Letra A Letra, o Gozo Da Escrita
Letra A Letra, o Gozo Da Escrita
Letra A Letra, o Gozo Da Escrita
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Sonia Borges*
RESUMO
Longe de representar a fala, como se considerou em todo o pensamento clssico, a escrita, em sua natureza grfica ou figurativa, evoca o corpo
cujo gozo primeiro est perdido, o que diz respeito castrao materna. O
desenhar das letras equivaleria, ento, ao momento mais alucinatrio do sonho, aquele em que o desejo se realiza graas ao poder das imagens. Nos
movimentos necessrios para se escrever, pode-se dizer que o gozo do corpo
faz retorno, a escrita do corpo e o corpo da escrita se confundem.
Palavras-chave: Letra; Corpo; Escrita.
ABSTRACT
LETTER TO LETTER, THE JOY OF WRITING
Far from representing speech, as believed in classical thought, writing,
in its graphic or figurative nature, evokes the body in which the first joy is lost,
which is related to maternal castration. Letter drawing would thus be equivalent
to the most hallucinatory moment of the dream, the moment in which the
desire is fulfilled thanks to the power of images. The joy of the body returns in
the writing gestures: the body of the script merges with the script of the body.
Keywords: Letter; Body; Writing.
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recorre possibilidade de equivocao entre as normas e o enorme da escrita, lnorme e les normes, que em francs so perfeitamente homofnicos:
, talvez, bem verdadeiro que isso lhes foi facilitado [aos gregos]
por no sei que tipo de afinidade particular que eles tinham com
a letra. No podemos dizer como. Sobre isso vocs podem se
reportar s coisas muito atrativas que disse o Senhor James Fvrier,
em no sei que artigo: astcia que constitui, sob o olhar do que
podemos chamar bastante salutarmente de normas da escrita
as normas, no o enorme, apesar de que ambos sejam verdadeiros a inveno grega. (LACAN, [1971-1972] 2003: 98)
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UM SABER AO LADO
Sabemos que Freud encontrou na escrita literria uma antecipao de suas descobertas sobre o inconsciente. Marguerite Duras
(1993), que tanto impressionou Lacan pelo que dizia, sem o saber,
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Lacan ([1965] 2003), em Homenagem a Marguerite Duras, assim se refere escritora: Ela no deve saber que ela escreve o que
escreve. Porque ela se perderia. e isto seria a catstrofe. (LACAN, [1965]
2003: 198).
A ESCRITA DA LETRA-SINTOMA
A desconstruo da concepo clssica de representao, permitiu que se reconhecesse que o inconsciente sabe escrever, e, que
at comete erros de ortografia, salta letras e infringe as leis da gramtica. e que estes supostos erros escrevem desejos advindos da outra cena. Esta a funo da letra que, segundo Lacan, simboliza
efeitos de significante, mas, no se confunde com o significante (LACAN,
[1959-1960] 1988: 123). A escrita , ento, lugar de retorno do
gozo da Coisa recalcada: [a escrita] o retorno do recalcado (...) a
letra volta ao lugar do significante que retorna. Ela vem marcar um
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possa comer. Neste caso, sofre devido s equivalncias que faz entre
as palavras maternais insuportveis e as comidas que julga serem
venenosas.
O sujeito psictico padece do significante no real e, muitas
vezes, como no caso de Wolfson (1970), at a perseguio. A soluo encontrada por ele foi fazer modificaes na lngua materna,
tomando como referncia os sons na sua relao com os pontos em
que, no corpo, eles se realizam. Sobretudo, considerava o ponto de
articulao fonatria das consoantes que, como se sabe, se apiam
em uma localizao corporal ou, mais precisamente, em pontos em
que se fratura o ar no trajeto buco-farngeo. Essa implantao da
letra no real do corpo foi o seu apoio para fazer as passagens de uma
lngua outra.
O procedimento de Wolfson (1970) um rigoroso trabalho
de escrita: por exemplo, para destruir a palavra MAD (louco/a
em ingls), representa esta palavra intercalando letras: MAlaDe
(doente, em francs). Com as operaes transliterativas, ele busca
fazer uma reforma na lngua, como um meio de barrar o gozo invasivo
do Outro, que para ele se apresenta atravs da lngua inglesa. Isto se
d, em decorrncia, da no efetivao da operao de incorporao de que fala Lacan ([1969-1971] 1992) no Seminrio XVII.
Operao da qual resulta a negativizao do significante e do corpo,
que perdem o corpo natural que nunca tiveram. Por isso mesmo,
os sons das palavras no esto para ele enganchados em sentidos,
mas so coisas, como denotam seus procedimentos de cunho
esquizofrnico.
