Tese - As Reservas
Tese - As Reservas
Tese - As Reservas
Lisboa, 2018
AGRADECIMENTOS
2
ABREVIATURAS
Ac. – Acórdão
Al. – Alínea
CB 1924 – Convenção de Bruxelas de 25 de agosto de 1924 relativa à unificação de certas
regras em matéria de conhecimentos de carga
CC – Código Civil Português
CCom. Código Comercial Português
Cl. – Cláusula
Cf. – Conferir
CMR – Convenção relativa ao contrato de transporte internacional de mercadorias
CSC Convenção Internacional sobre a Segurança dos Contentores
CV 1929 Convenção de Varsóvia, para a unificação de certas regras relativas ao
transporte aéreo internacional, assinada em Varsóvia
CM 1999 Convenção de Montreal, para a unificação de certas regras relativas ao
transporte aéreo internacional
DL – Decreto-Lei
Ed. – Edição
I.e. – Isto é
PBL Pomerene Bills of Lading Act
P. – Página
PP. – Páginas
Proc. Processo
RH 1978 – Regras de Hamburgo
RR – Regras de Roterdão
RUU Regras e Usos Uniformes relativos aos Créditos Documentários
STJ – Supremo Tribunal de Justiça
TRC – Tribunal da Relação de Coimbra
UNCITRAL – Comissão das Nações Unidas para Direito Mercantil Internacional
Vol. – Volume
3
RESUMO
4
danos decorrentes da emissão do documento sem reservas. Como veremos, as cartas de
garantia assumem um relevo particular no comércio marítimo e assumem uma relevância
particular quando sejam emitidos documentos de transporte negociáveis.
5
ABSTRACT
6
ÍNDICE
7
CAPÍTULO II AS RESERVAS NOS VÁRIOS MODOS DE TRANSPORTE .... 53
8
3.2. Valor probatório da carta de porte aéreo .................................................... 114
3.3. Responsabilidade pelas menções da carta de porte aéreo .......................... 115
3.4. Da ausência de menção expressa às reservas do transportador .................. 115
3.5. Reservas à chegada..................................................................................... 116
CONCLUSÕES........................................................................................................... 163
9
CAPÍTULO I ENQUADRAMENTO E RAZÃO DE ORDEM
1. Considerações introdutórias
1
Sobre a noção de contrato de transporte de mercadorias vd., v.g., COSTEIRA DA ROCHA, O contrato de
transporte de mercadorias contributo para o estudo da posição jurídica do destinatário no contrato de
transporte de mercadorias, Almedina, 2000, pp. 25-26; HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da
responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas de 1924¸ Almedina, 2008, p. 12. Vd.,
também, na jurisprudência portuguesa, v.g., Ac. do TRL, de 03-03-2016 (Rel. REGINA ALMEIDA), Proc.
293-07.2TNLSB.L1-6; Ac. do TRC de 30-03-2004 (Rel. ANTÓNIO PIÇARRA), Proc. 957/03. RENÉ RODIÈRE,
Droit des transports terrestres et aériens, Dalloz, 3ª ed., 1981, pp. 151 e ss., entende este contrato comporta,
no essencial, três elementos: (i) a deslocação das mercadorias; (ii) o controle da operação de transporte pelo
transportador; (iii) o caráter profissional do transportador.
2
Sobre o âmbito espacial, o contrato de transporte de mercadorias pode ter natureza interna ou
internacional: é interno se o local de partida e de destino se situam no mesmo país ou na mesma jurisdição.
Ao invés, é internacional se o local de partida e de destino se situam em países diferentes e, por isso,
apresentam contacto com, pelo menos, duas ordens jurídicas distintas. Cf., por todos, o Acórdão do STJ,
de 15-05-2013 (Rel. GRANJA DA FONSECA), Proc. 9268/07.0TBMAI.P1.S1.
3
Cf. RENÉ RODIÈRE, Droit des transports terrestres et aériens, Dalloz, 3ª ed., 1981, pp. 152-154. Aí reside,
pois, como afirma COSTEIRA DA ROCHA, O contrato de transporte de mercadorias, cit., pp. 26-27, o “núcleo
definidor do instituto”.
4
Cf. Ac. do STJ de 06-07-2006 (Rel. OLIVEIRA BARROS), Proc. 06B1679. Seguindo, neste ponto, a posição
de LUCAS RIBEIRO, Obrigações de meios e obrigações de resultado, Coimbra Editora, 2010, 1ª ed., pp. 19-
20, entendemos a que destrinça entre obrigações de meios e de resultado se deve fazer com recurso ao
seguinte critério: nas obrigações de meios, o devedor obriga-se apenas a desenvolver uma conduta diligente,
prudente ou cauta, por forma a satisfazer o interesse fundamental do credor, mas sem assegurar que este se
realize; nas obrigações de resultado, pelo contrário, o devedor fica vinculado a proporcionar ao credor um
determinado efeito útil que atua satisfatoriamente o interesse primário do credor. I.e., o cumprimento ou
incumprimento de um dever emergente de uma obrigação de resultado dependerá da produção ou falta de
produção desse mesmo resultado. Ao invés, nas obrigações de meios o devedor apenas se obriga a
desenvolver uma atividade ou conduta diligente em direção ao resultado final (realização do interesse
primário do credor), mas sem assegurar a produção do resultado (daí que, conforme afirmado pelo autor, o
elemento resultado seja exógeno ou extrínseco à relação obrigacional).
10
É, no geral, um contrato consensual, embora em alguns casos o legislador exija a
forma escrita5-6.
Como afirmado em Ac. do STJ de 19-10-20177, neste tipo de contrato,
temporalmente, a execução material da prestação de facto a que o transportador se obriga
desdobra-se em três operações: a receção da mercadoria, a sua deslocação (ou transporte
em sentido estrito) e a sua entrega ao destinatário no local de destino.
Todas estas fases do contrato de transporte são acompanhadas (ou deverão ser),
por um documento de transporte que desempenha um distinto papel em cada uma delas:
(i) na fase da receção da mercadoria, o documento de transporte irá constituir
prova do recebimento da mercadoria pelo transportador nas condições e
com as características nele descritas;
(ii) na fase de deslocação (da viagem propriamente dita), o documento (se for
negociável) poderá ou não circular sendo que, circulando, investirá os
sucessivos adquirentes do documento em legítimas expectativas quanto
àquilo que vem descrito no documento;
(iii) na fase de entrega da mercadoria ao destinatário no local de destino, o
destinatário das mercadorias deverá apresentar ao transportador o
documento de transporte para que lhe seja entregue a mercadoria. É
também nesta fase que lhe é dada a possibilidade de proceder à verificação
das mercadorias chegadas ao destino no sentido de averiguar se as mesmas
5
Com efeito, no contrato de transporte marítimo de mercadorias exige-se a forma escrita no direito interno.
Criticando a rigidez do legislador nacional quando à exigência de forma solene, vd., JANUÁRIO DA COSTA
GOMES, O ensino do Direito Marítimo, Almedina, 2004, p. 232, aludindo a um “excessivo caráter formal”
que, ademais, não se apresenta de todo coerente num regime que exige, por um lado, a emissão de
conhecimento de carga e, por outro, uma forma específica (escrita). Temos de concordar com esta posição,
pois face às funções do conhecimento de carga entre as quais a probatória seria perfeitamente
dispensável a exigência de forma escrita, que só vem contribuir ainda mais para a morosidade do tráfego
comercial. Note-se ainda que a forma escrita exigida no diploma interno não quer dizer que tal forma seja
o conhecimento de carga em si. Essa forma escrita não se confunde com o conhecimento de carga. Não
podemos, assim, concordar com o afirmado no Ac. do TRL de 19-10-2017 (Rel. Proc. 79/12.2TNLSB.L1-
2 em que se afirma que “O contrato de transporte de mercadorias por mar, de acordo com o artigo 3º do
DL 352/86, de 21/10, é um contrato formal ou solene, sujeito a escrito particular, denominado
conhecimento de embarque ou conhecimento de carga (bill of lading)”. Esse escrito particular não se
confunde, pois com o conhecimento de carga. Pode ser qualquer outro documento escrito (v.g., mensagens
de correio eletrónico trocadas entre as partes).
6
É, ainda, nos termos do CCom., um ato objetivamente comercial na medida em que se trate de uma
atividade comercial exercida profissional e de forma empresarial, uma vez que o artigo 230.º, n.º 7, do
CCom. o qualifica expressamente como tal cf. PAIS DE VASCONCELOS, Direito Comercial, Almedina, I
Vol., 2015, pp. 228-229. De acordo com o artigo 230.º, n.º 7, do CCom., haver-se-ão por comerciais as
empresas, singulares e coletivas, que se propuserem “Transportar, regular e permanentemente, por água
ou por terra, quaisquer pessoas, animais, alfaias ou mercadorias de outrem”.
7
Cf. Ac. do STJ de 06-07-2006 (Rel. OLIVEIRA BARROS), Proc. 06B1679.
11
correspondem, efetivamente, ao que se encontra descrito no documento
dessa forma conseguirá o destinatário aferir da correspondência entre a
realidade fática e a realidade documental por forma a recorrer a eventuais
ações contra o transportador, que tem o dever de lhe entregar as
mercadorias tal como as recebeu do carregador/expedidor.
Uma vez que o transportador apenas é responsável pelos danos que surjam dentro
do arco temporal do transporte abrangido por estas distintas fases e por atos que não lhe
sejam imputáveis, o transportador poderá, desde logo, no momento do embarque,
inscrever no documento de transporte certas menções relativas às características das
mercadorias a transportar, bem como ao estado e condição aparentes em que as mesmas
se encontram.
É neste contexto que surgem as reservas à partida, que são uma figura específica
do contrato de transporte de mercadorias. Estas constituem declarações do transportador
sobre as características, estado e condição aparentes das mercadorias a transportar. Essas
declarações fundamentam-se numa ação inspetiva do transportador, traduzida na
verificação das mercadorias (ou ausência dela, por impossibilidade de meios que
razoavelmente estejam ao seu dispor). Concretamente, ao apor reservas, o transportador
emite uma declaração no sentido de contradizer as declarações do carregador/expedidor
a respeito das características da mercadoria a transportar ou, então, declara que as
mercadorias não estão em bom estado e condição aparentes ou, ainda, simplesmente,
remete para o que disse o carregador por não ter procedido à verificação das mercadorias
(“cláusulas de desconhecimento”).
Poderá, noutra hipótese, suceder que o destinatário, aquando da chegada das
mercadorias ao destino ou dentro de determinado prazo após esta entrega (se o vício for
oculto), detete desconformidades em relação às características das mercadorias tal como
inscritas no documento de transporte. Neste caso, o destinatário poderá declarar que as
mercadorias não chegaram conforme o descrito nesse documento, por ter verificado
discrepâncias (reservas à chegada).
Como se vê, umas e outras as do transportador e do destinatário , dizem
respeito às características das mercadorias objeto do transporte e têm como objetivo,
precisamente, atestar o estado e as características das mercadorias à partida (antes de se
iniciar a viagem de transporte) e à chegada (após a chegada ao destino). Como é fácil de
adivinhar, estas menções não serão despiciendas em sede de responsabilidade do
12
transportador. São pois, e como veremos, uma “arma” de defesa para não ver
excessivamente onerada a sua prova se vier a ser acionado numa ação de responsabilidade
civil.
É sobre estes temas que irá incidir o presente excurso, tendo sobretudo em vista a
construção de uma teoria geral ou dogmática comum das reservas, e procedendo também
à análise de uma figura contratual com estas estreitamente conexas: as cartas de garantia
em virtude das quais o transportador aceita emitir um documento de transporte sem
reservas e o carregador/expedidor, em contrapartida, obriga-se a indemnizar aquele pelos
eventuais danos decorrentes da emissão do documento sem reservas. Surgem, assim, as
cartas de garantia para obstar aos inconvenientes das reservas.
Inicialmente surgidas na praxis contratual (marítima), as reservas encontram,
hoje, alguma regulação jurídica ao nível interno e internacional. Ainda assim,
vislumbram-se lacunas por resolver e que apelam à necessidade da sua integração. Além
disso, não existe uma uniformidade entre os vários regimes que permita descortinar, com
clareza, o seu real alcance, correndo-se o risco de se chegar a interpretações díspares
tendencialmente “viciadas” no direito interno dos diversos Estados. Tal como as reservas,
as cartas de garantia vêm reguladas nalguns regimes e, noutros, não se faz qualquer
referência.
A integração dessas lacunas e a interpretação dos preceitos normativos em matéria
de reservas deve ser feita sem perder como pano de fundo toda a sistemática normativa
maxime legislação nacional e internacional incluindo, ainda, os usos do comércio
internacional. São, na medida do possível, de evitar soluções discrepantes entre os vários
regimes, bem como raciocínios interpretativos desprovidos desta visão geral do
ordenamento.
Mesmo quando esteja em causa um contrato de transporte interno, não poderá
negar-se que os regimes internos são inspirados, precisamente, em convenções
internacionais que o regulam. Como se sabe, o contrato de transporte é um contrato
dotado de uma acentuada “vocação internacional”, o que levou o legislador internacional
a adotar um vasto conjunto de regimes internacionais, desde regimes imperativos a soft
law ou formulários internacionais adotados por organizações internacionais e que
correspondem a uma “codificação” dos usos do comércio internacional.
Um apelo à uniformidade de soluções é, por isso, não apenas desejável como
mesmo essencial num direito (i) com uma acentuada tónica internacional em que o
13
contacto com diversas ordens jurídicas é predominante; (ii) em que se caminha, cada vez
mais, para o transporte multimodal (door to door) em detrimento dos transportes
unimodais8.
Feito este breve enquadramento, bem se vê que não é de somenos importância o
estudo deste tema. Desde logo porque as reservas, sendo apostas, poderão constituir um
forte obstáculo à fluidez do tráfego comercial maxime à circulação dos documentos de
transporte quando revistam a natureza de títulos de crédito (negociáveis) , onde existe
uma multiplicidade de sujeitos envolvidos, com interesses próprios, para além das típicas
partes num contrato de transporte (carregador/expedidor e transportador).
Entre os terceiros envolvidos encontra-se em primeiro plano o destinatário das
mercadorias e, logo a seguir, os bancos e seguradoras. Sendo terceiros, nem por isso são
desmerecedores de tutela. Há, pois, que apelar aos interesses de todos nesta teia complexa
de obrigações que, mesmo não estando ligadas estruturalmente ao contrato de transporte
(com exceção da entrega das mercadorias ao destinatário como reverso da medalha deste
ao direito à entrega das mercadorias9), na substância não se poderão dele desprender.
Neste âmbito, cumpre ter presente a natureza jurídica do contrato de transporte,
na medida em que para além das partes do contrato surgem envolvidos na relação negocial
terceiros que, embora exteriores ao contrato, são titulares de direitos a ele ligados
funcionalmente. Com efeito, segundo a posição maioritária, o contrato de transporte tem
sido qualificado como um contrato a favor de terceiro rectius, a favor do destinatário
das mercadorias10.
8
Como afirmado por HENDRIKSE e MARGETSON, “Uniform Construction and Application of the Hague
(Visby) Rules”, Aspects of Maritime Law - Claims under Bills of Lading, Kluwer Law International, 2008,
pp. 36 e ss., a respeito do direito marítimo que, como se sabe, é o ramo percursor do direito dos transportes
, a uniformização da interpretação e construção deste ramo do direito constitui a sua essência e tem sido
reconhecido pelos tribunais de todo o mundo como tal, pois o direito marítimo constitui parte do “direito
das nações”, sendo uma das suas “belezas”, precisamente, a sua universalidade.
9
O direito à entrega das mercadorias do destinatário está estruturalmente ligado ao contrato de transporte
na medida em que, como se verá, este é configurado estruturalmente como um contrato a favor de terceiro
e, além disso, este direito está incorporado num determinado documento de transporte.
10
Sobre o contrato a favor de terceiro vd. LEITE DE CAMPOS, Contrato a favor de terceiro, Almedina, 2009;
AZEVEDO RAMALHO, O Princípio da relatividade contratual e o contrato a favor de terceiro, Coimbra
Editora, 2013. PAIS DE VASCONCELOS, Direito Comercial, I Vol., Almedina, 2015, pp. 238-239, entende
essa construção (a do contrato a favor de terceiro) como desnecessária no contrato de transporte, atento o
facto de, no seu entender, na medida em que seja emitido o título de transporte (como deverá ser) se aplicar
o regime jurídico dos títulos de crédito representativos das mercadorias que ditará, assim, os direitos do
terceiro legítimo portador do título. O autor alude, assim, a um “falso carácter trilateral do contrato de
transporte”. Todavia, não obstante esta construção, como dita o autor, poder, em certos casos, ser na prática
desnecessária, cumpre ter presente que nem sempre sucederá que o documento de transporte seja
negociável, pelo que nestes casos aquela construção assume manifesta utilidade. É o que sucede, v.g., com
a declaração de expedição e com a guia de transporte aéreo (que, na prática, não reveste a característica de
título de crédito negociável). É, também, o que sucede, v.g., nos casos em que, ao abrigo de um transporte
14
São estes temas que nos propomos discutir e problematizar, na busca de soluções
uniformes e de harmonia com os princípios de direito dos transportes, que, como é sabido,
constitui uma disciplina do direito com uma dogmática própria11.
Não obstante o nosso estudo incidir sobre os vários modos de transporte, e sem
prejuízo da construção de uma teoria geral comum, será dada premência especial ao
transporte marítimo por, atenta a sua natureza, ser aquele que, historicamente, mais tem
sido debatido em torno deste tema e por, de um ponto de vista dogmático, se afigurar
também mais profícuo à problematização de questões conexas com as reservas. Essa
proficuidade, como se verá, tem a ver com as específicas funções desempenhas pelo
documento de transporte marítimo: o conhecimento de carga.
marítimo, ao invés de ser emitido um conhecimento de carga (bill of lading), seja emitido um documento
similar que o possa substitui v.g. seawaybill.
11
Reconhecendo expressamente a autonomia dogmática do direito dos transportes, vd., v.g., MENEZES
CORDEIRO, “Introdução ao direito dos transportes”, I Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo. O Contrato
de Transporte Marítimo de Mercadorias, Almedina, 2008, p. 36; JOÃO RICARDO BRANCO, “A conduta
antijurídica do transportador e a preclusão da limitação da responsabilidade”, Temas de Direito dos
Transportes, Vol. I, Almedina, 2010, pp. 306-307.
12
Cf. MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em direito marítimo”, Temas de Direito Marítimo,
pp. 567-568, disponível em http://www.oa.pt/upl/%7B4fd8676e-5fe5-458b-925c-d23efa3d2e94%7D.pdf.;
13
Cf. MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em direito marítimo”, cit., pp. 567-568.
14
Cf. MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em direito marítimo”, cit., p. 568.
15
De seguida, far-se-á uma breve referência a atos normativos estadunidenses que,
a nosso ver, desempenharam um papel evolutivo importante no regime das reservas: o
Harter Act e o Promerene Bills of Lading Act15.
a) Harter Hact
15
Quanto aos outros atos normativos existentes e sua evolução no seio do direito dos transportes maxime
regimes internos e internacionais do transporte , os mesmos serão analisados em sede própria, pois
justifica-se que, quanto a estes, se faça uma análise desenvolvida dos respetivos regimes.
16
Cf. HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas
de 1924, cit., p. 47.
17
Cf. HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas
de 1924, cit., p. 47.
18
Cf. HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas
de 1924, cit., pp. 25-26. O autor alude, neste contexto, à “absolutização do princípio da liberdade
contratual”.
19
Os Estados Unidos eram, nessa época, um país de carregadores, pelo que esta reação aparece neste
contexto face à necessidade de protegê-los contra o poder negocial dos transportadores cf. HUGO RAMOS
ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas de 1924, cit., p. 28.
20
Cf. HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas
de 1924, cit., p. 28. Sobre o Harter Act em geral vd. I. L. EVANS “The Harter Act and its limitations”,
16
Por força deste normativo, deixou de ser possível a exclusão da responsabilidade
do transportador relativamente ao bom estado de navegabilidade do navio, passando a
prever-se a obrigação dos transportadores atuarem em termos diligentes no sentido de
armar, equipar, aprovisionar e preparar convenientemente o navio, de modo a que este
pudesse concluir a viagem com sucesso21. Previram-se, também, as situações em que o
transportador não seria responsável, como nos casos de força maior ou nos casos não
imputáveis ao transportador (por ex., por vícios ocultos ou vícios próprios da mercadoria
ou por factos imputáveis ao carregador)22.
De facto, se pensarmos no caso das reservas, a mera exoneração da
responsabilidade do transportador apenas mediante a aposição de menções relativas ao
peso, conteúdo ou valor das mercadorias, abriu as portas a comportamentos abusivos por
parte dos transportadores, em prejuízo dos carregadores.
A aprovação do Harter Act traduz-se, assim, numa solução de compromisso entre
os interesses dos carregadores e transportadores, já que, por um lado, preveem-se
determinadas causas que poderão determinar a exclusão da sua responsabilidade (faltas
náuticas) e, por outro lado, preveem-se situações que não poderão determinar a exclusão
desta responsabilidade (faltas comerciais)23.
O Harter Act não fazia nenhuma referência expressa às reservas. No entanto,
mencionava, quanto ao conteúdo do conhecimento de carga, que constituía dever do
transportador indicar neste documento, entre outras coisas24:
(i) as marcas necessárias à identificação das mercadorias;
(ii) o número de embalagens ou quantidade das mercadorias;
(iii) se o peso foi determinado pelo transportador ou pelo carregador/expedidor;
(iv) o estado ou condição aparente das mercadorias.
Michigan Law Review, Vol. 8, n.º 8, jun. 1910, pp. 637-655, disponível em
http://www.jstor.org/stable/1274905. Refere este autor que, na verdade, as normas positivadas no Harter
Act vão de encontro a anteriores decisões dos tribunais americanos, que, mesmo sem um normativo
existente, demonstravam já as mesmas preocupações que desembocaram na aprovação deste instrumento
normativo (p. 638).
21
Cf. Sec. 2 do Harter Act. Vd., também, HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do
transportador na Convenção de Bruxelas de 1924¸ cit., pp. 28-29.
22
Cf. Sec. 3 do Harter Act.
23
Cf. HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas
de 1924, cit., p. 30.
24
Cf. Sec. 4 do Harter Act.
17
Previa-se, ademais, quanto ao seu valor probatório, que este documento constituía
prima facie evidence do recebimento da mercadoria nas condições e com as
características nele descritas25.
Pode assim concluir-se, no tocante ao Harter Act, que não obstante a ausência de
menção expressa às reservas, previa-se um dever do transportador de descrever no
conhecimento de carga as marcas, quantidades ou número de embalagens, peso (se
determinado pelo carregador ou transportador) e estado e condição aparente das
mercadorias. Esta obrigação, associada ao efeito presuntivo do conteúdo do documento
de transporte, como já se referiu sumariamente, está indissociavelmente ligada às reservas
e constitui, nos regimes atuais, uma questão central do seu regime.
A positivação das reservas ocorreu pela primeira vez nos Estados Unidos, com o
Promerene Bills of Lading Act de 1916 (PBL), que reconheceu a eficácia desta prática ao
prever a possibilidade de o transportador fazer menção ao peso, estado ou quantidade de
mercadorias face às menções declaradas pelo carregador26.
O PBL é uma lei federal dos Estados Unidos que estabelece os direitos e
obrigações dos carregadores e transportadores emergentes de conhecimentos de carga
emitidos na sequência da celebração de um contrato de transporte27. Importa, por isso,
olhar para o regime de responsabilidade do PBL e fazer a necessária correlação com as
reservas que o mesmo também prevê. É que, neste normativo, o regime de
responsabilidade está intimamente ligado ao valor ou regime atribuído ao conhecimento
de carga.
Entre as normas do PBL, destacamos em primeiro lugar a que prevê os casos em
que o transportador será responsável. Concretamente, a norma prevê que o transportador
que emite um conhecimento de carga (i) é responsável pelos danos causados em virtude
da não correspondência das mercadorias com o descrito no conhecimento de carga; (ii) é
responsável perante o proprietário das mercadorias transportadas no caso de ter sido
emitido um documento não negociável ou perante o detentor de um conhecimento de
carga negociável, se o proprietário ou o detentor estiverem de boa fé relativamente à
25
Cf. Sec. 4 do Harter Act.
26
Cf. MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em direito marítimo”, cit., p. 568.
27
Sobre o PBL, vd. HENRY HULL, “The Federal Uniform Bills of Lading Act”, The Virginia Law Register,
Vol. 3, N.º 5, 1917, pp. 329-340, disponível em http://www.jstor.org/stable/1105999.
18
descrição das mercadorias do conhecimento de carga ou quanto ao não carregamento
conforme descrito no conhecimento28.
Em segundo lugar, prevê-se que o transportador não será responsável: (i) quando
as mercadorias são carregadas pelo carregador; (ii) quando o conhecimento descreve as
mercadorias quanto às marcas de identificação, ou contém uma declaração sobre o tipo,
quantidade ou condição das mercadorias, ou nele são feitas menções como, v.g., “contents
or condition of contents of packages unknown”, “'said to contain”, “shipper's weight,
load, and count”, ou palavras com o mesmo significado, e na medida em que o
transportador não sabe se alguma parte da mercadoria foi recebida ou está em
conformidade com a descrição do carregador29. Eis aqui a expressa consagração legal
daquilo que a doutrina tem apelidado de reservas genéricas, com a consequência de que,
sendo apostas, as mesmas têm a virtualidade de excluir a responsabilidade quanto as
menções das mercadorias que visam abranger30.
Quanto à “responsabilidade por carregamento impróprio”, o PBL prevê que o
transportador que emite um conhecimento de carga não é responsável pelos danos
causados por carregamento impróprio se: (i) foi o carregador quem carregou as
mercadorias e (ii) o conhecimento contém as palavras “shipper's weight, load, and count”
ou menções equivalentes indicando que o carregador é que carregou as mercadorias31.
O PBL consagra ainda o dever, por parte do transportador, de determinar o tipo,
quantidade e número de mercadorias, nos seguintes moldes: quando a mercadoria é
carregada por um carregador deixando as mercadorias nas instalações apropriadas do
transportador para pesar a mercadoria, o transportador deve determinar o tipo e a
quantidade das mercadorias, dentro de um prazo razoável, depois de receber o pedido por
escrito do carregador no sentido de proceder a essa determinação. Nessa situação, se o
transportador fizer menção a “peso do carregador” ou utilizar expressões equivalentes,
tais menções são destituídas de efeito32. Compreende-se porquê: se é o transportador
quem tem, neste caso, o dever de proceder à determinação do tipo, quantidade e número
de mercadorias, tendo meios ou devendo ter meios para o fazer, então de nada vale fazer
28
Cf. Secção 80113, a) do PBL.
29
Cf. Secção 80113, b) do PBL.
30
MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em direito marítimo”, cit., p. 568, refere, a este respeito,
que com o PBL, atribuiu-se expressamente eficácia às reservas: o transportador poderia fazer constar dos
conhecimentos menções como “shipper’s weight, load and count”, ou outras equivalentes.
31
Cf. Secção 80113, c) do PBL.
32
Cf. Secção 80113, d) do PBL.
19
menção ao peso declarado pelo carregador, como se pretendesse eximir-se da sua
obrigação.
Quando as mercadorias são carregadas pelo transportador, o mesmo tem de contar
as embalagens se as mercadorias vierem embaladas, e determinar o tipo e a quantidade,
se as mesmas constituírem carga a granel. Nessa situação, inserir a expressão “peso do
carregador, carga e contagem” (“shipper's weight, load, and count'”) ou palavras que
indicam que o carregador descreveu e carregou a mercadoria, não tem qualquer efeito33.
Eis, aqui, uma nota de regime essencial para as considerações que vamos tecer ao
longo do presente excurso e que deve, desde já, reter-se: nem todas as reservas são
admissíveis. Só o serão aquelas que apresentarem algum fundamento legítimo, sendo que
tal fundamento deverá aferir-se tendo em conta um dever essencial do transportador: o
dever de verificação das mercadorias.
Como se vê, o regime do PBL já é denso no que respeita ao regime das reservas,
espelhando uma preocupação especial com as genéricas. No entanto, enuncia-o em sede
de regime de responsabilidade do transportador. Parece assim que, à luz deste regime, as
reservas validamente apostas têm o efeito de determinar a exclusão da sua. A letra do
preceito vai nesse sentido. Este ponto, a nosso ver, afigura-se criticável, desde logo face
ao princípio geral vigente no direito dos transportes sobre a imperatividade (na maioria
das vezes, mínima a favor do carregador) sobre as regras de responsabilidade civil do
transportador. Mas, sobre este tema, faremos considerações mais desenvolvidas infra.
3. O fenómeno da contentorização
33
Cf. Secção 80113, d) do PBL.
34
Cf. MARGARIDA D’ OLIVEIRA MARTINS, “Os contentores marítimos: alguns aspetos da sua regulação
jurídico-internacional”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes, Coimbra
Editora, 2004, p. 679.
35
Cf. MARGARIDA D’ OLIVEIRA MARTINS, “Os contentores marítimos: alguns aspetos da sua regulação
jurídico-internacional”, cit., p. 679.
20
importância é não só jurídica como também económica, ou não fosse o direito comercial
um direito marcadamente económico. Foi, na verdade, a realidade económica que levou
à proliferação deste fenómeno, a que nem a economia nem a regulação jurídica poderão
estar alheados. Neste contexto, o crescimento das trocas comerciais entre longas
distâncias, associado aos fenómenos da revolução industrial e da globalização, contribuiu
fortemente para o desenvolvimento do transporte (em particular o marítimo), passando a
falar-se em economia global ou economias de escala.
Face a esta realidade, fruto da necessidade de dotar o transporte de maior
eficiência em termos de tempo e recursos, e por forma possibilitar, nomeadamente, a
deslocação de maiores volumes de carga, o transporte passou a ser efetuado, sobretudo,
com recurso a contentores. O contentor é, neste contexto, muitas vezes apelidado como a
“caixa que mudou o mundo”36.
Em suma: com a “revolução da contentorização” na sequência da globalização
económica que a isso exigiu, o modo como passaram a ser transportadas as mercadorias
mudou radicalmente. Com o contentor, toda a operação de transporte passa a ser mais
célere e ágil37-38, possibilitando ainda a “redução drástica dos custos de transporte”39.
Este fenómeno contribuiu fortemente para o desenvolvimento de duas figuras
contratuais no direito dos transportes (complexas juridicamente): o transporte
36
A invenção da “caixa que mudou o mundo” deve-se a Malcom McLean, que concedeu e concretizou esta
ideia em 1956, quando o navio Ideal X, o primeiro navio porta-contentores, convertido de um petroleiro da
Segunda Guerra Mundial, largou de Newark para Houston com 58 contentores de alumínio no convés,
dando início a uma verdadeira revolução no transporte de mercadorias cf. JORGE P. D’ALMEIDA, Portos
e transportes marítimos, p. 35, disponível em http://ftp.infoeuropa.eurocid.pt/database/000038001-
000039000/000038454.pdf.
37
Cf. MARGARIDA D’ OLIVEIRA MARTINS, “Os contentores marítimos: alguns aspetos da sua regulação
jurídico-internacional”, cit., p. 679.
38
Esta maior celeridade e agilidade está, de resto, bem patente na definição que nos é dada pela Convenção
Internacional sobre a Segurança dos Contentores (CSC) que entrou em vigor em 6 de setembro de 1972.
Com efeito, ao abrigo desta Convenção, por contentor deve entender-se o equipamento para transporte, de
caráter permanente e suficientemente resistente para permitir uma utilização repetida, sendo especialmente
concebido para facilitar o transporte de mercadorias, por um ou mais meios de transporte, sem que haja
movimentação intermédia de carga (artigo II, n.º 1, als. a) e b)) da CSC. Por outro lado, nos termos da CSC,
o contentor é concebido para ser fixo e ou manipulado facilmente, tendo peças de canto próprias para esse
fim e cujas dimensões são tais que a superfície limitada pelos quatro ângulos inferiores exteriores é de, pelo
menos, 14m2 ou 7m2 se o contentor estiver equipado com peças de canto nos ângulos superiores.” (artigo
II, n.º 1, als. c) e d)). Portugal aderiu a esta Convenção pelo Decreto 23/85, de 12 de julho.
39
Expressão de JORGE P. D’ALMEIDA, Portos e transportes marítimos, p. 33, disponível em
http://ftp.infoeuropa.eurocid.pt/database/000038001-000039000/000038454.pdf. O autor afirma,
inclusivamente, que foi esta “redução drástica dos custos de transporte, beneficiando da eficiência
portuária associada ao transporte de carga contentorizada, que potenciou o desenvolvimento de cadeias
logísticas à escala mundial, condição sine qua non da globalização.” Portanto, se formos bem a ver, a
globalização é, simultaneamente, causa e consequência da contentorização.
21
multimodal40 e o contrato de volume. Se o transporte multimodal obriga a uma logística
e organização entre várias infraestruturas exigente atentos os vários modos de transporte
envolvidos, com os inerentes custos associados, o contrato de volume, estando associado
ao transporte de grandes quantidades ou volumes de mercadorias por um determinado
período de tempo tradicionalmente, embora não exclusivamente, transporte de granéis
sólidos e petróleo bruto não é, também, compaginável, na prática, com a lentidão e as
dificuldades dos transportes sem recurso a contentores41-42.
Retomando agora aquilo que começámos por dizer que falar de reservas
pressupõe, necessariamente, que se tenha presente o fenómeno da contentorização ,
cumpre, aqui, realçar que um dos problemas jurídicos suscitados pelo transporte efetuado
com recurso a contentores relaciona-se com a verificação das mercadorias neles
transportadas43. As dificuldades que a contentorização levanta no que respeita à
verificação das características e condição das mercadorias por parte do transportador
contribuiu, pode assim dizer-se, para a “massificação” das reservas, restringindo as suas
funções de verificação praticamente ao seu peso44.
Por este motivo, e reconhecendo as preocupações advenientes desta realidade, o
legislador português consagrou a admissibilidade das denominadas reservas
“quantitativas”, de que são exemplo as reservas “said to contain”, naqueles casos em que
40
Como afirmado por CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, Almedina, 2004, p. 77, o
desenvolvimento da contentorização possibilitou o aparecimento de operadores económicos dispostos a
realizar viagens de transporte “door to door”.
41
A realidade económica subjacente ao contrato de volume é fundamental para perceber a sua importância
no comércio marítimo. Afinal, trata-se de uma figura que se foi desenvolvendo na prática, destituída de um
regime próprio, mas necessária ao comércio marítimo atentas as particularidades de determinados
carregadores e as necessidades económicas de exportação e importação de produtos. A sua recente
afirmação em todo o mundo está associada à globalização da economia e à crescente industrialização do
transporte marítimo, bem como à necessidade de cada vez mais ligar os produtores aos consumidores e de
criar economias de escala para deslocação de grandes volumes de mercadorias entre grandes distâncias
cf. ALFREDO CALDERALE, “Il contratto di volume e le Regole di Rotterdam”, III Jornadas de Lisboa de
Direito Marítimo – Das Regras da Haia às Regras de Roterdão, Almedina, 2014, pp. 96-97.
42
Sobre o contrato de volume, vd. LYNCE DE FARIA, “O Contrato de Volume na nova dinâmica do transporte
contentorizado”, Revista de Direito Comercial, 2017, disponível em
https://www.revistadedireitocomercial.com/.
43
A par de outros problemas tais como a limitação da embalagem (“package limitation”), o transporte no
convés, a responsabilidade do transportador, os seguros, as questões relativas à propriedade, posse,
detenção e aluguer dos contentores cf. MARGARIDA D’ OLIVEIRA MARTINS, “Os contentores marítimos:
alguns aspetos da sua regulação jurídico-internacional”, cit., p. 682.
44
Na esteira de JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, cit., p. 228, a “contentorização
- a revolução da contentorização - ao legitimar, por razões de operacionalidade e evidência, a prática da
cláusula said to contain, veio bulir com o estado de coisas existente em relação aos conhecimentos limpos
e às cartas de garantia, na medida em que “impôs” a aceitação deste tipo de reservas”. Vd., também,
COSTEIRA DA ROCHA, O contrato de transporte de mercadorias, cit., p. 131, que realça o facto de o
problema das reservas, não sendo novo, ter ganhado um redobrado interesse com a contentorização.
22
as declarações do carregador não sejam controláveis45. Reconhece, de forma expressa,
que este tema passou a assumir especial relevo com a contentorização, pois “sob pena de
desorganizar por completo a sequência do transporte, eliminando as vantagens que
advêm da contentorização, não será dado ao transportador, muitas vezes, verificar o
conteúdo dos contentores; terá de aceitar as indicações prestadas pelo carregador ou
por quem o substitua”46.
Neste contexto, cumpre distinguir os seguintes tipos de contentores47:
(i) contentores FCL (full container load) arrumados pelo carregador e
entregues ao transportador já fechados e selados;
(ii) contentores LCL (less than fuil container load) arrumados pelo
transportador, a quem compete a estiva.
45
Cf. Preâmbulo do DL n.º 352/86, de 21 de outubro.
46
Cf. Preâmbulo do DL n.º 352/86.
47
Cf. MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em direito marítimo”, cit., 575 e, do mesmo autor,
“Transporte marítimo de mercadorias. Os problemas”, I Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo – O
contrato de transporte marítimo de mercadorias, Almedina, 2008, p. 72; J ANUÁRIO DA COSTA GOMES, O
ensino do Direito Marítimo, cit., pp. 228-229.
48
Este objetivo foi manifestamente assumido na Resolução das Nações Unidas A/RES/63/122. No
preâmbulo das RR, faz-se também referência à consciência de que, desde a CB 1924, do respetivo Protocolo
Adicional de Visby, bem como das Regras de Hamburgo de 1978, muitos foram os avanços tecnológicos
que exigem uma consolidação e modernização do regime aplicável. Referindo-se também expressamente
ao objetivo vidado de ter em conta as práticas do transporte moderno, designadamente a utilização de
contentores, vd. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, “Introdução às Regras de Roterdão A Convenção
“Márítima-Plus” sobre transporte internacional de mercadorias”, Temas de Direito dos Transportes, vol. I,
Almedina, 2010, p. 81.
49
Cf. artigo 40.º, n.º s 3 e 4, das RR.
23
o tipo de contentor que esteja em causa, um dos fundamentos das reservas e, assim,
interferir no regime probatório do documento de transporte50.
Sem prejuízo de a elaboração dos conceitos dever partir da análise dos normativos
existentes sobre a matéria e dos conceitos neles adotados, justifica-se nesta fase ter
presente o conceito e modalidades de reservas (em jeito perfunctório e de enquadramento
e com o objetivo de dotar a exposição subsequente de maior clareza).
A primeira grande distinção que cabe efetuar é entre os conceitos de reservas à
partida e reservas à chegada (que já aflorámos): as primeiras são apostas pelo
transportador antes do início da viagem de transporte, ao passo que as segundas são
apostas pelo destinatário da mercadoria após a viagem e a entrega das mercadorias51.
No que respeita às reservas à partida, seguimos neste campo a definição de
COSTEIRA DA ROCHA: são ressalvas formuladas pelo transportador quanto à
caracterização da mercadoria (nomeadamente sobre a natureza, quantidade e qualidade
da mercadoria, o número de volumes ou respetivas marcas de identificação), seja por
constatar avarias ou faltas que não provocou, seja por não ser possível a verificação,
contagem, pesagem ou medição52.
Quanto às reservas à partida, estas podem ser (i) específicas ou (ii) genéricas.
Podem ainda ser (ii) reservas sobre marcas, número, quantidade ou peso das
mercadorias ou (ii) reservas sobre o estado e condição aparente das mercadorias.
Várias combinações são possíveis: assim, podem existir reservas específicas
sobre marcas, número, quantidade ou peso das mercadorias e reservas genéricas que
versem, também, sobre estas menções. O mesmo sucede com as reservas sobre o estado
e condição aparentes das mercadorias, que podem ser específicas ou genéricas53.
