud AYMÈ, 1994, p.40).
108
Após esta incursão pela psicoterapia institucional vemos precipitar uma prática
certamente difícil, porque ao acolher esta movência, exige-se um trabalho em vários
níveis. No próprio conceito de Coletivo há uma aposta que coloca o paciente na posição
de sujeito, pois ele deve ser visto em suas particularidades, sempre conectado à sua
história pessoal. A instituição deve ser construída pelos indivíduos que fazem parte dela:
pacientes, familiares, funcionários e comunidade. Por conseguinte, o termo usuário deve
ser, para Oury (2009), extensivo àqueles que usam instituição, neste caso o equipamento
de saúde mental, não ficando o seu acesso permitido apenas ao paciente, mas também a
seus familiares e a seus amigos. Todos devem estar envolvidos e participarem - cada qual
a seu modo e dentro das suas possibilidades - da construção do projeto institucional.
Encarar tal empreitada é um exercício político para todos e uma luta necessária contra as
práticas homogeneizadoras, normatizantes que priorizam a hierarquização e a
burocratização, tão nocivas à saúde mental.
A improvisação tornou-se, para mim, uma necessidade ética. O que eu digo é da ordem do
que eu posso “apresentar” (darstellen) de um encaminhamento presente: é com isso que,
sem ajuda, sem apoio, encostado na parede, nós abordamos o outro, o alheio, na sua miséria
existencial (OURY, 2009, p.17).
109
Para desvendar tal forma de manifestação patológica é preciso estar “advertido”. Problema
banal semelhante à aprendizagem da escuta dos barulhos do coração: se não estamos
preparados, não adianta escutá-lo com o estetoscópio, pois não ouvimos senão ruídos
confusos. Basta que nos digam que é preciso ouvir “tum-tá” para que rapidamente ao redor
desse esquema, possamos distinguir os ruídos, os sopros, o ritmo, etc. podemos dizer que o
“tum-tá” é uma espécie de ferramenta conceitual, ou mesmo um “extrator” lógico. E o
mesmo ocorre para se descobrir a estrutura de uma “ambiência”, as maneiras da civilização
local que permitem acolher o insólito. (OURY, 1991, p.47)
O acolhimento, sendo coletivo na sua textura, não se torna eficaz senão pela valorização da
pura singularidade daquele que é acolhido. Esse processo pode-se fazer progressivamente,
por patamares, e às vezes não senão ao fim de muitos meses que ele se torna eficaz para tal
ou tal sujeito psicótico à deriva. Tudo isso exige uma certa sensibilidade ao próprio estilo
dos encontros: esperar passivamente, isto não é neutralidade, mas frequentemente, uma
espécie de sadismo camuflado.
Devemos nos envolver, ao contrário, numa “espera ativa”, numa “espera
instrumentalizada”. É esta a verdadeira neutralidade que permite liberar rapidamente o que
é pregnante e vai permitir ao outro se manifestar. E somente neste momento que poderemos
fazer um diagnóstico. Pois o diagnóstico é essencial para poder fazer alguma coisa. Em
qualquer campo científico, se desejamos ser eficazes, é preciso poder descrever
corretamente o objeto de pesquisa, o próprio diagnóstico é uma forma de encontro sobre
esse fundo de polifonia, ele deve ter em conta a história, o contexto local e a “subjacência”
(OURY, 1991, p. 48).
No plano institucional, Oury demarca que há aqueles que não destacam nada de
novo no Coletivo (“ça va de soi”) e outros que possuem uma atenção maior para
perceber o novo e sublinhá-lo como acontecimento (“ça ne va pas de soi”). Tais
posições, decerto, não se cristalizam, isto circula de algum modo. Mas tal acepção está
calcada no argumento que aqueles mais inclinados a se apoiarem na crença de uma
110
mesmice, que estão tomados pela inércia, funcionam no registro do imaginário e, por
outro lado, aqueles que são capazes de destacar um acontecimento da rotina institucional
funcionam, por assim dizer, no registro do simbólico. Tal impasse nos leva a crer na
importância do trabalho institucional, que deve ser empreitado cotidianamente.
Desta forma, uma das funções do Coletivo, isto é, a função diacrítica, leva em
conta a subjacência que não pode ser articulada, nos cuidados terapêuticos sem que o
semblante seja destacado. Se não se considerar isto, corre-se o risco de sermos
ultrapassados pelos acontecimentos e pelas empresas tecnocráticas (OURY, 2009).
O psicótico não é bem delimitado, ele tem dificuldades com os limites de seu corpo, de seu
espaço. Trata-se, então, de delimitar bem um espaço, mas no campo transferencial, por
“enxertos de transferência”; a fim de que num dado momento algo de um discurso possa
manifestar-se (OURY, 2009, p.116).
E mais:
Mesmo numa dimensão normativa, o corpo continua sendo um protótipo do espaço. Ou,
como lembra ainda Gisela Pankow: “o corpo é o modelo estrutural do espaço”. Na esfera
institucional, uma das tarefas essenciais é, portanto, trabalhar em relação ao espaço. Mas
não forçosamente enquanto arquiteto! (...) Quando se diz “o espaço”, trata-se de uma
topologia particular. Trata-se de tentar desimpedir – mas com que trabalho! – “espaços do
dizer” (por oposição ao dito). O espaço do dizer é o espaço que permite que haja
possibilidade do “dizer”. Pois, nos processos psicóticos, o que está alterado, as lesões, são
lesões da “fabricação do dizer”. Ou se quisermos lesões no registro de “lalangue”, no
sentido de Lacan. E “lalangue” é o lugar da fábrica do dizer. É isto que está em questão. Há
dificuldades frequentemente insuperáveis para que se possa “dizer” alguma coisa. Dizer,
isto não quer dizer falar; frequentemente, o dizer está no silêncio. Não é o “dito”. E, nesse
sentido, para que haja emergência, uma limitação, uma delimitação é necessária. Um
discurso da ordem do dizer é o que Lacan chamava de “discurso sem palavras”. É essencial
recuperar o nível da existência do psicótico, o qual não consegue justamente delimitar-se.
Se não, nos casos mais graves, eles não estão em “parte alguma”. Para lutar contra a parte
alguma, é preciso um espaço do dizer, um espaço de emergência. Emergência do quê? Do
que toma o lugar do objeto “a”. Não se pode falar em transferência sem falar em objeto “a”.
Metodologicamente falando, falar da transferência sem evocar a problemática do objeto
“a”, é falar de absolutamente nada, a não ser simplesmente de inter-relações. É neste
sentido – fabricação do lugar-tenente do objeto “a” – que se pode dizer que se trata tanto da
fabricação do espaço quanto da fabricação do corpo (OURY, 2009, p. 115).
18
Em sua dissertação Clínica psicanalítica: a debilidade mental em questão, Daniele Rosa Sanches discute
a categoria clínica – debilidade mental - do ponto de vista da psicanálise que, por sua vez, difere da
medicina. Sua pesquisa parte das contribuições de Mannoni, cuja premissa é a realização do diagnóstico por
meio da escuta clínica. Tal distinção ela apresenta assim: “na concepção psicanalítica a debilidade mental
não é uma patologia da inteligência, mas sim uma psicopatologia expressa por um sujeito que não se
apropria do que diz nem do que deseja. No campo psicanalítico, a debilidade mental refere-se a um sujeito
completamente submetido à demanda do outro” (SANCHES, 2008, p.3). Por isso a preferência pela
categoria debilidade mental em detrimento da deficiência mental (em que a questão fica imediatamente
associada ao déficit e não ao posicionamento do sujeito).
113
O que se visa é o surgimento do sujeito a partir daí. Apostamos em seu surgimento como
efeito do funcionamento da máquina da linguagem, operada pelo Outro institucional.
Apostamos na possibilidade de a criança que habita mal a linguagem – ou melhor, que a
habita de modo idiossincrático, não participante do pacto simbólico, não participante dos
códigos da cultura, eleitora de modos de gozo não socializados – aprender um pouco mais
sobre os modos instituídos de gozo, atravessando, mergulhando cotidianamente em uma
instituição que está estruturada como linguagem (KUPFER, 2007, p.93).
Ao considerar que a gestão não se desliga da clínica (ou pelo menos não deveria
se desligar), a análise institucional, vai dar suporte à psicoterapia institucional e, sem a
primeira, a segunda perde o seu poder de tratamento. Na tentativa de não se pautar a
direção do tratamento no âmbito da instituição em decisões protocolares, ressalta-se o
papel da análise institucional que deve ser entendida como um trabalho de todos e de cada
um (MOURA, 2003). Na proposição de Oury de destacar a função diacrítica, isto é,
produzir uma distinguibilidade máxima a fim de que haja agenciamentos, opera-se, por
conseguinte, o que Guattari nomeou como transversalidade.
Os grupos sujeitados não o são menos no nível dos senhores que dão a si mesmo, ou a
quem aceitam, do que no nível das suas massas; a hierarquia, a organização vertical ou
piramidal que os caracteriza tem por meta conjurar toda possível inscrição de não-sentido,
de morte ou de estilhaçamento, impedir o desenvolvimento de destruições criativas,
assegurar mecanismos de auto-conservação fundados na exclusão de outros grupos; seu
centralismo opera por estruturação, totalização, unificação, substituindo as condições de
uma verdadeira “enunciação” coletiva pela organização de enunciados estereotipados
apartados a um só tempo do real e da subjetividade (...). Os grupos sujeitos se definem, ao
contrário, por coeficientes de transversalidade que conjuram as totalidades e hierarquias;
são agentes de enunciação, suportes de desejo, elementos de criação institucional; por meio
de sua prática, não param de se confrontar no limite de seu próprio não-sentido, de sua
própria morte ou fragmentação (2004, p.13).
Uma analogia que parece pertinente, neste instante, é que o CAPS por ser um
serviço aberto, pautado na reforma psiquiátrica e aliançado a concepções libertárias, não
está livre de ser manicomial como muitos acreditam, justamente porque a reprodução, nas
práticas cotidianas, de uma lógica coercitiva, violenta, excludente e, portanto, fascista
ultrapassa os muros do manicômio e, assim, o antimanicomial deixa de ser uma garantia
e, em muitos casos, restringe-se pura e simplesmente a uma questão semântica. A própria
bandeira da inclusão transforma-se facilmente em uma regra, numa ordenação; em suma,
deve-se incluir todos a todo custo, e sabemos, que qualquer direcionamento feito “para
todos” peca à medida que ameaça a dimensão da singularidade.
Isto posto, é possível persistir neste pensamento que valoriza a instituição como
um recurso da clínica, mas ao mesmo tempo não nega que a mesma possa significar um
lugar de alienação, cronificação, pois, à medida que o sofrimento mental passa a ser
institucionalizado, atribui-se a ela a iatrogenia do tratamento? Como operar a tensão entre
o instituído e o instituinte no funcionamento institucional cujo traço é a normatização?
115
Acrescenta-se a estas interrogações o fato de que na maioria das vezes estes exercícios de
poder não estão escancarados, mas estão sob a alcunha de tratamento, da reabilitação e de
tantos outros imperativos da inclusão - que são, em sua maioria, advindos de profissionais
bem intencionados – desdobram-se em práticas de gerir a vida do outro, efetivando, por
conseguinte, a passividade daqueles que são tratados nos serviços de saúde de forma a
levar ao pé da letra a nomeação “paciente”. Este gerenciamento, pautado por múltiplas
intervenções terapêuticas – referenciadas, muitas vezes, em movimentos considerados
revolucionários e libertários - implica numa tutela do outro – sutil, por isso mesmo
sofisticada - quando os equipamentos administram quase por completo a vida daqueles
que o utilizam.
Estas propostas não são de início desprezíveis, ao contrário, a maioria delas guarda consigo
pontos de partida revolucionários, experiências de êxito e relevância para a vida de muitas
pessoas, e uma militância cuja intenção proclamada está preocupada com a questão de
garantir a todos uma existência política e opor-se aos funcionamentos preponderantes.
Entretanto, na medida em que pretendem responder universalmente a esta questão, inscrita
na esfera do direito, tornam-se autoritárias: operam por ideologias e palavras de ordem;
impõem o funcionamento democrático; endurecem com os desvios como se para garantir a
radicalidade de sua proposição só restasse englobar ou destituir qualquer outra proposição.
Esta relação entre democracia e totalitarismo surpreende em sua aparente contradição, mas
tem sido explorada de modo a verificar sua contigüidade (INFORSATO, 2010, p.23-24).
No capítulo, “A casa dos loucos”, Foucault mostra esta relação entre o poder e o
saber no ambiente hospitalar, ambiente este que encarcera o louco apoiado pelo discurso
psiquiátrico científico.
Assim se estabelece a função muito curiosa do hospital psiquiátrico do século XIX: lugar
de diagnóstico e de classificação, retângulo botânico onde as espécies de doenças são
divididas em compartimentos cuja disposição lembra uma vasta horta. Mas também espaço
fechado para o confronto, lugar de uma disputa, campo institucional onde se trata de vitória
e de submissão. O grande médico do asilo – seja ele Leuret, Charcot ou Kraepelin – é ao
mesmo tempo aquele que pode dizer a verdade da doença pelo saber que dela tem, e aquele
que pode produzir a doença em sua verdade e submetê-la, na realidade, pelo poder que sua
vontade exerce sobre o próprio doente. Todas as técnicas ou procedimentos efetuados no
asilo do século XIX – isolamento, interrogatório particular ou público, tratamentos-
punições, como a ducha, pregações morais, encorajamentos ou repreensões, disciplina
rigorosa, trabalho obrigatório, recompensa, relações preferenciais entre o médico e alguns
de seus doentes, relações de vassalagem, de posse, de domesticidade e às vezes de servidão
entre doente e médico – tudo isso tinha por função fazer do personagem do médico o
“mestre da loucura”; aquele que a faz manifestar em sua verdade quando ela se esconde,
quando permanece soterrada e silenciosa, e aquele que a domina, a acalma e a absorve
depois de a ter sabiamente desencadeado (1979/2012, p.122).
Com efeito, estes mecanismos, como mostra este pensador, são exercidos
capilarmente sob a forma de governamentalização da vida e da liberdade regulada. Isto
vale para as instituições de agora, mesmo em tempos em que os hospitais já foram
desqualificados como espaço de tratamento. Daí, a normatização encontra-se nos
discursos e nas práticas, mesmo que às vezes não se mostre tão evidente e passível de ser,
imediatamente, identificada.
Por isso, seria razoável pensar o Centro de Atenção Psicossocial tal como defende
Jairo Goldberg (1996b), um de seus fundadores, isto é, ao invés de “modelo CAPS” que
pressupõe algo acabado e que pode ser replicado, opta-se por “projeto CAPS”; em virtude
de seu inacabamento, esta construção é interminável e faz com que o tratamento se
reinvente de forma incessante. No que concerne ao tratamento na instituição, parece
117
A psicanálise, afirma ele, parte de uma espécie de narcisismo absoluto (Das Ding – A
Coisa, o Isso) para chegar a um ideal de adaptação social a que dá o nome de cura; mas este
empreendimento deixa sempre na sombra uma constelação social singular, que é necessário
pelo contrário explorar em vez de sacrificá-la à invenção de um inconsciente simbólico
abstrato (2004, p.8).
Neste horizonte, vale retomar o que Guattari propôs ao pensar a transferência fora
do campo estrito da experiência analítica, referindo à transferência no âmbito do grupo,
melhor dizendo, à transferência institucional. O problema da transferência... como alguns
sinalizam. Em função disto, ele propõe uma substituição: introduzir no lugar da noção de
transferência institucional - demasiado ambígua para ele – um novo conceito:
transversalidade no grupo (GUATTARI, 2004). Ele argumenta:
Transversalidade em oposição a:
- uma verticalidade que se encontra, por exemplo, nas descrições feitas pelo organograma
de uma estrutura piramidal (chefes, subchefes etc.);
- uma horizontalidade como aquela que se pode realizar no pátio do hospital, na ala dos
agitados, ou melhor, a dos cretinos, isto é, certo estado de fato em que as coisas e as
pessoas se arranjam como podem à situação na qual se encontram (GUATTARI, 2004,
p.110).
A transversalidade é uma dimensão que pretende superar os dois impasses, quais sejam o de
uma verticalidade pura e o de uma simples horizontalidade; a transversalidade tende a se
realizar quando ocorre uma comunicação máxima entre os diferentes níveis e, sobretudo,
nos diferentes sentidos (2004, p.111).
No tocante à trajetória profissional, Oury (1991) diz que se trata de levar em conta
o itinerário de cada um, seus engajamentos pessoais. A competência, diferente da
performance, está em relação com o que marca a vida de cada um: as preferências, os
gostos e as paixões. Aqui vale repetir que nesta tese de que os desvios, as linhas de
errância serviriam para pensar o percurso do paciente, também subjaz uma outra: que tais
itinerários não são em linha reta; e que a formação, ao invés de ser uma forma de ação,
deveria contemplar a deformação.
