Dissertação Ipub
Dissertação Ipub
Dissertação Ipub
RIO DE JANEIRO
2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Orientadora:
Professora Dr.ª Maria Paula Cerqueira Gomes
Rio de Janeiro
2013
AZEVEDO, Flávia Fasciotti Macedo
O Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental:
uma reflexão sobre ensino, transmissão e formação em serviço/
Flávia Fasciotti Macedo Azevedo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.
xi, 171f.
Aprovada em 03/06/2013.
__________________________________________________
Professora Dr.ª Maria Paula Cerqueira Gomes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
__________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Tavares Cavalcanti
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Laura Camargo Macruz Feuerwerker
Universidade de São Paulo
A todos que acreditam na formação como uma
possibilidade de transformação de si e do mundo, na busca
de novas formas de ser e de promover o cuidado em
Saúde.
AGRADECIMENTOS
A Deus, que, por caminhos tortuosos, tem operado em minha vida, ensinando-me a ser
melhor, a não desistir nunca diante das inúmeras adversidades, mostrando-me, a cada vez, que
a vida é muito maior do que algumas tolas certezas de menina.
À minha mãe, melhor pessoa do mundo, generosa e querida por todos, professora encantada
com o mundo da escola, a quem devo o amor aos estudos, à importância do trabalho, o
respeito às pessoas e o dom das habilidades manuais.
Ao meu pai, que, com seu jeito atento, sempre torceu por minhas conquistas, certo de eu ter
capacidade para seguir em frente.
À irmã querida, única e especial, pela paciência, companheirismo, amizade. Sua presença é
fundamental em minha vida.
À Prof.ª Maria Paula Cerqueira Gomes, muito mais que orientadora, agradeço pela imensa
generosidade, gentileza, confiança, amizade, carinho, respeito, apoio... sem fim. Pessoa que
não para de mudar a minha vida e que me deu o que não se dá: a vontade de saber, e o
caminho para conseguir.
Aos companheiros de caminhada, José Carlos Lima, Leila Vianna e Rita Louzada, que
acreditam na formação de pessoas como a capacidade para construir um mundo melhor.
Trabalhar com vocês é uma honra e tem sido a melhor experiência da minha vida. Obrigada
pelo respeito, pela tolerância e pela amizade.
Aos amigos da vida, Camila, Simone, Neila, Ana Paula, Daniel e Marcela, que me
acompanham nesta trajetória, perto o suficiente para me amparar nos momentos difíceis e
para celebrar a vida nos dias de festa.
Aos meus amigos de mestrado, Clarisse Rinaldi, Allan Dias, Luciana Scapin e Hélio Rocha,
obrigada pelas mensagens, trocas, dicas e piadas descontraídas, sem as quais esse processo
não teria graça.
Aos professores da Linha de Pesquisa Estudo da formação do profissional de saúde no
contexto das inovações curriculares, da capacitação pedagógica de professores e da integração
ensino-serviço na rede SUS, Maria Tavares, Octávio Domont e Alícia Navarro, pelo desafio
de discutir educação como tema fundamental ao campo da saúde.
Aos colegas da disciplina Educação em Saúde, em especial, a José Inácio Motta, pela
disponibilidade e troca, instigando à reflexão permanente.
À Eliana Granja, revisora atenta, que cuidou do meu texto com grande delicadeza.
Ao IPUB, que me acolheu nesta importante etapa da minha vida profissional e acadêmica.
Um caminho sem volta, que segue no rumo da formação como transformação, de uma
construção em contínuo devir, de um aprendizado que não cabe em um livro, de uma teoria
imbricada na prática, de uma educação inseparável da saúde, de uma formação para o trabalho
e para a vida.
Descubro aqui, sem dúvida, outro mundo. Um mundo que foi se apresentando, a cada
dia, no trabalho junto aos alunos, aos colegas e à instituição e que, de alguma maneira, tem se
atualizado, de forma intensa, em todas as minhas outras inserções profissionais e na vida
pessoal. Sem dúvida, hoje me vejo outra pessoa, infinitamente diferente da que começou esse
trabalho e que não para de se transformar a cada dia, a cada minuto.
Aqui está o trabalho final, provisório, pois o trabalho de descoberta não acaba com a
conclusão desta dissertação: ele incide e insiste na minha vida, apontando para novos lugares,
possibilitando a vivência de novos encontros, deixando que as pequenas coisas da existência
possam se tornar, de fato, acontecimentos.
Tantas outras coisas a construir e a produzir. Tantas outras coisas a fazer... a viver...
em uma busca profissional, acadêmica e de produção de vida sem fim.
1
NIETZSCHE, F. W. Escritos sobre educação. Rio de Janeiro: Ed. PUC‐Rio; São Paulo: Loyola, 2003, p.141.
RESUMO
AZEVEDO, Flávia Fasciotti Macedo. Programa de Residência Multiprofissional em
Saúde Mental: Uma reflexão sobre ensino, transmissão e formação em serviço. Rio de
Janeiro, 2013. Dissertação (Mestrado em Psiquiatria e Saúde Mental) - Centro de Ciências da
Saúde, Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013.
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 12
1. EM BUSCA DE NOVOS REFERENCIAIS EPISTEMOLÓGICOS ................................ 25
1.1 Metodologia e procedimentos metodológicos da pesquisa ......................................... 33
2. EDUCAÇÃO E SAÚDE: AÇÕES E INTER-RELAÇÕES .............................................. 41
2.1 Transformações no campo da Educação .................................................................... 45
2.1.1- O cotidiano e o acontecimento no campo da Educação ....................................... 52
2.2 Transformações no campo da Saúde e da formação profissional ................................ 59
2.2.1- Transformações da assistência em Saúde Mental...................................................68
2.3 Educação em Saúde e as Residências Multiprofissionais ........................................... 71
3. APRESENTANDO O PROGRAMA DE RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM
SAÚDE MENTAL DO IPUB/UFRJ .................................................................................... 78
4. CARTOGRAFIA DOS MOVIMENTOS NO PROGRAMA DE RESIDÊNCIA
MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE MENTAL DO IPUB/UFRJ ..................................... 85
4.1 Primeiro Movimento: O Projeto Político Pedagógico em ato ...................................... 89
4.1.1- Operadores do cuidado ....................................................................................... 99
4.1.2 Dispositivos pedagógicos................................................................................... 106
4.1.2.1 Espaço de Educação Permanente e construção do conhecimento reflexivo . 109
4.1.2.2 Tutoria e construção do Projeto Pedagógico Individual (PPI) ..................... 116
4.1.2.3 Portfólio reflexivo: cada um narrando a sua história ................................... 120
4.2 Segundo Movimento: A formação de todos e de cada um ........................................ 129
4.3 Terceiro Movimento: A arte de fazer “furo no muro” .............................................. 139
PROVISÓRIAS CONCLUSÕES ....................................................................................... 149
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 157
ANEXOS ........................................................................................................................... 167
ANEXO 1. TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO .................... 167
ANEXO 2. PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP.............................................. 169
INTRODUÇÃO
O meu interesse pelo tema da Educação em Saúde teve início antes mesmo do curso
de mestrado. As primeiras reflexões sobre o tema da formação emergiram da experiência
advinda do acompanhamento de estagiários, quando fui coordenadora de um ambulatório de
Saúde Mental no município de Niterói/Rio de Janeiro, no período de 2005 a 2009.
2
LISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
3
As dicotomias presentes na formação do profissional de Saúde serão trabalhadas no capítulo 2, item 2.2.
13
Orientada e invadida nesse começo por uma concepção clássica de educação, algo que
forma, dá forma e em-forma, como um recurso metodológico fundado em pesquisa
quantitativa, talvez fosse capaz de cumprir a função de responder a esses questionamentos,
apresentando dados concretos e mais objetivos sobre as ações formativas de determinada
proposta pedagógica. Uma visada metodológica desse tipo também seria importante e
igualmente desafiadora.
14
Questões cujas respostas, embora importantes, não eram suficientes para a sustentação
de uma proposta pedagógica transformadora.
Assim, chega-se ao ponto central e fio condutor dessa pesquisa, qual seja: sustentar
uma direção investigativa de se ater a processos. Essa nova dimensão colocou a necessidade
de reconfigurar a ideia inicial mediante a transformação de conceitos e a construção de novas
descobertas, a começar pela própria pesquisadora.
15
O objetivo principal foi o de manter uma condução investigativa congruente com uma
concepção de aprendizagem vivida como experiência, acometida por sujeitos atuantes no
mundo da vida e dos serviços de Saúde e imersos nas relações de trabalho.
Por sua vez, sustenta-se que o exercício do trabalho constitui, em si, um processo de
intervenção na realidade institucional e educativa em que os atores estão inseridos. Na medida
em que ao fazer, o mundo se altera, produz-se reflexão, promovendo a criação de novos
mundos e de formas inovadoras de fazer Saúde.
Freire (1996, 2011), Gadotti (1996, 2000), Luckesi (2000, 2005) e Perrenoud (1992,
1999a, 1999b, 2000, 2002), dentre outros, mostram novas concepções de educação, nova
relação professor-aluno, novos conceitos de avaliação, novas formas de construção do
conhecimento e novas metodologias de ensino-aprendizagem, possibilitando a construção de
um campo inovador de investigação: a Educação em Saúde, como processo que difere da
4
O conceito de competência, sustentado por este estudo, será trabalhado no capítulo 3, dedicado às
transformações no campo da educação e à incorporação de novos conceitos e metodologias de ensino-
aprendizagem.
5
Entendemos competência de forma ampliada, com a inter-relação das dimensões afetiva, cognitivas e
relacionais, que se efetivam em ato no fazer profissional. Difere da noção de competência como processo de
transmissão de conhecimentos padronizados para a ascensão a comportamentos ideais. Alguns autores ajudam
no desenvolvimento desse conceito ao longo da dissertação, como: Perrenoud (1992; 1998; 2000; 2002; [s/d]),
Gadotti (1996; 2000) e Larrosa (2002a; 2003).
16
6
As teorias pós-críticas da educação surgem na transição do século XX ao XXI e se baseiam na hipótese da
construção discursiva em oposição à concepção de ideologia, que sustenta as teorias críticas. Valorizam a
diversidade e a democratização cultural. Silva, T.T. (2011) trabalha exaustivamente as teorias pós-críticas,
diferenciando-as das teorias críticas e articulando-as com o pensamento pós-moderno e com a corrente de
pensamento pós-estruturalista.
7
Pós-estruturalismo é uma corrente de pensamento que sustenta a relativização das verdades. Elas passam a ser
construídas socialmente, imersas em relações de poder e concebidas a partir dos processos linguísticos de
significação. Principais autores dessa corrente são: Foucault, Derrida e Deleuze (VEIGA-NETO, 2007).
8
A pós-modernidade se define pela superação de uma visão de mundo sustentada pela modernidade
tecnocrática, positivista e racionalista. Sustenta a ideia de mudança de paradigma ao criticar os padrões
considerados rígidos da modernidade. Questiona o poder totalizante das grandes narrativas modernas. Põe em
cheque a concepção de verdade absoluta, apontando para a primazia do discurso sobre a realidade. Autores como
Bauman (1998, 2001) e Giddens (1991) discutem amplamente esse conceito.
9
O Movimento Institucionalista define uma série de teorias, de práticas e experiências que têm as premissas da
autogestão e da autoanálise com o objetivo de impulsionar experiências coletivas criadoras de novos saberes (cf.
BAREMBLITT, 1992).
17
almejem maior sintonia entre método e objeto de pesquisa (Passos et al., 2010). A opção pela
construção da pesquisa cartográfica feita nesta Dissertação, pressupõe a relação pesquisador-
campo de pesquisa, reconhecendo que o próprio ato do pesquisador interfere no campo ao
produzir conhecimento (MERHY, 2004).
Aposta-se que a aquisição de conhecimento pode ser analisada por meio das reflexões
e dos desdobramentos das questões provocadas pelo mundo do trabalho. Nessa direção, a
10
Aqui nos referimos a um entendimento de mundo não cartesiano, sustentando a coexistência de diferentes
lógicas, que disputam territórios e a implantação de projetos de mundo diversos. Práticas curativas centradas em
trabalho morto e fundamentadas em tecnologias dura e leve-dura, coexistem com práticas relacionais, de forma
que ambas componham o universo do trabalho em Saúde (Merhy, 2000, 2009). No campo da Saúde Mental
somam-se ainda práticas de cuidado manicomiais, orientadas pela remissão de sintomas e ajuste social, muitas
vezes se interpõe com compreensões mais libertadoras e menos tutelares (Costa-Rosa, 2000). Lógicas
antagônicas coexistem na cena das ações de cuidado em Saúde.
11
Conceito apresentado por Gilles Deleuze (1982) em Lógica do Sentido, onde faz considerações acerca do
acontecimento como evento imprevisto, paradoxal. Diante da narrativa, a busca é a tentativa de construção de
novos significados para dar conta do que lhe acontece.
19
Nesta etapa, buscou-se delimitar o modo como o Projeto Político Pedagógico (PPP,
2010), previsto e escrito, se operacionaliza em ato, dando visibilidade aos atravessamentos e
inter-relações em jogo, que fazem deste, um instrumento vivo.
12
Os ‘perceptos’ e os ‘afectos’ são termos apresentados por Deleuze e Guattari como permitindo aberturas,
vibrações e enlaces entre os seres humanos. Seriam pacotes de transformação em desenvolvimento, ao
possibilitarem novos padrões de relação entre as pessoas. Os ‘perceptos’, junto com os ‘afectos’ e os conceitos
conformariam formas de resistir à banalidade da vida. ‘Afectos’ são devires, isto é, transformações, porque
operam modificações na nossa sensibilidade, na visão e nas opiniões. Como exemplo dados pelos autores, a
função do artista é arrancar ‘perceptos’ das percepções e ‘afectos’ das emoções, motivo pelo qual os ‘afectos’ e
os ‘perceptos’ transbordam qualquer vivido: “O que se conserva, a coisa ou obra de arte, é um bloco de
sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos. Os perceptos não são mais percepções, são
independentes do estado daqueles que os experimentam; os afetos não são mais sentimentos ou afecções,
transbordam à força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afectos, são seres que
valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. Existem na ausência do homem, podemos dizer, porque o
homem, tal como ele é fixado na pedra, sobre a tela ou ao longo das palavras, é ele próprio um composto de
perceptos e afectos. A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si.” (DELEUZE e
GUATTARI, 1992, p.213).
“(…) Os perceptos não são percepções, são pacotes de sensações e de relações que sobrevivem àqueles que os
vivenciam. Os afectos não são sentimentos, são devires que transbordam aquele que passa por eles (tornando-se
outro). (…) O afecto, o percepto e o conceito são três potências inseparáveis, potências que vão da arte à
filosofia e vice-versa. (…): o ritornelo implica as três potências.” (DELEUZE, 2004, p.171).
13
Método de pesquisa fundamentado nas ideias de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Este tem sido um método
cada vez mais utilizado em pesquisas que se debruçam sobre o estudo da subjetividade (ROMAGNOLI, 2009).
14
Embora as atividades pedagógicas fossem abertas à participação dos preceptores, no período de realização da
pesquisa não houve a presença de nenhum preceptor nestes espaços.
20
O processamento dos dados tomou como base sua inter-relação com a direção presente
no Projeto Político Pedagógico do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde
Mental do IPUB/UFRJ e pelas políticas de Educação em Saúde e Saúde Mental no âmbito do
SUS.
A partir dessas reflexões é possível afirmar que inúmeras mudanças estão em jogo
nesta pesquisa. Transformação de um método tradicional de ensino, ainda hegemônico no
campo da Educação e no da Educação em Saúde, desordenando o lugar de quem ensina e o de
quem aprende. Transformação da relação entre teoria e prática e da relação estudo-trabalho
com a aposta de que o mundo do trabalho produz conhecimento, não sendo mero campo
prático de aplicação de conteúdos adquiridos previamente. Transformação da própria noção
de competência conforme indicada pelas concepções behavioristas como habilidades
estanques a serem desenvolvidas. Transformação na forma de se efetuar pesquisa, não
orientada por modelos de quantificação da realidade em tabelas e gráficos e, em
consequência, transformação na relação pesquisador-objeto, pondo em cheque o conceito de
neutralidade, muito caro às ciências naturais.15
15
Conforme apresentado por Minayo (1992) em O desafio do conhecimento; por Santos (2006; 2010) em
Conhecimento prudente para uma vida decente e em Um discurso sobre as ciências. São fundamentais
ainda as contribuições de Passos et al. (2010), em Pistas do método da cartografia; de Kastrup (1999), em A
invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição; de Kastrup, Tedesco
e Passos (2008), em Políticas da cognição; e de Merhy (2004), em O conhecer militante do sujeito implicado:
o desafio em reconhecê-lo como um saber válido.
21
Santos (2010), Silva (2011), Passos et al. (2010) e Minayo (2011) dão a conhecer a
reflexão, que, junto com Merhy (2004), aborda a construção do conhecimento realizado pelo
sujeito envolvido no processo da pesquisa, uma vez que, nesta investigação, a pesquisadora se
encontra mais do que interessada em seus resultados, por estar diretamente comprometida.
16
O método cartográfico orienta um trabalho de pesquisa-intervenção, identificando o local em que se dará a
intervenção mais como plano onde vai ocorrer, do que como campo (PASSOS e BENEVIDES, 2000).
22
O PPP é instrumento que funciona como indicador da maneira como o curso dialoga
com as orientações para a formação tanto no campo da Educação quanto no da Saúde,
trazendo importantes elementos para a compreensão da dinâmica em jogo nessa experiência.
O segundo movimento tem como foco o processo de formação dos alunos. Nesta seção
são apresentados alguns núcleos temáticos, que aparecem por meio da construção de questões
de impasse, as quais mobilizam conteúdos, promovem reflexões, demarcam posicionamentos
e despertam afecções. São temas promovidos pelo trabalho, da mesma forma que disparam a
construção de respostas individuais e coletivas. Certas dificuldades e possibilidades de
movimento frente aos impasses clínicos e institucionais aparecem também.