50
Como afirmado na Decisão do Supreme Court of New South Wales Commercial Division, de 12-08-
1987, a respeito do Caso Esmeralda 1, in Lloyd’s Law Reports, 1988, vol. 1, pp. 206-211 (209), o advento
da contentorização tem trazido discussões em torno do efeito probatório presuntivo (prima facie evidence)
das menções do conhecimento de carga. Neste caso, estava precisamente em causa saber se este efeito
presuntivo prima facie se podia verificar quando a mercadoria tenha sido arrumada pelo carregador e
entregue ao transportador em contentores FCL, tendo este aposto as cláusulas “said to contain - packed by
shippers”, “particulars furnished by shipper of goods”.
51
O nosso estudo irá debruçar-se, essencialmente, sobre as primeiras, pois são estas que mais implicações
de regime têm para o transportador em sede de responsabilidade.
52
Cf. COSTEIRA DA ROCHA, O contrato de transporte de mercadorias, cit., p. 130.
53
A admissibilidade de reservas genéricas sobre o estado e condição aparentes das mercadorias é, como
veremos, controversa.
24
MÁRIO RAPOSO alude ainda à existência das denominadas reservas de recusa, que
consistiriam na não inclusão destas específicas menções no documento de transporte,
muito embora nos pareça que este autor enquadre este conceito nas reservas said to
contain54.
Mas, mais do que isso, poderá, em teoria, equacionar-se a existência de “puras”
reservas de recusa, no sentido de não inclusão daquelas menções nem da aposição de
reservas said to contain ou de desconhecimento. Neste contexto, teria, assim, de se
admitir a existência de reservas por “ação” e por “omissão”:
(i) as reservas por ação implicariam uma declaração expressa, formulada
pela positiva mediante a aposição de expressões sobre aquelas específicas
menções (sejam essas expressões específicas ou genéricas);
(ii) as reservas por omissão, por sua vez, consistiriam na simples omissão
daquelas menções, traduzida no silêncio do transportador quanto às
mesmas (o silêncio valeria, aqui, como declaração com os mesmos efeitos
das reservas por ação).
Adiante veremos se, face aos normativos existentes, fará sentido esta
autonomização do conceito de reservas de recusa, mormente face ao previsto na CB
1924.
Cumpre, ainda, ter presente a destrinça entre documento de transporte “limpo” e
documento de transporte “sujo”: um documento de transporte “limpo” será aquele em
que não sejam apostas quaisquer reservas; ao invés, um documento de transporte “sujo”
será aquele que contenha quaisquer reservas55-56.
De seguida, iremos procurar densificar os conceitos que, a nosso ver, merecem
mais desenvolvimento sobre as modalidades de reservas.
54
Cf. MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em Direito Marítimo”, cit., pp. 576-577.
55
Utilizando expressamente estas expressões para os casos de conhecimento de carga “limpo” e
conhecimento de carga “sujo”, vd., v.g., JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, cit.,
pp. 225 e ss.; CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantia”, Anuario de
Derecho Maritimo, vol. XVIII, 2001, pp. 149-150.
56
Esta distinção é feita nas Regras e Usos Uniformes relativas aos Créditos Documentários (RUU) embora
em termos não totalmente coincidentes, o que se afigura criticável por causar uma desarmonia
intrasistemática com relevância práticas nas operações de crédito documentário, como veremos infra. É da
maior relevância para as operações subjacentes ou ligadas funcionalmente ao contrato de transporte a
emissão de um documento de transporte “limpo”. Com efeito, um documento de transporte “sujo” poderá
“contaminar” outras operações de comércio maxime créditos documentários e contratos de seguro.
25
4.1. Reservas sobre marcas, número, quantidade ou peso das mercadorias
57
Cf., no transporte marítimo, artigo 3.º, n.º 3, als. a) e b), da CB 1924, utilizando a expressão “tais quais
foram indicadas por escrito pelo carregador” e “tais quais foram indicados por escrito pelo carregador”,
respetivamente quanto à identificação das marcas e número de volumes ou de objetos, ou a quantidade ou
o peso. Vd., também, CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit.,
pp. 146-147.
58
Assim, o artigo 3.º, n.º 3, al. c), da CB 1924, quando afirma que o transportador deve fazer menção ao
“estado e acondicionamento aparentes das mercadorias”, ao contrário das als. a) e b), não faz referência a
“tais quais foram indicados pelo carregador”. Vd., neste sentido, RUIZ SOROA, ZABALETA SARASÚA e
GONZÁLEZ RODRIGUEZ, Manual de Derecho del Transporte Maritimo, Vistoria-Gasteiz, 1997, p. 425;
CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantia”, cit., pp. 146- 147.
59
MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em Direito Marítimo”, cit., pp. 569-570, afirma que as
reservas sobre o estado e acondicionamento das mercadorias tomam por base a declaração do carregador
e, mediante a verificação da veracidade desta, vão contradizê-la por não corresponderem ao declarado pelo
carregador. Para o autor, estas não são verdadeiras reservas, mas sim contraindicações, de sentido diverso
ao referido pelo carregador. Não percebemos, no entanto, o alcance destas afirmações. O autor socorre-se
do argumento de que, ao abrigo do DL n.º 352/86, aplicável ao transporte marítimo de mercadorias interno,
uma das menções que o carregador deve fazer na sua declaração de carga é a relativa ao “tipo de embalagem
e o acondicionamento da mercadoria” (cf. artigo 4.º, n.º 1, al. d)) e que, por isso mesmo, tais reservas são
contraindicações do transportador em relação a este elemento da declaração de carga. No entanto,
entendemos que esta menção da declaração de carga não pretende significar o mesmo que o estado e
condição aparentes das mercadorias ou estado e acondicionamento aparentes da mercadoria que, por sua
vez, o transportador deve indicar no conhecimento de carga. Este estado e condição (ou acondicionamento)
26
A sua própria qualificação como reservas (pelo menos num sentido autêntico ou
estrito) não é, sequer, pacífica60.
Neste sentido, uma cláusula onde se mencione, v.g., “mercadoria embarcada em
aparente bom estado e condição” será livre de reservas. Ao invés, uma cláusula do tipo
“mercadoria embarcada em aparente mau estado e condição” consubstanciará uma
reserva com o efeito de tornar o documento de transporte “sujo”61.
aparentes referem-se, antes, à indicação sobre se as mercadorias se encontram, ou não, em bom estado e
condição aparentes, se estão ou não aparentemente bem acondicionadas sendo que, no caso de não estarem,
a declaração do transportador nesse sentido configurará uma reserva. Ao invés, inexistirão reservas se o
mesmo inscrever no documento de transporte que as mercadorias se encontram em bom estado e
condição/acondicionamento aparentes.
60
CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantia”, cit., pp. 146- 147,
fazendo a destrinça entre as reservas sobre marcas, número, quantidade e peso das mercadorias e reservas
sobre o estado e condição aparentes das mercadorias observa que umas e outras estão sujeitas a regimes
distintos e que, em rigor, só as primeiras se podem considerar “autênticas” ou no seu sentido estrito, muito
embora na prática o termo “reservas” seja utilizado indistintamente em ambos os casos. MÁRIO RAPOSO,
“As reservas ao conhecimento em Direito Marítimo”, cit., p. 572, por sua vez, refere que estas reservas
relativas a estas menções, sendo verificáveis sem qualquer dificuldade pelo transportador, não podem ser
qualificadas, pelo menos em sentido meramente rigoroso, como reservas.
61
Questão diferente, que não cabe para já, nesta fase, discutir,
62
Aludindo ao conceito de reservas específicas vd., v.g., ANTONIO FEFEBVRE D’OVIDIO, GABRIELE
PESCATORE e LEOPOLDO TULLIO, Manuale di Diritto della Navegazione, Dott. A. Giuffrè Editore, 2000, 9ª
ed., p. 617.
63
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Da disciplina do contrato de transporte internacional, Almedina, 2004,
p. 267.
27
Ao invés, as reservas genéricas não identificam desconformidades em concreto.
Para MÁRIO RAPOSO, as reservas genéricas são “as mais características reservas” por
serem aquelas que são apostas, precisamente, em virtude de o transportador não poder
exercer o seu dever de verificação, apondo expressões como “disse essere”, “said to
contain”, “quantidade desconhecida”, “peso desconhecido”, “marcas e volumes
desconhecidos”, ou similares64. Estas reservas são, no fundo, “cláusulas de
desconhecimento”65 em que o transportador, desconhecendo a veracidade das afirmações
constantes da declaração de carga, remete para as declarações do carregador66.
Na base destas reservas (genéricas) está, não raras vezes, subjacente o fenómeno
da contentorização, desde logo porque tais reservas (tal como todas as demais) devem ser
sustentação ou uma motivação fundada67. Com efeito, estas reservas são, precisamente,
utilizadas quando o transportador não pode verificar o conteúdo do contentor68. Por esse
motivo, achamos que, também aqui, é possível ir mais além e incluir no conceito de
reservas genéricas aquelas sobre o estado e condição aparentes das mercadorias. Com
efeito, se o transportador não tiver meios para verificar ou inspecionar a mercadoria em
virtude de a mesma estar dentro de um contentor FCL, não conseguirá, em princípio,
detetar se a mercadoria estará ou não em bom estado. Neste caso, poderá formular
reservas do tipo “estado e condição aparentes desconhecidos”69.
5. Os documentos de transporte
64
Cf. MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em Direito Marítimo”, cit., p. 573.
65
Expressão de MÁRIO RAPOSO, “Transporte marítimo de mercadorias. Os problemas”, cit., p. 72.
66
Tais reservas estão expressamente consagradas no artigo 25.º, n.º 2, do DL n.º 352/86.
67
Adiante desenvolveremos este tema.
68
Cf. COSTEIRA DA ROCHA, O contrato de transporte de mercadorias, cit., p. 131.
69
Esta questão não é, no entanto, pacífica, existindo doutrina contra a admissibilidade destas reservas
genéricas, com fundamento no facto de ser sempre verificável estado e condição aparentes. Cf., neste
sentido, CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantia”, cit., p. 149;
CASTELLO-BRANCO BASTOS, Da disciplina do contrato de transporte internacional de mercadorias por
mar, cit., p. 267; GABALDÓN GARCÍA e RUIZ SOROA, Manual de Derecho de la Navegación Marítima,
Marcial Pons, 2002, p. 517.
28
A emissão de um documento de transporte no âmbito de um contrato de transporte
não constitui uma mera faculdade ou conveniência. É, ao invés, uma importante obrigação
do transportador: o dever de emitir o documento de transporte encontra-se previsto (direta
ou indiretamente) e uniformemente nos vários regimes70.
Em particular quanto às reservas à partida, as mesmas são declaradas pelo
transportador num documento de transporte e o seu valor (mormente probatório)
dependerá do valor probatório desse mesmo documento. Como tal, é importante frisar as
características e funções dos documentos de transporte. Só desta forma será possível
identificar os traços de regime das reservas (ou ausência delas).
Cumpre, neste particular, fazer uma advertência prévia: o documento de transporte
não constitui o contrato de transporte em si, mas constitui prova da sua celebração e do
conteúdo, conforme melhor se explicitará infra a respeito da sua função probatória.
Embora seja, em geral, um contrato consensual, valendo neste âmbito o princípio da
liberdade de forma salvo alguns casos em que a lei exige expressamente a forma
escrita71 , o mesmo surge quase sempre ligado a um documento de transporte, o que já
levou o STJ a concluir pela existência de uma “paradoxal consensualidade”72.
Alude o CCom. português ao conceito de guia de transporte para designar o
documento que o transportador deve entregar ao expedidor, que assim o exigir, datada e
por ele assinada. Este conceito do CCom. pretende abranger indistintamente cada um dos
documentos de transporte nos vários modos de transporte. Porém, daqui por diante, e
atenta a legislação especial vigente, o nosso excurso irá referir-se aos conceitos próprios
dos documentos de transporte nos seus vários modos, em particular:
70
Cf., no transporte marítimo, artigo 8.º, n.º 1 do DL n.º 352/86, artigo 3.º, n.º 3, da CB 1924 e artigo 14.º,
n.º 1, das Regras de Hamburgo; no transporte rodoviário, artigo 4.º do DL n.º 239/2003, e 4.º-6.º da CMR;
no transporte aéreo, artigo 5.º da Convenção de Varsóvia. Cf., ainda, artigo 35.º das RR (que ainda não
entraram em vigor, mas que visam aplicar-se ao transporte total ou parcialmente por mar), embora, como
se verá infra, as RR não estabeleçam este dever como absoluto, permitindo que em determinados casos não
seja emitido um documento de transporte, nomeadamente quando haja acordo das partes nesse sentido.
71
Como sucede com o transporte marítimo de mercadorias em que se exige a forma escrita no artigo 3.º do
DL n.º 352/86. Essa forma escrita não tem de ser o conhecimento de carga, podendo ser qualquer documento
escrito que contenha o conteúdo do contrato. Já AZEVEDO MATOS, Princípios de Direito Marítimo, Vol. I,
Edições Ática, 1955, p. 56, a respeito da redação então vigente do CCom., defendia que exigindo o Código
apenas a prova escrita, implicitamente admitia qualquer uma, desde que escrita (sendo certo que o
conhecimento cumpria essa exigência).
72
Cf. Ac. do STJ de 04-11-2010 (Rel. GONÇALO SILVANO), Proc. 3219/04.1TVLSB.S. Para PAIS DE
VASCONCELOS, Direito Comercial, cit., pp. 237-238, “não existe contradição nem desarmonia entre o
carácter não escrito do contrato de transporte e o documento que materializa o título de transporte. Este
documento é um “título de crédito representativo de mercadorias”, que goza de literalidade em sentido
próprio: só pode ser invocado o que ali estiver escrito. No mesmo sentido e utilizando a mesma expressão
(“paradoxal consensualidade”), vd. COSTEIRA DA ROCHA, O contrato de transporte de mercadorias, cit.,
p. 121.
29
(i) Conhecimento de carga, no transporte marítimo;
(ii) Declaração de expedição ou guia de transporte, no transporte rodoviário;
(iii) Carta de porte aéreo ou guia de transporte aéreo, no transporte aéreo.
73
Cf. PAIS DE VASCONCELOS, Direito Comercial, cit., p. 232.
74
O Ac. do TRL de 27-03-2012 (Rel. LUÍS LAMEIRAS), Proc. 277/09.6TNLSB.L1-7, reconhece
expressamente a relevância primordial dos documentos de transporte no contrato de transporte marítimo de
mercadorias, nos seguintes termos: “Neste tipo de contrato desempenham papel primordial o conjunto de
documentos, sucessivamente certificativos, da progressão executiva do negócio; em especial, a declaração
de carga (artigo 4º, nº 1, do DL 352/86); o conhecimento de carga “para embarque” (artigo 5º, nº 1, do
DL 352/86); e o conhecimento de carga “carregado a bordo” (artigo 8º, nº 1, do DL 352/86)”.
30
O conhecimento de carga (bill of lading, polizza di carico, conaissement,
conocimiento de embarque) é um documento de transporte emitido pelo transportador na
sequência da celebração de um contrato de transporte marítimo de mercadorias.
Constitui este documento a “rainha-mãe” dos documentos de transporte75. É em
seu torno que se tem desenvolvido doutrina e jurisprudência mais profícua, ou não fosse
este o mais rico dogmaticamente entre os demais documentos de transporte, tendo em
conta as importantes funções que desempenha, sobre as quais nos iremos ocupar de
seguida.
75
JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, Almedina, 2005, p. 231, alude, neste
particular, ao “paradigma dos documentos de transporte”. Também COSTEIRA DA ROCHA, O contrato de
transporte de mercadorias, cit., p. 122, alude, neste contexto, à “matriz dos documentos de transporte”.
76
Sobre a função do conhecimento de carga vd., v.g., na doutrina portuguesa, CALVÃO DA SILVA, “Crédito
documentário e conhecimento de embarque”, Estudos de Direito Comercial (Pareceres), Almedina, 1999,
cit., pp. 53-55, HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador na Convenção
de Bruxelas de 1924, cit., pp. 49-54, COSTEIRA DA ROCHA, O Contrato de transporte de mercadorias, cit.,
pp. 124 e 125, CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, cit., p. 272, AZEVEDO MATOS,
Princípios de direito marítimo, Vol. I, cit., p. 58. Na doutrina estrangeira, vd., v.g., IGNACIO ARROYO,
Curso de Derecho Marítimo, 2ª ed., Thomson-Civitas, 2005, pp. 525 e ss., GABALDÓN GARCÍA e RUIZ
SOROA, Manual de Derecho de la Navegación Marítima, cit., pp. 511-516, PENDON MELENDEZ, Los Títulos
Representativos de la Mercancia, Marcial Pons, 1994, pp. 60-66, 127 e ss., 186 e 187, THOMAS GILBERT
CARVER, Carver’s Carriage by Sea, 13ª ed., British shipping laws, 1982, pp. 59-89 e 1113 e ss., JOHN F.
WILSON, Carriage Goods by Sea, 4ª ed., Pearson Longman, 2001, pp. 121 e ss., e NICHOLAS GASKELL,
REGINA ASARIOTIS e YVONE BAATZ, Bills of Lading: Law and Contracts, LLP, 2000, pp. 1-3; ANTONIO
FEFEBVRE D’OVIDIO, GABRIELE PESCATORE e LEOPOLDO TULLIO, Manuale di Diritto della Navegazione,
Dott. A. Giuffrè Editore, 2000, 9ª ed., pp. 602-605.
77
Na jurisprudência portuguesa, vd. o A. do TRL de 11-04-2000 (Rel. AFONSO CORREIA), Proc. 0020474.
31
Cada uma destas funções está associada a diferentes fases do transporte,
coincidindo com os momentos de formalização, execução e transferência ou circulação
do documento para posterior entrega das mercadorias ao destinatário78.
78
Cf. IGNACIO ARROYO, Curso de Derecho Marítimo, cit, p. 526.
79
Cf. SOVERAL MARTINS, “Os documentos de transporte nas Regras da Haia e nas Regras de Roterdão”,
III Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo - Das Regras da Haia às Regras de Roterdão, Almedina, 2014,
p. 143.
80
O anterior artigo 540.º do CCom., já revogado, previa que o conhecimento regular faz fé entre os
interessados no carregamento e entre estes e os seguradores e o carregador, salvo provando-se dolo.
81
Como defendido por IGNACIO ARROYO, Curso de Derecho Marítimo, cit., pp. 525-526, não se trata de
uma prova essencial (ou formalidade ad substantiam), mas o contrato de transporte não se concebe sem a
emissão do conhecimento, que descreve o seu conteúdo contratual, maxime os direitos e obrigações das
partes. Embora documentado por um conhecimento de carga, não deixa, assim, de ser um contrato
consensual.
82
Cf. GABALDÓN GARCÍA e RUIZ SOROA, Manual de Derecho de la Navegación Marítima, cit., pp. 514-
515.
83
Mesmo nos casos em que a lei exija a redução do contrato de transporte a escrito como sucede, v.g., no
diploma interno do transporte marítimo (cf. artigo 3.º do DL n.º 352/86) , não é correto afirmar-se que o
conhecimento de carga constituía formalidade ad substantiam. Com efeito, a redução a escrito pode ser
documentada com recuso a outros escritos que não o conhecimento de carga. Vale, neste domínio, a regra
da liberdade documental (desde que o documento seja escrito). Aliás, o artigo 3.º, n.º 2, do DL n.º 352/86,
a título exemplificativo, enuncia que se incluem no âmbito da forma escrita, designadamente, “cartas,
telegramas, telex, telefax e outros meios equivalentes criados por tecnologia moderna”. Neste sentido,
poderá, face à lei interna, existir um contrato de transporte marítimo válido porque cumpre as exigências
32
A função probatória não se desprende, claro está, do valor probatório que os
diversos regimes atribuem ao conhecimento de carga, mormente quanto ao seu regime
probatório (presuntivo), quer nas relações entre carregador e transportador, quer nas
relações entre este e terceiros. Por ora, em jeito perfunctório, e porque analisaremos em
sede própria cada um dos regimes probatórios dos documentos de transporte, entre os
quais o conhecimento de carga, fica apenas a nota de que, no geral, têm sido consagrados
dois regimes quanto ao valor probatório do que neles fica descrito: (i) presunção iuris
tantum; (ii) presunção iure et de iure. A primeira (iuris tantum) tem sido, no geral (e sem
prejuízo das especificidades existentes em cada regime, que infra analisaremos),
defendida nas relações entre carregador e transportador, ao passo que a segunda (iure et
de iure) tem sido defendida nas relações entre transportador e terceiros de boa fé.
de forma legal (escrita) sem que, no entanto, tenha sido emitido um conhecimento de carga. Claro está que,
nesta hipótese, o transportador incumpre a obrigação de emitir este documento, mas nem por isso se estará
perante um contrato inválido ou nulo por falta de forma legal.
84
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., pp. 142-143.
85
Afirma CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., pp. 142-
143, que a função de recibo de entrega das mercadorias tem como finalidade atestar não apenas que as
mercadorias foram recebidas a bordo, mas também o tipo concreto de mercadorias, a data de embarque, a
quantidade, o peso e o estado em que as mercadorias foram recebidas, etc..
86
Cf. IGNACIO ARROYO, Curso de Derecho Marítimo, cit., p. 528.
33
subjacente (maxime, compra e venda), função esta que é crucial no seio dos créditos
documentários87. No entanto, este cenário é meramente eventual. É, claro está, o cenário
ideal, mas para tal se verificar o conhecimento de carga terá de descrever as mercadorias
em conformidade com todas as exigências requeridas pela compra e venda88. É que o
transportador vai verificar as mercadorias mediante uma análise documental da
declaração de carga, i.e., daquilo que disse o carregador e não fazendo um exame
comparativo com aquilo que ficou clausulado na compra e venda. Não há, assim,
verdadeiramente e em termos técnicos, uma função probatória de que o transportador
recebeu as mercadorias conforme o contrato subjacente.
87
Aludindo a esta específica função, vd., LARS GORTON, PATRICK HILLENIUS, ROLF IHRE e ARNE
SANDEVÄRN, Shipbroking and Chartering Practice, London Singapure, 6ª ed., 2004, p. 80.
88
Cf. LARS GORTON, PATRICK HILLENIUS, ROLF IHRE e ARNE SANDEVÄRN, Shipbroking and Chartering
Practice, cit., p. 80.
89
O artigo 11.º do DL n.º 352/86 assim o reconhece expressamente, quanto à sua natureza e modo de operar
a transmissão.
90
Vd., neste sentido, CALVÃO DA SILVA, “Crédito documentário e conhecimento de embarque”, cit., p. 55,
HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da Responsabilidade do Transportador na Convenção de Bruxelas de
1924, cit., p. 50 e RECALDE CASTELLS, El conocimiento de embarque y otros documentos del transporte -
Función representativa, Editorial Civitas, 1992, pp. 108-109.
91
Cf. CALVÃO DA SILVA, “Crédito documentário e conhecimento de embarque”, cit., p. 55.
34
obrigação do transportador , o contrato acaba por configurar e ditar o alcance da
representatividade do conhecimento de carga.”92
É, por isso, da maior importância para o tráfego comercial marítimo que os
conhecimentos de carga descrevam com exatidão e veracidade as mercadorias que
representam, pois através dos mesmos adquirem-se direitos ou ver-se-ão defraudados
uma multiplicidade de interesses93.
a) Conhecimento direto
92
Cf. HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da Responsabilidade do Transportador na Convenção de
Bruxelas de 1924, cit., p. 51.
93
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 142.
94
Sendo os conhecimentos de carga documentos pesados, que dão azo a burocratização, o surgimento destes
documentos similares está associado a uma tentativa de maior agilização das operações comerciais cf.
HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas de
1924, cit., pp. 54-55.
95
Na esteira de IGNACIO ARROYO, Curso de Derecho Marítimo, cit., p. 536, os documentos complementares
ao conhecimento de carga não desempenham funções idênticas a este, mas complementam-no.
96
Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino no Direito Marítimo, cit., p. 236; HUGO RAMOS ALVES, Da
limitação da responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas de 1924, cit., p. 55.
97
PALMA CARLOS, O contrato de fretamento no Código Comercial Português, Livraria Morais, 1931, pp.
93-94, já aludia a este tipo de documento, definindo-o como aquele que “se emprega apenas quando o
transportador destas [das mercadorias] é efectuado por diferentes navios” (“navios sucessivos”).
35
equiparado a este quando incorpora o direito à entrega das mercadorias derivado do
contrato de transporte98.
c) Pertence
98
Cf. IGNACIO ARROYO, Curso de Derecho Marítimo, cit., p. 534. Referindo-se mesmo, na sua definição,
ao conhecimento direto como sendo um “conhecimento de carga destinado a cobrir a intervenção de vários
transportadores marítimos, vd., HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador
na Convenção de Bruxelas de 1924, cit., p. 55. Este autor refere ainda que para se poder falar de
conhecimento direto, com propriedade, é necessário que a validade do documento se mantenha até final do
transporte, de modo a permitir que o seu titular, com base nesse documento, possa exigir a entrega das
mercadorias e que o seu relacionamento com os diferentes transportadores esteja sujeito ao aí exposto.
99
Cf. IGNACIO ARROYO, Curso de Derecho Marítimo, cit., pp. 535-536; HUGO RAMOS ALVES, Da limitação
da responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas de 1924, cit., p. 56.
100
Cf. HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador na Convenção de
Bruxelas de 1924, cit., p. 56.
101
Cf. HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador na Convenção de
Bruxelas de 1924, cit., p. 56.
102
Neste sentido, refere MÁRIO RAPOSO “As reservas ao conhecimento em direito marítimo”, cit., p. 581,
que não deixam os seawaybills de conter a descrição das mercadorias.
36
O pertence (“delivery order”) é um documento emitido à ordem do portador
legítimo do conhecimento de carga quanto existe uma pluralidade de destinatários ou se
pretende fracionar a entrega das mercadorias, por forma a que cada um destes
destinatários passe a estar investido no direito à entrega das mercadorias a que se refere
o pertence103.
A vantagem do pertence está, assim, na possibilidade de negociação fracionada da
mercadoria objeto do transporte e titulada pelo conhecimento104. No fundo, para utilizar
a expressão de JANUÁRIO DA COSTA GOMES, trata-se de um “novo e cumulativo
conhecimento, na modalidade de pertence”105.
O pertence pode ser próprio ou impróprio, sendo que (i) o próprio é emitido pelo
próprio transportador, considerando-se um título de crédito idêntico ao conhecimento de
carga, estando o titular do pertence investido num direito de crédito sobre a mercadoria e
de um direito real sobre a mesma106; (ii) o impróprio é emitido pelo próprio portador do
conhecimento107 e é controvertido quanto à sua natureza, havendo quem entenda tratar-
se de um título de crédito e quem entenda tratar-se meramente de um direito pessoal de
crédito, sendo esta última a doutrina maioritária108.
No entanto, o pertence não pode ser considerado um documento similar ao
conhecimento de carga, pois não o substitui. Com efeito, o mesmo é emitido na sequência
de um conhecimento de carga já emitido, não o podendo substituir, antes
complementando-o109.
d) Declaração de carga
103
Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino no Direito Marítimo, cit., p. 236.
104
Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino no Direito Marítimo, cit., p. 236.
105
Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino no Direito Marítimo, cit., p. 237.
106
Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino no Direito Marítimo, cit., p. 237; HUGO RAMOS ALVES, Da
limitação da responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas de 1924, cit., p. 55.
107
Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino no Direito Marítimo, cit., p. 237; HUGO RAMOS ALVES, Da
limitação da responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas de 1924, cit., p. 55.
108
Neste sentido, vd. IGNACIO ARROYO, Curso de Derecho Marítimo, cit., p. 533; JANUÁRIO DA COSTA
GOMES, O ensino no Direito Marítimo, cit., p. 237. Como afirma este último autor, trata-se, na verdade, e
apesar do seu caráter unilateral, de uma “manifestação documentada de um acordo entre o portador
legítimo do conhecimento e um terceiro designado que, não tendo, por essa via, qualquer direito a exigir
a entrega da mercadoria ao transportador, a poderá exigir ao emitente”.
109
Neste sentido, vd. HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador na
Convenção de Bruxelas de 1924, cit., p. 56.
37
A declaração de carga constitui um documento emitido pelo carregador, “a
montante do conhecimento de carga”110, e entregue ao transportador, que deve conter,
nos termos do regime interno aplicável ao transporte marítimo de mercadorias, as
indicações contidas no artigo 4.º, n.º 1, do DL n.º 352/86, a saber:
(i) a natureza da mercadoria e os eventuais cuidados especiais de que a mesma
careça;
(ii) as marcas principais necessárias à identificação da mercadoria;
(iii) o número de volumes ou de objetos e a quantidade ou o peso;
(iv) o tipo de embalagem e o acondicionamento da mercadoria;
(v) o porto de carga e de descarga;
(vi) a data.
110
Expressão de JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, cit., p. 233.
111
Cf. artigo 3.º, n.º 3, da CB 1924.
112
Sublinhado nosso.
113
Sublinhado nosso.
114
Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, cit., p. 233.
38
pelos danos resultantes das omissões ou incorreções de qualquer elemento da declaração
de carga115.
115
Cf. artigo 4.º, n.º 2, do DL n.º 352/86. A redação do artigo 3.º, n.º 5, da CB 1924 é idêntica: “O
carregador será considerado como tendo garantido ao armador, no momento do carregamento, a
exactidão das marcas, do número, da quantidade e do peso, tais como por ele foram indicados, e
indemnizará o armador de todas as perdas, danos e despesas provenientes ou resultantes de inexactidões
sobre estes pontos […]”.
116
Cf. artigo 4.º da CMR. Na terminologia do legislador português, o vocábulo utilizado é guia de transporte
(cf. artigo 3.º do DL n.º 239/2003, de 4 de outubro).
117
Cf. artigos 5.º, n.º 1, da CMR e 4.º, n.º 1, do DL n.º 239/2003.
118
Para além das funções que se enunciam de seguida, a declaração de expedição permite ainda que
determinadas entidades públicas exerça uma função de controlo de natureza administrativa e de cariz
tributário, nos termos do DL n.º 198/2012, de 24 de agosto cf. LACERDA BARATA, “Contratos de
transporte terrestre: formação e conclusão”, p. 650, disponível em https://portal.oa.pt/upl/%7B8b4f0ac1-
3c42-4a85-b5e9-c8607baca093%7D.pdf. No entanto, esta função não releva para o tema sob discussão.
119
Cf. LACERDA BARATA, “Contratos de transporte terrestre: formação e conclusão”, cit., 649; CASTELLO-
BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, cit., p. 133.
39
transporte, que continua sujeito ao regime da CMR ou do DL n.º 239/2003, consoante o
transporte seja internacional ou interno, respetivamente120.
Nos termos da CMR “A declaração de expedição faz fé, até prova em contrário,
das condições do contrato e da receção da mercadoria pelo transportador”121. O DL n.º
239/2003 não contém uma norma semelhante, mas implicitamente ter-se-á de admitir que
o mesmo regime vigora para este. Com efeito, prevê-se a possibilidade de aposição de
reservas com a consequência de que, se as mesmas não forem apostas, presume-se que a
mercadoria e ou a embalagem estavam em bom estado aparente no momento em que o
transportador as recebeu e que as indicações da guia de transporte eram exatas122.
Ora, destas normas decorre que a declaração de expedição, para além de provar
os termos e condições do contrato, também prova a receção das mercadorias por parte do
transportador, servindo de recibo das mesmas. Neste sentido, à função probatória cumpre
associar a função de recibo de entrega das mercadorias.
120
Cf. artigos 4.º, 2ª parte da CMR e 3.º, n.º 2, do DL n.º 239/2003. No sentido da consensualidade do
contrato de transporte vd., na jurisprudência, v.g, o Ac. do STJ de 01-06-2004 (Rel. AFONSO DE MELO),
Proc. 04A1767: “O contrato de transporte internacional rodoviário de mercadorias é consensual, podendo
ser provado por qualquer meio admitido pela lei”.
121
Cf. artigo 9.º, n.º 1, da CMR.
122
Cf. artigo 9.º, n.º 3, do DL n.º 239/2003.
123
Cf. LACERDA BARATA, “Contratos de transporte terrestre: formação e conclusão”, cit., 650.
40
Num contrato de transporte aéreo, o documento de transporte emitido na
sequência da sua celebração é, em regra, uma carta de porte aéreo (“airwaybill”), ou,
também assim por vezes designada, guia de transporte aéreo124.
À semelhança do que sucede, em geral, com os demais contratos de transporte,
também o contrato de transporte aéreo de mercadorias não está sujeito a forma escrita.
Tanto assim é que, nos termos da CV 1929 e da CM 1999, se não for emitida carta de
porte aéreo tal não afetará a existência ou validade do contrato de transporte, continuando
o mesmo sujeito às regras dos respetivos instrumentos normativos125.
Este documento de transporte não constitui, assim, também nesta específica
modalidade de transporte, a forma do contrato: não é formalidade ad substanciam126.
Exige-se, no entanto, que seja emitido um documento de transporte: a carta de
porte aéreo127. Admite o legislador que, em substituição desta:
(i) seja emitido um outro documento donde conste a informação relativa ao
transporte a executar, na medida em que haja o consentimento do
expedidor (se for aplicável o “Sistema de Varsóvia”)128; ou
(ii) seja emitido qualquer outro meio que conserve o registo do transporte a
efetuar (se for aplicável a CM 1999)129.
124
Aderindo a esta expressão, vd. NEVES ALMEIDA, Do contrato de transporte aéreo e da responsabilidade
civil do transportador aéreo, Almedina, 2010, que, ao longo de toda a sua obra, utiliza esta expressão ao
invés de carta de porte aéreo. Quanto a nós, e uma vez que o legislador optou pelo conceito carta de porte
aéreo, iremos preferencialmente socorrer-nos deste.
125
Cf. artigos 9.º das CV 1929 e CM 1999.
126
Cf. NEVES ALMEIDA, Do contrato de transporte aéreo e da responsabilidade civil do transportador
aéreo, cit., p. 292 (quanto ao Sistema de Varsóvia), e p. 285 (quanto à CM de 1999).
127
Cf. artigo 5.º, n.º 1, da CV de 1929 e artigo 4.º, n.º 1, da CM de 1999.
128
Cf. artigo 5.º, n.º 2, 1ª parte, da CV de 1929. Neste último caso i.e., se esses outros meios forem
utilizados , o transportador, se o expedidor o solicitar, entregará a este um recibo da mercadoria que
permita a identificação do embarque e o acesso à informação contida no registo conservado por esses outros
meios (artigo 5.º, n.º 2, 2ª parte, da CV 1929).
129
Cf. artigo 4.º, n.º 2, 1ª parte, da CM 1999. Caso seja utilizado um desses meios, a transportadora, se o
expedidor o solicitar, deve entregar a este um recibo da mercadoria que permita a identificação da remessa
e o acesso às informações constantes do registo conservado nesse meio (cf. artigo 4.º, n.º 2, 2ª parte, da CM
1999).
130
Cf. artigo 6.º, n.º 1, da CV 1929 e artigo 7.º, n.º 1, da CM 1999.
41
transportador; (iii) terceiro exemplar é assinado pelo transportador e por ele entregue ao
expedidor após a aceitação da mercadoria131.
O expedidor é quem habitualmente procede à expedição da mercadoria, emitindo
a guia de transporte e entregando-a, juntamente com aquela, ao transportador com quem
celebra o contrato132.
As funções da carta de porte aéreo de que aqui iremos cuidar são as que dizem
respeito às específicas funções relacionadas com o transporte aéreo de mercadorias133.
A carta de porte aéreo faz fé, até prova em contrário, inter alia, do recebimento
da mercadoria134. Neste sentido, à semelhança dos documentos de transporte marítimo e
rodoviário, uma das funções desempenhadas pela carta de porte aéreo é a de recibo de
entrega das mercadorias do expedidor ao transportador135.
Esta função não pode, também aqui, desprender-se da probatória, já que a função
de recibo de entrega das mercadorias, conjugada com aquela, significará que a carta de
porte aéreo serve de recibo da entrega das mercadorias e prova que essa receção foi feita
de acordo com o nela descrito (número, quantidade e estado da mercadoria), conforme se
verá já de seguida.
Tanto a carta de porte aéreo como o recibo da mercadoria136 fazem fé, até prova
em contrário:
131
Cf. artigo 6.º, n.º 2, da CV 1929 e artigo 7.º, n.º 2, da CM 1999.
132
Cf. NEVES ALMEIDA, Do contrato de transporte aéreo e da responsabilidade civil do transportador
aéreo, cit., p. 286; artigo 5.º, n.º 1, da CV 199 e artigo 7.º, n.º 1, da CM de 1999.
133
Sem prejuízo de existirem outras funções relacionadas com o regime aplicável ao transporte de pessoas
e bagagens, maxime no Sistema de Varsóvia. Sobre estas, vd. NEVES ALMEIDA, Do contrato de transporte
aéreo e da responsabilidade civil do transportador aéreo, cit., pp. 174 e ss. e 264 e ss., que alude ainda à
existência de uma função informativa e de uma função constitutiva parcial.
134
Cf. artigos 11.º, n.º 1, da CV 1929 e da CM 1999.
135
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, cit., p. 334.
136
No caso de ter sido emitido este em sua substituição.
42
(i) da conclusão do contrato;
(ii) do recebimento da mercadoria; e
(iii) das condições do transporte neles contidas137.
137
Cf. artigos 11.º, n.º 1, da CV 1929 e da CM 1999.
138
Cf. artigos 11.º, n.º 2, da CV 1929 e da CM 1999.
139
Cf. NEVES ALMEIDA, Do contrato de transporte aéreo e da responsabilidade civil do transportador
aéreo, cit., pp. 295-297. Aludindo também a uma presunção iuris tantum ou prima facie evidence, vd.
CASTELLO BRANCO-BASTOS, Direito dos transportes, cit., p. 334. Quando à função probatória deste
documento vd., ainda, ANTONIO FEFEBVRE D’OVIDIO, GABRIELE PESCATORE e LEOPOLDO TULLIO,
Manuale di Diritto della Navegazione, Dott. A. Giuffrè Editore, 2000, 9ª ed., p. 607.
43
(ii) as menções relativas à quantidade, ao volume e ao estado da mercadoria não
fazem prova contra o transportador senão quando a verificação foi por ele feita
na presença do expedidor e anotada na guia de transporte aéreo ou se se trata
de indicações relativa ao estado aparente da mercadoria140.
Pode então concluir-se, em primeiro lugar, que a carta de porte aéreo desempenha
uma dupla função probatória certa, na medida em que (i) constitui prova da celebração
do contrato; (ii) constitui prova do recebimento da mercadoria relativamente ao número,
quantidade, qualidade estado da mercadoria. Em segundo lugar, desempenha uma terceira
função probatória eventual relativamente à quantidade, volume global e estado não
meramente aparente da mercadoria, pois neste caso a função probatória nasce por efeito
de a verificação ser realizada pelo transportador na presença do carregador e anotada no
documento141.
140
Todavia, como afirmado por NEVES ALMEIDA, Do contrato de transporte aéreo e da responsabilidade
civil do transportador aéreo, cit., p. 296, “o facto das menções referentes à quantidade, ao volume e o
estado da mercadoria não fazerem prova contra o transportador não quer isso dizer que não constituam
prova contra o expedidor ou, mesmo, contra o consignatário. De facto, desde logo deve o expedidor
considerar-se vinculado ao seu conteúdo cuja autoria lhe é, aliás, atribuída”.
141
Cumpre ainda, a este respeito, notar que o Protocolo Adicional n.º 4 de Montreal de 1975 atribuiu
também a função probatória ao recibo da mercadoria que seja emitido em substituição da carta de porte
aéreo, sempre que, por serem empregues outros meios, esta não seja emitida cf. artigo 11.º da CV de
1929, na versão modificada pelo Protocolo n.º 4 de Montreal.
142
Cf. WANDA D’ALESSIO, Diritto dei Trasporti, Giuffrè Editore, 2003, pp. 282-283. Entende CASTELLO-
BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, cit., pp. 332-334, que a carta de porte aéreo não é um título
negociável, não aparecendo como um documento com efeitos constitutivos, que criaria uma relação
autónoma de base cartular, sendo antes um documento de caráter probatório. Para o autor, sendo em geral
destituída de caráter negociável, a carta de porte aéreo desempenhará as funções de prova do contrato, de
recibo das mercadorias e de prova do número, quantidade e estado da mercadoria, nos termos do artigo
11.º, n.º 1 da CV 1929.