Ora, nesta toada, o clínico deveria acolher/possibilitar tais desvios, algo da ordem
do clinamen, fazendo uma associação à filosofia de Lucrécio e tomando-a como imagem.
Nesta mesma esteira, Eduardo Passos e Regina Benevides formulam a noção de clínica
emprestando-se da noção de clinamen:
O sentido da clínica, para nós, não se reduz a esse movimento do inclinar-se sobre o leito
do doente, como se poderia supor a partir do sentido etimológico da palavra derivada do
grego klinikos (“que concerne ao leito”, ao caírem no vazio em virtude de seu peso”; de
Klíne, “leito, repouso”; klíno “inclinar, dobrar”). Mais do que essa atitude de acolhimento
de quem demanda tratamento, entendemos o ato clínico como a produção de um desvio
(clinamen). (...) Esse conceito da filosofia grega designa o desvio que permite aos átomos,
ao caírem no vazio em virtude de seu peso e de sua velocidade, se chocarem, articulando-se
na composição das coisas. (...) É na afirmação desse desvio, do clinamen, portanto, que a
clínica se faz (2001, p. 90-91).
É nessa dimensão que aquela fórmula “aprender a aprender” ganha todo o seu sentido: o
psicótico poderá então se exprimir e nos ensinar a sintaxe sutil de seus problemas. Mas isso
só é possível quando ele próprio é apreendido num contexto de convivência e respeito
(OURY, 1991, p. 6).
CAPS19 - que está atravessado por estes movimentos, mas não só por eles - uma vez que
se pretendeu aqui acentuar a ambiência institucional como um dispositivo.
* * *
As cinco cenas que abrem este capítulo não funcionarão como ilustrações da
prática institucional, nem como vinhetas clínicas cuja finalidade estaria na adequação das
cenas aos conceitos, sequer serão interpretadas... Constituídas em enquadres diferentes,
elas - assim como ocorre nas artes dos dias de hoje em que o estatuto de obra se dilui para
assistir-se à emergência do evento - abdicam do estatuto de cena para ganhar propriedade
de acontecimento.
19
A construção deste CAPS esteve bastante referenciada a estes princípios em seus primórdios, ainda nos
tempos em que os ideais da reforma psiquiátrica se encontravam em efervescência e em puro exercício
político, entretanto, com o panorama da saúde pública atual, estas balizas se veem ameaçadas pela
privatização. Em meio a uma situação de sucateamento dos recursos na saúde pública, marcada por uma
inoperância, as Organizações Sociais entram em cena e passam a gerenciar os estabelecimentos. Muitas
vezes, as práticas de saúde correm o risco de ficarem marcadas pela lógica da empresa e, portanto, do
capital. Grosso modo, a consequência mais imediata desta nova condição da saúde mental na cidade de São
Paulo é a verticalização do poder em que a construção coletiva do projeto institucional se vê fragilizada e
subordinada à gestão centralizada nas mãos de alguns; os servidores públicos vão sendo substituídos
paulatinamente, repercutindo num enfraquecimento da militância pela saúde pública gerenciada por todos e,
consequentemente, no enfraquecimento do SUS.
121
Uma vez atravessada por esta experiência institucional, outros ambientes puderam
se inscrever - nem todos pretenderam se efetivar como espaços de tratamento - e, mesmo
assim, por comportarem uma composição híbrida, permitiram a coexistência de uma certa
clínica com uma certa arte, como acompanharemos nas páginas que seguem e, deste
modo, talvez o que, por ora, desenha-se aqui ainda não suporte uma nomeação precisa.
ambiente em outro]
20
Promovido pela Divisão de Educação e Ação Cultural do Museu de Arte Contemporânea da Universidade
de São Paulo (MAC-USP) e coordenado junto com a artista e arte-educadora Christiana Morais, esse
projeto ocorreu nos anos de 2001 e 2002 em parceria com o Laboratório de Ensino e Pesquisa Arte e Corpo
em Terapia Ocupacional do Curso de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo, coordenado pelas docentes Profas. Dras. Eliane Dias de Castro e Elizabeth de Araujo Lima.
Além da parceria com este projeto, outros programas alocados no MAC foram parceiros do laboratório,
constituindo-se como campo de estágio para alunos da graduação em Terapia Ocupacional. Uma das
características do Laboratório é efetivar estas parcerias com equipamentos do campo da cultura,
configurando a sua tripla função de extensão, de ensino e de pesquisa. Parte da discussão proposta por este
estudo esteve ancorada pelas discussões proporcionadas, inicialmente, por este laboratório.
123
elegia como ponto de partida o projeto de cada participante. Em seu nome “Orientação
para projetos artísticos”, explicitava-se sua proposta, isto é, fornecer orientação e respaldo
àqueles que se consideravam artistas (mesmo que iniciantes), na condução de seus
trabalhos. Logo no momento da inscrição, o curso solicitava que o interessado anexasse
seu projeto de pesquisa e/ou trabalho no campo das artes, tornando o próprio ato de
inscrever-se uma autorização de pertencimento ao universo artístico. Tal iniciativa
destoava da noção convencional de um curso, pelo seu caráter não doutrinário, uma vez
que a vivência de ateliê fazia parte da proposta, mas não exclusivamente, pois o acesso
aos procedimentos artísticos contemporâneos não se restringia a procedimentos técnicos
relacionados exclusivamente ao fazer, mas a um campo mais abrangente que este fazer
estivesse incluído. Neste caso, atividades externas ao ateliê tangenciavam todo o curso
para proporcionar aos integrantes adentrar os ambientes em que o trabalho com as artes se
perfaz, considerando produções discursivas de artistas de reconhecimento público acerca
de seus trabalhos e suas trajetórias, ambientes de ateliê individual e coletivo de artistas da
cidade de São Paulo, galerias e acervos dos principais museus, que configuravam o
programa que o curso oferecia. A construção deste trabalho experimental dentro da
Divisão de Educação do museu foi tomado como um exercício para implementar uma
proposta dissonante dos demais cursos oferecidos, mas que guardasse relação com este
núcleo e por ele fosse respaldado. Esta experiência permite pensar um outro modo de
operar no campo da educação e do trabalho em artes, admitindo as transversalidades que
isso exige na contemporaneidade.
Destes atravessamentos, decorreu uma das visitas feitas no bojo deste curso, que
não aconteceu num espaço institucionalizado da arte. Não era um centro cultural, nem
museu, nem galeria, muito se assemelhava a um espaço de ateliê e também a um espaço
expositivo, no entanto os ultrapassava, difícil definir. Tratava-se de uma casa, aliás, de
várias casas e o seu conjunto dizia respeito a uma única residência. Não era uma
residência qualquer, pelo contrário, tratava-se da moradia do artista Arcangelo Ianelli
(1922-2009) e de sua esposa; as casas, que somavam doze, eram todas vizinhas. Uma vez
adquirida, o proprietário mantivera em cada uma o seu estilo, a construção original e as
ligações entre os terrenos que comportavam os imóveis foram necessárias para
possibilitar a circulação. Além da sua própria residência, cada casa tinha uma finalidade:
numa delas se concentrou o ateliê de pintura onde ficavam dispostas enormes telas, tintas,
124
As diferenças entre uma situação e outra devem ser respeitadas, mas a questão da
obrigatoriedade pode se aplicar a ambos. Para Bispo, ela estava relacionada a uma
ordenação divina para evitar a sua aniquilação que, em suma, consistia em apresentar a
Deus “tudo o que existe e toda a produção de saber existente na face da terra” (QUINET,
2009, p. 234), por isso a necessidade daquele afã primoroso e infindável feito por suas
próprias mãos. Decerto, para Ianelli a obrigatoriedade não se relaciona a nenhum
elemento exterior, ela é imanente, resultado de uma mobilização inevitável, numa
conjunção imprevista. De todo modo, nas duas situações vemos em operação as ideias
125
Mais tarde, ainda inspirado por esta experiência desenvolvida junto ao museu, um
espaço de ateliê, denominado Ateliê Aberto, foi instalado no ambiente do Centro de
Atenção Psicossocial Professor Luís da Rocha Cerqueira (CAPS Itapeva), fazendo parte
da grade de atividades desta instituição, cuja característica primordial era a participação
optativa dos usuários. De início, as coordenadas do Ateliê obedeciam à criação de um
espaço para receber aqueles que tinham interesse por esse tipo de proposta, com o intuito
de ser um ambiente não exclusivo para pacientes, de modo a constituir um grupo
heterogêneo, aberto à comunidade. A necessidade de interromper os encaminhamentos
genéricos, que obrigam alguns usuários a frequentar atividades exclusivamente para
preencher sua grade horária na instituição fez com que a ideia de um espaço aberto se
sustentasse, com o risco deste Ateliê transitar por configurações que iriam desde um
espaço de quebra do ócio até um espaço hegemônico – que pudesse beneficiar a todos. No
dia-a-dia da experiência, o Ateliê passou a se constituir paulatinamente como um lugar de
muitos trânsitos, efetuados a partir das indicações realizadas pelos próprios funcionários
do CAPS, com critérios variáveis, alguns, inclusive, questionáveis. Assim como qualquer
outro procedimento, o Ateliê viu-se afetado pela dinâmica institucional. Variados também
foram os motivos mencionados por cada um que chegava: porque gostava de desenhar,
porque acabava de ingressar na instituição, porque estava em crise, porque estava curioso,
porque queria estar onde os demais estavam, porque alguém falou para ele ir e ele por sua
vez nem sabia o que estava fazendo ali, etc. Neste tipo de proposta em que a participação
dos usuários é permitida e não obrigatória, a configuração grupal acaba por comportar
demasiada flutuação. A depender do próprio cotidiano institucional, havia dias que a sala
ficava lotada e, outros, que contava com dois ou três participantes; além disso, com este
tipo de enquadre, a chegada de um novo integrante, totalmente alheio ao que se passava
ali, estava sempre posta. À medida que a proposta foi amadurecendo, aqueles que tinham
uma conexão com este espaço se tornaram seus frequentadores assíduos.
clínicos muito distintos dos anteriores, sucessivas mudanças no projeto institucional, que
não cabe esmiuçar-se aqui. Em favor de experimentos que saíssem do foco do discurso
médico, do recorte pela doença, muito presente naquele momento institucional - tanto por
parte dos usuários e seus familiares, sobretudo pelos profissionais -, impregnado nestes
lugares de tratamento, tornou-se essencial constituir um trabalho tangenciando campos e
habitando fronteiras, de modo a destacar a experimentação e a efetuação de
procedimentos artísticos, sem desconsiderar a sua dimensão clínica.
Como é conhecido, no CAPS, há uma sobreposição de papéis e funções, os
profissionais de um modo geral estão mergulhados nas solicitações da clínica que exige
que se possa fazê-la de vários modos. Por exemplo, um médico pode se ocupar de
consultas médicas onde acompanhará alguns pacientes e coordenar um grupo de família
ou uma oficina de escrita, onde a sua função será outra. No caso da experiência de uma
oficina de escrita, viabilizada por meio da parceria de um psiquiatra como um jornalista e
escritor, um jornal foi confeccionado para circular a produção dos que frequentavam
aquele espaço e que se desdobrou em um Jornal chamado Tarja Preta, nome sugerido por
um dos pacientes. Nem é preciso dizer que ali se instaura um espaço para discutir
assuntos diversos relacionados ao dia-a-dia da instituição e outros; a medicação pode ser
um deles, ao serem trabalhados sem ser uma consulta médica e em um espaço mais
coletivo. Por exemplo, ao escolherem fazer uma matéria sobre a indústria farmacológica,
pôde surgir ao longo desse debate a percepção, dos participantes da oficina com relação
aos profissionais do CAPS, que os mesmos, ao se depararem com um paciente em crise,
optam primeiramente por medicar. A acolher esta situação, inicialmente delicada, tem-se a
oportunidade de que o assunto possa ser tratado por todos e de outros modos. Além disso,
podemos pensar que a medicação como primeira resposta à crise, em detrimento de outras
formas de abordar o sujeito em um CAPS, pode funcionar como um analisador
institucional. Se tomarmos a psicoterapia institucional francesa como já foi abordada,
acompanharemos como a psicanálise contribui e dialoga com estas perspectivas que
buscam engendrar uma atitude que leve em consideração a existência de um sujeito o qual
possui um saber sobre si.
No que concerne ao Ateliê, vale dizer, entretanto, que esse tipo de proposta
dentro de um CAPS não é nova, aliás, as oficinas expressivas ou artísticas são
pressupostos de trabalho deste tipo de equipamento desde a sua origem, bem como a
127
Para tanto, Osório César organizou, arquivou e catalogou estas produções que
recolheu do manicômio, comparando-as com a dos primitivos, a das crianças e a de
vanguarda e, como resultado deste trabalho, publicou, em 1929, A expressão artística nos
alienados; este livro, como outras publicações sobre o assunto, foi considerado um marco
nos estudos que aproximavam arte e loucura no contexto brasileiro. É notável que essa
conexão aconteceu numa via de mão dupla, pois também vários artistas modernos “vão se
esforçar para contaminar-se com loucos, crianças e povos exóticos” (LIMA, 2009, p.75).
Aliás, a tese de Elizabeth Araújo Lima aponta justamente para essa questão, isto é, se a
psiquiatria foi atravessada pelas artes no início do século, também “a arte brasileira
moderna e contemporânea foi marcada, em alguma medida, pela força de obras
produzidas fora do espaço institucional da arte, em especial, nos manicômios” (LIMA,
2009, p. 210).
128
Por isso, diz o autor, se deparássemos com um poema de um esquizofrênico com vocábulos
deslocados ou sem sentido e os estudássemos à luz da psicanálise, poderíamos esclarecer
em grande parte acontecimentos remotos de sua vida; o mesmo se daria com os desenhos
(2009, p.118).
Após essas considerações de caráter geral, César desenvolveu seu método de trabalho, que
consistia em apresentar alguns artistas do Juquery, transcrevendo a sua história psiquiátrica
– uma anamnese médica -, e analisar esteticamente suas obras. O método empregado por
Osório César tinha linhas que o prendiam a um olhar estritamente psiquiátrico e outras que
escapavam dessa grade de compreensão, revelando o lugar duplo que ocupava, de
psiquiatra e crítico de arte, bem como a dificuldade de produzir uma leitura que
comportasse e articulasse esses dois olhares (LIMA, 2009, p.119).
Em 1946 foi criada a Seção de Artes Plásticas, mais tarde, transformada na Escola
Livre de Artes Plásticas do Juquery, cuja pretensão era oferecer recursos materiais e
técnicos para os internos do hospital que tinham uma vocação artística. Posteriormente,
foram convidados, por Osório César, alguns artistas para trabalharem junto aos pacientes.
Também como Osório César, a psiquiatra, no início de seu trabalho, não teve
apoio institucional para criar o ambiente de ateliê e os recursos que assegurassem uma
produção – especialmente, desenho, pintura e modelagem – com recursos materiais mais
adequados. Mas, diferente dele, o interesse dela “pela pintura era decorrente de sua
investigação clínica e não de uma aproximação primeira com o campo da arte” (LIMA,
2009, p.144).
Ademais, diante de toda a mutação no terreno das artes há, no mínimo, uma
questão a ser considerada: se os artistas contemporâneos têm, cada vez mais, recusado
131
este rótulo, reinventando categorias que expressem melhor suas manifestações, que
muitas vezes não redundam em um objeto - como é o caso dos artistas conceituais - na
instituição, por outro lado, há uma fetichização deste ao associar à priori a produção dos
pacientes como obra, que acaba por desconsiderar até mesmo os referenciais do campo
das artes instituídas. Com isso, muitas possibilidades ficam inviabilizadas, pois, antes de
qualquer destinação aos trabalhos que venham a ser produzidos, do ponto de vista
estético-clínico, seria interessante pensar que os desdobramentos e encaminhamentos da
produção podem seguir por caminhos singulares, que não corroborem com os
funcionamentos hegemônicos nas relações socioeconômicas. A tônica singular do Ateliê
agenciava-se com proposições artísticas que propiciavam a seus frequentadores a
construção de uma poética própria. Desse modo, engenhou-se no Ateliê Aberto um espaço
múltiplo por excelência, de modo que o acento estava na instalação de uma atmosfera de
ateliê (muito mais do que produzir obras de artes) em um ambiente clínico onde a questão
da aprendizagem por vezes se coloca. Como o compromisso estava pautado em fazer uma
marca do trabalho em artes, do fazer utilizando suportes e materiais os mais variados
possíveis, a proximidade de uma jovem artista e arte-educadora junto ao Ateliê,
incrementava a sua função no âmbito institucional e na relação com os participantes. O
diálogo com as práticas desenvolvidas pelos ambientes artísticos e programas educativos
e de ações culturais presentes em museus e seus pressupostos enunciou o enquadre e o
desenho dessa proposta, que congregava elementos distintos da clínica e, muitas vezes, a
ela articulados. Isto não significava uma aplicação cega de métodos de ensinos de arte,
mas supunha um lugar diferente diante de tantas clínicas existentes na instituição; isto é,
psicoterapias, consultas médicas, visitas domiciliares etc.
