Cidade Cultura e Global I Zao
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Carlos Fortuna
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circuitos culturais globais em algumas cidades portuguesas View project
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Ensaios de Sociologia
Carlos Fortuna
(Org.)
2
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Sociologia, Cultura Urbana e Globalização
CARLOS FORTUNA
SOBRE OS COLABORADORES
ÍNDICE REMISSIVO
3
TRADUÇÕES DE:
REVISÃO TÉCNICA:
Carlos Fortuna
4
INTRODUÇÃO
5
INTRODUÇÃO
Carlos Fortuna
áreas disciplinares, quer no interior de cada uma delas. No domínio do urbano, como em
qualquer outro, a vitalidade que as Ciências Sociais retiram do confronto de ideias é
hoje, como sempre, a matriz da sua frutificação. Não é, por isso, desejável que a
multiplicidade de visões sobre a cidade, a cultura urbana e a sociedade, convirja para um
qualquer alinhamento discursivo, conceptual ou analítico. A procura de consensos, tanto
políticos como científicos, é frutuosa apenas enquanto estimule o progresso de cada uma
das partes envolvidas e, assim, ajude a prefigurar uma estratégia comum, capaz, a um
tempo, de reconhecer, e de se reconhecer, na validade discrepante dos contributos
parcelares. Esta parecer ser a condição de um alinhamento virtuoso de diferentes
campos do conhecimento. Da desejável articulação das várias visões sobre a cidade, a
cultura urbana e a sociedade, um trabalho a ser feito por inúmeras mãos, resultará, por
certo, um grau mais elevado de inteligibilidade sobre cada uma delas. Talvez só então se
reduza a ambiguidade que, por ora, a proposta de Park suscita, permitindo, sem
confundir uma com a outra, dizer da sociedade o que se diz da cidade e, inversamente,
compreender a cidade a partir da sociedade.
Partindo do campo particular da Sociologia, as contribuições aqui coligidas estão
atentas ao indispensável cruzamento inter-discursivo sobre o universo urbano e social.
Os textos resultam, na sua maioria, de um Encontro sobre Cultura Urbana, Estilos de
Vida e Práticas de Consumo, que teve lugar em Coimbra como realização conjunta da
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, do Centro de Estudos Sociais e
do Manchester Institute for Popular Culture1. Tratou-se de um Encontro com a
participação de investigadores de diversas áreas das Ciências Sociais, tendo-se optado
por verter para português apenas alguns dos textos apresentados, de raíz mais
marcadamente sociológica.
A avaliação do estado da investigação no domínio da cultura urbana e das cidades em
Portugal, reconhecendo embora o seu progresso recente2, salda-se por um défice de
publicações disponíveis sobre estas matérias, em particular no campo da Sociologia.
Deste modo decidiu-se juntar aos textos seleccionados do referido Encontro, alguns dos
ensaios matriciais dos estudos urbanos. É assim que se justifica a Parte I, que faculta aos
estudiosos portugueses textos clássicos como A Metrópole e a Vida do Espírito, de
Georg Simmel, e O Urbanismo como Modo de Vida, de Louis Wirth. Embora já
disponíveis em edição brasileira, foram agora objecto de nova tradução. Ao seu lado,
pela primeira vez, surge a tradução portuguesa do famoso texto de Walter Benjamin,
Paris, Capital do Século XIX, que é, a todos os títulos, um contributo inestimável para a
leitura sociológica da cidade e da cultura urbana modernas.
É longa de quase dois séculos, a tradição sociológica sobre a cidade e a cultura urbana.
Ela é, evidentemente, o outro lado do processo de urbanização que, com a chamada
Revolução Industrial, começou por alterar a fisionomia do mundo ocidental e continua,
hoje em dia, a modificar as geografias, as mentalidades e as práticas sociais em todo o
7
estar a converter-se numa Sociologia das cidades, por efeito não apenas do
reconhecimento da fragilidade das fronteiras disciplinares que haviam separado e oposto
entre si a cidade e o urbano ao campo e ao rural, mas também da redescoberta do
hibridismo cultural contemporâneo que a cidade exibe, e ainda em resultado da
crescente centralidade de escalas infra-estatais de governação, fruto cruzado da
regulação pós-fordista e da globalização.
A cidade não é uma coisa. Ela reconhece-se simultaneamente como real e
representacional, como texto e como contexto, como ética e como estética, como espaço
e como tempo, socialmente vividos e (re)construídos. Nesta sua implosão, a cidade
torna-se uma alegoria da sociedade e, como que a concretizar a proposta de Robert Park
(1967), o que se diz sobre uma, parece poder dizer-se, cada vez mais, sobre a outra. Por
isso, nos nossos dias, da clássica Sociologia urbana, pouco nos resta para além de uma
cultura do mesmo nome, como conjunto de acções, memórias, representações e
narrativas sociais que se fundem e articulam entre si sob o pano de fundo de um espaço
urbano e de um poder social determinados. A reconceptualização da cidade como
espaço fragmentado e disputado abriu novos campos de análise e fez surgir novos
objectos empíricos de pesquisa, alinhados quer pela atenção conferida aos micro-
regimes de poder na cidade, quer pela influência pós-estruturalista sobre as relações
sociais e as identidades urbanas, quer ainda pelo interesse pós-marxista sobre a cultura
visual, o consumo e os regimes representacionais3. Nesta reinterpretação da cidade não
são apenas os estudos sobre cidades particulares que sobressaem, mas emergem também
como objectos singulares de pesquisa empírica, e em detrimento da meta-narrativa
urbana, os seus (re)arranjos socio-espaciais específicos, a sua economia simbólica e a
natureza dos seus edifícios, monumentos e outros marcadores, ou as suas ruas, parques e
zonas de comércio4. Todos eles interferem com a cultura pública citadina e o discurso
da Sociologia sobre a cidade torna-se, deste modo, crescentemente, um discurso cruzado
com numerosos outros enunciados, de tipo fenomenológico, semiótico e literário
(Ostrowetsky, 1996; Pellegrino, 1994; Westwood e Williams, 1997). Nunca o discurso
sobre a cidade foi tão multifacetado e plural como neste final de século. Nunca
estivemos tão próximos de reconhecer que só no cruzamento de diferentes campos
discursivos e tradições intelectuais pode a cidade re-encontrar-se na plenitude da sua
multivocalidade e polivalência.
Reside aqui um desafio imposto à coerência intelectual. Se, como argumenta Bruno
Latour (1994), para que se concretize, a modernidade deve ser capaz de reflectir sobre a
natureza híbrida das suas próprias construções, também a moderna Sociologia, para
oferecer inteligibilidade à cidade, não pode estar sujeita a interpretações exclusivistas e
monolíticas. Procurou-se respeitar este princípio na presente selecção de textos sobre a
cidade. Poder-se-ia argumentar que uma das suas limitações residiria no facto de se
tratar de um conjunto de textos oriundos de um único campo de reflexão — a
9
Sociologia. Mas esta limitação poderá converter-se em virtude. A sua Sociologia é uma
Sociologia de tempos diferentes (o que é mais notório entre os textos da Parte I e os
restantes), centrada em espaços urbanos muito díspares (como denota toda a Parte III),
com pontos de partida igualmente muito variados (como resulta, por exemplo, das
Partes II e III). Ademais, não existe neste conjunto de textos uniformidade teórica,
analítica, ou temática. Oriundos embora do mesmo campo disciplinar, no seu conjunto,
os ensaios contidos neste livro são, cada um à sua maneira, tentativas de ler
sociologicamente a(s) cidade(s) dos nossos dias. O diálogo com outras narrativas sobre
as cidades é um diálogo interno a todos e cada um dos textos apresentados. É desta
diversidade das partes que, pode-se dizer, se alimenta a unidade do livro no seu
conjunto. Afinal, como a própria cidade moderna, cuja unidade resulta, também ela, da
sua múltipla diversidade.