44
supérflua a necessidade de emitir um documento que se apresente como título de crédito
negociável143-144.
O artigo 15.º, n.º 3, do Protocolo de Haia de 1955 veio possibilitar, em teoria, a
emissão de uma carta de porte aéreo negociável. Todavia, refere CASTELLO BRANCO-
BASTOS que a prática demonstrou não ser este um documento com esta característica,
sendo o seu caráter negociável meramente eventual145. Ademais, prossegue, esta
possibilidade deixou de estar prevista no Protocolo n.º 4 de Montreal e o correspondente
artigo 15.º da nova Convenção continua a não prever tal faculdade. Por isso, refere,
segundo um entendimento que diz ser unânime, essas omissões têm por fim impedir a
emissão de uma carta de porte aéreo negociável 146. Para o autor, este regime justifica-se
devido à velocidade das operações de transporte aéreo, que assim não exigem o
expediente do título de crédito a fim de possibilitar a transação segura das res in
transitu147.
Em suma: a CV 1929 tem como pressuposto que se trata de um documento não
negociável, não obstante o seu artigo 15.º, n.º 3, dispor que nada impede a emissão de um
documento de transporte aéreo negociável. Todavia, o Protocolo de Montreal n.º 4 excluiu
a mera possibilidade de emitir um título negociável e prevê o recurso a outros meios de
registo do transporte, eventualmente eletrónico, que represente a função de recibo de
mercadoria148.
Neste sentido, as suas funções são mais limitadas por comparação com as funções
do conhecimento de carga supra elencadas, dado que (i) não incorpora os direitos de
crédito que emergem do contrato, obstando à transferência desses direitos mediante
endosso ou tradição; (ii) não incorpora o direito à entrega das mercadorias nela descritas
143
Cf. ANTONIO FEFEBVRE D’OVIDIO, GABRIELE PESCATORE e LEOPOLDO TULLIO, Manuale di Diritto della
Navegazione, cit., p. 606. Estes autores referem, assim, que a disciplina do documento de transporte aéreo
constante do Codice della Navigazione italiano como título representativo torna-se, na prática, inaplicável.
Em sentido semelhante e por referência à norma do Codice della Navigazione, vd., WANDA D’ALESSIO,
Diritto dei Trasporti, cit., p. 282.
144
O Codice della Navigazione italiano deixou claro que o documento de transporte aéreo seria um título
representativo das mercadorias, equiparando-o, assim, quanto às suas funções, ao conhecimento de carga e
dissipando as dúvidas sobre a sua natureza negociável ou não negociável.
145
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, cit., pp. 332-333.
146
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, cit., p. 333.
147
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, cit., pp. 333-334.
148
Cf. ANTONIO FEFEBVRE D’OVIDIO, GABRIELE PESCATORE e LEOPOLDO TULLIO, Manuale di Diritto della
Navegazione, cit., pp. 607-607.
45
e nas condições em que estejam descritas não é título representativo das mercadorias
nele descritas149.
149
Cf. CASTELLO BRANCO-BASTOS, Direito dos transportes, cit., p. 333. No mesmo sentido, vd., ANTONIO
FEFEBVRE D’OVIDIO, GABRIELE PESCATORE e LEOPOLDO TULLIO, Manuale di Diritto della Navegazione,
cit, pp. 606-607.
150
Sobre o conceito de transporte multimodal, vd., v.g., GOMÉZ DE SEGURA, “El contrato de transporte
multimodal internacional de mercancías”, Contratos Internacionales, 1997, Editorial Tecnos, p. 620;
OCTAVIO RAVINA, ARTUR/A. ZUCCHI, HÉCTOR, Régimen del transporte multimodal: en apéndice tratados
y acuerdos internacionales, Abeledo-Perrot, 1999, p. 23.
151
Sobre a controvérsia existente em torno da natureza jurídica deste documento de transporte enquanto
título de crédito, vd. TREITEL e REYNOLDS, Carver on bills of lading, Sweet & Maxwell, 2001, pp. 410-
413.
46
documento de transporte marítimo ou multimodal consoante o modo de transporte
envolvido).
5.5.1. Conceito
152
Face a esta noção, e como refere JANUÁRIO DA COSTA GOMES, “Introdução às Regras de Roterdão - A
Convenção “Marítima-Plus” sobre transporte internacional de mercadorias”, Temas de Direito dos
Transportes, vol. I, Almedina, 2010, p. 35, o “paralelismo” com o conhecimento de carga e com as suas
funções de recibo e de prova do contrato de transporte é evidente, embora, de acordo com esta noção, falte
a função de título representativo de mercadorias. Esta omissão é propositada, uma vez que, ao abrigo das
RR, como se verá, o documento pode ou não assumir esta última função.
153
Cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules – The UN
Convention on Contracts for the International Carriage of Goods Wholly or Partly by Sea, Thomson
Reuters, 2010, pp. 204-205.
154
Assim, a parte executante poderá, agindo em representação do transportador, emitir um documento de
transporte cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules,
cit., p. 205.
155
Não é necessário que o documento contenha todas as cláusulas ou condições contratuais. Aliás, não é
pouco frequente que sejam apenas incluídas algumas das condições principais, podendo as restantes ser
encontradas noutras fontes. Mas um mero recibo, que não prova o contrato de transporte em si, não pode
ser considerado, ao abrigo das RR, um documento de transporte cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA
FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p. 206.
47
Este conceito é ainda decomposto, nas RR, em dois subconceitos, a saber:
(i) documento de transporte negociável: um documento de transporte que
indica, mediante a aposição de expressões como “à ordem” ou
“negociável” ou outra expressão apropriada reconhecida como tendo o
mesmo efeito ao abrigo da lei aplicável ao documento, que as mercadorias
foram expedidas aos cuidados do exportador, do destinatário, ou do
portador, não sendo feita uma referência expressa a documento
“inegociável” ou “não negociável”156.
(ii) documento de transporte não negociável: um documento de transporte que
não seja um documento de transporte negociável157.
Essa informação constitui meio de prova da receção das mercadorias por parte do
transportador ou parte executante em virtude da celebração do contrato de transporte158.
156
Cf. artigo 1.º, n.º 15, das RR.
157
Cf. artigo 1.º, n.º 16, das RR. As RR definem-no desta forma, pela negativa, havendo, portanto, que
recorrer ao conceito de documento de transporte negociável (pela positiva) para daí extrapolar as devidas
ilações.
158
Cf. SOVERAL MARTINS, “Os documentos de transporte nas Regras da Haia e nas Regras de Roterdão”,
cit., p. 148.
48
Como se vê, ambos documento de transporte e documento eletrónico de
transporte são documentos que provam o recebimento das mercadorias por parte do
transportador (ou parte executante, de acordo com as RR), bem como a celebração do
contrato, incorporando-o logo, provando também o seu conteúdo e não apenas a sua
celebração. São patentes as vantagens associadas: maior celeridade na transmissão da
informação e rapidez do transporte159, desburocratizando-se os procedimentos que,
outrora, seriam necessários em virtude da emissão de papel.
O documento eletrónico de transporte, ao abrigo das RR, não integra
expressamente, no seio da categorização, o tipo documento de transporte, tendo o
legislador optado pela autonomização daquele conceito face a este160. É, no entanto,
discutível se, em substância, não poderá antes entender-se que o documento eletrónico de
transporte é um verdadeiro documento de transporte na aceção das RR (integrante do seu
tipo, portanto), mas com a particularidade de ser emitido com recursos a meios de
comunicação eletrónica161.
Seja como for, sendo ou não um documento de transporte em termos de
classificação, as RR tornam claro o seu objetivo no sentido de equiparar ou tornar possível
a equiparação entre os documentos de transporte e os documentos eletrónicos de
transporte162. Alude-se, a este respeito, a um princípio da equivalência funcional163, por
forma a responder às exigências do e-commerce e usufruir dos respetivos benefícios e
159
Cf. SOVERAL MARTINS, “Os documentos de transporte nas Regras da Haia e nas Regras de Roterdão”,
cit., p. 149.
160
A este respeito, referem MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA e GERTJAN VAN DER ZIEL, The
Rotterdam Rules, cit., p. 49, que as RR não usam a expressão “electronic transport document” no sentido
de se integrarem no conceito “transport document”, criando e autonomizando, ao invés disso, um novo
conceito: “electronic transport record”.
161
Assim, as RR criam um novo tipo (“electronic transport record”) numa noção que combina a forma
eletrónica da informação nele contida com as específicas funções de um documento de transporte
propiamente dito (no seu sentido tradicional) cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA e GERTJAN
VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p. 49.
162
Cf. artigo 8.º das RR.
163
Cf. SOVERAL MARTINS, “Os documentos de transporte nas Regras da Haia e nas Regras de Roterdão”,
cit., p. 149. Vd., também, PAIS DE VASCONCELOS, Direito Comercial, cit.,, p. 238, referindo que os
documentos eletrónicos de transporte, surgindo numa tentativa de substituir os documentos em papel, não
perdem por isso a qualidade de títulos de crédito; M. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, “Introdução às Regras
de Roterdão - A Convenção “Marítima-Plus” sobre transporte internacional de mercadorias”, cit.., p. 37,
que se refere a uma “perfeita fungibilidade entre os documentos de transporte e os documentos eletrónicos
de transporte; SÁNCHEZ CALERO, El contrato de transporte marítimo de mercancías. Regras de la Haya-
Visby, Hamburg y Rotterdam, 2ª ed., Arandazi/Thomson Reuteurs, 2010, p. 644. Sobre os conhecimentos
de carga eletrónicos e as suas funções, vd. H.P.A.K. MARTINS, “The electronic bill of lading”, Aspects of
Marine Law - Claims under bills of lading, Kluwer Law International, 2008, 312-318.
49
dar, assim, resposta a um dos principais objetivos das RR: facilitar o comércio
eletrónico164.
A este respeito, prescreve o artigo 8.º das RR que a emissão, o controlo exclusivo
ou a transferência de um documento eletrónico de transporte têm os mesmos efeitos que
a emissão, posse ou transferência de um documento de transporte165. De facto, toda a
Convenção, sempre que se refere, ao longo do seu regime, a documento de transporte,
refere-se também a documento eletrónico de transporte alternativamente, o que
demonstra, mais uma vez, a equivalência substantiva e funcional de ambos aqui
acolhida166. Acresce que, também reflexo deste princípio, as RR aludem ainda à
possibilidade de substituição de um documento de transporte negociável (em papel,
portanto) por um documento eletrónico de transporte negociável e vice-versa se o
transportador e o portador legítimo do documento nisso consentirem (artigo 10.º das
RR)167-168.
Tal como os documentos de transporte (e fazendo jus, novamente, à equivalência
funcional), também os documentos eletrónicos de transporte podem ser negociáveis ou
não negociáveis169.
5.5.3. Funções
164
Cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., pp.
47 e ss..
165
Face a este expresso reconhecimento da equivalência funcional, torna-se assim meramente teórica a
questão de saber se o documento eletrónico de transporte constitui, ao abrigo das RR, um documento de
transporte nos conceitos por si adotados.
166
Cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p.
50.
167
O que também denota esta equivalência functional ou fungibilidade cf. MICHAEL F. STURLEY,
TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p. 50; M. JANUÁRIO DA COSTA
GOMES, “Introdução às Regras de Roterdão - A Convenção “Marítima-Plus” sobre transporte internacional
de mercadorias”, cit., p.38.
168
Como afirmado por MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA e GERTJAN VAN DER ZIEL, The
Rotterdam Rules, cit., p. 55, declarando como princípio esta equivalência, o artigo 8.º das RR constitui,
pois, um primeiro passo na implementação dos documentos eletrónicos de transporte, mas o verdadeiro
desafio consiste na sua implementação prática. Tentando concretizar aquele princípio, o artigo 9.º das RR,
estabelece que os documentos eletrónicos de transporte negociáveis (os não negociáveis não estão
abrangidos por este preceito), devem prever os seguintes procedimentos/fazer as seguintes menções: (i)
qual o meio de emissão e transferência daquele documento para o portador previsto; (ii) a garantia de que
o documento eletrónico de transporte negociável conserva a sua integridade; (iii) a forma pela qual o
portador poderá demonstrar a sua condição de portador; e (iv) a forma de demonstrar que a entrega ao
portador foi realizada ou que o documento eletrónico de transporte negociável perdeu sua eficácia ou
validade (ao abrigo dos artigos 10.º, n.º 2, ou 47.º, n.º 1, al. a), subalínea ii) e al. c)).
169
A noção e a técnica legislativa utilizada para o efeito (pela positiva e pela negativa) é idêntica à de
documento de transporte negociável e não negociável, apenas se adaptando a terminologia para documento
eletrónico de transporte negociável e não negociável cf. artigo 1.º, n.ºs 19 e 20.
50
Do exposto resulta que, nas RR, um documento de transporte (ou documento
eletrónico de transporte) cumpre, pelo menos, duas funções (necessárias): a função de
recibo de entrega das mercadorias e a função probatória. Quanto à função de título de
crédito representativo das mercadorias, esta será meramente eventual e dependerá do
concreto documento de transporte que for emitido: negociável ou não negociável
revestindo os primeiros aquela qualidade e sendo os segundos dela destituídos.
170
Cf., aparentemente em sentido diverso, PAIS DE VASCONCELOS, Direito Comercial, cit., p. 234, que não
faz a distinção entre a natureza dos vários documentos de transporte em termos de natureza.
171
A esta função representativa se refere expressamente o artigo 374.º do CCom., nos termos do qual se “a
guia for à ordem ou ao portador o endosso ou a tradição dela transferirá a propriedade dos objectos
transportados”. Como bem adverte PAIS DE VASCONCELOS, Direito Comercial, cit., pp. 235-237, a
referência à propriedade, neste caso, não pode ser entendida no seu sentido técnico de direito de
propriedade, sendo, pois, mais abrangente do que isso. Poderá ser um direito de propriedade ou outro.
Assim, a referência à propriedade deve, antes, ser entendida como um direito de disposição das mercadorias,
tendo mais o sentido de titularidade do que de conteúdo do direito, devendo entender-se que o endosso da
guia de transporte investe o endossatário na titularidade da mercadoria, seja qual for o seu conteúdo, “e lhe
confere legitimidade para exercer contra o transportador todos os direitos emergentes do contrato de
transporte, sem que este lhe possa opor quaisquer exceções que não constem do título, designadamente,
sem que lhe possa opor que não é o proprietário do título (artigo 387.º)”.
172
O legislador nacional reconhece-o expressamente no artigo 11.º do DL n.º 352/86, ao prever que “O
conhecimento de carga constitui título representativo da mercadoria nele descrita e pode ser nominativo,
à ordem ou ao portador” (n.º 1) e que “A transmissão do conhecimento de carga está sujeita ao regime dos
títulos de crédito” (n.º 2). Constitui entendimento dominante na doutrina e jurisprudência que o mesmo
constitui um título causal.
51
(iii) quanto à carta de porte aéreo, a mesma não é, em princípio, título de crédito
representativo da mercadoria (na prática não o é, embora em teoria o possa
ser), apenas revestindo as funções probatória e de recibo.
(iv) quanto aos documentos de transporte ou documentos eletrónicos de
transporte na aceção das RR, consoante os mesmos sejam negociáveis ou
não negociáveis, podem ou não, respetivamente, ser títulos de crédito
representativos das mercadorias.
Podendo suceder que alguns destes documentos sejam títulos de crédito, como
acabado de expor, será de aplicar o respetivo regime dos títulos de crédito173. Além disso,
tal como os demais títulos de crédito, estes caracterizam-se pela literalidade o portador
legítimo do título tem direito a exigir do transportador a mercadoria tal como nele
descrita, no tempo, pelo preço e nas condições aí previstas (nem mais, nem menos)174,
sendo ainda documentos autónomos175.
173
Cf., v.g., HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador, cit., p. 52, notas
102-103.
174
Cf., v.g., PAIS DE VASCONCELOS, Direito Comercial, cit., pp. 235-236. Derivado dessa literalidade o
CCom. estipula que “[t]odas as questões acerca do transporte se decidirão pela guia de transporte, não
sendo não sendo contra a mesma admissíveis exceções algumas, salvo se de falsidade ou de erro
involuntário de redação” (artigo 373.º). Neste sentido, [a]s estipulações que não constem da guia
(convenções extracartulares) “serão de nenhum efeito para com o destinatário e para com aqueles a quem
a mês houver sido transferida” (artigo 373.º). Ainda a respeito da literalidade (ou ausência dela), de acordo
com o prescrito pelo CCom., na falta de guia ou de algumas das condições exigidas no artigo 370.º do
CCom. que dizem respeito ao seu conteúdo , as questões, acerca do transporte, serão resolvidas pelos
usos do comércio e, na falta destes, nos termos gerais de direito. Esta é uma norma que remete
expressamente para os usos e em que os mesmos assumem, assim, força obrigatória, sendo fonte de direito.
Com efeito, nos termos do artigo 3.º do CC sob a epígrafe “valor jurídico dos usos”, os usos que não
forem contrários aos princípios da boa fé são juridicamente atendíveis quando a lei o determine. Ora, neste
caso, a lei determina-o expressamente.
175
Vd., v.g., a respeito do conhecimento de carga, HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade
do transportador, cit., pp. 52 e 54. Referindo-se à autonomia em geral dos títulos de transporte, vd., PAIS
DE VASCONCELOS, Direito Comercial, cit., p. 236. Essa autonomia manifesta-se desde logo no artigo 373.º
do CCom., que refere que, na falta de guia “as questões acerca do transporte serão resolvidas pelos usos
do comércio e, na falta destes, nos termos gerais de direito”.
52
CAPÍTULO II AS RESERVAS NOS VÁRIOS MODOS DE
TRANSPORTE
1. Transporte marítimo
1.1. CB 1924
176
Embora estas tenham um âmbito de aplicação mais vasto do que o escrito transporte marítimo, pois são
aplicáveis ao transporte total ou parcialmente por mar.
177
DL n.º 352/86.
178
Portugal aderiu à CB 1924 através do Decreto n.º 19 857, de 18 de maio de 1931, tendo a adesão passado
a produzir efeitos em 1932.
179
Estes Protocolos, no entanto, não chegaram a ser ratificados por Portugal, pelo que não vigoram entre
nós.
53
de transporte seja um conhecimento de carga ou similar ocupando, assim, um papel
central neste normativo internacional. Concretamente, o artigo 1.º, al. b), da CB 1924
define contrato de transporte para efeitos dessa convenção “somente o contrato de
transporte provado por um conhecimento ou por qualquer documento similar servindo
de título ao transporte de mercadorias por mar; e aplica-se, igualmente ao conhecimento
ou documento similar emitido em virtude duma carta-partida, desde o momento em que
este título regule as relações do armador e do portador do conhecimento” 180.
O artigo 5.º da CB 1924, estendendo o seu âmbito de aplicação para além dos
casos compreendidos no artigo 1.º, dispõe, por sua vez, que “Nenhuma disposição da
presente Convenção se aplica às cartas-partidas; mas, se no caso de um navio regido
por uma carta-partida forem emitidos conhecimentos, ficarão estes sujeitos aos termos
da presente convenção”. I.e., a CB 1924 determina a sujeição ao seu âmbito de aplicação
mesmo quando, nos casos regidos por uma carta-partida, “forem emitidos
conhecimentos”. Tal decorre, precisamente, do papel central que o conhecimento de carga
assume nesta Convenção.
O seu âmbito material de aplicação encontra-se todavia excluído quando haja
apenas emissão de carta-partida ou quando haja carta-partida e conhecimento de carga
emitido em virtude dessa carta-partida nas relações entre carregador e transportador. Ao
invés, quando haja conhecimento de carga emitido em virtude dessa carta-partida e nas
relações entre portador do título – que entretanto circulou – e transportador, estas
Convenções já lhes serão aplicáveis181.
As dificuldades surgem quando não haja emissão de conhecimento de carga em
virtude do incumprimento da obrigação do transportador ou quando haja emissão de
conhecimento de carga mas o título não circule. Deverá entender-se que o incumprimento
da obrigação de emitir conhecimento de carga determinará, pura e simplesmente, a
exclusão do âmbito de aplicação destas regras? Será a – efetiva – emissão de
180
Daqui parece resultar, pelo menos literalmente, que a aplicação desta Convenção depende da efetiva
emissão de conhecimento de carga ou documento similar, e não da existência de um dever de emiti-lo.
Independentemente da posição adotada sobre esta questão, o “lugar central” do conhecimento de carga
nesta Convenção é evidente cf., v.g., JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, cit., p.
231 e HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas
de 1924, cit., p. 48.
181
Tal como sucede quando em virtude de um contrato de fretamento seja emitido um conhecimento de
carga que circule, tendo-se em vista a tutela dos terceiros portadores do título – cf. HUGO RAMOS ALVES,
“Em torno do contrato de transporte marítimo de mercadorias”, Temas de Direito dos Transportes, Vol. III,
Almedina, 2015, pp. 349-350.
54
conhecimento de carga conditio sine qua non da aplicabilidade da CB 1924, mesmo nas
situações em que o mesmo devesse ser emitido mas não o foi por incumprimento?
No que concerne à CB 1924, face ao seu caráter imperativo – que estabelece um
regime one way mandatory, i.e., um regime imperativo a favor dos carregadores, podendo
existir derrogação a favor destes mas já não em prol dos transportadores – o seu âmbito
de aplicação material carece de uma análise mais cuidada que deve ir além do estrito
formalismo que decorre da letra do preceito. Neste sentido, tem sido defendido que, sendo
a disciplina convencional imperativa em razão da ordem pública que lhe subjaz, a mesma
merecerá aplicação a outras situações, atendendo à materialidade subjacente.
O principal critério aferidor dessas situações deverá centrar-se no elemento
finalístico ou teleológico de interpretação. O artigo 31.º da Convenção de Viena sobre o
Direito dos Tratados (CVDT) assim o determina, ao prever que um tratado deve ser
interpretado de boa fé e de acordo com o sentido comum a atribuir aos termos do tratado
no seu contexto e à luz dos respetivos objeto e fim. Pode, por outro lado, nos termos do
artigo 32.º da CVDT, recorrer-se a meios complementares de interpretação,
designadamente aos trabalhos preparatórios e às circunstâncias em que foi concluído o
tratado, com vista a confirmar o sentido à luz do objeto e fim dos tratados182.
Ora, tendo presente o caráter imperativo da CB de 1924, cuja intenção é a de
proteger o carregador (artigo 3.º, n.º 8), que normalmente está numa condição negocial
mais fragilizada em relação ao transportador, dever-se-á entender que a CB 1924
merecerá aplicação também naquelas situações em que, não havendo embora emissão de
conhecimento de carga (ou documento similar), o mesmo devesse ser emitido, v.g., por
via do costume ou dos usos comerciais, ou por acordo prévio das partes nesse sentido183.
Neste sentido, deverá incluir-se aqui o transporte de linha, nos quais a emissão de
um conhecimento resulta dos usos comerciais, mas também aquelas situações em que em
virtude da celebração de um contrato de fretamento fosse acordada a emissão posterior
de um conhecimento de carga. Em síntese: incluem-se aqui todas as situações em que o
transportador tenha a obrigação de emitir um conhecimento de carga, representando a sua
não emissão o incumprimento de um dever184.
182
Sobre os critérios de interpretação da CVDT vd., em especial, LUÍS BARBOSA RODRIGUES, A
interpretação de tratados internacionais, AAFDL, 2002.
183
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Da disciplina do contrato de transporte internacional de mercadorias
por mar, cit., pp. 220-221.
184
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Da disciplina do contrato de transporte internacional de mercadorias
por mar, cit., pp. 220-221. Outra questão prende-se com o significado de documentos similares para efeitos
da Convenção. Têm sido identificadas algumas figuras afins ao conhecimento de carga que devem
55
Na verdade, a imperatividade da CB 1924, que reflete exigências de ordem
pública, não se coaduna com o facto de a sua aplicação estar condicionada ao efetivo
cumprimento do dever do transportador emitir o conhecimento de carga ou à dependência
da vontade das partes nesse sentido185. Em suma, de modo a não comprometer a obtenção
de soluções efetivas e a prosseguir-se a ratio da Convenção, a aplicação do seu regime
não depende da emissão efetiva de conhecimento de carga, mas tão só da obrigação de o
emitir, por força dos usos, costumes ou por acordo das partes186.
considerar-se a ele similares, e que têm proliferado no comércio marítimo com o objetivo de agilizar as
operações de transporte, como o conhecimento direto, o pertence, ou o seaway bill (cf., v.g., HUGO RAMOS
ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas de 1924, cit., pp.
54-56, IGNACIO ARROYO, Curso de Derecho Marítimo, cit., pp. 532-536). Porém, alguma doutrina entende
que o documento similar deve desempenhar a função de “título representativo da mercadoria”, e, assim,
investir o seu possuidor num direito à entrega das mercadorias e à disposição das mesmas. Segundo esta
doutrina, o seaway bill não cabe neste conceito – embora desempenhe a função probatória do contrato e de
recibo de entrega das mercadorias, carece da natureza de título representativo. A favor desta tese, vd.
CASTELLO-BRANCO BASTOS, Da disciplina do contrato de transporte de mercadorias por mar, cit., p. 223,
GABALDÓN GARCÍA e RUIZ SOROA, Manual de Derecho de la Navegación Marítima, cit., pp. 507 e 509.
185
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Da disciplina do contrato de transporte internacional de mercadorias
por mar, cit, pp. 220-221.
186
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Da disciplina do contrato de transporte internacional de mercadorias
por mar, cit., p. 222.
187
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 143.
188
Cf. artigo 3.º, n.º 3, al. a), da CB 1924.
56
(ii) o número de volumes, ou de objetos, ou a quantidade, ou o peso, segundo os
casos, “tais como foram indicados por escrito do carregador”189;
(iii)o estado e a acondicionamento aparentes das mercadorias190.
Como se vê, com exceção desta última menção, as demais têm por base a
declaração (ou escrito, como lhe chama a CB 1924) do carregador, o que significa que,
neste último caso, ele deve apenas limitar-se a concordar ou discordar de tal declaração.
Quanto à obrigação de mencionar “o número de volumes, ou de objectos, ou a
quantidade, ou o peso”, poderá questionar-se se estas constituem obrigações alternativas,
dada a utilização do vocábulo disjuntivo “ou”191. CLAVERO TERNERO defende neste
contexto que o transportador apenas tem de fazer obrigatoriamente menção a um deles
face à formulação legal192. Parece, efetivamente, que assim é: está sempre em causa, seja
qual for o elemento que em concreto seja mencionado, um aspeto quantitativo
relativamente às mercadorias e que permite determinar o seu quantum, de uma ou outra
maneira, pelo que uma ou outra indicação satisfação o desiderato legal193.
Note-se ainda que não há nenhuma indicação, na formulação legal, sobre quem
recairá a escolha, mas a redação do preceito sugere que carregador só pode exigir uma
das três menções, mesmo que ele forneça mais elementos194. Não parece que a escolha
possa, pura e simplesmente, recair sobre o carregador. Entendemos que se o carregador
fornecer dados relativamente a qualquer um destes elementos, a escolha recairá sobre o
transportador, porque ele é que é o destinatário da obrigação aí prevista.
Quanto ao estado e acondicionamento aparentes das mercadorias, esta menção
refere-se apenas à condição aparente verificável mediante um exame razoável das
mercadorias195. Não se exige a menção à condição interna das mercadorias nem à sua
qualidade, embora se afirme a este respeito que, se o transportador estiver ciente desta
condição (interna), que seja para ele evidente mesmo quando não o seja para um
189
Cf. artigo 3.º, n.º 3, al. b), da CB 1924.
190
Cf. artigo 3.º, n.º 3, al. c), da CB 1924.
191
I.e., uma obrigação que compreende duas ou mais prestações, mas em que o devedor se exonera
efetuando aquela que, por escolha, vier a ser designada (cf. a noção do artigo 543.º, n.º 1, do CC).
192
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 148.
193
Isto sem prejuízo de a escolha do transportador quanto a um destes elementos poder, depois, influir com
o regime de limitação legal de responsabilidade, na medida em que o artigo 4.º, n.º 5, prevê este direito ou
benefício tendo como referência o número de volumes ou unidades de mercadorias transportadas.
194
Cf. TREITEL e REYNOLDS, Carver on bills of lading, Sweet & Maxwell, 2001, p. 483.
195
Cf. TREITEL e REYNOLDS, Carver on bills of lading, cit., p. 483.
57
“observador normal”, ele deverá fazer menção a tal condição, com a cominação de que,
se o não fizer, não poderá alegar mais tarde essa condição196.
Além disso, se o transportador, mediante este exame externo e razoável, ficar na
dúvida sobre o bom estado ou condição, não deverá resolver essa dúvida pendendo para
o lado da boa condição ou bom estado197.
196
Cf. TREITEL e REYNOLDS, Carver on bills of lading, cit. p. 483.
197
Cf. TREITEL e REYNOLDS, Carver on bills of lading, cit., p. 483.
198
Nos dizeres de MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em direito marítimo”, cit., p. 568,
constituiu a CB 1924 um evidente “volte-face”, por não se fazer nela, pelo menos diretamente, qualquer
alusão a reservas, existindo apenas esta previsão do artigo 3.º, n.º 3, da CB 1924.
199
Cf. ČASLAV PEJOVIĆ, “Clean bill of lading in contract of carriage and documentary credit: when clean
may not be clean”, The Penn State Journal of Law & International Affairs, Vol. 4, nº 1, dez. 2015, p. 131,
disponível em http://elibrary.law.psu.edu/jlia/vol4/iss1/8.
200
Cf. ČASLAV PEJOVIĆ, “Clean bill of lading in contract of carriage and documentary credit: when clean
may not be clean”, cit., p. 131.
58
aquelas indicações, considerando que tal admissibilidade decorre, ainda que não
expressamente, pelo menos implicitamente do citado artigo 3.º, n.º 3, da CB 1924201-202.
Por este motivo, não concordamos com CASTELLO-BRANCO BASTOS, quando
afirma que “a idêntico resultado material que se produz no regime de prova do estado
da mercadoria no momento do embarque desde que se aceite as consequências
deduzidas do princípio da literalidade se chegará ora omitindo tout court a indicação
em causa, ora apondo uma reserva, ainda que, in hoc sensu, genérica ou de estilo”203.
Com efeito, uma coisa é o transportador nada dizer e outra, bem diferente e com distintos
efeitos, é o transportador apor reservas.
Quando, na verdade, o artigo 3.º, n.º 3, da CB refere que nenhum armador é
obrigado a mencionar coisas que não correspondam àquelas características está, afinal, a
querer dizer que, nestas situações, o transportador tem, pelo menos, a faculdade de colocar
menções distintas do referido pelo carregador pois, se não o fizer, corre o risco de lhe ser
aplicável um regime probatório bastante mais exigente.
A prática tem, efetivamente, demonstrado que, nestes casos, tais menções são
feitas na mesma, embora acompanhadas de reservas204. Nesta senda, tem a doutrina e
jurisprudência admitido a aposição de reservas num contrato de transporte regulado pela
CB 1924: se o transportador não é obrigado a fazer as menções relativas às marcas,
números, quantidade ou peso tal como descrito pelo carregador, então tem de se admitir
201
Neste sentido, vd. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, cit., p. 246; ČASLAV
PEJOVIĆ, “Clean bill of lading in contract of carriage and documentary credit: when clean may not be clean”,
cit., pp. 131-132.
202
No direito italiano, o artigo 462.º do Codice della Navigazione regula expressamente as reservas,
dispondo que (i) o transportador tem a faculdade de inserir no conhecimento de carga reservas quando não
pode no todo ou em parte proceder a uma normal verificação das indicações fornecidas pelo carregador
sobre a natureza, qualidade e quantidade das mercadorias, bem como sobre o número de embalagens e
marca das mercadorias; (ii) na falta de reservas, a natureza, qualidade e quantidade das mercadorias, bem
como o número de embalagens e marca das mercadorias embarcadas, presumem-se, salvo prova em
contrário, conformes as indicações no conhecimento de carga. Refere RIGHETTI que esta norma segue os
traços do artigo 3.º, n.º 3, da CB de 1924 apresentando, no entanto, uma diferença estrutural: o artigo 462
do Codice della Navigazione alude à faculdade de apor reservas (pela positiva); a CB 1924, contrariamente,
alude à faculdade de omitir as indicações respeitantes à quantidade, peso, número ou marcas das
mercadorias (pela negativa). Mas esta diferença, como afirma RIGHETTI, Trattato di Diritto Marittimo,
Parte Seconda, Giuffrè Editora, 1990, p. 1000, acaba por ser mais estrutural do que substancial.
203
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Da disciplina do contrato de transporte internacional de mercadorias
por mar, cit., p. 265.
204
Cf. SOVERAL MARTINS, “Os documentos de transporte nas Regras da Haia e nas Regras de Roterdão”,
cit., p. 145.
59
que, pelo menos quanto a estas menções, a CB 1924 legitima a aposição de reservas205.
Isto quanto a estes elementos.
Assente que está, pelo menos, a existência desta possibilidade de apor reservas,
podemos ainda ir mais além e questionar-nos sobre se tal não constituirá antes um dever.
Afirma ČASLAV PEJOVIĆ a este respeito que o conteúdo do artigo 3.º, n.º 3, da CB 1924
tem sido interpretado como implicando que o transportador, de facto, deveria inserir
menções particulares concernentes às mercadorias tal como fornecidas pelo carregador e
que, adicionalmente, o transportador está legitimado para “qualificar” tais menções
particulares inserindo no conhecimento de carga reservas desde que cumpridas as
condições exigidas no preceito i.e, se o transportador, por motivos sérios, suspeitar que
as indicações do carregador não representam exatamente as mercadorias por ele
recebidas, ou se o transportador não teve meios suficientes para proceder a esta
verificação.
Porém, quanto ao estado e condição/acondicionamento aparentes das
mercadorias, suscita-se a questão de saber se em relação a esta particular menção também
serão admissíveis reservas à luz da CB 1924. É que, se bem atentarmos no conteúdo do
citado artigo 3.º, n.º 3, apenas se diz que o transportador não é obrigado a declarar ou
mencionar as menções a que se referem as als. a) e b), e já não as respeitantes à al. c)
sobre o estado e o acondicionamento aparentes das mercadorias. A CB 1924 é, então,
quanto a estas, omissa206. Essa omissão, parece-nos, no entanto, meramente aparente,
senão vejamos: se, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, al. a), o transportador deve mencionar
no conhecimento o “estado e o acondicionamento aparentes das mercadorias”,
naturalmente que se as mercadorias estiveram num “mau estado” ou aparentarem
defeitos, esta norma dita que o transportador deve fazer menção a tais defeitos aparentes.
A CB 1924 obriga que sejam feitas estas menções, “para o bem e para o mal”.
Assim, se o transportador verificar que as mercadorias não estão em bom estado
e condição aparentes, o transportador deve precisar, mediante a aposição de reservas, essa
condição ou estado, tanto quanto lhe seja possível precisar207. Isto é, deve precisar, na
205
Neste sentido, vd. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, cit., p. 246; YVES
TASSEL,“Les reformes apportees par les regles de hambourg au regime juridique du connaissement”, Il
Diritto Marittimo, II, 1993, p. 297.
206
Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, cit., p. 246.
207
Cf. TREITEL e REYNOLDS, Carver on Bills of Lading, cit., p. 483, que dão como exemplo a inserção de
uma cláusula do tipo “bags torn and stained”.
60
medida daquilo que consiga, a falta de bom estado e condição, não sendo em princípio
suficiente que o mesmo indique “em aparente mau estado e condição”.
Entende alguma doutrina que, não estando abrangidas pelo regime do artigo 3.º,
n.º 3, da CB 1924, estas reservas são válidas mesmo que falte o requisito da indicação de
motivo justificativo suficiente208.
Em suma: uma e outras reservas são, à luz da CB 1924, admissíveis. Uma e outra
devem, também, ser fundamentadas e assentar num motivo sério. Com efeito, o artigo 3.º,
n.º 3, como vimos, determina que o transportador não é obrigado a fazer as menções tal
como declarado pelo carregador apenas se e na medida em que, “por motivos sérios,
suspeite não representarem exatamente as mercadorias por ele recebidas, ou que por
meios suficientes não pôde verificar”. Isto é, não se admite, face à CB 1924, qualquer
aposição de reservas. As mesmas só são admissíveis se tiverem um fundamento, sendo
que tal fundamento deverá assentar numa justificação objetiva relativamente às condições
da mercadoria e/ou aos meios técnicos de carregamento209.
Sobre o conceito “estado” das mercadorias constante no artigo 3.º, n.º 3, al. c), da
CB 1924, MÁRIO RAPOSO afirma que “o conhecimento de embarque regista, nos termos
desta al. c), o estado real da mercadoria, constituído pela aparência criada pelo exame
sumário que o transportador faz antes do embarque e pelas indicações que lhe são
prestadas pelo carregador”210. Isto não obstante reconhecer que a doutrina prevalecente
se orienta no sentido de que o estado e acondicionamento aparente da mercadoria
corresponde ao seu aspeto exterior, aquando da receção a bordo211.
Da alternatividade das menções referenciadas no artigo 3.º, n.º 3, al. b) da CB
(número de volumes, objetos, quantidade ou peso), tem-se também considerado que,
tendo o transportador apenas o dever de fazer menção a apenas um destes aspetos, poderá,
validamente e legitimamente, apor reservas face aos demais elementos212. Esta solução
tem toda a razão de ser: não existe, face aos demais, o dever de verificação, e onde não
existe o dever de verificação poderão ser legitimamente apostas reservas.
Refira-se ainda, quanto às reservas à partida na CB 1924, que a doutrina e a
jurisprudência têm admitido neste âmbito as reservas genéricas ao abrigo do citado artigo
208
Cf., v.g., RUIZ SOROA, ZABALETA SARASÚA e GONZÁLEZ RODRIGUEZ, Manual de Derecho del
Transporte Maritimo, Vistoria-Gasteiz, 1997, p. 425.
209
Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, Almedina, 2005, p. 246.
210
Cf. MÁRIO RAPOSO “As cartas de garantia e o seguro marítimo”, cit., p. 507 (nota de rodapé 14).
211
Cf. MÁRIO RAPOSO “As cartas de garantia e o seguro marítimo”, cit., p. 507.
212
Cf., neste sentido, CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit.,
p. 148; TREITEL e REYNOLDS, Carver on Bills of Lading, cit., p. 483.
61
3.º, n.º 3, daquela Convenção, mediante a aposição de cláusulas tais como (recorde-se)
“said to contain”, “weight measure quality quantity condition content and value
unknown”, ou a referência à expressão “FCL” (“full container load”) indicando que o
contentor foi entregue ao transportador já selado e que o transportador não está por isso
ciente do seu conteúdo213. A sua validade, como se verá, estará dependente da existência
ou não do dever de verificação do transportador in concreto e da aferição da razoabilidade
de meios para o efeito214.
213
Cf., v.g., TREITEL e REYNOLDS, Carver on bills of lading, cit., p. 483.
214
Cf. TREITEL e REYNOLDS, Carver on bills of lading, cit., p. 483. Com efeito, em determinados casos
estas serão admissíveis atenta a falta de meios razoáveis a que alude este preceito da CB 1924; noutras não
o serão, se existirem meios razoáveis.
215
Cf. artigo 3.º, n.º 6, § 1.º, da CB 1924.
216
Cf. artigo 3.º, n.º 6, § 2.º, da CB 1924.
217
Cf. Artigo 3.º, n.º 6, § 3.º da CB 1924.
62
Ao abrigo deste regime, verifica-se assim que as reservas ao destinatário poderão
suceder em duas circunstâncias:
(i) se o defeito ou vício for aparente, mediante um aviso, por escrito, da
existência e da natureza de quaisquer perdas e danos, antes ou no momento
da retirada das mercadorias e da sua entrega;
(ii) se o defeito ou vício for oculto ou não aparente, mediante um aviso, por
escrito, da existência e da natureza de quaisquer perdas e danos, no prazo
de três dias a contar da entrega;
Indo mais além, o legislador prevê ainda que “as reservas escritas são inúteis se
o estado da mercadoria foi contraditoriamente verificado no momento da receção”. Que
quererá isto dizer? Abrangerá esta expressão as duas realidades (de reservas por defeito
ou vício aparente e por defeito ou vício oculto)?