Toda a digressão que um espaço como o Ateliê Aberto podia fazer em relação aos
funcionamentos predominantes, pode entrever-se no percurso de uma das participantes.
Era uma mulher que frequentava o Ateliê e deixava todos pasmos com a sua produção,
com um gestual muito rápido e um traço preciso, sem nunca ter se submetido a nenhum
curso, desenhava croquis, muitos. Os seus desenhos, extremamente delicados, a todos
impressionavam; sua temática eram sempre mulheres, mais precisamente manequins - e o
que variava era sua posição e as vestimentas, sempre muito femininas, por vezes,
sensuais. O conjunto de seus trabalhos se contrapunha radicalmente a sua aparência: tanto
fazia se fosse inverno ou verão, vinha com muitas roupas pesadas (casacos com capuz,
132
A psicanálise, desse modo, ensina que a intervenção clínica não deve ser algo
naturalizado que siga uma regra e, portanto, desprovida de significação. Isto vale para o
Ateliê e outros espaços híbridos da clínica. Resta dizer, ainda, que no caso do trabalho em
um equipamento de saúde mental é necessário instalar e sustentar o setting em um
contexto institucional que, na maior parte das vezes, difere do da clínica tradicional. Há
Além de sua própria história de vida, bem como o seu percurso de tratamento, que
aqui não vem ao caso expor, este jovem chamava a atenção porque fazia inúmeros
emaranhados que aconteciam com diferentes materiais, ora a linha era construída com
grafite, ora com tinta, ora com fios; no caso deste último, ele não recusava nenhum: usava
fios de plásticos, de arame, linhas de costura, de bordado, lãs, barbantes... Era comum vê-
lo na instituição com roupas feitas em sua própria casa com uma espécie de
customização: agregava objetos em seus sapatos, em suas camisetas, jaquetas e calças,
costurando-os. Sendo ele de corpo esguio, estas constantes intervenções em suas
vestimentas não permitiam que passasse despercebido. Aliás, este era um dos conflitos
frequentes em seu ambiente familiar, pois seu pai sumia com todas as suas produções
(jaquetas, tênis, camisetas, etc.) sob a justificativa que aquilo que fazia era “coisa de
palhaço”, o que fez com que o paciente interrompesse durante muito tempo a produção
destes trajes, considerados excêntricos, estranhos aos olhos de muitos. Ao interromper
esta sua atitude, não produziu nada mais, passando muitos anos sem sair de casa e, muitas
vezes, sem sair do quarto.
assegurar que foi ele quem fez, todavia, o desenho e assinatura também se emaranhavam,
demonstrando que não se tratava apenas de uma questão de identificação; essa fusão da
palavra e imagem, dele com sua produção, repetia em seus trabalhos, acentuando esse
modo formal de apresentação de suas criações.
já que não há igual quando há invenções; segundo suas palavras: “as invenções são
sempre invenções, antes de inventadas, nada existe”. À medida que pôde explorar muitos
materiais diferentes, declara que o seu maior interesse eram as linhas, os fios, as cordas,
pois, materiais desse tipo eram mais adequados para ele criar verdadeiros “Bem Bolados”,
no entanto, qualquer coisa que construía cabia nessa denominação, uma espécie de título
único para tudo, funcionando, por assim dizer, como uma espécie de categoria. Este foi o
seu critério de definição que coadunaria as suas produções: “com os Bem Bolados, dou
existência ao que não existia antes, mas quando prontos, você olha, olha uma vez, olha de
novo e não sabe identificar o que é, então, é possível concluir que eles existem, mas não
representam nada”. Bastante coerente é a sua atribuição dada aos seus inventos, já que
uma das designações para o verbo bolar é: “criar na mente, idealizar, inventar”
(HOUAISS, 2009).
A associação mais imediata que advém no contato com suas produções é com a
dos artistas que utilizam tais recursos e suportes, mais precisamente, Arthur Bispo do
Rosário e Leonilson. No caso deste último, o bordado foi assumido como um
procedimento fundamental no seu percurso e, aliás, em entrevista concedida a Lisette
Lagnado, disse que ficou fascinado pela exposição do Bispo, mas, também, reconheceu
que havia uma disposição anterior para o uso dos fios e agulhas, pois, sendo filho de um
comerciante de tecidos, passou a infância entre retalhos amontoados no quarto de costura
onde a sua mãe bordava diariamente (LAGNADO, 1998, p.32).
[...] uma usina de tradições e alegorias. As festas da Folia de Reis começavam com semanas
de antecedência, nos dedos ligeiros das costureiras a cerzir as roupas dos folguedos. Cada
traje impunha seu respeito, encerrava tradições africanas, indígenas, nordestinas.
Os bordados eram a mais bem-acabada tradução da cultura matuta. Agulhas abriam trilhas
em pontos de cruz e redendês, a formar desenhos, salpicar brilhos. Fantasias prontas, todo
dia de Reis, 6 de janeiro, grupos folclóricos as vestiam e dançavam pelas ruas de Japaratuba
em atenção ao nascimento de Jesus e aos reis magos. O clímax dos folguedos era a
coroação do rei e da rainha, obrigatoriamente negros, metidos em vestes de cravejadas de
bordados e franjas. Toda uma estética acondicionada na memória de Bispo, latente em suas
obras, variações de um mesmo tema.
Detalhes de cada roupa, cada cor incrustaram-se nos bordados de Bispo, fossem do reisado,
danças de origem ibérica levada a Sergipe no período colonial, ou do catumbi, um bailado
brejeiro em homenagem a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, conduzidos ao som
de cuíca, pandeiro, reco-reco, caixa e ganzá.
De todos esses, a chegança era um espetáculo à parte. Auto popular ligado ao ciclo natalino,
a dança chegou a ser proibida em Portugal por Dom João V no século XVIII, sob pena de
açoite no tronco. Seu enredo era histórico, reunindo temas vinculados à rotina no mar e às
lutas entre cristãos e mouros. Integrantes vestiam réplicas de trajes da Marinha e
encarnavam almirantes, tenentes, grumetes. Embarcavam na farsa folclórica e abusavam de
encenações náuticas. O rei mouro usava um manto vermelho cheio de bordados, coroa e
espada.
Toda essa ficção do folclore coroava reis e rainhas também na taieira, folguedo que
alternava cores religiosas e profanas ao rufar dos tambores. Na rédea do cortejo, iam duas
rainhas coroadas, cetro nas mãos. Lado a lado, o rei, o ministro e dois capacetes, os
guardiães reais. Um rito de louvação a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, encenado
em peregrinações pelas ruas da cidade até a igreja. O rei esbanjava exuberância, vestido de
manto, capa, luvas, espada e coroa dourada (HIDALGO, 2011, p.33-34).
138
Egresso de uma cidade cravada por tradições seculares, Bispo fez uso desta
diversidade ao realizar aquilo que era a sua intenção maior, isto é, por meio de bordados,
assemblages e objetos, inventariar o universo. Resignado a uma missão mística, ao longo
de anos de estadia no manicômio, recusava a nomeação de artista, entretanto, ao olhar do
crítico Frederico Morais, curador e organizador da primeira grande exposição individual
após a sua morte, intitulada Registros de minha passagem pela terra, Bispo já se inseria
na encorpada genealogia de vanguardas e neovanguardas (HIDALGO, 2011). Certo de
sua relevância para a arte contemporânea e, recorrendo a uma sequência de analogias, é
assim que Frederico Morais fala sobre ele:
Trabalhos assim levam a considerar que não se trata de pensar a arte como um
regime separado da vida. Ao situar a produção artística contemporânea, levando em
consideração a dimensão da vida que dela irrompe, não estamos falando apenas de
trabalhos emblemáticos como o “Manto de Apresentação”, “Os Estandartes”, a “Cama-
nave”, as assemblages que reunia e agrupava elementos da rotina do hospício, dando-lhes
outros sentidos, dentre outras produções que se tornaram tão conhecidas de Bispo ou
mesmo do conjunto de pinturas, bordados, objetos e instalações de Leonilson. Também
estamos fazendo referência ao rapaz que cotidianamente alinhava os seus “Bem bolados”,
no seu corpo e com o seu corpo, e a atitude do pintor e escultor Arcangelo Ianelli que,
21
Como se sabe, o xadrez foi uma paixão de Marcel Duchamp, atividade que o acompanhou durante toda a
sua vida. Durante a abertura da primeira grande retrospectiva de seus trabalhos, em 1963, no Pasadena Art
Museum (Califórnia), Duchamp aparece jogando xadrez com uma anônima nua; ele surge à direita,
enquanto a mulher está sentada à esquerda, como ocorre com as figuras em “Rapaz e rapariga na
primavera” (óleo sobre tela de 1911); participando desta cena, ao fundo, a obra “O Grande vidro” (MINK,
2000).
139
para mostrar suas pinturas e esculturas, abre a sua residência. Com relação a este, apreciar
o seu trabalho e seu percurso numa mostra evidentemente é interessante, mas não se
compara a adentrar em seu ambiente, ou melhor, em seus ambientes de trabalho,
impregnados de histórias, sendo o próprio artista, o mediador de suas obras. Ao mostrar
uma série de pinturas feita com têmpera, comenta sobre a época que, em decorrência de
uma intoxicação com os solventes - teve que dar um descanso da tinta a óleo até se
recuperar e, assim, para não parar de pintar, recorreu à tinta em seus primórdios. Com
visitantes em sua maioria desconhecidos, ele engenhava ali, em seu ambiente mais íntimo
e presencialmente, um discurso sobre as motivações que o fizeram pintor e escultor e,
concomitantemente, tornava acessível a apreciação do conjunto de seus trabalhos. A
própria residência é a sua grande obra, sua invenção, seu “bem bolado”, embora o acento,
durante a visita e em seu discurso, não estivesse nela.
Com o que brevemente se explicitou aqui, não sabemos demarcar onde começa a
vida muito menos onde irrompe a arte, fato este demonstrado ao transitar pelas
instalações artesanais de Ianelli em sua casa-museu ou percorrer as imagens de Bispo que
recriou um mundo driblando o sistema asilar ou ainda o “museu-vivo” instalado por Nise
da Silveira.
A linha que o centro de gravidade tem para descrever era simples, conforme ele acreditava, e, na maioria
das vezes, reta. Nos casos em que era curva, a lei de sua curvatura parecia ser no mínimo de
primeiro e no máximo de segundo grau; e mesmo neste caso apenas elíptica, forma do movimento
que é certamente natural para as extremidades do corpo humano (graças às articulações), não
custando ao operador, por isso, nenhuma grande habilidade para esboçá-la.
Todavia, essa linha era, por outro lado, algo muito misterioso. Pois era nada menos do que o caminho da
alma do bailarino. E ele duvida que ela possa ser encontrada, a não ser que o operador se transfira
para o centro de gravidade da marionete, isto é, em outras palavras, que ele dance.
Giorgio Agamben lembra que a literatura e o pensamento também fazem experimentos, tal
como a ciência. Mas enquanto a ciência visa a provar a verdade ou a falsidade de uma
hipótese, a literatura e o pensamento têm outro objetivo. São experimentos sem verdade.
Eis alguns exemplos. Avicenas propõe sua experiência do homem voador e desmembra em
imaginação o corpo de um homem, pedaço por pedaço, para provar que, mesmo quebrado e
suspenso no ar, ele pode ainda dizer “eu sou”. Rimbaud diz: “Eu sou um outro”. Kleist
evoca o corpo perfeito da marionete como paradigma do absoluto. Heidegger substitui ao
eu psicossomático um ser vazio e inessencial. Segundo Agamben, é preciso deixar-se levar
por tais experimentos. Por meio deles, arriscamos menos nossas convicções do que nossos
modos de existência. No domínio de nossa história subjetiva, tais experimentos equivalem,
lembra Agamben, ao que foi para o primata a liberação das mãos na sua postura ereta, ou
para o réptil a transformação dos membros anteriores, que lhe permitiram transformar-se
em pássaros. É sempre do corpo que se trata, mesmo e principalmente quando se parte do
corpo de escrita (PELBART, 2004, p. 41).
141
Resta ainda dizer que os atos que seguem possuem discreta independência, não
obrigando a uma sequencialidade tal qual o curso das páginas, o que permite ao leitor
subverter a ordem e criar para si o arranjo que desejar.
1º ATO
O cavalo anda nas pontas dos cascos. Quatro unhas o carregam. Nenhum animal se parece tanto com uma
primeira bailarina, uma estrela do corpo de balé, quanto um puro sangue em perfeito equilíbrio, que
a mão de quem o monta parece manter suspenso, e que avança em passos curtos em pleno sol,
Degas pintou-o com um verso; dizia ele: Nervosamente nu em seu vestido de seda em um soneto
muito bem feito no qual divertiu-se e procurou concentrar todos os aspectos e funções do cavalo de
corrida: treinamento, velocidade, apostas e fraudes, beleza, elegância suprema.
Paul Valéry
Motivada por essa angústia, inventa três máquinas e as batiza com os nomes: a
“Microssônica”, a “Antiprogeneica antiprogeneico” e “Salva vidas infindus infinitus”.
Cada uma delas atua sobre o corpo humano provocando incríveis modificações: a
primeira rejuvenesce, a segunda recupera deformidades, deficiências, doenças de
quaisquer tipos, ou seja, congênitas ou adquiridas e, a última, por ser mais potente e
eficiente, devolve a vida ao cadáver. A “Salva vidas infindus infinitus” não só é capaz de
ressuscitar mortos, mas, sobretudo, possibilita, “vidas mais felizes com luzes e cheiros
das melhores comidas”... Apesar da mulher elegante ter frequentado vários equipamentos
de saúde mental, ao longo de muitos anos de tratamento, foi em um programa de um
museu que pôde compartilhar suas ideias, desenvolver seus projetos.
[...] nesse caso a réplica é considerada mais perfeita que o ator vivo: seu poder de interrogar
as qualidades humanas decorre justamente do fato de estar privada de toda a consciência e
obedecer apenas às leis da matéria (MORAES, 2002, p.42).
O louco, como o avesso dos discursos, nos interroga sobre a forma como nos relacionamos
com os outros. Ele tem uma função interpretante para nós. Lacan o situa também como
mestre e senhor na cidade do discurso, no campo social da pólis, na qual fez sua entrada
como cavalo de Tróia – imagem que nos faz sentir o poder e a ameaça para a Ordem
estabelecida que o louco representa. E ele entra na cidade com a impossibilidade de seu
discurso pulverulento, pulverizante e virulento, desfazendo o estabelecido, o instituído, o
conhecido, as significações adotadas, as conexões entre significantes e significados, as
articulações corporais e corporativas (...) (QUINET, 2006, p.52-53).
A mulher que aqui procuro descrever passa horas empenhada em concretizar suas
fantásticas invenções e, por viver uma situação de abandono, compensa a sua solidão
contemplando os objetos, seus pertences... que, com seus relatos, se presentificam e
ganham vida.
2º ATO
Julga-se um civilizado pelo modo como se comporta e ele pensa tal como se comporta; mas já quanto à
palavra civilizado há confusão; para todo mundo, um civilizado culto é um homem informado sobre
sistemas e que pensa em sistemas, em formas, em signo, em representações.
É um monstro no qual se desenvolveu até o absurdo a faculdade que temos de extrair pensamentos de
nossos atos em vez de identificar nossos atos como nossos pensamentos.
Antonin Artaud
A mulher elegante diz que só come comidas sofisticadas, faz menção a suflês e
crepes com a expressão de quem está com água na boca. Tem a convicção de que comidas
brasileiras, tipo arroz com feijão, são “comidas de negro” e possuem certa toxicidade para
o corpo humano. Não faz nenhum esforço para camuflar seus preconceitos. Com
frequência, dirigia-se ao prédio da FIESP e lá acompanhava notícias de jornais sobre
descobertas científicas, entretanto, para ela, só valia a pena ler o francês “Le Monde”. A
finitude do homem lhe causava um incômodo avassalador e a vida eterna é um projeto
completamente viável que envolve muita pesquisa, trabalho e recursos. Por isso,
preocupa-se tanto com o desenvolvimento da ciência, em especial com os avanços da
genética. Deixa-se constantemente ser invadida pelas lembranças do passado, lamenta-se
do seu destino e da morte do seu esposo. Mantém guardadas as cinzas do seu corpo em
seu guarda-roupas, uma forma de tê-lo vivo, próximo. Ter sido internada exatamente no
144
dia que o homem chegou à lua foi para ela um golpe cruel, sentia uma mágoa gigantesca
por não ter acompanhado essa notícia pela T.V.