23
Alguns efeitos puderam ser recolhidos, mudanças na realidade dos serviços, na vida
dos pacientes, na formação dos alunos. A formação, na medida em que produz a
aprendizagem para o exercício profissional, também dá lugar a diferentes modos de
subjetivação, a outras maneiras de compreender a saúde, favorecendo a constituição de um
novo sujeito atento à peculiaridade da clínica e comprometido com os princípios e diretrizes
do SUS (CECCIM e PINTO, 2007).
A inter-relação entre Educação, Saúde e Saúde Mental, aqui estabelecida, afina-se com
a proposta formadora analisada, ao mesmo tempo em que foram identificados impasses e
dificuldades na execução do programa e na aplicação de seus mecanismos pedagógicos,
demandando a revisão e a construção de novas estratégias, sem abrir mão do que é
inegociável: a sustentação de uma formação para o SUS.
Nesta pesquisa sustentamos que a aquisição de conhecimento pode ser analisada por
meio dos fazeres do mundo do trabalho. As intervenções e a possibilidade de construção de
narrativas sobre esse fazer tornam possíveis as identificações de processos educativos, de
processo de ensino-aprendizagem em ato na cena da experiência de vida.
A direção mais forte que esta pesquisa coloca, está fundamentada na radicalidade da
aposta de que todo processo do conhecimento acarreta uma transformação da realidade!
Esse fato comporta, desde o início, uma contradição, pois esta pesquisa se orientou por
referenciais diferentes dos previstos pelo campo das ciências naturais. Contudo, nas últimas
17
O Sistema de Avaliação da Pós-graduação foi implantado pela CAPES em 1976 e, desde então, vem
cumprindo papel de fundamental importância para o desenvolvimento da pós-graduação e da pesquisa científica
e tecnológica no Brasil. A CAPES conta atualmente com quarenta e oito Áreas de Avaliação. Disponível em:
<http://www.capes.gov.br/avaliacao/avaliacao-da-pos-graduacao>.
26
Questões em torno do lugar que essa pesquisa ocupa no mundo da ciência e aquelas
relativas ao envolvimento do pesquisador com o campo pesquisado colocavam em cheque,
durante certos momentos, o valor científico dessa produção.
Neste capítulo expomos as contribuições que importantes autores têm produzido para
a construção de novos referenciais epistemológicos, proporcionando um alargamento da
concepção de ciência e, consequentemente, do que pode ser incluído no âmbito científico.
Na busca pela opção metodológica que melhor pudesse contribuir para este processo
investigativo, encontramos importantes autores, como Morin, Santos, Passos e Barros,
Minayo e Merhy, na medida em que introduzem conceitos capazes de construir outros
modelos de conhecimento. Essas transformações na forma de conceber e de produzir ciência
possibilitam diferentes relações entre o sujeito que deseja conhecer e o objeto a ser conhecido,
segundo os novos paradigmas de nosso tempo.
Os autores citados acima têm-se ocupado, cada vez mais, em propor diferentes
métodos de análise das realidades. Instituem não apenas outras formas de construir
conhecimento, como propõem uma transformação no entendimento do que vem sendo
considerado científico, que é orientado pelo positivismo e sustentado pelas ciências naturais.
Conceitos como neutralidade, exterioridade e objetividade passam a ser relativizados e, em
outros momentos, desconstruídos no momento histórico denominado pós-modernidade por
muitos autores.
18
BRASIL, MEC-CAPES. Comunicado nº003/2012 - Área de Medicina II. Considerações sobre
multidisciplinaridade e a transdisciplinaridade na área. 05 de abril, 2012.
27
caminho para ascender à verdade, a qual teria valor absoluto nesse contexto. Em semelhante
forma de pensar não haveria lugar para o ruído nem para as mudanças, desconsiderando tudo
que não coubesse em suas explicações rígidas e estáticas (OLIVEIRA e SGARBI, 2008).
Há três séculos, o conhecimento científico não faz mais do que provar suas virtudes
de verificação e de descoberta em relação a todos os outros modos de
conhecimentos. É o conhecimento vivo que conduz a grande aventura da descoberta
do universo, da vida, do homem. (MORIN, 2000, p. 15-6)
Silva, T.T. (2011) introduz uma forma inovadora de pensar a ciência, que difere da
ciência positivista. Nesse contexto dá-se lugar a novas experiências, a inéditos métodos de
pesquisa que visam abarcar o mundo, considerando e incluindo toda a sua complexidade.
Nesse mundo complexo, interessa-nos o debruçar-se sobre os processos, sobre os
acontecimentos multirreferenciados, multideterminados.
28
Santos (2010) afirma que todo conhecimento é socialmente construído e que sua
objetividade não implica neutralidade. A contribuição desse estudioso chama a atenção para a
complexidade das condições sociológicas e psicológicas presentes em nossa capacidade de
elaborar perguntas sobre a realidade, de modo que a busca por respostas se torna um desafio.
O autor apresenta as principais reflexões que possibilitam o desenvolvimento de novo
paradigma científico, mais capaz de investigar dados não quantificáveis e impossíveis de
serem extraídos de sua complexidade.
(...) o método como caminho, ensaio gerativo e estratégia ‘para’ e ‘do’ pensamento.
O método como atividade pensante do sujeito vivente, não-abstrato. Um sujeito
capaz de aprender, inventar e criar ‘em’ e ‘durante’ o seu caminho. (MORIN et al.,
2003, p.18)
Essa forma de pensar se organiza de forma contrária a tudo o que antes estava
estabelecido no entendimento do que era considerado científico, isto é: o princípio da não
contradição, as concepções lineares de tempo e de causalidade, a validação empírica do
conhecimento e a divisão dos problemas em questões mais simples. Esses preceitos, mais do
que orientadores de métodos, constituíam a forma de organização do trabalho, a visão de
mundo dos homens de seu tempo (ESTRADA, 2009).
Em campo, onde a vida se dá, todos são invadidos pela complexidade da realidade e
das subjetividades, cujo conhecimento, enquanto portador da verdade, traz em si a capacidade
de previsibilidade e não é capaz de oferecer respostas à inusitada vida como ela é
(ROMAGNOLI, 2009).
Foucault (2000) tem o poder de nos inquietar e, de certa forma, forçar a nossa reflexão
quando afirma não haver universais capazes de dar conta do mundo. As verdades, teorias e
conceitos são instáveis, relativos, construídos e desconstruídos continuamente.
O Uno, o Todo, o Verdadeiro, o objeto, o sujeito, não são universais, mas processos
singulares, de unificação, de totalização, de verificação, de objetivação, de
subjetivação, imanentes a um determinado dispositivo. E ainda, cada dispositivo é
uma multiplicidade na qual operam determinados processos em devir, distintos
daqueles que operam em outro. (DELEUZE, 1999, p.4)
É imerso na complexidade da vida e dos processos de trabalho em saúde que vem a ser
possível assumir a postura epistemológica de produzir conhecimento a partir da experiência
cotidiana. Torna-se possível entender o conceito de cotidiano como um paradigma para várias
interrogações sobre o poder, as instituições e as representações sociais, afirmando seu lugar de
espaço-tempo na produção de conhecimento.
Com base nesse conceito existe uma longa série de debates, sobre o que é
conhecimento, como produzi-lo, quem está autorizado a fazê-lo, quais orientações são
30
Merhy (2004) nos ensina que não há pesquisa desinteressada nem pesquisador neutro.
Desta forma, é possível olhar para alguns movimentos e tomá-los em análise de dentro do
processo e, talvez, somente de dentro, ao mesmo tempo em que nos tomamos em análise na
qualidade de sujeitos sociais. Integramos o processo e, em função disso, não podemos dele ser
extraídos.
Merhy (2004) esclarece, ainda, que temos trabalhado com dois grandes caminhos
científicos para conformar os processos de investigação na Saúde Coletiva:
Foi na direção dessa reflexão acerca do campo das ciências que esta pesquisa se
construiu, sendo composta por várias etapas de construção metodológica. Na primeira,
detivemo-nos em ampla revisão bibliográfica sobre os temas da Educação e da Educação em
Saúde, com a identificação de autores e de conceitos fundamentais para o campo da formação
em Saúde, que foram decisivos na definição do desenho metodológico escolhido.
Diferente da etnografia, que se debruça sobre o rotineiro, sobre o que está previsto
(Rosaldo apud Bohes, 2000), a cartografia abarca a possibilidade de estudar a complexidade
do fenômeno, aproximando vida e pesquisa. Segundo Romagnoli (2009), a cartografia pode
34
Seguindo as indicações dos autores que embasam este estudo, “o imprevisto é o que
acontece”, pelo que esta pesquisa se lança ao encontro do que não está no papel e sim nos
acontecimentos da vida. Detém-se a experiência enquanto vivência ordinária, que entrelaça
sujeito e meio ambiente. Ela se caracteriza por um corte na continuidade e é isso que produz a
possibilidade de serem configurados novos possíveis (LANA e FRANÇA, 2008).
Neste aspecto, ao acompanhar o modo como os alunos têm conseguido lidar com as
situações do trabalho, a cartografia nos ajuda a registrar a relação dessa experiência de
enfrentamento com as soluções construídas e com o processo de formação dos alunos como
profissionais em Saúde Mental.
Esta pesquisa ocorreu nos espaços previstos para o curso, uma vez que, a fim de
manter a coerência interna de suas orientações teórico-metodológicas, não era pertinente
forjar novos espaços, criando uma situação avaliativa, a qual, em virtude de seu caráter de
artificialidade, poderia pôr em risco a opção metodológica realizada. O objetivo central da
pesquisa foi identificar processos e movimentos, mais do que atores individualizados,
analisando as gravações e as anotações da coleta de dados exclusivamente em seu conteúdo.
Importante destacar que toda e qualquer informação extraída dos espaços coletivos,
tutoriais ou do portfólio reflexivo tiveram total garantia de anonimato, pois o importante, para
a análise, foi o processo, o conteúdo em si, não sendo relevante a pessoa física, emissora da
informação.
19
Todos os alunos/preceptores/tutores foram esclarecidos quanto à realização da pesquisa, tendo a possibilidade
tanto de se recusar a dela participar, quanto de desistir de participar em qualquer tempo durante sua realização.
Neste caso, a recusa em participar como sujeito da pesquisa poderia ser exercida de duas formas: participar dos
espaços coletivos e ter as suas falas e intervenções desconsideradas, isto é, não incluídas na análise dos dados; ou
se recusar a participar dos espaços coletivos. No segundo caso, por ser aluno, as reflexões sobre o trabalho e sua
formação poderiam ser acolhidas em espaços menores com seu preceptor/tutor, mas sem a presença do
pesquisador. Se a recusa partisse de algum preceptor/tutor, este poderia ser substituído na realização das
atividades coletivas. Quanto ao portfólio reflexivo, o aluno poderia recusar que o seu material fosse analisado
pelo pesquisador para fins da coleta de dados referente à pesquisa.
36
Passos et al. (2010) defendem que podemos pensar a política da narratividade como a
posição que assumimos em relação ao mundo e a nós mesmos. Definimos uma forma de
expressão do que se passa: “sendo assim, o conhecimento que exprimimos acerca de nós
mesmos e do mundo não é apenas um problema teórico, mas um problema político.”
(PASSOS et al., 2010, p.151).
Essa dimensão é fundamental para efetuarmos a análise das narrativas coletadas nos
espaços de formação do curso. Elas deflagram posições, construções teóricas e políticas,
direções de trabalho, crenças, valores e focos de ação. Falam de possibilidades e de limitações
subjetivas, profissionais e, mesmo, pessoais. Desta forma, a dimensão subjetiva dos sujeitos
da pesquisa está incluída aqui, já que esta pesquisa acontece no encontro entre os sujeitos,
assim como as práticas em Saúde e em Educação.
Para além de um relato de ações, as narrativas apresentam uma história, que inclui
personagens, acontecimentos e cenários, e contemplam um discurso, que marca um lugar
diferenciado do relato de uma história propriamente dita. Privilegia-se o que é dito, a sua
expressão máxima, mantendo a forma como foi dito.
Por meio da análise das narrativas, o pesquisador busca conhecer tanto o mundo
aparente quanto o mundo oculto do outro, proporcionando o surgimento dos dramas e sendo
capaz de apreender toda a força e a afecção que uma fala comporta, a qual é própria do
humano. Na cena de debates aparecem as disputas quanto a projetos, o confronto com o
mundo do trabalho, ao mesmo tempo em que surge a possibilidade de atuar sobre a situação
dramática em questão (BOEHS, 2000).
37
Sem as narrativas, o trabalho perderia a sua vitalidade e seria morto, como cena sem
personagem. Da mesma forma, os espaços privilegiados para a coleta de dados foram aqueles
já existentes na rotina dos alunos e dos professores, na vida do curso em andamento. Nesse
contexto, foi preciso ficarmos atentos às histórias, aos discursos, onde ele acontecia, sem
questionários. O material estava ali, o tempo todo; bastava escutá-lo.
Com a cartografia dos espaços coletivos tivemos acesso aos impasses do trabalho e às
construções de possíveis alternativas, bem como aos arranjos possíveis diante do inesperado,
do grave e do incalculável, presentes no exercício cotidiano do trabalho. Essa capacidade de
manejo das situações reais convoca o residente/profissional a responder na qualidade de ator
do cuidado, de responsável por um processo ativo, que também lhe diz respeito, e formador
por excelência.
trabalho acontece, conforma requisito fundamental para a realização de uma ação de cuidado
e, algumas vezes, se torna determinante de um cuidado mais efetivo.
Todos esses itens são preciosos neste processo investigativo e aparecem com certo
destaque na proposta educativa em foco nesta investigação, haja vista a direção apresentada
no Projeto Político Pedagógico do curso, que conta com dispositivos e mecanismos para
possibilitar a visibilidade das nuances presentes na cena do trabalho.
É por meio do exercício de dizer que os sujeitos colocam em análise seu próprio
processo de formação, promovendo o desenvolvimento crítico-reflexivo, construindo soluções
para questões de impasse tanto individualmente quanto coletivamente, promovendo o trabalho
em equipe, possibilitando o compartilhamento de informações e se posicionando no mundo
do trabalho e na vida. Ao alterar a forma de pensar e de agir, o sujeito produz um processo
reflexivo fundamental para a sua formação profissional:
Permitindo que nos orientássemos pela vivacidade das atividades, foi possível chegar
bem perto dos alunos e dos processos pedagógicos vividos por eles; da mesma forma, foi
possível localizar os conteúdos em questão e seus posicionamentos profissionais. Pudemos
identificar ações e mostrar a direção fornecida pelo curso para a formação de profissionais
orientados pelo SUS no campo da Saúde Mental.
É preciso estudar o nosso próprio modo de ensino, examinar as nossas próprias ações e
intervenções profissionais, redirecioná-las e retomar caminhos que possam responder às
necessidades colocadas pelas políticas e pelas necessidades da população usuária dos Serviços
de Saúde.
O sucesso pessoal e profissional dos seres humanos passa, decisivamente, pelas suas
capacidades de interação, ou seja, pelas suas capacidades de ouvirem e
compreenderem as narrativas das pessoas que os rodeiam. (REIS, 2008, p.15)
Nesta direção, os espaços privilegiados, como foco desta investigação, são aqueles
depositários dos impasses do trabalho, lugares da construção coletiva de saídas para as
tensões vividas, verificando a capacidade de se produzir reflexão e conhecimento e, desta
forma, fornecendo uma amostra do processo de formação construído durante o curso.
Nos espaços coletivos temos um conjunto de sujeitos com suas individualidades, suas
histórias, suas verdades e memórias próprias. São esses sujeitos particulares que compõem o
coletivo da turma, cuja missão de trabalho-formação se estabelece. É nesse contexto que um
processo educativo se coloca na interação com o mundo institucional, o dos conceitos e dos
conteúdos a serem aprendidos e das soluções a serem criadas.
Essa experiência nos parece útil como uma forma de análise longitudinal, no mesmo
percurso e processo em que se dá a formação e a construção do conhecimento, para
20
O conceito de Transversalidade foi utilizado por Guattari na elaboração teórica da psicoterapia institucional,
durante a década de 1960. A transversalidade implica a ativação da circulação, da comunicação e dos
agenciamentos enquanto produção de outros modos de ser, de sentir e atuar (GALLO, 2008).
40
Nesse aspecto, o modo como esses campos se articulam está diretamente associado à
visão que se tem de mundo, aos conceitos de saúde que orientam práticas, ao entendimento do
processo de adoecimento, ao reconhecimento da função social do profissional, à forma como
este se relaciona com os pacientes e ao entendimento mesmo das ações de saúde em jogo em
um processo de cuidado.
Nesse contexto, ambos os campos seguem a mesma lógica utilitária, cujos métodos
pedagógicos podem ajudar na “catequização” dos sujeitos, alvos das ações de Saúde a fim de
se alcançar um nível de saúde ótimo. Essa concepção técnica remonta aos primórdios das
teorias da Educação, que toma o homem como “tabula rasa”, sobre a qual os conhecimentos a
serem adquiridos iriam se imprimir. A visão da relação entre os campos da Educação e da
Saúde acaba por desenhar uma perspectiva de “ação específica para”, em um processo de
“educação para a saúde” (GAZZINELLI et al., 2005).
21
Conceito deleuziano por meio do qual podemos “relacionar filosofia e arte, criação de conceitos e invenção de
imagens”. Para Deleuze, a questão fundamental do pensamento é a criação, reinventar e pensar o caminho
habitual; fazer o novo é tornar o pensamento possível: “Intercessores são quaisquer encontros que fazem com
que o pensamento saia de sua imobilidade natural, de seu estupor. Sem os intercessores não há criação. Sem
eles não há pensamento.” (VASCONCELLOS 2005, p. 1223).