Na Parte I desta colectânea, incluem-se alguns dos textos que marcaram mais
profundamente o trajecto inicial da Sociologia urbana. Aos pontos de contacto
existentes entre os ensaios de Georg Simmel e de Louis Wirth, contrapõe-se o texto de
Walter Benjamin, um documento precioso, de meados deste século XX, sobre o modo
como a cidade da modernidade se faz de memórias do passado e de crenças optimistas
no futuro.
A Parte II inclui três textos sobre alguns dos vectores do reconhecimento da cidade e da
cultura urbana. Em tempos de globalização, o texto de Mike Featherstone entrelaça o
local com o global e interroga-se sobre o sentido da nossa cultura (pós)moderna. Laura
Bovone pergunta quem são, como actuam e que visões fornecem os novos agentes da
intermediação cultural, responsáveis pela atribuição de sentidos à cultura urbana. Alan
Warde, por seu turno, ilustra, recorrendo ao campo da gastronomia, a pertinência das
acções de intermediação cultural na combinação de universos imaginários com práticas
sociais e modos de apresentação estilizada do corpo.
A Parte III desta selecção de textos recolhe seis estudos de caso sobre diferentes cidades.
O que os une entre si é a ampla concepção de cultura urbana que deles se recolhe. Sem
que seja objecto de análise detalhada, todos os casos têm por referência a alteração dos
modos de estar e de imaginar a cidade em tempos de globalização da cultura, da
economia e dos modos de governação. Mas a globalização tem as suas raízes históricas,
territoriais e institucionais. Sem que nos dediquemos a esta questão em pormenor,
todavia, os leitores não estranharão que tentemos, de seguida, uma breve incursão sobre
a história recente do pensamento ocidental sobre a cidade moderna, a que se seguirão
algumas referências aos textos aqui incluídos, com destaque maior para os textos
clássicos da Parte I.
Uma das mais divulgadas teses sobre a natureza da cidade medieval europeia é a de
Henri Pirenne (1973). Na sua obra sobre as cidades medievais, o historiador belga faz
depender a dinâmica urbana das relações mercantis, fazendo ancorar aí o poder da
cidade e a sua independência política. O comércio, sobretudo o comércio mediterrânico
de longa distância, que tivera efeitos desastrosos para as cidades europeias e o próprio
Império Romano, revela-se decisivo, igualmente, para a redinamização urbana posterior
ao século XI. À medida que enriquecem e se autonomizam perante a aristocracia e o
clero, mercadores e comerciantes, residentes sub-urbe, ou seja, literalmente, nas
vertentes "abaixo da cidade", situada, estratégica e simbolicamente, no alto do monte
(LeGates e Stout, 1996: 37), transmitem à esfera urbana um sentido público de uma
comunidade construída em redor do comércio e troca de mercadorias. O mercado
converte-se no elemento central da vida urbana e as cidades medievais passam a
constituir verdadeiros oásis de promessas de liberdade num mundo de obrigações
feudais. Stadtluft macht frei!, o velho aforismo da pré-moderna Alemanha além-Elba,
encontra aqui a sua raíz.
O dinamismo daquela classe média, de feição mercantil e comercial, foi responsável não
apenas pelas alterações das relações sociais, políticas e económicas da cidade, mas
igualmente, como testemunham os trabalhos de Braudel ou Wallerstein, induziu a
expansão do capitalismo e, com ele, a preponderância crescente das relações cidade-
cidade, em consequência do comércio de longa-distância, sobre as relações cidade-
campo. O cenário urbano vai alterar-se profundamente e a busca dos seus fundamentos
continuou a ser objecto de variadas investidas na história da vida urbana. Entre estas
destaca-se a obra de Max Weber que, ao contrário de Pirenne, não limita a análise da
cidade medieval ao impacto oscilante da sua componente económica e mercantil. Da
pesquisa histórica de Weber sobre a cidade, condensada num conjunto de notas
recolhidas entre os anos de 1911 e 1913 e feitas editar, postumamente, em 1921, por
Marianne Weber, ressalta uma concepção plural de cidade. Com efeito, Max Weber não
se restringe apenas à cidade ocidental (europeia), fazendo também incursões na cidades
orientais, mas, mais do que isso, entende a cidade como uma espécie de urbanismo
pleno, não tanto no sentido da intensificação e multiplicação das relações sociais, como
entenderia Simmel, por exemplo, mas no sentido da crescente autonomia da esfera
urbana, não restringida à actividade económica que nela se desenrola (Weber, 1982).
Pesem embora, por um lado, o reconhecimento da centralidade do mercado e da
produção e, por outro, a justeza histórico-empírica da sua interpretação (Hannerz, 1980:
86), este urbanismo pleno de Weber reconhece na cidade medieval uma entidade
multifacetada, dotada de instituições políticas e associativas, jurídicas e burocrático-
administrativas, relativamente autónomas.
Vários autores têm feito notar, ou mesmo lamentado, o facto de Weber se ter restringido
à análise da cidade medieval e barroca. O mesmo se poderia, aliás, dizer de Werner
11
Sombart, seu contemporâneo, que, no seu Amor, Luxo e Capitalismo, quando se debruça
sobre a cidade se detém no século XVIII (Sombart, 1983: cap. 2). Há dois aspectos
histórico-sociológicos do trabalho de Weber, que importa fazer ressaltar como legado
intelectual da sua reflexão: em primeiro lugar, o facto de ter produzido uma influente
leitura global da constituição da cidade ocidental; em segundo lugar, o de ter ensaiado
uma explicação para o surgimento de três tipos-ideais de sociabilidade urbana,
protagonizados pelo cidadão, o estranho e o empresário capitalista (Jonas, 1995a: 28).
Isto não quer dizer que Weber, e para esse efeito também Sombart, desprezassem a
cidade da era pós-renascentista e industrial. Com efeito, embora não lhe dediquem uma
análise sistemática e aprofundada, pode dizer-se que a cidade moderna está subjacente
enquanto terreno singular de acção social, fórmula política e figuração cultural
específica, tanto em Economia e Sociedade (Weber, 1978), como em O Capitalismo
Moderno (Sombart, 1978).
À medida que o capitalismo se industrializa, a cidade sofre transformações de monta. A
cidade medieval que crescera e florescera, como vimos, em resultado da sua capacidade
para incorporar e fazer sua a iniciativa política, económica e cultural das classes
mercantis, isto é, a cidade que crescera e florescera num movimento das margens para o
centro, torna-se, com o capitalismo industrial, uma cidade de conflito aberto e de
fragmentação social sem precedentes.
Friedrich Engels ofereceu, em 1845, o mais acutilante relato das condições de vida
típicas da cidade industrial de meados do século XIX. Para Engels a cidade industrial é
um produto directo do capitalismo industrial e, como tal, é o cenário aberto da luta de
classes. A sua dramática leitura política da cidade é pautada, por um lado, pelo
testemunho directo do horror vivido pelo proletariado urbano-industrial de Manchester
e, por outo lado, pela denúncia das estratégias de segregação de classe impostas pela
burguesia. Quanto a este último aspecto, para Engels, a imagem que a burguesia procura
instaurar na cidade industrial inglesa por excelência, é a de uma cidade onde o conflito
está ausente:
das cidades, mas alterou também a sua ordem social interna. Ao contrário da cidade
medieval, pode-se dizer, a cidade do capitalismo industrial cresce a partir do centro
saturado para as margens em expansão.