Por um lado, a “verificação contraditória no momento da receção” parece apenas
“detetar” defeitos ou vícios aparentes porque, pela sua própria natureza, só relativamente
a estes é possível proceder à verificação contraditória no momento da receção. Mas, por
outro lado, o preceito alude indistintamente a reservas escritas, sem especificar.
Deverá, assim, concluir-se, o seguinte: as reservas escritas (do destinatário) são
inúteis se o estado da mercadoria foi contraditoriamente verificado no momento da
receção na medida em que (i) estejam em causa vícios aparentes que pudessem ser
detetados nesse momento; (ii) se nesse momento o destinatário constatou a inexistência
de vícios. Verificadas estas condições, as reservas que nessa formuladas pelo destinatário
são ineficazes, i.e., destituídas de qualquer efeito.
A CB 1924 prevê ainda que em caso de perda ou dano certos ou presumidos, o
armador e o destinatário concederão reciprocamente todas as facilidades razoáveis para a
inspeção da mercadoria e verificação do número de volumes. Isto significa que, no
momento da receção em que seja feita a verificação contraditória, o transportador e o
destinatário deverão atuar colaborando mutuamente no sentido de proceder a esta
inspeção e verificação.
As reservas à chegada do destinatário, ao contrário das reservas à partida do
transportador, não são o reflexo do cumprimento ou incumprimento de um dever de
verificação: o destinatário, ao contrário do transportador, não tem o dever de fazer certas
menções sobre as características e o estado das mercadorias. Por este motivo, como
veremos mais desenvolvidamente infra a respeito da natureza jurídica das reservas, a
63
questão de saber se existe ou não um dever de formular reservas neste âmbito não é, aqui,
controversa, ao contrário do que sucede com as reservas do transportador.
Por outro lado, e agora em termos semelhantes ao que sucede com o transportador
(como se verá já de seguida), o destinatário, não apondo reservas, poderá sofrer certas
consequências probatórias se não o fizer, tornando mais onerosa a sua prova sobre o
momento em que ocorreram os danos, vício ou defeito da mercadoria.
218
Cf. artigo 3.º, n.º 4, da CB 1924.
219
Cf. RUIZ SOROA, ZABALETA SARASÚA e GONZÁLEZ RODRIGUEZ, Manual de Derecho del Transporte
Maritimo, Vistoria-Gasteiz, 1997, p. 422.
220
Adiante veremos se a adesão ao Protocolo de Visby constituirá um elemento essencial para se aplicar
esta regra ou se, por princípio, a poderemos aplicar também noutras situações em que não se aplique este
Protocolo.
221
O anterior artigo 540.º do CCom., revogado expressamente pelo DL n.º 352/86, previa que o
conhecimento fazia fé entre os interessados no carregamento e entre estes e os seguradores e o carregador,
salvo provando-se dolo. Atento o teor desta formulação legal, considerava PALMA CARLOS, O contrato de
fretamento no Código Comercial Português, cit., que o conhecimento constituía “prova plena” em relação
ao seu conteúdo e às obrigações e direitos dos interessados nele inscritas, não podendo os seus dizeres ser
atacados por qualquer espécie de prova, salvo dolo de qualquer um dos interessados.
64
aos conhecimentos de carga servem para “amenizar” os seus efeitos probatórios222.
Funcionam como uma advertência aos interessados no tráfego comercial de que a
mercadoria descrita no conhecimento não está isenta de defeitos (peso, quantidade, danos,
etc.) e que quem a adquirir poderá confrontar-se com um carregamento de valor inferior
ao que se pretendeu evitar223. O autor caracteriza, por isso, o conhecimento de carga como
um meio de prova qualificado, em virtude do qual interessará ao transportador “destruir”
o seu valor probatório com a finalidade de “excluir” o mais possível a sua
responsabilidade224.
Não existe controvérsia quanto ao regime da CB 1924 na medida em que seja
aplicável o Protocolo adicional de Visby, que é claro no que respeita à diferença de
soluções inter partes e relativamente a terceiros:
(i) nas relações entre carregador e transportador a presunção relativamente ao
teor do conhecimento é iuris tantum;
(ii) nas relações entre transportador e terceiros (maxime destinatário das
mercadorias) a presunção é iure et de iure225.
222
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., pp. 144-145.
223
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 144.
224
O vocábulo é propositadamente colocado entre aspas uma vez que, por ora, não cabe ainda fazer juízos
conclusivos sobre a natureza jurídica das reservas, concretamente sobre a questão de saber se as mesmas
constituirão ou não causa de exclusão de responsabilidade do transportador.
225
Cf., v.g., IGNACIO ARROYO, Curso de Derecho Marítimo, cit, p. 528.
226
Cf. RUIZ SOROA, ZABALETA SARASÚA e GONZÁLEZ RODRIGUEZ Manual de Derecho del Transporte
Maritimo, cit., p. 422.
65
Outra questão que ainda se poderá colocar é se a ausência de menção ao estado e
condição aparentes da mercadoria poderá fazer operar estas presunções, na medida em
que o preceito apenas prevê que o conhecimento constituirá presunção quanto ao que
esteja nele descrito. Dado que o transportador tem também o dever de fazer esta menção
(a par das outras baseadas nos dados fornecidos pelo carregador) e tendo em conta o
específico papel do conhecimento de carga enquanto título de crédito (nomeadamente
atendendo à característica da circulabilidade e à necessidade de proteger os vários
intervenientes do comércio que com ele contactem), entendemos que uma correta
interpretação do preceito passa por defender a existência desta presunção também neste
caso. Acresce que, como veremos, os demais instrumentos normativos de direito dos
transportes a preveem expressamente, pelo que joga também a favor desta interpretação
a sistemática normativa.
A Conferência das Nações Unidas sobre o transporte por mar adotou, em 1978,
uma nova Convenção no domínio do transporte marítimo de mercadorias, com base num
projeto elaborado no âmbito da CNUDCI: as Regras de Hamburgo (doravante, RH
1978)227. Esta Convenção entrou em vigor em novembro de 1992, mas a sua relevância
prática não se compara à CB 1924 uma vez que, na expressão de MÁRIO RAPOSO, “apenas
dela fazem parte, como regra, países de escasso significado no “shipping””228.
No entanto, o seu regime encontra-se já bastante mais maduro no que concerne às
reservas e questões que com elas se podem relacionar, pelo que, mesmo quando o mesmo
não seja aplicável, constitui um importante auxiliar interpretativo na resolução de
questões práticas que poderão não se encontrar claras na CB 1924.
Quanto ao âmbito de aplicação “documental”, a questão atrás discutida quanto a
saber se é exigível a efetiva emissão de conhecimento de carga só se coloca perante a CB
1924, e já não nas RH 1978, pois estas aplicam-se a todos os contratos de transporte
227
Para LIMA PINHEIRO, “Direito aplicável ao contrato de transporte marítimo de mercadorias”, Temas de
Direito Marítimo - I, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 68, Vol. I, 2008, disponível em
https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/, esta Convenção representa uma rutura radical face à
CB, que se destina a substituir (nos termos do artigo 31.º, a ratificação das RH obriga à denúncia da CB).
Uma rutura que, segundo o autor, se verifica ao nível dos valores e princípios enformadores, que se
manifesta naturalmente no conteúdo normativo, mas também, desde logo, na técnica seguida. Portugal não
aderiu a esta Convenção, não tendo denunciado a CB 1924.
228
Cf. MÁRIO RAPOSO, “Transporte marítimo de mercadorias: hoje e amanhã”, III Jornadas de Lisboa de
Direito Marítimo – Das Regras da Haia às Regras de Roterdão, Almedina, 2014, p. 17.
66
marítimo internacionais, quer haja ou não efetiva emissão de conhecimento de carga
(artigos 1.º, n.º 6 e 2.º, n.º 1), sendo claro, na letra da própria Convenção, que é suficiente
o dever de emiti-lo para sujeição ao seu âmbito de aplicação229.
229
Cf. GABALDÓN GARCÍA e RUIZ SOROA, Manual de Derecho de la Navegación Marítima, cit., p. 505. Os
autores referem, porém, no âmbito da “Ley de 22 de diciembre de 1949, de unificación de reglas en los
conocimientos de embarque en buques mercantes” (vigente até setembro de 2014), que à semelhança da
CB 1924 que diz respeito a transportes sob conhecimento, só se aplica se houver efetiva emissão de
conhecimento. Vd., em sentido idêntico, LIMA PINHEIRO, “Direito aplicável ao contrato de transporte
marítimo de mercadorias”, cit., que afirma neste âmbito que esta Convenção “não regula apenas certos
aspectos relativos ao conhecimento de carga e à responsabilidade do transportador por avarias de carga.
Prossegue-se agora um escopo mais vasto: a unificação do regime do transporte marítimo internacional
de mercadorias”. Vimos, porém, que, atenta a sua ratio, a CB 1924 também se deve aplicar sempre que
haja o dever de emitir o conhecimento de carga. Do que não pode duvidar-se é que, contrariamente à CB
1924, as RH afirmam-no expressamente, não se suscitando dúvidas quanto a este ponto.
230
Cf. artigo 15.º, n.º 1, al. a), das RH 1978.
231
Cf. artigo 15.º, n.º 1, al. b), das RH 1978.
232
Cf. artigo 15.º, n.º 3 , das RH.
67
As RH 1978, diferentemente da CB, aludem já pela positiva à faculdade de apor
reservas, no artigo 16.º, n.º 1 (com a epígrafe “Bills of lading: reservations and
evidentiary effect”)233.
Ao abrigo deste preceito, o transportador pode incluir no conhecimento reservas
no sentido de declarar a existência de inexatidões, motivos de suspeita ou a falta de meios
razoáveis para verificar os dados relativos à natureza geral, às marcas principais, número
de volumes ou unidades, peso ou quantidade das mercadorias (elementos estes que, como
vimos, são fornecidos pelo carregador).
Quanto ao estado e condição aparentes das mercadorias, prescreve-se no artigo
16.º, n.º 2, das RH 1978, à semelhança da CB 1924, que tal menção deve também constar
do conhecimento de carga. Porém, indo além desta, prevê-se especificamente como efeito
decorrente da falta desta menção a presunção de que as mercadorias estavam em bom
estado/condição aparentes aquando do carregamento234.
As RH 1978 exigem que o transportador indique os motivos da aposição de
reservas, ao contrário da CB 1978 que não o exige, pelo menos, em termos literais.
Bem se vê, assim, que as RH 1978, contêm já um regime mais completo quanto
às reservas, prevendo-se (i) a admissibilidade de reservas pela positiva (ii) os seus
requisitos; (iii) os seus efeitos235.
Estas reservas vêm previstas, em termos expressos, no artigo 19.º das RH, nos
seguintes termos:
233
A norma tem a seguinte redação: “If the bill of lading contains particulars concerning the general nature,
leading marks, number of packages of pieces, weight or quantity of the goods which the carrier or other
person issuing the bill of lading on his behalf knows or has reasonable grounds to suspect do not accurately
represent the goods actually taken over or, where a "shipped" bill of lading is issued, loaded, or if he had
no reasonable means of checking such particulars, the carrier or such other person must insert in the bill
of lading a reservation specifying these inaccuracies, grounds of suspicion or the absence of reasonable
means of checking.”
234
A redação é a seguinte: “If the carrier or other person issuing the bill of lading on his behalf fails to
note on the bill of lading the apparent condition of the goods, he is deemed to have noted on the bill of
lading that the goods were in apparent good condition”.
235
Neste contexto, pode também afirmar-se, com HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade
do transportador na Convenção de Bruxelas de 1924, cit., p. 38, que as normas relativas à distribuição do
ónus da prova e da intensidade do seu exercício, por parte do transportador, receberam um tratamento mais
maduro e definitivo, não se prestando às incertezas interpretativas no âmbito da CB 1924.
68
(i) a menos que o transportador seja notificado, por escrito, pelo destinatário
sobre qualquer perda ou dano das mercadorias, especificando a natureza
de tal perda ou dano, até ao dia útil após a entrega das mercadorias,
presume-se, salvo prova em contrário, que o transportador entregou as
mercadorias tal qual descrito no documento ou, não tendo sido emitido
qualquer documento, em bom estado236;
(ii) porém, quando a perda ou dano não for aparente, o prazo previsto no ponto
anterior não se aplica, dispondo antes o destinatário de um prazo de 15
dias seguidos após a entrega para notificar o transportador por escrito
relativamente a tais perdas ou danos237.
As RH 1978, tal como a CB 1924, preveem, no artigo 16.º, n.º 3, al. a), que, com
exceção dos casos em que tenham sido feitos nos termos e nos limites do artigo 16.º, n.º
1, o conhecimento constitui presunção, salvo prova em contrário, de que o transportador
tomou a mercadoria a seu cargo ou, no caso de se tratar de “shipped bill of lading”, a
carregou tal como surge descrito no conhecimento.
Esta prova em contrário só se admite, porém, se o documento não tiver sido
transmitido a terceiro de boa fé, pois se o tiver sido a presunção é iure et de iure e não
iuris tantum (artigo 16.º, n.º 3, al. b)).
236
Cf. artigo 19.º, n.º 1, das RH 1978.
237
Cf. artigo 19.º, n.º 2, das RH 1978.
238
Cf. artigo 19.º, n.º 3, das RH 1978.
239
Cf. artigo 19.º, n.º 4, das RH. 1978.
69
Quando seja emitido um documento similar ao conhecimento de carga em vez
deste, que desempenhe as funções de recibo de entrega das mercadorias e probatória, tal
documento constituirá presunção iuris tantum relativamente à conclusão do contrato e à
receção da mercadoria nos termos nele descritos240.
O grupo de trabalho III da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial
Internacional (UNCITRAL) levou a cabo uma importante função que desembocou na
aprovação, em 11 de dezembro de 2008, da Convenção das Nações Unidas sobre
transporte internacional de mercadorias, total ou parcialmente por mar – também
conhecida por Regras de Roterdão (RR)241-242.
As RR, como vimos, definem expressamente o conceito de documento de
transporte e de documento eletrónico de transporte.
A emissão de um documento de transporte, ao abrigo das RR, constituem, em
princípio mas nem sempre um dever do transportador. Assim o prescreve o artigo 35.º
das RR, de acordo com o qual, a menos que o carregador e o transportador acordem na
não emissão de um documento de transporte ou documento eletrónico de transporte, ou
se a emissão de um documento de transporte não constituir um costume, uso ou prática
do comércio, aquando da entrega da mercadoria para transporte ao transportador ou parte
executante, o carregador, ou, se o carregador consentir, o carregador documentário243,
tem direito a obter do transportador, por opção do carregador:
(i) um documento de transporte não negociável ou, de acordo com o artigo
8.º, al. a), um documento eletrónico de transporte não negociável;
240
Cf. artigo 18.º das RH. Naturalmente que, aqui, não se verificando a função de título representativo das
mercadorias, o documento não poderá circular, pelo que não se faz qualquer menção, pela natureza das
coisas, ao efeito probatório perante terceiros de boa fé que adquiram o documento. No fundo, o objetivo do
preceito é esclarecer que, ainda que não seja emitido um conhecimento de carga, se for emitido um
documento similar, o efeito presuntivo verifica-se nos mesmos termos, prevendo-se assim uma identidade
de soluções num e noutro caso.
241
Cf., v.g., LÓPEZ RUEDA, “Las Reglas de Rotterdam: un régimen uniforme para los contratos de
volumen?” Anuario de Derecho Maritimo, Volumen XXVI”, pp. 102-103.
242
Aberta a ratificação a 23 de setembro de 2009, a vigência das RR depende de 20 ratificações, entrando
em vigor no primeiro dia do mês após ter decorrido o prazo de um ano após a data do depósito do vigésimo
instrumento de ratificação ou adesão (cf. artigo 94.º das RR).
243
O carregador documentário é, para efeitos das RR, a pessoa, distinta do carregador, que aceite ser
designada como carregador no documento de transporte ou no documento eletrónico de transporte (artigo
1.º, n.º 9, das RR).
70
(ii) um documento de transporte negociável ou, de acordo com o artigo 8.º, al.
a), um documento eletrónico de transporte negociável, a não ser que o
carregador e o transportador tenham concordado em não usar um
documento de transporte negociável ou um documento eletrónico de
transporte não negociável.
244
Nos trabalhos preparatórios das RR, a UNCITRAL rejeitou a proposta que exigia apenas a “descrição
em geral das mercadorias”, por se ter entendido que essa expressão seria demasiado vaga, tendo ao invés
decidido optar pela expressão “as appropriate for transport” para alcançar o mesmo objetivo cf. MICHAEL
F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p. 214.
71
descreverem de forma detalhada e longa tais características para inclusão no documento
de transporte245.
De facto, essa informação excessivamente detalhada sobrecarregaria os
transportadores, autoridades alfandegárias e outras pessoas envolvidas no contrato de
transporte, tais como seguradoras. As empresas transportadoras, v.g., seriam obrigadas a
efetuar uma verificação razoável de todas as informações transmitidas pelo carregador,
correndo-se o risco se, no caso de o transportador não proceder a esta verificação
cautelosamente, se presumir que recebeu as mercadorias tal qual descritas no
documento246.
Em conclusão: o carregador não tem a obrigação de mencionar detalhadamente a
descrição técnica das mercadorias, sendo suficiente uma descrição abreviada e sendo
apenas obrigatório mencionar a informação relevante para o transporte247-248.
Quanto às restantes menções marcas necessárias à identificação das
mercadorias, número de embalagens, unidades ou quantidade e peso das mercadorias (se
fornecido pelo carregador) é patente a similitude com o previsto nas demais convenções
internacionais249.
A menção ao “número de embalagens ou unidades, ou quantidade das
mercadorias”, também à semelhança do que sucede na CB 1924, vem prevista em moldes
que permitem concluir estarmos perante obrigações alternativas.
Note-se ainda que, nos termos do preceito, faz-se uma expressa menção relativa
ao elemento peso no sentido de esta menção apenas ser obrigatória se fornecido pelo
carregador. Esta referência seria, na verdade, desnecessária na medida em que toda a
informação que o transportador deve mencionar ao abrigo do artigo 36.º, n.º 1, das RR,
reporta-se apenas à informação fornecida pelo carregador250.
245
Cf. SOVERAL MARTINS, “Os documentos de transporte nas Regras da Haia e nas Regras de Roterdão”,
cit., p. 155; MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit.,
p. 214.
246
Cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p.
214.
247
Cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p.
215.
248
O transportador, por outro lado, deverá incluir a informação que seja necessária para o cumprimento de
formalidades alfandegárias ou por questões de segurança - cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA,
GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p. 215; SOVERAL MARTINS, “Os documentos de
transporte nas Regras da Haia e nas Regras de Roterdão”, cit., p. 155.
249
Tal como na CB 1924, que também alude, no artigo 3.º, n.º 3, a “marcas, número, quantidade ou peso
das mercadorias”.
250
Cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p.
215.
72
Sobre estas específicas menções, para concluir, o ponto importante a reter é este:
se o carregador não transmitir ou fornecer as informações relativas às menções previstas
no artigo 36.º, n.º 1, o transportador não tem, assim, a obrigação, ao abrigo deste preceito,
de a incluir no documento de transporte ou documento eletrónico de transporte251.
251
Cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p.
215.
252
Cf. SOVERAL MARTINS, “Os documentos de transporte nas Regras da Haia e nas Regras de Roterdão”,
cit., p. 155.
73
comparação aos outros regimes: de todos os regimes analisados, este é o normativo mais
desenvolvido em matéria de reservas253.
As RR procedem a uma importante distinção das reservas (que não é feita nos outros
regimes jurídico), a saber: (i) por um lado, configuram determinadas reservas como um
dever; (ii) por outro lado, aludem à possibilidade de apor determinadas reservas. Justifica-
se, então, um tratamento autónomo de cada uma destas subcategorias.
a) Dever
O artigo 40.º, n.º 1, das RR, prevê que o transportador tem o dever de formular
reservas relativamente à informação mencionada no artigo 36.º, n.º 1, por forma a não
responder pela exatidão das informações tal como transmitidas pelo carregador, sempre
e quando:
(i) saiba efetivamente que qualquer declaração contida no documento de
transporte ou no documento eletrónico de transporte é falsa ou enganosa; ou
(ii) tenha motivos razoáveis para crer que alguma declaração contida no
documento de transporte ou documento eletrónico de transporte é falsa ou
enganosa.
253
Todavia, como se sabe, as RR ainda não entraram em vigor. Sendo, no entanto, um regime desenvolvido
e que, de alguma forma, acolhe os usos do comércio internacional, expressando sobretudo as preocupações
relacionadas com as exigências atuais do comércio internacional tais como o fenómeno da
contentorização e o transporte multimodal (pelo menos em parte), não poderemos, evidentemente, deixar
de lhe atribuir um relevo acentuado.
254
Cf. FRANCESCO BERLINGIERI, “An analysis of two recent commentaries of the Rotterdam Rules”, Il
Diritto Marittimo, Fasc. I – 2012, p. 35.
74
a eventual circulação do documento e que todos os negócios que girem em torno dele
serão fundados numa falsa representação da realidade que, muito provavelmente, não
teriam sido efetivados (ou não teriam sido efetivados do mesmo modo e nas mesmas
condições) caso no documento estivesse contida a informação coincidente com a
realidade.
Sem prejuízo do disposto no artigo 40.º, n.º 1, o n.º 2, das RR prescreve que o
transportador poderá formular reservas relativamente à informação mencionada artigo
36.º, n.º 1, nas circunstâncias e na forma estabelecidas nos n.ºs 3 e 4 deste preceito, para
indicar que não responde pela exatidão da informação disponibilizada pelo carregador.
Nos termos do artigo 40.º, n.º 3, quando as mercadorias não hajam sido entregues
ao transportador ou parte executante dentro de um contentor ou veículo fechado, ou
quando hajam sido entregues num contentor ou veículo fechado e o transportador ou uma
parte executante as hajam inspecionado efetivamente, o transportador poderá formular
reservas sobre as indicações de acordo com o previsto no parágrafo 36.º, sempre e quando:
a) não disponha de nenhum meio materialmente praticável ou comercialmente
razoável para verificar a informação disponibilizada pelo carregador, devendo
nesse caso indicar qual a informação que não pode verificar; ou
b) tenha motivos razoáveis para crer que a informação disponibilizada pelo
carregador é inexata, caso em que poderá inscrever uma cláusula indicando o que
razoavelmente entenda por informação inexata;
Prevê, por sua vez, o n.º 4 que quando as mercadorias sejam entregues ao
transportador ou a uma parte executante dentro de um contentor ou veículo fechado, o
transportador poderá formular reservas nos dados do contrato relativamente à informação
indicada:
a) nas als. a), b) e c) do artigo 36.º, n.º 1 das RR (descrição das mercadorias
apropriadas para transporte, marcas e número de embalagens ou unidades ou
quantidade das mercadorias), sempre e quando:
(i) nem o transportador nem uma parte executante hajam inspecionado
efetivamente as mercadorias dentro do contentor do veículo; e
75
(ii) nem o transportador nem uma parte executante tenham de outro modo
conhecimento efetivo do seu conteúdo antes de emitir o documento de
transporte ou documento eletrónico de transporte;
(i) nem o transportador nem uma parte executante hajam pesado o contentor
do veículo e o carregador ou transportador não houvessem acordado que
esse contentor ou veículo seria pesado e o seu peso seria mencionado nos
dados do contrato; ou
(ii) o transportador não disponha de meio algum materialmente praticável ou
comercialmente razoável para verificar o peso do contentor ou veículo.
76
documento de transporte ou documento eletrónico de transporte constituirá presunção,
salvo prova em contrário, de que o transportador recebeu as mercadorias conforme
descritas nesses documentos (artigo 41.º, al. a)).
I.e., nas relações entre o carregador e o transportador a informação contida no
documento constitui prima facie evidence255. Assim, por exemplo, quando no documento
se menciona “40 contentores” e afinal foram recebidos 30, o transportador pode provar
que, ao invés de 40, recebeu 30 contentores256.
No decurso dos trabalhos preparatórios das RR, a solução inicialmente proposta
não era esta, tendo a UNCITRAL ponderado se esta informação poderia constituir
presunção inilidível a favor do carregador257, nomeadamente nos casos em que fosse
acordada a cláusula FOB, em que seria o comprador a celebrar o contrato de transporte
enquanto carregador, não figurando este como um terceiro258. A questão que se impunha
era: justificar-se-ia uma tutela equivalente ao terceiro de boa fé, neste caso?
Na versão preliminar das RR, a norma em causa permitia tutelar o carregador nesta
situação, dispondo o seguinte: “[A] transport document or an electronic record that
evidences receipt of the goods as described in the contract particulars…if a person acting
in good faith has paid value or otherwise altered its position in reliance on the description
of the goods in the contract particulars”259.
Assim, um carregador que mudasse a sua posição confiando nas mercadorias tal
como descritas no documento seria protegido ao abrigo desta disposição, mas o texto final
das RR não adotou esta posição, requerendo-se, à semelhança de outros instrumentos
internacionais, o estatuto de terceiro para beneficiar de uma presunção inilidível260.
255
Cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p.
235.
256
Este exemplo é-nos dado por MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA e GERTJAN VAN DER ZIEL, The
Rotterdam Rules, cit., p. 235.
257
Cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit. p.
235.
258
É comum, na relação subjacente ao contrato de transporte (tipicamente uma compra e venda ou
fornecimento) as partes (comprador e vendedor) recorrerem à cláusula “Franco a Bordo” (FOB) dos
Incoterms. Ora, na compra e venda FOB, o transporte é celebrado pelo comprador e não pelo vendedor das
mercadorias. Sobre os Incoterms em geral, vd. LUÍS DE LIMA PINHEIRO, “Incoterms – Introdução e traços
fundamentais”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 65, Vol. II, 2005, disponível em
http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=31559&idsc=45582&ida=45612.
259
Cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit. p.
235.
260
Cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p.
235.
77
Nas relações entre transportador e terceiros, o valor probatório dos documentos
diferente consoante a sua natureza de negociável ou não negociável. Prescreve o artigo
41.º, al. b), das RR que não se admitirá prova alguma em contrário por parte do
transportador relativamente à informação contida no documento de transporte ou
documento eletrónico de transporte, quando esteja em causa:
a) um documento de transporte negociável ou um documento eletrónico de
transporte negociável que haja sido transferido para um terceiro de boa fé;
ou;
b) um documento de transporte não negociável que indica que tem de ser
devolvido para obter a entrega das mercadorias e que haja sido transferido
a um destinatário de boa fé.
Quanto ao primeiro requisito, terceiro será alguém que não é parte no contrato de
transporte (que não seja nem o carregador nem o transportador, portanto). Quanto ao
segundo requisito, o terceiro tem de ser legítimo portador do documento, porque o mesmo
lhe foi transmitido validamente, por endosso ou entrega. Por fim, o terceiro requisito
exige que o terceiro esteja de boa fé. Visa-se a boa fé em sentido subjetivo: ele não pode
ter conhecimento, a priori, de que a informação contida no documento está incorreta261.
Por outro lado, não se exige, aqui, qualquer investimento de confiança da sua parte
v.g., não se exige que o terceiro tenha pago o preço das mercadorias no âmbito do
261
Cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p.
236; FRANCESCO BERLINGIERI, “An analysis of two recent commentaries of the Rotterdam Rules”, cit., pp.
35-36 (refere o autor o seguinte: “Good faith means in this connection that the holder of the document was
unaware that the goods were at loading in conditions different from those describe din the transport
document and tha the paid for the goods their full price, without any discount for a minor quantity or
inferior quality or other conditions different from those described in the transport document.”).
78
contrato subjacente (compra e venda, fornecimento, etc.) ou que tenha mudado a sua
posição confiando na informação do contrato262. Este ponto, como veremos já de seguida,
difere do regime previsto para os documentos não negociáveis.
262
Cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p.
236.
79
Houve quem afirmasse que, pelo facto de serem não negociáveis, a sua natureza não se
coadunaria com a atribuição de um efeito presuntivo iure et de iure frente a terceiros,
mesmo de boa fé263.
Neste contexto, e como afirmado por MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA
e GERTJAN VAN DER ZIEL, existe, é certo, no direito internacional dos transportes,
presunção semelhante na CMI Uniform Rules for Seaybills, mas este normativo constitui
direito uniforme voluntário e não imperativo, sendo apenas aplicável se as partes do
contrato para ele remeterem, incorporando tais cláusulas no contrato264. Por isso, este
argumento não deve valer, de per si, para, sem mais, constituir fundamento da
consagração de um regime idêntico em normativos imperativos, como as RR. Deverá, na
verdade, esta solução ancorar-se noutros fundamentos.
Chegou-se, então, a uma solução de compromisso: nem toda a informação contida
num documento não negociável constituirá presunção inilidível frente a um destinatário
de boa fé.
A mais importante de todas é a respeitante ao estado e condição aparentes das
mercadorias prevista no artigo 36.º, n.º 2, das RR, que, como vimos, é informação
fornecida pelo próprio transportador265.
Quanto à informação prevista no artigo 36.º, n.º 1, das RR, tipicamente e
usualmente fornecida pelo carregador, o transportador não pode ilidir esta presunção na
hipótese, pouco frequente, em que seja ele próprio fornecer essa informação, optando
voluntariamente por incluir tal informação no documento266.
A informação relativa ao número, tipo e identificação de contentores dá origem a
uma presunção inilidível mesmo que o carregador originalmente tenha fornecido essa
informação267.
Em suma:
263
Cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p.
236.
264
Cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p.
236.
265
Cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p.
237.
266
Cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p.
237.
267
Cf. MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p.
237.
80
(i) nas relações entre o carregador e o transportador, consagra-se uma
presunção ilidível de que as mercadorias foram recebidas tal como descrito
no documento;
(ii) nas relações entre o transportador e terceiros de boa fé, consagra-se, para
determinadas situações, uma presunção inilidível de que as mercadorias
foram recebidas tal como descrito no documento, havendo uma diferença
de regimes entre as situações em que exista um terceiro de boa fé legítimo
portador do documento (no caso de um documento negociável) e as
situações em que exista um destinatário das mercadorias de boa fé que
atuou confiando no documento (i.e., que fez um investimento de confiança
e que por isso é merecedor de tutela), quando este seja não negociável.
268
Este exemplo é-nos dado por MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The
Rotterdam Rules, cit., p. 237.
269
Cf. FRANCESCO BERLINGIERI, “An analysis of two recent commentaries of the Rotterdam Rules”, cit.,
p. 34.
81
1.3.5. Reservas do destinatário
Nas RR, as reservas do destinatário vêm previstas no artigo 23.º, que, no seu n.º
1, começa por estabelecer uma presunção: presume-se, salvo prova em contrário, que o
transportador entregou as mercadorias ao destinatário de acordo com o descrito no
documento de transporte, a não ser que o destinatário notifique o transportador ou uma
parte executante sobre a existência de qualquer perda ou dano, indicando a natureza geral
dessa perda ou dano, nos seguintes prazos: (i) antes ou no momento da entrega da
mercadoria, no caso de o dano ser aparente; ou (ii) no prazo de 7 dias úteis após a entrega
da mercadoria, se o dano não é aparente.
Prossegue o preceito, no seu n.º 2, que a falta de notificação por parte do
destinatário não preclude o seu direito de indemnização ao abrigo das RR nem afeta a
presunção de responsabilidade do transportador.
Além disso, tal notificação não é exigível por respeito aos danos e perdas que
sejam apurados numa ação de inspeção conjunta das mercadorias pela pessoa à qual foram
entregues as mercadorias e o transportador ou parte executante i.e., nos casos de
verificação contraditória (artigo 23.º, n.º 3).
Por fim, as partes devem dar uma à outra as facilidades razoáveis para inspecionar
a mercadoria e providenciar o acesso à documentação relevante do transporte (artigo 23.º,
n.º 6).
82
Tais menções (as do artigo 4.º, n.º 1, als. b) e c)) são as seguintes: (i) marcas
principais necessárias à identificação das mercadorias (al. b)); (ii) número de volumes ou
objetos e a quantidade ou peso das mercadorias (al. c))270.
Estas menções vêm inseridas sistematicamente a respeito daquilo que deve conter
a declaração de carga (emitida pelo carregador e não pelo transportador) 271, mas, por
referência à matéria das reservas, as mesmas devem também ser articuladas com aquilo
que se dispõe na CB 1924 a respeito do conteúdo do conhecimento de carga, dado que:
(i) o artigo 8.º do DL n.º 352/86, sob a epígrafe “Emissão do conhecimento
de carga”, determina que, após o início do transporte marítimo, o
transportador deve entregar ao carregador um conhecimento de carga, de
acordo com o que determinarem os tratados e convenções internacionais
referidos no artigo 2.º;
(ii) a CB 1924 aplica-se também ao transporte interno ex vi Decreto 37:748,
tendo os artigos 1.º-8.º desta Convenção passado, assim, a constituir
direito interno por via daquele diploma.
270
O anterior artigo 538.º do CCom., revogado expressamente pelo artigo 32.º do DL n.º 352/86, previa
que o conhecimento de carga deveria conter, inter alia, as seguintes enunciações: designação da natureza,
qualidade e quantidade dos objetos carregados, suas marcas, contramarcas e números. Sobre a menção da
qualidade, PALMA CARLOS defendia que o que se exigia era a referência a uma “qualidade genérica” e não
“qualidade específica”, pois seria “impossível exigir dos capitães conhecimentos tam profundos que lhes
permit[issem] com segurança especificar a qualidade das mercadorias”, defendendo assim que a qualidade
específica só seria exigível quando nisso as partes expressamente acordassem (v.g., em vez de se referir
genericamente que determinado produto, quanto à sua qualidade, correspondia a vinho tinto, podiam as
partes acordar que, para além da referência a vinho tinto, se especificasse o seu tipo). Quanto à menção da
quantidade, o autor atribui-lhe especial relevância (em termos de indispensabilidade), nos casos em que o
frete seja calculado por referência ao número de volumes. Por fim, as marcas, contramarcas e números dos
objetos carregados justifica-se, para o autor, atenta “a necessidade que tem o destinatário das mercadorias
de verificar se lhe são entregues as que lhe foram enviadas, pois só essas tem obrigação de receber”. Cf.
PALMA CARLOS, O contrato de fretamento no Código Comercial Português, cit., pp. 98 e ss.. MÁRIO
RAPOSO defendeu que este preceito terá sido revogado tácita ou indiretamente pela CB 1924, na medida
em que o governo português aderiu a essa Convenção cf. “As cartas de garantia e o seguro marítimo”,
Scientia Ivridica, Revista de Direito Comparado Português e Brasileiro, Tomo XX, 1971, p. 505.
271
Cf. artigo 4.º, n.º 1 do DL n.º 352/86.
83
Retomando o artigo 25.º do diploma interno, estabelecem-se, em primeiro lugar,
como requisitos cumulativos os seguintes: (i) clareza; (ii) precisão; e (iii) motivação.
Tudo conceitos indeterminados cujo significado há que determinar.
O n.º 2, por sua vez, alude a um outro requisito: a razoabilidade da não verificação
em virtude das condições específicas da mercadoria e/ou dos meios técnicos das
operações de carga.
O sentido do n.º 2 do artigo 25.º, di-lo o legislador expressamente, é o de validar
as chamadas reservas “quantitativas” (de que é característico exemplo a cláusula said to
contain) naqueles casos concretos em que as declarações do carregador não sejam
controláveis272. E prossegue: “A situação, perspetivada já no n.º 3 do artigo 3.º da
Convenção de 1924, passou a assumir especial relevo com a utilização dos contentores.
Realmente, sob pena de desorganizar por completo a sequência do transporte,
eliminando as vantagens que advêm da contentorização, não será dado ao transportador,
muitas vezes, verificar o conteúdo dos contentores; terá de aceitar as indicações
prestadas pelo carregador ou por quem o substitua. A validade da reserva dependerá, no
entanto, da «verificabilidade» de tais indicações, em termos de razoabilidade”.
As reservas, para serem admissíveis à luz deste diploma, como vimos, têm de ser
claras, precisas e suscetíveis de motivação. Significa isto que o transportador, ao apor
reservas, deverá mencionar de forma clara e tão precisa/específica quanto lhe for possível
as desconformidades em relação à declaração de carga ou, então, os defeitos que detete
relativamente ao estado e condição da mercadoria (clareza e precisão) não poderá,
nestes termos, o transportador socorrer-se de expressões ambíguas que não permitam
descortinar o real alcance dessas desconformidades ou estado e condição. Significa
também que tais reservas deverão ter um fundamento bastante (suscetíveis de motivação)
v.g., o caso característico da impossibilidade de meios de verificação que, num juízo de
razoabilidade, seja exigível ao transportador.
Além disso, quanto à razoabilidade prevista no artigo 25.º, n.º 2, a mesma não
pode desprender-se dos requisitos constantes no n.º 1 deste mesmo preceito, mormente
quando se exige que as reservas sejam suscetíveis de motivação: assim, v.g., quando
existe razoabilidade de meios para a verificação da mercadoria não se poderá considerar
existir uma reserva suscetível de motivação e vice-versa. Por outras palavras, se é
272
Cf. Preambulo do DL n.º 352/86.
84
verificável em termos de razoabilidade não poderá existir reserva suscetível de
motivação.
Prevendo embora os requisitos das reservas, o legislador não previu as
consequências para o caso de os mesmos não se verificarem. Não obstante, apenas se
pode chegar a uma conclusão lógica: tais reservas são ineficazes e tudo funciona como se
não tivessem sido apostas273. Na esteira do defendido por JANUÁRIO DA COSTA GOMES,
estamos “perante situações em que, por razões atinentes à segurança e lealdade das
transações há que irrelevar a letra - rectius, as específicas letras das reservas - do título,
numa justificada inflexão ao princípio da literalidade”274.
O diploma interno não se ocupa expressamente das reservas à chegada, mas, por
força da incorporação no direito interno dos artigos 1.º a 8.º da CB 1924, forçosamente
conclui-se que o regime é o mesmo que o nela previsto, analisado supra.
273
Cf., neste sentido, JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, cit., p. 248; COSTEIRA
DA ROCHA, O contrato de transporte de mercadorias, cit., p. 131.
274
Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, cit., p. 248.
275
Cf. artigo 1.º do DL n.º 352/86, de 21 de outubro, que estabelece o regime jurídico do contrato de
transporte marítimo de mercadorias, a nível interno.
85
pecuniária denominada frete276, vindo depois especificar-se três modalidades de
fretamento, procedendo-se à tripartição entre fretamento por viagem, a tempo e a casco
nu277: no fretamento por viagem o fretador obriga-se a pôr à disposição do afretador um
navio, ou parte dele, para que este o utilize numa ou mais viagens, previamente fixadas,
de transporte de mercadorias determinadas278; o fretamento a tempo é aquele em que o
fretador se obriga a pôr à disposição do afretador um navio, para que este o utilize durante
certo período de tempo279; por último, o fretamento em casco nu é aquele em que o
fretador se obriga a por à disposição do afretador, na época, local e condições
convencionados, um navio, não armado nem equipado, para que este o utilize durante um
certo período de tempo280.
Face às noções apresentadas, bem se vê, quanto ao fretamento por viagem, que a
diferença relativamente ao contrato de transporte marítimo não se apresenta muito clara.
Por isso, e dado que o legislador tomou a opção da autonomização de ambos281, a doutrina
276
Cf. artigo 1.º do DL n.º 191/87.
