Os Homicídios Passionais
Os Homicídios Passionais
Os Homicídios Passionais
Os Homicídios Passionais
Considerações Relativas ao Grau de Culpa do
Agente
Porto
Outubro 2015
É intrínseco ao ser humano agir no impulso das suas emoções,
impulso esse, que o leva a atitudes boas ou más no decorrer da sua vida.
2
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais e irmãos pelo apoio incondicional e pelo estímulo na
concretização deste objetivo.
3
Índice
Introdução ..................................................................................................................................... 5
Breve referência à estatística dos homicídios passionais em Portugal ........................................ 6
Referência aos motivos (fatores psicológicos) do homicídio passional ........................................ 8
Análise jurídica do homicídio passional ...................................................................................... 10
Homicídio Privilegiado............................................................................................................. 11
A. Emoção violenta .......................................................................................................... 13
1. A compreensibilidade da emoção ............................................................................... 13
2. Critérios utilizados na apreciação da compreensível emoção violenta ...................... 17
B. Compaixão................................................................................................................... 19
C. Desespero.................................................................................................................... 20
D. Motivo de relevante valor social ou moral ................................................................. 22
Homicídio Qualificado ............................................................................................................. 24
Desenvolvimento da Alínea b) ............................................................................................ 28
O concurso de circunstâncias privilegiadoras e qualificadoras............................................... 30
Análise do Acórdão do STJ- 14-07-2010...................................................................................... 33
Conclusão .................................................................................................................................... 44
Referências bibliográficas ........................................................................................................... 47
Referências informáticas ............................................................................................................. 49
4
Introdução
Nos termos do artigo 131.º do Código Penal, o crime de homicídio (que consiste
em matar outrem) é o crime-base que, analisado casuisticamente, pode dar origem
diversos tipos de que se reveste, tais como o homicídio qualificado (art. 132.º) e o
privilegiado (art. 133.º).
5
Breve referência à estatística dos homicídios passionais em
Portugal
1
http://www.sol.pt/noticia/386425
2
http://www.sol.pt/noticia/386425
3
http://www.sol.pt/noticia/386425
6
de relações familiares privilegiadas. A maioria tinham entre 36 e 50 anos, mas houve
três casos em que a vítima tinha menos de 23. A violência doméstica surge como a
principal motivação/justificação do crime (56%), seguindo-se os ciúmes e a não
aceitação do fim da relação.
4
http://www.sol.pt/noticia/386425
5
Podemos estar perante um crime preterintencional, previsto no artigo 152.º n.º 3, al. b, segundo o
qual o resultado ultrapassa a intenção do agente, isto é, há dolo em relação ao resultado antecedente e
negligência em relação ao resultado, mais grave, consequente.
6
http://www.sol.pt/noticia/386425
7
http://www.sol.pt/noticia/386425
7
Referência aos motivos (fatores psicológicos) do homicídio
passional
II. A perturbação delirante, tipo ciúme traduz-se por uma psicose de início agudo
e evolução arrastada que se caracteriza pela crença delirante de que a sua/seu
companheira/o lhe é infiel. Esta perturbação é mais comum nos homens do que nas
mulheres, sendo habitual que a pessoa afetada colecione indícios que contribuam para
a elaboração do seu delírio. O doente passa a seguir a sua parceira secretamente,
restringindo-lhe a sua autonomia, examina os seus objetos pessoais, descobre
contradições nas respostas às suas intermináveis confrontações, persegue o seu “rival”
e nada o demove das suas suspeitas, apesar da evidência em contrário.
8
https://psicologado.com/atuacao/psicologia-juridica/a-paixao-e-o-crime-passional
8
III. Os crimes praticados em estado de intensa agitação emocional não têm sido
objeto de especial interesse por parte da doutrina nacional. Surgem as primeiras
referências a este tema por EDUARDO CORREIA, ao referir que os estados afetivos
intensos seriam um possível fundamento da inimputabilidade9.
9
CORREIA, Eduardo; Direito Criminal I (1963), p. 343.
10
DIAS, Jorge de Figueiredo; Homicídio Qualificado in CJ, XIII, 4 (1987), pp. 53 e ss.
11
DIAS, Jorge de Figueiredo; Direito Penal I (2004), p. 573.
12
PALMA, Maria Fernanda; Princípio da Desculpa (2005), pp. 190 e ss.
9
Análise jurídica do homicídio passional
O tipo subjetivo deste ilícito exige o dolo em qualquer das suas formas
contempladas no art. 14º Código Penal. O crime de homicídio admite qualquer forma
de dolo, o que significa que não é exigível que a intenção do agente tenha sido
efetivamente a de matar a vítima, bastando que ele tenha admitido a hipótese dela vir
a falecer, como consequência possível da sua conduta, e, mesmo assim, tenha atuado,
conformando-se com esse resultado14.
13
DIAS, Jorge de Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, p. 35. e ss.
14
DIAS, Jorge de Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 36.
15
BORGES, Vanessa da Silva; Homicídio Passional e exclusão da culpabilidade por inexigibilidade de
conduta diversa, Gravataí, 2010, Universidade Luterana do Brasil, disponível em
http://www.webartigos.com/artigos/homicidio-passional-e-exclusao-da-culpabilidade-por-
inexigibilidade-de-conduta-diversa/56558/.