44
A maioria dos profissionais na área da Saúde foi alvo do ensino nos moldes descritos
por Flexner, em 1910 (Pagliosa e Da Ros, 2008): hospitalocêntrico, focado na doença e
consubstanciado no aprender por meio do professor, o detentor do conhecimento. Naquele
momento, a nossa percepção do que é ser professor ainda estava vinculada à repetição de
padrões herdados de nossos mestres.
Nos próximos itens deste capítulo, serão explorados conceitos e autores com o
objetivo de situar mais claramente o campo de intercessão entre a Educação e a Saúde.
Começando pelas transformações no campo da Educação, apresentaremos as principais
teorias que orientam as atuais mudanças na forma de pensar o ensino e a aprendizagem, as
quais muito vêm contribuindo para esse campo complexo.
Em seguida vamos nos deter nas transformações do campo da Saúde e Saúde Mental,
contribuindo para a constituição do campo da Educação em Saúde, que introduz ferramentas
importantes para a condução dos processos de formação em Saúde mais libertários, críticos e
autorais, afinados com os pressupostos das residências multiprofissionais. (BRASIL, 2005;
2010)
45
Presente desde a Antiguidade, a prática educativa tem sido a forma de ensinar com o
intuito de aquisição de conhecimento. Primeiramente destinada à aristocracia e disponível
para as famílias abastadas, essa prática sofre, ao longo dos anos, transformações importantes
em suas concepções, as quais, segundo Silva, T.T. (2011), são alimentadas pelo tipo desejável
de ser humano de acordo com determinada sociedade, logo atravessada pelas transformações
que ocorreram no mundo mediante a incorporação de novas metodologias e tecnologias
(GADOTTI, 2000).
22
Baseada na suposição de que o homem é essencialmente livre.
46
Nos dois últimos séculos emerge o que Gadotti chama de educação nova, que se
desenvolve pela incorporação de alguns avanços e de novas metodologias pedagógicas,
instituindo a educação das massas como plano de governo. Para Saviani (2000), a pedagogia
nova, assim como a educação tradicional e a corrente tecnicista, pode ser denominada teoria
não crítica. Por sua vez, para Silva, T.T. (2011), essas teorias dizem respeito às “teorias de
aceitação, ajuste e adaptação” social.
23
“John Dewey foi um dos líderes da educação progressiva nos Estados Unidos da América no início do século
XX, tendo desenvolvido um pensamento educacional equilibrado e sofisticado.” (BRANCO, 2010, p. 601).
47
Tomando em análise Freire e Dewey (Silva, [s/d]) passa a ser contraditório falar em
aquisição do conhecimento, já que a reflexão é uma consequência do pensamento. Não é mais
possível sustentar a lógica de transmissão de conhecimento, criticando esse significado da
forma como ele é pensado no campo da educação. Essa nova orientação, sustentada por esse e
outros autores, como Freire (1996, 2011), Morin (2000) e Morin et al. (2003), colocam por
terra a concepção clássica de educação, do mesmo modo que todos os seus pilares de
sustentação, como: a relação teoria e prática, relações de poder e saber, metodologias
avaliativas, relação professor aluno, o lugar da escola nos processos educativos. É possível
ousar dizer que a consequência advinda dessas teorias é uma verdadeira transformação do
campo da Educação.
48
Essa nova forma de pensar tem consequências para o campo da Educação, que passa a
recusar a concepção de um sujeito já dado, “desde sempre aí”, ou seja, de uma entidade
preexistente ao mundo social, político, cultural e econômico, conforme sustentado pela
modernidade. Recusa a noção de sujeito passivo, sobre quem se imprimem os preceitos
educativos. Dessa forma, o filósofo se lança na tentativa de investigar o modo como nos
constituímos sujeitos, interessado pelos “diferentes modos pelos quais seres humanos
tornam-se sujeitos” (VEIGA-NETO, 2007).
contingência que nos fez ser o que somos, e a possibilidade de mais ser, fazer ou pensar o que
somos, fazemos ou pensamos” (FOUCAULT, 2000, p.348).
Desta forma, a produção teórica desses autores nos ajuda a afirmar que a pedagogia
não é um espaço neutro, mas sim um espaço produtor de novas formas de experiência de si,
nas quais os indivíduos podem se tornar sujeitos de um modo particular. É possível promover
um rico processo de subjetivação, em prol da liberdade e capacidade de autogoverno.
Segundo Popkewitz (1994), construímos nosso objeto por meio de lentes conceituais.
A forma como aplicamos categorias e o raciocínio histórico têm o efeito de construir
fenômenos. Em seu texto, ele faz uma análise das “narrativas históricas como sistemas de
raciocínio que constroem ‘dados’ históricos.” (POPKEWITZ, 1994, p.175).
Para Silva, T.T. (2011), a cisão no campo das teorias sociais críticas e pós críticas do
currículo se dá por suas diferentes compreensões: “a hipótese da determinação econômica –
marxismo- e a hipótese da construção discursiva – pós-estruturalismo e pós-modernismo”
(Silva, T.T., 2011, p.145). Essa cisão aponta para uma tensão entre os conceitos de ideologia e
de discurso que permeiam as hipóteses e colocam diferentes formas de pensar as relações de
poder.
Silva, T.T (2011), destaca que tanto as teorias críticas quanto as pós-crítica nos
ensinam que “o currículo é uma questão de saber, poder e identidade 24”, jamais podendo
aceitar que a sua construção se limita a elementos estanques. Todas essas relações
comparecem em ato na cena da formação, o que, no caso de um programa de residência,
coincide com os serviços de Saúde, cenários de prática 25.
Os estudos do cotidiano, um dos campos da Sociologia, têm ganhado cada vez mais
espaço na pesquisa em Educação no Brasil. Visam pensar as práticas educativas enquanto
práticas sociais emancipatórias e relacionadas às novas epistemologias. Esses estudos tomam
o cotidiano e seus acontecimentos como presentes na produção do conhecimento, ao
considerar que a vida cotidiana acompanha a trajetória humana.
24
Título de um dos capítulos do livro de SILVA, T.T., 2011.
25
Uma das características que diferenciam os programas de residência dos outros modelos de especialização é a
sua ênfase na formação em serviço. Quando se fala de formação em serviço, a categoria ‘cotidiano’ se apresenta
de modo pertinente. As reflexões que compõem este capítulo possibilitam uma nova visada sobre a dimensão do
cotidiano, isto é, dos acontecimentos do dia-a-dia, que passam a ser incluídos como elementos produtores e
geradores de conhecimentos.
53
Muitos autores têm-se ocupado em pensar esse campo como o de estudo das práticas e
dos fazeres, identificando a característica de aglutinar, de uma só vez, tempo e espaço na
dimensão cotidiana. Essa dimensão nos possibilita ainda o exercício de relativização do
entendimento do que é o conhecimento e como este se constrói, subvertendo a lógica
instituída, o que é fundamental para o debate travado neste estudo.
Diferentemente do cotidiano, em que “todo dia ela faz tudo sempre igual 26”, o
acontecimento não é compreensível em um primeiro momento, uma vez que a
serialidade daquilo que decorre – e que configura o possível – é rompida. O
acontecimento é da ordem do “assombro exemplar27”, do fato “sem explicação”,
alterando a aparente repetição da vida cotidiana. (LANA e FRANÇA, 2008, p.4)
26
As autoras se referem à música: BUARQUE, Chico. Cotidiano. Intérprete: Chico Buarque. In: Construção.
Rio de Janeiro: Philips, 1971.
27
As autoras se referem à música: REIS, Nando. O segundo sol. In: Infernal. Rio de Janeiro: Warner WEA,
2001.
54
Recuperando o que foi comentado anteriormente neste texto, tanto Foucault quanto
Deleuze trabalham com o conceito de acontecimento, o qual, de certa forma, embora com
sentidos diferentes, conecta-se com o que tem sido pensado pelos autores do cotidiano. Os
acontecimentos causam abalos às evidências que dão estabilidade a um dispositivo
educacional determinado, identificando neles a capacidade de incitar o pensamento e a
reflexão no campo da educação (WEINMANN, 2003).
Larrosa segue a linha dos novos pensadores da educação e é identificado como um dos
propulsores das teorias pós-críticas. Ele parte de exemplos concretos, descreve e analisa
vários dispositivos pedagógicos, tais como: ver-se, expressar-se, narrar-se, julgar-se e
dominar-se, assim como discute a transmissão e a aquisição da experiência de si (LARROSA,
2002b; 2003).
É a experiência que provoca mudanças nas relações do homem com o meio. Movido
pela experiência e afetado pela mesma, Larrosa (2002a) propõe um exercício de elaboração
continuada, no qual a realidade é descrita, apreendida, interpretada e reinventada. Esse autor
nos ajuda a pensar a importância das vivências no processo de ensino-aprendizagem, que fica
mais claro quando nos defrontamos com a sua definição de acontecimento: “A experiência é o
55
que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece,
ou o que toca.” (LARROSA, 2002a, p.21).
Esse autor apresenta uma forma de compreensão do conhecimento que difere da sua
vinculação científica e tecnológica, em que a sua existência já estaria colocada, independente
dos sujeitos. Instauram-se assim novas formas de conceber o conhecimento enquanto abertura
para o desconhecido; logo, impossível de ser antecipada ou prevista.
28
Designação dada pelo autor para falar dos acontecimentos cotidianos (OLIVEIRA e SGARBI, 2008, p.13).
56
academicamente considerados válidos. Mas, de que modo operar diante de uma realidade
móvel, dinâmica e processual, como são os eventos cotidianos?
Aqui podemos recorrer a Deleuze e Guattari, cuja filosofia é descrita como teoria das
multiplicidades. Esses autores trabalham com o conceito de rizoma29 como metáfora do
conhecimento, diferente da concepção arbórea, que implica uma hierarquização do saber. Para
eles, o saber se produz de forma caótica, descontínua e nada disciplinarizada. Esse conceito
faz alusão à multiplicidade de proliferação do pensamento, algo que se encontra no meio,
entre coisas (GALLO, 2008).
Esse conceito nos ajuda a pensar as intervenções nas ações em Saúde como
pertencentes ao campo da micropolítica, isto é, no encontro entre sujeitos, escapando de
capturas protocolares e corporativistas, que buscam a generalização, a padronização e a
compartimentalização dos saberes. O trabalho em Saúde se apresenta como um campo que
transcende a disciplinas específicas, as quais, mesmo se somadas, não conseguem abarcar a
totalidade das ações e das intervenções necessárias ao cuidado (CECCIM e MERHY, 2009).
29
O conceito de rizoma é um modelo de organização do conhecimento que serve para exemplificar um sistema
epistemológico que não comporta raízes - ou seja, proposições ou afirmações mais fundamentais do que outras –
as quais se ramificam segundo dicotomias estritas. É um modelo proposto para o entendimento da organização
do conhecimento. (DELEUZE e GUATTARI, 1997)
57
O homem é um vivente com palavra. E isto não significa que o homem tenha a
palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas
que o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra, que todo humano tem a
ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de palavras, que o modo de viver
próprio desse vivente, que é o homem, se dá na palavra e como palavra.
(LARROSA, 2002a, p.21)
Quanto às informações, afirma que podem ser acumuladas sem que necessariamente
façam o menor sentido para as pessoas, sem que estas sejam verdadeiramente tocadas por ela.
O conceito de experiência exige que sejamos tocados, atravessados pelos eventos da vida, do
mundo do trabalho, porque somente assim se torna possível compreender a dimensão de
acontecimento. “Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara”
(LARROSA, 2002a, p.21).
É possível dizer que essa outra lógica indica a possibilidade de pensar uma nova
relação entre ensino-aprendizagem e, em consequência, de produção do conhecimento,
possibilitando a aproximação de diversos elementos, antes banidos no mundo da produção
científica: a vivência, a prática, a convivência, a afecção e muito mais.
30
Psicólogo educacional americano David Ausubel publicou, em 1963, The psychology of meaningful verbal
learning. Propôs que os conhecimentos prévios dos alunos fossem valorizados, de forma a construir estruturas
mentais que utilizassem mapas conceituais como meio, os quais os lançariam a outros conhecimentos,
proporcionando uma aprendizagem prazerosa e eficaz, denominada aprendizagem significativa.
58
Nos anos de 1970 e 1980, a Reforma Sanitária foi um importante movimento social
que teve destaque na defesa do direito à saúde. Representa a aglutinação organizada de
entidades e de pessoas com objetivos e formas de manifestação articuladas nos cenários social
e político. (BRASIL, 2006).
A criação da Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para
a promoção, a proteção e a recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos
serviços, regulamenta o Sistema Único de Saúde (SUS) como sistema nacional e público.
O SUS prevê a organização dos sistemas nacional e público de Saúde; logo, uma
mudança de modelo assistencial, que coloca em cheque a formação em Saúde nos moldes
tradicionais por este não ser capaz de responder às exigências dos novos paradigmas de
produção de Saúde. É possível reconhecer a existência de um hiato entre formação teórica e
60
experiência prática presentes na formação dos profissionais de Saúde. Esta lacuna traz
importantes consequências para as práticas em Saúde, para seus atores e para a consolidação
de políticas públicas nessas áreas.
Todos esses eventos retratam conquistas importantes, mas não nos dão garantias de
que a formação em Saúde se orienta por esses novos preceitos. Desta forma, temos grandes
desafios e tensões colocadas nesse processo de transformação da realidade da formação de
profissionais de Saúde, que apresenta um contexto do qual não podemos fugir: a cotidianidade
dos fatos, os acontecimentos e os episódios que envolvem a vida na qual as ações de Saúde
acontecem. Nesta seção trazemos à luz uma forma de entender e de conceber os eventos da
formação em Saúde, com enfoque no lócus em que ocorrem as ações de Saúde de quem se
“forma” para atuar.
As Novas Diretrizes Curriculares Nacionais (Brasil, 2001a)31 são tomadas como baliza
para a construção do perfil dos profissionais que atuam no Sistema Único de Saúde,
adequando os modelos de formação às atuais políticas de saúde. Desta forma, preconiza-se
que a formação deva acontecer no SUS, como campo da formação, e voltada para o SUS, pela
formação de profissionais que venham a ocupar lugar na rede pública de serviços, de modo a
consolidar o modelo assistencial público brasileiro.
31
Esta dissertação toma como referência as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em
Medicina (Brasil, 2001a), por ser esta a primeira resolução a propor transformações significativas no campo da
formação em área da saúde no que tange a uma maior articulação com o SUS, tendo esta implulsionado as
resoluções dos demais cursos da área da saúde.
61
âmbito individual e no coletivo, tal como prescrito pelas Diretrizes Curriculares Nacionais
(BRASIL, 2001a).
No campo das profissões em saúde temos duas dimensões que atuam conjuntamente, a
dimensão do que é particular e diferenciador em cada categoria profissional - núcleo
profissional, e o que é comum e nos habilita a atuar no campo do cuidado em saúde, para
além das especificidades profissionais - campo de atuação. Essas dimensões estão presentes
no que Merhy chamou de valises tecnológicas – dura, leve-dura e leve. 32
Diante desse risco de captura de novos conceitos por antigas práticas, cabe que nos
posicionemos individual e coletivamente ante a necessidade de rever nossas práticas.
Podemos engravidar as palavras com os atos produtivos do agir em Saúde, tornando-as
grávidas de outros, novos, sentidos potentes de processo transformador: “saindo do nosso
território já dado e abrindo-se para novas possibilidades de engravidamentos” (MERHY,
2005, p.2).
Tornando esse processo objeto da nossa própria curiosidade, vendo-nos como seus
fabricantes e podendo dialogar no próprio espaço do trabalho, com todos os outros
que ali estão, não é só um desafio, mas uma necessidade para tornar o espaço da
gestão do trabalho, do sentido do seu fazer, um ato coletivo e implicado. (MERHY,
2007, p.3)
32
Para Merhy (2000), o médico, para atuar, utiliza três tipos de valises: os equipamentos que os médicos
carregam em suas mãos são as “tecnologias duras”; os saberes específicos de sua atuação profissional estão em
sua cabeça e se expressam pelas tecnologias leve-duras; e as tecnologias leves são as que estão implicadas com a
produção das relações entre dois sujeitos, que só acontecem em ato.
33
São assim chamados por Merhy (2005; 2009) pela força representativa que esta categoria profissional tem
como expressão dos paradigmas dominantes nas maneiras de se construir atos de Saúde.
63
Tomar o mundo do trabalho como escola, como lugar de uma micropolítica que
constitui encontros de sujeitos / poderes, com seus fazeres e saberes permite abrir a
nossa própria ação produtiva enquanto um ato coletivo e como um lugar de novas
possibilidades de fazeres, a serem extraídas do próprio encontro e do próprio fazer,
ao se desterritorializar dos núcleos profissionais e se deixar contaminar pelo olhar do
outro do campo da saúde: o usuário, individual e coletivo, como lugar de um
complexo modo de viver o mundo. Abrindo-nos, em ato, para novos
engravidamentos e partos. (MERHY, 2007, p. 4-5)
A palavra permanente pode ser extraída da contribuição do filósofo Pierre Furter, que
nos anos de 1960 e 1970 se dedica a estudar o movimento de educação de adultos,
incentivado pela UNESCO 34 e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Nesse
momento, o pesquisador trabalha na direção da ampliação do conceito de educação, atuando
no planejamento de políticas e contribuindo para a construção do conceito de Educação
Permanente: A educação é permanente porque o homem não acaba nunca de amadurecer,
qualquer que seja a idade, o sexo e a situação sócio-econômica. Nunca está completamente
formado (FURTER, apud NESPOLI e RIBEIRO, 2009, p.4).
34
A UNESCO foi criada em novembro de 1945 como agência especializada das Nações Unidas. Na década de
1960 traçou um panorama das correntes filosóficas da educação na América Latina e difundiu a Educação
Permanente como uma possibilidade de atender as necessidades das pessoas durante toda vida. Em 1969, na
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (INEP), quatro artigos sobre a Educação Permanente foram publicados, contribuindo para a difusão e a
ampliação do debate a respeito do tema no Brasil.