277
Cf. artigo 4.º do DL n.º 191/87. A tripartição do direito português entre fretamento a tempo, por viagem
e em casco nu não esgota, porém, o universo de possibilidades, como salta desde logo à vista pela utilização
do vocábulo “pode” no artigo 4.º do DL n.º 191/87 (a respeito das modalidades que “pode” revestir o
fretamento), podendo existir outras variantes. Vd., neste sentido, VASCONCELOS ESTEVES, Direito
Marítimo – Volume II – Contratos de Utilização do Navio, Livraria Petrony, 1988, p. 22, que refere
precisamente o fretamento por viagens sucessivas e o “Fretamento à Tonelagem” como variantes do
fretamento. Assim, é possível conceber contratos que reúnam elementos das diversas modalidades previstas
– por exemplo, um misto entre fretamento a tempo e por viagem –, conforme é expressamente reconhecido
pelo legislador quando refere no preâmbulo o seguinte: “Claro está que, para além desta trilogia,
nitidamente configurada, a vida se tem encarregado de produzir outras modalidades, que as partes
modelam a partir dos seus interesses. São tipos contratuais não definíveis more geomerico; aquilo que os
ingleses chamam de contratos «híbridos»”. Entre essas modalidades, dá-se como exemplos, no preâmbulo
citado, o fretamento por viagens sucessivas e a trip charter, mas também o “tonnage agreement”, “contrat
de tonnage” ou “affrètement au tonnage” – a convenção em que um empresário (industrial, comercial, ou
agrícola) estabelece com um armador que este assegurará a deslocação, em um ou vários navios, dentro de
um certo período, de um volume determinado (ou determinável) de mercadorias, mediante o pagamento de
um frete calculado por tonelada ou por qualquer outra unidade de medida. Neste último caso, entende o
legislador não se estar perante um fretamento a tempo, já que o período estipulado valerá apenas como
limite, sendo o frete fixado em função do volume de mercadorias transportado e porque, além disso, nestes
contratos o que o armador põe à disposição do outro contraente é uma certa capacidade de transporte, pelo
que “Tem-se entendido tratar-se de um fretamento por viagem, embora com uma vincada infixidez de
enquadramento. Daí que já se tenha pensado que melhor será situá-lo como um contrato preliminar de
ulteriores transportes sucessivos”.
278
Cf. artigo 5.º do DL n.º 191/87.
279
Cf. artigo 22.º do DL n.º 191/87.
280
Cf. artigo 33.º do DL n.º 191/87.
281
A autonomização do fretamento e do transporte foi efetuada em termos inequívocos com o DL n.º
191/87, que, como vimos, veio disciplinar o regime do fretamento. Até então, o DL n.º 352/86, de 21 de
outubro, que veio disciplinar o contrato de transporte de mercadorias por mar, estabelecia no seu preâmbulo
uma manifesta vontade de distinção entre ambos, mas como não havia ainda um regime específico para o
fretamento as dúvidas quanto à sua autonomização permaneciam. Só então se operou, com toda a clareza,
a autonomização conceptual de ambos os contratos, por influência do sistema legal francês de 1966,
passando a distinguir-se as três modalidades típicas de fretamento já enunciadas.
86
tem-se empenhado em delimitar ambas as figuras. Esta é uma questão clássica282 e atual
do direito marítimo nacional e internacional, revestindo a maior importância para a
delimitação do âmbito de aplicação dos respetivos regimes, mormente as Convenções
internacionais sobre o contrato de transporte.
O direito nacional, por um lado, consagrando regimes diversos para o fretamento
e para o transporte, não deixa, todavia, de apresentar dificuldades de qualificação práticas
e dogmáticas. Por outro lado, no direito internacional, a regulação do transporte marítimo
apresenta um desenvolvimento sem paralelo com o fretamento, que apenas aparece “aqui
e ali” de forma pontual, sem que haja qualquer regime jurídico internacional que o regule
– pelo menos de forma assumida283-284.
Como critério determinante de distinção o legislador aponta o facto de o transporte
respeitar a uma carga e o fretamento a um navio, referindo que o fretador não assume
qualquer obrigação direta em relação às mercadorias transportadas, não sendo, pois,
automaticamente responsável pela sua perda ou avaria. Quando se refere especificamente
ao fretamento por viagem, acrescenta ainda que este “tem a ver, como o transporte, com
a deslocação de uma carga de um local para outro. O que acontece é que a prestação
nuclear do fretador consiste em fornecer um navio em bom estado de navegabilidade,
cuja gestão náutica lhe continua a pertencer”285. Aponta também como critério distintivo
a ideia de que no contrato de fretamento prepondera a autonomia da vontade,
282
No direito romano, o contrato de transporte surge, aliás, no âmbito da locatio-conductio que podia,
precisamente, ter por objeto o transporte de mercadorias. Sobre este tema, vd. SANTOS JUSTO, “Contrato de
transporte marítimo (direito romano)”, Nos 20 anos do Código das Sociedades Comercias, Homenagem
aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Cavalho e Vasco Lobo Xavier, Vol. II, Coimbra Editora,
pp. 11-42. Neste estudo, o autor aborda especificamente a figura da locatio-conductio ad onus vehendum e
distingue-a da locatio-conductio navis. Para o autor, a primeira pode ser definida como um contrato
consensual, bilateral, de boa fé, em que um armador (nauta) se obrigava a transportar, para determinado
destino, mercadorias que lhe eram confiadas por uma ou mais pessoas, mediante o pagamento de uma
remuneração (naulus vectura) certa e determinada o nauta era considerado conductor, enquanto os donos
das mercadorias se denominavam locatores. Como marca principal desta figura contratual, destaca-se,
desde logo, a responsabilidade por custodia que o nauta assume por efeito desse contrato. Quanto à locatio-
conductio navis, tratava-se de uma locação de navio integrada na figura mais ampla locatio-conductio rei,
muito embora houvesse já quem defendesse que o transporte marítimo começou por ser considerado uma
locatio-conductio rei: se a locação incidisse sobre navio e nautae, tratava-se de uma locação mais complexa,
de coisa e serviços. Como se vê, por referência ao direito romano a distinção entre locação de navio e
contrato de transporte marítimo também existe e a autonomia de ambas as figuras já era discutida.
283
Cf. HUGO RAMOS ALVES, “Em torno do contrato de transporte marítimo de mercadorias”, cit., p. 318.
284
Esta realidade traduz, como nota HUGO RAMOS ALVES, “Em torno do contrato de transporte marítimo
de mercadorias”, cit., pp. 318 e 321, uma “inversão de sentido” relativamente à codificação oitocentista,
verificando-se numa primeira fase uma atenção particular dedicada ao fretamento. Nas palavras do autor,
“Se, num primeiro momento, maxime na codificação oitocentista, «tudo era fretamento», atualmente avulta
a regulação do contrato de transporte. O que equivale a dizer que o fretamento, apesar da respetiva
autonomia, está na órbita do contrato de transporte marítimo de mercadorias” (…) o legislador passou da
primazia do fretamento para a preponderância do transporte de mercadorias”.
285
Cf. preâmbulo do DL n.º 352/86.
87
diferentemente do que sucede no contrato de transporte em que prepondera a
imperatividade do regime286.
Vejamos cada uma das diferenças apontadas, quer pelo legislador, quer pela
doutrina.
a) Autonomia privada e imperatividade. Carta-partida e conhecimento de
carga
286
Cf. preâmbulo do DL n.º 191/87, onde se afirma o seguinte: “É corrente a ideia de que no contrato de
fretamento prepondera a autonomia da vontade; será mesmo esse um dos traços que mais
caracteristicamente o demarcam do contrato de transporte de mercadorias; neste, a preocupação de
proteger os carregadores deu causa a uma disciplina jurídica quase sempre imperativa”.
287
Cf. artigos 2.º e 3.º do DL n.º 191/87.
288
Cf. artigos 8.º a 11.º do DL n.º 352/86.
289
Por incorporação dos artigos 1.º a 8.º na Convenção no direito interno mediante o DL n.º 37:748.
290
Ou por qualquer documento similar servindo de título ao transporte de mercadorias por mar.
291
Apenas se aplica o regime quando, em virtude duma carta-partida, sejam emitidos conhecimentos de
carga, e apenas nas relações entre o portador do título e o fretador (em virtude da circulação) e não entre
este e o afretador – cf., neste sentido, JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, cit., pp.
241 e ss. e VASCONCELOS ESTEVES, “Fretamento de navio para transporte de mercadorias”, I Jornadas de
Lisboa de Direito Marítimo, Almedina, 2008, pp. 312-313.
88
subsidiariamente, pelo regime geral de responsabilidade civil do direito das obrigações292-
293
. Com efeito, estabelece-se, para o transporte, um regime legal de limitação de
responsabilidade do transportador294, primordialmente pautado pela imperatividade295 –
uma imperatividade na maioria das vezes mínima, a favor do carregador 296. Assim, por
exemplo, a limitação convencional da responsabilidade só é possível se for estabelecida
em sentido mais favorável ao carregador. O regime de responsabilidade a que se refere o
artigo 4.º da CB 1924 corresponde, ademais, a um responsabilidade agravada e
presumida297.
b) Obrigações contratuais
292
Cf. CALVÃO DA SILVA, “Contrato de fretamento por viagem e arresto de navio”, Estudos de Direito
Comercial (Pareceres), cit., p. 130, onde refere a aplicabilidade dos artigos 798.º e ss. do CC ao contrato
de fretamento.
293
No fretamento, a única especialidade prevista no regime de responsabilidade diz respeito ao prazo de
caducidade para exercer o direito a indemnização decorrente da violação do contrato, que, nos termos do
artigo 46.º do DL n.º 191/87, deve ser exercido no prazo de dois anos a partir da data em que o lesado teve
conhecimento do direito que lhe compete.
294
Previsto no artigo 31.º do DL nº 352/86, à semelhança do que se prevê no artigo 4.º, n.º 5, da CB 1924.
Sobre o regime de responsabilidade do transportador marítimo de mercadorias, vd., v.g., COSTEIRA DA
ROCHA, “Limitação da responsabilidade do transportador marítimo de mercadorias”, I Jornadas de Lisboa
de Direito Marítimo, Almedina, 2008, pp. 249 e ss. e HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da
responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas de 1924, cit..
295
Cf. artigo 27.º do DL n.º 352/86.
296
Cf. artigo 3.º, § 8.º da CB 1924, norma que, como já vimos, foi incorporada também no direito interno.
297
Cf., neste sentido, v.g., COSTEIRA DA ROCHA, “Limitação da responsabilidade do transportador marítimo
de mercadorias”, cit., pp. 249 e ss. e HUGO RAMOS ALVES, Da Limitação da Responsabilidade do
Transportador na Convenção de Bruxelas de 1924, cit., pp. 23 e 108.
298
Cf. artigo 7.º do DL n.º 191/87.
299
Cf. artigo 8.º do DL n.º 191/87.
300
Cf. artigo 9.º do DL n.º 191/87.
89
Por isso, tem-se considerado dever atentar-se no núcleo essencial dos respetivos
contratos para os qualificar devidamente, considerando-se que enquanto no fretamento
esta obrigação constitui objeto mediato, no transporte seria o seu objeto imediato301 – i.e.,
enquanto no transporte a obrigação de deslocação de mercadorias surge como o cerne da
obrigação do transportador (o seu objeto imediato), no fretamento por viagem o elemento
fundamental é a colocação de um navio à disposição de um afretador, estando a obrigação
de deslocação de mercadorias remetida para segundo plano ou constituindo o seu objeto
mediato302.
Por outro lado, quanto à obrigação de efetuar as operações de carregamento e
descarregamento associadas a cada tipo contratual, no contrato de fretamento por viagem
tipicamente esta obrigação não cabe ao fretador, mas antes ao afretador303, diferentemente
do transporte, em que é o transportador que tem a seu cargo estas operações e, como
vimos, o mesmo é responsável, sem possibilidade de se estipular o contrário, pelos danos
causados à mercadoria no decurso destas operações mesmo que haja intervenção de
terceiros304.
Face a este desenho normativo, afirma VASCONCELOS ESTEVES que o fretador,
diferentemente do transportador, “não toma a seu cargo o carregamento, nem se obriga
a transportá-lo. Pode pois dizer-se que o fretamento diz respeito a um navio que o
armador-fretador se compromete a colocar à disposição do afretador. O contrato de
transporte, por sua vez, diz respeito a um carregamento que o armador-transportador se
obriga a transportar até um determinado porto. Ainda que a deslocação das mercadorias
constitua, por assim dizer, o objectivo da operação de fretamento, o fretador não se
obriga a transportá-las”305.
301
Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, cit., p. 239. Vd., também, IGNACIO
ARROYO, Curso de Derecho Marítimo, cit., pp. 514-515.
302
Vd., neste sentido, JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, cit., p. 239, ELIANE
OCTAVIANO MARTINS, Curso de Direito Marítimo, Vol. I – Teoria Geral, 4ª ed., Manole, 2013, p. 144,
COSTEIRA DA ROCHA, O Contrato de Transporte de Mercadorias, cit., pp. 26-28 – que alude à obrigação
de deslocar como o núcleo definidor do transporte, como o seu conteúdo mínimo e essencial “que autoriza
a sua abordagem como tipo contratual unitário” e que, neste sentido, “a obrigação terá de ser o principal
da prestação do transportador” e que quando tal não acontece, não se pode falar de contrato de transporte.
Não basta, pois, uma mera deslocação, sendo necessário que esta constitua o núcleo da prestação do
transportador. Refere ainda que “O controlo que o transportador exerce sobre a deslocação tem também
influência na qualificação do contrato de transporte. Exige-se que seja ele a dirigir em exclusivo a
deslocação, uma vez que nenhum dos demais intervenientes no contrato interfere a sua actividade ou, dito
de outro modo, o transportador tem a gestão comercial e técnica da execução material das operações de
deslocação”.
303
Cf. artigo 9.º, al. b) do DL n.º 191/87.
304
Cf. artigo 7.º do DL nº 352/86.
305
Cf., por todos, VASCONCELOS ESTEVES, “Fretamento de navio para transporte de mercadorias”, cit., pp.
309-310.
90
Sucede que, a nosso ver, no fretamento por viagem a obrigação de carregamento
e descarregamento aí configurada não constitui requisito qualificador do objeto típico do
contrato, antes constituindo uma regra supletiva suscetível de ser afastada pelas partes,
em nome do princípio da liberdade contratual que norteia, primacialmente, este tipo de
contratação. Por isso, perante a hipótese de afastamento desta regra, em que se
convencione que será o fretador que terá a seu cargo as operações de carga e descarga de
mercadoria, este critério de distinção apresenta-se incipiente e incapaz de dar respostas à
distinção de ambos os contratos.
A procura de diferenças tem também sido feita com base no critério das linhas
regulares e irregulares associadas à viagem de deslocação das mercadorias, no sentido de
o fretamento por viagem se traduzir na realização de viagens em linhas não regulares e,
ao invés, de no transporte a viagem ser efetuada em linhas regulares306.
A este respeito, afirma-se que, no comércio internacional, o contrato de transporte
instrumentaliza os transportes de mercadorias em navegação “liner” e os contratos de
fretamento operacionalizam o transporte de mercadorias na navegação não regular
(mercado “tramp” ou “spot”)307.
Achamos que esta diferença não pode, todavia, ser vislumbrada em termos de
regime, mas antes retirada da prática dos mercados, em que o recurso às charter parties
ou aos bills of lading está associado ao mercado de linhas não regulares ou regulares,
respetivamente: “enquanto que os contratos documentados por cartas-partidas são, na
prática, negociados e estipulados em função das exigências do contratante, o mesmo não
acontece com os contratos sujeitos ao regime do conhecimento de carga, que se insere
no transporte das linhas regulares, em termos pré-anunciados e pré-determinados e com
cláusulas padronizadas”308.
306
Vd. IGNACIO ARROYO, Curso de Derecho Marítimo, cit, pp. 514-515. O autor afirma que o transporte
de mercadorias pode ficar documentado quer numa carta-partida ou num conhecimento de carga,
reservando-se aquela para o tráfego livre, preferencialmente carregamentos homogéneos que ocupam a
capacidade total do navio (fretamento a tempo e por viagem) e o conhecimento de carga para o tráfego em
linhas regulares.
307
Cf. ELIANE OCTAVIANO MARTINS, “Exploração de navios no transporte marítimo internacional de
mercadorias”, cit., p. 139.
308
Cf., na esteira do afirmado por Carbone, JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino de Direito Marítimo,
cit., p. 239.
91
Ainda assim, face ao papel dos usos e costumes comerciais internacionais como
fonte do direito do comércio internacional, e embora as linhas regulares e não regulares
não constituam um critério estabelecido legalmente quer ao nível estadual quer
supraestadual, pensamos ser de adotar esta diferença precisamente por, na prática, este
critério estar bastante sedimentado. É, pois, possível conceber-se que tal configura um
critério com origem nos usos, práticas e costumes do comércio internacional309.
d) Teorias conceptuais
309
Entramos aqui no campo da Lex Mercatoria, Ius Mercatorum ou no também denominado “direito
autónomo do comércio internacional”, que, na noção de LIMA PINHEIRO, se define pelo conjunto das regras
e princípios aplicáveis às relações do comércio internacional que se formam independentemente da ação
dos órgãos estaduais e supraestaduais – cf. “O direito autónomo do comércio internacional em transição: a
adolescência de uma nova lex mercatoria”, Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof.
Doutor António de Sousa Franco, Vol. II, Coimbra Editora, 2006, p. 848. Contudo, importa ter presente a
forte controvérsia que existe em torno desta temática, havendo teses favoráveis e desfavoráveis ao direito
autónomo do comércio internacional. Sobre o tema vd. LIMA PINHEIRO, Direito Comercial Internacional,
Almedina, 2005, pp. 179 e ss. e, do mesmo autor, “O direito autónomo do comércio internacional em
transição: a adolescência de uma nova lex mercatoria”, cit., em especial pp. 849 e ss. O autor reconhece, a
este respeito, que existe um vasto consenso sobre a existência de ramos de atividade económica marcados
por um elevado grau de internacionalização, de padronização do conteúdo negocial dos contratos e de
recurso à arbitragem para resolução dos litígios deles emergentes, dando precisamente como exemplo os
contratos de transporte marítimo. Mas conclui que apenas podem considerar-se fontes do direito autónomo
do comércio internacional em sentido técnico-jurídico o costume comercial internacional, o costume
jurisprudencial arbitral e as regras criadas por centros autónomos no âmbito da autonomia associativa.
310
Para uma enunciação destas teorias, vd. GARCÍA-PITA Y LASTRES, “Fletamento, transporte marítimo y
responsabilidade contratual”, III Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo – Das Regras da Haia às Regras
de Roterdão, Almedina, 2014, pp. 376 e ss..
92
Na doutrina portuguesa, MÁRIO RAPOSO sustenta a dualidade transporte-
fretamento, aplaudindo a solução consagrada no direito português, afirmando
inclusivamente que “Nas modernas legislações ocorre a dualidade entre os dois tipos de
contratos”311 e que, “diga-se o que se disser, há especificidades inarredáveis no
fretamento por viagem: é titulado por uma carta-partida, a problemática das estadias e
todas as suas sequelas só nele se põe”312, considerando, além disso, que, nos países, como
Portugal, em que vigore a CB 1924, não há razões para apregoar a indiferenciação dos
contratos de fretamento e de transporte313. As especificidades a que o autor se refere
dizem, essencialmente, respeito às obrigações assumidas pelas partes e ao regime de
responsabilidade.
Em primeiro lugar, conforme afirma, “não está o fretador adstrito a fazer a
entrega da mercadoria, que é o fim essencial do transporte. Não está vinculado a esse
resultado”314. É verdade que o diploma legal relativo ao contrato de fretamento não
estabelece essa obrigação. Do que temos dúvidas, porém, é que daí possa retirar-se que
as partes não podem, mais uma vez ao abrigo da autonomia privada, estabelecer na carta-
partida essa obrigação. Tal não desvirtuará, a nosso ver, a existência do fretamento (por
viagem), pelo que não deverá tal cláusula ter-se por nula.
Em segundo lugar, acrescenta, não recai sobre o fretador, como sobre o
transportador, qualquer presunção de responsabilidade, cabendo-lhe apenas provar que
cumpriu com exatidão as obrigações a seu cargo315. Não obstante, reconhece que, para a
qualificação de um contrato como de fretamento por viagem ou de transporte marítimo
de mercadorias importa, fundamentalmente, aferir a motivação das partes para a
celebração do contrato316. Embora concordemos com esta afirmação em termos teóricos,
como ambos os contratos se destinam, fundamentalmente, ao mesmo fim, a verdade é que
311
Como sucede no direito francês e italiano. No direito francês, o fretamento apresenta configurações
muito semelhantes ao direito português, sendo moldado fundamentalmente em função da autonomia
privada, distinguindo-se igualmente o fretamento por viagem, a tempo e a casco nu, todos eles com
consagração autónoma em relação ao transporte. Simplesmente, atento o princípio da liberdade contratual,
tal tripartição não tem caráter classificatório no sentido de esgotar as possibilidades previstas, não tendo,
portanto, cariz absoluto, podendo existir tipos intermediários ou mesmo novos tipos de fretamento
delineados em função da autonomia privada – cf. PIERRE BONASSIES e CHRISTIAN SCAPEL, Droit Maritime,
L.G.D.J., 2006, p. 510.
312
Cf. MÁRIO RAPOSO, “Segunda (e última) reflexão sobre um esboço de reforma do direito marítimo
português”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 62, Vol. III, 2002, disponível em
http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=16886&ida=16894.
313
Cf. MÁRIO RAPOSO, “Sobre o contrato de transporte de mercadorias por mar”, Boletim do Ministério da
Justiça, n.º 376, 1988, p. 60.
314
Cf. MÁRIO RAPOSO, “Sobre o contrato de transporte de mercadorias por mar”, cit., p. 60.
315
Cf. MÁRIO RAPOSO, “Sobre o contrato de transporte de mercadorias por mar”, cit., pp. 60-61.
316
Cf. MÁRIO RAPOSO, “Sobre o contrato de transporte de mercadorias por mar”, cit., pp. 60-61.
93
em termos práticos ocorrerão, não raras vezes, dificuldades de apurar motivações em
termos que permitam tal destrinça.
Na verdade, a opção legislativa corre o risco de se mostrar desajustada face à
realidade socioeconómica subjacente, podendo suceder que haja, em determinados casos,
falta de navio de linha regular para um determinado transporte de carga, falta de espaço
de um navio, necessidade de celeridade do transporte, ou vantagens na utilização contínua
da afetação do navio à deslocação das mercadorias por comparação entre o valor do frete
no fretamento e no transporte. Estas podem ser razões que motivem a celebração de
contratos de fretamento por viagem317. Nem por isso se pode afirmar, sem mais, que a
finalidade económica por detrás dos mesmos se apresenta com contornos distintos dos
que existiriam com a celebração de um contrato de transporte.
Por outro lado, existirá sempre o risco de, sob a aparência de um contrato de
fretamento, existir um verdadeiro transporte, situação que irá levar à preterição de regras
legais imperativas, mormente quanto à responsabilidade do transportador, que não
existem no regime jurídico do contrato de fretamento318.
Por sua vez, a conceção unitária do transporte agrupa, no essencial, no mesmo tipo
contratual o transporte sob conhecimento e o fretamento, à semelhança do que sucede no
sistema common law e no direito alemão319.
Na doutrina portuguesa, LIMA PINHEIRO é quem, à semelhança do que sucede nos
sistemas de common law e no direito alemão, de forma assumida, tem sustentado, de iure
condendo, a existência de uma unidade conceptual entre o fretamento e o transporte, não
só quanto ao fretamento por viagem como também quanto ao fretamento a tempo,
perfilhando como decorrência desta unidade conceptual a necessidade de, igualmente,
existir uma unidade de regime320.
O autor afirma mesmo que esta bipartição é “errónea de um ponto de vista de
construção jurídica” visto que no fretamento por viagem o fretador obriga-se a prestar
um serviço que tem por função a deslocação de mercadorias, sendo manifesto que a
317
Cf. ELIANE OCTAVIANO MARTINS, “Exploração de navios no transporte marítimo internacional de
mercadorias”, cit., p. 141.
318
Aliás, no seu estudo intitulado “Fretamento e transporte marítimo. Algumas questões”, Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 340, 1984, pp. 19 e ss., MÁRIO RAPOSO reconhecia esta problemática, afirmando
que o fretamento por viagem está sempre ameaçado da suspeita de encobrir um verdadeiro contrato de
transporte – “isto, como é óbvio, porque os contraentes se quererão esquivar às injuntivas regras legais do
transporte”.
319
Cf. LIMA PINHEIRO, “Contributo para a reforma do direito comercial marítimo”, Revista da Ordem dos
Advogados, Lisboa, Ano 60, n.º 3, 2000, p. 1078.
320
Cf. LIMA PINHEIRO, “Contributo para a reforma do direito comercial marítimo”, cit., pp. 1078 e ss..
94
viagem que o armador se compromete realizar mais não é do que o serviço de transporte.
Mas não se fica por aqui, defendendo que mesmo o fretamento a tempo pode ainda
integrar-se no contexto de transporte, que não é um contrato de aluguer mas, antes, um
contrato em que o armador/fretador conserva a disponibilidade do navio para prestar um
serviço de transporte, tanto mais que segundo o clausulado usual das cartas-partidas neste
tipo de contratos o “armador” assume a responsabilidade pelo transporte321.
Sugere, nesta ordem de ideias, como noção de transporte marítimo de mercadorias
quer o contrato em virtude do qual uma das partes se obriga a deslocar mercadorias quer
aqueles em que uma das partes se obriga a fornecer um navio para deslocar mercadorias.
Diga-se o que se disser, o certo é que o legislador optou claramente pela
autonomização, não podendo duvidar-se da existência de bipartição no direito português.
Em termos de qualificação jurídica, a procura de diferenças deverá assentar,
essencialmente, naquilo que as partes estipularam (i) quanto às mercadorias; (ii) quanto
ao navio – aquelas figuram como o elemento central do transporte e acessório no
fretamento, ao passo que este figura como central no fretamento, onde a obrigação de
colocar um navio à disposição do afretador surge como elemento qualificador do
fretamento, e já não no transporte.
321
Cf. LIMA PINHEIRO, “Contributo para a reforma do direito comercial marítimo”, cit., p. 1079.
322
Cf. artigo 1.º, al. b), 2ª parte, da CB 1924 e artigo 2.º, n.º 3, das RH 1978.
95
Poderá, de um outro prisma, questionar-se se é admissível ou fará sequer sentido,
face às obrigações das partes neste contrato, a aposição de reservas pelo transportador
quando não seja emitido um conhecimento de carga ao abrigo de uma carta-partida.
O regime legal do fretamento por viagem, o artigo 6.º do DL n.º 191/87 prevê que
a carta-partida deve conter, inter alia, a quantidade e a natureza das mercadorias a
transportar. Nada mais prevê sobre as características da mercadoria. Por um lado, este é
um regime supletivo suscetível de ser afastado pelas partes, na medida em que o
fretamento, como vimos, é primacialmente moldado pela autonomia privada.
Vimos também que, sendo certo que no fretamento, normalmente, o afretador não
toma a seu cargo um carregamento, perante a hipótese de afastamento desta regra, em que
se convencione que será o fretador que terá a seu cargo as operações de carga e descarga
de mercadoria, este critério de distinção entre o transporte e o fretamento mostra-se
incipiente. Nesta ordem de ideias, e ainda na senda da liberdade contratual, as partes
podem prever o que lhes aprouver sobre quem terá a cargo estas operações de carga.
Poderão, v.g., estipular obrigações para além do que impõe o regime legal e, nessa
medida, podem prever que, ao abrigo da carta-partida, o transportador assuma a obrigação
de fazer certas menções relativas às características da mercadoria aquando da sua receção
(tais como as relativas ao estado e condição aparentes das mercadorias), podendo também
prever o dever ou a possibilidade de o transportador, se detetar desconformidades em
relação ao previsto na carta-partida, formular reservas.
E podem também as partes, nesta senda, associar determinados efeitos presuntivos
a estas menções ou falta de menções, nomeadamente estipulando contratualmente
soluções idênticas aos regimes do contrato de transporte. Se não o fizerem (i.e., se não
preverem tais efeitos presuntivos livremente no contrato), naturalmente, a consequência
será a aplicação das normas gerais do ónus da prova (cabendo a prova a quem alegue o
facto).
Em suma: em teoria e ao abrigo da autonomia privada, nada obsta a que sejam
formuladas reservas, se as partes assim o preverem, ao abrigo de um fretamento por
viagem em que exista apenas uma carta-partida. Na prática, porém, aquilo que se verifica
é que as reservas são figuras típicas do transporte, estando indissociavelmente ligadas aos
documentos de transporte, dadas as suas específicas funções.
96
1.6. As reservas e o contrato de volume
O contrato de volume pode ser definido como o acordo mediante o qual uma das
partes se obriga, em contrapartida de uma quantia pecuniária designada frete, a deslocar
certa quantidade de mercadorias, em viagens sucessivas e durante um determinado
período de tempo323.
Não sendo um contrato legalmente típico, é, no entanto, um contrato socialmente
típico com elementos típicos do transporte e do fretamento, e em relação ao qual tem sido
defendida a aplicação do regime imperativo do contrato de transporte marítimo.
Neste sentido, quando se conclua ser de aplicar tal regime, nomeadamente por,
em virtude de um contrato de volume, ser emitido um conhecimento de carga ou outro
documento de transporte, tal tem também como consequência a aplicação do regime das
reservas correspondente no caso de serem estas emitidas.
Importa fazer uma referência especial ao contrato de volume nas RR que, a par de
um regime geral para o transporte internacional de mercadorias total ou parcialmente por
mar, preveem um regime especial para o contrato de volume e que passou, a partir de
então, a estar “oficialmente” regulado por um instrumento de direito internacional,
despertando um crescente interesse e aceso debate na comunidade jurídica
internacional324.
323
IGNACIO ARROYO, Curso de Derecho Marítimo, cit., p. 508, define o contrato de volume como aquele
contrato mediante o qual um armador se compromete a transportar por mar, utilizando navios de sua
propriedade ou dos que possa dispor, uma quantidade de mercadorias determinada ou determinável, no
período de tempo previsto, em diversas viagens, contando com formulários próprios – Interkoa 80 e Volkoa.
Vd., também, LÓPEZ RUEDA, “Las Reglas de Rotterdam: un régimen uniforme para los contratos de
volumen?” cit., p. 106. GÓMEZ PRIETO, “Consideraciones sobre la naturaleza jurídica de una nueva
modalidade de contrato de fletamento”, Anuario de Derecho Maritimo, Vol. XXIV, 2007, p. 47, por sua
vez, define o contrato de fletamento por tonelaje como aquele em que se acorda o transporte de uma
quantidade determinada ou determinável de mercadorias durante um determinado período de tempo. Vd.,
também, sobre o contrato de volume, LYNCE DE FARIA, “O Contrato de Volume na nova dinâmica do
transporte contentorizado”, cit..
324
Cf. ANASTASIYA KOZUBOVSKAYA-PELLE, “Le contrat de volume et les Règles de Rotterdam”, Le Droit
Maritime Français, n.º 712, 2010, p. 175, LÓPEZ RUEDA, “Las Reglas de Rotterdam: un régimen uniforme
para los contratos de volumen?”, cit., p. 103. De facto, a previsão do contrato de volume nas RR constitui
uma das questões mais polémicas desta Convenção, tendo sido encarada pela doutrina como um dos
conceitos mais inovadores aí previstos. Vd., neste sentido, LYNCE DE FARIA, “As Regras de Roterdão – as
alterações mais significativas”, III Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo – Das Regras da Haia às
Regras de Roterdão, Almedina, 2014, p. 657. Há, até, quem afirme ser esta a “pedra de escândalo” das RR
- cf. MÁRIO RAPOSO, “Transporte marítimo de mercadorias: hoje e amanhã”, cit., p. 21. A sua previsão nas
97
O contrato de volume vem especificamente previsto e definido nas RR as quais,
logo no seu artigo 1.º – que contém um conjunto de definições –, vêm, no n.º 2, defini-lo
como um contrato de transporte que prevê o transporte de uma determinada quantidade
de mercadorias em diversas viagens, durante um determinado período de tempo, sendo
que a especificação da quantidade de mercadorias pode incluir um mínimo, um máximo
ou uma certa margem325.
Embora tenha sido autonomizado em termos de conceito, o contrato de volume
aqui previsto não constitui uma modalidade distinta do contrato de transporte, antes sendo
uma específica variante deste – i.e., sendo o contrato de transporte de mercadorias por
mar uma realidade ampla, este pode consistir ou não, para efeitos desta Convenção, num
contrato de volume326. Esta interpretação é a única que se coaduna com a noção de
contrato de volume prevista nas RR.
O contrato de volume é, nas RR, indubitavelmente reconhecido como um contrato
de transporte – e é unitário, não existindo tantos contratos de transporte como as viagens
realizadas327. As diferentes viagens realizadas ao seu abrigo são execução desse contrato.
Sendo as RR uma Convenção marítima plus na medida em que tem de prever
necessariamente e pelo menos o modo de transporte marítimo, basta que numa das
viagens seja, pelo menos, utilizado o modo de transporte marítimo328.
A CB de 1924 e as RH 1978 contêm um regime imperativo a favor do carregador
– one way mandatory –329, atendendo à necessidade de proteger os carregadores que
frequentemente surgem com menor poder de negociação. Daí que, na CB 1924, os
contratos celebrados ao abrigo de uma carta-partida estejam, à partida, fora do seu
RR poderá também representar, como afirma MÁRIO RAPOSO, a passagem de um sistema de formulários a
um regime legal estabilizado (ibidem, p. 22). Sendo certo que, do ponto de vista da positivação jurídica ao
nível internacional, poderá caracterizar-se como um conceito inovador, também é certo que “o contrato de
volume não é uma inovação das Regras mas uma prática perfeitamente caracterizável, embora com
diferentes designações, desde os anos 80 do século passado (ibidem, p. 21).
325
A redação original, em inglês, determina o seguinte: “Volume contract” means a contract of carriage
that provides for the carriage of a specified quantity of goods in a series of shipments during an agreed
period of time. The specification of the quantity may include a minimum, a maximum or a certain range.
326
Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, “Introdução às Regras de Roterdão – A Convenção «Marítima-Plus»
sobre transporte internacional de mercadorias,”, cit., p. 630.
327
Este tema irá ser objeto de mais desenvolvimentos adiante. Por ora, ficamos com esta breve referência.
328
Esta é a interpretação que mais se coaduna com a noção de contrato de volume como tal apresentada nas
RR e com a sua natureza unitária.
329
O artigo 3.º, n.º 8, da CB de 1924 dispõe que “será nula, de nenhum efeito e como se nunca tivesse
existido, toda a cláusula, convenção ou acordo num contrato de transporte exonerando o armador ou o
navio da responsabilidade por perda ou dano concernente a mercadorias proveniente de negligência, culpa
ou omissão dos deveres ou obrigações [do transportador], ou atenuando essa responsabilidade por modo
diverso do preceituado na […] Convenção”.
98
âmbito330, porque aqui geralmente as partes têm igual poder de negociação e, como tal,
não se vislumbra a necessidade de proteger uma das partes, não sendo necessário o
estabelecimento de um regime imperativo. A técnica adotada nas Regras de Hamburgo
foi a mesma, com a ressalva de que não há exceções ao caráter imperativo do regime nelas
estabelecido331.
As RR, por sua vez, seguem uma dupla aproximação a estes instrumentos
internacionais mas com particularidades próprias. Há quem refira, a este respeito, que as
exclusões do seu âmbito de aplicação e as situações em que é permitida a liberdade
contratual refletem as modernas exigências do comércio marítimo internacional332.
Distintamente, o artigo 79.º das RR contém um regime imperativo num sentido
dual ou bidirecional – two way mandatory333. Assim, no n.º 1 desse preceito prevê-se que,
salvo disposição especial prevista na Convenção, são nulas as cláusulas contratuais que
excluam ou limitem direta ou indiretamente as obrigações do transportador ou da parte
executante marítima; ou designe como beneficiário do seguro das mercadorias
transportadas o transportador334. Por sua vez, o n.º 2 determina que, salvo disposição
especial prevista na Convenção, são nulas as cláusulas contratuais que excluam, limitem
ou ampliem direta ou indiretamente as obrigações do carregador, do destinatário, da parte
controladora, do portador ou do carregador documentário; ou excluam, limitem ou
aumentem, direta ou indiretamente a responsabilidade do carregador, do destinatário, da
parte controladora, do portador ou do carregador documentário.
A imperatividade, embora prevista num sentido bidirecional, não é todavia
absoluta, sendo possível que as partes acordem no aumento das obrigações ou
responsabilidade do lado do transportador ou da parte executante marítima, mas já não
sendo possível que se preveja tal aumento em relação ao carregador ou outros
intervenientes a ele associados. Embora de forma mais mitigada, continua a manifestar-
se uma maior preocupação na tutela dos carregadores em relação aos transportadores. Em
suma, não é possível limitar ou excluir as obrigações ou responsabilidade do
330
Cf. artigo 5.º, salvaguardando-se os casos em que haja emissão de conhecimento de carga e o título
circule, como vimos.
331
Cf. artigo 23.º, n.º 1, das Regras de Hamburgo.
332
Cf. FRANCESCO BERLINGIERI, “The Unicitral Draft Convention on the Carriage of Goods (“Wholly or
partly) (by Sea)”, Zbornik Pravnog Fakulteta u Zagrebu, 2008, Vol. 58, número 1-2, pp. 50 e 51.
333
Cf. PROSHANTO K. MUKHERJEE e ABHINAYAN BASU BAL, A Legal and Economic Analysis of the Volume
Contract under the Rotterdam Rules: Selected Issues in Perspective, disponível em
http://www.rotterdamrules2009.com/cms/uploads/Def.%20tekst%20Abhinayan%20Basu%20Bal%20-
%20Volume%20Contract%20Final.pdf, cit., p. 4.
334
Ou alguma das pessoas mencionadas no artigo 18.º das RR, como partes executantes, o capitão do navio
ou funcionários do transportador.
99
transportador previstas na Convenção, mas pode convencionar-se o seu aumento. Já em
relação ao carregador, não é possível excluir, limitar nem ampliar as suas obrigações ou
responsabilidade, o que denota uma maior tutela atento o menor poder negocial de que
normalmente dispõem335.
335
A temática da liberdade contratual esteve fortemente presente durante a discussão nos trabalhos
preparatórios das RR. Pela primeira vez no direito dos transportes internacional inclui-se uma específica
norma de liberdade contratual para uma específica modalidade contratual (cf. ILLESCAS ORTIZ, “What
changes in internacional transport law after the Rotterdam Rules?”, Uniform Law Review Revue de Droit
Uniforme, 2009-4, Unidroit, p. 894). Nunca antes uma convenção internacional de direito dos transportes
tinha contemplado uma regra desta natureza, permitindo às partes o desvio a um regime legal imperativo a
respeito das obrigações e responsabilidades previstas para ambas as partes – e até, para quem esteja com
elas relacionado, como a parte executante marítima – do lado do transportador –, ou o destinatário das
mercadorias, do lado do carregador.
336
Para LYNCE DE FARIA, esta situação permite que o contrato de volume seja quase um outsider das RR,
dado o âmbito da liberdade contratual prevalecente sobre a maioria das disposições imperativas da
Convenção, mas permite, por outro lado, a sua evolução e aplicação ao transporte contentorizado por linha
regular, retornando, desta forma, à Convenção – cf. “As Regras de Roterdão”, cit., p. 658.
337
No direito português, sobre a temática geral da validade das cláusulas de limitação e de exclusão da
responsabilidade civil, vd., em especial, PINTO MONTEIRO, Cláusulas Limitativas e de Exclusão de
Responsabilidade Civil, Almedina 2003, que defende, no essencial, serem admissíveis quer cláusulas
limitativas quer de exclusão desde que a responsabilidade não seja devida a conduta dolosa. Afirma o autor,
em jeito de conclusão, o seguinte: “cremos que a necessidade de salvaguardar a exigibilidade do direito
100
A razão de ser da derrogação efetuada pelo artigo 80.º prende-se essencialmente
com o facto de este tipo de contratos serem (normalmente) celebrados entre
transportadores e grandes carregadores, com idêntico poder de negociação, como também
geralmente sucede nos fretamentos338-339.
Para que seja possível a derrogação das normas imperativas da Convenção é
necessário obedecer às condições enunciadas no artigo 80.º, n.º 2, das RR, a saber:
(i) que o contrato de volume mencione expressamente e de forma inequívoca
que essas cláusulas constituem derrogação da Convenção;
(ii) que o contrato de volume seja individualmente negociado ou refira, de
modo destacado, as cláusulas do contrato que constituam derrogações;
(iii) que o transportador tenha dado a oportunidade e informado devidamente
o carregador sobre a possibilidade de celebrar um contrato nos termos
previstos na Convenção sem qualquer derrogação340/341, e, por fim,
(iv) que a incorporação das cláusulas que constituam derrogação não opere por
remissão para outro documento, nem estejam incluídas num contrato de
adesão que não seja objeto de negociação entre as partes342.
de crédito e o sentido jurídico da obrigação civil, bem como a necessidade de ter em conta o princípio da
boa fé e o carácter preventivo e ético-sancionatório do instituto da responsabilidade civil e, em geral, o
respeito por valores de ordem pública, são razões que justificam amplamente a nulidade de cláusulas
limitativas e de exclusão de responsabilidade por danos resultantes de violações contratuais dolosas ou
gravemente culposas. Atitude diferente deverá merecer, parece-nos, uma exclusão ou limitação da
responsabilidade respeitante a danos causados por culpa leve, excepto se a sua invalidade se justificar, no
caso concreto, em atenção a princípios gerais de controlo da liberdade contratual: boa fé, ordem pública,
bons costumes, proibição de negócios usurários, etc.” (p. 245).