Tal desenrolar inspirou uma vastíssima e aguerrida reflexão anti-urbana, alimentada não
apenas pelos malefícios da industrialização e da monetarização das relações sociais,
como no caso de Engels, mas principalmente pela ideologia burguesa que acusa a cidade
de promover a degradação cívica e moral dos cidadãos, precarizar a sua condição física
e intelectual e instigar a desordem, o vício e a doença (por exemplo, Stallybrass e White,
1986; Short, 1991). Em contraste com este pessimismo urbano, nas sociedades em que
se tornara impossível oferecer o campo e a vida rural como alternativa mercê da massiva
fuga para a cidade, os subúrbios das grandes cidades eram frequentemente referidos
como a solução mais segura, onde a família, a estabilidade e a comunidade de valores
podiam desenvolver-se a coberto dos riscos da grande cidade (Chaney, 1994; Stilgoe,
1988). Em pleno século XIX, como de resto ao longo de todo o século XX, tanto a
crítica anti-urbana como a defesa do subúrbio recolheram aplausos e contestações, tanto
no domínio político e das ideologias, como no domínio da investigação em Sociologia,
em Geografia, ou nos estudos de planeamento e urbanismo. Interessa-nos aqui apenas
referir que, em nosso entender, teorizações em redor dos "lugares centrais", ou dos
"círculos concêntricos" da expansão urbana, projectos sobre as "cidades-jardim",
movimentos de "rurbanização" e "contra-urbanização" se alimentam, todos eles, de uma
maneira ou outra, do reconhecimento de uma transformação radical da natureza e das
funções da cidade que, com diferentes matizes e graus de intensidade, tem subjacente ou
enuncia o seu fim, enquanto entidade centralizadora e espaço homogéneo.
A natureza do ensaio de Engels coloca-o, ao lado das interpretações históricas de Weber
e Sombart sobre a cidade, entre os trabalhos precursores de uma reflexão sociológica
sobre os modos de organização e a estrutura social das cidades. Com estes, mas também
com Georg Simmel e Ferdinand Tönnies, consolida-se uma linha de pensamento, de raíz
germânica5, sobre o que podemos considerar ser a cultura urbana. Emerge, assim, um
objecto novo em que ressaltam práticas políticas e comportamentos sociais, valores
culturais e universos mentais que, forjados na interacção urbana, no entanto, não se
confundem com a cidade, a sua morfologia e a sua estruturação espacial.
Um dos mais destacados pensadores da cultura urbana moderna é Georg Simmel de
quem reproduzimos aqui um dos seus mais célebres ensaios. A interrogação de Simmel
sobre a natureza da modernidade conduz-se por linhas metodológicas que pouco ou
nada têm a ver com a matriz utilizada por Weber ou Sombart. Desde logo, Simmel não
procede a uma análise histórico-comparativa e a sua preocupação com o que é "novo" e
"moderno" na sociedade da viragem do século XIX desenrola-se em exclusivo pelo
recurso às representações mentais, aos modos de percepção/apropriação e à experiência
vivida dos sujeitos. A interferência do capitalismo e da monetarização da economia
13
responsável pela insegurança dos indivíduos e confere à vida urbana um forte sentido de
imprevisibilidade.
São numerosas as críticas dirigidas a esta matriz teórica e à validade das suas
respectivas antinomias (por exemplo, Hannerz, 1980; Saunders, 1993; Savage e Warde,
1993, entre outros). Em síntese, pode dizer-se que o que mais é criticado em Wirth é o
facto de as suas três variáveis explicativas se articularem entre si e, ipso facto, definirem
sociologicamente a cidade de modo diferente consoante o tempo e o espaço que se
considerem. A verdade desta observação, porém, deve ser relativizada, porquanto o
ensaio de Wirth visa estabelecer as coordenadas principais do "modo de vida" urbano,
entendido como tipo-ideal, colocando-se, portanto, num plano universalizante de
interrogação que não corresponde ao plano empírico e casuístico donde é oriunda a
maioria das críticas que lhe têm sido dirigidas.
Contemporâneo de Wirth, Walter Benjamin encontra-se noutra latidude. A sua visão
sobre a metrópole distancia-se claramente do viés empiricista do sociólogo americano,
como evidenciam as suas Passagen-Werk, de onde é retirado o texto que aqui incluimos.
As Passagen-Werk não chegaram nunca a constituir um livro mas tão-somente uma
colecção de anotações fragmentárias que Benjamin terá coligido a partir do ano de 1927
e incompletas à data do seu suicídio, em Setembro de 1940, durante a mal sucedida fuga
de França a caminho dos Estados Unidos da América (Buck-Morss, 1993). O título
Passagen-Werk foi-lhes dado pelos responsáveis pela edição alemã dos 6 volumes que
compreendem as mais de 900 páginas de notas a que o autor havia chamado
Passagenarbeit ou simplesmente Passagen. Paris, Capital do Século XIX começou a
ganhar forma em 1934 e, sobretudo, no ano seguinte quando Benjamin preparou, em
alemão, o seu exposé sobre Paris (a que se seguiria um segundo, de 1939, escrito em
francês).
Organizada em seis "secções" (com uma introdução e uma conclusão na versão de
1939), esta espécie de catálogo temático da grande cidade articula, em cada uma delas,
uma figura história e um determinado acontecimento ou situação ("Fourier e as
Galerias", "Daguerre ou Panoramas", "Grandeville ou as Exposições Universais", "Luis
Filipe ou os Interiores", "Baudelaire ou as Ruas de Paris" e, por fim, "Haussmann ou as
Barricadas"). Nas primeiras três "secções" Benjamin põe em claro alguns exemplos da
pujança técnico-produtiva da época moderna, por exemplo a utilização do ferro na
construção, e relaciona-a com os ideais sociais, utópicos uns, pragmáticos outros, de
personalidades como Fourier, Grandeville ou Daguerre. A técnica e a arte (o ferro, a
fotografia, o panorama e o cinema, por exemplo) e a imaginação social e teórica
parecem convergir na "expressão de um novo sentido de vida" caucionado pela
interpenetração do Passado com o Futuro. Em Benjamin, esta interpenetração traduz a
relação tensa, senão dramática, da existência humana. O passado, o fragmento da
memória e a autobiografia, que, aliás, constituem outros tantos elementos do método de
17
flâneur de Benjamin que representa o modo como o autor de Paris, Capital do Século
XIX predente pôr a claro a estrutura mítica dos impulsos, aspirações e ansiedades que
perpassam o quotidiano vivido da cidade (Shields, 1996; Jenks, 1995; Tester, 1994). O
flâneur de Benjamin, ele próprio uma apropriação da imagem metafórica com que
Baudelaire (1993) ilustra a personalidade descomprometida e, em simultâneo, o
intérprete perspicaz da modernidade, é a personificação da ambiguidade típica da cidade
moderna. Produto híbrido, resultado do cruzamento das modernas multidões urbanas
com a lógica do consumo de massas, o flâneur alimenta-se e disfarça-se de umas e de
outra. Da sua anónima e diletante versatilidade, o flâneur retira uma capacidade muito
particular para "ver" a modernidade e devolver dela e das suas múltiplas representações
e redes de significação, uma imagem fiel porque, paradoxalmente, translúcida, e
consistente, porque volátil e transitória. Se "chaque époque rêve la suivante", se
tentarmos ser fiéis ao pensamento analítico de Benjamin, devemos interrogar-nos, meio
século passado sobre a sua escrita, de que modo os seus boulevards haussmannianos, ou
as suas galerias de Paris, ou a sua flânerie, enquanto expressões de uma cultura urbana e
de consumo se consolidam, irradiam sentido, prefiguram e tornam intelígivel o nosso
trajecto colectivo presente. Dados os propósitos desta antologia, não devemos senão
referir que, ora implícita, ora explicitamente, são vários os textos aqui coligidos que
procuram dialogar com Paris, Capital do Século XIX. Não é de todo dispicienda esta
referência, porquanto, como bem assinalam Savage e Warde (1993: 123), a obra de
Walter Benjamin, abundantemente discutida na teoria literária, tem permanecido na
penumbra ou tem mesmo estado ausente das agendas de investigação sociológica, pese
embora o seu valioso contributo para a compreensão da cultura urbana moderna.