10
Homicídio Privilegiado
Esta diminuição, segundo FIGUEIREDO DIAS, “não pode ficar a dever-se nem a
uma imputabilidade diminuída, nem a uma diminuída consciência do ilícito, mas
unicamente a uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente. Do que se trata
em último termo é da verificação no agente de um hoje dogmaticamente chamado, em
geral, estado de afeto. Estado que pode, naturalmente, ligar-se a uma diminuição da
imputabilidade ou da consciência do ilícito, mas que, independentemente de uma tal
ligação, opera sobre a culpa ao nível da exigibilidade”.16
16
DIAS, Jorge de Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 82.
Também neste sentido, BRITO, Teresa Quintela de; Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudos e
Casos (2007), p. 911.
17
DIAS, Jorge de Figueiredo; Direito Penal- parte geral, tomo I, p. 529.
18
PALMA, Maria Fernanda; Direito Penal, parte especial. Crimes contra as pessoas (1983), p. 82.
11
relevante valor social ou moral tornam a conduta menos exigível. Já AMADEU
FERREIRA 19 considera que a emoção violenta compreensível corresponde a uma
imputabilidade diminuída e a compaixão, o desespero e o motivo de relevante valor
social ou moral correspondem a uma exigibilidade diminuída.
Segundo FIGUEIREDO DIAS, “os estados ou motivos assinalados pela lei não
funcionam por si e em si mesmos, mas só quando conexionados com uma concreta
situação de exigibilidade diminuída por eles determinada; neste sentido, é expressa a lei
ao exigir que o agente atue “dominado” por aqueles estados ou motivos”22.
19
FERREIRA, Amadeu; Homicídio privilegiado (1991), p. 143.
20
ALBUQUERQUE, Pinto de; Comentário do Código Penal, p. 356.
21
DIAS, Jorge de Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 83.
22
Op. cit., p., p. 83.
12
desaprovado, não deverá o agente poder contar com o reconhecimento de uma
exigibilidade mitigada determinante de uma atenuação da culpa”23.
A. Emoção violenta
1. A compreensibilidade da emoção
23
Op. cit., p. 83.
24
DIAS, Jorge de Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 85.
25
DIAS, Jorge de Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 87.
26
Cf. Ac. STJ de 16/1/1990.
27
FERREIRA, Amadeu; Homicídio privilegiado, p. 119.
13
interpretação leva a inutilizar, na prática, as alterações que o art. 133.º quis introduzir,
na medida em que, ao reduzir os casos de emoção violenta compreensível aos que são
derivados de provocação, introduz-se uma restrição ao artigo contrária à sua própria
letra. 28 Viola, assim, o princípio da legalidade pois a interpretação restritiva do tipo
privilegiado resulta num alargamento da punibilidade.
28
Idem, op. cit., p. 120.
29
A posição brasileira mantém, no seu artigo 121.º, que só constitui causa de diminuição de pena se o
agente cometer o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de
violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima. Assim, o seu âmbito é mais restrito
em comparação com a nossa lei, na medida em que o homicídio só é privilegiado com base em emoção
violenta, se se verificarem os requisitos de injusta provocação da vítima e sucessão imediata entre a
provocação e a reação, idêntico ao modelo de provocação seguido pelo nosso código penal antigo.
30
FERREIRA, Amadeu; Homicídio privilegiado, p. 121.
14
Contrariamente ao que afirma AMADEU FERREIRA, para CURADO NEVES a
subjectivização do modo de privilegiamento deu-se através de uma deslocação para o
conteúdo da motivação, e não para a capacidade de motivação do agente31.
O atual art. 133.º teve por fonte o artigo 139.º do anterior CP (Homicídio por
provocação – Quem, dominado por compreensível emoção violenta e que diminua
sensivelmente a sua culpa, é levado a matar outrem, será punido com prisão de seis
meses a cinco anos) e o artigo 140.º (Homicídio privilegiado – Quem por compaixão,
desespero ou outro motivo de relevante valor social ou moral, que diminua
sensivelmente a sua culpa, é levado a matar outrem, será punido com prisão de um a
cinco anos) do Anteprojeto do Professor Eduardo Correia, de 1965, que foram reunidos
num só, o art. 136.º, pelo Projeto de Proposta de lei de 11/7/197933. Surgiu, em 1982, o
atual art. 133.º.
31
NEVES, João Curado; Direito Penal- Parte especial: lições, estudos e casos- o homicídio privilegiado na
doutrina e na jurisprudência do supremo tribunal de justiça, p. 281.
32
NEVES, João Curado; Direito Penal- Parte especial: lições, estudos e casos, pág. 282.
33
FERREIRA, Amadeu; Homicídio privilegiado, p. 55.
15
O artigo 133.º está redigido numa ótica muito restritiva. Isto porque os casos de
emoção violenta são delimitados pela compreensibilidade dessa emoção, e os casos em
que é essencial a motivação do agente são delimitados pelo valor objetivo dos motivos.
Tanto os casos da primeira, quer da segunda parte deste artigo são delimitados pela
exigência de uma diminuição sensível da culpa do agente34.
Todavia, o art. 133.º desempenha uma função no sistema do nosso código, pelo
que devemos respeitá-la com vista a manter o equilíbrio do nosso Código Penal de
108237.
34
FERREIRA, Amadeu; Homicídio privilegiado, p. 143.
35
FERREIRA, Amadeu; Homicídio privilegiado, p. 144.
36
FERREIRA, Amadeu; Homicídio privilegiado, p. 144.
37
FERREIRA, Amadeu; Homicídio privilegiado, p. 146.
16
2. Critérios utilizados na apreciação da compreensível emoção violenta
38
DIAS, Jorge de Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 85.