338
Cf. FRANCESCO BERLINGIERI, “An analysis of two recent commentaries of the Rotterdam Rules”, cit..
339
Referem THEODORA NIKAKI e BARIS SOYE, “A New Internacional Regime for Carriage of Goods by
Sea: Contemporary, Certain, Inclusive AND efficient or Just Another One for the Shelves?”, Berkeley
Journal of International Law, Vol. 30, 2012, pp. 29-30, que com esta solução as RR reconheceram que,
nos dias que correm, os carregadores nem sempre são a parte mais fraca num contrato de transporte – como
sucede nos contratos de volume – não existindo a necessidade, nestes casos, de estabelecer um regime
imperativo, dado que os carregadores têm, aqui, condições de negociar os termos contratuais com um poder
negocial idêntico ao dos transportadores.
340
Cf. SÁNCHEZ CALERO, El Contrato de Transporte, cit., p. 633, refere que a possibilidade de derrogação
é apenas isso – uma possibilidade, dado que a mesma não exclui que o contrato de volume possa reger-se
inteiramente pelo regime das RR, o que deve ser informado ao carregador para que este tenha a
oportunidade de celebrar um contrato sem qualquer derrogação, constituindo essa informação pressuposto
da existência de um regime especial para o contrato de volume.
341
ALFREDO CALDERALE, “Il contratto di volume”, cit., p. 137, considera que esta condição constitui um
instrumento para evitar o recurso abusivo ao contrato de volume.
342
Cf. SÁNCHEZ CALERO, El Contrato de Transporte, cit., p. 633. Como afirmam THEODORA NIKAKI e
BARIS SOYE, “A New Internacional Regime for Carriage of Goods by Sea”, cit., p. 31, a interpretação destas
condições de derrogação poderá ser fonte de litigiosidade nos tribunais.
101
Uma questão que se coloca a respeito das derrogações do regime imperativo das
RR é a de saber se a sua eficácia se estende perante terceiros, tema que assume uma
grande importância no tema do efeito probatório do documento de transporte ou
documento eletrónico de transporte perante terceiros, como vimos. Esta discussão esteve
também presente no grupo de trabalho da Convenção, tendo-se decidido que tal efeito
vinculativo está sujeito ao cumprimento de determinadas condições343, de que se ocupa o
artigo 80.º, n.º 5, das RR.
O preceito faz depender a eficácia das normas derrogatórias (válidas por
cumprirem os requisitos a que acabámos de aludir) perante terceiros do preenchimento
dos seguintes requisitos cumulativos:
(i) que o terceiro tenha recebido informação expressa relativamente ao facto
de o contrato de volume em causa constituir uma derrogação da
Convenção;
(ii) que o terceiro tenha dado o seu expresso consentimento a tais cláusulas
derrogatórias; e,
(iii) sendo ainda necessário que tal consentimento não tenha sido expresso
apenas numa lista pública de serviços do transportador, num documento
de transporte ou num documento eletrónico de transporte344.
343
Cf. FRANCESCO BERLINGIERI, “The Unicitral Draft Convention” cit., pp. 53 e 54.
344
Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, “Introdução às Regras de Roterdão...”, cit., p. 52 e ALFREDO
CALDERALE, “Il contratto di volume”, cit., p. 139.
345
Cf. THEODORA NIKAKI e BARIS SOYE, “A New Internacional Regime for Carriage of Goods by Sea”,
cit., p. 31.
346
Cf. ALFREDO CALDERALE, “Il contratto di volume” cit., p. 137.
102
de outros autores que consideram que esta exigência vai, na prática, acabar por ter um
papel marginal no sentido de apenas vir a aplicar-se aos terceiros que detenham já uma
relação pré-existente e continuada com os carregadores. Parece-nos que a efetiva proteção
de terceiros – em que se funda a ratio da norma – não pode ficar comprometida no sentido
de se exigir o seu consentimento aquando das negociações do contrato, pois tal iria
efetivamente levar a que só aqueles que já tivessem uma relação pré-existente com os
carregadores pudessem nesse momento fazê-lo.
Se atentarmos bem, a preocupação do legislador internacional neste particular não
é, afinal, muito distinta daquilo que já sucede nas Convenções atualmente vigentes.
Também na CB 1924 e nas Regras de Hamburgo se prevê um regime de proteção do
terceiro portador quando, em virtude da emissão de uma carta-partida, seja emitido um
conhecimento de carga e este circule. Nestes casos, as disposições da carta-partida não se
impõem ao terceiro portador do título, ao qual se aplicam as normas da Convenção. O
objetivo é, quer nas RR quer na CB 1924 e nas Regras de Hamburgo, tutelar os terceiros
contra estipulações contratuais que os possam desproteger em relação ao previsto nas
Convenções. Se o terceiro não esteve presente nas negociações, mas é, afinal, quem tem
o direito à entrega das mercadorias parece, de facto, serem de prevalecer os seus
interesses.
103
informação, instruções e documentos relativos à mercadoria, estando obrigado, desde
logo e em especial, a informar o transportador se as mercadorias transportadas são
perigosas, tal como estabelecido no artigo 32.º das RR – artigos 28.º e 31.º das RR.
Terceiro, não podem derrogar-se as normas sobre a responsabilidade pelo
incumprimento das obrigações (absolutamente imperativas) acabadas de referir347, nem a
norma que prevê a perda do benefício da limitação da responsabilidade previsto no artigo
59.º das RR por ato ou omissão previsto no artigo 61.º da Convenção, isto é, por atos
dolosos ou com negligência grosseira/culpa grave348.
347
Cf. ANASTASIYA KOZUBOVSKAYA-PELLE, “Le contrat de volume” cit., p. 181.
348
A preclusão da limitação responsabilidade do transportador nos casos de dolo ou culpa grave é a solução
maioritariamente defendida pela doutrina também no que respeita às convenções internacionais em vigor
para o transporte internacional de mercadorias, como a CB 1924 ou as Regras de Hamburgo. Neste sentido,
vd., na doutrina portuguesa, RICARDO BERNARDES, “A conduta do transportador impeditiva da limitação
da responsabilidade no direito marítimo”, Temas de Direito dos Transportes, Vol. II, Almedina, 2013, pp.
444 e ss.., que faz um excurso percorrendo as várias convenções internacionais sobre esta matéria, inclusive
as RR, bem como à luz do direito interno. Sobre a preclusão do limite indemnizatório no seio da CB 1924
vd. HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do rransportador na Convenção de Bruxelas
de 1924, cit., pp. 124-127; COSTEIRA DA ROCHA, “Limitação da responsabilidade do transportador marítimo
de mercadorias”, cit., pp. 286 e ss.., JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Limitação de Responsabilidade por
Créditos Marítimos, Almedina, 2010, pp. 90-94, que alude a um “comportamento preclusivo da limitação
de responsabilidade”. Na doutrina estrangeira, vd., v.g., RODIÉRE, Traité Générál de Droit Maritime,
Affrètements & Transports, II, Dalloz, 1968, p. 422.
349
MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA e GERTJAN VAN DER ZIEL, The Rotterdam Rules, cit., p. 238,
referem, neste contexto, que o regime probatório do documento de transporte pode ser derrogado pelas
partes num contrato de volume, desde que cumpridas as condições de derrogação descritas (“Except in the
volume contract context the parties may not restrict the evidentiary effect established in article 41 for a
documento of record. But the parties are free to give a stronger evidentiary effect to the contract particulars
in a documento r record”). Como vimos, este regime probatório anda de “mãos dadas” com o regime das
reservas.
104
destinatário das mercadorias), só produzindo efeitos perante estes
mediante a verificação das condições supra expostas;
(iii) as partes não podem, porém, afastar o regime da perda do benefício da
limitação da responsabilidade em caso de atos dolosos ou culpa grave que
digam respeito à aposição ou não aposição de reservas i.e, se a aposição
ou não aposição de reservas, consoante o caso, consubstanciar uma
conduta ilícita e culposa, praticada com dolo ou culpa grave, e essa atuação
ilícita e culposa causar danos a um terceiro (v.g. destinatário das
mercadorias ou legítimo portador do título), e mesmo que o terceiro tenha
aceite uma expressa derrogação nas condições supra expostas, em caso
algum o transportador pode invocar o direito à limitação da
responsabilidade (ainda que se tenha convencionado o contrário e o
terceiro tenha aceitado). Esta é, pois, uma norma absolutamente imperativa
em nome de exigências de ordem pública e de boa fé.
2. Transporte rodoviário
350
A CMR foi assinada em maio de 1956, em Genebra, e aprovada em Portugal pelo DL n.º 46 235, de 18
de março de 1965, que entrou em vigor em dezembro de 1969, tendo sido objeto de alteração através do
Protocolo de Emenda, aprovado pelo Decreto n.º 28/88, de 6 de setembro. Esta Convenção aplica-se a todos
os contratos de transporte de mercadorias por estrada a título oneroso por meio de veículos, quando o lugar
do carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto, tais como são indicados no contrato, estão
situados em dois países diferentes, sendo um destes, pelo menos, país contratante e independentemente do
domicílio e nacionalidade das partes.
351
Este diploma estabelece, assim, o regime jurídico do contrato de transporte rodoviário nacional de
mercadorias, e aplica-se aos contratos de transporte rodoviário nacional de mercadorias, celebrado entre
transportador e expedidor, nos termos do qual o primeiro se obriga a deslocar mercadorias, por meio de
veículos rodoviários, entre locais situados no território nacional e a entregá-las ao destinatário.
352
Pontualmente, iremos identificar as diferenças existentes, caso se justifique.
105
No transporte rodoviário, as reservas (à partida) podem ser definidas como
observações apostas pelo transportador na declaração de expedição, nas quais o
transportador põe em crise as menções do carregador atinentes ao número, marcas e
número de volumes, ou ainda o bom estado aparente da carga e/ou da mercadoria353.
Entre outras, a declaração de expedição deve conter, nos termos da CMR, a
indicação do número de volumes, marcas especiais e números, peso bruto da mercadoria
ou quantidade expressa de outro modo354. Quanto ao transporte rodoviário interno, o DL
n.º 239/2003 refere-se, de forma idêntica, à “denominação da mercadoria e tipo de
embalagem” e ao “peso bruto da mercadoria, número de volumes ou quantidade expressa
de outro modo”355.
O dever previsto na al. a) cessa apenas se o transportador não tiver meios razoáveis
de verificar a exatidão dessas indicações mas, neste caso, inscreverá na declaração de
expedição reservas que devem ser fundamentadas356. Do mesmo modo, deverá
fundamentar todas as reservas que fizer acerca do estado aparente da mercadoria e
da sua embalagem357.
Em termos semelhantes, embora com algumas diferenças de redação, o artigo 9.º
do DL n.º 239/2003 referente ao transporte interno (com a epígrafe “reservas do
transportador”) prevê expressamente que o transportador pode formular reservas se, no
momento da receção da mercadoria, constatar que esta ou a embalagem apresentam
353
Esta é a noção que nos dá CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, cit., pp. 132-133 e que,
aqui, seguimos.
354
Cf. artigo 6.º da CMR.
355
Cf. artigo 4.º, n.º 1, do DL n.º 239/2003.
356
Cf. artigo 8.º, n.º 2, da CMR.
357
Cf. artigo 8.º, n.º 2, da CMR.
106
defeito aparente, bem como quando não tiver meios razoáveis de verificar a exatidão das
indicações constantes da guia de transporte.
Como nota CASTELLO-BRANCO BASTOS, em qualquer dos casos, as reservas
haverão de ser fundamentadas, competindo ao transportador oferecer as causas de
impossibilidade de verificação358.
Nos termos da CMR, as reservas formuladas pelo transportador não obrigam o
expedidor se este as não tiver aceitado expressamente na declaração de expedição (artigo
8.º, n.º 2). Em termos algo distintos, para o transporte interno prevê-se que as reservas do
transportador são descritas na guia de transporte e carecem de aceitação expressa do
expedidor (artigo 9.º, n.º 2, do DL n.º 239/2003).
O expedidor tem, ainda, o direito de exigir que o transportador verifique o peso
bruto da mercadoria ou sua quantidade expressa de outro modo, bem como exigir a
verificação do conteúdo dos volumes, devendo o resultado dessa verificação ser
mencionado no documento de transporte359.
Quer ao abrigo da CMR quer ao abrigo do DL n.º 239/2003 o transportador pode,
assim, formular reservas relativas:
(i) ao estado e acondicionamento das mercadorias;
(ii) decorrentes da impossibilidade de meios para verificar a exatidão das
indicações da declaração de expedição acerca do número de volumes, marcas
e números, bem como o estado e acondicionamento da mercadoria e da sua
embalagem.
358
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, cit., p. 133.
359
Cf. artigos 8.º, n.º 3, da CMR e 5.º, n.º 1, do DL n.º 239/2003.
107
Mas o expedidor também não fica imune: o expedidor é responsável para com o
transportador pelos danos causados por defeito da mercadoria, a não ser que o
transportador, sendo o defeito aparente ou tendo conhecimento dele no momento
em que recebeu a mercadoria, não tenha feito as devidas reservas a seu respeito360.
360
Cf. artigos 10.º da CMR e 16.º do DL n.º 239/2003.
361
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, cit., p. 133.
362
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, cit., p. 133.
363
Cf. artigos 9.º, n.º 2, 1ª parte, da CMR e 9.º, n.º 3, 1ª parte do DL n.º 239/2003.
364
Cf. artigos 9.º, n.º 2, 2ª parte, da CMR e 9.º, n.º 3, 2ª parte do DL n.º 239/2003. Esta presunção, em rigor,
não é distinta da primeira a da veracidade da declaração de expedição, pois esta contém estas indicações.
365
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, cit., p. 133.
366
Proc. 587/11.2TBPMS.C1.
108
Em recente Ac. do STJ, discutiu-se também uma situação em que tinha sido
celebrado um contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, tendo sido
emitida a declaração de expedição com a identificação da natureza da mercadoria, que
continha, além disso, as indicações especificadas no artigo 6.º da CMR, designadamente
quanto à denominação corrente da natureza da mercadoria (no caso material informático),
nos termos do seu n.º 1, alínea f). Nesse caso, como referido no Ac., o transportador não
havia indicado qualquer reserva na declaração de expedição, quando podia, havendo
utilidade nisso, “presumindo-se o conhecimento do transportador acerca da natureza da
mercadoria, do seu bom estado aparente e da sua quantidade”367.
Note-se que as presunções operam caso o transportador tenha ou não cumprido o
seu dever de verificação: o que sucede é que o transportador, não fazendo menção aos
defeitos das mercadorias caso os tenha detetado ou não apondo reservas perde uma
oportunidade para salvaguardar a sua posição368. Com efeito, o transportador, em
princípio369, pode afastar a presunção relativa ao bom estado aparente da mercadoria e da
embalagem, bem como aquela relativa ao número de volumes, às marcas e aos números,
cumprindo o “ónus” de formulação de reservas, sempre que estas se justifiquem370.
Mas essas reservas, segundo CASTELLO-BRANCO BASTOS, para serem
admissíveis, deverão ser “regulares”, isto é, razoável e suficientemente precisas e
fundamentadas371.
Para além das reservas à partida, a CMR também contém uma previsão específica
sobre as reservas à chegada, no seu artigo 30.º. De acordo com o n.º 1 deste artigo:
(i) se o destinatário receber a mercadoria sem verificar contraditoriamente o
seu estado com o transportador, ou sem ter formulado reservas a este que
indiquem a natureza geral da perda ou avaria, o mais tardar no momento
da entrega se se tratar de perdas ou avarias aparentes, ou dentro de sete
367
Cf. Ac. do STJ de 06-04-2017 (Rel. OLINDO GERALDES), Proc. 1046/13.4TBVCD.P1.S1.
368
Cf. MALCOM CLARKE e DAVID YATES, Contracts of carriage by land and air, London Singapore, 2004,
p. 12.
369
Em princípio porque, como veremos adiante quando tentarmos fazer uma construção da dogmática
comum das reservas, existirão situações em que a ordem pública e a boa fé a isso se oporão, i.e., há situações
em que a presunção terá de considerar-se iure et de iure, sob pena de comprometimento destes princípios.
370
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, cit., p. 134. Adiante veremos se se tratará
sempre de um ónus, no sentido técnico-jurídico, ou se poderá estar em causa um verdadeiro dever.
371
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, cit., p. 134.
109
dias a contar da entrega, não incluindo domingos e dias feriados, quando
se tratar de perdas ou avarias não aparentes, presumir-se-á, até prova em
contrário, que a mercadoria foi recebida no estado descrito na declaração
de expedição;
(ii) as reservas indicadas acima devem ser feitas por escrito quando se tratar
de perdas ou avarias não aparentes.
372
O prazo é, portanto, alargado em relação ao previsto na CMR, que prevê sete dias.
110
aparentes e se o destinatário tiver apresentado ao transportador reservas por escrito dentro
dos sete dias, domingos e dias feriados não incluídos, a contar dessa verificação.
Prevê-se, aqui, também uma presunção ilidível para o caso de o destinatário ter
verificado contraditoriamente o estado da mercadoria de que a mercadoria foi recebida
nos termos do resultado dessa verificação, só se admitindo prova em contrário se,
cumulativamente, se verificarem as seguintes condições: (i) se tratarem de avarias não
aparentes; e (ii) o destinatário tiver apresentado reservas ao transportador por escrito no
prazo de sete dias, domingos, e dias feriados não incluídos, a contar dessa verificação.
Note-se ainda que, para efeitos de verificação da mercadoria, o transportador e o
destinatário devem colaborar reciprocamente no sentido de conceder um ao outro todas
as facilidades razoáveis para o efeito (artigos 30.º, n.º 5, da CMR e 12.º, n.º 5, do DL n.º
239/2003).
3. Transporte aéreo
373
Esta convenção foi assinada em Varsóvia em 12 de outubro de 1929, e foi modificada pelo Protocolo de
Haia, assinado em Haia em 28 de setembro de 1955, e alterada pelo Protocolo n.º 4 de Montreal de 1975.
A CV 1929 foi aprovada por Portugal, para ratificação ou adesão, pelo DL n.º 26706, de 20 de junho de
1936, tendo aderido à mesma ao depositar o respetivo instrumento de adesão em 20 de março de 1947 (pelo
Aviso n.º 185, da I Série do DR, de 10 de agosto de 1948. Alude-se, neste contexto, ao denominado “Sistema
de Varsóvia” para designar este corpo de normas.
374
Esta Convenção entrou em vigor na ordem jurídica internacional a 4 de novembro de 2003. Como refere
NEVES ALMEIDA, Do contrato de transporte aéreo e da responsabilidade civil do transportador aéreo, cit.,
pp. 78-79, a CM 1999 “procurou condensar, num único texto e de forma sistematizada, as principais
modificações aos longo dos anos introduzidas à Convenção de Varsóvia de 1929 e seus vários instrumentos
conexos (“Sistema de Varsóvia”).” Esta Convenção visou modernizar o “Sistema de Varsóvia” e introduziu
modificações no regime de responsabilidade do transportador aéreo, “mantendo, porém, traços de
continuidade em certos aspectos” (ibidem, p. 579).
111
Sendo ambas as Convenções aplicáveis ao transporte aéreo internacional de
mercadorias, há que clarificar o seu âmbito de aplicação quando, num mesmo país (como
sucede em Portugal), estejam ambas em vigor. Seguindo, neste ponto, a interpretação de
NEVES DE ALMEIDA, dir-se-á que “[…] embora a entrada em vigor da Convenção de
Montreal de 1999 não possa ter como efeito automático a substituição ou revogação da
Convenção de Varsóvia e a sua imediata erradicação do plano da regulamentação
internacional, nomeadamente, quanto à sua aplicação entre Estados não contratantes do
texto de Montreal de 1999 sob pena disso não fazer qualquer sentido no domínio das
relações internacionais entre Estados soberanos e vir criar o absurdo dum vazio
legislativo na matéria , sempre se dirá que quando, em função dos Estados envolvidos,
esteja em causa o concurso de aplicação dos textos constantes do Sistema de Varsóvia e
o texto modernizado e consolidado estabelecido em Montreal em 1999, será este último
que deverá prevalecer na sua aplicação.”375
Esta é, de resto, a solução que resulta expressamente do artigo 55.º da CM 1999
que, sob a epígrafe “Relação com outros instrumentos da Convenção de Varsóvia”,
prescreve que que a mesma prevalece sobre quaisquer regras aplicáveis ao transporte
aéreo internacional entre Estados Partes na CM 1999 que sejam igualmente Estados
Partes na CV 1929 bem como dos respetivos Protocolos modificativos ou adicionais.
O contrato de transporte aéreo de mercadorias envolve, normalmente, três
sujeitos: (i) expedidor; (ii) transportador; (iii) destinatário ou consignatário376.
Caberá ao expedidor a expedição da mercadoria e a sua entrega ao transportador
que, por sua vez, se obrigará a deslocar essas mercadorias e a entregá-las ao destinatário
este é aquele a quem a mercadoria é endereçada tendo, assim, o direito à entrega das
mercadorias, além de poder exigir ao transportador, desde a chegada da mercadoria ao
aeroporto de destino, a entrega da carta de porte aéreo bem como a entrega da mercadora
contra o pagamento do montante dos créditos que houver por saldar mediante a execução
das condições de transporte indicadas na guia de transporte377.
Neste tipo de contrato, o legislador não afirma expressamente a admissibilidade
de reservas à partida. No entanto, à semelhança dos outros instrumentos normativos e
375
Cf. NEVES ALMEIDA, Do contrato de transporte aéreo e da responsabilidade civil do transportador
aéreo, cit., pp. 78-79.
376
Cf. NEVES ALMEIDA, Do contrato de transporte aéreo e da responsabilidade civil do transportador
aéreo, cit., p. 286.
377
Cf. NEVES ALMEIDA, Do contrato de transporte aéreo e da responsabilidade civil do transportador
aéreo, cit., pp. 286-287. Vd., também, os artigos 5.º, n.º 1, 10.º e 13.º da CV 1929 e os artigos 7.º, n.º 1,
10.º e 13.º da CM 1999.
112
dadas as funções probatórias e de recibo desempenhada pela carta de porte aéreo, não
poderá negar-se que a mesma é também “apta” a que nela sejam apostas reservas pelo
transportador, desde logo porque nela deverão constar certas menções a que estão também
associados efeitos presuntivos.
Atualmente, a CV 1929, na sua versão mais recente tal como alterada pelos
sucessivos protocolos adicionais, prevê que a carta de porte aéreo e o recibo da
mercadoria devem conter a menção relativa ao peso das mercadorias (artigo 8.º, al. c)).
Esta é a única menção que, no que concerne às características das mercadorias, é
obrigatória quando seja aplicável aquela Convenção modificada pelos Protocolos.
Também à luz do sistema de Montreal indicação do peso constitui o único elemento
obrigatório relativamente às características das mercadorias378, de harmonia com a versão
mais atual da CV 1929.
No entanto, quando seja aplicável a versão originária da CV 1929, deve ainda
fazer-se menção (i) à natureza da mercadoria e (ii) ao número, forma de embalagem,
marcas particulares ou numeração de volumes379.
Quanto ao peso, quantidade, volume ou dimensões da mercadoria, esta menção
não é obrigatória quando seja aplicável a versão da CV alterada pelo Protocolo de Haia
de 1955, tendo o protocolo de Montreal adicional n.º 4 de 1975 passado apenas a incluir
a indicação do peso das mercadorias380.
Quanto à menção relativa ao estado aparente da mercadoria e da embalagem, esta
deixa de ser obrigatória quando seja aplicável a versão da Convenção de Varsóvia alterada
378
Cf. artigo 5.º, al. c), da CM 1999.
379
Estas menções não obrigatórias quando seja aplicável a CV 1929 alterada pelo Protocolo de Haia de
1955 e pelo Protocolo adicional n.º 4 de 1975. No entanto, como esclarece NEVES ALMEIDA, Do contrato
de transporte aéreo e da responsabilidade civil do transportador aéreo, cit., p. 290 (nota de rodapé 304),
continuou a prever-se e a estabelecer-se no teor do artigo 11.º, n.º 2, da Convenção que as indicações da
carta de porte aéreo relativas ao número de volumes e embalagem fazem fé até prova em contrário.
380
Cf. NEVES ALMEIDA, Do contrato de transporte aéreo e da responsabilidade civil do transportador
aéreo, cit., p. 290 (nota de rodapé 305). No entanto, como nota, continuou a prever-se e a estabelecer-se no
teor do artigo 11.º, n.º 2, da Convenção, alterada quer em 1955 quer pelos protocolos supra aludidos, que
(i) as indicações relativas ao peso e dimensões da mercadoria fazem fé até prova em contrário (ii) a
indicação relativa à quantidade da mercadoria não faz prova contra o transportador senão quando a
verificação foi por ele feita na presença do expedidor e anotada na respetiva guia de transporte.
113
quer na Haia pelo Protocolo de 1955, quer em Montreal pelo Protocolo adicional n.º 4 de
1975381.
Assim, para além da menção ao peso (que é obrigatória), a CV 1929 (na sua última
versão) e a CM 1999, referindo-se, ademais, quanto ao valor probatório da carta de porte
aéreo, às dimensões e embalagem desta, assim como às declarações relativas ao número
de volumes, bem como à quantidade, volume e estado da mercadoria, admitem, pelo
menos, que sejam apostas estas específicas menções neste documento de transporte, sob
pena de estes preceitos constituírem “letra morta”. O que parece resultar desta sistemática
é que estas, ao invés do peso, não são obrigatórias.
Mas, por outro lado, inscrevendo-se tais menções (não obrigatórias):
381
Esta menção deixa de ser obrigatória quando seja aplicável a versão da Convenção de Varsóvia alterada
quer na Haia pelo Protocolo de 1955, quer em Montreal pelo Protocolo adicional n.º 4 de 1975. Não
obstante, também com respeito a essa menção o artigo 11.º, n.º 2 da Convenção tal como recebido à luz
destas modificações, continuaria a fazer-lhe referência como um dos elementos possíveis a constar da carta
de porte aéreo transporte.
382
Cf. artigos 11.º, n.º 1, da CV 1929 e artigo 11.º, n.º 1, da CM 1999.
383
Cf. artigos 11.º, n.º 2, 1ª parte, da CV 1929 e artigo 11.º, n.º 2, 1ª parte, da CM 1999.
384
Cf. artigo 11.º, n.º 2, 2ª parte, da CM 1999.
114
(i) existirá necessariamente um efeito presuntivo (prima facie evidence)
relativamente às dimensões e embalagem da mercadoria, bem como ao
número de volumes;
(ii) existirá eventualmente um efeito presuntivo relativamente à quantidade,
volume e estado da mercadoria na medida em que estas menções só
fazem prova contra a transportadora se forem verificadas na presença do
expedidor e essa verificação anotada na carta de porte aéreo ou no recibo
da mercadoria, ou se se tratar de indicações relativas ao estado aparente da
mercadoria.
Acrescentam ainda estes regimes (em nosso entender de soberba importância para
a matéria das reservas), o seguinte:
(i) o expedidor é responsável pela exatidão das indicações e declarações
relativas à mercadoria inscritas por ele ou em seu nome no documento de
transporte (artigos 10.º, n.º 1, da CV 1929 e 10.º, n.º 1, da CM 1999);
(ii) o expedidor assume a responsabilidade por qualquer prejuízo sofrido pelo
transportador ou por qualquer outra pessoa em relação à qual o
transportador seja responsável, em consequência das indicações e
declarações irregulares, inexatas ou incompletas feitas por ele ou em seu
nome (artigos 10.º, n.º 2, da CV 1929 e 10.º, n.º 2, da CM 1999);
(iii) sem prejuízo do supra mencionado, o transportador assume a
responsabilidade por qualquer prejuízo sofrido pelo expedidor ou por
qualquer outra pessoa em relação à qual o expedidor seja responsável, em
consequência das indicações e declarações irregulares, inexatas ou
incompletas inscritas por ele ou em seu nome no documento de transporte
(artigos 10.º, n.º 3, da CV 1929 e 10.º, n.º 3, da CM 1999).
115
Desde logo porque se prevê que aquilo que vem descrito no documento de
transporte aéreo faz, em princípio, fé, até prova em contrário.
Além disso, quando se prevê que as declarações referentes à quantidade, volume
e estado da mercadoria não constituem meios de prova contra a transportadora (i.e., não
fazem fé contra esta), “salvo na medida em que tenham sido verificadas por esta em
presença do expedidor e essa verificação anotada na carta de porte aéreo ou no recibo
da mercadoria, ou se se tratar de indicações relativas ao estado aparente da
mercadoria”, está-se a admitir, implicitamente, que o transportador possa formular
reservas.
Com efeito (i) se houver uma verificação na presença do expedidor, o resultado
dessa verificação pode ser anotado na carta de porte aéreo (o que, na prática, significa que
poderão ser detetadas desconformidades e mencionadas essas desconformidades nesse
documento); (ii) por outro lado, admitindo-se indicações relativas ao estado aparente da
mercadoria, e podendo esse estado aparente ser um “mau estado”, então, também aqui, o
legislador está a admitir implicitamente estas reservas.
Ora, constituindo estas indicações presunções que podem operar em desfavor do
transportador, não se poderá negar a possibilidade de o mesmo formular reservas. É que,
relativamente ao resultado dessa verificação ou ao estado aparente da mercadoria,
naturalmente o transportador não será obrigado a mencionar dados que não correspondam
à realidade dos factos, sob pena de se chegar a resultados incomportáveis em violação do
princípio da boa fé, em especial do cumprimento do dever de informação no seio das
relações negociais, bem como de outros princípios de ordem pública.
A dogmática comum se tentará construir adiante sobre as reservas do
transportador aplicar-se-á, assim, também a esta específica modalidade de transporte.
116
(i) em primeiro lugar, o recebimento da mercadoria pelo destinatário sem
protesto (ou reclamação) nos prazos legalmente previstos para o efeito
constituirá presunção, ao abrigo destes instrumentos normativos, de que as
mercadorias foram entregues em bom estado e nos termos descritos no
documento de transporte385;
(ii) em segundo lugar, prevê-se um prazo de 14 dias a contar da entrega da
mercadoria/receção para, em caso de avaria/danos/deterioração das
mercadorias, o destinatário exercer esta reclamação386;
(iii) em terceiro lugar tal protesto/reclamação está sujeito a forma escrita e deve
ser expedido no prazo previsto no ponto anterior (14 dias)387;
(iv) por último, a falta de protesto ou reclamação tem como efeito a preclusão
do direito de ação do destinatário da mercadoria contra o transportador,
salvo em caso de fraude por este cometida388.
385
Cf. artigos 26.º, n.º 1, da CV 1929 e 31.º, n.º 1, da CM 1999.
386
Cf. artigos 26.º, n.º 2, da CV 1919 e 31.º, n.º 2, da CM 1999.
387
Cf. artigos 26.º, n.º 3, da CV 1929 e 31.º, n.º 3, da CM 1999.
388
Cf. artigos 26.º, n.º 4, da CV 1929 e 31.º, n.º 4, da CM 1999.
389
Esta solução é aplaudida por CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, cit., pp. 345-346,
pois, estabelecendo-se uniformemente prazos para os casos de vícios aparentes e vícios ocultos não se
colocam os problemas de distinção entre ambos (“Bem se compreende que assim seja e que se preveja um
prazo uniforme para ambos os tipos de avarias, se se considerar as circunstâncias que envolvem o
levantamento das coisas transportadas e, particularmente, o modo veloz como são retiradas as bagagens,
sem possibilidade de contra-verificação ou mesmo de verificação in loco”).
390
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, cit., p. 345.
117
Ora, de que serve o efeito presuntivo se o efeito preclusivo faz com que aquele
perca utilidade? O efeito presuntivo permitiria ainda a prova do destinatário em contrário,
embora tornasse a prova para este mais onerosa. O efeito preclusivo, ao invés,
determinaria a perda do exercício do direito de ação, abafando assim aquele efeito
presuntivo.
Parece, ainda assim, que se pode atribuir um efeito útil ao efeito presuntivo: como
o efeito preclusivo do direito de ação não se verifica em caso de fraude do transportador,
então, nesta eventualidade, o destinatário terá ainda direito de ação, embora tenha contra
si aquela presunção. Esta é a única interpretação que, a nosso ver, se apresenta coerente
face à formulação daquelas disposições legais.
Em suma: estamos aqui perante um mecanismo que, na prática, se traduzirá na
caducidade do direito de ação especificamente aplicável às situações de falta de protesto
ou reclamação nos casos em que não haja fraude do transportador.
118
CAPÍTULO III DOGMÁTICA COMUM DAS RESERVAS
391
Cf. CARLOS MOTA PINTO, PINTO MONTEIRO e PAULO MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil,
Coimbra Editora, 4ª ed., 2012, pp. 413-414. PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil,
Almedina, 7ª ed., 2012, pp. 390-391, por sua vez, define declaração negocial como um comportamento
voluntário que se traduz numa manifestação de vontade com conteúdo negocial, feita no âmbito do negócio.
119
exterior de uma vontade392, muito embora essa exteriorização da vontade não seja uma
exteriorização de vontade negocial.
É, neste âmbito, equacionável a hipótese de a declaração consubstanciada na não
emissão de reservas (ou, pela positiva, na emissão de um documento de transporte
“limpo”, sem reservas) não corresponder à realidade dos factos. Neste particular,
afiguram-se duas hipóteses possíveis:
(i) o declarante tem consciência de que a declaração não corresponde à realidade
e tem o intuito de enganar o declaratário; ou
(ii) o declarante não tem consciência dessa divergência.
Ora, o CC, no artigo 295.º (com a epígrafe “actos jurídicos que não sejam
negócios jurídicos), estipula que aos atos não negociais são aplicáveis as disposições da
doutrina geral do negócio jurídico, “na medida em que a analogia das situações o
justifique”.
Nesta medida, poderá colocar-se (mormente quando esteja em causa um
transporte interno) a questão de saber se merece aplicação analógica o regime dos vícios
e erro dos negócios jurídicos constantes do CC, em especial aos regimes da declaração
viciada de reserva mental (artigo 244.º, n.º 1 do CC) ou de erro (artigo 247.º do CC).
Quando haja reserva mental, diz o legislador que a reserva não prejudica a
validade da declaração, exceto se for conhecida do declaratário: neste caso, a reserva tem
os efeitos da simulação (artigo 244.º, n.º 2 do CC) 393. Uma vez que, por regra, a reserva
não prejudica a validade da declaração, vigora, neste âmbito, o princípio da irrelevância
da reserva mental, “postulado inderrogável sobre o qual repousa a segurança do
392
Cf. CARLOS MOTA PINTO, PINTO MONTEIRO e PAULO MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit.,
p. 358, que dá como exemplos a interpelação do devedor, a gestão de negócios, a notificação da cessão de
créditos, a reclamação por vícios (artigo 471.º do CCom.), e, ainda, a fixação do prazo referido no artigo
808.º do CC. Como prosseguem estes autores, estes atos (quase-negociais) distinguem-se dos atos reais ou
operações jurídicas que se traduzem na efetivação ou realização de um resultado material ou factual a
que a lei liga determinados efeitos jurídicos (v.g. acessão industrial, ocupação de animais ou coisas móveis,
da aquisição ou perda de posse por ato material).
393
Em comentário ao anteprojeto do CC, RUI DE ALARCÃO, “Reserva mental e declarações não sérias.
Declarações expressas e declarações tácitas – o silêncio”, Separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º
86, 1959, p. 6, alude ao conceito de reserva no sentido de, nele, estar subjacente a intenção do declarante
em ocultar do declaratário a vontade real, considerando que o caráter secreto da reserva mental só tem de
se verificar relativamente à contraparte ou, em geral, ao declaratário, e não já relativamente a terceiros. A
redação do anteprojeto, sob a epígrafe “reserva mental”, era a seguinte: “A declaração negocial não é nula
pelo simples facto de o declarante a ter emitido sob a reserva, que foi seu intento ocultar do declaratário,
de não querer aquilo que declarou. A declaração será, todavia, nula se o declaratário tiver conhecido a
reserva”.
120
comércio jurídico e a confiança na palavra dada”, princípio este que cede quando o
declaratário haja tido conhecimento da reserva sob que foi emitida a declaração394.
Quando exista erro na declaração consubstanciado na não correspondência com
a vontade real declarada a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário
conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre
que incidiu o erro (artigo 247.º do CC).
É certo que os quase negócios jurídicos ou atos jurídicos quase-negociais
“traduzem-se na manifestação exterior de uma vontade, e existe quase sempre uma
coincidência e até uma intenção de relevância jurídica da vontade exteriorizada”, pelo
que se defende que, neste âmbito, aplicar-se-ão, em regra, as normas sobre capacidade,
receção da declaração pelo destinatário, interpretação, vícios da vontade e representação
(contrariamente ao que sucede com as operações jurídicas, atos materiais ou atos
reais)395
No entanto, sendo esta regra delineada genericamente, terá sempre de ser
averiguado in concreto se, por um lado, a analogia das situações o permite e, por outro
lado, se existe regulamentação especial sobre algum dos pontos referidos396.
Transpondo as considerações precedentes para as reservas ou falta delas no seio
de um contrato de transporte, e muito embora se possa entender que a analogia das
situações existe está em causa uma declaração dirigida a um determinado declaratário
e que descreve o as mercadorias objeto do contrato que assumem uma grande relevância
no seio negocial , o certo é que, como amplamente exposto, existe regulamentação
especial que regula as reservas (expressamente ou implicitamente), de onde é possível
extrapolar os seus requisitos de validade os seus efeitos, associados à verificação ou
preclusão de certas presunções legais.
2. Forma e conteúdo
394
Neste sentido, em comentário ao anteprojeto, vd. RUI DE ALARCÃO, “Reserva mental e declarações não
sérias. Declarações expressas e declarações tácitas – o silêncio”, Separata do Boletim do Ministério da
Justiça, n.º 86, 1959, p. 7.
395
Cf. CARLOS MOTA PINTO, PINTO MONTEIRO e PAULO MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit.,
p. 418.
396
Cf. CARLOS MOTA PINTO, PINTO MONTEIRO e PAULO MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit.,
p. 419.
121
transportador e o estado em que ele as recebeu bem como os próprios termos ou condições
do contrato de transporte. Decorre daqui uma conclusão lógica: a sua forma é escrita.
Uma reserva “verbal” é destituída de qualquer efeito: as reservas à partida estão, pela
sua própria natureza, sujeitas a forma escrita a inscrição no respetivo documento de
transporte.
Daqui decorre, também, que estas reservas terão de consistir numa “ação”
(positiva). A própria noção de reservas é, a nosso ver, incompatível com a admissibilidade
de reservas “por omissão”. Se se admitisse a validade das reservas de recusa (por
omissão), então a inferência lógica necessária seria a não verificação do efeito presuntivo
associado aos efeitos das reservas (validamente apostas). Ora, tal não é, pelos argumentos
expendidos, admissível.
As reservas do destinatário deverão, em termos semelhantes, ser escritas (não têm
de ser apostas no documento de transporte, bastando que seja por escrito). A exigência
escrita imposta pelos vários regimes percebe-se pelo facto de as mesmas terem o alcance
de afastar o efeito presuntivo de que as mercadorias chegaram ao destino conforme
descrito no documento de transporte. Ora, se as mesmas servem para afastar este efeito
presuntivo que está associado à “letra” do documento de transporte , logicamente que
a “destruição” desse efeito só operará, também, por escrito. A lógica probatória dos
documentos de transporte assim o exige. Nestes termos, mesmo que um determinado
regime não o preveja expressamente, esta forma escrita decorre da própria natureza e
alcance destas reservas, devendo esse regime ser interpretado desta forma.