CIDADES E GLOBALIZAÇÃO
locais e regionais como base da reconstrução da vida política, social e cultural da cidade
(Meller, 1990). Divulgado e expandido mais tarde por Peter Hall (1966), o conceito de
Cidade Global encontra-se hoje enquadrado pelo processo de globalização dos fluxos
económicos, culturais e de governação da era da flexibilização pós-fordista (Harvey,
1989). Neste quadro, é justo mencionar o trabalho de Saskia Sassen (1991; 1994) que
contraria a tese da inépcia da cidade, ao chamar atenção para os efeitos regeneradores
recentes que a globalização pode ter sobre alguns centros urbanos. Com efeito, a
investigadora da Universidade de Columbia faz ressaltar a capacidade das "cidades
globais" (Nova Iorque, Londres, Tóquio) para traduzirem em termos locais e tirarem
partido dos processos de globalização, suplantando os seus constrangimentos e
tornando-se centros nevrálgicos da alta finança, da tecnologia de informação, do
marketing e da administração multinacional e dos serviços de ponta. Os critérios de
Saskia Sassen são exclusivistas e, ao destacarem os poderes económicos, financeiros e
tecnológicos como suporte das "cidades globais"8, eliminam muitas outras
possibilidades, nomeadamente de ordem cultural, que podem "globalizar" a cidade e
torná-la dinâmica.
Perante o actual processo de desterritorialização dos fluxos económico-financeiros,
tecnológicos e culturais-informativos, o desafio está na capacidade das diferentes
cidades para procederem à sua reterritorialização, o que independe da dimensão das
cidades, para se referir, antes, à intensidade, grau e espessura com que sejam capazes de
se dotarem de segmentos desses fluxos. A redinamização globalizante da cidade
apresenta-se sempre no quadro de uma vertente interna (natureza e diversidade de
equipamentos, fixação de funções sócio-económicas, promoção de uma identidade
coerente) e de uma vertente externa (lugar de suporte e captação parcelar de fluxos
globais, atracção de movimentos de pessoas em circulação transnacional). O que está
em causa, portanto, é a necessidade de uma concepção mais flexível e ampla do
processo de globalização, capaz de dar conta das inúmeras situações e possibilidades de
as cidades se reposicionarem no actual contexto sócio-político internacional.
Uma das interpretações heuristicamente mais valiosas de globalização é a fornecida por
Boaventura de Sousa Santos que a entende como mecanismo "pelo qual determinada
condição ou entidade local consegue estender a sua influência a todo o globo e, ao fazê-
lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade
rival" (Santos, 1997). Tanto o "global" como o "local" surgem aqui como conceitos
relacionais. Aplicada ao contexto particular da cidade, a capacidade da sua
redinamização pela globalização depende da figuração de outras "globalidades" ou de
outras "localidades" que em conjunto se perfilam no decurso da actual concorrência
inter-cidades.
A dimensão relacional deste binómio global-local torna possível ajuizar do grau e da
espessura com que cada cidade pode reforçar as especificidades locais, alargar ou
20
CIDADES EM ANÁLISE
Ensaios de Sociologia, espera-se que, em função dos seus diversos pontos de partida e
interrogações, possa contribuir para a construção de um discurso tão multifacetado e
plural como a própria cidade, o qual, por isso mesmo, se nos apresenta como o único
discurso capaz de lhe conferir mais sentido e maior inteligibilidade. Esse será um dos
possíveis, e desejáveis, pontos de chegada deste livro.
28
NOTAS
1 Gostaria de expressar o meu agradecimento a estas instituições, mas também à Junta Nacional de
Investigação Científica e Tecnológica, pelo apoio parcial concedido à organização do Encontro. Desejo,
igualmente, agradecer aos autores dos diferentes textos apresentados ao Encontro e aqui incluídos a sua
disponibilidade e a prontidão com que aceitaram sugestões e procederam a alterações dos seus originais.
Por fim, a minha gratidão a Derek Wynne, Claudino Ferreira, Paula Abreu, Paulo Peixoto e Alexandra
Dias, pelo apoio concedido, quer na organização do Encontro, quer no tratamento final desta selecção de
textos.
2 Estou a pensar, entre outros, nos trabalhos de Carlos V. de Faria (1980), A. Fonseca Ferreira (1987),
Vítor M. Ferreira (1987), Isabel Guerra (1991), Teresa B. Salgueiro (1992), Eduardo B. Henriques
(1996), Nuno Serra (1996) e os contidos em diferentes colectâneas (Tavares, 1993; AAVV, 1987; 1988;
1990a; 1990b; 1993).
3 Henri Lefebvre, com a sua concepção de espaço "socialmente construído", simultaneamente homogéneo
e fragmentado, é um dos autores mais destacados neste movimento de reconceptualização do elemento
urbano. Para este pensador francês, a cidade definir-se-á menos pelo seu elemento físico construído e a
sua arquitectura, mas antes pelas práticas espaciais que nela têm lugar, nomeadamente, as práticas de
representação do espaço e dos poderes políticos e sociais (Lefebvre, 1991). Pode dizer-se que Lefebvre
contribui para fazer deslocar a análise da cidade dos termos que a dominaram até aos meados dos anos 80,
onde a economia política da cidade, a importância do (consumo do) espaço, as lutas e os movimentos
urbanos ganharam relevo, como o testemunha a interessante discussão em redor dos trabalhos de M.
Castells (1973), D. Harvey (1973) e P. Saunders (1980).
5 Algo paradoxalmente, porquanto, menos consolidada institucionalmente, foi a Sociologia alemã que
pioneiramente se dedicou a esta nova reflexão (Sennett, 1969; Jonas, 1995b). Enquanto a Sociologia
urbana e a análise da cultura das cidades têm uma dimensão pouco mais que marginal em Inglaterra, nesta
parte final do século XIX, em França ambas começam a ganhar destaque com os trabalhos de E.
Durkheim, M. Mauss, M. Halbwachs e P. H. Chombart de Lauwe. Nos EUA, seria preciso esperar
algumas décadas pelos contributos da Escola de Chicago, nomeadamente pelos trabalhos de R. Park, E.
Burgess e L. Wirth, entre outros.
6 Quando não referidas explicitamente as suas fontes, estando subentendida a sua autoria, as citações
dizem respeito a textos inseridos nesta antologia.
7 Esta espectacularidade pode ser ilustrada na fórmula condensada, oferecida por Schivelbusch (1988:
148) sobre a cidade "a montra iluminada como palco, a rua como teatro e os transeuntes como audiência".
8 Em oposição ao efeito centralizador que Saskia Sassen atribui à cidade em resultado da globalização,
encontram-se numerosas interpretações alternativas, que destacam a natureza fundamentalmente
descentralizadora, por isso desigual nos seus efeitos, da moderna tecnologia de informação. Nesta linha de
argumento, vejam-se os trabalhos recentes sobre o redesenvolvimento desigual (por exemplo, Massey e
Allen, 1988).
29
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Kanter, R. M., 1995, World Class: Thriving Locally in the Global Economy. Nova Iorque, Simon &
Schuster.
King, A. (ed.), 1996, Re-presenting the City: Ethnicity, Capital and Culture in the 21st Century
Metropolis. Houndmills e Londres, Macmillan.