[...] o condenado parecia de uma sujeição tão canina que a impressão que dava era a de que
se poderia deixá-lo vaguear livremente pelas encostas sendo preciso apenas que se
assobiasse no começo da execução para que ele viesse. (KAFKA, s/d, p. 29).
Como se fosse moda degenerar: degenerava-se devido a doenças, por intoxicação e maus
costumes, degenera-se em razão de certos climas, pela consagüinidade, devido à mistura
das raças, e, em breve, se tornaria famosa a acusação de uma arte degenerada (2001, p.78).
explicitação, breve. Certa vez, um artista, professor e pesquisador do campo das artes, na
tentativa de delimitar qual era a sua pesquisa, dizia: “interesso-me por tudo aquilo que a
arte despreza, descarta por isso prefiro a pichação ao grafite”. Nesta frase já verificamos
uma separação entre arte e não arte, arte instituída e uma outra. Também encontramos
outras designações cujo intuito está em nomear estas produções que, estando fora do
contexto artístico, não são consideradas possuidoras deste reconhecimento no âmbito
cultural nem no mercadológico. Em contrapartida, esta arte que encontramos nos museus,
nas mostras, nas galerias, nos centros culturais, esta arte reconhecida, institucionalizada
parece não necessitar de nenhum adjetivo acessório para designá-la. Os adjetivos arte
tecnológica, arte minimalista dentre muitos servem para uma especificação, mas todas as
produções que advém desta categoria encontram-se rotuladas como arte e por isso mesmo
detêm o valor de obra.
Com Jean Dubuffet, encontramos a terminologia arte bruta, que, vale dizer, não se
trata de uma categoria distintiva cujo intuito seria demarcar, separar o que seria uma arte
patológica de arte não patológica, mas, pelo contrário, ele acredita não ser possível fazer
esta distinção. A arte bruta, neste caso e segundo Dubuffet, trata-se “de produções de
todas as espécies [...] que apresentam um caráter espontâneo e fortemente inventivo, e tão
pouco quanto possível tributária da arte habitual” (apud QUINET, 2009, p. 210). Na sua
trajetória no campo das artes, a noção de arte bruta - algo que tanto prezava - decorre da
ruptura com a norma artística, permitindo que empreendesse trabalhos que traziam esta
militância e que foram designados por ele de “anticulturais” e, decerto, almejava situá-los
em outro terreno (PACQUEMENT, 2009). Em 1945, Jean Dubuffet fundou a Companhia
da Arte Bruta cujo intuito era reunir a produção artística de pacientes internados em
hospitais psiquiátricos, presidiários e marginais de toda espécie. A arte bruta, neste caso,
estaria para a arte virgem, como estas produções foram designadas por Mário Pedrosa
(QUINET, 2009, p. 210). Se por um lado ao criar estas categorias, amplificam a
abrangência da arte, estendendo a outros grupos, sendo o crivo aquilo que está fora, elas
acabam ganhando existência, sobretudo, fazendo contraposição a uma arte culta.
As invenções desta mulher são uma reinvenção do corpo e estão sustentadas por
uma convicção: é possível subverter a lei “nasce, cresce e morre”; os processos naturais,
22
O ZERO não é vazio. Dirigido por Andrea Menezes Masagão e Marcelo Masagão. São Paulo: Televisão
Cultura, 2005, DVD (56 min), som, colorido.
148
3º ATO
Cada movimento, segundo disse, tinha um centro de gravidade; era suficiente comandar este centro, no
interior da figura; os membros, que não eram mais do que pêndulos, acompanhavam por si mesmos
qualquer intervenção de maneira mecânica.
Acrescentou que tal movimento era muito simples; que, cada vez, quando o centro de gravidade era
movimentado em uma linha reta, os membros descreviam curvas; e que com freqüência, mesmo
sendo sacudido de maneira puramente acidental, o todo ganhava um tipo de movimento rítmico
semelhante à dança.
O que chamava mais atenção era como dispunha seus pertences. Nada tinha seu
lugar funcional, tudo era nômade. Roupas dividiam espaço com comidas e pincéis
149
ressecados porque nunca foram lavados devidamente. Cada cômodo tinha potencial para
ser quarto, sala de estar ou até mesmo um ateliê. Enquanto falava, circulava por todos
esses lugares de sua casa como se tivesse esgotando o espaço. Mesmo mergulhada nessa
organização caótica, consegue criar condições propícias para a leitura. Conta-nos que
recentemente sentiu uma imensa vontade de reler Memórias de um sargento de milícias e
diante das primeiras páginas já percebeu que “a única coisa que prestava naquele livro era
a capa”. Dessa apreciação surgiu mais uma tela pintada e o ressentimento de não
conseguir pintar um retrato de seu avô, não conseguia captar sua expressão facial. Em
todo canto de sua casa, há resquício de criação. Bem ao lado da sua cama, um criado-
mudo com inúmeras velas derretidas e apagadas. E aqueles restos, desprovidos de
qualquer intencionalidade, ela os transforma numa verdadeira escultura de parafina
sustentada pelo móvel de madeira nobre.
4º ATO
Tenho agora vontade de vos contar, senhores, queirais ouvi-lo ou não, por que não consegui tornar-me
sequer um inseto. Vou dizer-vos solenemente que, muitas vezes, quis tornar-me um inseto. Mas nem
disso fui digno. Juro-vos, senhores, que uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma
doença autêntica, completa. Para uso cotidiano, seria mais do que suficiente a consciência humana
comum, isto é, a metade, um quarto a menos da porção que cabe a um homem instruído do nosso
infeliz século dezenove e que tenha, além disso, a infelicidade de habitar Petersburgo, a cidade mais
abstrata e meditativa de todo o globo terrestre.
Fiódor Dostoiévski
Vive ela farejando a cultura russa. Ao falar da sua origem brota uma narrativa
sempre inédita, sua história se fosse contada mil vezes teria mil desfechos diferentes e a
Rússia sempre estará lá, intocável. Persistiu nesse tema por alguns meses, no curso
“Orientação para projetos artísticos” do Museu de Arte Contemporânea do qual era aluna,
e chegou a fazer uma série representando personagens russos e seus familiares. O trono
do “Ivan, o terrível” recebeu um investimento fora do habitual. Para a pintura do trono,
comprou um spray prateado. Atitude corajosa por parte dela que do momento da compra
150
até a pintura ser concluída teve o spray em sua bolsa escondido. Tinha certeza que a
polícia, ao confundi-la com pichadores, iria prendê-la.
5º ATO
Esta é a questão: a volúpia está morrendo. Ninguém mais sabe fruir. Alcançamos a intensidade, a
enormidade, a velocidade, as ações indiretas sobre os centros nervosos pelo caminho mais curto.
A arte, e até o amor, devem ceder frente a novas formas de dissipação do tempo livre e da superabundância
vital; e essas formas serão o que puderem ser...
Paul Valéry
Enquanto pinta, desenha, escreve, reflete sobre suas questões e a falência do corpo
é um tema recorrente em seus trabalhos por isso nunca abandona seu projeto.
As máquinas por ela inventadas podem não ter nenhuma repercussão no campo
científico propriamente dito e, talvez, estejam muito longe de serem concretizadas, do
ponto de vista da eficácia, tal como ela deseja, no entanto, elas já adquiriram uma
existência simbólica possível de serem respaldadas, sustentadas e valorizadas no campo
das artes e da literatura.
Por mais que os fatos, pessoas, objetos e ambientes dos livros não passem, no fundo, de
tinta preta impressa no papel – palavras, palavras, palavras... -, aquilo que se guarda deles
começa a fazer parte da vida do leitor, em possibilidades tão numerosas quantas são as da
imaginação (SÜSSEKIND, 2005, p.42).
Numa sociedade cada vez mais voltada para as coisas que são úteis, funcionais,
parece ser esse o papel das artes e da literatura: instaurar o universo da fabulação, abrir
espaço para a desconfiança da realidade.
Na medida em que se narra, a própria narrativa se interroga. Esta é sua posição de discurso,
e a perspectiva na qual aí se enuncia fabula o acontecimento. “Não há literatura sem
fabulação” (Deleuze, 1997, p.13). A estratégia de fabulação é reticente no âmbito da clínica.
Fabular a clínica implica, na escrita, fabricar experimentos com uma narração heteróclita,
que é invenção e ao mesmo tempo alusão de um vivencial desejado e não realizado na
experiência. Supondo uma “faculdade especial de alucinação voluntária” Bergson (1998,
p.161) nomeou por função fabuladora aquilo que pode alinhar-se à ficção e que, entretanto,
não pode circunscrever-se a ser pensado como apenas uma variedade de imaginação. A
fabulação guarda com as sensações e percepções de memória, entretanto ela funciona como
uma espécie de resistência à dimensão factual (da ciência, sobretudo) que tende a acachapar
toda experiência (INFORSATO, 2010, p. 87).
Decerto a relação entre literatura e loucura tem suas razões para existir. A própria
impossibilidade de dizermos é o que institui e anima a escrita; na insistência em dar
forma àquilo que não se rende à forma reside o seu inacabamento e, possivelmente, a
agonística enfrentada no ato de escrever. Entretanto, se a possibilidade de transgredir a
linguagem existe para ambas – literatura e loucura -, faz com que nesta escrita opere o
desvio, aquilo que dispersa e disjunta:
Não o Ser, mas o Outro, o Fora, o Neutro. Paixão do fora que atravessa a escrita em Kafka,
bem como a de Blanchot, e que reverbera na obsessão de Foucault com o tema das
fronteiras e limites, da alteridade e da exterioridade, ou em Deleuze-Guatarri, na sua
reinvidicação por uma relação com o fora e toda maquinaria nômade que daí deriva
(PELBART, 2005, p.288).
152
6º ATO
convicta; sem pudores ou receio de ser invasiva, dizia-lhes coisas do tipo: “Fique
tranquilo, estou inventando uma máquina e em breve você poderá se beneficiar dela e se
livrar definitivamente destas cadeiras de rodas e andar com as suas próprias pernas”.
A diferença de cada projeto que foi orientado naquele espaço é enunciada de modo
exemplar com estes dois casos. Uma das participantes viera da Alemanha, mas não nos
explicitou os motivos de sua migração para o Brasil, aqui vivia como professora de
desenho/pintura e de vendas eventuais de trabalhos; o seu projeto se traduz de forma
simplória e sucinta pela pesquisa da cor preta e sua hipótese era que na pintura esta cor
era coadjuvante uma vez que servia apenas para ressaltar as outras cores. Outra
participante era arquiteta e trabalhava nesta profissão havia muitos anos e o seu projeto no
curso era experimentar algo diferente daquilo que no trabalho realizava; seu intuito era
construir objetos e instalações que desafiassem os princípios da arquitetura, ou seja,
beleza, conforto e funcionalidade.
Neste cenário, com o cuidado de não formatar o projeto das máquinas da mulher
elegante de modo apressado sob o risco de descaracterizá-lo, transformá-lo em outra
coisa, o debate em torno dele se prolongou por meses a fio, engenhando muitas questões,
inclusive, questões formais. Até então, os experimentos desta integrante - que
ambicionava ser reconhecida pela comunidade científica - se restringiam a esboços das
máquinas: desenhos, escritos, esquemas e anotações sobre a sua estrutura e o seu modo de
funcionamento e, em certa medida, o que o saber sobre elas causava no outro. Tais
descrições não tinham estabilidade, pois a cada dia, algo inédito se acrescentava criando
arranjos outros. Diante de tais evidências, como materializar seus projetos? Que materiais
e equipamentos seriam necessários e quais os mais adequados? Objetos ou instalações?
Talvez uma espécie de happening ou performance? Nada disso...
Aqui, esboça-se uma questão que parece ser uma provocação deste projeto: se
para a arte de hoje o corpo foi tomado como suporte - suporte que progressivamente foi
sendo cada vez mais utilizado pelos artistas contemporâneos – chegando até ao extremo
de ser objeto de arte – daria para dizer, então, que para a psicose, esta assertiva se inverte
completamente na medida em se trata de construir um suporte para o sujeito ter um
corpo?
7º ATO
A mais livre, a mais flexível, a mais voluptuosa das danças possíveis apareceu-me numa tela onde se
mostravam grandes Medusas: Não eram mulheres e não dançavam.
Não são mulheres, mas seres de uma substância incomparável, translúcida e sensível, carnes de vidro
alucinadamente irritáveis, cúpulas de seda flutuante, coroas hialinas, longas correias vivas
percorridas por ondas rápidas, franjas e pregas que dobram, desdobram; ao mesmo tempo que se
viram, se deformam, desaparecem, tão fluidas quanto o fluido maciço que as comprime, esposa,
sustenta por todos os lados, dá-lhes lugar a menor inflexão e as substitui em sua forma. Lá, na
plenitude incompreensível da água que não parece opor nenhuma resistência, essas criaturas
dispõem do ideal da mobilidade, lá se distendem, lá se recolhem sua radiante simetria, não há solo,
não há sólidos para essas bailarinas absolutas; não há palcos; mas um meio onde é possível apoiar-
se por todos os pontos que cedem na direção em que se quiser. Não há sólidos, tampouco, em seus
corpos de cristal elástico, não há ossos, não há articulações, ligações invariáveis, segmentos em que
se possam contar...
Paul Valéry
Eis uma delas: uma jovem fora internada à revelia pelo pai e pelo irmão, um
pouco mais velho que ela, numa enfermaria psiquiátrica em um hospital geral. Ela, muito
enlouquecida no momento da admissão neste equipamento, carregava - diferente da
mulher elegante - o vigor da juventude: muito falante, tinha por volta de 20 anos, a sua
pele muito branca e traços delicadíssimos enganava a sua idade, fazendo-nos acreditar
que tinha muito menos; tinha uma expressão bastante angelical, o seu rosto arredondado e
os cabelos longos, ralos e pretos lembravam a Mona Lisa. Dizia-nos, na tentativa de
encontrar alguma explicação - para justificar a atitude de seus familiares diante de seu
comportamento, a qual culminou na internação - que ficou “doente dos nervos” porque “o
seu coração não aguentou a perda da mãe”. Vivia com o pai e o irmão na periferia de São
Paulo e, durante os últimos anos, passava completamente isolada em seu quarto. Fez de
tudo para o pai instalar uma banheira e uma máquina de lavar roupas dentro do lugar onde
dormia, alegando medidas de higiene. E, ele acedeu mesmo a contragosto e lá ela fazia
todas as suas refeições, tomava banho e lavava suas roupas... Saía de casa só em caso de
extrema urgência; saídas repentinas: escondida de todos, dirigia-se ao supermercado para
comprar formicida. Chegando à casa, preparava para si um “delicioso” e estranho
chocolate temperado com veneno para ratos. Nessa mistura, a sua receita era colocar uma
minúscula porção de veneno, quase imperceptível... Não era uma tentativa de suicídio,
longe disso; o seu sofrimento era em demasia, sem sombra de dúvida, o que até poderia
justificar tal impulso. O que queria mesmo era se envenenar em doses homeopáticas para
garantir que levaria muitos anos para vir a falecer, mas que, contudo, seria antes do pai e
do irmão, que eram mais velhos do que ela, seguindo o seu raciocínio, ambos morreriam
antes. A jovem confeiteira, como a mulher elegante, não suportava a ideia de morte e,
certamente, se interessaria pela “Salva vidas infindus infinitus”. Até o momento que
pudemos acompanhá-la, suas arriscadas invenções apontavam mais para uma
desorganização psíquica, sem dúvida, merecedora de atenção e que poderia convergir
para outras produções, possivelmente uma construção minuciosa que levaria alguns ou
muitos anos e, portanto, necessitaria mais alguns atos.
157
Jacques Lacan
Em uma situação grupal, um dos participantes não cessa de falar. Com intuito de justificar a sua
incontinência verbal, diz a todos, em um tom professoral:
“Veja bem, são seis os órgãos dos sentidos: a visão que nos permite o acesso às imagens... a audição que
faz com que ouvimos a voz das pessoas e todos os outros sons... com o olfato, podemos sentir os
aromas de comidas, cheiros de perfumes, odores ruins também..., com o tato, percebemos a pele,
tateamos os contornos das coisas, se são pontudas, arredondadas, macias...; já o paladar é o órgão
responsável pelo gosto, os sabores amargo e doce e, finalmente, aquele que nos permite emitir sons
e palavras: o órgão da fala...”