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Neste momento, os efeitos da letra sobre o significante, reconhecveis na escrita, quando se trata do sintoma, tal como Lacan o
tratara at ento, dizem respeito construo da fronteira, do litoral
ou do literal, que faz margem entre o Simblico e o Real, evidenciando que no esto em relao de reciprocidade, no mesmo sentido
em que a relao sexual no existe. Mas, as letras na escrita de Joyce,
ao estilhaar os semblantes promovidos pelas cadeias significantes,
remetem ao gozo puro. Portanto, nem remetem a uma construo
imaginria, nem ao simblico como lugar do Outro e nem mesmo
metaforizariam o Real impossvel.
A escrita de Joyce mostra o que neste momento do ensino de
Lacan o literal. Joyce aproveita-se da letra para furar o simblico,
inscrevendo-as em um movimento, que deslizam de letter a litter,
ou seja, no dizer de Lacan, de letra a lixo ([1971-1972] 2003: 109).
O novo significante, sinthoma, convocado para qualificar esta escrita, que no retorno de um significante recalcado, mas efeito do processo de escrita nele mesmo, irredutvel, a que Joyce est identificado.
Colette Soler (1998) menciona, a este respeito, o incorporal da
literatura de Joyce porque entre Real e Simblico trata-se de um gozo
que no gozo do corpo, mas gozo da letra (SOLER, 1998: 100). Na
conferncia, Joyce, o sinthoma, Lacan (apud AUBERT, 1987) afirma
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O GOZO DA CALIGRAFIA
A realidade fsica dos signos, embora esteja sempre presente, suprimida, no sentido da Aufhebung hegeliana, da realidade de qualquer sistema significante. Mas, como foi dito, tambm
no se pode considerar indiferente, do ponto de vista da estrutura do inconsciente, o que ressaltamos como a especificidade da
escrita, ser uma forma de linguagem que se desenvolve sob a forTEMPO PSICANALTICO,
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respeito ao dipo, o que faz com que suas letras sejam hbridos de
letra e imagens do corpo. Melanie Klein (apud DERRIDA, 1973),
em Ensaios sobre a psicanlise, destaca o valor de objeto fantasmtico
das letras para as crianas:
Quando Fritz escrevia, para ele as linhas representavam estradas
e as letras circulavam sobre elas, sentadas em motocicletas, as
canetas. Por exemplo, o i e o e rodavam juntos e se amavam....
(KLEIN apud DERRIDA, 1973: 110)
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tor pode jogar com o sentido, mas tambm com o gozo, alm do
simblico, de se pintar a letra. O gesto de escrever, assim como o
gesto do pintor, se distinguiria do simples gesto por portar o olhar
como parceiro na construo da fantasia. Como na produo do
quadro, o sujeito que escreve est capturado pela armadilha do olhar,
estando em causa no o sujeito da conscincia reflexiva, mas o do
desejo.
No se poderia pensar o gozo da escrita como advindo, primordialmente, do seu estatuto de jogo com letras? Jogo de presenaausncia, para o qual a letra, por sua natureza, estaria bastante
apta? Lacan diz que a escrita representante de representao
(LACAN, [1970-1971] 1996: 82), e diz o mesmo do jogo do neto
de Freud, o Fort-da, salientando no Seminrio XI (LACAN, [19641965] 1979), que o representante de representao o jogo: com
a brincadeira, visa-se atingir o que no est l enquanto representado.
(LACAN, [1964-1965] 1979: 63).
certo que a interdio da letra como imagem, necessria para
que passe do estatuto de representao imaginria ordem do simblico, uma operao imprescindvel para o escrever. Mas, terra
do litoral, liteira, rasura de todo trao que vem antes, a letra
participa de uma condio de gozo que se revela impossvel de ser
traduzida tal qual. Neste sentido, a escrita no poderia ser vista como
uma estrutura paradoxal, um verdadeiro campo de iluso, criado
pelo vazio dos objetos-letra, objetos transicionais, objeto a que
fazem a sua composio?
REFERNCIAS
BIBLIOGRFICAS
AUBERT, J. (org). (1987). Joyce, Le Sinthome I. In: Joyce avec Lacan. (pp.
21-29) Paris: Navarin diteur.
BRUNO, P. (1999). Antonin Artaud realit et poesie. Paris: LHarmattan.
CORTZAR, J. (1987). Os autonautas da cosmopista. So Paulo: Brasiliense.
DERRIDA, J. (1973). Gramatologia. So Paulo: Editora Perspectiva.
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