Latour, B., 1994, Nous n'avons jamais été modernes. Paris, La Découverte.
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32
Parte I
METRÓPOLE,
URBANISMO E
VIDA URBANA
33
CAPÍTULO 1
Georg Simmel
comum, ou seja, o valor de troca, e reduz a um nível puramente quantitativo tudo quanto
é qualitativo e individual. Todas as relações emocionais entre as pessoas assentam na
sua individualidade, enquanto as relações de tipo racional as convertem em números,
isto é, tratam-nas como se fossem elementos que, embora indiferentes em si, no entanto,
se revelam de interesse quando vistas em termos objectivos.
É deste modo que o habitante da metrópole negoceia com o seu comerciante, com o seu
cliente e com o seu empregado e, frequentemente, com as pessoas com quem se vê
forçado a relacionar-se. Estas relações contrastam com a natureza do círculo restrito em
que o conhecimento inevitável das características individuais revela, também
inevitavelmente, as condutas de tonalidade emocional e um ambiente que está para além
da mera avaliação objectiva das tarefas desempenhadas e das correspondentes
retribuições.
A questão central desta dimensão económico-psicológica reside no facto de que, nas
culturas menos desenvolvidas, a produção se destinava ao cliente que solicitava o
produto, de tal modo que produtor e comprador se conheciam reciprocamente. A cidade
moderna, porém, é abastecida, quase exclusivamente, por uma produção destinada ao
mercado, ou seja, destinada a compradores totalmente desconhecidos, que não chegam
nunca a ser vistos pelos produtores. Deste modo, os interesses de cada uma das partes
adquirem uma dimensão de incontornável objectivismo, sem que a avaliação económica
egoísta se veja ameaçada por qualquer desvio decorrente da imponderabilidade das
relações pessoais. Isto é particularmente saliente na economia monetária que predomina
na metrópole, da qual foram erradicados todos os vestígios da produção familiar e da
troca directa e na qual a produção autónoma diminui de dia para dia.
Além disto, esta atitude psico-intelectualista e a economia monetária encontram-se de tal
maneira interligadas que é impossível garantir se foi a primeira que deu origem à
segunda ou vice versa. A única certeza que temos é que a forma de vida na metrópole é
o terreno que melhor alimenta esta interacção, um aspecto que procurarei demonstrar
recorrendo à afirmação do mais destacado historiador constitucional inglês, segundo a
qual Londres nunca foi o coração de Inglaterra, mas tão só, e permanentemente, o seu
cérebro e a sua casa-forte.
Entre algumas características ou traços, aparentemente insignificantes, dos aspectos
exteriores da vida encontramos um conjunto de tendências mentais típicas. O espírito
moderno tornou-se crescentemente um espírito calculista. O rigor do cálculo da vida
corrente, resultante da economia monetária, corresponde ao ideal das ciências naturais,
nomeadamente, à ideia de transformar o mundo numa questão aritmética e de fixar cada
uma das suas componentes numa fórmula matemática. Foi a economia monetária que,
assim, trouxe ao quotidiano de inúmeras pessoas as dimensões da avaliação, do cálculo,
da enumeração e da tradução em termos quantitativos dos valores qualitativos. Devido à
característica de calculabilidade do dinheiro, instalou-se, nas relações entre os diferentes
36
uma das poucas para que dispomos de uma explicação relativamente segura. É o
seguinte o estádio mais rudimentar de organização social que se pode encontrar tanto no
passado como no presente: um grupo relativamente pequeno e praticamente fechado
tanto a rivais como a vizinhos, dotado de uma tal coesão interna que os seus membros
dispõem apenas de um limitado espaço de manobra e de desenvolvimento autónomo das
suas qualidades individuais. Os grupos políticos e de parentesco tiveram a sua origem
neste modelo, como de resto também as associações religiosas e partidárias. No início,
para se auto-conservarem, as colectividades exigem uma definição clara de fronteiras e
têm uma unidade centrípeta que não tolera nem a liberdade de acção, nem os
particularismos interiores e exteriores do desenvolvimento individual. A partir deste
patamar, a evolução da sociedade prosseguiu por duas linhas de rumo que, embora
divergentes, se articulam entre si. À medida que o grupo cresce, numérica e
territorialmente, e amadurece o seu sentido de vida, a sua coesão interna mais imediata e
a clareza da demarcação originária de fronteiras vêem-se enfraquecidas e tornam-se
maleáveis, por efeito das interacções e comunicações recíprocas. Ao mesmo tempo, o
indivíduo vê reforçada a sua liberdade de movimento muito para além do espaço antes
cobiçado e, por efeito inerente à intensificação da divisão de trabalho, adquire
reconhecimento e individualidade. Todavia, muitos dos atributos particulares e das
potencialidades da condição individual podem provocar alterações ao esquema geral.
O Estado e o cristianismo, as guildas, os partidos políticos e um sem número de outros
grupos desenvolveram-se de acordo com esta regra. Esta tendência, contudo, parece-me
poder ser reconhecida também no desenvolvimento da individualidade no contexto da
vida urbana. Na Antiguidade, como na Idade Média, a vida da pequena cidade impunha
tais limitações aos movimentos dos indivíduos, na sua relação com o mundo exterior, e
à sua diferenciação e independência pessoal, que, sob tais condições, o sujeito moderno
não poderia sequer respirar. Mesmo nos nossos dias, o habitante da metrópole, ao ser
colocado numa pequena localidade sente-se tolhido de forma muito semelhante. Quanto
mais restrito for o círculo em que nos movimentamos e mais limitadas forem as relações
que ultrapassam as suas fronteiras, maior é a ansiedade com que a pequena comunidade
observa os movimentos, a conduta e as atitudes dos seus membros, e mais estes tendem
a firmar os seus atributos, quer em termos de qualidade quer de quantidade, para além
dos limites da comunidade.
A velha polis parece ter tido, neste domínio, a dimensão da pequena localidade. A
incessante ameaça, que inimigos próximos e longínquos representavam, deu origem a
uma severa coesão política e militar, ao controlo de uns cidadãos por outros e à inveja
colectiva do indivíduo cuja repressão da vida privada se fazia compensar pelo
despotismo familiar que exercia. O colorido ímpar da vida de Atenas e a sua enorme
agitação e exaltação, talvez só possam ser compreendidos se atendermos a que um povo
de inigualável individualização pessoal se tinha de confrontar, permanentemente, com a
40
de meios de vida dá lugar à luta entre seres humanos, sendo os benefícios por que se
confrontam assegurados, não pela natureza, mas pelo homem. Estamos perante não
apenas a já referida capacidade de especialização mas, principalmente, aquela outra
capacidade de o vendedor ter que incutir naqueles a quem pretende vender o sentimento
de novas e singulares necessidades. A necessidade de especialização num determinado
produto, ou numa função difícil de suplantar, como forma de assegurar um rendimento,
promove a diferenciação, o grau de exigência e a qualidade das necessidades do público,
o que, evidentemente, conduz ao aumento das diferenças entre as pessoas.
Todos estes aspectos levam ao estabelecimento do mais elementar traço da
individualização intelectual das qualidades mentais a que a cidade pode dar origem em
função da sua dimensão. Há uma série de razões para que assim suceda. Acima de tudo,
a dificuldade em atribuir à personalidade de cada pessoa um estatuto individual
determinado no contexto da vida da metrópole. Onde quer que o aumento da riqueza e
das energias tenha atingido o seu limite, viramo-nos para as diferenças de qualidade de
modo a que, beneficiando da sensibilidade à diferença, possamos fazer recair sobre nós
as atenções de todo o universo social. Isto acaba por conduzir ao aparecimento das mais
estranhas excentricidades, a extravagâncias de auto-distanciação tipicamente
metropolitanas, ao capricho e ao tédio, cujos significados já não derivam, em si, da
actividade desempenhada, mas do facto de esta ser uma forma de se "ser diferente" e de
se fazer notar. Para muitas pessoas, a estratégia de captação da atenção de outrém
continua a ser a única forma de preservar alguma auto-estima e de salvaguardar o seu
sentido de lugar.