Roland Barthes (2010) escreve nas últimas linhas de seu livro O prazer do texto,
que se fosse possível imaginar uma estética do prazer textual, fatalmente incluir-se-ia nela
a escritura em voz alta. Nessa articulação entre corpo e língua sucede a exteriorização
corporal do discurso; o grão da voz, como ele pronuncia, marcado pela repetição, este
misto erótico de timbre e linguagem, cujo objetivo não seria, por assim dizer, a clareza da
mensagem, mas, sobretudo, a arte de conduzir o próprio corpo. Esta escritura vocal, que
não se trata absolutamente da fala, não é mais tão praticada já que a melodia está morta,
como ele próprio enfatiza e, talvez, hoje seja possível encontrá-la no cinema mais
facilmente:
Basta com efeito que o cinema tome de muito perto o som da fala (é em suma a definição
generalizada do “grão” da escritura) e faça ouvir na sua materialidade, na sua sensualidade,
a respiração, o embrechamento, a polpa dos lábios, toda a presença do focinho humano
(que a voz, que a escritura sejam frescas, flexíveis, lubrificadas, finamente granulosas e
vibrantes como o focinho do animal), para que consiga deportar o significado para muito
longe e jogar, por assim dizer, o corpo anônimo do ator em minha orelha: isso granula, isso
acaricia, isso raspa, isso corta: isso frui (2010, p. 78).
23
Marco Antônio Coutinho Jorge comenta que, ao tomar a tese freudiana do determinismo psíquico,
segundo a qual todos os atos, vontades, ditos, etc. dos sujeitos são determinados de modo universal -, Lacan
pondera que, a rigor, a chamada regra de associação livre esteia-se precisamente no fato de que a associação
produzida pelo sujeito em análise não é nada livre, mas ao contrário, demasiadamente determinada, (por
158
um outro: “fale tudo o que se passa pelo seu corpo”. Fale do desejo, do possível, da
loucura, da morte, da infância, da velhice, da violência, do amor... Apesar de não ser a
situação analítica o assunto tratado por Barthes, parece que a sua proposição pode ser
vislumbrada nesta situação onde deve perseverar a suspensão dos significados para advir
o sujeito, propósito da escuta se se deseja fazer que prevaleça em sua particularidade; nas
suas palavras, “o prazer do texto é isso: o valor passado ao grau suntuoso do significante”
(BARTHES, 2010, p. 77). É possível que aí esteja localizada uma ética do analista que se
funda quando o seu inconsciente não abafa nem neutraliza o singular, não silencia o
sujeito, mas o faça falar. Neste aspecto diz-se que a interpretação do analista para Lacan é
uma pontuação do discurso do analisando e não um acréscimo de sentido (JORGE, 2007).
Como se sabe, a teoria psicanalítica não cessa a sua análise sobre este tema,
contudo este não é um empreendimento restrito a este campo, uma vez que tem se
elaborado em muitos outros, como é o caso da filosofia, da educação, da literatura e das
artes. Nesse sentido, constata-se que a linguagem é, para muitos, um interesse comum: o
analista, o educador, o filósofo, o escritor, o artista (ou crítico de arte) ocupam-se dela,
cada qual em seu contexto, em seus ambientes e com suas aparelhagens conceituais.
isso, aqui, nesta dissertação, empregou-se o termo ‘supostamente’). Com base nestas constatações, a
categoria freudiana da sobreterminação inconsciente põe em evidência a primazia do simbólico na
constituição do sujeito, daí Lacan sustentar que, para Freud, “o sintoma é estruturado como uma
linguagem” (JORGE, 2011).
159
próprio Freud que o inconsciente é uma hipótese de trabalho). Vale a pena, então, insistir
no uso do artigo indefinido “um”, pois como mostra Fink (1998), ao falar do discurso
lacaniano, a psicanálise não é de forma alguma um discurso essencial, sendo apenas um
discurso entre outros.
[...] Lacan inclui a psicose no que chamou de função da fala e da linguagem. Afirmou que a
relação com o significante, obra da linguagem, é o que constitui a unidade da neurose e da
psicose. O que constitui sua unidade e também sua diferença. Observo, de passagem, que
essa inclusão da psicose no campo dos fatos da linguagem é situada por ele como parte do
“aspecto do fenômeno”, daquilo que aparece, portanto, ao passo que na neurose, ao
contrário, a estrutura linguageira do sintoma só aparece por meio da decifração (1955-
56/2007, p.11).
Com efeito, no campo das estruturas clínicas, a linguagem está para todos, mesmo
que ela opere de modos distintos. Clinicamente, esta questão é um ponto de partida que
inaugura um posicionamento crucial com relação ao discurso médico, pois “a clínica
psicanalítica não é uma clínica descritiva nem fenomenológica, mas é uma clínica
estrutural, na medida em que o diagnóstico se estabelece na transferência”
(CALLIGARIS, 1989, p. 9).
É clássico dizer que, na psicose, o inconsciente está à superfície, é consciente. Por isso
mesmo não parece que isso tenha grande efeito em ser articulado. Nessa perspectiva,
bastante intrusiva em si mesma, podemos observar de saída que não é pura e simplesmente,
como Freud sempre sublinhou, desse traço negativo de ser um Unbewusst, um não
consciente, que o inconsciente guarda a sua eficácia. Traduzindo Freud, dizemos – o
inconsciente é uma linguagem. Que ela seja articulada nem por isso implica dizer que ela
seja reconhecida. A prova é que tudo se passa como se Freud traduzisse uma língua
estrangeira, e mesmo a reconstituísse recortando-a. O sujeito está simplesmente, no que diz
respeito à sua linguagem, na mesma relação que Freud. A se supor que alguém possa falar
160
numa língua que lhe seja totalmente ignorada, diremos que o sujeito psicótico ignora a
língua que fala (1955-1956/ 2008, p.21).
Ao expor esta metáfora, Lacan não a reconhece como satisfatória, pois, para ele, a
questão não é por que o inconsciente permanece não assumido no sujeito, mas porque ele
aparece no real. A exemplo disso, as alucinações – mas não somente elas - são entendidas,
do ponto de vista da psicanálise, como aquilo que é rejeitado pelo sujeito e por isso
apresenta-se para ele como algo que lhe é exterior.
Não é inútil lembrar-lhes a esse respeito minha comparação do ano passado entre certos
fenômenos da ordem simbólica e o que se passa nas máquinas, no sentido moderno do
termo, essas máquinas que não falam ainda completamente, mas que vão falar de um
minuto para o outro. Elas são alimentadas com pequenas cifras e espera-se que nos dêem o
que teríamos talvez posto cem mil anos para calcular. Mas não podemos introduzir coisas
no circuito a não ser respeitando o ritmo próprio da máquina – senão isso fica abaixo do
limiar, isso não pode entrar nela. Pode-se retomar a imagem. Sucede, entretanto, além
disso, que tudo o que é recusado na ordem simbólica, no sentido da Verwerfung, reaparece
no real (LACAN, 1955-1956/ 2008, p.22).
Esse processo de não reconhecimento do que fala pelo sujeito que fala é farto de
repercussões. Na loucura, os conteúdos inconscientes encontram-se mais manifestos, daí
a expressão lacaniana que o inconsciente encontra-se “a céu aberto na psicose”. É
bastante comum escutar na clínica com psicóticos expressões do tipo: “falam em mim,
usam a minha boca para dizer tal coisa, fui impelido a pronunciar tais palavras ou
conduzindo a dizer outras, mesmo não concordando, etc.”.
é por acreditar que ele nos interroga sobre a forma como nos relacionamos com os outros.
Sobre isso, escreve Quinet:
Pois bem, este capítulo, no conjunto dessa dissertação, pretende ser o último
ambiente, um ambiente marcado por um procedimento mais usual, em geral, atribuído
162
como a clínica no seu sentido stritu sensu, cujo enquadre é o atendimento individual em
que a escuta é o procedimento do trabalho que, vale dizer, desde a invenção freudiana,
não caduca.
24
De acordo com a tese de Nasio, o caso clínico pode ter “uma função didática, como exemplo que
corrobora uma tese, uma função metafórica, como metáfora de um conceito, ou uma função heurística,
como uma centelha que está na origem de um novo saber [...]” (2001, p. 17).
163
Paulo César de Souza, ao referir-se ao estilo de Freud, constata que a sua produção
era diversa da maioria dos cientistas de seu tempo: “sua qualidade de mestre da prosa
alemã já fora reconhecida por vários de seus contemporâneos25” (2010, p.23). E não
poderia ser diferente, já que “conhecendo intimamente a obra de Goethe – o autor que
mais citava, juntamente com Shakespeare -, sabia como era impróprio distinguir o sábio
do poeta, o cientista do escritor” (SOUZA, 2010, p. 24).
25
Assim, Paulo César de Souza, no livro cujo intuito foi preparar terreno para uma nova tradução das obras
de Freud em português, que tem sido realizada diretamente do alemão, escreve: “Em 1930 sucederam dois
fatos decisivos para a reputação literária de Freud: ele recebeu o prêmio Goethe da cidade de Frankfurt e foi
objeto de estudo de um renomado crítico suíço, Walter Muschg, num ensaio intitulado, de maneira simples
e pertinente, “Freud como escritor”” (2010, p.23).
164
interface, contudo, esta concepção não é nenhuma novidade já que esse aspecto da escrita
da clínica tem sido bastante explorado por vários pesquisadores. Ademais, a própria ideia
freudiana de que os poetas e escritores antecedem o trabalho dos psicanalistas é
comentada por muitos autores (DE CERTEAU, 2011; DUNKER, 2011; SOUZA, 2010).
Assim, a construção de um caso clínico, como afirma Dunker, deve ser para além
de um relatório que explicite um conjunto de procedimentos relacionados ao tratamento,
como acontece com muita frequência nos registros de prontuários, em geral, bastante
protocolares. Ademais, na situação clínica, o que temos são histórias repletas de lacunas,
mal-entendidos, rupturas, equívocos, etc., o que, porventura, leva à suposição que toda
história dos sujeitos é marcada por estes hiatos; a quem escuta, deve-se estar advertido
com relação a isso. O que interessa destacar, mesmo correndo o risco de tornar-se
repetitivo como um estribilho, é que, na construção do caso clínico, é cabível a invenção
de quem o escreve, aliás, tal aspecto é quase uma condição, o que permite considerar a
escrita do caso clínico como um gênero literário. A partir desse ponto de vista, é deveras
necessário distinguir o paciente do caso, como aponta Dunker, que, ao fazer a analogia ao
romance policial – pois, o que se encontra, à primeira vista, é a impossibilidade do leitor
construir uma história linear e completa neste tipo de literatura -, escreve:
A rigor, um paciente em análise, um psicanalisante, não tem nada a ver com um caso
clínico. Ele se torna um caso clínico quando é escrito, e como tal desaparecido, rasurado
por esta operação. Em acordo com a ideia de queda presente na etimologia da palavra caso
(Fall) talvez a escrita clínica seja uma forma de nos separarmos da experiência acontecida
na análise, uma forma de encontrarmos no que nela não encontrou inscrição, tempo e
representação. É preciso evitar que um psicanalisante transforme-se em um caso clínico,
identifique-se com esta condição, como parece ter ocorrido com o Homem dos Lobos. Para
isso é preciso introduzir o que poderia ter acontecido (a falsa solução necessária) e também
o impossível de ter acontecido (o real impossível de representar) como condições para a
construção do caso clínico (2011, p.573).
De fato a experiência de uma psicanálise envolve uma transmissão cultural que muito se
assemelha a da narração, em sentido forte do termo, pelos seguintes traços (Benjamin,
1936): transformação criativa entre memória e história, valorização do lado épico da
verdade, inerência a uma tradição oral, recusa da soberania da informação, economia de
explicações, fala autoral que se elabora em seu próprio processo e apropriação coletiva de
uma experiência. Contudo esta forma de transmissão cultural não deve se confundir com o
romance formado sobre esta mesma experiência. E Freud estava advertido desse problema:
“Sei que há – ao menos nesta cidade – muitos médicos que (coisa bastante repugnante) vão
querer ler um caso clínico desta índole como uma novela destinada a sua diversão e não
como uma contribuição a psicopatologia das neuroses” (1905d, p.8) (DUNKER, 2011,
p.567).
Este objetivo da transmissão está sempre perpassado aos que se dedicam à clínica
e que porventura escrevem seus casos e os expõem a um público. Se a construção do caso
clínico encontra-se dependente da escrita e este material, para ser lido e discutido,
contém, como já explicitado, além das construções do paciente, a invenção de quem o
atende, ao expor um caso, seria razoável supor que, em certa medida, é da exposição do
clínico que se trata também: o que escolher relatar na história do sujeito, que efeitos
utiliza para velar e garantir o sigilo, os manejos transferenciais realizados, bem como o
seu estilo de conceber e escrever o que faz. Muitos concordam que expor esta experiência
pode trazer a este tipo de pesquisa mais vida e, muitas vezes, são os aspectos inerentes à
clínica que nos impõem que reformulemos a teoria. É sempre uma questão para a clínica a
exposição. Com relação à divulgação e a publicação dos casos, é este o excerto que Nasio
traz de um dos textos freudianos:
[...] a discrição é incompatível com uma boa exposição da análise: há que não ter
escrúpulos, expor-se, entregar-se como pasto, trair-se, portar-se como um artista que
compra tintas com o dinheiro das despesas de casa e usa os móveis como lenha para
aquecer seu modelo. Sem alguns desses atos criminosos, não se pode realizar nada
corretamente (FREUD apud NASIO, 2001, p. 25-26).
encaminhamento feito pelo psiquiatra que o acompanhava há alguns anos, dizendo que “a
esquizofrenia não existia e tinha provas que ela realmente é uma invenção”; ao longo do
tratamento, foi constatando que “os enfermeiros o vampirizam e teve que aceitar o
diagnóstico a contra gosto e a duras penas para que os psiquiatras e seus assistentes
continuassem com os seus empregos, cargos ou funções”.
devo escutar, os programas de TV que devo assistir, as roupas e acessórios que devo
comprar e usar”. Os pronomes possessivos estavam ali para adverti-lo sobre a relação de
posse que ocorria entre os membros familiares - bastante numerosos -, ora justificava a
sua atitude autoritária com a mãe e ora a autoridade da irmã sobre ele. Esta característica,
isto é, o modo como lida com as palavras, sempre atravessou a situação clínica,
posteriormente, chegou até a fazer brincadeiras com os seus trocadilhos. Contou que certa
vez um de seus irmãos no momento que escrevia um texto, perguntou para ele - a pretexto
de esclarecer como era a grafia de algumas palavras -, “se “criança” tinha acento”, ele
respondeu sabiamente: “só se for na Academia Brasileira de Letras”, e em seguida,
justificou: “pois não é o que dizem, que as crianças são os verdadeiros professores?”.
É habitual uma frase deste paciente - que se diz sem autonomia nos seus gestos,
movimentos e pensamentos e, na tentativa de explicitar a invasão e a dispersão que vive
cotidianamente em seu corpo, fala: “não sei se fui completamente digitalizado ou se sou
apenas um cérebro mergulhado em um aquário”. De tempos em tempos, os sintomas de
extrema invasão se tornavam tão intensos, desencadeando uma crise. Certa vez, numa
168
ocasião em que praticava esporte, ouviu uma voz que lhe disse, com um sotaque caipira:
“vá tomar banho, porrrrco!”. A partir deste episódio, percebeu que transpirava muito mais
do que a maioria das pessoas que conhece e, assim, foi tomado por uma “crise de higiene
avassaladora” que persistiu por dias a fio. Sem tréguas, acreditou que tinha que tomar
uma atitude, assim, inicialmente, começou a esterilizar tudo o que tinha em casa com
álcool; passava o dia inteiro fazendo isso e, ao terminar, começava tudo de novo,
obsessivamente, pois tal gesto deveria ser repetido continuamente por acreditar que o
efeito esterilizante havia vencido o seu prazo. Tal sensação, com o passar dos dias, foi
tomando uma proporção cada vez maior, saindo totalmente de seu controle. Um dia era
apenas uma chuva de bactérias – visualizava tudo aquilo impossível se ser visto a olho
nu: os bacilos, os bastonetes e todas as classes possíveis -, depois chegou ao ponto de
acreditar que a contaminação por germes atingiu o seu sistema sanguíneo e, assim, a saída
que encontrou para interromper este evento foi trocar todo o seu sangue, chegando a fazer
algumas tentativas.
Nos momentos de “crise”, o sujeito fica exilado de sua subjetividade, não se reconhece
mais como si mesmo, pois não consegue distinguir nem interior nem exterior. A voz que
vem do Outro não faz borda no corpo, não recorta um orifício, não estabelece uma fronteira
entre o que é próprio e o que não é; ela retorna como vinda de fora, como por exemplo uma
alucinação auditiva. Nesses momentos o sujeito pode assimilar o que vem de fora,
subjetivando-o ou não (MASAGÃO, 2007, p.139).