64
Embora não seja uma nova técnica, ela pressupõe a necessidade de revisão de todo o
sistema educacional. Aponta para a autoformação contínua, incluindo o trabalho, por ser este
um processo de produção e de expressão criadora do homem e de participação política e
cultural.
Não é mais possível pensar a formação em saúde distante de onde o trabalho acontece,
como antes se pensava. Essa direção promove necessariamente muitas inversões e convoca os
atores dos cenários, assim como a universidade e as instituições formadoras, a repensarem as
suas ações formativas, possibilitando, mesmo, a transformação de suas programações e
subvertendo as lógicas pedagógicas. A clássica separação ou submissão da prática em relação
à teoria também precisa ser repensada e problematizada.
Grande parte da formação para Saúde, que tem como base os modelos de capacitação,
os quais a orientam ainda hoje, encontra o seu fundamento em: “ações intencionais e
planejadas que têm como missão fortalecer conhecimentos, habilidades, atitudes e práticas
que a dinâmica das organizações não oferece por outros meios, pelo menos em escala
suficiente.” (BRASIL, 2009a, p.39)
Motta (2011) faz uma revisão das principais publicações encontradas nos periódicos
indexados ao programa de pós-graduação do Núcleo de Tecnologia da Educação (NUTES), da
67
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) no período entre 2004 e 2010. Em seu artigo,
algumas observações ganham destaque. Uma, aponta a importância fundamental que a EPS
tem no sentido de produzir a capacidade de o profissional problematizar a si mesmo no agir
em Saúde. Outro aspecto importante é a identificação de que os Serviços de Saúde passam
então a integrar uma rede-escola, lugar reconhecido como aquele em que a formação se dá.
Como dificuldade na prática das EPS, Motta (2011) destaca o difícil exercício da
democracia participativa, já que não estamos habituados, menos ainda no cotidiano das nossas
relações de trabalho. Mais um ponto de análise indicado pelo autor diz respeito à necessidade
de aprofundamento conceitual do termo e do modo como essa estratégia é capaz de funcionar
exatamente de maneira transformadora. Da mesma forma, o pesquisador ressalta que os
artigos explorados utilizam poucos recursos para explicar como o conhecimento produzido no
trabalho, afeta a própria organização.
Esse debate visa aproximar a formação médica da UFRJ dos princípios presentes na
nova lei de Diretrizes Curriculares Nacionais (Brasil, 2001), isto é, formar médicos com alta
qualidade técnica, conscientes de seu papel social e preparados para enfrentar as demandas da
35
Acervo pessoal de e-mails trocados entre os participantes do PEM nos anos de 2011 e 2012.
68
sociedade e, como consequência, fortalecer o SUS. Esse espaço tem se constituído com a
participação coletiva dos atores envolvidos, docentes, gestores, coordenadores, alunos etc. Na
tentativa de possibilitar um debate ampliado sobre as transformações possíveis, o que não se
tem mostrado tarefa fácil em função dos planos de disputa em jogo, no que concerne à
graduação de um curso tradicional em uma das universidades mais importantes do país.
36
TITÃES, Comida, Álbum: Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas, WEA, 1987.
69
Esse grupo de profissionais protagoniza denúncias a respeito das condições de tratamento dos
pacientes internados nos hospitais psiquiátricos, destino único para aqueles que precisam de
cuidados, cuja forma de tratamento se baseia na reclusão por longos e infindáveis períodos
(AMARANTE, 1995).
Novas formas de pensar e de tratar a loucura instituem leis e portarias que visam à
substituição do modelo hospitalocêntrico e médico-centrado. Surgem portarias de
regulamentação de novos serviços,38 da criação de benefícios para pacientes em processo de
desinstitucionalização,39 de regulação das internações e de fiscalização dos hospitais
psiquiátricos.40
37
Movimento de transformação da assistência psiquiátrica, que teve lugar na Itália nos anos de 1970, com base
no fechamento dos hospitais psiquiátricos, ocorrido a partir da sustentação de um discurso anti-institucional.
Teve seu ápice com a promulgação da Lei nº 180, de 1978 (Lei Basaglia), que estabeleceu a abolição dos
hospitais psiquiátricos e está vigente até o presente momento (BASAGLIA, 1985).
38
Brasil, Portaria 336 de 19 de fevereiro de 2002, que regulamenta a criação dos Centros de Atenção
Psicossocial- CAPSI, II e III; Brasil, Portaria nº 106 de 11 de fevereiro de 2000, que regulamenta a criação dos
Serviços Residenciais Terapêuticos; Brasil, Portaria nº 2.841, de 20 de setembro de 2010. Institui no âmbito do
Sistema Único de Saúde - SUS, o Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e outras Drogas – 24 horas - CAPS
AD III, dentre outras.
39
Brasil, Lei n. 10.708, de 31 de julho de 2003. Dispõe sobre o auxílio-reabilitação psicossocial para pacientes
acometidos de transtornos mentais egressos de internações, dentre outras, de acordo com os estados e
municípios.
40
Brasil, Portaria /GM nº 251 - de 31 de janeiro de 2002. Estabelece as diretrizes e normas para a assistência
hospitalar em psiquiatria, reclassifica os hospitais psiquiátricos, define e estrutura, a porta de entrada para as
internações psiquiátricas na rede do SUS. Orientada pelos indicadores de qualidade aferidos pelo PNASH-
Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria.
70
Este conceito surge como uma direção clínica e política no processo de reconstrução
de laços e vínculos sociais e familiares para os pacientes há muito institucionalizados e passa
a orientar as ações em Saúde nos diversos cenários de cuidado, construindo novas
possibilidades no mundo da vida e da cidade (AMARANTE, 1995; 1996; BRASIL, 2001b;
2004b).
Essa nova forma de cuidar em sociedade, que necessita do trabalho de vários atores
em prol da reabilitação psicossocial do usuário dos serviços de Saúde Mental, denomina-se
Clínica da Atenção Psicossocial. Essa nova direção clínica requer um grupo de profissionais
que possa efetuar ações de cuidado de forma realmente ampliada, para além das ações de
saúde stricto sensu. O profissional em foco deve ser capaz de acompanhar sujeitos em suas
necessidades de vida, requerendo um suporte junto à família nas ações concretas do dia-a-dia,
tal como nas interações entre os sujeitos e suas comunidades (ALBERTI e FIGUEIREDO,
2006).
41
Uma importante experiência sobre esse processo é relatada por Cerqueira et al. (2007).
71
demandando uma visão ampliada de saúde e da relação entre os saberes que a compõem. O
cuidado em Saúde, mais uma vez, exige mais do que conhecimentos estanques e habilidade
técnicas.
É nesse contexto, em que a formação deve estar afinada com os Serviços de Saúde, a
realidade da política e as reais necessidades dos sujeitos que sofrem, que surgem os
programas de residência como modo inovador de pensar a formação de profissionais em
Saúde.
Para entender a amplitude que esta nova proposta impõe, é preciso reconhecer a
fragmentação do trabalho em Saúde, presente atualmente de forma hegemônica nos processos
de trabalho. A prática em Saúde é orientada hoje por saberes estanques e fragmentados e por
discursos sobre algumas “coisas”,42 elementos que estão organizados e construídos de forma a
42
O uso desse termo está em Merhy e Ceccim, [s/d], p.24.
74
identificar doenças. Organização esta que não trata de um fenômeno casual nem individual.
Segundo Merhy e Ceccim:
A atuação dos profissionais de Saúde, na maioria das vezes, ainda se restringe a certos
procedimentos que definem a sua especificidade profissional, circunscrevem o seu saber e
regulamentam seu exercício. Tudo isso está no centro das ações em Saúde, e o usuário é
apenas objeto passivo desses imperativos corporativos.
Segundo esses autores, ao longo dos anos, há uma reorientação dos cursos de
formação em Saúde com o foco da integralidade, instaurando nova forma de pensar a clínica
do cuidado. Ceccim e Carvalho (2006) destacam alguns referenciais: “(1) ampliar o
75
referencial de saberes e práticas com as quais, cada profissional estuda e trabalha e (2) não
posicioná-los isoladamente na ação de saúde, firmando o trabalho em coletivos organizados
de produção da saúde (p.8)”.
A formação deve se dar a partir do acolhimento dos problemas de saúde vividos pela
população e pelo engajamento na construção de um sistema de saúde orientado pela
integralidade, o que pressupõe práticas de inovação em todos os espaços de atenção à saúde e
práticas de análise crítica de contextos. De acordo com as mudanças na graduação das
carreiras da saúde: “é preciso que levemos em conta que as instituições que ensinam devem
ser caixas de ressonância das expectativas sociais.” (BRASIL, 2003, p.7).
Desta forma, passa a ser formativa a vida como ela é, com suas dificuldades,
incompletudes e falhas. “A organização dos serviços e o trabalho tal como o encontramos na
rede campo de estágio ou o posicionamento dos segmentos corporativos das profissões e a
dos governos também são processos formativos.” (CECCIM e CARVALHO, 2006, p.15).
Os autores procuram levantar reflexões que apontam para uma tentativa de rever as
relações envolvidas entre universidade e serviço. Uma forma comprometida de pensar essas
ações torna a iniciativa uma corresponsabilização.
O ensino deve levar em conta e, ao mesmo tempo, fazer parte de um modelo político-
cultural condicionado pelo contexto em que estão inseridos, pois seus objetivos estão
necessariamente relacionados aos da sociedade.
O ato de ensinar não se dissocia do ato político de buscar produzir crítica sobre o
instituído, visando à criação de linhas de fuga, não no sentido de fugir, mas no
sentido de abrir novos caminhos que afirmem a cognição como subjetivação e vida.
(ARANTES et al, 2004, p.58)
Com essas reflexões iniciais sobre a educação ficamos com as questões mais práticas e
operacionais sobre a realização desse processo no Programa de Residência alvo dessa
pesquisa. Temos como base as transformações atuais dos processos de ensino-aprendizagem
que instituem formas ativas de se conceber o conhecimento. Não é possível apostar em uma
transmissão linear do conhecimento, do mestre para o aluno e, menos ainda, na existência de
hierarquia na relação com o sujeito do conhecimento.
Após o percurso trilhado até aqui, por meio do qual foi possível revisitar autores,
aprofundar conceitos e assumir um posicionamento no campo filosófico metodológico,
estamos munidos e autorizados a mergulhar na investigação de campo, que toma em análise
os processos de formação do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental do
IPUB/UFRJ.
Mostram-se aqui todas as dimensões que compõem a proposta pedagógica deste curso,
com base nas informações presentes no Projeto Político Pedagógico (IPUB, 2010) e no
Caderno do Residente (IPUB, 2013). Tal exposição se faz fundamental para a compreensão da
análise cartográfica construída por essa pesquisa, que será trabalhada nos capítulos
subsequentes.
Por sua vez, o Projeto Político Pedagógico (PPP) tem início com a apresentação do
Instituto da Psiquiatria da UFRJ na qualidade de instituição hospitalar e universitária, que
conta com forte tradição na formação de profissionais em Saúde Mental, os quais circulam
entre os campos da Psiquiatria e da Saúde Mental. Tais características definem um cenário
bastante particular, em que se desenvolve essa proposta formativa.
São eles: HUCFF43, residência em Hospital Geral; IESC 44, residência em Saúde Coletiva,
IPPMG45, residência em Saúde da Criança e do Adolescente; ME 46, residência em Saúde
Perinatal e Materno Infantil; ESFA47, residência em Saúde da Mulher e em Saúde da Família
e Comunidade.
Desde a sua criação, o programa cresceu e se ampliou, tornando-se cada vez mais
complexo e exigindo a parceria de novos profissionais para a composição de novos cenários
de prática. O curso hoje conta com quarenta alunos, dos quais vinte são residentes no primeiro
ano e vinte, residentes no segundo ano. Este número se apresenta bastante expressivo se
comparado com as demais propostas de formação disponíveis nessa modalidade, na área de
Saúde Mental.
43
Hospital Universitário Clementino Fraga Filho – HUCFF.
44
Instituto de Saúde Coletiva- IESC.
45
Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira – IPPMG.
46
Maternidade Escola – ME.
47
Hospital Escola São Francisco de Assis – HESFA.
80
O Projeto Político Pedagógico previsto para o curso segue a mesma orientação do que
é preconizado pelo SUS, no qual:
48
As palavras em destaque referem-se aos operadores do cuidado indicados pelo PPP (IPUB, 2010).
81
O projeto propõe uma organização curricular que aborda a íntima articulação entre
teoria e prática, sem subordinações. Essa proposta traz para o debate alguns pontos
específicos, pois o mundo da prática, que é o mundo do trabalho, configura-se como uma
escola, uma vez que as questões e as vivências produzem conhecimentos, possibilitando a
formação profissional.
Esse projeto propõe uma inovadora organização curricular que aborda uma íntima
articulação entre teoria/prática, sem subordinações. Utiliza uma abordagem
pedagógica construtivista e fundamentada na aprendizagem significativa e de adulto.
Focaliza metodologias ativas de aprendizagem tanto na formação de residentes
como na educação permanente de docentes. (IPUB, 2010, p.7).
49
A noção de competência aqui empregada refere-se à mobilização de capacidades para a tomada de decisão e
realização de ações específicas que caracterizam determinada prática profissional, nesse caso, a prática dos
profissionais de Saúde frente a situações de saúde-doença, segundo contexto e critérios de excelência (HAGER
& GONZCI, 1996).
50
As palavras em destaque referem-se aos dispositivos pedagógicos indicados pelo PPP (IPUB, 2010).
51
As palavras em destaque referem-se aos profissionais que efetuam o acompanhamento dos alunos conforme
indicado pelo PPP (IPUB, 2010).
82
Além dos tutores, o curso discrimina ainda dois tipos de preceptores: os de campo de
estágio e os de núcleo profissional. Os preceptores de campo de estágio são os responsáveis
pelo acolhimento dos alunos no dia-a-dia dos serviços em que ficam lotados. Eles têm por
atribuição:
Os campos de estágio vão se definindo a cada vez e para cada um, de forma que as
diversidades e os interesses individuais venham a ser considerados, ao mesmo tempo em que
se faz necessário manter uma estrutura curricular comum (IPUB, 2010).
52
As palavras em destaque referem-se a um dos dispositivos pedagógicos indicados pelo PPP (IPUB, 2010).
83
ano de sua formação. O Programa conta com uma variabilidade de cenários de prática que
contemplam setores internos ao IPUB no primeiro ano; e serviços externos em parceria com
as Coorednações de Saúde Mental dos Municípios do Rio de Janeiro, Niterói e Secretaria
Estadual de Saúde do Rio de Janeiro.53 O objetivo principal é a ampliação das possibilidades
de vivência dos alunos, favorecendo o desenvolvimento de profissionalismo, visando garantir
elevados padrões de qualidade, conforme descrito claramente no Projeto Político Pedagógico
do curso. (IPUB, 2010).
O percurso prático é acompanhado das atividades teóricas, que são compostas pelas:
Sessão Clínica, Centro de Estudos, Seminário Clínico e demais Módulos Disciplinares.
53
Em janeiro de 2013, a rede de cenários externos passou por importante ampliação em função do aumento do
número de residentes R2, que chegaram a vinte alunos.
54
As palavras em destaque referem-se aos dispositivos pedagógicos indicados pelo PPP (IPUB, 2010).
84
Ao término dos dois anos, cada residente deverá apresentar o TCC (Trabalho de
Conclusão de Curso), que consiste em pesquisa individual. Esta é uma atividade acadêmica
obrigatória, condição imprescindível à obtenção do certificado de conclusão do Curso de
Residência Multiprofissional em Saúde Mental.
Nos próximos tópicos, cada um desses elementos será analisado de forma mais
aprofundada e articulada com as narrativas dos atores, na vivência do curso em ato,
constituindo a cartografia dos movimentos do Programa de Residência Multiprofissional do
IPUB/UFRJ.
Tomando como ponto de ancoragem a ampla revisão bibliográfica que deu início a
este estudo, foi possível localizar nesse curso um caráter inovador, conforme mencionado em
seu Projeto Político Pedagógico (PPP). A inovação diz respeito a uma conjunção de fatores
que perpassam os campos da Educação e da Saúde, produzindo um arranjo bastante particular
que congrega dimensões filosóficas, pedagógicas, clínicas e institucionais, as quais, juntas,
dão identidade a esta proposta: orientam a construção de dispositivos pedagógicos, conduzem
a organização do curso, promovem a construção das disciplinas, definem os cenários de
campo, criam novos espaços institucionais e, dessa forma, orientam a formação de uma nova
geração de profissionais em Saúde Mental.
55
Poema extraído da abertura do Caderno do Residente - Orientações Gerais para o R2- (IPUB, 2013).
BARROS, Manoel de. A maior riqueza do homem é a sua incompletude. In: BARROS, M. Retrato do Artista
Quando Coisa. São Paulo: Editora Record, 1998.
86
Vale retomar que a noção de teoria, trabalhada nos capítulos anteriores, traz embutida
uma dimensão de produção ativa daquilo que supostamente ela descreve. Assim, Silva, T.T.
(2011) afirma categoricamente que a realidade é produzida ativamente.
A noção de que uma teoria é produzida com o objetivo de recobrir o real e que é criada
para dar conta dele, já não se sustenta mais frente às correntes pós-modernas e pós-críticas da
Educação. Nesse contexto, alicerçado pelo pensamento pós-moderno e pós-estruturalista, uma
teoria passa a ser compreendida enquanto representação e, por isso, inúmeras representações
são possíveis e todas elas, sempre relativas.
Toda teoria se torna assim, inseparável dos efeitos representacionais da realidade que
produz. No novo contexto, objeto de investigação e efeitos do processo investigativo
coincidem ao mesmo tempo e em mesmo lugar. O objeto que a teoria descreve é, a um só
tempo, produzido por ela.