39
BRITO, Sousa e; Coletânea de Textos de Parte Especial do Direito Penal – Um caso de Homicídio
Privilegiado (2008), pp. 18-19.
40
DIAS, Jorge de Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal (1999), p. 85.
17
Também CURADO NEVES entende que a emoção violenta “ tem que ser
compreensível, a ponto de se poder dizer que um homem médio possivelmente também
a sentiria”, afastando todos os que se encontrem em situação de inimputabilidade ou
imputabilidade diminuída41.
Os defensores desta posição sustentam que o que está em causa não é saber se
o homem médio também mataria a vítima, mas se não deixaria de ser sensível à emoção,
sem dela se conseguir libertar.
TERESA SERRA defende que a compreensível emoção violenta deve ser aferida
por referência à personalidade do agente individual que atua 44 . Também AMADEU
FERRIERA afirma que a emoção só é corretamente avaliada “se tomarmos como medida
o próprio agente mencionado”45.
41
NEVES, João Curado; “homicídio privilegiado...” pp. 188-189.
42
PALMA, Maria Fernanda; “O Princípio da Desculpa...”, pag. 230.
43
PALMA, Maria Fernanda; “O Princípio da Desculpa...”, pag. 230.
44
SERRA, Teresa; “homicídios em série... ”., pp 144- 145.
45
FERREIRA, Amadeu; Homicídio privilegiado, p. 87 e 98-100.
46
BRITO, Teresa Quintela de; “O Homicídio Privilegiado...”, pp. 333-334.
18
Esta questão de direito da compreensibilidade da emoção não pode ser
solucionada atendendo só à personalidade do agente, na medida em que, à luz deste,
“quase todas as emoções são compreensíveis ou racionalmente explicáveis”47.
B. Compaixão
Ponto é que a sua atuação seja determinada por um propósito solidário de aliviar
ou poupar a vítima ao sofrimento insuportável em que se encontra, revelador da
compaixão pressuposta pelo tipo de culpa.
47
BRITO, Teresa Quintela de; “O Homicídio Privilegiado...”, pp. 333, também, DIAS, Augusto Silva;
“Direito Penal..., pp. 40-41.
48
DIAS, Augusto Silva; Direito Penal- Parte Especial (crimes contra a vida e a integridade física), 3.ª ed.,
AAFDL, Lisboa, 2007, p.74.
49
DIAS, Jorge de Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 88.
50
NEVES, João Curado; Direito Penal- Parte especial: lições, estudos e casos, p. 282.
51
NEVES, João Curado; “ o Homicídio privilegiado…”, p. 283.
52
FERREIRA, Amadeu; Homicídio privilegiado, 4.º reimpr., Almedina, Coimbra, 2004, pp. 65-67.
19
C. Desespero
53
DIAS, Jorge de Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 89.
54
DIAS, Jorge de Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 89.
55
NEVES, João Curado; O Homicídio privilegiado, p. 283.
56
DIAS, Jorge de Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 89.
57
Em decisão do Ac.TRL, processo 232/10.3PCLRS.L1-5, 28-06-2011, concluiu-se: “não se tendo provado
que ao agente não restasse outra alternativa perante a presença da vítima, de tal modo que suprimir-lhe
a vida fosse a solução única no momento, o desespero em que o mesmo agiu pode tornar menos
censurável a sua opção, diminuição da culpa que haverá de refletir-se dentro dos limites do homicídio
simples, mas não permite concluir pela diminuição sensível da culpa exigida para o preenchimento dos
elementos típicos do crime de homicídio privilegiado. Circunstâncias como o decurso do tempo em que o
20
Vejamos o caso da jurisprudência do STJ de 5 de Fevereiro de 1992. Consistiu
num homicídio praticado no seio de um matrimónio onde a autora, A., matou o marido,
B., com quem vivia há mais de 30 anos, na sequência de uma vida marcada por variadas
ofensas praticadas por B., sobre a mulher. 58 O incidente que culminou no homicídio
decorreu numa noite, em que o marido após longamente injuriar a mulher, foi chamá-
la, já depois de ela se deitar, intimando-a que o levasse de automóvel a casa da amante.
A mulher recusou-se a sair da cama, argumentando com o adiantado da hora. Mas o
marido ameaçou destruir o automóvel (que pertencia à mulher) caso ela não acedesse.
A mulher acabou por se levantar, porém em vez de se dirigir ao veículo, foi procurar uma
machada, com a qual infligiu em B. uma série de golpes na cabeça, que lhe provocaram
a morte.
arguido formulou a intenção de tirar a vida à vítima e os atos através dos quais preparou a execução de
tal objetivo, como seja o de comprar a arma, guardando-a durante alguns dias até que a usou com aquela
intenção, não permitem dizer que um ato se esgotou no outro, não tendo um acontecido de forma fortuita
ou inerente intrinsecamente ao outro”.
58
Sucediam-se injurias, agressões, ameaças e todo o tipo de humilhações, nomeadamente, relações
extraconjugais que não se dava sequer ao trabalho de esconder.
59
A autora pratica o facto para por fim a uma situação que qualquer pessoa qualificará como
insuportável.
60
NEVES, João Curado; A Problemática da Culpa nos Crimes Passionais, p. 707 e 708.
21
D. Motivo de relevante valor social ou moral
Esta relevância tem então de se avaliar à luz da ordem axiológica suposta pela
ordem jurídica e dever-se-á atender às conceções sociais e morais do próprio aplicador,
prevalentes na comunidade num dado momento histórico e correspondentes à
“moralidade média”62.