Quanto ao seu conteúdo as reservas (do transportador) podem ser mais ou menos
específicas (ou mais ou menos genéricas, conforme se preferir). Não rejeitamos, à partida
e por princípio, a admissibilidade de quaisquer reservas. I.e., na posição por nós
defendida, entendemos que poderá haver fundamento para vários tipos de reservas:
específicas, genéricas, sobre as menções declaradas pelo carregador/expedidor e sobre o
estado e condição aparentes das mercadorias. Todas elas poderão ser, em teoria,
validamente apostas desde que verificados os correspondentes fundamentos in concreto.
As reservas do destinatário, por sua vez, também devem ser claras no sentido de enunciar
as desconformidades detetadas por via do exame comparativo com o documento de
transporte. Numa palavra: em ambos os casos, deverá precisar-se tanto quanto possível
as desconformidades ou “reparos” existentes.
122
3. Validade das reservas
397
Cf. COSTEIRA DA ROCHA, O contrato de transporte de mercadorias, cit., p. 131.
398
Neste sentido, vd. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, cit., p. 136, defendendo que o
afastamento da presunção do artigo 9.º, n.º 2 dependerá do caráter fundamentado das reservas (seja essa
fundamentação ad hoc, ou resulte ela in re ipsa).
399
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, cit., pp. 135-136.
123
documento de transporte para que as reservas sejam válidas: o transportador pode provar
por outros meios, sem que seja por via do documento de transporte, o motivo justificativo
e, neste caso, havendo reservas validamente apostas, as mesmas produzirão os seus
típicos efeitos.
Contition sine qua non é, isso sim, a existência, de per si, do motivo justificativo
pelo que, sendo este provado (por qualquer meio juridicamente possível) verificar-se-ão
os efeitos das reservas.
400
Cf., a respeito das RR, MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The
Rotterdam Rules, cit., 2010, p. 214.
401
Sendo que, naturalmente, nesta situação, as consequências jurídicas associadas, já se antevê, não podem
ter correspondência com as consequências das duas situações anteriores. Adiante será abordado
desenvolvidamente este ponto.
124
Quanto às reservas sobre o estado e condição aparentes das mercadorias, diferentemente,
é o transportador que assume o “controlo” sobre essa informação i.e., esta obrigação
baseia-se num exame próprio do transportador, e não na informação transmitida ou
fornecida pelo carregador/expedidor402.
Pode, porém, suceder que o transportador não disponha de meios razoáveis para
proceder a esta verificação403 que, repita-se, é o critério aferidor da
(in)admissibilidade/(in)validade de reservas.
Como tal, há que densificar o alcance do dever de verificação. As RR, como aludido
supra, aludem ao conceito de “inspeção externa razoável” para concretizar este dever.
Dito de outro modo, só é exigível ao transportador uma inspeção dessa natureza. Estas
considerações valem também para os restantes modos de transporte e, neste sentido,
podemos concluir, grosso modo, o seguinte quanto a este dever do transportador:
(i) uma inspeção externa razoável é aquela que tem em conta aspetos visuais, mas
não só, podendo também ser verificáveis outros aspetos mediante a apreensão
por outros sentidos, tais como cheiros e sons peculiares que permitem revelar
informação relevante sobre as mercadorias404;
(ii) uma inspeção externa razoável não exige que o transportador tenha de abrir
contentores para verificar as mercadorias405;
(iii) mesmo não tendo o transportador o dever de ir para além de uma inspeção
externa razoável, se optar por ir além disso tomando diligências adicionais de
verificação para além daquilo que lhe é exigível e se essas diligências
adicionais (inspeção adicional) revelarem algo a respeito do estado e condição
aparentes das mercadorias, deve incluir essa informação no documento de
transporte406.
402
Cf., a respeito das RR, MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The
Rotterdam Rules, cit., p. 215.
403
Cf. WANDA D’ALESSIO, Diritto dei Trasporti, Giuffrè Editore, 2003, p. 258.
404
Cf., a respeito das RR, MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The
Rotterdam Rules, cit., p. 216.
405
Cf., a respeito das RR, MICHAEL F. STURLEY, TOMOTAKA FUGITA, GERTJAN VAN DER ZIEL, The
Rotterdam Rules, cit., p. 216.
406
Esta é a solução que resulta expressamente do artigo 36.º, n.º 4, al. b) das RR e que se deve aplicar ao
abrigo de qualquer regime do transporte de mercadorias, porque constitui uma decorrência da boa fé (dever
de informação).
125
que é a deslocação das mercadorias de forma eficiente e que não comprometa a fluidez
do comércio407.
Em segundo lugar, deverá entender-se que, de entre os meios compatíveis com a
finalidade do transporte, apenas são exigíveis aqueles que não acarretem custos
excessivos para a operação de transporte, atendendo às circunstâncias normais e,
designadamente, aos usos do comércio. Fatores como o custo ou o tempo despendido
deverão, em particular, ser tidos em conta para a aferição daquilo que constitui ou não um
meio razoável.
Neste particular, surge também à colação o conceito de impossibilidade de
controlo associada à falta de meios razoáveis para o transportador proceder à verificação
ou a uma inspeção das mercadorias. A impossibilidade de controlo pode ser,
fundamentalmente, entendida em dois sentidos: impossibilidade física ou material e
impossibilidade comercial408. A primeira aceção está ligada, como o próprio nome indica,
à falta de meios físicos ou materiais para proceder à inspeção ou verificação. A segunda
é já uma aceção mais jurídica associada àquilo que é exigível ao transportador não
obstante o mesmo poder dispor de meios físicos.
Sem prejuízo de se dever fazer uma conjugação de ambos os conceitos,
entendemos que está fundamentalmente em causa uma impossibilidade comercial: falta
de meios que razoavelmente sejam exigíveis ao transportador naquele caso concreto. Com
efeito, como referido por YVES TASSEL a respeito da posição da jurisprudência francesa,
o transportador não pode concentrar todos os seus esforços e meios a todo o tempo no
exercício da sua função de controlo409. Na mesma linha de pensamento, CASTELLO-
BRANCO BASTOS alude, no transporte rodoviário, ao conceito de falta de meios razoáveis
como aqueles meios que não se revelem, v.g., excessivamente demorados ou
dispendiosos410.
Deve, aqui, fazer-se um juízo de proporcionalidade e, mais ainda, um apelo ao
conceito de bonus pater familias. Isto é, haverá que verificar se um transportador
diligente, colocado naquela situação em concreto, teria meios razoáveis ao seu dispor para
407
Vd., neste sentido, a respeito do transporte rodoviário, ADRIANO MARTELETO GODINHO, “A
responsabilidade do transportador rodoviário de mercadorias”, Temas de Direito dos Transportes, Vol. I,
Almedina, p. 128, que alude a uma deslocação ágil e eficiente das mercadorias.
408
Aludindo expressamente estes conceitos com base na jurisprudência francesa, vd. YVES TASSEL, “Les
reformes apportees par les Regles de Hambourg au regime juridique du connaissement”, cit., p. 298.
409
Cf. YVES TASSEL, “Les reformes apportees par les Regles de Hambourg au regime juridique du
connaissement”, cit., p. 298.
410
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos transportes, cit., p. 133.
126
verificar as mercadorias em causa ou se, pelo contrário, tal verificação exigiria um esforço
irrazoável ou desmedido atendendo às circunstâncias do caso concreto.
No fundo, está aqui em causa aquilo que é possível apreender pelos sentidos
externamente e razoavelmente i.e., sem custos desmesurados ou excessivos para o
transportador411.
O defeito pode ainda ser entendido num sentido objetivo, subjetivo ou híbrido.
Deve, também, ter-se presente o conceito de desvio quanto à identidade, havendo,
neste campo, que subdistinguir entre (i) peius (o devedor realiza a prestação devida, mas
de forma defeituosa, o que origina um cumprimento defeituoso) e (ii) aliud (o devedor
realiza prestação diversa da devida, não existindo sequer qualquer tipo de cumprimento
nem defeituoso nem parcial)414. Sendo fácil de delimitar estas duas situações na teoria,
411
Neste sentido, pode concluir-se, no que concerne ao estado e condição aparentes da mercadoria, que está
em causa somente o que é discernível por meio de um exame externo e razoável, “so far as meets the eye”
cf., a respeito do transporte rodoviário, MALCOM CLARKE e DAVID YATES, Contracts of carriage by land
and air, cit., p. 14.
412
Cf. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso - em especial na compra e venda e na empreitada,
Almedina, 2015, p. 147.
413
Cf. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso, cit., pp. 196-197. Isto sem prejuízo de, como
afirmado por este autor, nalguns casos o desvio de quantidade, em si mesmo, poder afetar a qualidade
devida e, nesse sentido, o desvio de quantidade ser simultaneamente um desvio de qualidade.
414
Cf. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso, cit., p. 199.
127
por vezes na prática torna-se difícil delimitar fronteiras415. Em todo o caso, sempre haverá
que ter presente que “as qualidades, explícita ou implicitamente acordadas, integram-se
na prestação devida”416, razão pela qual não deverá existir, em termos de consequências
jurídicas, um tratamento mais severo para o aliud do que para o peius o que interessa,
repita-se, é verificar se existe um desvio à qualidade contratual, sendo que tal desvio, em
ambas as situações, representa uma desconformidade, sujeita ao mesmo regime417.
Por defeito oculto entende-se aquele que, sendo desconhecido do credor, pode ser
legitimamente ignorado, pois não era detetável através de um exame diligente i.e., o
defeito é oculto se, no momento da aceitação da coisa, está só em germe e os seus defeitos
não são percetíveis, porque se vêm a verificar em momento posterior418.
Ao invés, o defeito aparente é aquele que verificável mediante um exame
diligente, nomeadamente quando o mesmo se revela por elementos exteriores419.
Por último, o defeito conhecido é aquele que, como o próprio nome indica, é
conhecido pelo credor, independentemente de ser oculto ou aparente. É, na verdade,
possível que, mesmo sendo oculto, o defeito tenha chegado ao seu conhecimento v.g.,
através da contraparte ou de um terceiro, ou mesmo porque determinado bem foi
submetido a exame de perícia420. Para se tratar de um defeito conhecido, exigir-se-á,
ainda, como defendido por ROMANO MARTINEZ, que o defeito não tenha sido apenas
vagamente informado, tornando-se necessário que o credor tenha ficado ciente da
gravidade da situação421.
Um bom exame do transportador no sentido de vislumbrar ou não a existência de
defeitos nas mercadorias objeto do transporte é, muitas vezes, o que determinará, ou não,
a aposição de reservas.
Assim, se o defeito das mercadorias for oculto, o transportador não terá forma de
o saber e, assim, preencherá o documento de transporte como se a mercadoria lhe fosse
entregue sã e exatamente nos termos descritos pelo carregador. Pelo contrário, existindo
defeito aparente, o transportador não poderá ficar alheio a essa realidade, devendo fazer
menção à concreta divergência que verifique face ao declarado pelo carregador.
415
Exemplificando as dificuldades práticas de distinção destes conceitos, vd., ROMANO MARTINEZ,
Cumprimento defeituoso, cit., pp. 199-205.
416
Cf. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso, cit., p. 200.
417
Cf. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso, cit., pp. 204-205.
418
Cf. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso, cit., pp. 164-165.
419
Cf. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso, cit., p. 165.
420
Cf. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso, cit., p. 165.
421
Cf. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso, cit., pp. 165-166.
128
Por outro lado, tratando-se de um defeito conhecido, ainda que oculto, o
transportador também não poderá ficar indiferente, devendo retirar daí as devidas
consequências. Entre essas consequências, e em nome do princípio da boa fé, deverá o
transportador inscrever no documento de transporte esse defeito (neste caso existe um
dever de formular reservas).
As reservas à partida, do transportador, sobre o estado e condição aparentes das
mercadorias são reservas que têm o alcance de identificar defeitos aparentes, ficando de
fora os ocultos. Pelo contrário, as reservas à chegada, do destinatário, podem dizer
respeito quer a defeitos aparentes quer a defeitos ocultos, como vislumbrados nos vários
regimes. Simplesmente, por regra, o prazo para a sua formulação será bem menor no caso
de o defeito ser aparente por comparação ao que sucederá se o defeito for oculto.
Como começámos por dizer, o defeito corresponde a um desvio em relação à
qualidade devida. Isto significa que, sendo formuladas reservas a respeito da quantidade,
tecnicamente, não estará em causa um verdadeiro defeito no sentido de cumprimento
defeituoso, mas sim um dano de outra natureza (quantitativa) que dará azo a
incumprimento no sentido próprio do termo (incumprimento parcial)422.
422
Cf. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso, cit., pp. 196-197.
423
Neste sentido, vd., também, ANTONIO LEFEBVRE D’OVIDIO, GABRIELE PESCATORE e LEOPOLDO TULLIO,
Manuale di Diritto della Navigazione, Dott. A. Giuffrè Editore, 9ª ed., 2000, p. 619. Os autores afirmam
que as reservas genéricas estão sujeitas a um limite de validade: a aferição da razoabilidade da verificação
ou controlo das mercadorias, i.e., só pode concluir-se pela impossibilidade da inexistência desse dever de
verificação mediante um teste de razoabilidade, através da análise, em concreto, das condições da
mercadoria e dos meios técnicos utilizados na operação de carregamento.
129
Note-se que, a aferição da existência deste dever não deverá ser feita em bloco.
Deverá ser feita individualmente em relação a cada elemento/menção que deve ser feita
no conhecimento. Assim, v.g., poderá ser exigível proceder à verificação do peso e não
ser exigível, quanto à mesma mercadoria, a verificação do número de embalagens que
estão dentro do contentor (no caso de o contentor ser arrumado pelo carregador e o mesmo
se encontrar selado). Neste exemplo, o transportador poderá fazer reservas genéricas
quanto à quantidade das mercadorias (número de embalagens) mas já não quanto ao seu
peso (quanto a este só poderá fazer reservas específicas se verificação a existência de
desconformidades em relação às declarações do carregador).
No caso Mata K, considerou-se que se um conhecimento de carga contém a
claúsula “weight…number…quantity unkown”, não se pode considerar que o
conhecimento “mostra” esse número e peso424. Entendeu-se, neste caso, que não se
“mostra” nada quanto a estes dados porque o armador (rectius, transportador) não está
preparado (porque não tem conhecimento) para mencionar qual o peso ou quantidade425.
Considerou-se, ademais, nesta decisão, que não existe fundamento para considerar que
tal cláusula poderia ser tratada como sendo nula, de nenhum efeito e como se nunca
tivesse existido ao abrigo do artigo 3.º, n.º 8, da CB 1924 426. Desde logo porque tal
cláusula (que, tecnicamente, é uma reserva genérica), não constitui uma causa de exclusão
da responsabilidade do transportador, tendo apenas efeitos no regime probatório no
sentido de deixar de se verificar o efeito preclusivo previsto no artigo 3.º, n.º 4, da CB
1924427.
Em geral, tem a doutrina entendido que as reservas genéricas sobre o estado e
condição aparentes das mercadorias não são válidas, por se considerar que aqui existe
sempre a possibilidade de verificação, em termos de razoabilidade, pelo transportador428.
Entre a doutrina espanhola, IGNACIO ARROYO defende não serem admissíveis
omissões ou declarações de teor “ignoro”, na medida em que o estado aparente é
externamente verificável pelo transportador, sem necessidade da colaboração do
carregador, pelo que, para o autor, tais reservas só serão admissíveis quando as
424
Cf. Lloyd’s Law Reports, 1998, Vol. 2, pp. 614-621.
425
Cf. Lloyd’s Law Reports, 1998, Vol. 2, pp. 614-621 (618).
426
Cf. Lloyd’s Law Reports, 1998, Vol. 2, pp. 614-621.
427
Cf. Lloyd’s Law Reports, 1998, Vol. 2, pp. 614-621.
428
Cf. ANTONIO LEFEBVRE D’OVIDIO, GABRIELE PESCATORE e LEOPOLDO TULLIO, Manuale di Diritto della
Navigazione, Dott. A. Giuffrè Editore, 9ª ed., 2000, pp. 619-620; GIORGIO RIGHETTI, Trattato di diritto
marittimo, Parte Seconda, Giuffrè Editora, 1990, p. 1002.
130
mercadorias se encontrem em contentores selados429. De forma idêntica, JOSÉ MARÍA
RUIZ SOROA, S. ZABALETA SARASÚA e M. GONZÁLEZ RODRIGUEZ consideram também
que são nulas e sem valor as cláusulas do tipo “ignoro estado y condición aparente”, pois
sempre poderá o transportador, através do capitão e seus agentes, comprovar algo que é
aparente, exterior. Isto da mesma forma em que será válida a claúsula “ignoro condición
interna”, pois nada nas Regras obriga o transportador a mencionar a qualidade intrínseca
da mercadoria a transportar430.
Na doutrina portuguesa, MÁRIO RAPOSO considera que as reservas sobre o estado
e acondicionamento aparentes das mercadorias, sendo exteriores e verificáveis sem
qualquer dificuldade pelo transportador (ou por quem o represente) “não podem ser
qualificadas, pelo menos em sentido mediamente rigoroso, como reservas”431.
CASTELLO-BRANCO BASTOS, por sua vez, considera que não são permitidas reservas sobre
o estado e acondicionamento aparentes das mercadorias ao abrigo da CB 1924, pois
relativamente a estes factos, segundo entende, existe uma verificabilidade in re ipsa432.
Não pode concordar-se com esta premissa. Dificilmente conseguiremos conceber
que essa verificação seja possível se o transportador receber um contentor selado e
arrumado pelo carregador (FCL). Neste sentido, seguimos o entendimento de IGNACIO
ARROYO, que ressalva o caso dos contentores selados.
429
Cf. IGNACIO ARROYO, Curso de Derecho Marítimo, cit., p. 527.
430
Cf. RUIZ SOROA, ZABALETA SARASÚA e GONZÁLEZ RODRIGUEZ, Manual de Derecho del Transporte
Maritimo, Vistoria-Gasteiz, 1997, p. 425.
431
Cf. MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em Direito Marítimo”, cit., p. 572.
432
Cf. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Da disciplina do contrato de transporte internacional, cit., p. 267.
131
Neste contexto, e retomando os conceitos da tipologia de contentores supra
referida, cumpre distinguir os seguintes tipos433:
(iii) contentores FCL (full container load) estes contentores são arrumados pelo
carregador e entregues ao transportador já fechados e selados;
(iv) contentores LCL (less than full container load) estes contentores são
arrumados pelo transportador (a estiva é feita pelo próprio transportador).
433
Cf. MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em direito marítimo”, cit., 575 e, do mesmo autor,
“Transporte marítimo de mercadorias. Os problemas”, I Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo – O
contrato de transporte marítimo de mercadorias, Almedina, 2008, p. 72; J ANUÁRIO DA COSTA GOMES, O
ensino do Direito Marítimo, Almedina, 2005, pp. 228-229.
434
Cf., neste sentido, ANTONIO LEFEBVRE D’OVIDIO, GABRIELE PESCATORE e LEOPOLDO TULLIO, Manuale
di Diritto della Navigazione, cit., p. 619.
435
Cf., neste sentido, ANTONIO LEFEBVRE D’OVIDIO, GABRIELE PESCATORE e LEOPOLDO TULLIO, Manuale
di Diritto della Navigazione, cit., p. 619.
132
carregador e entregue ao transportador em contentores FCL, tendo o transportador aposto
reservas genéricas (v.g., “said to contain”). A resposta será, em princípio, negativa436.
Por outro lado, o facto de o documento de transporte conter, v.g., uma cláusula
que permita ao transportador abrir o contentor e a proceder à inspeção das mercadorias
não afeta esta posição437. Isto porque, não obstante o poder fazer, não lhe é exigível, em
termos de razoabilidade, que assim proceda se se tratar de um contentor FCL. De facto,
perante esta realidade, um transportador não tem, efetivamente e realisticamente, meios
(razoáveis) de proceder à verificação da mercadoria438. O valor probatório dos
conhecimentos de carga nestas situações, em que são apostas reservas genéricas é, assim,
bastante limitado439.
Podemos, assim, concluir que:
(i) tratando-se de um contentor FCL, por regra, serão de admitir este tipo de
reservas, por existir motivação440;
(v) no caso de um contentor LCL, por regra, não serão admissíveis este tipo de
reservas, por ser possível a verificação por este do estado e condições
aparentes da mercadoria441. Apenas em casos excecionais e devidamente
fundados em que, não obstante a natureza do contentor permitir a verificação
do estado e condições aparentes da mercadoria e demais características da
mercadoria, se conclua que não deva de ser exigir ao transportador esta
verificação, se admitirão reservas desta natureza.
Ainda assim, cabe esclarecer, na esteira de MÁRIO RAPOSO, que nem todas as
reservas “said to contain” são admissíveis, de forma indiscriminada, perante um
contentor FCL, na medida em que neste tipo de contentores, por regra, o transportador
436
Cf., neste sentido, a Decisão do Supreme Court of New South Wales Commercial Division, de 12 de
agosto de 1987, a respeito do Caso Esmeralda 1, in Lloyd’s Law Reports, 1988, vol. 1, pp. 206-211, em
que se considerou que, tendo a mercadoria sido arrumada pelo carregador e entregue ao transportador em
contentores FCL e tendo o transportador aposto as cláusulas “said to contain - packed by shippers”,
“particulars furnished by shipper of goods”, não se poderia verificar o efeito presuntivo prima facie quanto
à quantidade das mercadorias constante do conhecimento (porque, no caso concreto, haviam chegaram ao
destino unidades do que o devido contratualmente).
437
Cf., neste sentido, a Decisão do Supreme Court of New South Wales Commercial Division, de 12 de
agosto de 1987, a respeito do Caso Esmeralda 1, in Lloyd’s Law Reports, 1988, vol. 1, pp. 206-211 (210).
438
Daí que, ao abrigo de muitas leis nacionais, seja permitido ao transportador inserir reservas genéricas
neste caso cf. LARS GORTON, PATRICK HILLENIUS, ROLF IHRE e ARNE SANDEVÄRN, Shipbroking and
Chartering Practice, London Singapure, 6ª ed., 2004, p. 80.
439
Cf. LARS GORTON, PATRICK HILLENIUS, ROLF IHRE e ARNE SANDEVÄRN, Shipbroking and Chartering
Practice, cit., p. 81.
440
Cf. MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em Direito Marítimo”, cit., p. 575.
441
Cf. MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em Direito Marítimo”, cit., p. 575.
133
tem ainda a capacidade de verificar o peso442. Isto sem prejuízo de, in concreto, se
poderem invocar, caso existam, outros motivos que determinem a impossibilidade de
verificação. Simplesmente, o facto de o contentor se encontrar selado não constituirá, de
per si, fundamento para a aposição destas reservas.
442
Cf. MÁRIO RAPOSO, “Transporte marítimo de mercadorias. Os problemas”, I Jornadas de Lisboa de
Direito Marítimo – O contrato de transporte marítimo de mercadorias, Almedina, 2008, p. 73. Vide,
também, do mesmo autor, MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em Direito Marítimo”, cit., pp.
575-577. O autor afirma, neste contexto, que a “não verificabilidade” pelo transportador não abrange a
característica “peso” porque o peso do contentor e, consequentemente, das mercadorias nele arrumadas,
poderá ser determinado pelo transportador aquando do embarque e no momento da entrega.
134
Que dizer quando não seja expressamente consagrada esta presunção iure et de
iure frente a terceiros (como, de resto, sucede com a versão original da CB 1924)?
Admitir-se-á prova em contrário nestes casos?
Quando estejam em causa títulos de crédito (dotados, portanto, da característica
da negociabilidade), deverá, em nosso entender, considerar-se que a presunção deverá, na
mesma, ser iure et de iure frente ao terceiro portador legítimo do documento de transporte
que esteja investido no direito à entrega das mercadorias e que esteja de boa fé. As
específicas características destes documentos a que aludimos supra impõem esta solução
maxime a literalidade e autonomia dos títulos de crédito, bem como o facto de ser um
título de crédito representativo de mercadorias que investe o seu possuidor no direito à
entrega nas mesmas (o que ficou descrito no documento é, portanto, aquilo a que tem
direito, pelo que faz todo o sentido que a presunção seja, aqui, absoluta).
Note-se ainda que, neste âmbito, o conceito de boa fé do terceiro legítimo portador
do título deve ser entendido como boa fé em sentido subjetivo, no sentido de
desconhecimento relativamente às características das mercadorias e seu estado no
momento em que o transportador as recebeu. Só desta forma a confiança deste terceiro
será merecedora de tutela443.
Se o documento de transporte não tiver a natureza de título de crédito, ao invés, a
solução não poderá ser a mesma, na medida em que o direito adquirido pelo destinatário
não o é pelo documento de transporte em si, mas sim pelo contrato de transporte, embora
o documento de transporte deva ser exibido para ele rececionar a mercadoria. A presunção
será, portanto, iuris tantum. Esta é, de resto, a solução acolhida pelos regimes do
transporte rodoviário e aéreo em que, como vimos, os documentos de transporte não, em
regra, títulos de crédito.
443
Como refere MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 3ª ed.,
2007, p. 405, a boa fé pode ser entendida num sentido objetivo e subjetivo: num sentido objetivo, a boa fé
remete para princípios, regras, ditames ou limites por ela comunicados ou, simplesmente, para um modo
de atuação dito de boa fé aqui, a boa fé, exprimindo valores prevalecentes da ordem jurídica, atua como
uma regra imposta do exterior e que as pessoas devem observar; num sentido subjetivo, está em causa um
estado do sujeito esse estado é caracterizado, pela portuguesa, ora como um mero desconhecimento ou
ignorância de certos factos, ora como um seu desconhecimento sem culpa ou ignorância desculpável.
135
mercadorias descritas no documento de transporte. Propomos, nesta senda, a adoção do
conceito efeito presuntivo à chegada que se constituirá, ou não, em virtude da aposição
ou não aposição de reservas à chegada. Isto é, não fazendo o expedidor ou carregador
quaisquer reservas à chegada, operará o efeito presuntivo à chegada no sentido de se
considerar que as mercadorias chegaram ao destino conforme descrito no documento e
em bom estado/condição aparentes. Pelo contrário, a aposição de reservas (validamente)
obstará à constituição desse efeito presuntivo, nos termos supra expostos.
444
Cf. ANTONIO LEFEBVRE D’OVIDIO, GABRIELE PESCATORE e LEOPOLDO TULLIO, Manuale di Diritto della
Navigazione, cit., p. 620.
445
Cf. COSTEIRA DA ROCHA, O contrato de transporte de mercadorias, cit., p. 129.
446
Embora não seja consensual, na doutrina e jurisprudência, se se trata de responsabilidade presumida ou
de culpa presumida. Assim, v.g., no transporte aéreo, MARIA DA GRAÇA TRIGO, “Responsabilidade civil do
transportador áereo: a Convenção de Montreal de 1999 constitui um marco histórico”, Estudos em
Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol. IV, Almedina, p. 824, alude à existência de um
sistema de responsabilidade com presunção de culpa do transportador. Diversamente, DÁRIO MOURA
136
Vejamos, concretamente, como deveremos articular estes traços de regime
comuns com a matéria das reservas.
137
de conseguir provar a verificação de determinadas causas de exoneração que tenham a
ver, v.g., com vícios da mercadoria já existentes aquando rececionadas para transporte ou
com atos próprios do carregador/expedidor.
450
Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Limitação da responsabilidade por créditos marítimos, Almedina,
2010, pp. 13-14.
451
Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Limitação da responsabilidade por créditos marítimos, cit., p. 15.
138
regimes preveem especificamente soluções de limitação de responsabilidade do
transportador452.
A limitação da responsabilidade é, quanto à sua natureza, um direito, i.e., uma
posição jurídica subjetiva (ativa)453. Trata-se, na verdade, de um benefício454. Este direito
ou benefício é erigido, no direito dos transportes, à categoria princípio geral, percorrendo
diversos regimes nacionais e internacionais (hard law e soft law). Ou seja, no direito dos
transportes, contrariamente ao que sucede no direito civil e comercial em geral em que
vigora o princípio da reparação integral dos danos, o princípio-regra traduz-se na
limitação da responsabilidade do transportador455.
Seguindo, neste ponto, a terminologia e a sistematização adotada por JOÃO
RICARDO BRANCO, pode dizer-se que são, principalmente, três as ordens de razões que
fundamentam a existência deste princípio-regra456:
(i) razões de ordem jurídica: a limitação visa, neste âmbito, equilibrar o
sistema de responsabilidade do transportador, face ao seu caráter
especialmente agravado457;
(ii) razões de natureza económica e comercial: visa-se proteger e fomentar a
atividade dos transportes, bem como a fluidez do tráfego comercial458;
452
Primacialmente porque é ainda, pelo menos em teoria, possível equacionar a hipótese de limitação
convencional da responsabilidade quando os respetivos regimes legais prevejam a preclusão deste direito.
Adiante trataremos este ponto.
453
Cf., neste sentido, v.g., JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Limitação da responsabilidade por créditos
marítimos, cit., pp. 481-482.
454
Aludindo expressamente ao conceito de um direito traduzido num benefício vd., v.g., JANUÁRIO DA
COSTA GOMES, Limitação da responsabilidade por créditos marítimos, cit., pp. 90 e 481 e ss.; HUGO
RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas de 1924,
cit., pp. 115 e ss..
455
Como afirmado por JOÃO RICARDO BRANCO, “A conduta antijurídica do transportador e a preclusão da
limitação da responsabilidade”, Temas de Direito dos Transportes, Vol. I, Almedina, 2010, pp. 295-297,
“trata-se de uma realidade comum às distintas modalidades de transporte, de tal modo que pode mesmo
vislumbrar-se a existência de um princípio fundamental da limitação da responsabilidade do
transportador, que constitui um dado estrutural e uma característica do direito dos transportes”. Por outro
lado, como prossegue o autor, este princípio não deixa de ser uma exceção ao princípio geral da reparação
integral dos danos sofridos pelo lesado (p. 298). Por referência ao transporte aéreo, MARIA DA GRAÇA
TRIGO, “Responsabilidade civil do transportador áereo: a Convenção de Montreal de 1999 constitui um
marco histórico”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol. IV, Almedina,
2003, pp. 819-820, quando se refere à “responsabilidade civil ilimitada se o lesado fizer prova da
verificação de dolo ou culpa grave do transportador”, alude à existência de um princípio estruturante.
456
Sobre o fundamento da limitação de responsabilidade especificamente no transporte marítimo, vd. HUGO
RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas de 1924,
cit., pp. 117-118.
457
Cf. JOÃO RICARDO BRANCO, “A conduta antijurídica do transportador e a preclusão da limitação da
responsabilidade”, cit., pp. 300-301.
458
Cf. JOÃO RICARDO BRANCO, “A conduta antijurídica do transportador e a preclusão da limitação da
responsabilidade”, cit., pp. 301-302.
139
(iii) razões de ordem natural: a limitação visa, neste âmbito, atenuar os riscos
da própria atividade de transporte459.
A CB 1924 (na medida em que não seja aplicável o Protocolo adicional de Visby)
é omissa quanto a este ponto, não existindo nenhuma norma expressa que restrinja o
direito à limitação da responsabilidade do transportador. Com efeito, o artigo 4.º, n.º 5 da
CB 1924 prevê que “[t]anto o armador como o navio não serão obrigados, em caso
algum, por perdas e danos causados às mercadorias ou que lhe digam respeito, por uma
soma superior a 100 libras esterlinas por volume ou unidade, ou o equivalente desta
soma numa diversa moeda, salvo quando a natureza e o valor destas mercadorias tiverem
459
Cf. JOÃO RICARDO BRANCO, “A conduta antijurídica do transportador e a preclusão da limitação da
responsabilidade”, cit., pp. 302-303.
460
Além desta novidade, introduziu-se pelo Protocolo de Visby (i) um novo regime de limitação da
responsabilidade em termos de aferição de limites quantitativos (ii) uma maior precisão na delimitação do
âmbito espacial de aplicação; (iii) um regime probatório de presunção iure et de iure quanto ao descrito no
conhecimento de carga perante terceiros de boa fé cf. HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da
responsabilidade do transportador na Convenção de Bruxelas de 1924, cit., p. 34.
140
sido declarados pelo carregador antes do seu embarque e essa declaração tiver sido
inserida no conhecimento”. A expressão “em caso algum” poderá, inclusivamente, levar
a pensar que “em caso algum” o direito do transportador pode ser limitado461.
Mas esta interpretação não é correta porque, a par do princípio geral da limitação
da responsabilidade do transportador, vigora também um princípio geral de preclusão
deste direito nos casos de dolo ou culpa grave462.
Como se vê, há diversas normas contidas em regimes que regulam o contrato de
transporte que preveem expressamente a preclusão da limitação da responsabilidade em
alguns casos. Mas, na verdade, a preclusão do direito à limitação da responsabilidade nos
casos de dolo ou culpa grave não é específica de direito dos transportes e já resulta de um
mais amplo princípio: o princípio da boa fé, que proíbe as atuações abusivas. As
imposições de ordem pública, igualmente, assim o determinam.
O princípio da boa fé é um princípio geral de direito que proíbe atuações abusivas.
No ordenamento nacional, vem previsto no artigo 334.º do CC, onde se prevê que é
ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites
impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Seguimentos, neste particular, a tese de JOÃO RICARDO BRANCO quanto ao
enquadramento da conduta antijurídica do transportador e respetiva preclusão da
limitação da responsabilidade em sede de abuso de direito, nos seguintes termos: a
preclusão do direito do transportador limitar a sua responsabilidade configura um
corolário de um exercício inadmissível de uma posição jurídica, por ocorrer, neste caso,
uma disfuncionalidade tal disfuncionalidade vislumbra-se no facto de ser, prima facie,
apto a integrar a previsão da norma que permite a limitação bem como, por outro lado, na
existência de uma colisão com um sistema onde tal norma se integra463.
Ora, em sede de reservas, uma questão que se pode discutir é, precisamente, a de
saber se o facto de o transportador não ter aposto reservas poderá, ou não, determinar a
461
Fazendo esta observação, vd. PATRICK GRIGGS e RICHARD WILLIAMS, Limitation of liability for
maritime claims, Lloyd’s of London Press, 1991, 2ª ed., p. 125.
462
Cf., neste sentido, HUGO RAMOS ALVES Da limitação da responsabilidade do transportador na
Convenção de Bruxelas de 1924, cit., pp. 124-125. O autor afirma, a respeito da CB 1924, que deve
entender-se que o limite indemnizatório ficará precludido em caso de comportamentos dolosos como será
o caso de falsas declarações ou de expedientes levados a cabo com o fito de enganar o carregador , como
nas situações em que haja lugar ao incumprimento de obrigações do transportador, desde que tais situações
sejam caracterizadas por uma atuação de má fé deste. AZEVEDO MATOS, Princípios de Direito Marítimo,
Vol. I, Edições Ática, 1955, p. 152, a respeito da CB 1924, afirma também como princípio que esta
limitação pode existir “salvo se houve fraude”.
463
Cf. JOÃO RICARDO BRANCO, “A conduta antijurídica do transportador e a preclusão da limitação da
responsabilidade”, cit., p. 369.
141
preclusão da limitação da sua responsabilidade e, em caso afirmativo, em que termos.
Pode suceder, v.g., que transportador aponha reservas no documento de transporte que
saiba, de antemão, não corresponderem à realidade. E poderá também existir má fé do
transportador em virtude da inexistência de declarações no conhecimento rectius, não
apondo reservas.
Tentemos, então, extrapolar estas premissas para o caso concreto das reservas (ou
da não aposição de reservas, consoante o caso). Neste campo, são, em teoria,
equacionáveis as seguintes hipóteses que podem consubstanciar uma conduta antijurídica
do transportador para este efeito:
(i) o transportador faz reservas que sabe, de antemão, não corresponderem à
realidade;
(ii) o transportador não faz reservas, não obstante saber que deveria fazê-las
por ter verificado que as mercadorias não correspondem às características
tal como informado pelo carregador ou expedidor, ou por ter verificado
que as mesmas não se encontram em bom estado e condição aparentes;
(iii) o transportador não faz reservas, por simplesmente não proceder à
verificação das mercadorias, quando o deveria ter feito (era-lhe exigível
que o fizesse, por ter meios razoáveis para o efeito), mas desconhece,
efetivamente, se as mercadorias correspondem ao descrito pelo
carregador/expedidor ou expedidor, ou se se encontram em bom estado e
condição aparentes.
142
uma conduta antijurídica, então a configuração das reservas como um mero ónus não
poderá desembocar nesta preclusão.
8. Natureza jurídica
464
Cf., neste sentido, a respeito do transporte marítimo, MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em
direito marítimo”, cit., p. 170.
465
Neste sentido, a respeito do transporte marítimo, vd. MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em
direito marítimo”, cit., p. 570. GABALDON GARCÍA e RUIZ SOROA, Manual de Derecho de la Navegación
Marítima, cit., p. 516, partilham a mesma opinião, muito embora afirmem que, não sendo tecnicamente
dotadas dessa natureza, o efeito prático, muitas vezes, tem esse alcance de excluir a responsabilidade
466
Cf. MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em Direito Marítimo”, cit., p. 571.
467
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 146. Para
ANTONIO LEFEBVRE D’OVIDIO, GABRIELE PESCATORE e LEOPOLDO TULLIO, Manuale di Diritto della
Navigazione, cit., p. 620, as reservas tornam mais difícil, em benefício do transportador, a prova da
existência e da extensão do dano por parte do destinatário das mercadorias. Vd., também, COSTEIRA DA
ROCHA, O contrato de transporte de mercadorias, cit., pp. 130-131 (“as reservas advertem o portador do
título que “toda a matéria objeto de reservas é apenas imputável ao carregador pois a formulação de
reservas retira eficácia probatória ao conhecimento. Em caso de contencioso terá de ser o portador do
143
Poderá, ainda, perguntar-se, se as reservas constituirão um dever do transportador
ou um mero ónus. Já sabemos que as reservas têm o alcance de eliminar o efeito
presuntivo do documento de transporte e do bom estado e condição aparentes e que,
assim, terá o transportador todo o interesse em apor reservas, porque aproveitará de uma
vantagem jurídica que, de outro modo, não aproveitaria.
Como vimos, as RR fazem a distinção, neste campo, entre situações em que as
reservas constituirão um verdadeiro dever do transportador e outras que apenas
constituem uma mera possibilidade (tecnicamente, um ónus)468. Esta distinção deverá,
também, ser efetuada no seio da construção de uma teoria geral das reservas, porque
constitui uma decorrência de normas e princípios de ordem pública maxime boa fé.
Defendemos, nesta senda, a seguinte solução para qualquer tipo de transporte e seja qual
for o regime aplicável:
(i) existirá um verdadeiro dever do transportador sempre que este saiba,
efetivamente, que as declarações do carregador/expedidor não correspondem
à realidade dos factos ou que a mercadoria não se encontra em bom estado e
condição aparentes;
(ii) existirá ainda um verdadeiro dever do transportador sempre que o mesmo
tenha fundadas suspeitas de que as declarações do carregador/expedidor não
correspondem à realidade dos factos ou que a mercadoria não se encontra em
bom estado e condição aparente;
(iii) nas restantes situações, existirá um verdadeiro ónus do transportador, na
medida em que, apondo reservas, poderá beneficiar da preclusão do efeito
presuntivo dos documentos de transporte e do bom estado e condição
aparentes.
144
As reservas à partida constituem, ainda, declarações do transportador sobre as
mercadorias objeto do transporte. A sua natureza é unilateral (e não bilateral)469. Neste
âmbito, afirma que as reservas, sendo unilaterais, situam-se no campo probatório e
respondem, em regra, a interesses do transportador (e não do carregador este, pelo
contrário, não terá interesse nenhum em que sejam apostas reservas, tendo todo o
interessem na emissão de um documento de transporte limpo, pelas razões já
mencionadas).
As reservas à chegada, ao invés, constituem um mero ónus do destinatário das
mercadorias. Com efeito, se não fizer reservas, o destinatário das mercadorias ver-se-á
desfavorecido na medida em que operará o efeito presuntivo à chegada de que as
mercadorias chegaram ao destino conforme descrito no documento de transporte e em
bom estado e condição aparentes. Ademais, neste particular, apenas estão em causa os
específicos interesses do destinatário, não tendo a ausência de reservas à chegada
qualquer efeito de limitar outros interesses que devam considerar-se prevalecentes
(contrariamente ao que sucede nas reservas à partida em que, para além dos interesses
do transportador e do carregador, estão também em causa os superiores interesses do
destinatário).