Essa reflexão inicial marca o caminho de análise do material produzido por esta
investigação cartográfica. É possível afirmar que este estudo produziu os elementos da forma
como eles se construíram na vivência cotidiana, ganhando consistência e visibilidade.
Somente a partir da vivência em ato dos dispositivos previstos, estes puderam ganhar a
dimensão de realidade, revelando as relações e os atravessamentos entre os elementos
comprometidos no processo formativo.
Dessa forma, este capítulo tem como objetivo destrinchar os três movimentos de
forma entrecruzados que compõem a cartografia do Programa de Residência Multiprofissional
em Saúde Mental do IPUB/UFRJ com a meta de tentar explicitá-los, embora seja impossível
separá-los completamente, pois é junto e misturado que eles se constituem.
Várias são as dimensões de análise presentes nesta investigação que colocam em foco
uma reflexão consistente entre o PPP previsto e a sua aplicação em ato no cotidiano do curso
em andamento.
Algumas das reflexões trazidas pelo PPP seguem em acordo com os autores que
ajudaram a pensar as transformações do campo da Educação, considerando a complexidade
do mundo e o processo de ensino aprendizagem indissociados das experiências cotidianas que
operam enquanto acontecimentos (LARROSA, 2002a).
56
Expressão usada pela Coordenadora do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental do
IPUB/UFRJ e que aponta, ao mesmo tempo, uma posição ética e uma direção clínica e política para a formação
no campo da saúde mental. Esse termo esteve presente nos espaços pedagógicos do curso, apontando para a
possibilidade de intervenção na instituição e nas lógicas de trabalho estabelecidas, capaz de promover mudanças
na realidade.
90
Segundo Becker (1992), construtivismo significa dizer que o conhecimento não é dado
e sim construído na relação do sujeito com o mundo e se constitui por força da ação do sujeito
sobre o mundo. Identificamos Piaget e Freire como os precursores dessa corrente de
pensamento. Para Gadotti (1996), Freire foi um dos criadores do construtivismo crítico.
Silva (2011) questiona o pensamento construtivista de Freire: “Freire está aqui longe
das concepções pós-estruturalistas recentes que concebem o conhecimento como
estreitamente relacionado com suas formas de representação no texto e no discurso” (p.59).
“Os preceptores não sabem nada sobre como o nosso curso se organiza.” – (R1,
Enf.)57.
“Os supervisores nem sabem quem nós somos, nós chegamos sem que eles
soubessem do nosso curso.” – (R1, Psic).
“O que a gente fala é grego para ele. Eles não entendem esse negócio de residência
multiprofissional.” – (R1, A.S.).
57
As narrativas dos alunos serão apresentadas de acordo com o ano de pertencimento – R1: residentes de
primeiro ano ou R2: residentes de segundo ano - acrescidos da categoria profissional abreviada – T.O.:
Terapeuta Ocupacional; Enf.: Enfermeiro; Psic.: Psicólogo e A.S.: Assistente Social.
92
“Os outros residentes (médicos) não têm espaço para discussão coletiva”. – (R1,
Enf).
“Por que os alunos da especialização não precisam entrar na enfermaria? Eles nem
frequentam a supervisão clínica”. – (R1, T.O.)
As falas descritas sugerem que esta não é uma direção clara ou unânime dentro da
instituição, do mesmo modo que não é colocada para as demais propostas formadoras. Em
razão disso, várias lógicas de cuidado e diferentes propostas pedagógicas coexistem no
mesmo espaço institucional, provocando o aparecimento de contradições, paradoxos e
divergências deflagradas claramente na fala dos alunos:
“Se o paciente não melhorar com a medicação, vai ser indicado o eletrochoque.”
(Enf, R2).
Aqui se faz importante retomar a lógica educativa que sustenta os modelos tradicionais
de ensino, conforme estudado no Capítulo 2 desta dissertação.
Tal contradição se revela em outros momentos ao longo desta análise e aponta para
uma contradição constitutiva deste curso. Todos esses elementos são combinados num
panorama institucional complexo. Desta forma, o curso de residência multiprofissional entra
em choque com a realidade, trazendo consequências para todos os atores do processo.
94
“Hoje eu fui à enfermaria visitar a paciente e descobri que o médico deu alta. Por
que ninguém me avisou? Eu faço parte da equipe de cuidado?” – (R1, Psic.).
Como fazer? O que fazer se, de fato, não existe um mundo coeso, coerente e uniforme,
nem aqui nem do outro lado do mundo? Como trabalhar com lógicas e pressupostos tão
diferentes? Essa é uma reflexão importante. Identificar as dificuldades e as contradições que
95
“Acho que não dá para gente ficar mais na enfermaria; os preceptores não
acompanham os alunos no dia-a-dia como deveriam” – (R1, A.S.).
“Até que ponto nós devemos manter esse serviço como cenário de prática? Eles
desconsideram completamente a existência dos CAPS.” – (tutor do curso).
O que fazer? Esta é uma pergunta presente durante todo esse processo investigativo, e
é vivida na experimentação de alguns dilemas por parte dos coordenadores e tutores.
Essa outra forma de produção do conhecimento, que é sustentada por uma nova
epistemologia, ainda é incipiente no mundo científico e, segundo Silva, T.T. (2011), introduz
uma forma de pensar a ciência de modo diferente da ciência positivista.
investigados pelos métodos das ciências naturais. Surge a possibilidade de abarcar o mundo
tomando em conta e incluindo toda a sua complexidade (MORIN et al., 2003).
O SUS, embora seja o sistema público de saúde vigente no Brasil, não tem a sua
efetivação garantida somente por leis e portarias. A construção do SUS envolve uma mudança
de lógica de trabalho e de modelo assistencial, que afeta todos os níveis da vida dos sujeitos e
atravessa em cheio as formações em saúde.
“Eu nunca tinha lido sobre o SUS antes de fazer a prova da residência” – (R1, Psic.).
“Gostei muito dos autores que falam sobre o cuidado em saúde, não conhecia” –
(R1, A.S.).
Muitos alunos chegam sem ter estudado esse tema na graduação. Isso denota a
dissociação e não equivalência entre as regulamentações e sua efetivação na vida prática dos
atores, dos cursos e das propostas pedagógicas.
Dias (2011) traz uma análise crítica da abordagem cognitivista de competências, por
sua divisão em habilidades estanques e fragmentadas: competências motoras, afetivas e
cognitivas, conforme desenvolvido no Capítulo 2.
Para Dias (2011), mais do que uma dimensão utilitária, a competência deve estar
relacionada à capacidade de produção, de recriação do mundo e não apenas como
97
O que está incutido no texto do currículo? De que ordem é a sua tensão? Como esta se
atualiza na realização da sua proposta pedagógica? O currículo, assim como o próprio PPP,
mais do que a programação para uma disciplina ou para um curso, é um espaço de poder e
território de disputas: “O conhecimento corporificado no currículo carrega as marcas
indeléveis das relações sociais de poder.” (SILVA, T.T. 2011, p.147).
O currículo tem significados que vão muito além daqueles aos quais as teorias
tradicionais nos confinaram. O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é
relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O currículo é
autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja nossa identidade. O
currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade.
(SILVA, T.T., 2011, p.150)
58
Para a reflexão mais aprofundada a respeito das novas formas de conceber o conceito de competência é
indicada a leitura de Dias (2011).
98
Orientado por determinada proposição teórica, seu conteúdo busca responder a uma
demanda de formação em saúde exigida pelas novas diretrizes curriculares dos cursos da
Saúde (Brasil, 2003), mas que denuncia, na sua implantação, o descompasso com a vida da
instituição.
Qual conhecimento deve ser ensinado para se alcançar o que está previsto para o
egresso? Ele traz certa dimensão de homem, cultura e sociedade em seu conteúdo. Nesta
direção, o PPP do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental, traz uma clara
posição política e clínica, além de dizer adeus a uma postura de construção pedagógica neutra
e desinteressada.
Como aponta Foucault (2004), nossas escolhas são exemplos de uma relação de poder,
incutida em todo o processo. Toda escolha se mostra inevitavelmente permeada por essas
relações. É justamente essa análise do poder que separa as teorias tradicionais das críticas e
pós-críticas. Teorias críticas estão focadas nas técnicas, em como operar os conhecimentos,
nas metodologias, em detrimento do porquê. Apresentam-se com uma concepção mais
técnica, aplicada sem processo reflexivo e capaz de questionar as relações de poder incutidas
no processo.
Na direção orientadora para este curso, novas balizas surgem para o debate no campo
da produção do cuidado em Saúde, com destaque para três conceitos atuantes e propulsores
das ações no campo da Saúde Mental pública. São eles: linha de cuidado,
desinstitucionalização e as noções de rede e território.
Estes conceitos são extraídos do PPP e visam à consolidação da direção ética, clínica e
política apresentada nos capítulos anteriores. Objetiva-se que eles funcionem, de fato, como
operadores da clínica, tomando a direção de fazer com que os atos em Saúde sejam capazes de
efetivar uma proposta de trabalho condizente com os princípios e diretrizes do SUS.
100
Linha de cuidado
“Ela não para de delirar, o que faço com isso?”- (R1, Enf.)
“Eles (os médicos) esperam que a medicação vá livrá-la do delírio”- (R2, Psic.).
59
O conceito de caixa de ferramenta de Foucault pode ser compreendido na medida em que ele construiu um
vocabulário e formulou uma gama de conceitos que emergiam das experiências práticas e se propunham como
geradores de práticas. Desta forma, para esse fim, o arsenal conceitual deve funcionar como uma caixa de
ferramenta (REVEL, 2005, apresentação).
101
modos de viver mais saudáveis a partir de orientações gerais e para todos, do que é mais
saudável, do que é melhor e do que deve ser seguido por todos.
Nesse contexto é preciso incluir outras racionalidades que possam disputar planos de
cuidado na direção de se produzir um cuidado compartilhado e ampliado. Não há uma única
forma de entender o adoecimento nem uma única forma de tratamento a ser considerada. Essa
reflexão amplia as possibilidades de pensar o caso e a construção de possibilidades.
“A profissional já definiu para onde a paciente vai; ela diz que sabe o que é melhor
pra ela. Está decidido e pronto.” – (R1, Enf.).
“Aquela paciente teve alta, pois foi avaliado pelo médico que ela já estava há tempo
demais internada. Para uma histérica grave, a instituição agrava os sintomas, por
isso ela precisava ir embora logo.” – (R1, Psic.).
“Meu supervisor disse que pacientes que usam drogas não podem ficar na
enfermaria.” – (R1, Enf.).
Isso é dito desconsiderando a gravidade do caso, sem levar em conta seu sofrimento
ou o motivo de sua doença, cujo um dos sintomas é o comportamento manifesto. Uma
avaliação baseada numa perspectiva moral e não de cuidado é o que acaba orientando as ações
de muitas equipes de saúde. Quem é o paciente? Quais suas questões?
Essas ações gerais são as balizas da saúde coletiva, orientam a formação e as práticas
profissionais em todos os campos da Saúde Pública. Baseado em sinais e sintomas, testes,
taxas e exames, a vida dos sujeitos é esquadrinhada e disciplinarizada com as “melhores”
indicações do que deve ser feito.
“A técnica de referência disse que o melhor para ela é morar em um abrigo.” – (R1,
A.S.).
O preço desta forma de conduzir as ações de cuidado em Saúde tem efeitos em todos
os campos da vida, em todas as especialidades, padronizando modos mais adequados de
conduzir a vida, julgando e condenando ações inadequadas.
60
Condutas que se orientam exclusivamente por comportamentos que ferem regras de convivência ou de
conduta. Por exemplo, casos de agressividade tratados com contenção e aumento da dosagem medicamentosa.
Há dificuldade em reconhecer, em determinado comportamento, um funcionamento do sujeito, certa forma de
estar no mundo, que deve ser acolhida e tratada de forma diferente do tratamento dado pelas pessoas leigas.
102
“A enfermagem disse que ela se interna sempre, porque aqui ela tem comida na
hora, banho, remédio.” – (R1, Enf.).
O que regula essas orientações clínicas e políticas? Quais os efeitos para determinada
condução de trabalho? Como aferir a proposta mais adequada? Não havendo uma verdade
única, que caminho seguir?
Uma das primeiras encomendas do curso para os alunos é que cada residente
acompanhe certo número de pacientes, priorizando os casos de longa permanência. Essa
premissa funciona como um disparador na construção de novos lugares de cuidado para os
pacientes institucionalizados. As ações de saúde passam a ser orientadas pelas necessidades
de cada caso e não pelos procedimentos técnicos profissionais.
É com muito estranhamento que os alunos, aos poucos, vão se aproximando dos
pacientes, se interessando pelo que eles têm a dizer, suportando formas estranhas de estar no
mundo. Pacientes mais agressivos, pacientes que não falam, que não saem do leito, que
engolem e injetam objetos, que se machucam, que comem lixo, que usam drogas, que batem
com a cabeça na parede, que não desejam nada.
“A equipe disse que, nesse caso, já foram tentadas todas as coisas, que não há mais
nada para ser feito.” – (R1, A.S.).
“O paciente tem isso, então fazemos assim (determinada prescrição médica), se ele
não responder em quatro semanas, a equipe vai resolver pelo ECT.” – (R1, Psic.).
sobre a sua vida. Há pacientes que já estavam recebendo o benefício, que já tinham
conseguido a vaga no abrigo ou que já foram para casa e voltaram para a internação várias
vezes em curto espaço de tempo.
“Eu trabalhei tanto e quase nada foi registrado na SIASUS. Como registrar as visitas
institucionais, as reuniões de discussão de caso, os telefonemas... Tudo isso é
trabalho!” – (R2, Psic.).
Romper com a lógica do procedimento pode trazer efeitos de cuidado cada vez mais
centrados no sujeito, tomando a sua palavra em consideração, reconhecendo as dificuldades e
as limitações de cada um, trabalhando novas possibilidades de estar no mundo, também para
cada um.
“A minha equipe quer que eu acompanhe todos os benefícios dos pacientes, mas eu
não acompanho benefícios, eu acompanho sujeitos.” – (R1, A.S.).
“Na enfermaria não tem escova nem pasta de dente. Não precisa ser enfermeiro para
saber que isso é importante.” – (R1, Enf.).
apreendidos por uma categoria diagnóstica ou por um saber especializado (MERHY, 1998;
2007).
“Desculpa, eu me atrasei porque o ex-sogro do S. veio aí, e o filho dele, que há doze
anos não o vê, veio também. Eu não tinha avisado para o S., porque eles já tinham
faltado duas outras vezes. A gente não disse nada antes. Perguntamos ao filho se ele
gostaria de ver S. E o filho respondeu: - Claro, eu vim pra cá por isso. Para o
paciente nós falamos: - S. o seu filho D. tá aqui. D.? Eu nem lembro mais, o nome é
esse? Respondemos que sim e perguntamos se ele queria vê-lo: -Quero. Logo ao
entrar na sala o menino já foi dizendo: - Oi pai. Ele ficou meio desconfiado, ficou
dois segundos calado e, depois, disse pro filho: - Você está forte, hein? Então agora
os dois estão lá embaixo, no maior papo. E eu e a médica querendo saber mais. Eles
estão lá conversando muito...” – (R1, T.O.)
Este relato - de uma residente de primeiro ano, terapeuta ocupacional que chegou
muito emocionada para uma atividade - retrata a amplitude de uma ação de cuidado, que vai
muito além de regular sinais e sintomas. O processo saúde-doença é dinâmico e inapreensível;
podemos apenas acompanhá-lo junto ao sujeito, apostando que outras construções
impensáveis possam produzir outros rearranjos. Novas configurações passam a ser possíveis
quando os sujeitos são implicados nesse processo.
Assim, a linha de cuidado requer a aposta no sujeito como corresponsável por sua vida
e seu tratamento. As saídas de um problema ou a produção de novos modos de subjetivação
são possíveis quando nos orientamos por ações usuário-centradas (MERHY, 2004).
“No processo de mudança para a SRT, a equipe decide conceder a vaga para outra
paciente do hospital, e não mais para a moradora do hospital cuja vaga estava
prevista. Quando a então moradora soube que perderia a vaga para outra pessoa, esta
decide ir à reunião do serviço e afirma, diante de todos, que a vaga era dela.”- (R2,
Psic.).
A desinstitucionalização61
No campo da Saúde Mental temos um importante desafio, que foi colocado pelas
novas políticas públicas, cuja direção de trabalho se baseia na desinstitucionalização das
práticas e na substituição de modelos de tratamento centrados no hospital mediante a
implantação de dispositivos comunitários e territoriais. Esses novos serviços tornam-se atores
fundamentais no processo da criação de possibilidades de vida para pacientes com grave
comprometimento mental.
61
Conceito trabalhado por vários autores, entre eles: Rotelli et al. (2001) e Basaglia (1985). Presente na
orientação da Reforma Psiquiátrica Brasileira, baseada em práticas de cuidado e voltada para fora do espaço
asilar, visando à substituição deste por serviços territoriais e práticas de reabilitação psicossocial.
105
Mais do que a retirada de pessoas com longos períodos de internação dos hospitais
psiquiátricos. Este conceito ganha nova amplitude ao estar colocado para todos os pacientes
como direção de trabalho. A desinstitucionalização como operador do cuidado visa sustentar
uma direção no sentido de acompanhar sujeitos em seus sofrimentos, apostando na
possibilidade de construção de novas saídas, de formas inovadoras de estar no mundo, em um
processo de desinstitucionalização dos espaços, das formas de tratar, de entendimento sobre a
loucura, a desinstitucionalização de si mesmo.
“Como essa paciente vai conseguir viver lá fora, com tanta desorganização?”- (R1,
Enf.).
“Aqui dentro é mais seguro para ela; lá fora é muito perigoso.” – (R1, A.S.).