A legítima defesa da honra era uma figura jurídica utilizada pela defesa de
um réu para justificar determinados crimes de natureza passional, atribuindo o fator
motivador do delito ao comportamento da vítima. A justificativa que apelava à "legítima
defesa da honra" era quase sempre utilizada para anular ou atenuar a culpa de maridos,
companheiros, namorados ao praticarem agressões físicas contra mulheres.
61
ALBUQUERQUE, Pinto de; Comentário do Código Penal, p. 358.
62
DIAS, Jorge de Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 90.
22
Assim, era exemplo de motivo de relevante valor social ou moral a desafronta da
honra, na medida em que o adultério da mulher constituía ofensa grave ao marido. A
fidelidade conjugal e a honra familiar representavam valores importantes63.
Para AMADEU FERREIRA, estavam abrangidos por estes motivos relevantes, por
exemplo, a eliminação de um perigoso cadastrado, o tiranicídio (que visam a paz e o
bem estar da comunidade) e o homicídio perpetrado por um pai na pessoa de sua filha
que leva vida desonrosa e devassa na prostituição e na droga64.
A meu ver, nos dias que correm, não se mostra adequada nem se pode admitir a
“justiça pelas próprias mãos”, bem como, não se pode aceitar que um pai tenha o
“direito” de decidir o rumo de vida da sua própria filha.
Por fim, o motivo deve ter relevância objetiva e não meramente subjetiva. Esta
objetividade deve ser analisada, “ à luz do quadro de valores, nomeadamente jurídico-
institucionais, que o próprio ordenamento jurídico-penal respira”. Tal quadro de valores
têm flexibilidade suficiente para que possam ser adequados às condições do sujeito,
nomeadamente, ao meio onde vive e à sua educação. Dever-se-á falar, assim, em
“homem fiel ao direito” e não em “ homem normal ou homem médio”. 65
63
Neste sentido, decisão do STJ, 13/4/1988.
64
FERREIRA, Amadeu; Homicídio privilegiado, p. 74.
65
FERREIRA, Amadeu; Homicídio privilegiado, p. 75.
66
PALMA, Maria Fernanda; Princípio da Desculpa, (2005), pp. 180 e ss.
23
pode ter sido motivado por um código de valores ultrapassado, para o qual a
infidelidade conjugal feminina é uma terrível mancha na honra do marido, que tem que
ser lavada em sangue. Embora esta motivação também seja censurável, pode a decisão
do agente ter sido tomada em circunstâncias em que dificilmente teria oportunidade de
se motivar em conformidade com os valores acolhidos na ordem jurídico-constitucional
vigente. Poderá ser o que acontece se o agente foi criado e sempre continuou a viver
num meio conservador que não lhe deu acesso a conhecimentos e valores que lhe
permitiriam opor às características da sua ordem ético-afetiva outras que levassem a
uma contra motivação em função do apelo do direito67.
Homicídio Qualificado
O que está em causa no art. 132º é o maior grau de culpa, e não de ilicitude,
porque nem todas as condutas do n.º 2 envolvem uma maior ilicitude. A técnica
legislativa utilizada pelo legislador nacional é incompatível com a ilicitude, uma vez que
a atitude interna do agente tem a ver com a individualidade (culpa).
67
PALMA, Maria Fernanda; Princípio da Desculpa, (2005), pp. 180-189 e 195.
68
DIAS, Jorge de Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 48.
69
A posição brasileira difere da nossa, na medida em que o código penal brasileiro prevê o crime de
homicídio simples, privilegiado e qualificado no seu art. 121.º. Esta norma diz-nos no seu número dois
que, o homicídio é qualificado se for cometido:
“I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;
II - por motivo fútil;
24
Para aplicação desta forma agravada do tipo legal de crime, é necessário que o
agente atue em circunstâncias de maior culpa (especial censurabilidade e perversidade),
não bastando o facto de, objetivamente, a sua conduta corresponder a uma situação
prevista como suficiente para conduzir à qualificação.
II. Para aplicação deste tipo de crime importa, desde logo, verificar se estamos
na presença de uma das situações tipificadas no elenco do nº 2 do art. 132.º CP. Após
tal verificação levanta-se um efeito indiciador, porém tal não constitui fundamento
suficiente para sustentar a qualificação do tipo legal de crime, sendo necessário apurar
se, em concreto, o agente manifestou a culpa agravada que se suscitou.
III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que
possa resultar perigo comum;
IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível
a defesa do ofendido;
V - para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime:
Pena- reclusão, de doze a trinta anos”.
Ora, tratam-se de causas taxativas e não de exemplos-padrão, como ocorre no nosso art. 132.º.
70
DIAS, Jorge de Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 55.
25
Não se pode concluir pela qualificação sem estar demonstrado que o agente
tenha revelado especial censurabilidade ou perversidade, sendo estes os fatores mais
relevantes para a concretização do tipo de crime. A agravação tem como motivação o
maior grau de culpa que o agente revela com a sua conduta. O nº 2 funciona como fator
de orientação para o julgador, prestando especial atenção ao não funcionamento
automático das causas e ao carácter exemplificativo das mesmas71. As circunstâncias ali
previstas enquadram-se em três tipos de situações: relações entre agente e vítima;
motivações do agente; ou o modo de execução do facto.
71
DIAS, Jorge de Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 53.
