Racismo e Extimidade
Racismo e Extimidade
Racismo e Extimidade
Vocês devem saber que Lacan fez a si mesmo essa pergunta. Ele lhe deu
diversas respostas, e a mais evidente é que o Outro do Outro é o sujeito.
Nós tentamos situar a posição do sujeito e a posição do Outro
relacionando-as entre si. Porém, o que nos impede de sustentar essa
definição é que, nesse caso, o sujeito não nos dá nada de substancial, visto
que o definimos como um nada. Nós até barramos o seu significante
escrevendo-o como $. Se ele é o Outro do Outro, ele não nos oferece,
contudo, nenhuma consistência que determinaria esse Outro.
Há uma outra resposta sobre o que seria o Outro do Outro. Ela consiste em
diferenciar o Outro, em diferenciar, por exemplo, o Outro da linguagem e
até mesmo o Outro do significante e o Outro da lei. É inclusive com essa
distinção que Lacan termina seu escrito sobre a psicose.[1] Isso significa
afirmar que o Outro do Outro é um Outro que faz a lei do Outro.
Esse Outro pode ser nomeado por uma palavra da filosofia da lógica, a
saber, a metalinguagem. O Outro da metalinguagem é aquele que faz a lei
do Outro da linguagem. Ele estipula as suas regras – regras de formação da
linguagem, condições de validade de suas fórmulas, do que as torna
aceitáveis ou, ao contrário, as rejeita. Essa posição equivale a afirmar que
há Outro do Outro. É o Outro da lei na medida em que ele se diferencia do
Outro da linguagem. Isso supõe que, nessa ordem, é possível saber com
justeza aquilo que se diz.
Que não há Outro do Outro não é, entretanto, a palavra final dessa história.
Há o gozo. Há o gozo como sendo aquilo em razão do qual o Outro é
Outro, e até mesmo como sendo aquilo por causa do qual o Outro é o
Outro. Como podemos definir esse conceito de Outro do Outro? Pode-se
defini-lo como o que faz Outro o Outro. E isso da maneira mais simples,
dialeticamente, se posso dizer.
Esse humanismo universal, que é um absurdo lógico, quer que o Outro seja
um igual. Supõe-se até mesmo saber como raciocina o Bom Deus como
sujeito suposto saber que a ciência convoca. Isso é acentuar
verdadeiramente que o Outro seja um igual. Esse humanismo se desorienta
completamente quando o real do Outro se manifesta como não sendo de
forma alguma um igual. Há, então, insurgência e escândalo. Não há outro
recurso senão invocar uma irracionalidade qualquer, o que leva a
ultrapassar singularmente o conceito do Outro asséptico.
Tive, certa vez, a ocasião de dizer uma palavra sobre o racismo. O que me
pareceu convir totalmente ao tema da extimidade. Isso lhe deu inclusive
uma espécie de amplitude patética que nos faz suportar a dimensão dessa
questão do racismo. [...].
A ciência não é, de forma alguma, algo que nos exonera do racismo, ainda
que possa existir um bando de sábios para explicar a que ponto a ciência é
antirracista. Pode-se, claro, desconsiderar as elucubrações pseudocientíficas
do racismo moderno, mas o que deve nos reter é o racismo como moderno.
Isso não tem nada a ver com o racismo antigo. Não adianta apelar para os
gregos ou para os bárbaros. Isso não tem nada a ver com a densidade que a
questão adquiriu para nós. Trata-se de um racismo moderno, ou seja, de um
racismo da época da ciência e, também, da época da psicanálise.
É preciso ver bem o resultado que Lacan aponta quanto à intenção daqueles
que só são sensíveis à vocação de universalidade da ciência e que às vezes
torcem o nariz para algumas de suas consequências econômicas e até
mesmo culturais. Uma coisa vai, aliás, junto com a outra. É impressionante
essa cegueira que não quer ver em que o discurso da ciência e a segregação
cultural fazem sistema.
Então, por que um psicanalista pode dizer essas coisas – e não somente no
nível do bom senso, embora seja preciso bom senso nessa questão? Não é
somente enquanto conhecedor do mundo contemporâneo que um analista
pode formular tais coisas. Há algo que faz com que isso possa ser
percebido mais lucidamente a partir do discurso psicanalítico, a saber, o
modo universal – que é o modo próprio com o qual a ciência elabora o real
–, que parece não ter limites, na verdade tem limites.
É próprio a toda utopia social, da qual o século XIX foi pródigo, sonhar
com uma universalização do modo de gozo. É preciso diferenciar o gozo
particular de cada um do gozo que, enquanto modo, se elabora, se constrói
e se sustenta em um grupo. Em geral, não é um grupo muito extenso.
Estamos aí no nível de cada um – não simplesmente de cada um, mas de
cada um em seu próprio canto. Quanto às consequências dessa resposta,
que é o imperativo de gozo do qual cada um é escravo, o discurso científico
não tem nada a dizer, se considerarmos o universal no qual ele se
desenvolve.