Essa pergunta nos remete a uma aposta de que os sujeitos precisam construir
condições de possibilidade para estarem no mundo, assim como os profissionais, a
comunidade e a sociedade.
“É preciso fazer o contato com o CAPS, afinal eles cuidaram dela sem internar por
algum tempo.” – (R1, T.O.)
A vida em sociedade é uma produção constante para todos, nada fácil, mas um desafio
que se põe quando se trabalha com o conceito de desinstitucionalização enquanto operador
clínico. Ele exige a construção de uma rede de sustentação, que forneça apoio e acolhimento
para os sujeitos no mundo da vida.
Rede e território
“Como resgatar os laços de uma paciente que ninguém quer cuidar?” – (R1, A.S.).
Aqui a dimensão de rede e território precisa ser ampliada para além do bairro ou
região de moradia e para além da família original de pertencimentos. As dimensões de rede e
território apontam para a necessidade de sua construção e reinvenção. Os laços além de
106
poderem ser resgatados podem ser construídos e reconstruídos. As saídas e as respostas não
estão dadas.
“Ele já teve alta; então, não é mais problema meu, certo?” – (R1, Psic.).
“Se o paciente está internado, por que eu tenho que conhecer de onde ele vem e que
serviço ele frequentava?” – (R1, Enf.)
“A obrigação de vir visitar o paciente é do serviço; se eles não vêm, eu não tenho
que ficar chamando. Já era pra eles saberem disso.” – (R1, Psic.).
“Ninguém acha importante fazer contato com o CAPS da região; só eu tenho que
fazer isso?” – (R1, A.S.).
Para Foucault (2004), o conceito de dispositivo foi definido inicialmente como um dos
operadores materiais do poder entendido como: técnicas disciplinares, estratégias minuciosas
e formas de assujeitamento e docilização dos corpos utilizadas pelo poder, detendo-se sobre o
poder coercitivo, que opera na forma de dominação.
Dispositivo, para Foucault, é assim constituído por uma rede que se estabelece entre
um “conjunto heterogêneo de elementos que engloba discursos, instituições, práticas,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, o dito e o não dito.” (FOUCAULT,
apud REVEL, 2005, p.40).
62
Utilização de conceitos foucaultianos na prática educativa, conforme apresentados por Veiga-Neto (2007).
107
Para Deleuze (1999), todos estão imersos em dispositivos e eles nos atravessam o
tempo todo, fazendo-se necessário instalar-se sobre as próprias linhas, separá-las, desenhando
um mapa, cartografando terras desconhecidas e, ao mesmo tempo, construindo novas linhas,
criando novas possibilidades e brechas. Essas linhas não se limitam a compor um dispositivo,
porque elas o atravessam e o arrastam, “do norte ao sul, do leste ao oeste ou em diagonal”.
Um dispositivo é definido por enunciados que dele são produzidos, da mesma forma
que uma linha de subjetivação se institui enquanto um processo, uma produção de
subjetividade. Ela tem que se fazer e pode constituir-se enquanto linhas de fuga, linhas de
fratura, contanto que o dispositivo o permita ou possibilite.
Os espaços pedagógicos propostos para o curso têm uma tripla função organizam a
rotina dos alunos, possibilitam o acompanhamento do trabalho, isto é, testemunham a
construção de conhecimentos, ao mesmo tempo em que proporcionam essa mesma
construção.
Os pontos foram elencados, assim, apenas de maneira didática, pois esses vieses se
entrecruzam e se imbricam de maneira indissociada no cotidiano do trabalho e na vida como
ela é. Várias são as implicações e as combinações possíveis, infinitos atravessamentos estão
colocados, cujos dispositivos pedagógicos fazem aparecer, possibilitando novas produções e
outras construções.
109
A operação a ser realizada nas EPs é a de transversalidades, por fazer ruir o esperado,
o desejado, o idealizado. Esta pesquisa mostra o quanto este espaço é difícil e doloroso para
os atores envolvidos. De certa forma revela-se uma posição imatura e desavisada em relação
ao mundo.
“Não sei o que está acontecendo, os residentes não chegam na hora da aula. Não
entregaram o trabalho. O que está acontecendo?” – (tutora do curso).
As falências dos ideais que sustentam vidas, assim como a construção de novas metas
pessoais e profissionais, passam necessariamente pela dimensão de implicação de todos e,
principalmente, a de cada um em seu processo de formação da própria vida, abrindo para um
devir em constante processo de criação.
63
BALEIRO, Zeca. Quase Nada, Álbum Perfil, Som Livre. 2003.
64
ANDRADE, C.D. de. Poema de sete faces. In: Alguma Poesia. Belo Horizonte: Ed. Pindorama, 1930.
110
“O que a gente vai fazer nesse lugar? Ninguém nem sabe quem a gente é.” – (R1,
Enf.).
“Os porteiros tratam mal os pacientes; alguém tem que fazer alguma coisa.” – (R1,
Psic.).
“Os técnicos dos CAPS não ficam na convivência com os pacientes; eles falam que
é importante, mas não ficam.” – (R2, T.O.).
“É muita coisa, é muito trabalho; vocês deviam trocar os preceptores.” – (R2, Enf.).
“Aquela pessoa não devia coordenar o serviço; ninguém respeita ela.” – (R1, A.S.).
Os serviços e, de alguma forma, o mundo, não estão preparados para nós, já prontos e
completos. As leis não estão implantadas e completamente funcionando. As portas dos
serviços estão abertas, mas eles não estão plenamente habilitados a receber pessoas. E a
pergunta possível de ser formulada do lugar de aluno-residente, ou mais, de ator micropolítico
de um processo em construção é: o que fazer diante dessa realidade? Pergunta que é, ao
mesmo tempo, de todos e de cada um!
“Nós queremos um turno para estudo, não dá tempo para estudar.” – (Turma de R1)
“Os textos são muito grandes. Isso tudo vai fazer mal para nossa saúde.” – (R1,
T.O.)
No começo de uma nova turma são muito presentes as queixas, o lamento e quase uma
posição de culpar os coordenadores, os organizadores do curso pelas mazelas da instituição,
dos serviços e do mundo. Como se lhes coubesse poupá-los da realidade dos serviços e da
vida. E pelas dificuldades da vida. É possível identificar certo desencanto, que aparece por
meio da dificuldade de fazer operar uma transformação das queixas que são apresentadas em
possibilidades de trabalho vivo em ato, construindo novos modos de atuar nas situações
relatadas.
Esse processo de chegada ao serviço é chocante, com toda a intensidade que essa
palavra acarreta. Para uns mais, para outros, um pouco menos catastrófico. Não se trata aqui
de um encontro com a Saúde Mental ou com os serviços de Saúde apenas, o que já não é
pouco. Trata-se de um encontro com a realidade da vida, do mundo não apenas do trabalho,
das relações humanas, das carências de todas as partes, da incompletude, da inadimplência, da
falta no seu sentido mais lacaniano, de uma falta estrutural e que aponta o tempo todo para um
fazer contínuo.
Um fazer que aponta, o tempo todo, para cada um, convocando a um protagonismo,
uma sustentação que é individual, sem precisar ser o desamparo radical.
Este é o primeiro grande desafio de virada do curso. Momento inicial e decisivo para a
produção de um processo de formação consistente.
Neste pedido não havia uma reflexão sobre o serviço, a clientela, no tocante a sua
responsabilidade enquanto instituição pública. O pedido era para que os residentes fossem
poupados de estarem solitariamente no serviço, solucionando o desconforto com a situação e
impedindo a construção de qualquer questão que pudesse refletir o que estava acontecendo.
“Mas vocês acham que uma autorização para chegar depois do horário é o melhor
encaminhamento para essa questão?” – (tutora do curso).
Neste exemplo, a tentativa de promover uma reflexão acerca desse pedido por parte
dos tutores que participavam da EP foi entendido como recusa frente ao pedido e interpretado
como má vontade ou como algo proposital, cujo objetivo era prejudicá-los ou não acolhê-los.
“Por que será que todos chegam depois do horário?” – (tutora do curso).
Essa nova pergunta promoveu uma resposta, que foi capaz de operar alguma mudança
no processo reflexivo dos alunos, deslocando o pedido da mudança de horário para a
dificuldade concernente à atividade desenvolvida nesse horário: a Convivência. O grupo pode
concluir que todos chegavam tarde, porque era muito difícil estar na convivência.
Nesse último trecho foi possível ver uma mudança da posição inicial e decisiva, que
apareceu no coletivo dos alunos. Alguns encaminhamentos foram pensados, como, por
exemplo, discutir essa questão nos espaços de preceptoria de campo e na reunião de
supervisão, promovendo uma reflexão ampliada sobre o espaço da convivência. Foi possível
ainda que os outros alunos, localizados em diferentes cenários, falassem um pouco sobre a
experiência de estarem na convivência e as dificuldades que esse espaço suscitava. Tornou-se
possível perceber também que cada um pode produzir diferentes reflexões e que um
encaminhamento efetivo depende do que cada um será capaz de fazer com essa informação,
no cotidiano do trabalho.
era algo difícil. Se na discussão aparecia algum questionamento sobre o que se poderia fazer,
frente à situação relatada, isso era escutado como afronta. Então, falar sobre o trabalho era
algo bastante difícil e incômodo, em especial, para um dos grupos de alunos. Como dissipar
esse mal-estar era a questão que estava colocada.
Pudemos perceber que uma das turmas viveu esse momento de forma muito dura e
com efeitos danosos, muitas vezes impossíveis de serem manejados por um Programa de
Formação, que, mesmo responsável, é incapaz de responder por todas as dimensões da vida.
Esse processo de trabalhar não com o que se gostaria ou desejaria, mas com o que é
possível, exige um amadurecimento profissional. Há um possível, cuja dimensão deve ser
buscada ao risco de nos perdermos no que achamos que deveria ser.
As demandas são variadas e de todas as ordens. Essas questões são formuladas pelos
coordenadores, tutores e preceptores a todo o tempo, apontando para a necessidade de análise
desse processo, para a construção de novas estratégias facilitadoras na transformação da
“queixa em questão”. O espaço de Educação Permanente não é um lugar nada simples e muito
menos protocolar. É um lugar incerto, arenoso.
“A gente não tem que construir uma agenda para a EP. Na EP tem que vir o que
incomoda, o que eles quiserem pautar e sobre o que eles quiserem falar.” – (tutora
do curso).
A identificação dos temas centrais se deu no espaço de EP e foi produzido pelo grupo.
Ao mesmo tempo, em que aparecia, no testemunho do residente o seu encontro solitário com
o paciente, a dificuldade de sustentar o endereçando de tratamento feito a ele.
115
“Ele falou para mim o que nunca contou para ninguém.” (R2, A.S.).
Este foi apenas um dos vários movimentos que esta pesquisa pôde acompanhar no
processo de construção dos espaços de educação permanente. É possível concluir que é um
espaço em permanente construção, a cada vez e com cada grupo de alunos, ao mesm tempo,
se trata de um espaço instituído, do qual a coordenação do curso não abre mão.
Essa reflexão nos aproxima do conceito de caosmose, trabalhado por Guattari, cuja
definição nos remete a um processo de relativização da realidade, criando a possibilidade de
novos arranjos desta. (GUATTARI, 1992).
Essa dificuldade se deve tanto ao inesperado do que aparece quanto ao trabalho que
será produzido. Não é possível saber previamente as questões que serão pautadas pelos alunos
e pelo grupo, nem a forma como as questões serão encaminhadas por quem coordena o
espaço, o tom de reflexão, as queixas, as recusas e as proposições. As formas de construção
de afirmações e de negativas, as possibilidades e as impossibilidades, as demandas
equacionáveis e as não equacionáveis... Não é possível saber de antemão a forma como tudo
116
isso vai se encaminhar na hora de sua construção nem depois, assim como qual dificuldade
existirá para o grupo e para cada um.
Tudo isso, ao mesmo tempo e a cada vez, se coloca como mistério infinito,
incomensurável, cujos efeitos são impossíveis de serem precisados. Estamos no campo do
impreciso, da multiplicidade e da complexidade, sem possibilidade de redução, simplificação
ou aferição.
Mais uma vez, é preciso afirmar ante a multidisciplinaridade: o todo não é igual à
soma das partes! Cada aluno é uma potência única, cuja participação no corpo coletivo é
variada e não destaca inteiramente as características de cada um que a compõe. Nessa
perspectiva, o que está em jogo é a aprendizagem, a aquisição de competências variadas, as
117
“-Você acha que pode sair do serviço sem dar notícias do seu trabalho com o
paciente?” - (tutor do curso).
“Eu sempre quis fazer serviço social, queria mudar o mundo.” – (R1, A.S.).
“Eu sou uma pessoa mais crítica e gosto muito das questões políticas.” – (R1, Enf).
A não padronização da demanda dos alunos faz com que os tutores, os coordenadores
e os preceptores tenham uma flexibilidade impensada na forma de conduzir os espaços
tutoriais e de construir os PPIs. É, ao mesmo tempo, a disponibilidade de acompanhar os
processos de formação dos alunos, seus limites, dificuldades, interesses e potencialidades.
“Escolher a residência foi uma decisão em nome de uma experiência mais sentida do
que pensada, e que nunca poderei provar racionalmente.” – (R1, Psic.).
“Eu não gosto da clínica de álcool e drogas, por que vou ter que passar por lá?” –
(R1, A.S.).
“Cada um tem o seu jeito. Eu sou assim; não dá para querer que eu seja outra
pessoa, porque isso é impossível.” – (R1, Psic.).
“Como querer e, ao mesmo tempo, não desejar pelo outro? Ela não pode desistir do
curso, é uma pena! Ela não sabe o que está fazendo.” – (tutora do curso)
É preciso aceitar cada um a seu jeito, sem comparações, sem destituições. Essa é a
beleza, a riqueza e a dificuldade do trabalho do educador.
120
Reconhecido, cada vez mais, como espaço e lugar de mediação entre a escola e o
aluno, o portfólio tem-se mostrado capaz de potencializar múltiplas formas de expressão
humana. Utilizado de forma ampliada e personalizada, pode incluir poesia, lista de livros,
filmes, fotos, artefatos, resumos, trabalhos apresentados, além de incluir a experiência
prazerosa frente à oportunidade de significar a sua trajetória.
Aberto ao inesperado, ao não previsível, ao que acontece, o portfólio tem como foco
os processos de transformação, que, mais do que saber para onde precisa ir, deve-se
acompanhar seu caminhar, a construção de um percurso possível e pertencente a cada um. Um
percurso de transformação de si e, ao mesmo tempo, registro de transformação da realidade.
Vários são os relatórios produzidos pelos alunos e que compõem seus portfólios. Eles
levantam questões, promovem reflexões e propõem ações interventivas sobre a realidade.
Relatórios sobre o Serviço Residencial Terapêutico, a respeito de um evento crítico na
enfermaria, relativos ao levantamento da clientela de um serviço, todos esses colocam
questões e promovem a reflexão acerca de si mesmo e do mundo ao seu redor.
122
Muitos são os elementos que devem compor esse processo, possibilitando que seja o
mais ampliado e inclusivo possível, cabendo a apropriação de falhas e de dificuldades do
percurso também como motoras da aprendizagem, como foco de prescrições pedagógicas e
ações formativas para o aluno e, por isso, incorporadas ao processo de ensino.
ele se apresenta também enquanto potência instituinte, capaz de fazer aparecer, operar e
construir novas formas de entendimento das situações vivenciadas.
A direção de trabalho colocada pelo PPP (IPUB, 2010) toma a construção do portfólio
como decisiva e orientadora. Esta aposta visa possibilitar que o residente estabeleça um
diálogo com suas próprias práticas, um diálogo capaz de produzir também uma conversa com
autores que discutem determinada temática, sendo capaz de ampliar o conhecimento e
solidificar conteúdos.
Trajetória pessoal;
Expectativas com relação à residência;
Cenários de prática referente a cada serviço: uma reflexão crítica com questões
práticas, ações possíveis e estratégias de intervenção; apresentação das atividades
realizadas: acompanhamento de casos e participação em oficinas e grupos. (o que
vocês fizeram, e qual foi a contribuição que vocês deram)
Disciplinas: incluir uma reflexão sobre cada módulo com questões, contribuições e
sugestões. (O que cada disciplina pode contribuir para a sua formação, para a sua
prática profissional);
Fóruns de discussão (reflexão sobre todos os espaços de discussão: sessão clínica,
centros de estudos, Educação Permanente, supervisões e tutorias). Destacando as
questões, aprendizagens, contribuições;
65
É denominado “Contrato Pedagógico” tudo que é combinado no início do semestre sobre formas de atuação de
professores e estudantes: objetivos a serem alcançados, metodologias, formas de avaliação, datas de entrega de
trabalhos, enfim, os papéis de cada um.
125
Além do roteiro mínimo, cada tutor constrói, junto com o aluno, uma forma de ele se
organizar para a realização dessa tarefa, que se desenvolve ao longo dos dois anos de curso,
com o intuito de garantir que sua elaboração seja efetivamente continuada e processual. Por
exemplo: um dos tutores propõe que cada aluno desenvolva uma questão reflexiva por
semana, a respeito de algo que tenha chamado a sua atenção no trabalho, de forma a produzir
níveis diversos de análise, além de soluções propositivas e criativas sobre ela.
Esse dispositivo pedagógico, mais uma vez, atualiza e ratifica a direção colocada pelos
outros dispositivos: toma como ponto de partida os impasses, as dificuldades e as dúvidas. Tal
posição garante a sustentação da possibilidade de não saber66 alguma coisa, mas,
fundamentalmente, o querer saber. É importante frisar que só é possível se debruçar e
construir conhecimento a respeito do que não se sabe, acerca daquilo de que se tem dúvida,
sobre uma experiência ainda não nomeada e imediatamente desconhecida. Aqui, a
incompletude e a falta são tomadas como motoras desse processo (RINALDI, 2004).