A crise, entendida aqui como as rupturas de tentativas de laço, neste rapaz era
bastante devastadora. Do ponto de vista da psicanálise, tais experiências devem encontrar
um modo de explicação pelo sujeito em aflição, de modo a transformar tais incômodos,
porventura demasiados invasivos, em um discurso. Neste aspecto, é possível considerar
que, na clínica psicanalítica, há uma aposta: a de escutar o delírio. A subversão freudiana
é que a formação delirante é uma tentativa de restabelecimento e não enfermidade
propriamente dita, conforme a psicose era interpretada até então, passando a ser entendida
como uma manifestação do sujeito e não como déficit ou patologia a ser eliminada a
qualquer custo (FREUD, 1911/2010).
Posteriormente com Lacan, é possível apreciar a ideia de que a psicose não é um
caos nem desordem e, sim, uma outra, o que ele chama de uma ordem do sujeito:
Sob o pretexto que o sujeito é um delirante, não devemos partir da ideia de que o seu
sistema é discordante. É sem dúvida inaplicável, é um dos signos distintivos de um delírio.
No que se comunica no seio da sociedade, ele é absurdo, como se diz, e mesmo muito
incômodo. A primeira reação do psiquiatra em presença de um sujeito que lhe começa a lhe
169
contar coisas desse gênero com todas as cores, é sentir desagrado. Ouvir um senhor proferir
afirmações ao mesmo tempo peremptórias e contrárias ao que se está habituado a reter com
a ordem normal de casualidade, isso o incomoda, a sua primeira preocupação no
interrogatório é fazer encaixar as pequenas cavilhas nos buraquinhos, como dizia Péguy nos
seus últimos escritos, falando da experiência que ele assumia, e dessas pessoas que querem,
no momento em que a grande catástrofe está declarada, que as coisas conservem a mesma
relação que antes. Proceda por partes, senhor, dizem eles ao doente e os capítulos já estão
feitos (1955-1956/2008, p. 144).
Lacan, ao abordar a temática das psicoses tanto no Seminário III quanto no texto
“De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses”, seguirá os passos
de Freud. Examinando estes textos, constata-se, então, que caberia favorecer este trabalho
com a palavra, assegurando que o trabalho clínico se constitui de um outro, feito
necessariamente e exclusivamente pelo psicótico:
Dizer “trabalho da psicose”, tal como se diz “trabalho da transferência” no caso da neurose,
é também marcar uma diferença fundamental entre neurose e psicose. Essa diferença é
consequência de uma outra, entre o recalcamento, mecanismo linguageiro que Freud
reconheceu na base do sintoma neurótico, e a foraclusão, promovida por Lacan como a
causa significante da psicose. Se o trabalho da transferência supõe a ligação libidinal com
um Outro feito objeto, no trabalho do delírio é o próprio sujeito que se encarrega,
solitariamente, não do retorno do recalcado, mas dos “retornos no real” que o abatem. Se
não existe auto-análise do neurótico, o delírio, por sua vez, é de fato uma auto-elaboração,
da qual se manifesta de maneira evidente o que Lacan chama de “eficácia do sujeito”
(SOLER, 2007, p.185).
Face ao exposto, a questão trazida por Colette Soler, “é saber se esse trabalho da
psicose pode inserir-se no discurso analítico e, em caso afirmativo, de que modo” (2007,
p.185-186). Sucede que, como gosta de insistir Jean Oury, para os que estão nessa posição
de escutar o sofrimento do psicótico, seria mais preciso falar em não impedir ao invés de
facilitar (1991). É assim que Lacan se reporta sobre a produção daquele que Freud só
pôde conhecer por meio de seus próprios escritos: “Quanto a Schreber, deixaram-no falar,
por uma boa razão, é que não lhe diziam nada, e ele teve todo o tempo para nos escrever
seu grande livro” (1955-1956/2008, p.145).
Comecem por não crer que vocês compreendem. Partam da ideia do mal-entendido
fundamental. Aí está uma dimensão primeira, na falta da qual não há verdadeiramente
nenhuma razão para que vocês não compreendam tudo e não importa o quê. Tal autor lhes
dá tal comportamento como um signo de inafetividade num certo contexto, alhures será o
contrário. Que se recomece sua obra após ter-lhe acusado a perda, pode ser compreendido
em sentidos completamente opostos. Faz-se apelo de modo perpétuo a noções consideradas
como estabelecidas, quando de modo algum elas os são (1955-1956/2008, p.31).
Lembremos também que no texto “O sentido dos sintomas”, Freud diz que os
sintomas sempre portam um sentido e têm uma conexão com a vida de quem os produz
(1916-17/1996, p.265). Com o discurso freudiano, “o sintoma assume decisivamente uma
versão positiva e não mais negativa, como na psiquiatria de então, de forma a ser uma
maneira do sujeito dizer algo sobre si e sobre o mundo” (BIRMAN, 2006, p.13). Sabe-se
que esse dizer não está restrito à palavra, mas a diferentes manifestações. Grosso modo,
tanto em Freud quanto em Lacan, é possível observar que a questão dos sentidos dos
sintomas tem suas particularidades, também, a depender da estrutura clínica:
Se, nas neuroses, o sujeito constantemente se interroga a respeito dos sentidos de sua fala,
de seus sonhos, de seus sintomas, sempre guiado pela dúvida e pela incerteza, nas psicoses
o que se observa é uma suposição de que o sentido nasce junto com tais expressões e tem
existência independente de sua vontade. O sistema é hermético, a linguagem é em si
(FARIA, 2012, p.11).
[...] Digamos apenas que, ao reduzi-lo à sua vontade, esse tempo consiste em fazer o
paciente esquecer que se trata apenas de palavras, mas isso não justifica que o próprio
analista o esqueça (1958/1998, p.592).
A psicose, dizia Lacan, é um esforço de rigor. Nisso apreciamos o rigor do próprio Lacan
em sua abordagem da psicose. Seu famoso preceito – o psicanalista não deve recuar diante
da psicose – não deve ser interpretado em termos de heroísmo terapêutico, como se fosse
uma simples questão de “agüentar o fardo da psicose”, conforme a expressão que alguns
gostam de repetir. A coragem evocada por ele deve ser situada no nível do pensamento.
Consiste em resolver os problemas que a psicose formula à psicanálise e, no fim, extrair as
consequências do obstáculo que ela opõe a seu tratamento por meio da transferência
(SOLER, 2007, p. 99-100).
Uma das doentes de Tausk, uma garota que foi levada para a clínica após uma briga com o
seu namorado, queixa-se de que “os olhos não estão direitos, estão virados”. Isso ela
172
Quinet (2006), com base neste texto freudiano, a partir da ilustração de um caso de
sua clínica, afirma que:
Para ele [o analisante] nem as dores nem as palavras estão presas no Simbólico, e é por isso
que elas se equivalem. Dores e palavras são uma coisa só. Quando ele diz ‘estou
bloqueado’ trata-se do Real, ele não consegue mais se mexer. Não há distinção entre
significante e órgão” (2006, p. 85).
É no esquizofrênico que podemos notar que o significante se situa ao nível da coisa gozoza,
pois nele o significante não faz barreira ao gozo. Ao utilizarem a “língua do órgão”, os
fenômenos corporais não deixam de ser uma tentativa de recuperar o órgão pela palavra.
Primeiro passo da tentativa de que seu corpo seja “mordido” por um discurso (QUINET,
2006, p.85).
26
O tradutor chama a nossa atenção ao afirmar que “virador de olhos” é a versão literal de Augenverdreher;
em português, seria algo similar a expressão “ele virou a cabeça dela” (apud FREUD, 1915/2010).
173
ao simbólico supõe mais que uma aprendizagem da língua; ele supõe o efeito de
esvaziamento no real do ser vivo, que produz a promoção de um significante” (SOLER,
2007, p. 119).
Voltando ao caso, este rapaz que havia deixado de fazer várias coisas para
preservar os seus órgãos e, portanto, diminuiu radicalmente as suas atividades cotidianas,
era afirmativo ao dizer que “não lia mais nem assistia TV para não lesar o seu cristalino,
não escutava músicas para preservar o seu aparelho auditivo, dentre outras contenções
corporais cujo objetivo era único e exclusivamente em prol da preservação de seu corpo
de modo a deixá-lo com as suas funções intactas”; contudo, tais contenções não eram
exatamente uma escolha, tratava-se de uma imposição, pois se não as fizesse, era convicto
que chegaria cego aos 50 anos: o dito “basta ter para perder” é por ele levado a sério,
consistindo numa espécie de aviso, de ameaça, de destino. Em um período de sua vida,
estas medidas de contenção chegaram ao extremo, permanecia recluso no domicílio e lá
sem poder fazer quase nada. Mesmo dizendo ter interesses diversos – música, literatura,
línguas estrangeiras, cinema, esportes, viagens, etc. -, suas atividades se restringiram ao
tratamento; durante muito tempo, deslocava-se apenas para as consultas médicas. Tais
sensações corporais além de comandar completamente os seus fazeres, por vezes,
determinavam a posição de seu corpo, interferindo em seu gestual: “veludos nos dentes e
fibras de vidro em seus braços, mãos e dedos” fazem com que fique com a boca
entreaberta, com os membros superiores distanciados de seu tronco e os dedos das mãos
também afastados, pois esse contato entre as partes de seu corpo poderia ser altamente
alergênico, doloroso, cortante, pois “com fibra de vidro não se brinca”; assim, conclui que
“alergia corresponde a preconceito”.
esboçando, assim, uma tendência geral para uma economia restritiva27 (1984/2010), para
tanto, “o regime físico dos prazeres e a economia que ele impõe faz parte de toda uma
arte de si” (p. 175). Esta entrada súbita pelas condutas moduladas pelo uso dos prazeres é
conveniente para a circunstância desta dissertação que se propôs pensar as construções de
cada sujeito aqui narrado, relacionando-as ao que Foucault denominou de “estética da
existência”. Portanto, aqui não há uma pretensão de que estas associações funcionem
orquestrando teorias que desemboquem numa relação total nem numa conclusão
universal. No mais, o que a construção deste rapaz - como de outros que protagonizaram
as narrativas -, traz como possibilidade é pensar que um acontecimento pode ser visto de
vários ângulos, favorecendo muitas associações; estas visões distintas podem ser
justapostas, desde que preserve o seu caráter disjuntivo ou disruptivo.
Seus relatos levam a crer que ele vive em seu corpo esta experiência em diversas
situações em que as palavras têm este valor real, literal. Ao relatar que determinado
fenômeno lhe ocorrera por ordenação do “Sistema”, diz que isto era gritante e ao
pronunciar tal descoberta a faz gritando em alto e bom tom: “O Sistema existe! A
radiação é efeito do Sistema!”. A sua reclusão tinha claramente um objetivo de
preservação, pois, considerava infindáveis as frases dirigidas a ele. Por exemplo, deixou
27
De acordo com Foucault, esta dieta dos prazeres relacionava a alimentação aos exercícios, ao ato sexual,
etc. A necessidade de dar à prática sexual uma atenção vigilante não se baseava no fato de que os atos
sexuais seriam impróprios ou maus para os aphodisias, mas esta vigilância se pautava na desconfiança que
se manifesta “na idéia de que muitos órgãos, dentre os mais importantes, são afetados pela atividade sexual
e podem sofrer com os seus excessos” (1984/2008, p. 150).
175
de assistir TV, pois as propagandas publicitárias faziam piadas com seu nome ou com
parte dele, nesse sentido, usar uma sílaba ou um nome de sonoridade similar ao seu já era
suficiente. Os outdoors - numa época em que era possível vê-los espalhados pela cidade -
também continham frases em resposta ao seu pensamento, certa vez, leu um com a
seguinte expressão: “odeio o seu ódio!”, naquele momento, entendeu que era uma reação
dos outros ao ódio que sente de grandes centros empresariais por onde circulam
executivos bem sucedidos. Costumava dizer que estas frases eram respostas que vinham
de todos os lados, até gestos de pessoas, que transitavam pela rua insinuavam algo para
ele. Também interrompeu a atividade de trabalho porque “tudo o incitava a ser um
homossexual” e, como optou por não ser, a restrição destes estímulos tornou-se uma
medida necessária.
Numa época em que acreditava estar se sentindo melhor, decidiu fazer uma
viagem e, ao adentrar no avião, a primeira coisa que visualizou foi uma frase que dizia:
“pense com a sua cabeça!”. Apesar de saber que se tratava de uma espécie de aviso a
todos passageiros, era também uma constatação que assegurava com todas as letras que,
de fato, ele possuía dois cérebros, sendo um biológico e outro eletrônico e, desse modo, o
segundo comanda o primeiro. Diz que não é por acaso que existe uma música chamada
Cérebro eletrônico e, assim, “a letra da música servia como prova que essa possibilidade
existe e que não se trata de coisas apenas da sua cabeça”. Entremeados por momentos de
angústia extrema, construir explicações para o que se passava com ele, tornou-se algo
essencial, produzindo inclusive justificativas para a sua passividade, a sua falta de
atividade, queixas recorrentes de seus familiares aos profissionais que já o atenderam.
Essa suposta passividade é explicada por ele com argumentos que apontam para a cisão
imposta pela esquizofrenia: “Com dois cérebros, duas mentes, fica difícil o corpo saber
qual vai obedecer”.
Assim, é preciso entrar na definição psicanalítica da psicose, que teve início com Freud. Ela
consiste em considerar a psicose como uma vicissitude do sujeito, na medida em que o
sujeito é um efeito de linguagem. Em 1966, em sua apresentação da tradução das memórias
176
do presidente Schreber, o caso comentado por Freud em 1911, Lacan rendeu homenagem a
Freud por ele haver introduzido o sujeito na consideração da loucura, em vez de pensar essa
loucura em termos de déficit e de dissociação das funções. O ponto de partida do assunto
no ensino de Lacan, ou pelo menos, o grande ponto de partida, foi o texto intitulado “De
uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. Foi nesse texto que ele
construiu sua primeira doutrina da estrutura da psicose. Essa doutrina inscreveu a psicose
em sua tese do inconsciente estruturado como uma linguagem. Ela implicou, cito, que “o
estado do sujeito [neurótico ou psicótico] depende do que se desenrola no Outro” (SOLER,
2007, p.194).
[...] Lacan inspirando-se nas ciências de seu tempo – a lingüística, a antropologia estrutural
e a matemática -, revê a obra de Freud com uma nova lente e descobre implícitos nela três
registros heterogêneos que constituem o aparelho psíquico: RSI. A nomeação desses
registros não só fornece um enorme alcance às teses freudianas, mas também permite a
compreensão e o enriquecimento dos conceitos (JORGE; FERREIRA, 2007, p. 30).
A partir do que Freud desenvolveu acerca do narcisismo, Lacan vai propor uma
nova operação psíquica, denominada “estádio do espelho”. Nas palavras lacanianas:
Esse desenvolvimento é vivido como uma dialética temporal que projeta decisivamente na
história a formação do indivíduo: o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno
precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o sujeito apanhado no
engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem
despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica – e
para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua
estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental. Assim, o rompimento do círculo do
28
Nas palavras de Roudinesco e Plon (1998), trata-se de um termo utilizado por Lacan para “designar um
lugar simbólico – o significante, a lei, a linguagem, o inconsciente, ou, ainda, Deus – que determina o
sujeito, ora de maneira externa a ele, ora de maneira intra-subjetiva em relação com o seu desejo” (p.558).
Ainda, segundo estes autores, Lacan forjou esta terminologia específica (Outro/outro) visando à distinção
da determinação pelo inconsciente freudiano (Outro), do que é do campo da pura dualidade (outro) no
sentido da psicologia (ROUDINESCO; PLON, 1998).
177
Essa passagem, quase uma inversão, apresenta uma sutileza espetacular que
permite que o seu corpo extremamente invadido, lugar de tortura, possa ceder para outra
condição mais favorável, pois ele agora se vê possuidor de uma proteção contra a invasão
indeterminada de outrem. A experiência desse rapaz diz muito sobre a vivência psicótica,
uma vez que, como se sabe, o Outro na psicose tem existência real e, por isso, persegue,
ama, modifica o corpo do psicótico, altera sua vontade, impõe-lhes pensamentos
(GUERRA, 2010).
Contudo, vale sublinhar que se num primeiro momento ele se apresenta como
apenas uma peça de um computador, absolutamente submetido a um sistema
computacional que a tudo gerencia e controla, passa a atribuir às crises os momentos de
descontrole que resultaram em sucessivas internações psiquiátricas. Considerando estes
momentos críticos e deveras angustiantes, a sua desorganização era inevitável, pois
decorria da pane do “Sistema”. A construção de seu delírio, ao longo do processo de
escuta, permitiu estabilizar-se e interromper as frequentes internações. É por isso que se
costuma dizer que o delírio quando estruturado, mostra o simbólico funcionando na
psicose.