Sabemos que o discurso da ciência não tem resposta nem mesmo quando
tentamos fazê-lo responder. Faz-se, por exemplo, educação sexual. É uma
tentativa para fazer de modo que o discurso científico responda. Supõe-se
que ele tenha resposta para tudo, mas pode-se verificar que ele fracassa. É
porque ele fracassa que a psicanálise tem seu lugar, na medida em que ela
procede de um esforço de racionalidade sobre os efeitos desse fracasso.
O biólogo, devido à sua profissão, acredita na relação sexual, uma vez que
ele pode fundá-la cientificamente. Mas é em um nível que não implica que
a relação sexual esteja fundada no inconsciente. Mesmo que o biólogo
verifique que os sexos se relacionem um com o outro, é em um nível em
que isso não fala.
É preciso observar que o discurso da ciência – e aquilo que vem junto com
ele, o discurso dos direitos do homem – teve como efeito contestar, arruinar
esses discursos da tradição. É o que faz a verdade do pensamento
contrarrevolucionário. É um pensamento vão, mas que foi muito bem-visto
desde o momento da revolução francesa por alguém como Joseph de
Maistre.[4] Vimos na sequência as consequências nefastas da soberania
popular.
Com efeito, de vinte anos para cá, como por milagre, há uma afluência de
contribuições, muito apaixonantes, aliás, sobre as matemáticas árabes. Mas
é preciso observar que, se começamos a nos precipitar para saber quais
diferentes etnias ou populações contribuíram mais para o discurso da
ciência, a coisa pode acabar muito mal. Haverá sempre alguém para dizer
“os árabes, sim; mas os africanos, não”. Não há, aliás, entre árabes e
africanos uma grande solidariedade. É muito perigoso reunir as etnias em
torno do que seria sua contribuição ao discurso da ciência. Além do mais,
isso não serve para nada.
Tudo isso nos leva a admitir que se quer bem ao Outro com a condição de
que ele se torne o mesmo. Quando se fazem cálculos para saber se ele
abandonará a sua língua, as suas crenças, as suas vestimentas, a sua forma
de falar, o que se trata de fato de saber é em que medida ele abandonará seu
Outro gozo. É a única coisa que está em questão.
É nesse nível que o racismo tem uma validade, ou seja, no sentido em que
homem e mulher são duas raças. Essa é a posição de Lacan. Duas raças,
não biológicas, mas no sentido da relação inconsciente ao gozo. A
diferença anatômica, sobretudo quando é verificada biologicamente, nos
leva a falar, de preferência, em complementariedade; mas no nível da
relação inconsciente ao gozo, há sexuação. Na sexuação, nós distinguimos
dois. No nível da sexuação, isso faz dois. Dois modos de gozo.
Sabemos, aliás, que sempre foi uma preocupação refrear o gozo feminino.
A educação das jovens foi durante séculos assunto filosófico. Há, aliás, um
efeito bem interessante em vermos progredir as tentativas de uniformização
do discurso da ciência nesse nível, a saber, a promoção do unissex, e isso
em níveis que podem parecer muito fúteis. Quer se trate da língua, da
crença, da vestimenta, vemos progredir esse efeito de uniformização.
Podemos nos alegrar ao ver as mulheres à frente de sociedades
multinacionais americanas. Elas agora estão no nível da tesouraria geral – o
que é bem conforme à tradição da dita burguesa nos cuidados do lar. O
efeito uniformizante se manifesta até mesmo nesse nível.
Acredito, no entanto, ser inoperante afirmar que não há raças. Para que não
houvesse raças, seria preciso que existisse o Outro do homem. Em geral,
para aceder a esse lugar, se faz apelo ao animal, que não pode ocupá-lo
nem dizer o que pensa disso. Essa é toda a questão. Eventualmente, é o
animal que se toma como emblemático de um Outro gozo, aquele que
valeria a pena. Dizer que o animal é o Outro do homem não é convincente.
Seria preciso haver seres falantes de outro planeta para que se pudesse,
finalmente, dizer “nós, os homens”. É o que faz o caráter, no final das
contas tão otimista, da ficção científica. Isso dá uma forma de existência
fantasmática a esse “nós, os homens”.
Portanto, há raças. Há raças que não são físicas. Há raças que respondem à
definição de Jacques Lacan: “uma raça se constitui pelo modo como se
transmite, na ordem de um discurso, os lugares simbólicos”.[5] O que
significa que as raças são efeitos de discurso. Isso não quer dizer
simplesmente efeitos de blá-blá-blá. O que não significa, por outro lado –
como gostaria um gentil professor de medicina –, que se deva tomar as
crianças desde o maternal para lhes explicar que o Outro é o mesmo.
Evidentemente, é mais simpático dizer isso do que dizer que o Outro é o
Outro. Mas seria talvez melhor tornar esse Outro mais dócil do que negá-
lo. Quando se diz que uma raça é um efeito de discurso, isso não quer dizer
que é um efeito de discurso que se sustente na escola maternal. Isso quer
dizer que esses discursos estão aí. Eles estão aí como estruturas. Não basta
soprá-los para que voem. [...].
Notas
Referências
LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose (1957-1958). In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro.
Revisão técnica de Antonio Quinet e Angelina Harari. Preparação de texto
de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 537-590. (Campo
Freudiano no Brasil).