72
Cf. O Ac. STJ de 09.07.2014, “ O arguido foi condenado pela prática de um crime de homicídio
qualificado, p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do CP. Ao nível da determinação da medida
concreta da pena, há que assinalar a elevada ilicitude da conduta. Embora os factos tivessem sido
desencadeados por uma discussão entre o arguido e a vítima, discussão seguida de confronto físico em
que o próprio arguido ficou ligeiramente ferido, certo é que a vítima se pôs em fuga para o jardim da casa
onde viviam, e foi aí que o arguido, perseguindo-a, e entretanto munido de um martelo com cabeça em
metal, desferiu sucessivamente 16 pancadas na cabeça da vítima e noutras partes do corpo,
nomeadamente nas mãos, com as quais a vítima pretendia proteger a cabeça, pancadas essas que
provocaram múltiplas lesões na cabeça. A escolha da cabeça como zona corporal privilegiada para objeto
da agressão, a intensidade desta e a sucessão dos golpes revelam um dolo intensíssimo. De acentuar
também a crueldade ínsita na utilização de um martelo como instrumento do crime, provocando
necessariamente intenso sofrimento na vítima. A ilicitude e a culpa são pois muito intensas. Nenhumas
atenuantes de relevo se apuraram”. Denota-se neste caso a verificação da cláusula de especial
censurabilidade e perversidade, atendendo à descrição dos factos e ao modo de atuação do agente.
26
c) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade,
deficiência, doença ou gravidez;
d) Empregar tortura ou ato de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima;
e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento,
para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou
fútil73;
f) Ser determinado por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem
étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela identidade de género da
vítima;
g) Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar
a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime;
h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar
meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo
comum74;
i) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso;
j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter
persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas75;
73
Cf. O Ac. STJ de 7-12-2011 , CJ (STJ), 2011, T.III, pág.227, “o motivo torpe é aquele que se considera
comumente repugnante ou baixo, sendo motivo fútil aquele que não se pode razoavelmente explicar ou
justificar, sem qualquer tipo de valor ou em que este se mostre insignificante ou irrelevante. O ciúme
exacerbado de um namoro que findara muito recentemente, sentido pelo agente e que levou este a matar
a sua ex-namorada, ainda que seja uma conduta muito reprovável, não reveste as características de um
motivo torpe ou fútil, nem integra uma circunstância especialmente censurável”.
74
Cf. O Ac. STJ de 7-12-2011 , CJ (STJ), 2011, T.III, pág.227, “O uso de uma faca marca Boker Jim Wagner,
modelo Reality Based Blade, de cor preta, com lâmina articulada e cabo em material polimérico com o
comprimento da lâmina de 9,5 cm e a largura máxima da mesma de 2,5cm, utilizada na prática de um
homicídio, não pode ser qualificado como meio particularmente perigoso e nem pode ser considerada
como uma arma branca dissimulada”.
75
Cf. Ac. STJ de 7-12-2011 , CJ (STJ), 2011, T.III, pág.227: “ Releva uma ponderada reflexão sobre os meios
empregados no cometimento de um homicídio quando existem motivos prévios conducentes à sua
execução, se escolhe atempadamente a arma para a sua realização, planeando-se também
antecipadamente o local e a hora do encontro com a vítima. Age com reflexão sobre os meios empregados
aquele que, por razões de ciúme em relação à sua ex-namorada, pesquisa na internet, cerca de três
semanas antes e vem depois a comprá-la, o tipo de faca mais eficaz para agredi-la e vingar-se da mesma,
ao mesmo tempo que passa a controlar os movimentos da vítima, através de um programa informático
que instalou no computador desta e enviando-lhe e-mails mediante os quais se fazia passar por uma
amiga desta, sendo através desse expediente que vem posteriormente a abordá-la e a matá-la com essa
mesma faca”. Verificou-se assim a reflexão e a premeditação dos meios empregados e a intenção de
matar pelo hiato temporal de três semanas.
27
l) Praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado,
Representante da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das
regiões autónomas, Provedor de Justiça, membro de órgão das autarquias locais ou de
serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública,
jurado, testemunha, advogado, solicitador, agente de execução, administrador judicial,
todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial
de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou
militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente,
examinador ou membro de comunidade escolar, ou ministro de culto religioso, juiz ou
árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas
funções ou por causa delas;
m) Ser funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade.
Desenvolvimento da Alínea b)
Darei particular importância a esta alínea, uma vez que está diretamente
relacionada com o tema do meu trabalho.
Denote-se que esta alínea foi introduzida pela Lei n.º 59 de 2007 que veio alargar
a tutela penal, dando continuidade ao sentido da alínea a), na qual se incluem as
relações familiares pretéritas e as relações parentais não familiares.
28
respeito pela vida do outro com quem se resolveu constituir família ou formar uma
comunhão de vida. A morte dolosa do cônjuge ou do companheiro comporta, em regra,
uma quebra radical da solidariedade que é em princípio devida pelo agente à vítima,
indiciando uma especial perversidade76.
É certo que acabando o vínculo amoroso entre o casal, cada um segue o seu
destino, porém nunca poderão ser consideradas como duas pessoas estranhas,
atendendo à relação afetiva que as uniu e que deixa as suas marcas ao longo do tempo.
Caso contrário, não haveria motivo algum para este tipo de comportamento, ou seja a
necessidade de por fim a uma situação que não estava resolvida para uma das partes.
76
DIAS, Jorge Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 58 e
59.
77
DIAS, Jorge Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 59.
29
comum, ou na situação de nunca ter existido um relacionamento afetivo de relevo,
como se verifica em namoros fugazes ou relacionamentos sexuais ocasionais78.