Da mesma forma, é fundamental construir espaços nos quais essas dúvidas e impasses
iniciais possam aparecer e ser trabalhados, em constante exercício de pesquisa-intervenção67
por parte dos alunos. É correto afirmar que as ideias são construídas no formato de espirais de
reflexão e de ação sucessivas, a partir da prática profissional nos serviços de Saúde, de forma
dialógica (ELLIOTT, 1993).
Cada aluno se sente autorizado para ousar e trabalhar criativamente em cima dos
elementos atravessados em seu processo de aprendizagem, que causaram efeitos para a sua
formação. Tudo cabe no portfólio, desde que faça sentido para a sua trajetória profissional e
pessoal, de forma que os alunos possam ocupar a posição de protagonistas de suas práticas, e
consequentemente de seus textos. Ele é um esforço de construção de sentido.
66
Ao considerarmos o processo analítico como algo terminável, que portanto, se desenvolve em determinado
espaço de tempo, vemos que há um caminho a percorrer entre o ponto inicial, com a instauração da transferência,
e o ponto de encerramento, momento de concluir. Durante esse processo está implicado um desconhecimento
que é interno ao próprio movimento em que a ação do analista permanece, para ele mesmo, em grande parte
velada. É no só depois que precipita o momento de concluir que um saber sobre este percurso se elabora.
67
“A cartografia como método de pesquisa-intervenção” é apresentada por Eduardo Passos e Regina Benevides
(2000). Com base na contribuição da análise institucional, discute a indissociabilidade entre o conhecimento e a
transformação tanto da realidade quanto do pesquisador.
127
De fato, tratou-se de uma produção emocionante, afetada pela vida e por sentimentos
que atravessaram o primeiro ano de residência para cada um daqueles alunos que compunham
a turma de R1 e, por isso mesmo, muito difícil de ser retratada e descrita.
Dentre elas há um poema construído por uma residente após uma apresentação em
LIBRAS68 do Abecedário da XUXA. Seu objetivo era demonstrar o quanto o primeiro ano da
residência tinha sido uma experiência difícil. Falava, de forma lúdica, sobre a dificuldade de
linguagem entre os profissionais, entre os pacientes, dificultando a comunicação na
instituição.
68
Linguagem Brasileira de Sinais.
128
Eu fico com a pureza das respostas das crianças... viver e não ter a vergonha de ser
feliz, cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz ... eu seu que a vida
devia ser melhor e será, mas isso não impede que eu repita... é bonita, é bonita e é
bonita...
“Não tem jeito, cada um tem uma forma muito singular de falar, das experiências,
dos afetos...”. (tutora/coordenadora).
Para finalizar essa passagem, segue o registro de mais um importante trecho que fala
por si:
129
É preciso não sucumbir ao relativismo, em que tudo e nada valem a mesma coisa. É
preciso nomear, identificar os conteúdos desse processo, identificando os núcleos temáticos,
ativando a capacidade reflexiva e a possibilidade de construção de resposta pelos alunos em
formação.
Neste segundo movimento serão apresentadas algumas das temáticas que circularam
nos espaços de formação no período de construção desta pesquisa. É possível notar certo
encadeamento na forma como os temas se apresentam, deflagrando o processo de construção
e de complexificação no processo de formação dos alunos.
69
Poema trazido por uma residente no espaço de apresentação do portfólio artístico. Viviane Mosé, Rios.
130
“Pessoas tão diferentes que a vida fez questão de juntar”. – (R1, T.O.).
Um conjunto de sujeitos com suas individualidades, com a própria história, com suas
verdades e memórias. São esses sujeitos particulares que compõem o coletivo da turma, cuja
missão de trabalho-formação se estabelece. É nesse contexto que um processo educativo se
coloca, na interação com o mundo institucional, com os conceitos e os conteúdos a serem
aprendidos e soluções a serem criadas.
“Eu não sou psicóloga, como vou acompanhar um paciente?” – (R1, A.S.).
A experiência da residência coloca uma transformação nada simples e nada fácil de ser
operada. Os alunos se ocupam profundamente de questões como: Como cada caixinha
profissional se articula com as demais no exercício do cuidado em Saúde? Em que elas se
diferenciam? Inicialmente tentam garantir as suas especificidades, diferenciando-se das
outras.
“Os psicologia precisam de uma sala para atendimento individual.”- (R1, Psic.).
“Se todos os assistentes sociais ficam ali naquela sala, por que nós não podemos?” –
(R1, A.S.).
cuidar com integralidade ou escutar com sensibilidade, não são oposições e nem fragmentos
autossuficientes” (MERHY e CECCIM, [s/d], p.9).
Com o foco nos procedimentos específicos a serem realizados por cada categoria
profissional, lidamos com tarefas-estanque e desvinculadas das necessidades dos usuários. A
assistente social acompanha a retirada do benefício e faz contatos sociais e familiares; já o
médico faz a prescrição, ao passo que o psicólogo conversa, enquanto a terapeuta ocupacional
desenvolve habilidades manuais e o enfermeiro cuida da rotina na enfermaria. A pergunta é:
quem cuida do sujeito?
Qual categoria profissional pode responder exclusivamente por uma ação de cuidado?
A dos pacientes que são alvo de muitos procedimentos: ECT,70 substituições de
medicamentos, aumentos de dosagens, objeto de uma enxurrada de tecnologias duras e leve-
duras, onde se espera a produção de respostas mágicas que prescindiam do contato e do
encontro. As ações especializadas poderão ser pensadas somente a posteriori, a partir do
encontro e conforme as necessidades de saúde de cada sujeito (MERHY, 1998; CECCIM,
2004-2005).
Essa fragmentação do cuidado que está presente na prática da atenção à saúde tem sido
a resposta hegemônica oferecida pelos serviços de Saúde até o momento, o que garante uma
lógica de atuação multiprofissional, entendida como multifacetada ou um somatório de ações
individualizadas.
70
Eletroconvulsoterapia é um tratamento psiquiátrico no qual são provocadas alterações na atividade elétrica do
cérebro, induzidas por meio da passagem de corrente elétrica sob condição de anestesia geral. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Eletroconvulsoterapia>.
133
“Eu, a médica e a assistente social conversamos sobre o retorno dele para casa.”-
(R1, T.O.).
Para Ceccim e Merhy (2009), os lugares de encontro não são lugares dominados pela
técnica, pela rotina, pelos protocolos, por uma profissão ou por uma instituição a que os
autores chamam de “forças externas”. Lugar central é destinado ao usuário, cujo cuidado pode
ser produzido a partir desse encontro. Chegamos assim ao conceito de usuário-centrado, em
oposição a médico-centrado ou procedimento-centrado.
Esse outro tema traz para reflexão as contradições cotidianas entre as ações da
instituição IPUB e a direção da Política de Saúde Mental voltada para o trabalho com o
território.
Além das estruturas e das conformações dos serviços, convivemos com lógicas
assistenciais diversas, que definem práticas às vezes mais, às vezes menos orientadas pelos
pressupostos da reforma e pelos princípios do SUS. Essa contradição foi descrita por Costa-
Rosa (2000), ao definir que o Modo psicossocial e o Modo hospitalar de operar o cuidado
atingem diretamente o acompanhamento dos pacientes e a relação dos alunos com as equipes
e com o território.
“Os pacientes que recebem alta são encaminhados para o ambulatório, mas M. mora
em Nova Iguaçu!” – (R1, A.S.).
“Ele mora sozinho num quarto; vai precisar de um suporte maior após a alta.” – (R1,
T.O.).
“Na equipe a que estou referida só há médicos, nenhum outro profissional participa
da equipe clínica!” – (R1, T.O.).
Essa chegada é vivida com muita frustração. Questões sobre o processo de Reforma
Psiquiátrica, o descompasso entre a realidade e a forma como está descrita no livro ou
prevista nas legislações tomam a cena dos espaços tutoriais e de educação permanente.
Que lugar eles ocuparão nesse contexto institucional tão paradoxal e como irão
desenvolver o trabalho em saúde? Muita angústia está presente no momento da chegada.
O Programa de Residência, por meio do seu PPP (IBUB, 2010), sustenta a proposta de
que a formação se dê frente às adversidades do trabalho em Saúde Mental, que ocorra ao
mesmo tempo no enfrentamento das questões reais, dos serviços reais, posto que tudo isso
tem efeitos para a formação.
O choque entre o ideal e o real, entre a teoria e a prática, entre o de deveria ser e o que
é, entre o que nos cabe e os nossos limites, esse é o núcleo temático debatido nos espaços
pedagógicos.
Os alunos, a todo tempo, chamam a atenção para essa contradição, embora suas
expectativas iniciais sejam as de solucionar o problema, de findar a contradição e de resolver
o paradoxo. Mostra-se angustiante o encontro com um mundo complexo e fragmentado na
relação entre produção teórica e produção do cuidado, entre as diferentes maneiras de dizer e
de fazer presentes na instituição, cenário dessa proposta pedagógica.
“Existem pacientes que moram na enfermaria há mais de dez anos.” – (R2, Psic.).
“O tratamento na crise é ficar internado e tomar medicação? Mas é isso que trata a
crise?” – (R1, Psic.).
“Dar alta é encaminhá-lo para casa e só? Pensar a continuidade do tratamento não é
importante?” – (R1, A.S.).
136
Atualiza-se o hiato entre a produção teórica do campo da saúde mental, formulada por
autores chaves, muitos deles docentes que compõe o corpo do IPUB, e pelas políticas de
saúde mental; e a assistência oferecida cotidianamente nos setores da própria instituição.
“Estou acompanhando uma paciente que mora em Austim, Belford Roxo, pensei em
ligar para o CAPS, mas o médico quer que ela continue se tratando no ambulatório.
E a regionalização?” – (R1, A.S.).
“Essa é quarta internação dele só esse ano; precisamos entender o que está
acontecendo. Não dá pra gente repetir a mesma coisa.” – (R1, T.O.).
A fala de um residente do segundo ano, após seis meses de inserção em um dos CAPS
do município do Rio de Janeiro, analisa esse hiato.71
Outro tema muito recorrente foi sobre a utilização da contenção mecânica nas
enfermarias. Tema delicado e sujeito a inúmeros atravessamentos e disputas. Cientificismos
fervorosos, críticas de grupos que defendem os direitos humanos, valores morais de bem e
mal em jogo também.
“Não há espaço para discussão sobre o que é feito e nem como é feito.” – (R1, Enf.)
71
Cabe ressaltar que, durante o estudo, foram recolhidas muitas falas que destacavam esse hiato.
137
Mais uma vez, a contradição se mostra a despeito do protocolo e aparece como tema
de debate nos espaços formativos do Programa de Residência. Nesses espaços foi possível a
construção de questões que viabilizaram uma reflexão sobre o que é contenção, a diferença
entre fazer contenção e dar continente, desencadeando a possibilidade de um estudo mais
aprofundado com os residentes, para além das diferentes opiniões ou valores políticos e
morais.
Algum tempo depois, os residentes dão notícia de que uma paciente grave, que tem
surtos frequentes de agressividade, após inúmeros episódios de contenção conturbados,
permite que sua equipe de cuidado – residentes, auxiliares, técnicos, enfermeiros e médico –
consiga contê-la, amarrando apenas um de seus dedos à cama de ferro da enfermaria,
deixando algumas perguntas para reflexão:
De que ordem foi essa ação? O que pôde ser contido? Qual a função da presença da
equipe? O que possibilitou a sustentação da crise sem fortes tiras de tecido que
segurassem todo o seu corpo avantajado? O que se passa com essa paciente de tão
radical e insuportável? Questões fundamentais para alunos e técnicos, para a
formação de uma instituição de saúde.
Com o passar do tempo, dos meses, a imersão no mundo do trabalho vai aproximando
os residentes de questões mais profundas e, ao mesmo tempo, sutis, que apontam para a
delicadeza da clínica e das condutas no âmbito da Saúde Mental. Aqui podemos identificar o
que chamamos do encontro com o mundo do trabalho propriamente dito, onde alguns temas
são depurados a partir das reflexões nos espaços coletivos.
138
Do mesmo modo, temas mais complexos sobre o acesso foram explorados com
desdobramentos para se pensar as referências e contrarreferências, experiências bem e mal
sucedidas acompanhadas de reflexão sobre as conduções, a burocracia, os encaminhamentos
que não chegavam e os serviços que não recebiam. Possíveis equívocos de comunicação
foram considerados. Igualmente foram lembradas as dificuldades estruturais e as de gestão,
como serviços lotados ou com agendamentos demorados. Em meio a isso, uma importante
pergunta pôde ser formulada:
“O que pode ser feito diferente frente ao drama do acesso aos serviços de saúde em
nosso Estado”? (R2, A.S.).
As diferentes experiências de recepção compartilhadas pelos alunos proporcionaram
uma importante reflexão sobre os tipos de serviço, a forma como se organizam, o
funcionamento das equipes, a disponibilidade para a escuta, as diferentes concepções de
recepção, de acolhimento e de triagem, bem como os efeitos disso para alguns casos em
acompanhamento...
Essas são algumas dentre várias temáticas que circularam nos espaços pedagógicos;
algumas delas inspiraram os temas das monografias de conclusão de curso dos alunos.
Qual a missão desse serviço? A que ele serve? Qual o critério de ingresso? Que
lógica opera a sustentação desse dispositivo no cenário da reforma psiquiátrica?
Qual a sua relação com o território? Como deve ser o seu funcionamento? Que
dispositivo deve ser indicado como lugar de tratamento a clientela de longa
permanência? Qual a função dos profissionais que ali trabalham? Como acontece o
cotidiano do trabalho? Quais as estratégias de produção de autonomia? Quais os
indicadores de cronificação? Qual a relação de trabalho entre o serviço e os
moradores de longa permanência internados nas enfermarias de agudos? Como se
dava a “alta”? Qual o critério de substituição dos pacientes?
139
Essas são apenas algumas das inúmeras perguntas construídas pelos alunos - R1 e R2 -
ao longo desses meses de produção da pesquisa. Essas indagações geraram inúmeras
reflexões, estudos aprofundados sobre os conteúdos de desinstitucionalização, relativos à
reforma psiquiátrica, a leitura de artigos sobre relatos da experiência de
desinstitucionalização, inúmeros encontros, os processos de construção de autonomia, o
dispositivo de cuidado, de relação, de cuidado e de tutela.
Era nítido o quanto essas questões provocadas pela imersão no mundo do trabalho, de
fato, tinham atravessado a experiência desses alunos em um nível orgânico, passional e cheio
de afetações inomináveis e imprevisíveis, que os tiravam completamente da sua zona de
conforto e tiravam igualmente a coordenação, os tutores e os preceptores. Era impossível
responder a isso com conformismo ou neutralidade. Era impensável que, quem quer que
fosse, em uma posição de formadores de pessoas, de sujeitos, de cidadãos, ficar inerte e
insensível à dimensão de fato, de evento significativo, de acontecimento embutida naquelas
questões tão pertinentes, tão profundas e tão delicadas que eram apresentadas, a cada novo
encontro, com os alunos.
72
O clipe sugerido por uma aluna como forma de ressaltar a importância de um processo de formação que
produza sujeitos críticos e reflexivos. (R1, T.O.).
140
Recupera-se aqui a expressão “furo no muro”, muito presente nos espaços coletivos do
Programa de Residência. Uma expressão que pode ser interpretada pelos analistas, analisada
pelos cientistas ou problematizada pelos institucionalistas, denotando uma complexidade e
polissemia de vieses exploratórios.
Que história é essa de fazer “furo no muro”? De que forma isso se aproxima do tema
desta pesquisa?
73
O Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental do IPUB/UFRJ utiliza a plataforma virtual
Constructore/UFRJ, ampliando os espaços de troca entre alunos e tutores.
74
Título de um documentário realizado pela Rede Globo de Televisão.
141
Assim, o simbolismo da queda do muro ou, mesmo, o furo no muro do hospício pode
ser evocado como a mudança na forma de conceber a doença mental e seu tratamento, em que
o furo no muro constrói a possibilidade de introdução da diferença na cidade, da unificação do
diverso, do fim dos separatismos, dos isolamentos e das segregações, que estão, em muito,
nos impedimentos e nas limitações físicas e arquitetônicas das grandes estruturas manicomiais
e se reproduzem e se constituem por práticas, por ações e por ideologias que promovem a
segregação. A queda do muro ou o furo, mais do que uma ação de derrubada física é uma
ação de desconstrução cotidiana, micropolítica, presente nas ações de cuidado, criadas por
pequenos protagonistas do dia-a-dia, capazes de derrubar muito mais do que tijolos e
concreto.
Desta forma, fazer o furo no muro é uma metáfora, é a construção simbólica desse
processo transformador de operar transformações no âmbito das próprias práticas cotidianas,
as quais, somadas, criam ressonâncias amplificadas infinitas vezes e, neste processo, o
Programa de Residência tem operado de forma ativa.
“Com V. nós já tentamos de tudo, não tem jeito, ela fica melhor internada na
enfermaria.” – (R1, Psic.).
142
“Os moradores não possuem a chave da casa e não podem abrir a geladeira.” – (R2,
Psic.)
“Os pacientes graves que somem do serviço são considerados casos de abandono e
ponto final.” – (R1, Enf.).
Essas mudanças no processo de formação dos alunos não ocorrem de forma simples.
Certos efeitos apontam para algumas das dificuldades identificadas no movimento dos alunos:
a de permanecer durante todo o horário de plantão, a de permanecer na enfermaria, a de
acompanhar pacientes, dificuldade em reconhecer o seu lugar profissional, em assumir
responsabilidades profissionais com os serviços e com os pacientes, bem como denúncias
quanto às falhas do profissional X ou Y. Muitas foram as atitudes perpetradas por alunos,
recolhidas no processo de produção desta pesquisa; algumas mapeáveis e outras, não.
“Pra mim já foi, já era. É isso e tudo bem. Vamos lá então ver o que é possível.” –
(R1, T.O.).