Nesta mesma direcção opera um factor aparentemente insignificante, mas cujos efeitos
cumulativos são evidentes, nomeadamente, a brevidade e a raridade dos encontros a que
cada um se dispõe, quando comparados às relações sociais da pequena localidade. Isto é
revelador da tentativa de nos insinuarmos, de modo breve, incisivo e autónomo, com
muito maior frequência do que na pequena localidade, onde os encontros frequentes e
duradouros asseguram uma apreciação inequívoca do carácter de cada um. A meu ver,
esta é a razão mais profunda pela qual a metrópole acentua o empenho nas formas mais
individualistas de existência pessoal, independentemente de serem ou não as mais
adequadas e bem sucedidas. O desenvolvimento da cultura moderna caracteriza-se por
aquilo que podemos considerar ser a preponderância do espírito objectivo sobre o
espírito subjectivo. Tanto a linguagem corrente como o direito, tanto as técnicas de
produção como a arte, a ciência ou o ambiente doméstico, têm incorporado uma espécie
de espírito cujo desenvolvimento regular só muito remotamente, e sempre de forma
indirecta, se pode comparar com o desenvolvimento intelectual dos indivíduos. Se, por
exemplo, passássemos em revista a ampla dimensão cultural que, no decurso do século
passado, foi incorporada pelos objectos e pelo conhecimento, pelas instituições e pelo
bem-estar material, e a comparássemos, durante o mesmo período, com o progresso
43
cultural dos indivíduos, pelo menos os das classes superiores, dar-nos-íamos conta da
diferença assustadora dos níveis de crescimento cultural, o que traduz, a muitos títulos,
uma regressão da cultura dos indivíduos, por referência à espiritualidade, à delicadeza e
ao idealismo. Tal discrepância é essencialmente o resultado do sucesso da intensificação
da divisão do trabalho. Na verdade, esta exige do indivíduo um desempenho cada vez
mais especializado, o qual, atingido o seu máximo, provoca a degeneração da sua
personalidade, como sucede tão frequentemente. Este exagerado crescimento da cultura
objectiva tem-se revelado cada vez menos benéfico para o indivíduo. Talvez por estar
menos consciente do que activo, enredado pelo obscuro complexo dos seus sentimentos,
o indivíduo vê-se reduzido à condição de desprezível expressão numérica. Torna-se um
mero elemento da engrenagem dominado pela implacável organização material e por
forças que, gradualmente, o privam de tudo o que tenha a ver com progresso,
espiritualidade e virtude. Estes elementos, de natureza subjectiva, são transformados em
pura existência objectiva, pelo funcionamento daquelas forças.
Basta assinalar que a metrópole é a sede desta cultura que eliminou todas as
características da pessoa. Nos edifícios e nas instituições educativas, nas maravilhas e
nas benesses das técnicas de conquista de espaço, na constituição da vida social e nas
instituições estatais concretas, por todo o lado, deparamos com impressionantes formas
de cristalização e despersonalização dos empreendimentos culturais, perante as quais a
personalidade dos homens, por assim dizer, só muito dificilmente pode ser conservada.
De um certo ponto de vista, a vida fica infinitamente mais facilitada no sentido de que
os estímulos, os interesses e a afectação do tempo e da atenção surgem de todos os lados
e conduzem-na por um fluir que pouco ou nada exige dos indivíduos. De um outro
ponto de vista, porém, a vida é cada vez mais composta por elementos da cultura
impessoal, objectos e recursos que suprimem idiossincrasias e interesses pessoais
específicos. Em resultado, para que sejam conservados estes interesses pessoais, têm que
surgir novas ligações, particularidades e formas de individualização, cujo excesso é a
condição fundamental para o seu reconhecimento, até mesmo por parte dos próprios
indivíduos. A atrofia da cultura subjectiva, resultante da hipertrofia da cultura objectiva,
é uma das razões da repulsa amarga que os defensores do individualismo extremo, na
senda de Nietzsche, dirigem contra a metrópole. É, ao mesmo tempo, a explicação para
que sejam tão intensamente admirados na metrópole e surjam mesmo, aos olhos dos
habitantes, como arautos dos seus mais profundos desejos.
Quando estas formas de individualismo, alimentadas pelas relações impessoais da
metrópole, como sejam a autonomia e o desenvolvimento dos particularismos pessoais,
são analisadas por referência à sua evolução histórica, a metrópole reveste-se de valores
e significados totalmente novos para a história do pensamento universal. O século XVIII
veio encontrar os indivíduos sujeitos a forças poderosas, embora já destituídas de
sentido — vínculos políticos, rurais, corporativos e religiosos — que impunham ao ser
44
NOTA
1 Texto publicado orginalmente em 1903 com o título "Die Grosstädte und das Geistesleben", in Die
Grosstadt: Jahrbuch der Gehe-Stiftung zu Dresden (Band IX), Dresden: v. Zahn & Jaensch. Adoptou-se
aqui a versão inglesa traduzida por Edward A. Shils, incluída em Georg Simmel: On Individuality and
Social Forms, editada por Donald N. Levine (The University of Chicago Press, 1971).
CAPÍTULO 2
Louis Wirth
concentração urbana nos países onde o impacto da revolução industrial foi mais
vigoroso e menos recente. A transição de uma sociedade rural para uma sociedade
predominantemente urbana, que ocorreu, em países industrializados como os Estados
Unidos da América e o Japão, ao longo de uma só geração, tem-se feito acompanhar
de profundas mudanças em virtualmente todos os aspectos da vida social. São estas
mudanças e os seus efeitos laterais que convocam a atenção do sociólogo para o
estudo das diferenças entre ambos os modos de vida: o rural e o urbano. A realização
de tal estudo constitui um pré-requisito indispensável à compreensão e ao eventual
domínio de alguns dos problemas mais sensíveis da vida social, pois, provavelmente,
propiciará uma das mais enriquecedoras perspectivas sobre as contínuas mudanças
da natureza humana e da ordem social4.
Uma vez que a cidade é produto do crescimento e não da criação instantânea, é de
esperar que as suas influências sobre os modos de vida não consigam apagar por
completo os anteriores tipos de associação humana. Em maior ou menor grau,
portanto, a nossa vida social tem a marca de uma anterior sociedade rural (folk
society), cujos sinais característicos de organização eram a vida agrícola, a casa
senhorial e a aldeia. Esta influência histórica é reforçada pela circunstância de a
própria população da cidade ser, em grande medida, oriunda do campo, onde persiste
ainda um modo de vida reminiscente desta anterior forma de existência. Daí que não
se devam registar variações abruptas e descontínuas entre os dois tipos de
personalidade: a urbana e a rural. A cidade e o campo podem encarar-se como duas
referências relativas quer a um quer a outro destes tipos de organização social. Ao ter
em consideração a sociedade urbano-industrial e a sociedade rural tradicional como
tipos ideais de comunidades, poderemos traçar uma perspectiva de análise dos
modelos de associação humana que vigoram na civilização contemporânea.
apenas o processo pelo qual as pessoas são atraídas a um lugar chamado cidade e
incorporadas no seu sistema de vida. Refere-se também à acentuação cumulativa das
características distintivas do modo de vida associado ao crescimento das cidades e
diz respeito, por último, às alterações dos modos de vida tidos como urbanos,
reconhecidas por aqueles que — onde quer que seja — sucumbiram perante as
influências da cidade, graças ao poder que as suas instituições e personalidades
exercem através dos meios de comunicação e de transporte.