II. A integração desta nova alínea b) parece ter ficado a dever-se a um propósito
de compatibilização com a redação do novo crime de violência doméstica, artigo 152.º
CP.79
Os crimes de homicídio qualificado e privilegiado têm sido vistos ora como tipos
autónomos, ora como variantes dependentes do tipo básico, ora como meras regras de
determinação da pena.
78
DIAS, Jorge Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 59.
79
DIAS, Jorge Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 59.
80
O chamado crime preterintencional, como já foi referido previamente.
81
Também conhecido por perseguição persistente, é um termo inglês que designa uma forma de
violência na qual o sujeito ativo invade repetidamente a esfera de privacidade da vítima, empregando
táticas de perseguição e meios diversos, tais como ligações telefônicas, envio de mensagens pelo SMS ou
por correio eletrônico, publicação de factos ou boatos em sites da Internet (cyberstalking), espera de sua
passagem nos lugares que frequenta, etc. Resulta em dano à sua integridade psicológica e emocional,
restrição à sua liberdade de locomoção ou lesão à sua reputação, in https://pt.wikipedia.org/wiki/Stalking
.
30
No homicídio, as circunstâncias qualificadoras podem ser subjetivas, quando
digam respeito aos motivos, ou objetivas, quando se refiram aos modos e meios de
execução. As primeiras refletem uma atitude reveladora de motivos ou sentimentos
rejeitados pela sociedade (perversidade) e as segundas dizem respeito a critérios de
perigosidade objetiva, evidenciando um grande distanciamento do agente de uma
determinação normal pelos valores do Direito (censurabilidade).
82
DIAS, Jorge de Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I p. 92.
83
DIAS, Jorge de Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I p. 92.
31
aparente com o homicídio simples ou com algum dos homicídios privilegiados” 84 .
Segundo a autora, os elementos privilegiantes são verdadeiros elementos típicos, que
tanto excluem a aplicação do art. 131º como do art. 132º.
84
BRITO, Teresa Quintela, “Homicídio qualificado...”, p.197.
85
SILVA, Fernando; Direito Penal Especial- Os Crimes Contra as Pessoas, 3.ª ed.,p. 94.
86
SILVA, Fernando; Direito Penal Especial- Os Crimes Contra as Pessoas, 3.ª ed.,p. 96 e 97.
87
NEVES, João Curado; “ indícios de culpa ou tipos de ilícito...”, p. 755.
88
DIAS, Augusto Silva; “Direito Penal....”, p. 65 e 66.
32
Análise do Acórdão do STJ- 14-07-201089
I. Nele foi dada como matéria de facto provada que o arguido AA mantinha com
BB uma relação amorosa desde o Verão de 2006 e que durante o ano de 2007, o arguido
e a BB viveram juntos uns meses, até que o arguido foi para a Alemanha, encontrando-
se esporadicamente quando aquele vinha a Portugal.
Não ficou provado em Tribunal que tivesse havido uma troca de palavras com a
falecida, no decurso das quais, a BB tivesse humilhado o arguido e provocado os seus
ciúmes, que tal facto tivesse motivado o descontrolo emocional do arguido,
provocando-lhe um impulso momentâneo e que o arguido gostasse muito de BB e não
tivesse intenção de lhe provocar a morte.
89
Ac. do STJ- 14-07-2010, processo n.º 408/08.3PRLSB.L2.S1.
33
Vejamos, a dialética processual estabelecida no caso presente girava em torno
do objeto do processo constituído, por um lado, pela tese da acusação, em que se
imputava a prática de um homicídio simples com dolo direto, agindo o arguido com
intenção de matar a vítima, do outro lado, a posição da defesa expressa na contestação,
partindo de uma negação da intenção de matar, mas com a subsequente achega de
elementos fácticos potencialmente integradores de uma situação de compreensível
emoção violenta e desespero, conducente à integração da conduta no crime de
homicídio privilegiado. A defesa alegava, assim, que a atitude do arguido fosse devida a
um impulso emocional e irrefletido, sem dúvida censurável, mas de difícil explicação,
resultante da troca de palavras com a vítima, no decurso das quais, a BB o teria
humilhado e acicatado os ciúmes, o que motivou o seu descontrolo emocional,
provocando no arguido um impulso momentâneo.
II. É necessário referir que, diversamente do que ocorre com a enumeração dos
exemplos padrão constantes do n.º 2 do art. 132.º do CP, que enformam os casos de
especial censurabilidade ou perversidade no homicídio qualificado, os quais são
meramente exemplificativos, a enumeração feita no art. 133.º não é exemplificativa,
embora anteriormente a jurisprudência a considerasse exemplificativa90 . Trata-se de
uma especial forma de atenuação para a qual aqui só se tem em consideração o plano
da culpa, quando nos termos gerais é necessário estar-se perante diminuição
acentuada, não só da culpa do agente, mas também da ilicitude do facto ou da
necessidade da pena.
90
Cf. Acórdãos do STJ, de 16-01-1990, processo n.º 38690, CJ 1990, tomo 1, pág. 11.
34
causas ou motivos, pois, para se entender uma emoção tem de se entender as relações
que lhe deram origem, tendo em atenção o sujeito que a sentiu e o contexto em que se
verificou a atitude, em ordem a entender o estado de espírito, o «conflito espiritual», a
situação psíquica que leva o agente ao crime. E a compreensibilidade pode ser afastada
se o estado de afeto for causado pelo próprio agente. Para haver privilegiamento do
homicídio por emoção violenta é necessário que o agente se encontre dominado por
emoção violenta, que tal emoção seja compreensível, mas também que seja tal emoção
a causadora do ato criminoso (nexo causal entre a emoção e o crime) ”91.