No caso específico dessa paciente, foram meses de trabalho do residente para que ela
pudesse construir possibilidades concretas de se mudar do seu jeito, com suas limitações,
impedindo que a equipe decidisse, a despeito da paciente, indicar outra pessoa para a “sua
vaga”.
Outro residente se interroga sobre a melhor forma de conversar com uma profissional
com quem divide o cuidado da paciente, na tentativa de incluir um cuidado singular e não
tutelar.
143
“Como dizer para a técnica que a paciente é capaz de escolher o próprio colchão? E
que o melhor para ela (técnica) pode não ser para ela (paciente).” – (R2, Psic.).
Ao mesmo tempo, os residentes conseguem cada vez mais incluir outros técnicos no
cuidado de determinado paciente, e o cuidado torna-se cada vez mais compartilhado:
Nos espaços mais duros e fragmentados pela aridez, os residentes chegaram fazendo a
diferença. Construindo espaços de possibilidades, linhas de fuga, que aponta para a
construção de novas possibilidades, segundo Deleuze (1999).
O esforço de captura deixa brechas fundamentais, justamente por não haver respostas
apriorísticas que possam dar conta das necessidades do sujeito. São brechas que aparecem
escancaradas a quem se dispuser a olhá-las, as quais são nomeadas na dinâmica institucional
de diferentes formas: não aderência ao tratamento; transtorno de personalidade, falta de
moradia, traficante, resistente à medicação, simuladoras... São infinitos os nomes que a
instituição lança mão quando o seu projeto de tratamento procedimental e apriorístico não dá
conta de tratar o sujeito. Nesses espaços, um olhar atento e despretensioso, despido de
orientações generalizadas, encontra um campo rico e produtivo: a promoção do cuidado
singular.
trabalho em que eles estão inseridos. Esses elementos se integram à cena institucional, são
incorporados pelas equipes e passam a participar de seus funcionamentos. É de dentro para
fora que transformações incalculáveis vêm se mostrando possíveis nesse período. Cada vez
mais visíveis e notórias.
“A paciente não saía da cama para nada, fazia tudo no leito e então passei a
acompanhá-la de perto. A cada vez que ia vê-la, me apresentava e ficava ao seu
lado, me colocando disponível e atenta a ela. Perguntava sobre sua vida e sempre a
chamava para passear pela enfermaria, às vezes pelo pátio. Algum tempo depois, ela
topou me acompanhar e, desde então, nunca mais ficou restrita ao leito.” – (R1,
A.S.).
O objetivo deste evento era apresentar o trabalho das enfermarias e do SRT no que
tange ao cuidado com os pacientes de longa permanência, na tentativa de se construir uma
direção comum a ser operacionalizada pelo Programa de Desinstitucionalização que
coordenaria as ações junto aos pacientes-moradores.
75
Expressão utilizada por Ceccim e Merhy (2009), ao se referirem aos atores institucionais catalisadores de
ações institucionais potencialmente inovadoras e responsáveis pela convocação de um debate ampliado sobre as
práticas de singularização do cuidado em Saúde.
76
Um dos cenários de prática do IPUB, coordenado pelo Dr. Júlio Verztman, pelo qual passam os residentes de
primiero ano. Ele tem como objetivo construir espaços e atividades com os pacientes internados, habitando as
enfremarias.
145
relações de tratamentos com os pacientes, novos elementos passam a ser identificados como
sinais de melhora e o tratamento se amplia.
Os efeitos das saídas individuais e coletivas, cada vez mais constantes no cotidiano do
trabalho, fazem com que os profissionais da rouparia, setor responsável pelas roupas dos
pacientes, chamem os alunos para pensar estratégias conjuntas de organizar a separação das
roupas. O que antes era usado de forma indiscriminada por todos os pacientes, passa a ser
separado para cada um. Alguns pacientes ‘ganham’ roupas próprias, reconstruindo aos poucos
gostos, estilos, características e identidades.
77
Atividade semanal construída por residentes, profissionais e pacientes, com o objetivo de fazer circular a fala,
onde são debatidos temas gerais e de interesse de todos. Um dos objetivos é que os pacientes particpem da
construção das atividades e das regras de convinecia na enfermaria.
146
Aos poucos, os CAPS passam a ser incluídos no rol dos possíveis encaminhamentos, e
essa função não fica apenas com o ambulatório da universidade, em que o ambulatório
acadêmico por caso é substituído pela real necessidade daquele paciente, o que também é
formador. Os encaminhamentos para os CAPS envolvem a construção e a discussão coletiva
dos casos, as visitas institucionais, o acompanhamento dos pacientes, a visita ao território de
moradia, a inclusão da família na discussão e a construção de novas estratégias para as
situações de alta.
cuidado, orientados por diferentes lógicas de tratamento, traz novos elementos para o debate,
tornando cada vez mais rica e ampliada a discussão e a construção coletiva do caso.
Dispor-se ao encontro com outro objetivo que não a restauração do sujeito ao estatuto
de normalidade, remissão dos sintomas e enquadramento social, possibilita que seja possível a
dimensão de acontecimento: “Que acontecimento é esse, que se abre de modo tão díspar,
como oportunidade para processos de subjetivação os mais variados, num agir micropolítico
e pedagógico intensos?” (MERHY e CECCIM, [s/d], p. 8).
É basicamente com essa pergunta que os alunos se deparam ante os efeitos de seu
trabalho junto aos pacientes.
“O que eu fiz? Foi milagre? Não fiz nada demais, só não desisti de conversar com
ela e um dia ela me respondeu. Todos tinham dito que eu estava perdendo meu
tempo que ela era um quadro neurológico e que nada poderia esperar dela.” – (R1,
A.S.).
Nesse caso, o quadro neurológico resumia inteiramente tudo que a paciente era e
poderia ser. Ele explicava tudo o que a paciente fazia, ou melhor, deixava de fazer, e
justificava, com a mesma intensidade todas as suas impossibilidades. Esse entendimento
resumia o argumento para que todos da equipe não se ocupassem dela. Todavia: “Um
encontro cuidador pode ser o disparador de autopoieses78?” (MERHY e CECCIM, [s/d], p.
8).
78
A noção de autopoiese foi formulada pela primeira vez na década de setenta por dois biólogos chilenos,
Humberto Maturana e Francisco Varela, e utilizada por Deleuze e Guattari no campo da filosofia. A novidade de
Maturana e Varela é propor o entendimento dos seres vivos como estando em constante processo de produção de
si, em incessante engendramento de sua própria estrutura. É importante considerar o processo de autocriação
constante (KASTRUP, 1995).
148
Sustentar a direção do Curso de Residência não parece tarefa fácil. Isto requer a
capacidade de administrar todo o tempo as tensões vividas pelos alunos imersos no mundo do
trabalho tal como ele é: inacabado, pouco multiplicador de trabalho vivo, procedimento
centrado, nada orientado pelas particularidades e reprodutor de condutas vazias de sentido.
O residente chega com outra agenda; é preciso acompanhar cada um, interessar-se
pelo que há de singular e, desse modo, produzir cuidados cada vez mais inovadores, nunca
antes pensados, por terem como foco a singularidade. É essencial escutar o outro, pois nada
sei dele. É indispensável ir ao seu encontro com a possibilidade de este ser um acontecimento
criativo, a respeito do qual meus ‘a priore’ serão incapazes de responder.
Poderia ser diferente? Poderia haver outra proposta que orientasse a formação de
profissionais em saúde no contexto do SUS?
A resposta tem sido negativa até o momento, o que coloca essa direção de trabalho
como condição imprescindível, algo inegociável diante do mandato ético e pedagógico que
atravessa toda a construção do curso e está presente em seu Projeto Político Pedagógico.
Um prato fundo
pra toda fome que há no mundo.
(Zeca Baleiro, 2002)79
Quais as conclusões possíveis a partir desta investigação?
Para acompanhar esse processo foi preciso se render ao que é fluido, inapreensível,
pois o momento passa e, quando é possível identificar, já estamos fazendo outra coisa. Assim,
o que se apresenta aqui tornou-se antigo, desatualizado, uma vez que as pessoas são outras, os
processos se modificaram e os efeitos caminharam.
Em razão dessa intangibilidade, o que esta pesquisa pode construir não é algo estável,
e é legítimo afirmar que inúmeras mudanças estão ocorrendo sem parar. O grupo de
profissionais responsáveis pelo curso, assim como a própria instituição e os pacientes, vai
continuar recolhendo, ao longo dos anos e das próximas turmas, os efeitos de seu trabalho.
79
Zeca Baleiro, Música: Quase nada. Álbum Perfil, Som Livre, 2002.
150
A formação nas Residências em Saúde ocorre no cenário real dos serviços, lugar dos
impasses e do cotidiano do cuidado, onde este se constitui como um campo de produção
singular.
A ‘invasão’ dos residentes multiprofissionais, grupo que soma quarenta alunos neste
ano de 2013, tem podido promover uma convocação à instituição, eminentemente médica, a
rever suas práticas, a incluir outros aspectos do sujeito em sofrimento e a ampliar o seu leque
de estratégias de tratamento, de modo que todos os envolvidos se tornam atores e beneficiados
ao mesmo tempo.
Lugar-comum, mas talvez seja importante reafirmar, como o poeta, que é ao caminhar
que se faz o caminho,80 levando destaque à dimensão da prática, daquilo que é experimentado
no mundo do trabalho, da vida do fazer profissional.
Retomamos aqui Foucault, cujo pensamento coloca dificuldades que reforçam o dito
do poeta, ao apontar para a dimensão de construção continuada à medida que caminhamos.
Esse pensador inaugura a dimensão do deserto, da falta de balizas definidas e definitivas, que
trazem angústias e incertezas a todos.
Em certo sentido, ler os livros de Foucault é como passear pelo deserto. Paisagem
ora desoladora, ora magnífica, na qual nenhuma trilha se desenha a não ser aquela
que o próprio caminhante cunha com seus passos; lugar sem lugar onde nada
permanece No entanto, o deserto é a apoteose da luz: onde tudo é visível e não há
como se esconder. Nem todo mundo está disposto a passeios tão inóspitos. Não há
conforto possível aqui. Nenhuma reconciliação, apenas batalhas: entre palavra e
coisa, entre história e filosofia, entre o pensamento e seu lado de fora, entre poderes
e resistências, entre sujeito e si. Nenhuma promessa, nenhuma redenção: apenas
80
António Machado, poeta sevilhano: “no hay camino, se hace camino al andar. Al andar se hace camino”. Os
poemas de António Machado foram transcritos da 2a.ed. (revista e aumentada) de uma Antologia Poética (com
selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento), da editorial Cotovia (1999).
152
Conhecer a realidade implica acompanhar o seu caminho nos espaços em que a vida
ocorre, onde o ensino-aprendizagem aparece, nos relatos das ações de intervenção operadas
pelos alunos que esta pesquisa teve como meta recolher e analisar, de modo a revelar os
processos reflexivos e formadores.
Ante as situações vividas pelos alunos foi possível identificar atitudes e a construção
de reflexão sistemática a respeito da prática profissional, promovendo a melhor compreensão
dos conhecimentos dos alunos a partir da análise de suas palavras, assim como possibilitou o
estudo dos contextos onde os alunos se inseriram. As narrativas capturadas mostraram-se
como um processo de intervenção na realidade, cuja construção já não é mais a descrição pura
do fato em si, mas a percepção dele já transformado.
Esta dissertação pode mostrar que, neste mundo complexo, interessam os processos, os
acontecimentos multirreferenciados e multideterminados. O Programa de Residência
Multiprofissional, investigado por esta pesquisa, promove alguns movimentos essenciais no
sentido de propor um modelo de formação que constitua importante dispositivo de produção
de um profissional de Saúde Mental mais comprometido com os princípios e as diretrizes do
SUS e mais afinado com as transformações do campo da Educação em Saúde.
O que apareceu nos discursos dos alunos foi alvo de aprofundamento teórico da
experimentação das possibilidades de lidar, da avaliação das respostas encontradas e da
revisão das estratégias de atuação. Resultado de um processo de investigação-ação. O
impacto dos espaços de construção do conhecimento promoveu a aquisição da capacidade de
reflexão e de revisão de práticas.
No que diz respeito aos processos educativos, vale entendê-los também como uma
relação complexa, em que vários são os elementos relacionados, tomando em conta que o
conhecimento é construído em forma de espiral, em uma constante de idas e vindas, durante
as quais os saberes vão se sedimentando, impulsionando outros novos conhecimentos e
capacidades mais e mais elaboradas de análise, complexificando o entendimento do mundo,
das práticas e das próprias ações.
A tentativa de resposta às questões formuladas pelos alunos era feita com novas
questões de maneira a estimular o pensamento para que eles chegassem por si à resposta,
validando suas próprias conclusões e encaminhamentos, expressando suas ideias. “(...) um
excelente educador não é um ser humano perfeito, mas alguém que tem serenidade para se
esvaziar e sensibilidade para aprender.” (CURY, apud REIS, 2008, p.12-3).
Esta pesquisa não se dedicou a dar notícias do perfeito funcionamento das coisas ou
das conclusões passíveis de generalizações para outras tantas experiências de residência
multiprofissional brasileira. Não se orientou pela busca de um modelo.
A proposta desta pesquisa diz respeito a uma apreensão mais próxima quanto possível
de um processo que é invisível e, ao mesmo tempo, concreto, já que não pode ser visto
enquanto acontecimento singular e pessoal, mas cuja visibilidade se faz possível e se eterniza
em atos e transforma-ações, operando produtos na realidade e sobre a realidade, redefinindo
percursos, alterando forças e possibilitando a construção de novos, outros e muitos devires,
produzindo novos dispositivos.
Vale ressaltar que esta pesquisa também se deu como um acontecimento para o
pesquisador, um processo de construção cotidiana de produzir reflexão, olhando para os
mesmos eventos corriqueiros de todos os dias de forma a valorizá-los e a tomá-los em análise,
produzindo outros novos entendimentos e formas de olhar. Foi sem dúvida uma experiência
surpreendente!
Os residentes multi, que eram no começo seis e hoje são quarenta, encontram-se bem
imbricados no tecido institucional, mas, ao mesmo tempo, curiosamente, diferindo dele. São
ouvidos e conquistaram um ‘lugar ao sol’, à sombra do caramanchão.
É comum acompanharmos estagiários que se tornam residentes e estes, por sua vez,
profissionais do SUS. A potência desse dispositivo de formação tem trazido profissionais
cada vez mais capacitados para o campo, o que aumenta a qualidade da assistência prestada
nos serviços públicos de Saúde e ajuda a sustentar a política de desinstitucionalização que nos
orienta em nosso trabalho.
Seguimos equipes e serviços que, a todo o momento, são convidados a reverem suas
práticas e a recolherem os efeitos de seu fazer. A ideia é que esse programa seja parceiro na
reestruturação da atenção em Saúde Mental de nosso município nesse momento, o que revela
nosso compromisso com a formulação de políticas públicas de Saúde e de formação para o
SUS.
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WEINMANN, A. de O. O Conceito de Acontecimento na Pesquisa em História da Educação.
Educação e realidade, 28(1): 49-63, jan./jul., 2003.
ANEXOS
O Sr. (a) está sendo convidado (a) a participar do projeto de pesquisa intitulado “O programa
de residência multiprofissional em saúde mental: Uma reflexão sobre ensino, transmissão e
formação em serviço”, realizado pela Linha de Pesquisa Educação em Saúde do Programa de
Pós Graduação em Psiquiatria e Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da UFRJ. O objetivo
dessa pesquisa é investigar o processo de formação dos alunos de pós-graduação do Programa
de Residência Multiprofissional em saúde mental do IPUB/UFRJ. Este estudo será
desenvolvido utilizando o método cartográfico, a partir da observação participante e análise
das narrativas orais e escritas construídas pelos alunos/tutores/preceptores nos espaços
pedagógicos coletivos e individuais, dispositivos de formação instituídos e privilegiados
conforme descrito no Projeto Político Pedagógico do curso. Esses espaços de discussão e
reflexão sobre as experiências vividas durante o curso poderão ter o áudio gravado com o
objetivo de acompanhar as narrativas dos participantes a fim de identificar analisadores
capazes de fazer aparecer o processo de formação em curso.
A presente pesquisa não constitui risco ou agravo à integridade física do pesquisado, estando
assegurada a autonomia para participar ou não como sujeito da pesquisa, sem que haja
prejuízo para qualquer um dos integrantes das atividades nem prejuízo para o processo de
168
formação dos alunos. Por se tratar de uma pesquisa voluntária, o sujeito terá o direito de não
querer participar ou de interromper a sua participação a qualquer momento. Terá ainda o
direito de esclarecer qualquer dúvida, assim como apontar qualquer desconforto no processo
de coleta de dados durante o desenvolvimento da pesquisa.
Quanto aos benefícios, o estudo pretende fortalecer o campo da educação em saúde, da
formação em serviço e das residências multiprofissionais Toda a informação extraída dos
espaços coletivos, tutoriais e do portfólio reflexivo, que for dita, registrada ou transcrita será
confidencial e anônima e este material será inutilizado após a análise dos dados. Ressaltando
que o material gravado em áudio somente será utilizado durante a análise da pesquisa, não
sendo utilizado em qualquer outra etapa da investigação. Os resultados desta pesquisa poderão
ser apresentados ou publicados em eventos e revistas científicas, resguardando o anonimato
dos participantes. Uma via deste documento será entregue ao voluntário, e outra arquivada até
a conclusão da pesquisa. A assinatura deste não invalida a garantia dos direitos legais do
participante.
Autorização
Eu,................................................................................................................................................,
idade .............., R.G. no ....................................................... declaro ter sido informado (a) e
concordo em participar, como voluntário (a), do projeto de pesquisa acima descrito.
__________________________________ _________________________________
Pesquisador Responsável Voluntário (a)
ANEXO 2. PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP
170
171