É preciso lembrar que em um momento inicial foi dominado por uma invasão
extrema, geradora de intenso e extenso sofrimento, assim verbalizada: “tenho zero de
privacidade”. Entretanto, esta percepção pôde evoluir, com o passar dos anos, para uma
outra, mais admissível: “tenho zero de privacidade” mas, “sei disso [da existência do
“Sistema”], daí o sofrimento, não desaparece, mas diminui”. Antes, apenas submetido a
esse “Sistema” que tudo vê e que tudo sabe, uma peça que pode ser desligada a qualquer
momento, como ocorre no filme de Stanley Kubrick, 2001: uma odisseia no espaço, filme
que assistiu mais de dez vezes. Chegou a cantar algumas vezes nas sessões a música que
Hal 9000 (o computador dotado de inteligência artificial e personagem do filme) canta
para o astronauta, na tentativa de evitar o seu desligamento. Nesta mesma linha, o contato
com as músicas da banda Kraftwerk - pioneira do gênero eletrônico -, cujas letras
abordam temáticas como a tecnologia, os computadores, os robôs etc., também lhe causa,
simultaneamente, interesse e pavor, pois, semelhantes ao filme do Kubrick, estas músicas
permitem-lhe constatar que “a grande máquina tem existência real”. Em um clip do grupo
alemão em que os integrantes saem do palco - deixando bonecos no lugar deles -, e a
música continua sendo tocada pelos instrumentos eletrônicos, nas suas palavras, é a
confirmação do que se passa com ele, já que, frequentemente, julga-se “uma réplica”,
“um ser replicante”, enfim, “uma máquina que acredita ser um humano”.
180
Se alguns filmes têm uma conotação, por vezes, assustadora, outros têm menos,
principalmente quando não aludem de forma mais direta à questão que enfrenta
cotidianamente. Inclusive tornou-se possível usar alguns deles para transmitir a outros.
Esta é uma mudança que aqui merece ser ressaltada, pois, mesmo sendo um apreciador do
cinema, passou longos anos sem assistir filmes nem mesmo pela TV, para preservar a sua
visão. Quando retomou esta atividade, aos poucos foi expandindo a mesma para outras
pessoas, já que a sua constatação era que, a partir dos filmes, poderia “fazer grandes feitos
com pequenos gestos”. É como se as imagens e as palavras tivessem em si muito mais
que um efeito, mas uma eficácia. É o que observa Lacan: “Se o neurótico habita a
linguagem, o psicótico é habitado, possuído por ela” (1955-1956/2008, p.292).
A exemplo disso, reuniu em sua casa, alguns sobrinhos e vizinhos com idades
entre 7 e 12 anos e passou para eles o filme E.T. – o extraterrestre, de Steven Spielberg,
acreditando que se as crianças da sua família e de seu entorno assistissem ao sofrimento
do pequeno ator e do extra terrestre ficariam imediatamente mais sensibilizadas com os
idosos e pessoas adoentadas ou acamadas, podendo, no futuro, assisti-las. Já o clip da
cantora norte-americana Kate Bush, Wuthering height, transmitiu para algumas primas
que tinham mais que um filho. Cabe dizer que o seu intuito não era diversão e, sim, o
“controle de natalidade”, pois - tanto o título da música quanto o sobrenome da cantora -,
continham palavras que se assemelham ao órgão reprodutor feminino. De acordo com sua
explicação, “Bush” remete a “bucho” – na nossa língua, há os seguintes significados:
“barriga”, “ventre feminino”, “em estado de gravidez” (HOUAISS, 2009) – e tanto a
grafia quanto a pronuncia da palavra inglesa “wuthering”, por sua vez, lembram útero,
uterino, apesar de saber que sua tradução para o português não tem nenhuma relação com
o órgão.
Cabe relembrar neste sentido, como defende Freud, que “a formação delirante, é
na realidade tentativa de cura, reconstrução” (1911/2010, p.94). E em seu texto de 1924,
“Neurose e psicose”, ele diz:
Sobre a gênese das formações delirantes, algumas análises nos ensinaram que o delírio é
como um remendo colocado onde originalmente surgiria uma fissura na relação do Eu com
o mundo exterior. Se essa precondição, o conflito com o mundo externo não é muito mais
patente do que agora notamos, a razão para isso está no fato de no quadro clínico da psicose
as manifestações do processo patogênico serem frequentemente cobertas por aquelas de
uma tentativa de cura ou reconstrução (FREUD, 1924/2011, p.180).
181
Nesta situação clínica, foi possível verificar que novas formulações e detalhes
vieram a acrescentar e incrementar o delírio deste rapaz, o que sugere que esta
organização se deu pela construção de uma metáfora delirante. Uma vez que a metáfora
paterna não se efetuou, o seu advento tem como função suprir o Nome-do-Pai,
foracluído29 do simbólico (QUINET, 2009).
Com relação ao rapaz, estas mudanças não ocorreram da noite para o dia, mas em
etapas graduais, com altos e baixos. No entanto, a denominação “Agente Secreto”,
embora ainda pertencente ao “Sistema” e dele dependente, produz uma diferença sutil,
mas que inegavelmente fez toda a diferença: de submissão à missão, já que todo agente
tem pelo menos uma. Esta nova nomeação aponta para uma possibilidade e um limite;
embora possuidor de todos os aparatos para ser um agente, faz questão de fazer uma
29
De acordo com Joël Dor, “etimologicamente a foraclusão é um termo saído do corpo da terminologia
jurídica, que significa a abolição simbólica de um direito que não foi exercido no prazo prescrito. Portanto,
é principalmente essa ideia de uma anulação simbólica que Lacan subescreve, ao utilizar o conceito de
foraclusão. Trata-se, para ele, de enfatizar a abolição de um significante. Todavia, é só na medida em que
essa abolição incide sobre um significante particular – o significante Nome-do-Pai – que ela pode
especificar a indução dos processos psicóticos; ou seja, o significante que é convocado a vir substituir o
significante originário do desejo da mãe” (2011, p. 97).
182
ressalva, ou seja, de que não precisa sequer exercer essa função, “um agente sem agir”,
essa é a sua lógica! Tal argumento se pauta numa constatação, pois descobriu que o
mundo é repleto de “mentiras combinadas” - de acordo com as suas minuciosas
explicações, supõe-se que elas seriam o equivalente a convenções. Por exemplo, diz que
determinados alimentos possuem um tipo de metal na sua constituição, mas para a
população leiga isso poderia ser muito assustador; então os meios pelos quais as
indústrias informam a presença destes elementos – através dos rótulos que apresentam as
descrições sobre o produto - aos prováveis consumidores, são simplificados, por vezes,
modificados. Tais “mentiras combinadas” que não se tratam de mentiras quaisquer, pois
dizem respeito a assuntos relevantes e são compartilhadas por muitos indivíduos, senão
por todos de uma determinada cultura; desse modo, para ele, elas possuem uma única
função: o controle social.
Ora, impossível não relacionar estas suas impressões ao falar sobre a “grande
máquina” que é o “Sistema”, ao panóptico, aparelho de controle de grande eficácia
porque máquina que tudo vê..., contudo, inverificável, justamente porque se trata de “[...]
uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto,
sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto” (FOUCAULT,
1975/2011, p.191). Admitida a persecutoriedade no modo como passa a construir o seu
discurso, curiosamente, as suas formulações sobre o mundo também revelam razoável
compatibilidade às “sociedades de controle”. Se seu delírio de cunho paranóico foi
organizador para as sensações invasivas, é como se também ele cumprisse discretamente
uma outra função, ou seja, a de denunciar a existência do controle – que, por vezes,
banalizamos ou desconsideramos – e que, contudo, incide sobre todos nós. É assim que
Deleuze escreve no “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”30:
É fácil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de máquina, não porque as
máquinas sejam determinantes, mas porque elas exprimem as formas sociais capazes de
lhes darem nascimento e utilizá-las. As antigas sociedades de soberania manejavam
máquinas simples, alavancas, roldanas relógios; mas as sociedades disciplinares recentes
30
Neste texto, Deleuze formula uma hipótese de que as “sociedades de controle” estão substituindo as
“sociedades disciplinares”. Curiosamente esta sua hipótese possui uma íntima relação com a tese
foucaultiana do biopoder e da biopolítica. Em suma, ele evidencia que esta nova disposição social diz
respeito à crise generalizada de todos os meios de confinamento em que “a setorização, os hospitais-dias, o
atendimento em domicílio puderam marcar de início novas liberdades que rivalizam com os mais duros
confinamentos” (DELEUZE, 1990, p.1).
183
Assim, podemos observar que o rapaz, de peça sem qualquer autonomia, faz
autoria, aliás, cria um nome próprio: “G-Cristo ou Guy (rapaz) Manoel Homem de Deus”.
Ademais, não só são nomes próprios e neologismos que ele inventa, justamente porque o
que ele engenha com isso é outra língua, nas suas palavras, uma língua entre duas já
conhecidas. Ora, deste encontro entre o inglês e o português – a grafia de uma com a
184
31
Freud em seu texto “A significação antitética das palavras primitivas”, expõe que, em contato com o
trabalho do filólogo Karl Abel, publicado em 1884, possibilitou verificar que o comportamento do trabalho
do sonho é idêntico a uma particularidade das línguas mais antigas que conhecemos – referindo-se à
egípcia. “Atualmente na língua egípcia, esta relíquia única de um mundo primitivo, há um bom número de
palavras com duas significações, uma das quais é o oposto exato da outra. Suponhamos, se é que se pode
imaginar um exemplo tão evidente de absurdo, que em alemão a palavra “forte” signifique ao mesmo tempo
“forte” e “fraco”; que em Berlim o substantivo “luz” se use para significar ao mesmo tempo “luz” e
“escuridão”; que um cidadão de Munique chame cerveja de “cerveja”, enquanto outro use a mesma palavra
para falar de água: nisto é que importaria o surpreendente costume usado regularmente pelos antigos
egípcios em sua linguagem” (ABEL apud FREUD, 1924/1970, p. 142). Ao constatar que a significação
antitética das palavras são evidenciadas nas raízes mais antigas em que, ao mesmo tempo, um vocábulo
designa uma coisa e o seu oposto, Freud retoma a questão formulada por Abel, “por que os egípcios
permitiram uma linguagem tão contraditória?”. A sua hipótese é que nossos conceitos devem sua existência
a comparações. “De vez que o conceito de força não se podia formar exceto como um contrário de fraqueza,
a palavra designando “forte” continha uma lembrança simultânea de “fraco”, como coisa por meio da qual
ele ganhou existência. Na realidade, esta palavra não designava nem forte nem fraco, mas a relação e
diferença entre os dois, que criou a ambos igualmente. O homem não foi de fato capaz de adquirir seus
conceitos mais antigos e mais simples a não ser como os contrários dos contrários, e só gradativamente
aprendeu a separar os dois lados de uma antítese e a pensar em um deles sem a comparação consciente com
os outros” (ABEL apud FREUD, 1924/1970, p.143). Neste mesmo texto, Freud chama a atenção ao afirmar
que: “[...] não podemos escapar à suspeita de que melhor entenderíamos e traduziríamos a língua dos
sonhos se soubéssemos mais sobre o desenvolvimento da linguagem” (1924/1970, p.146). Mesmo quando
não se trata de uma interpretação dos sonhos, a linguagem deve ser tomada com grande investimento, de
modo que, a escuta na clínica não se furtasse de ser minuciosa, aguda e, em certa medida, refinada.
Podemos tomar a afirmação de Freud em suas conferências de 1915 - ao falar do trabalho do psicoterapeuta
- de que “não depreciaremos o uso das palavras...” como algo que ele procurou transmitir em vários outros
textos de sua obra?
185
seria extensivo a se matar, e tais tentativas param de ser atuadas, cessam. Não é à toa que
diz: “não sou mais um suicida, agora, quando penso em morrer, penso em eutanásia”, tal
mudança sugere que, por ora, tem recusado a incumbência desta tarefa e, clinicamente,
não se trata de uma mudança qualquer, mas é algo a ser bastante considerado.
A questão da literalidade também aqui se denota mais uma vez ao falar de uma
música que muito aprecia por ser difícil de ser cantada. Difícil por dois motivos: para
achar o ritmo e a entonação adequados, permitindo cantá-la sem tropeçar nas palavras e
pelo assunto que ela evoca. São estes os versos que ele enfrenta como um enorme desafio:
alguma eficácia frente à ameaça de dilaceração que se apresenta como uma constância
para ele.
Para Schreber, os nervos são nervos, os vestíbulos do céu são os vestíbulos do céu etc.
Quando Freud traduz os “pássaros do céu” por “moças” ele o faz a fim de reconstruir o
drama subjetivo de Schreber, mas sem nenhuma pretensão de extrair uma significação que
lhe seria restituível (1991, p.231).
O corpo só se constitui como tal a partir do corpo simbólico, e é efetivamente deste que
dependem o estatuto e a unificação do corpo humano. É através da apreensão desse corpo
na cadeia de significantes, entrando num discurso, que o sujeito encontrará as funções para
o seu próprio corpo. Os corpos, para entrarem em função, precisam habitar um discurso
(QUINET, 2006, p. 83).
Sucede que no caso desse jovem houve uma produção incessante; com que incidia
em demasia em seu corpo, ele pôde fazer teoria, fazer língua, fazer texto. Habitualmente
referia-se à articulação entre duas línguas que produz uma terceira, o que o aproxima das
construções de Schreber que também não ignorou o uso particular que fez da linguagem
quando considerava suas expressões pertencentes a uma outra língua, a “língua
fundamental” (Grundsprache): “um alemão um tanto arcaico, mas ainda vigoroso” [...]
(apud LACAN, 1955-1956/1998, p. 544) e que diz respeito ao seu reconhecimento de
“uma língua falada pelo próprio Deus” (Schreber, 1903/1995, p.37).
187
A glossolalia, este caráter inventivo de palavras, frases e até mesmo uma nova
língua, remete à reconstrução da catástrofe como destacada por Freud em sua análise das
Memórias de um paciente dos nervos:
A atitude do nosso doente em relação a Deus é tão singular e cheia de contradições, que é
preciso haver muita confiança para se manter a expectativa de achar “método” nessa
“loucura”. Com o auxílio das declarações existentes nas Memórias, devemos buscar
orientação mais precisa sobre o sistema teológico-psicológico do dr. Schreber e apresentar
os seus pontos de vista sobre os nervos, a beatitude, a hierarquia divina e os atributos de
Deus, em sua aparente (delirante) conexão. Em todos os pontos da teoria nota-se a curiosa
mistura de banalidade e inteligência, de elementos tomados de empréstimos e originais.
A alma humana se acha contida nos nervos do corpo, que devem ser imaginados como
estruturas de sutileza extraordinária – comparáveis aos fios de costura mais sutis. Alguns
desses nervos são adequados apenas para receber percepções sensoriais, e outros (os nervos
do entendimento) operam tudo o que é psíquico, sendo que cada nervo do entendimento
representa toda a individualidade espiritual de uma pessoa e o maior ou menor número de
nervos do entendimento influencia apenas no lapso de tempo durante o qual as impressões
podem ser conservadas.
Finda a obra da criação, Deus retirou-se para uma distância enorme (pp.11,252) e, em geral,
abandonou o mundo as suas próprias leis. Limitou-se a atrair até Ele as almas dos que
morrem. Apenas de modo excepcional quis comunicar-se com alguns seres humanos
altamente dotados ou intervir com um milagre nos destinos do mundo. Apenas depois da
morte, segundo a Ordem do Mundo, há um relacionamento regular entre Deus e as almas
humanas. Quando uma pessoa morre, as partes de sua alma (nervos) são submetidas a um
processo de purificação, para serem finalmente reintegradas a Deus, como “vestíbulos do
céu”. Assim é formado um eterno ciclo de coisas, que subjaz à Ordem do Mundo (p.19).
Criando algo, Deus aliena parte de si mesmo, dá uma parte de seus nervos uma forma
alterada. A perda daí resultante é compensada quando, após centenas e milhares de anos, os
nevos beatificados dos mortos são novamente juntados a Ele como “vestíbulos do céu”
(1911/2010, p. 29-31).