III. Quanto à questão de saber como ajuizar o poder das razões que ocasionaram
a emoção violenta, desenham-se na doutrina e jurisprudência duas linhas, sendo uma
que entende que este critério deve ser concretizado por referência à personalidade
daquele agente que atua, a outra que defende que a compreensibilidade há-de aferir-
se, não em relação às particularidades concretas daquele agente, mas em relação a um
homem médio com certas características que aquele agente detém.
91
Também neste sentido, o Tribunal da Relação de Lisboa fundamentou a sua decisão no acórdão de 28-
06-2011, processo 232/10.3PCLRS.L1-5, afirmando que, “a emoção violenta, suscetível de integrar a
previsão do art.133, do Código Penal, corresponde a uma alteração psicológica, uma perturbação em
relação ao seu estado normal, sendo violenta quando faz desencadear uma reação agressiva do agente,
sendo necessário que essa emoção violenta domine o agente, ou seja, que o determine a agir e que seja
apenas por força da sua influência que o agente atue”.
92
Cf. Ac. op. cit., “O desespero reconduz-se a situações arrastadas no tempo, fruto de pequenos ou
grandes conflitos que acabam por levar o agente a considerar-se numa situação sem saída, geradores de
um estado de afeto ligados à angústia, à depressão ou à revolta”.
35
Especificamente sobre o ciúme, tem-se entendido que a valorização do ciúme ou
da desconfiança sobre a fidelidade do cônjuge como elemento mitigador da
responsabilidade criminal é absolutamente de rejeitar no ordenamento jurídico de um
Estado de direito democrático, assente na dignidade da pessoa humana e no direito de
todos ao livre desenvolvimento da sua personalidade (art. 1.º, 24.º, 25.º e 26º da CRP).
36
da punição, já que se trata de um crime gerador de grande alarme social e repúdio das
pessoas em geral, face à enorme intranquilidade que gera no tecido social, sendo
elevadas as exigências de reafirmação da norma violada; no que toca à prevenção
especial avulta a personalidade do arguido na forma como atuou, o reduzido valor que
atribui à vida humana, não se esgotando na mera prevenção da reincidência, sendo
indiscutível que carece de socialização”.
VI. Fazendo uma breve síntese, o homicídio privilegiado assenta, como refere
FIGUEIREDO DIAS 93 , numa cláusula de exigibilidade diminuída de comportamento
diferente, concretizada em certos “estados de afeto”, vividos pelo agente, que
diminuam sensivelmente a sua culpa.
93
DIAS, Jorge Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 82.
94
DIAS, Jorge Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 83.
37
O que está na base do ilícito típico não é a provocação da vítima, mas sim a
diminuição da culpa do agente.
95
DIAS, Jorge Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 83.
38
apoderou. O que se pretende apurar não é se o homem médio também mataria a vítima
ou se reagiria em termos idênticos (o que interessa averiguar é se a emoção é ou não
compreensível), mas sim se o homem médio não deixaria de ser sensível àquela
situação, sem se conseguir libertar da emoção, para se compreender se é menos exigível
ao agente que não mate naquelas circunstâncias.
Assim, como referiu, e bem, o STJ, não se admite que se mate, nos dias de hoje,
por ciúme ou por desconfiança sobre a fidelidade da pessoa com quem se tem uma
relação afetiva, numa sociedade assente nos valores da dignidade, liberdade e
autoderminação da pessoa humana.
Embora a atitude que a vítima teve ao afirmar que “quando estava sozinha
arranjava outros homens e que ele não tinha nada a ver com isso.” possa ter incitado ao
descontrolo emocional do agente, não me parece ser gravosa ao ponto de essa
provocação lhe causar uma compreensível emoção violenta e consequente atenuação
da sua culpa nos termos do artigo 133.º. Todavia, no plano da moldura penal da pena,
o ciúme sentido pelo agente, por saber que a vítima estava com outros homens, deverá
ser tido em conta pelo tribunal, de forma a atenuar a sua pena nos termos gerais.
Contudo, não foi este o entendimento do tribunal ao afirmar que “ficou provada,
definitivamente assente, uma intenção de matar sem contornos suscetíveis de conduzir
a um qualquer tipo de atenuação”. Acrescentando que, “o telefonema recebido pela BB
39
e a explicação dada por esta, não podia ter criado uma situação que levasse ao
descontrolo absoluto”.
Na verdade, o direito à vida é a conditio sine qua non para gozo de todos os
outros direitos, “o direito à vida é um direito prioritário, pois é condição de todos os
outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante
do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu
conjunto”97.
96
Cf. Ac. do STJ- 14-07-2010.
97
CANOTILHO, Gomes e MOREIRA, Vital; Constituição da República Portuguesa Anotada, 2007, volume I,
p. 446/447.
40
compreensível emoção violenta, nem do desespero, nem mesmo a sensível diminuição
da culpa.
VIII. Segundo FIGUEIREDO DIAS, “não foi intenção do art. 133º (…) consagrar uma
cláusula geral de menor exigibilidade no crime de homicídio; foi, pelo contrário, a de
vincular uma tal cláusula à verificação de um dos pressupostos nele explicita e
esgotantemente contidos. O que neles não caiba só pode ser (eventualmente)
considerado através do instituto da atenuação especial da pena do homicídio simples
previsto no art.131º”99.