469
Neste âmbito, como afirmado por MÁRIO RAPOSO, “As reservas ao conhecimento em Direito Marítimo”,
cit., p. 572, não tem o carregador de aceitar as reservas apostas no conhecimento.
145
CAPÍTULO III AS RESERVAS E AS CARTAS DE GARANTIA
470
Trata-se de uma situação típica de união de contratos, em que existe uma pluralidade de contratos,
ligados entre si por um nexo funcional, de tal modo que constituem uma unidade económica, embora cada
um mantenha a sua individualidade própria.
471
Cf. LARS GORTON, PATRICK HILLENIUS, ROLF IHRE e ARNE SANDEVÄRN, Shipbroking and Chartering
Practice, London Singapure, 6ª ed., 2004, p. 81.
472
De facto, como afirmado por ANTONIO LEFEBVRE D’OVIDIO, GABRIELE PESCATORE e LEOPOLDO
TULLIO, Manuale di Diritto della Navigazione, Dott. A. Giuffrè Editore, 9ª ed., 2000, p. 621, um documento
com reservas, específicas ou genéricas, é dificilmente negociável. E, por isso mesmo, nesta ordem de ideias,
TREITEL e REYNOLDS, Carver on bills of lading, cit., p. 484, referem-se às reservas com recurso à seguinte
expressão: “Reservations not incorrect but incovenient commercially”.
473
Cf. PALMA CARLOS, O contrato de fretamento no Código Comercial Português, cit., pp. 121-122.
474
Cf. COSTEIRA DA ROCHA, O contrato de transporte de mercadorias, cit., p. 131.
146
É, precisamente, para obviar a estes obstáculos nas várias transações comerciais
funcionalmente ligadas ao contrato de transporte que surgem as cartas de garantia475 que,
a par das reservas, constituem uma prática já antiga e comum quer no tráfego marítimo
nacional quer internacional, ou não fossem as reservas a sua ratio ou, melhor dizendo,
a não aposição de reservas. É que, repita-se, um documento de transporte com reservas é
dificilmente negociável476. Nas palavras de AZEVEDO MATOS, dir-se-á, então, que “[p]ara
evitar discussões, dificuldades e reservas [o transportador] passa a carta de garantia, e
isto por causa da responsabilidade do armador […] para assegurar o crédito bancário
e o segurador”477.
Foi com o desenvolvimento do crédito documentário que se assistiu,
paralelamente, ao incremento acelerado das cartas de garantia478. De facto, a emissão de
conhecimentos de carga com reservas trás desvantagens evidentes e as cartas de
garantiam vieram contribuir para obviar a essas desvantagens mormente quanto às
diversas transações económicas envolvidas no seio negocial. Entre estas, merecem
destaque as operações de crédito documentário e de seguro, na medida em que:
(i) por um lado, um conhecimento de carga “sujo” impedirá, não raras vezes,
a concretização de operações de crédito relativas a tal documento479;
(ii) por outro lado, um conhecimento de carga “sujo”, muito provavelmente,
levará a que as seguradoras não pretendam assumir o risco relativo às
mercadorias transportadas480.
475
Cf., v.g., LARS GORTON, PATRICK HILLENIUS, ROLF IHRE e ARNE SANDEVÄRN, Shipbroking and
Chartering Practice, cit., p. 80 e PALMA CARLOS, O contrato de fretamento no Código Comercial
Português, cit., p. 121 (“Compreende-se facilmente a vantagem que têm os carregadores em obter sempre
conhecimentos sem reservas. Efectivamente, a enunciação de dúvidas no conhecimento àcêrca do estado
das mercadorias, é por si só suficiente para opor os maiores obstáculos a qualquer transacção que o
carregador queira efectuar sôbre tal conhecimento”).
476
Cf. WANDA D’ALESSIO, Diritto dei Trasporti, Giuffrè Editore, 2003, p. 258.
477
Cf. AZEVEDO MATOS, Princípios de Direito Marítimo. Do transporte Marítimo, II, Edições Ática, 1956,
p. 56. Vd., também, MÁRIO RAPOSO, “As cartas de garantia e o seguro marítimo”, Scientia Ivridica, Revista
de Direito Comparado Português e Brasileiro, Tomo XX, 1971, p. 504 e PALMA CARLOS, O contrato de
fretamento no Código Comercial português, cit., p. 121.
478
Cf. MÁRIO RAPOSO, “As cartas de garantia e o seguro marítimo”, Scientia Ivridica, Revista de Direito
Comparado Português e Brasileiro, Tomo XX, 1971, p. 504. Refere o autor que o grande incremento se dá
depois da Primeira Grande Guerra. Mas, como também refere, já em 1853 era doutrinalmente debatido o
problema das cartas de garantia, e, além disso, a primeira decisão judicial conhecida sobre esta temática é
uma sentença do Tribunal do Comércio de Dieppe de 7 de outubro de 1892. Situando também
historicamente o surgimento das cargas de garantia antes da Primeira Guerra Mundial, mas aludindo a um
crescimento exponencial depois desta, vd. PALMA CARLOS, O contrato de fretamento no Código Comercial
Português,cit., p. 122.
479
Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, Almedina, 2005, p. 226-227.
480
Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, Almedina, 2005, p. 226-227.
147
O fenómeno da contentorização, ao legitimar a aposição de reservas genéricas,
não veio, no entanto, abalar a prática comum de emissão de cartas de garantia481. Bem se
vê porquê: constituem as cartas de garantia uma forma de obstar à aposição destas.
481
Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, Almedina, 2005, p. 228.
482
Sobre o conceito de carta de garantia, vd., v.g., J ANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito
Marítimo, Almedina, 2005, p. 224; COSTEIRA DA ROCHA, O contrato de transporte de mercadorias, cit., p.
132; AZEVEDO MATOS, Princípios de Direito Marítimo. Do transporte Marítimo, II, 1956, Edições Ática,
p. 56; PALMA CARLOS, O contrato de fretamento no Código Comercial Português, cit., pp. 120-121;
CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 150; ANTONIO
LEFEBVRE D’OVIDIO, GABRIELE PESCATORE e LEOPOLDO TULLIO, Manuale di Diritto della Navigazione,
Dott. A. Giuffrè Editore, 9ª ed., 2000, p. 621; WILLIAM TETLEY, “Letters of indemnity at shipment and
letters of guarantee at discharge”, 2004, disponível em https://pt.scribd.com/document/31723971/Letters.
483
Estas não devem confundir-se com as cartas de garantia à chegada - que podem ser definidas como
aquelas que são emitidas pelo destinatário das mercadorias ao transportador para obter a entrega da
mercadoria mesmo antes de (ou sem) ter na sua posse o conhecimento de carga, que ainda não chegou ao
destino. Estas cartas de garantia “à chegada” vieram também a constituir prática comum pelo facto de,
muitas vezes, devido à “morosidade provocada pela articulação entre os conhecimentos de carga e o
crédito documentário - as mercadorias chegarem ao porto de destino antes dos conhecimentos” cf.
CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 150; JANUÁRIO DA
COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, cit., p. 229; ANDREA ARENA, La polliza di carico e gli altri
titolo rappresentativi di trasporto, I, Dott. A. Giuffrè editore, 1951, p. 229; WILLIAM TETLEY, “Letters of
indemnity at shipment and letters of guarantee at discharge”, cit.
484
Cf. AZEVEDO MATOS, Princípios de Direito Marítimo. Do transporte Marítimo, II, Edições Ática, 1956,
p. 57.
485
Neste sentido, vd. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit.,
pp. 150 e 151.
148
As cartas de garantia próprias têm como finalidade evitar que o transportador
inclua no conhecimento reservas sobre a mercadoria nos casos em que não disponha de
meios para proceder à sua verificação, permitindo ao carregador obter um documento
facilmente negociável no tráfego comercial486.
Além disso, mesmo dispondo de meios para proceder à verificação, os
transportadores, que podem não estar familiarizados com as mercadorias que transportam
(v.g., com as suas especificidades técnicas), por vezes acham extremamente difícil essa
tarefa de declarar no conhecimento de carga se a mercadoria está ou não em bom estado
e condição aparentes487. Neste particular, podem surgir divergências de entendimento
entre o carregador e o transportador, sem que nenhum tenha um propósito fraudulento ou
enganador. A este respeito, conforme afirmam TREITEL e REYNOLDS, o transportador
poderá persistir na ideia de apor uma reserva que o carregador considera injustificada, e
que afetará negociabilidade do documento de transporte ou o valor da mercadoria objeto
de uma compra e venda488. É, precisamente, aqui, que uma carta de garantia “may oil the
wheels of commerce” (“põe óleo das rodas do comércio”)489.
Por sua vez, as impróprias são emitidas não obstante a existência de meios por
parte do transportador para proceder à verificação das mercadorias ou a constatação, por
parte deste (i) da sua desconformidade em relação ao descrito na declaração do carregador
ou (ii) de que as mercadorias não se apresentam em bom estado e condição aparentes490.
O crédito documentário pode ser definido como a situação jurídica pela qual um
banqueiro se compromete, perante um seu cliente, a pagar uma certa quantia a um terceiro
mediante a entrega, por este, de determinados documentos491.
486
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 150.
487
Cf. FELIPE ARIZON e DAVID SEMARK, Maritime letters of indemnity, Informa Law from Routledge, 2014,
p. 9.
488
Cf. TREITEL e REYNOLDS, Carver on bills of lading, cit., p. 484.
489
Expressão de FELIPE ARIZON e DAVID SEMARK, Maritime letters of indemnity, cit., p. 9.
490
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., pp. 150-151.
491
Seguimos, aqui, a noção adotada por MENEZES CORDEIRO, “Créditos documentários”, Revista da Ordem
dos Advogados, Ano 67, Vol. I - Jan. 2007, disponível em
https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-2007/ano-67-vol-i-jan-2007/doutrina/antonio-
menezes-cordeiro-creditos-documentarios/.
149
No seio dos contratos de transporte, é comum o recurso ao crédito documentário.
Em especial, a importância do conhecimento de carga no comércio internacional tem sido
bastante evidenciada neste contexto492. Há, até, quem afirme ser o conhecimento de carga
o documento “chave” na lista dos documentos para serem apresentados ao abrigo de um
crédito documentário, por uma série de razões: as suas funções probatória, de recibo de
entrega das mercadorias e de título representativo das mercadorias 493. Com efeito, estas
funções permitem aos bancos usar os documentos de transporte com segurança para
financiamento das operações de comércio subjacentes494.
Trata-se de um contrato que se foi desenvolvendo na prática, mas que carece de
um regime legal imperativo. Não obstante, existe um normativo internacional que o
regula: as Regras e Usos Uniformes relativos aos Créditos Documentários (RUU),
adotadas em 1933 pela Câmara de Comércio Internacional495 , embora se discuta qual a
sua natureza e grau de vinculação das partes às mesmas, atento o facto de não constituírem
uma fonte legal.
Essencialmente, está em causa saber qual o fundamento da positividade das RRU,
mormente saber se as mesmas têm aplicação mesmo quando as partes não façam qualquer
remissão. Do que não pode duvidar-se é que as RR têm, pelo menos, natureza contratual
quando as partes para elas remetam e, nesta medida, assumem a configuração de cláusulas
contratuais gerais496. Não cabe, aqui, esmiuçar esta questão porque tal extravasa já o
objeto desta dissertação. No entanto, aquilo que importa reter é que, independentemente
da sua natureza jurídica, os bancos têm bem sedimentada a prática de remeter para as
RUU. É, portanto, sobre estas que nos vamos deter para analisar, já de seguida, a questão
dos documentos de transporte no crédito documentário, em particular quanto às reservas.
492
Cf. LARS GORTON, PATRICK HILLENIUS, ROLF IHRE e ARNE SANDEVÄRN, Shipbroking and Chartering
Practice, cit., p. 82.
493
Cf. LARS GORTON, PATRICK HILLENIUS, ROLF IHRE e ARNE SANDEVÄRN, Shipbroking and Chartering
Practice, cit., p. 80.
494
Cf. LARS GORTON, PATRICK HILLENIUS, ROLF IHRE e ARNE SANDEVÄRN, Shipbroking and Chartering
Practice, cit., p. 82.
495
Revistas em 1951, 1962, 1974/5, 1983, 1993 e 2007. Sobre as revisões de 1993 e 2007 vd. MENEZES
CORDEIRO, “Créditos documentários”, cit..
496
Neste sentido, vd. MENEZES CORDEIRO, “Créditos documentários”, cit.. A questão que se coloca é a de
saber se podemos ir mais além e procurar a essência da positividade nos usos do comércio internacional.
Não nos podemos esquecer do papel dos usos enquanto fonte do direito comercial, e da relevância da
denominada lex mercatoria neste âmbito. Poderá ainda, ainda que difícil de compaginar na prática, surgir
a hipótese de as partes não remeterem para as RUU, impondo-se proceder à integração de lacunas (rectius,
lacuna legal e contratual), sendo certo que um dos instrumentos determinantes para o efeito será, sem
sombra de dúvida, este normativo internacional.
150
2.2. O crédito documentário e os documentos de transporte “limpos”
497
Cf. LARS GORTON, PATRICK HILLENIUS, ROLF IHRE e ARNE SANDEVÄRN, Shipbroking and Chartering
Practice, cit., p. 80.
498
Cf. ČASLAV PEJOVIĆ, “Clean bill of lading in contract of carriage and documentary credit: when clean
may not be clean”, The Penn State Journal of Law & International Affairs, Vol. 4, nº 1, dez. 2015, p. 128,
disponível em http://elibrary.law.psu.edu/jlia/vol4/iss1/8.
499
Cf. WILLIAM TETLEY, “Letters of indemnity at shipment and letters of guarantee at discharge”, cit..
500
Cf. ČASLAV PEJOVIĆ, “Clean bill of lading in contract of carriage and documentary credit: when clean
may not be clean”, cit., p. 128.
501
Cf. ČASLAV PEJOVIĆ, “Clean bill of lading in contract of carriage and documentary credit: when clean
may not be clean”, cit., p. 128.
502
Cf. artigo 27.º, n.º 1, 1ª parte, das RUU.
503
Cf. artigo 27.º, n.º 1, 2ª parte, das RUU.
151
Esta noção é, assim, mais restrita do que a de documento de transporte “limpo”
no seio de um contrato de transporte que será aquele em que não tenham sido apostas
quaisquer reservas , já que apenas se refere, literalmente, às reservas sobre o estado e
condição aparentes das mercadorias, e não às que incidam sobre os dados fornecidos pelo
carregador/expedidor.
Muito embora se possa fazer uma interpretação extensiva do preceito, a verdade
é que o mesmo pode dar azo a uma desarmonia de regimes. Por este motivo, como adverte
ČASLAV PEJOVIĆ, a noção de documento de transporte “limpo” ao abrigo das RUU
apresenta-se deficitária, impondo-se uma revisão no sentido da uniformização de
regimes504.
504
Esta necessidade de revisão é assumidamente defendida por ČASLAV PEJOVIĆ, “Clean bill of lading in
contract of carriage and documentary credit: when clean may not be clean”, The Penn State Journal of Law
& International Affairs, Vol. 4, nº 1, dez. 2015, disponível em http://elibrary.law.psu.edu/jlia/vol4/iss1/8.
152
Ao nível do direito internacional, encontramos uma referência nas RH 1978505
que, no artigo 17.º, n.º 2, em termos idênticos, admite a validade das cartas de garantia
mas estabelece que as mesmas não terão nenhum efeito contra terceiros, incluindo o
destinatário a quem o conhecimento de carga haja sido transferido506.
O artigo 17.º, n.º 3, das RH 1978 vem depois prever uma exceção à validade das
cartas de garantia, nos seguintes termos: a carta de garantia é válida contra o carregador
a menos que o transportador, ao omitir reservas, tenha tido a intenção de prejudicar
terceiros (intuito fraudulento), incluindo o destinatário507. Neste caso, o transportador será
responsável sem que possa invocar o benefício da limitação da responsabilidade previsto
naquela Convenção (artigo 17.º, n.º 4, das RH 1978)508.
Atento o quadro legal das supra descrito, pode dizer-se, com CLAVERO TERNERO,
que as RH 1978, sem o mencionar expressamente, distinguem também entre as cartas de
garantia próprias e impróprias, na medida em que se prevê as mesmas são válidas salvo
se, ao omitir a reserva, existir a intenção de prejudicar terceiros através da emissão de um
conhecimento de carga limpo,509.
Ademais, conforme afirma, parece que unicamente se comtempla a intenção de
prejudicar do transportador, sendo indiferente a do carregador510. Em segundo lugar, da
redação do preceito pode deduzir-se que a invalidade do acordo unicamente se produz no
caso de o transportador ter a intenção de prejudicar o terceiro 511. Note-se que, sob pena
de se incorrer numa diabolica probatio, entendemos que a intenção de prejudicar o
505
Estas são o primeiro instrumento internacional a regular especificamente as cartas de garantia, com
inspiração no regime previsto na lei francesa sobre fretamentos e transportes, de 18 de junho de 1966 (lei
n.º 66-420) cf. ALFREDO CALDERALE, “Le lettre di garanzia nel trasporto marittimo di merci”, cit., 218;
CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 156.
506
A redação original do preceito é a seguinte: “Any letter of guarantee or agreement by which the shipper
undertakes to indemnify the carrier against loss resulting from the issuance of the bill of lading by the
carrier, or by a person acting on his behalf, without entering a reservation relating to particulars furnished
by the shipper for insertion in the bill of lading, or to the apparent condition of the goods, is void and of no
effect as against any third party, including a consignee, to whom the bill of lading has been transferred.”
507
A redação original do preceito é a seguinte “Such letter of guarantee or agreement is valid as against
the shipper unless the carrier or the person acting on his behalf, by omitting the reservation referred to in
paragraph 2 of this article, intends to defraud a third party, including a consignee, who acts in reliance on
the description of the goods in the bill of lading. In the latter case, if the reservation omitted relates to
particulars furnished by the shipper for insertion in the bill of lading, the carrier has no right of indemnity
from the shipper pursuant to paragraph 1 of this article.”
508
A redação original é a seguinte: “In the case of intended fraud referred to in paragraph 3 of this article,
the carrier is liable, without the benefit of the limitation of liability provided for in this Convention, for the
loss incurred by a third party, including a consignee, because he has acted in reliance on the description
of the goods in the bill of lading”.
509
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 157.
510
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 158.
511
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 158.
153
terceiro não deve, aqui, ser entendida, em termos puramente literais. Ao invés, estão aqui
compreendidas as situações a que alude o legislador português em que o transportador
“conhecia ou devia conhecer no momento da assinatura do conhecimento de carga”. Este
conceito convoca, mais uma vez, as considerações tecidas a respeito das reservas quanto
ao dever de verificação do transportador e impossibilidade de controlo, para as quais aqui
remetemos. Numa palavra: sendo as cartas de garantia impróprias, as mesmas são
inválidas à luz das RH 1978.
Acresce que, como vimos, se o transportador tiver a “intenção de prejudicar
terceiro”, as RH 1978 prescrevem a preclusão do direito à limitação da sua
responsabilidade. Exigir-se-á, neste caso, dolo ou culpa grave, pois só em casos
especialmente gravosos poderá operar esta preclusão512.
As normas da preclusão do benefício da limitação da responsabilidade do
transportador, previstas em ambos os regimes analisados, tratam de atribuir uma função
punitiva à responsabilidade civil. Não poderá tratar-se, decerto, de uma função
meramente reparatória, pois embora não estejamos perante o caso clássico punitivo em
que a indemnização poderá ir para além dos danos sofridos (extravasando a função
reparatória), a verdade é que, perdendo o transportador o direito à limitação da
responsabilidade, visa-se puni-lo pela sua conduta especialmente gravosa. O lesado terá,
assim, direito a uma indemnização relativa à integralidade dos danos, mas não o teria não
fosse o transportador ter agido com este grau de culpa.
A função punitiva, na verdade, não se verifica apenas quando a indemnização
exceda o limite reparador dos danos. Basta que a mesma constitua um plus relativamente
ao direito previsto ab initio. Dito de outro modo: se no direito dos transportes o regime
de responsabilidade civil do transportador sofre um “desvio limitativo de princípio de
direito comum em matéria de responsabilidade contratual, que é o da reparação integral
dos danos”513, isso significa que deixando de se verificar tal “desvio limitativo” pela
preclusão do direito à limitação, então teremos de concluir que a responsabilidade civil
exerce, neste último caso, uma função punitiva e isto muito embora não se ultrapasse o
montante dos danos efetivamente sofridos.
Aliás, como afirmado por PAULA MEIRA LOURENÇO, a função punitiva da
responsabilidade civil, nem sempre equivale a castigar o autor do ilícito através do
512
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 159.
513
Cf. Ac. do STJ de 06-07-2006 (Rel. OLIVEIRA BARROS), Proc. 06B1679.
154
aumento do montante que terá de pagar, visando também adequar a “punição” à culpa do
agente, para que não seja punido da mesma forma quem agiu com dolo, e quem agiu
negligentemente514.
514
Cf. PAULA MEIRA LOURENÇO, A função punitiva da responsabilidade civil, Coimbra Editora, 2006, p.
416.
515
Afirma AZEVEDO MATOS, Princípios de Direito Marítimo. Do transporte Marítimo, II, Edições Ática,
1956, p. 57, que, “[t]endo como consequência a passagem do conhecimento limpo, dá a este maiores
possibilidades de circulação. Mas tem inconvenientes graves. Garantido pelo carregador, o capitão não
hesita em passar um conhecimento sem reservas, conhecimento limpo, ainda que as mercadorias não
estejam em bom estado, e isso pode, mesmo que não haja má-fé, enganar terceiros e, sobretudo, os
seguradores, contra quem o conhecimento regular faz prova (art. 540.º)”.
516
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 151.
155
perante o transportador se este vier a ser responsabilizado perante terceiro em virtude
dessas desconformidades517. Estamos, aqui, perante um acordo “colusivo”, que é
prejudicial ao destinatário das mercadorias, e outros terceiros (pontencialmente)
envolvidos maxime bancos e seguradoras518. Neste caso, o incumprimento do dever de
formular reservas obsta à validade do acordo.
TETLEY defende, neste contexto, que as cartas de garantiam criam uma falsa
representação da realidade (misrepresentation)519. Em sentido idêntico, MÁRIO RAPOSO
numa posição crítica em relação à admissibilidade das cartas de garantia e fazendo uma
análise estabelecendo a relação com o contrato de seguro , já afirmou que “um
conhecimento limpo emitido contra uma carta de garantia cria uma aparência contrária
à realidade, que tem sempre como corolário induzir em erro o segurador”520.
Para PALMA CARLOS “parece preferível a solução propugnada por aqueles que
entendem que as cartas de garantia devem ser, em todos os caos, absolutamente
proibidas e feridas de nulidade”521. Isto porque, no seu entender, não deverá a
(in)validade de uma carta de garantia estar dependente da aferição de boa fé ou de má fé
do carregador ou transportador, na medida em que considera que a boa fé, sendo um
conceito eminentemente subjetivo, é difícil de determinar em concreto e, além disso, “o
facto de se declararem nulas apenas em certos casos as cartas de garantia, não obsta à
fraude que sempre representa a circunstância de se pôrem em circulação títulos de
crédito com falsas enunciações, mesmo quando estas possam não causar prejuízo a
nenhum dos possuidores do título.”522.
Este entendimento de PALMA CARLOS deverá, no entanto, ser devidamente
contextualizado. Com efeito, o autor fá-la no contexto das anteriores disposições do
CCom. português, em que, no seu entender, vigorava o regime da prova plena do
conteúdo do conhecimento de carga. Tanto assim que, conforme prossegue, “face à
Convenção de Bruxelas as cartas de garantia podem ser consideradas válidas”, já que,
517
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 151.
518
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 151.
519
Cf. WILLIAM TETLEY, “Letters of indemnity at shipment and letters of guarantee at discharge”, cit..
Aludindo também a misrepresentation e falsification vd., v.g., LARS GORTON, PATRICK HILLENIUS, ROLF
IHRE e ARNE SANDEVÄRN, Shipbroking and Chartering Practice, cit., p. 81. Na doutrina portuguesa,
aludindo também à possibilidade de “dar-se uma aparência às coisas não correspondente à realidade,
tornando possível o conhecimento limpo ser contrário à verdade”, vd. AZEVEDO MATOS, Princípios de
Direito Marítimo. Do transporte Marítimo, II, Edições Ática, 1956, p. 58.
520
Cf. MÁRIO RAPOSO “As cartas de garantia e o seguro marítimo”, cit., p. 506.
521
Cf. PALMA CARLOS, O contrato de fretamento no Código Comercial Português, cit., p. 129.
522
Cf. PALMA CARLOS, O contrato de fretamento no Código Comercial Português, cit., p. 129.
156
aqui, “o conhecimento de carga constitui mera presunção da entrega das mercadorias
no estado em que nêle são descritas; e presunção iuris tantum, admitindo em contrário
qualquer prova, designadamente a que se fizer pela exibição de uma carta de
garantia”523.
TETLEY vai ainda mais além e considera que, aquando da emissão de uma carta de
garantia, o transportador emite um documento que ele próprio, enquanto transportador,
sabe ser incorreto e enganoso524. A opinião do autor é, assim, muito crítica em relação às
cartas de garantia, considerando que comummente as mesmas estão associadas a fraude,
citando jurisprudência não muito “amiga” das cartas de garantia525. E, por isso, chega
mesmo a afirmar que estas não deveriam ser toleradas pelos tribunais e pelo comércio526.
MÁRIO RAPOSO, por sua vez, entende que as cartas de garantia devem considerar-
se nulas (mesmo nas relações internas entre o transportador e carregador) uma vez que,
no seu entendimento, as mesmas, por definição legal, têm um escopo ilegal e contrário
aos princípios de ordem pública: o de enganar terceiros 527. Ainda assim, não deixa este
autor de abrir uma válvula de escape ao admitir que, nalguns casos (ainda que, na sua
expressão, sejam “raríssimos casos”) poderão as cartas de garantia não ter este escopo
ilegal, quando a sua emissão advenha da “completa impossibilidade de o transportador
controlar com exactidão, no momento do embarque, as indicações fornecidas pelo
carregador”528. Não obstante, prossegue, “as diferenças entre essas duas situações e as
determinadas pelo intuito de enganar surgirão sempre tão difusas que a virtual
ocorrência de tais casos não poderá contribuir para as legitimar de plano”529.
YVES TASSEL entende que a validade das cartas de garantia é criticável dado que:
(i) a venda marítima “participa” na economia geral do comércio e não é de interesse
puramente privado (argumento falível); (ii) a representatividade do conhecimento deveria
superar a eficácia relativa dos contratos (argumento mais forte); (iii) o transportador
contraria o regime do contrato de transporte, porque ele tem a obrigação de apor reservas
(argumento decisivo) 530. Refere, ademais, que parece que a carta de garantia revela um
“conflito de lógica jurídica” (“conflit de logiques juridiques”): a lógica de que o contrato
523
Cf. PALMA CARLOS, O contrato de fretamento no Código Comercial Português, cit., p. 129.
524
Cf. WILLIAM TETLEY, “Letters of indemnity at shipment and letters of guarantee at discharge”, cit..
525
Cf. WILLIAM TETLEY, “Letters of indemnity at shipment and letters of guarantee at discharge”, cit..
526
Cf. WILLIAM TETLEY, “Letters of indemnity at shipment and letters of guarantee at discharge”, cit..
527
Cf. MÁRIO RAPOSO, “As cartas de garantia e o seguro marítimo”, cit., pp. 512-513.
528
Cf. MÁRIO RAPOSO, “As cartas de garantia e o seguro marítimo”, cit., p. 513.
529
Cf. MÁRIO RAPOSO, “As cartas de garantia e o seguro marítimo”, cit., p. 513.
530
Cf. YVES TASSEL, “Les reformes apportees par les Regles de Hambourg au regime juridique du
connaissement”, cit., p. 300.
157
de transporte legitima ou valida esta prática, ao passo que a venda marítima e a natureza
do conhecimento a tornariam insustentável ou inadmissível o que constitui uma contra-
verdade (“contre-validité”) intencionalmente e bilateralmente organizada531.
CLAVERO TERNERO defende que as cartas de garantia impróprias são contra a
moral e os bons costumes, por serem contrárias a uma conduta considerada normal ou
exigível a um transportador honesto, para além de estar em causa a violação das normas
legais que obrigam o transportador a emitir um conhecimento “exato”. Isto é, o resultado
prático desde acordo, no seu entendimento, repugna na consciência social, que o
considera indigno de tutela jurídica. Produz-se uma quebra nas regras legais e éticas entre
os vários intervenientes no tráfego marítimo e comercial. A consequência de tudo isso,
para o autor, à luz da lei espanhola, é que nos encontramos perante um contrato com causa
ilícita, contrária à lei e moral, com o resultado de o acordo em causa não produzir
quaisquer efeitos532.
Não pode, porém, concordar-se com a posição de que toda e qualquer carta de
garantia crie uma falta representação da realidade. Por vezes, e não raras vezes, as cartas
de garantia não criam qualquer deturpação da realidade533. Assim sucede nas cartas de
garantias próprias. Defendemos, nesta senda, que as cartas de garantia apenas são
admissíveis na medida em que não seja incumprido o dever de formular reservas. Há,
assim, que distinguir entre as cartas de garantia próprias e impróprias, sendo as primeiras
válidas e as segundas inválidas. Efetivamente, a prática tem demonstrado que as cartas de
garantia, frequentemente, não têm ínsita qualquer fraude534.
Quanto às primeiras, como vimos, elas apenas são emitidas porque o transportador
não dispõe de meios para verificar as mercadorias (logo, não está a incumprir qualquer
dever de formular reservas). Assim, as cartas de garantia, neste caso, apenas são emitidas
para evitar que o transportador aponha reservas do estilo “said to contain”. Na esteira de
CLAVERO TERNERO, defendemos que trata-se de um acordo lícito entre carregador e
transportador, pois favorecem a rapidez do tráfego comercial ao mesmo tempo que
531
Cf. YVES TASSEL, “Les reformes apportees par les Regles de Hambourg au regime juridique du
connaissement”, cit., p. 300.
532
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 153. O autor
invoca que a destituição de quaisquer efeitos, neste caso, deriva do artigo 1276.º do CC espanhol (em
virtude da ilicitude da sua causa).
533
Como afirmado por AZEVEDO MATOS, Princípios de Direito Marítimo. Do transporte Marítimo, II,
Edições Ática, 1956, p. 58, salva a hipótese de fraude na qual o transportador diretamente intervenha, ele
apenas pretende cobrir-se contra as indicações dadas pelo carregador, não podendo, na maioria dos casos,
“verificar as fazendas”.
534
Cf. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, O ensino do Direito Marítimo, cit., p. 227.
158
protegem o transportador das consequências desfavoráveis associadas à
responsabilização, perante terceiros, relacionada com as discrepâncias entre a mercadoria
descrita no conhecimento de carga e a mercadoria entregue no destino535. O autor
acrescenta, ainda, que atuando as partes de boa fé, trata-se, na verdade, de uma
decorrência da obrigação do carregador garantir ao transportador a exatidão da sua
declaração de carga com as mercadorias e, desde ponto de vista, não deve duvidar-se da
sua validade536.
Quanto às segundas, porém, servem para fazer circular o documento e podem
servir de instrumento para defraudar terceiros, visando atribuir uma indemnização ao
transportador por incumprir as suas próprias obrigações. Por isso, o autor comina-as
expressamente com o desvalor da nulidade, solução que, aqui, também seguimos537.
No artigo 26.º, n.º 1, do DL n.º 252/86, as cartas de garantia são definidas como
“cartas ou acordos em que o carregador se compromete a indemnizar o transporte pelos
danos resultantes da emissão de conhecimento de carga sem reservas”. A expressão
“[…] resultantes da emissão de conhecimento de carga sem reservas” apresenta-se, a
nosso ver, crucial para aferir da medida concreta desta obrigação que o carregador
assume. Com efeito, aquilo que se “garante”, por via de uma carta de garantia, é apenas
a parte que apresente um nexo de causalidade entre a emissão de um conhecimento de
carga limpo e os danos (leia-se, danos para o transportador, que terá de indemnizar o
destinatário). I.e., o facto “emissão de um conhecimento de carga limpo” para dar azo ao
acionamento dessa “garantia”, tem de ser o facto causador dos danos.
De fora ficam, portanto, as situações em que, não obstante ter sido emitido um
documento limpo em contrapartida da emissão de uma carta de garantia, o transportador
tenha de indemnizar o destinatário por as mercadorias não terem chegado ao destino em
conformidade com o descrito no conhecimento em virtude de factos ocorridos durante a
viagem, pois nessa eventualidade o dever de indemnizar do transportador não surge “em
contrapartida da emissão de um conhecimento de carga limpo”.
535
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., pp. 150-152.
536
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 151.
537
Cf. CLAVERO TERNERO, “Conocimientos de embarque limpios y cartas de garantía”, cit., p. 152.
159
Isto em teoria. Na prática, porém, o que poderá suceder é que se torne a prova
deste nexo de causalidade uma diabolica probatio. Poderá ser muito difícil, efetivamente,
provar se os danos nas mercadorias foram provocados durante a viagem de transporte ou
se já existiam aquando do carregamento e, daí, emergir um litígio entre o carregador e
transportador difícil de resolver por dificuldades de prova. Certo é que, para que a carta
de garantia possa ser acionada, é elemento essencial a prova deste nexo de causalidade.
Por um lado, o carregador poderá alegar que os danos ocorreram durante o
transporte e, assim, vai opor-se ao acionamento da carta de garantia. No interesse
contraposto, o transportador vai exigir uma indemnização ao carregador alegando que as
mercadorias já chegaram para carregamento naquele estado. Do lado do contrato de
transporte, como se sabe, o transportador, para não ser responsabilizado, deverá ilidir a
presunção de que as mercadorias chegaram para embarque em bom estado e condição
aparentes e conforme descrito no documento. Se conseguir ilidir essa presunção,
logicamente, nada lhe será devido ao abrigo da carta de garantia.
Se não conseguir ilidir tal presunção, aí é que surge o campo de atuação das cartas
de garantia. Mas, então, dir-se-á: se o transportador não conseguiu ilidir a presunção ao
abrigo do contrato de transporte, será pouco provável que consiga ter meios de prova que
consigam provar o que não conseguiu provar naquela sede. Os meios de prova que terá
ao seu dispor, numa e noutra ação, serão, certamente, os mesmos.
Como articular tudo isto? Cumpre fazer apelo às regras gerais de repartição do
ónus da prova (mormente as constantes da lei civil), posto que se está perante um contrato
à margem do contrato de transporte não tendo, por conseguinte, aplicação o regime de
presunções estabelecido nos regimes que regulam o contrato de transporte.
160
transportador e o destinatário que tem o direito à entrega das mercadorias 538. A
neutralidade é, portanto, meramente inter partes.
Tanto assim é que, precisamente por não influírem na responsabilidade do
transportador no seio do contrato de transporte perante o destinatário das mercadorias ou
quem seja legítimo portador do título, é que se diz que as cartas de garantia são um
documento “secreto”, de que apenas têm conhecimento o carregador/expedidor e
transportador539, sendo, aliás, esse secretismo a fonte das controvérsias quanto à sua
admissibilidade, como vimos.
As cartas de garantia também não são documentos de transporte e, claro está, não
são títulos de transporte, pois (repita-se) são um mero documento escrito com eficácia
entre carregador e transportador540.
As cartas de garantia são um contrato541. A questão está em saber de que tipo de
contrato se trata. O nome dá-nos um indício, ao utilizar o vocábulo “garantia”.
Na doutrina italiana, ANTONIO LEFEBVRE D’OVIDIO, GABRIELE PESCATORE e
LEOPOLDO TULLIO, quanto à natureza jurídica desta figura, referem que da mesma emerge
uma obbligazione di garanzia (“obrigação de garantia”)542. GIORGIO RIGHETTI alude ao
conteúdo fidejussessório (“contenuto fideiussorio”) deste instrumento negocial,
referindo-se também a negócio de garantia (“negozio di garanzia”)543. Mas, como afirma,
a eficácia do conteúdo fidejussessório (da carta de garantia) permanece limitada à relação
entre o carregador/expedidor (emissor da carta de garantia) e a transportadora
(destinatária da mesma). Também para ALFREDO CALDERALE, é defensável considerar
que as cartas de garantia constituem uma garantia pessoal atípica, que se colocam à
margem da execução do contrato de transporte, e que é chamada a intervir apenas aquando
da descarga das mercadorias544.
538
Cf. ANDREA ARENA, La polizza di carico e gli altri titolo rappresentativi di trasporto, I, Dott. A. Giuffrè
Editore, 1951, pp. 226 e 227.
539
Aludindo expressamente a este secretismo vd., v.g., MÁRIO RAPOSO, “As cartas de garantia e o seguro
marítimo”, cit., p. 506 e AZEVEDO MATOS, Princípios de Direito Marítimo. Do Transporte Marítimo, II,
Edições Ática, 1956, p. 57: “A carta de garantia permanece secreta, enquanto a mercadoria viaja; só na
hipótese de surgirem dificuldades com o destinatário ou seus representantes, ela aparece.”
540
Cf. ANDREA ARENA, La polizza di carico e gli altri titolo rappresentativi di trasporto, I, Dott. A. Giuffrè
Editore, 1951, p. 227.
541
Cf. AZEVEDO MATOS, Princípios de Direito Marítimo. Do Transporte Marítimo, II, Edições Ática, 1956,
pp. 56-57.
542
Cf. ANTONIO LEFEBVRE D’OVIDIO, GABRIELE PESCATORE e LEOPOLDO TULLIO, Manuale di Diritto della
Navigazione, Dott. A. Giuffrè Editore, 9ª ed., 2000, p. 621.
543
Cf. GIORGIO RIGHETTI, Trattato di Diritto Marittimo, Parte Seconda, Giuffrè Editora, 1990, pp. 1006-
1007.
544
Cf. ALFREDO CALDERALE, “Le lettre di garanzia nel transporto marítimo di merci”, I Jornadas de Lisboa
de Direito Marítimo - O Contrato de Transporte Marítimo de Mercadorias, Almedina, 2008, p. 206.
161
Vejamos se, tecnicamente, é defensável integrar as cartas de garantia na categoria
das denominadas garantias pessoais. Por garantia pessoal entende-se a vinculação de um
sujeito com o seu património para garantir a satisfação de um crédito545. Como paradigma
que deve servir de base às demais garantias pessoais, temos a fiança, cuja caracterização
se pode reconduzir grosso modo a três pilares:
(i) a acessoriedade546 – ser acessória significa que a dívida do fiador surge
moldada per relationem pela dívida do devedor principal547;
(ii) o fim de garantia548; e
(iii) a sua caracterização enquanto negócio de risco ou perigo549.
545
Sobre a garantia como mecanismo dirigido à satisfação do credor, vide Costa Gomes, 2000: 5 e ss..
546
Cf. artigo 627.º, n.º 2, do Código Civil.
547
JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Assunção Fidejussória de Dívida: sobre o sentido e o âmbito da
vinculaçao como fiador, Almedina, 2000, pp.106 e ss..
548
O artigo 627.º, n.º 1, do CC é expresso nesse sentido ao referir que o fiador “garante” a satisfação do
direito de crédito.
549
JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Assunção Fidejussória de Dívida, cit., pp. 18 e ss..
162
CONCLUSÕES
163
e sobre o estado e condição aparentes das mercadorias). Todas elas poderão ser,
em teoria, validamente apostas desde que verificados os respetivos fundamentos.
Neste contexto, a validade das reservas dependerá da “verificabilidade”, em
termos de razoabilidade, das características das mercadorias que ao transportador
caiba inspecionar, devendo ainda ser claras e tão precisas quanto possível.
165
16ª Todavia, as cartas de garantia apenas são admissíveis na medida em que não seja
incumprido o dever de formular reservas. Há, assim, que distinguir entre as cartas
de garantia próprias e impróprias, sendo as primeiras válidas e as segundas
inválidas. Além disso, mesmo as cartas de garantia válidas são dotadas, apenas,
de uma eficácia inter partes.
166
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