Ainda, com relação à invenção de uma língua, acompanhamos com James Joyce
em Finnegans Wake uma reinvenção de certas estruturas linguísticas a partir da língua
materna, o que traz como consequência a dificuldade e até a impossibilidade de traduzir
sua obra, tal como ocorre com a tradução do texto schreberiano. Haroldo de Campos
também comenta algumas invenções linguísticas de Lacan, como é o caso, da expressão
“alíngua”:
188
Do nascimento à idade escolar, temos aí um percurso que a voz parental matricia, que inclui
cantigas, narrativas e jogos linguageiros cujas origens filogenéticas se perdem nos tempos,
mas que em tempos de boa maternância, em geral, retornam com delicadeza (BELINTANE,
2008, p.17).
Por outro lado, com Barthes, aprendemos que há uma escrita que acontece com a
repetição, algo da ordem pulsional, que nunca vai ser inscrito no corpo e que por isso
mesmo insiste em repetir. Nas linhas de seus escritos em O prazer do texto, ele insinua a
articulação do corpo e da língua:
Parece que os eruditos árabes, falando do texto, empregam esta expressão admirável: o
corpo certo. Que corpo? Temos muitos; o corpo dos anatomistas e dos fisiologistas; aquele
189
que a ciência vê ou de que fala: é o texto dos gramáticos, dos críticos, dos comentadores,
filólogos (é o fenotexto). Mas nós temos também um corpo de fruição feito unicamente de
relações eróticas, sem qualquer relação com o primeiro: é um outro corte, uma outra
nomeação; do mesmo modo o texto: ele não é senão a lista aberta dos jogos de linguagem
(esses fogos vivos, intermitentes, esses traços vagabundos dispostos no texto como
sementes e que substituem vantajosamente para nós as seminas aeternitatis, os zopyra, as
noções comuns, as assunções fundamentais da antiga filosofia). O texto tem uma forma
humana, é uma figura, um anagrama do corpo? Sim, mas de nosso corpo erótico.
O prazer do texto seria irredutível a seu funcionamento gramatical (fenotextual), como o
prazer do corpo é irredutível à necessidade fisiológica. O prazer do texto é esse momento
em que o meu corpo vai seguir suas próprias idéias – pois meu corpo não tem as mesmas
idéias que eu (2010, p. 23-24).
Daí encontramos sua série: “lábios língua – voz – falar / cantar / frontal / supercílio /
clavicular / artéria / coração da pressão / o sangue nas virilhas / as amídalas / tosse / veias /
cintura-tórax / de estrutura / hematomas / aspecto masculino / garganta grita.” A
reconstrução do dicionário do corpo com as palavras, ou melhor, de um corpo simbólico, é
necessária para que o sujeito tenha um corpo e para que este funcione como tal, ou seja,
para que ele não seja um amontoado de órgãos dispersos sem corpo. Podemos completar a
frase de Bispo: Preciso destas palavras... para construir um corpo. Escrita corporal. Aqui se
32
(apud HIDALGO, 2011, p. 11)
190
particulariza não propriamente a língua do órgão, mas sim a escrita do corpo. Neste
procedimento de escrever o corpo, o sujeito da esquizofrenia faz sua tentativa de entrar
num discurso para sair do autismo do corpo sem Outro (2006, p. 86).
O rapaz que se descobriu agente secreto, também descobriu a escrita, por outra
via. Ao compor letras de música ou mesmo quando altera as letras já existentes, fazendo
uma espécie de correção, passa a usufruir desta língua somente sua. Também quando
arriscava tocar suas músicas no violão ou no teclado, dizia “fazer previsões
meteorológicas incríveis”. Por outro lado, também era convicto de que algumas bandas
famosas introduziam o seu nome no meio das letras de suas canções - bastava a palavra
ter uma sonoridade semelhante ao seu nome para que evidenciasse tal fato - ; sentia-se
prestigiado, uma espécie de reconhecimento de seu trabalho pelos artistas. Em uma de
suas canções, o grupo The Beatles faz referência ao seu nome, designando-o “superstar”,
elogio que o leva a crer que é um “líder” da comunidade tecnológica.
Se as escritas de Bispo não foram com lápis e sim com linha e agulha, quer dizer,
se o suporte utilizado por ele não fora papel, mas principalmente panôs, provavelmente
tinha uma intencionalidade nas escolhas destes materiais, algo a que não temos acesso.
Entretanto, em contato com o conjunto de suas produções, constatamos que ele fez com
que cada letra bordada ganhasse relevo no tecido, transformasse em matéria.
Curiosamente, o seu gesto, aponta, mesmo sem querer, para a etimologia da palavra, já
que como diz Barthes:
Texto quer dizer tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um
produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o
sentido (a verdade), nos acentuamos agora, no tecido, a ideia gerativa de que o texto se faz,
se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo, perdido neste tecido – nesta textura – o
sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções
construtivas de sua teia. Se gostássemos dos neologismos, poderíamos definir a teoria do
texto como uma hifologia (hyphos é o tecido e a teia de aranha) (2010, p. 74-75).
As virgens vem
Em cardume
A mim33
Nesta mesma linha, foi possível acompanhar ao longo do texto que o Agente
Secreto passou a designar-se: “G-Cristo” ou “Guy (rapaz) Manoel Homem de Deus”, um
produto do “Sistema” que a tudo controla e comanda, o “Sistema Computacional
Gigantesco Biônico”, que age como se fosse Deus, portanto, na sua língua, “Sistema” e
“Deus” são sinônimos. Resta lembrar, nessas linhas finais, que, agora, não mais
submetido a uma peça desta “grande máquina”, arrisca dizer que é quase um “super-
herói”, porém, um agente que não age, ou melhor, que não precisa agir. Se for o caso de
pensar em um desfecho para este caso, mesmo que circunstancial, dá para dizer que, por
estar sustentado em um delírio estruturado, estas suas invenções de nomes e suas
respectivas funções – “doutor-doente”, “agente secreto”, “super-herói”, “líder”,
33
(apud HIDALGO, 2011, p.59)
192
“superstar”, “homem de Deus” - estão permeadas pela atribuição fálica. Para Lacan, na
psicose seria preciso extrair do campo do Outro o gozo excessivo que invade o sujeito e,
nesse sentido, “a solução, enquanto trabalho de estabilização na psicose, poderia se valer
de diferentes expedientes, isolados ou conjugados, tais como ato, obra, metáfora delirante,
identificação, transferência” (GUERRA, 2010, p.67).
Ainda nesta trilha, mesmo “não precisando agir”, o rapaz tem experimentado,
frequentemente, emitir conselhos aos outros: afinal, “aconselhar é, pela transmissão da
palavra a um semelhante, um modo de fazer um bem, importante para os heróis ou para
os que se dizem religiosos”. Lembremos que, como assinalado por Freud, “o juiz-
presidente Schreber fora, nos tempos saudáveis, um cético em coisas de religião” (2010,
p. 33), também o rapaz declara que, na maior parte de sua vida, “foi socialista e ateu,
nunca deu importância à fé religiosa”. Posteriormente, essa possibilidade de laço social
realizado com a comunidade católica permite que os seus endereçamentos de textos que
prescrevem, como um doutor – o “doutor-doente”-, receitas e passe a ordenar, por sua
vez, fazeres. Apesar de se dizer “católico apostólico romano”, é na situação clínica,
atravessada pela transferência que, com estas palavras, aconselha-me:
“Não fale de Deus às crianças, não antecipe à infância este ser que tudo sabe e
que tudo vê”.
193
34
Óleo, verniz, folha de chumbo, fio de chumbo e pó sobre dois painéis de vidro montados em molduras de
alumínio, madeira e aço.
35
Raymond Roussel (1877-1933), poeta e ator, um dos precursores do surrealismo.
195
ressoa com o trabalho dos sonhos36 introduzido por Freud, quando refere que o aspecto
pictórico inerente ao sonho esconde a sua verdadeira estruturação de rébus, quer dizer, de
quebra-cabeças feito de figuras, no qual as imagens têm valor de significante (JORGE,
2011).
O extenso título enigmático que dá nome à obra “A noiva despida pelos seus
celibatários, mesmo” pode simplesmente ser designado como “O grande vidro”; dizem
que “está na fronteira da modernidade que agoniza e o novo que começa e ainda não tem
forma” (PAZ, 2008, p.51) Em seu comentário sobre este título, Octavio Paz escreve que:
Em primeiro lugar mise à nu não quer dizer exatamente despida ou desvestida; é uma
expressão muito mais energética do que nosso particípio: posta a nu, ex-posta. Impossível
não associá-la com um ato público ou um rito: o teatro (mise-en-scène), a execução capital
(mise à morte). Usar a palavra solteiro (célibataire) em lugar da que pareceria normal,
noivo ou pretendente, indica uma separação infranqueável entre o feminino e o masculino:
o solteiro não é nem sequer pretendente e a noiva não será nunca desposada. O plural de
solteiro e o possessivo seus acentua a inferioridade dos machos: mais do que a poliandria
fazem pensar em um rebanho. O advérbio même – ainda, também, inclusive, até, etc. –
sublinha a ação e converte-a em uma verdadeira exposição, no sentido litúrgico e também
no mundano. No título já estão presentes todos os elementos da obra: o mítico ou religioso,
o popular de barraca ou tenda de feira, o erótico ou pseudotécnico ou irônico (2008, p.31-
32).
36
A noção trabalho do sonho, introduzida por Freud, refere-se ao trabalho, efetuado no inconsciente, de
transformação do conteúdo latente em conteúdo manifesto; cujas leis sintáticas foram isoladas por ele no
trabalho de condensação e de deslocamento (Jorge, 2011).
196
Assim, como em seu último trabalho: “Dados: 1°- A Queda de Água, 2°- O Gás de
Iluminação” (1946-1966), trata-se de um jogo de ver e não ver. Esta obra, que fora
concebida em grande segredo e que se arrastou por um período de 20 anos, apresenta uma
parede com duas velhas portas de madeira, sem maçaneta. Ao aproximar-se delas, o
espectador verá que há dois buracos aproximadamente à altura de seus olhos; o olhar
através dos orifícios vai permitir ao observador deparar-se com um corpo feminino nu,
sugerindo que ele fora abandonado numa clareira (MINK, 2000). A figura feminina é
assim apresentada: com o corpo coberto de couro fino para dar à pele uma aparência tão
real quanto possível, encontra-se deitada de costas, sem deixar aparecer o rosto, apenas
uma pequena mecha dos cabelos, tem o seu tronco estendido e suas pernas escancaradas,
Duchamp dispensou a representação dos pelos pubianos e dos órgãos genitais e, apesar
disso, não há dúvida que se trate de uma mulher. É possível passar por esta obra sem vê-
la, já que se trata de uma porta que não se abre e somente se vê a imagem descrita pelo
buraco. A existência da obra acontece na presença do olhar do espectador, que é sempre
um recorte.
Duchamp vai dizer que quem olha faz o quadro e Lacan, em um de seus
seminários, também diz: “Para começar, preciso insistir nisso – no campo escópico, o
olhar está do lado de fora, sou olhado, quer dizer, sou quadro” (1964/2008, p.107). Ao
introduzir o Outro como olhar, Lacan vai fazer a distinção entre o olho, o órgão da visão,
e sua função; “ele aponta que o olhar não se refere à imagem, ao reflexo no espelho, mas
justamente ao que não possui reflexibilidade, ao furo do espelho” (MASAGÃO, 2012,
p.151). Desse modo, o olhar inscreve-se como objeto da pulsão37.
Nesta mesma vertente, Marco Antônio Coutinho Jorge, a partir de Freud, afirma
que, no que diz respeito à sexualidade, as mudanças impostas à espécie humana na
decorrência da aquisição da postura ereta foram tantas e tão profundas que o olhar passou
37
Como lembram Roudinesco e Plon (1998), além das fezes e do seio, Lacan introduziu dois novos objetos
pulsionais: a voz e o olhar.
197
a ter uma primazia radical na função das trocas sexuais. Assim, ele afirma que a pulsão
para Lacan é, essencialmente escópica, já que é característico da pulsão insatisfazer-se.
Lacan deu grande ênfase a essa indicação freudiana afirmando que na satisfação da pulsão
entra em jogo a categoria do impossível e que é precisamente nesse impossível, o real em
jogo na pulsão, que reside sua característica mais primordial (JORGE, 2011, p.55).
[...] não manifesta nem relata o nascimento de uma obra (ou de alguma coisa que, com a
genialidade ou com a chance, teria podido tornar-se uma obra); ela designa a forma vazia
de onde vem essa obra, quer dizer o lugar de onde ela não cessa de estar ausente, no qual
jamais a encontramos porque jamais ela aí se encontrou. Lá, nessa região pálida, sob essa
camada sensível essencial, desvela-se a incompatibilidade gemelar da obra com a loucura; é
200
o ponto cego da possibilidade de cada uma e de sua exclusão mútua (FOUCAULT, 1999, p.
197).
E se essa cultura tem o gosto da história, ela se lembrará, de fato, que Nietzsche, ao se
tornar louco, proclamou (foi em 1887) que ele era a verdade (porque sou tão erudito,
porque tenho conhecimento tão vasto, porque escrevo tão bons livros, porque sou uma
fatalidade); e, menos de 50 anos depois, Roussel, na véspera de seu suicídio, escreveu em
Coment j’ai écrit certains de mes livres, o relato, germinado sistematicamente, de sua
loucura e de seus procedimentos de escrita. E surpreender-se-ão, sem dúvida nenhuma, que
nós tenhamos podido reconhecer um tão estranho parentesco entre o que, por muito tempo,
foi temido como grito, e que, por muito tempo, foi esperado como canto (FOUCAULT,
1999, p.198).
Apesar de, em certos momentos, a dissertação ter uma forte conotação do domínio
das artes, evidenciando narrativas que se estenderam pelas trajetórias de alguns artistas,
por vezes detalhadas, de modo a situá-los no campo das artes da modernidade e
contemporânea, este trabalho também fala de clínica. Aliás, é, sobretudo, da clínica que
ele procurou falar. Se Freud, no início do século passado, já chamou a atenção para a
estética, constatando que não era o foco dos clínicos de sua época, também mostrou
vivamente o seu interesse pelas artes - a arte da tradição e a literatura - que atravessaram
sobremaneira a sua criação teórica e científica. Além disso, curiosamente, a escuta, seu
“método” de trabalho psicanalítico, supõe que há, para o clínico, uma dimensão de
apreciação estética do que dizem aqueles que, naquela situação, são seus pacientes. Seria
um modo de acolhê-los em algum momento deste percurso de “ser inventado, hora após
hora, e não ficar pronta a nossa edição convincente” (DRUMMOND apud LIMA, 2009,
p. 227).
Para tanto, o resultado do esforço desta pesquisa para que não ocorresse
desmembrada da clínica aponta para alguns efeitos, dos quais se destaca que o trabalho
clínico conduz-se como uma maquinaria. Em um de seus seminários Lacan refere:
Não pensem que eu estou brincando. Quando vocês constroem uma fábrica em algum lugar,
naturalmente recolhem energia, e podem mesmo acumulá-la. Pois bem os aparelhos que se
põe em ação para que essas espécies de turbinas funcionem até que se possa meter a energia
em recipientes, tais aparelhos são fabricados com a mesma lógica de que eu estou falando,
ou seja, a função do significante. Hoje em dia uma máquina não tem nada a ver com uma
ferramenta. Não há qualquer genealogia da pá à turbina. A prova disso é que vocês podem
legitimamente chamar de máquina um desenhinho que fizeram neste papel. Com quase
nada é suficiente. Basta simplesmente que tenham uma tinta que seja condutora para que
isso seja uma máquina muito eficaz. E por isso não haveria de ser condutora, dado que a
marca já é em si mesma, condutora de voluptuosidade? (1992, p.50-51).
Quando se trabalha, a solidão é, inevitavelmente, absoluta. Não se pode fazer escola, nem
fazer parte de uma escola. Só há trabalho clandestino. Só que é uma solidão extremamente
povoada. Não povoada de sonhos, fantasias ou projetos, mas de encontros. Um encontro é
talvez a mesma coisa que um devir ou núpcias. É do fundo dessa solidão que se pode fazer
202
qualquer encontro. Encontram-se pessoas (e às vezes sem as conhecer nem jamais tê-las
visto), mas também movimentos, ideias, acontecimentos, entidades (DELEUZE; PARNET,
1998, p. 2).
Enfim, Marcel Duchamp fez texto com o seu vidro “A Noiva e os seus
Celibatários, mesmo” - obra considerada inacabada porque em perpétuo acabamento -
também fez uma máquina; aliás, é com esta expressão que ele a define. Se esta
dissertação quis expressar-se aludindo à atmosfera dadaísta e surrealista que insiste na
arte não apartada da vida, conforme a promessa da introdução, é favorável terminá-la,
mesmo que provisoriamente, na companhia deste que elegeu o gesto como o
desencadeador das operações artísticas, que “[...] em vez de pintar corpos radiantes e
perecíveis, pintou máquinas opacas e rangentes” (PAZ, 2008, p. 46).
203
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