98
DIAS, José Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 92.
99
DIAS, José Figueiredo; Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte especial, Tomo I, p. 49/50 e
53.
100
Cf. Ac. do STJ, de 23-02-2000, processo n.º 1200/99-3.ª, SASTJ, «É na acentuada diminuição da ilicitude
e/ou da culpa e/ou das exigências da prevenção que radica a autêntica ratio da atenuação especial da
pena».
101
DIAS, Augusto Silva; in Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, revista e atualizada,
AAFDL, 2007, p. 37
41
por sua vez, o facto foi determinado pela sua estrutura ético-valorativa, caso em que
não deve ser responsabilizado102.
Para a autora, as emoções, paixões e desejos, representam um papel
fundamental na compreensão das ações, pois ajudam a compreender o estado mental
do agente no momento do facto 103 . Na verdade, “ o valor das ações e,
consequentemente, a questão da responsabilidade moral não se fundariam, assim,
apenas na liberdade como pode intelectual de controlo, mas também em elementos
afetivos, num poder de manifestar, atuando, a inteira personalidade nos aspetos
intelectuais e emocionais ou afetivos”104.
CURADO NEVES afirma que este princípio visa “uma subjectivização da desculpa,
associada à ideia de que a culpa deve consistir numa censura pessoal ao agente do facto
ilícito, que não pode ignorar as suas condições individuais, o seu modo de ser, a sua
própria ética de valores”105.
CURADO NEVES entende que uma única emoção pode originar várias ações, e
uma única ação pode resultar de diferentes emoções. Deste modo, considera que
FERNANDA PALMA não demonstra efetivamente a possibilidade de valoração das
emoções, pois, no seu entender, o ciúme, por exemplo, conforme o seu grau de
intensidade, pode despoletar no agente reações muito diversas como atacar o
102
NEVES, Curado; A Problemática da Culpa nos Crimes Passionais, p. 660.
103
PALMA, Maria Fernanda; Princípio da Desculpa, p. 73 e ss.
104
PALMA, Maria Fernanda; Princípio da Desculpa, p. 73.
105
NEVES, Curado; A Problemática da Culpa nos Crimes Passionais, p. 660.
106
NEVES, Curado; A Problemática da Culpa nos Crimes Passionais, p. 679.
107
NEVES, Curado; A Problemática da Culpa nos Crimes Passionais, p. 663.
42
parceiro(a) infiel e/ou o seu coautor, atentar contra a sua própria vida ou pôr termo
definitivo à relação amorosa.
Por esse motivo, CURADO NEVES crê não ser “possível formular um juízo
valorativo (ético ou moral) sobre as emoções em si; estas podem apenas constituir um
sintoma do que é efetivamente objeto de juízos de valor”108
108
NEVES, Curado; A Problemática da Culpa nos Crimes Passionais, p. 664.
43
Conclusão
É inerente ao ser humano agir no impulso dos seus sentimentos, podendo esse
impulso levar o indivíduo a atitudes boas ou más no decorrer da sua vida.
Entendo que face a uma emoção forte que domina o agente e o impele à prática
do facto ilícito típico, as características pessoais do agente, o meio conservador em que
foi criado, e determinados obstáculos à formação do agente como cidadão responsável,
podem explicar o motivo por que uma dada emoção arrastou o agente para o crime.
Porém, tudo depende do grau de intensidade de emoção, pois só uma emoção
suficientemente forte ao ponto de dominar o agente e o impelir à prática do crime pode
atenuar a sua culpa.
44
entender as relações que lhe deram origem, tendo em atenção o sujeito que a sentiu e
o contexto em que se verificou a atitude, de maneira a compreender o estado de
espírito, o conflito espiritual e a situação psíquica que levaram o agente ao crime.
Por outro lado, o estado passional que configura uma tipicidade constante do
art. 132.º CP revela por parte do agente uma atitude de franco desprezo, característica
de sentimentos torpes ou de egoísmo, onde a firmeza em “querer” matar e vir,
posteriormente, a executá-lo, são motivados por argumentos inaceitáveis, pela
sociedade.
45
A técnica dos exemplos padrão orienta e limita o seu livre arbítrio por parte do
juiz. Só se permite a qualificação de situações reveladoras de uma especial
censurabilidade ou perversidade, semelhantes às referidas no n.º 2 do art. 132º.
46
Referências bibliográficas
BRITO, Teresa Quintela de; O Homicídio Privilegiado: Algumas Notas, in Direito Penal –
Parte Especial: Lições, Estudos e Casos, Coimbra, 2007.
DIAS, Augusto Silva; Direito Penal- Parte Especial (crimes contra a vida e a integridade
física), AAFDL, Lisboa, 2007.
DIAS, Jorge de Figueiredo; Direito Penal- parte geral, tomo I, Coimbra, 2004.
NEVES, João Curado; A Problemática da Culpa nos Crimes Passionais, Coimbra, 2008.
47
PALMA, Maria Fernanda; Direito Penal- parte especial (Crimes contra as pessoas),
AAFDL, 1983.
SILVA, Fernando; Direito Penal Especial- Os Crimes Contra as Pessoas, 3.ª ed, Quid
Juris, Lisboa, 2011.
48
Referências informáticas
http://www.sol.pt/noticia/386425
https://psicologado.com/atuacao/psicologia-juridica/a-paixao-e-o-crime-passional
https://pt.wikipedia.org/wiki/Stalking
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