As dificuldades da adopção do número de habitantes enquanto critério de urbanismo
aplicam-se também, em grande parte, ao critério da densidade de população. Quer
aceitemos a densidade de 10.000 pessoas por milha quadrada, como propôs Mark
Jefferson5, ou as 1.000 que Willcox6 preferiu considerar como critério dos agregados
urbanos, é óbvio que a densidade, a não ser que surja associada a significativas
características sociais, fornecerá apenas uma base arbitrária de diferenciação entre
comunidades urbanas e rurais. Uma vez que o nosso sistema de recenseamento se
refere à população presente numa dada área durante o período da noite, e não durante
o período diurno, o local de mais intensa vida urbana — o centro da cidade —
regista geralmente uma baixa densidade populacional, enquanto que as áreas
industriais e comerciais da cidade, onde se estabelecem as actividades económicas
mais características da sociedade urbana, dificilmente seriam consideradas
verdadeiras zonas urbanas, onde quer que fosse, se a densidade fosse literalmente
interpretada como critério de urbanismo. Contudo, o facto de a comunidade urbana
se distinguir por um extenso agregado de população com uma concentração
relativamente densa, dificilmente poderá deixar de ser considerada na definição de
cidade. Mas estes critérios devem ser relativizados face ao contexto cultural geral em
que as cidades surgem e existem, pelo que a sua relevância sociológica reside apenas
na interferência que têm sobre a vida social.
As mesmas críticas aplicam-se a outros critérios, como a profissão dos habitantes e a
existência de determinados equipamentos, instituições e formas de organização
política. A questão central não reside tanto no facto de as cidades, na nossa
civilização como em outras, exibirem realmente estes elementos singulares, mas
antes no poder que esses traços têm para fazer adaptar a natureza da vida social à
forma especificamente urbana da cidade. Na busca de uma definição fecunda,
também não podem ser menosprezadas as grandes diferenças existentes entre
cidades. Através de uma tipologia de cidades baseada na dimensão, localização,
idade e função, tal como a que tentámos estabelecer no nosso recente relatório para o
National Resources Committee7, verificámos ser possível enumerar e classificar as
comunidades urbanas desde as mais pequenas e dinâmicas cidades até às prósperas
metrópoles mundiais; desde os centros isolados de comércio das regiões agrícolas,
50
Densidade
56
Heterogeneidade
massas feito pelas modernas técnicas de propaganda. Para participar na vida social,
política e económica da cidade, o indivíduo tem que subordinar parte da sua
individualidade às exigências da comunidade mais vasta e, nessa medida, mergulhar ele
próprio, nos movimentos de massas.
Uma vez que no caso da estrutura física e dos processos ecológicos é possível recorrer a
indicadores minimamente objectivos, podem-se alcançar resultados quantitativos
geralmente bastante precisos. O ascendente que a cidade tem em relação às regiões
afastadas do interior explica-se pelas suas características funcionais, as quais derivam,
em grande medida, do efeito dos números e da densidade. Muitos dos equipamentos
técnicos, das especializações e das organizações urbanas só podem crescer e prosperar
60
As características distintivas do modo de vida urbano têm, por vezes, sido descritas pela
Sociologia como a substituição das relações primárias pelas relações secundárias, o
enfraquecimento dos laços de parentesco, o declínio da importância social da família, o
desaparecimento das relações de vizinhança e a ruína da base tradicional da
solidariedade social. Todos estes fenómenos são passíveis de uma verificação concreta,
feita através de indicadores objectivos. Assim, por exemplo, as baixas e decrescentes
taxas de reprodução urbana sugerem que a cidade não é propícia ao tipo tradicional da
vida familiar, incluindo a educação das crianças e a preservação do lar, enquanto lugar
em torno do qual se processa todo um conjunto de actividades vitais. A transferência das
actividades industriais, educacionais e recreativas para instituições especializadas e
exteriores ao lar, privou a família de algumas das funções mais características que ao
longo da história lhe foram atribuídas. Nas cidades, é mais provável que as mães estejam
empregadas, é mais comum o arrendamento de quartos em casas particulares, os
casamentos tendem a ser retardados e a proporção de pessoas solteiras e sós é superior.
As famílias são mais pequenas e mais frequentemente sem filhos, do que no campo. A
família como núcleo social emancipa-se do grupo alargado de parentes, característico do
meio rural, e os seus membros individuais perseguem diferentes objectivos vocacionais,
educacionais, religiosos, recreativos e políticos.
Funções como a preservação da saúde, as formas de mitigar o sofrimento associado à
insegurança pessoal e social, as providências referentes à melhoria da educação, da
recreação e da cultura, deram origem a instituições altamente especializadas, à escala
comunitária, do estado federado e até à escala nacional. Os factores que provocam maior
insegurança pessoal são os mesmos que subjazem aos contrastes mais flagrantes entre os
indivíduos. Se a cidade foi responsável pela flexibilização das fronteiras das castas da
sociedade pré-industrial, ela também ampliou as diferenças de rendimento e de estatuto
entre os diferentes grupos. De uma maneira geral, a proporção da população urbana
adulta com um bom emprego é maior do que a da população rural adulta. O grupo dos
62
Só na medida em que tiver uma concepção clara da cidade como entidade social e
estiver na posse de uma teoria funcional do urbanismo, poderá o sociólogo
desenvolver um corpo coerente de conhecimentos seguros, pois aquilo que no
presente passa por uma "Sociologia urbana" não o é certamente. Se o sociólogo
partir de uma teoria do urbanismo como a que foi esboçada nestas páginas, e a
sujeitar a posterior elaboração, teste e revisão, à luz de uma análise mais profunda e
da investigação empírica, poderá certamente determinar os critérios de relevância e
validade dos dados factuais. A miscelânia de informações heterogéneas e
desarticuladas que têm sido incorporadas em tratados de Sociologia sobre a cidade
poderá, assim, ser filtrada e agrupada num quadro coerente de conhecimentos.
Eventualmente, só por intermédio de uma tal teoria, poderá o sociólogo eximir-se à fútil
prática de enunciar, em nome da ciência sociológica, uma variedade de juízos,
frequentemente insustentáveis, em relação a problemas como a pobreza, a habitação, o
planeamento urbano, o saneamento, a administração municipal, o policiamento, o
mercado, os transportes e outras questões técnicas. Se o sociólogo não pode — pelo
menos sozinho — resolver nenhum destes problemas práticos, ele pode, se souber
descobrir a sua função com precisão, dar um importante contributo para a sua
compreensão e solução. As probabilidades de o conseguir são maiores se sustentadas
numa reflexão teórica global do que se baseadas num modo de abordagem ad hoc.
65
NOTAS
1 Publicado originalmente em 1938, no American Journal of Sociology (vol. 44, nº 1). Conserva-se o
estilo original de apresentação de notas e bibliografia.
3 Pearson, S. V., 1935, The Growth and Distribution of Population, Nova Iorque, p. 211.
4 Considerando que a vida rural nos Estados Unidos da América é, desde há muito, um assunto que tem
merecido um considerável interesse por parte dos órgãos governamentais, sendo o caso mais notável o do
amplo relatório submetido pela Country Life Commission ao Presidente Theodore Roosevelt, em 1909, é
digno de nota que, até à criação do Research Committee on Urbanism of the National Resources
Committee, nenhuma investigação oficial, igualmente abrangente, foi realizada sobre a vida urbana. Cf.
Our Cities: Their Role in the National Economy, Washington, Government Printing Office, 1937.
5 Jefferson, Mark, 1909, "The Anthropogeography of Some Great Cities". Bulletin of the American
Geographical Society, vol. XLI, pp. 537-566.
6 Willcox, Walter F., 1916, "A Definition of 'City' in Terms of Density", in E. W. Burgess, The Urban
Community, Chicago, p. 119.
7 Wirth, Louis, 1937, Our Cities — Their Role in the National Economy, Washington, Government
Printing Office, p. 8.
8 Cf. Park, Robert E.; Burgess, Ernest W., et al., 1925, The City, Chicago (especialmente os capítulos II e
III). Sombart, Werner, 1931, "Städtische Siedlung, Stadt", in Vierkandt, Alfred (ed.), Handwörterbuch
der Soziologie, Stuttgart.
9 Weber, Max, 1925, Wirtschaft und Gesellschaft, Tübingen (Parte II, cap. VII, pp. 514-601).
10 Park, Robert E.; Burgess, Ernest W., et al., Op. cit., cap. I.
12 Cf. especialmente cap. VII, 4. 4-14. Tradução para inglês de B. Jowett, da qual citamos:.
"[A] proporção [da cidade] é determinada como em todos os outros géneros, por exemplo, de animais, de
plantas, de instrumentos. Cada um deles, demasiado grande ou demasiado pequeno, não tem a mesma
eficácia, perde até a sua natureza ou torna-se inútil. (...) Se uma cidade tem poucos habitantes, pecará por
penúria; se tem demasiados habitantes, poderá muito bem, se estiver provida das coisas necessárias,
subsistir como nação, mas nunca será uma Cidade. Não se poderá, na realidade, estabelecer nela uma boa
administração. Que general de exército saberia comandar uma multidão excessiva? Que homem seria
capaz de se fazer aí ouvir, a menos que tivesso os pulmões de um Estentor? A primeira condição para uma
Cidade é, portanto, ter uma massa de habitantes tal que possa bastar para todas as suas funções e procurar-
se todas as comodidades da vida civil. Pode, sem dúvida, exceder esse número e passar ainda por Cidade.
Mas isso não deve, contudo, ir até ao infinito. A própria natureza das funções civis indica o limite do
crescimento.
Estas funções são as dos governandos ou as dos governados. As dos primeiros são as de nomear para os
empregos e as de estar atentos nos julgamentos. Ora, para ter bons juízes e para distribuir as tarefas
segundo o mérito, é preciso que os cidadãos se conheçam entre si e saibam o que cada um vale; sem isso
66
os lugares não podem ser bem entregues. Não é razoável proceder com ligeireza nem numa nem noutras
destas escolhas, como é evidente que se faz em qualquer Cidade demasiado povoada. Aliás, torna-se aí
fácil, aos estrangeiros e aos recém-chegados, perder-se na multidão e meter-se sub-repticiamente nos
lugares.
Numa palavra, a grandeza de um Estado deve limitar-se à multidão de habitantes que se pode alimentar
facilmente e cujo conjunto pode conhecer-se num olhar."
Adoptou-se aqui a versão portuguesa (Lisboa, D. Quixote, 1977, pp. 66-67. Trad. de M. Campos). (Nota
da Tradutora).
14 Simmel, Georg, 1903, "Die Grossstädte und das Geistesleben", in Die Grossstadt, edição de Theodor
Petermann, Dresden, pp. 187-206. Tradução portuguesa incluída neste volume.
16 É difícil determinar até que ponto a segregação da população em áreas ecológicas e culturais distintas e
a consequente atitude social de tolerância, racionalidade e mentalidade secular são funções da densidade,
enquanto factor distinto do factor heterogeneidade. É muito provável que se trate de fenómenos que são
consequência da acção simultânea de ambos os factores.
CAPÍTULO 3
Walter Benjamin
Fourier ou as Galerias2
A maior parte das galerias de Paris são construídas nos quinze anos que se seguem a
1822. A primeira condição do seu aparecimento é o período de grande prosperidade que
se verifica no comércio de têxteis. Começam a aparecer os magasins de nouveauté4, os
primeiros estabelecimentos a terem em armazém grandes reservas de mercadorias. São
os precursores dos grandes armazéns. É a esta época que Balzac alude quando escreve:
"Le grand poème de l'étalage chante ses strophes de couleurs depuis la Madeleine
jusqu'à la porte Saint-Denis"5. As galerias são centros destinados ao comércio de artigos
de luxo. Na sua concepção, a arte é chamada ao serviço do comércio e os
contemporâneos não se cansam de as admirar. Permanecem, por muito tempo, um pólo
de atracção para os estrangeiros. Num Guia Ilustrado de Paris escrevia-se: "Estas
galerias, uma recente invenção do luxo industrial, são corredores com tectos
envidraçados e entablamentos de mármore que atravessam blocos inteiros de edifícios,
cujos proprietários se concertaram nesta especulação. De ambos os lados do corredor,
que recebe luz natural de cima, alinham-se as lojas mais elegantes, de tal forma que as
galerias formam uma cidade, um mundo em miniatura". As galerias foram o cenário da
primeira iluminação a gás.
A segunda condição do seu aparecimento é o advento da utilização do ferro na
construção. O Império viu esta técnica como um contributo para a renovação da
68
À forma dos novos meios de produção que, ao princípio, era ainda dominada pela dos
antigos (Marx), correspondem, na consciência colectiva, imagens nas quais o Novo e o
Antigo se interpenetram. Estas imagens são imagens ideais e nelas o colectivo procura, a
um tempo, suprimir e transfigurar a imperfeição do produto social, bem como as
deficiências do sistema social de produção. Além disso, estas imagens, construídas pelo
ideal, exprimem uma intensa vontade de criar distâncias relativamente ao que é
antiquado, quer dizer, o passado mais recente. Estas tendências orientam para o passado
antigo a imaginação plástica activada pelo Novo. No sonho em que cada época
vislumbra imagens da época seguinte, esta aparece ligada a elementos da proto-história,
isto é, uma sociedade sem classes. As experiências deste tipo de sociedade, depositadas
69
Daguerre ou os Panoramas11
Tal como a arquitectura começa a escapar à tutela da arte devido à construção em ferro,
também a pintura, por seu turno, se emancipa graças aos panoramas. O grande momento
de difusão dos panoramas coincide com o aparecimento das galerias. Era imparável o
esforço de transformar os panoramas, através de artifícios técnicos, em teatros de uma
perfeita imitação da natureza. Procurava-se reproduzir as variações da luz do dia na
paisagem, o aparecimento da lua, o murmúrio das cascatas. David13 aconselha os seus
alunos a desenharem os panoramas com rigor e absoluta fidelidade ao modelo real.
Tentando produzir modificações muito realistas na representação da natureza, os
panoramas anunciam, desse modo, a fotografia, o filme e mesmo o filme sonoro.
70
Cubismo, a pintura toma posse de um tão vasto domínio que a fotografia não pode, por
enquanto, seguir-lhe os passos. Por seu turno, a partir de meados do século, a fotografia
alargou consideravelmente o âmbito das relações económicas, lançando no mercado, em
quantidade ilimitada, personagens e acontecimentos que não eram, até então,
exploráveis de outra forma, a não ser pela via do quadro expressamente encomendado.
Para melhorar a situação, a fotografia renovava os seus objectos, modificando, ao sabor
da moda, a técnica de exposição, o que iria determinar toda a sua história futura.
La tête ...
73
Sob o reinado de Luís Filipe, o cidadão particular faz a sua entrada na história. O
alargamento do aparelho democrático, devido a um novo direito de voto, coincide com a
corrupção parlamentar organizada por Guizot, ao abrigo da qual a classe dominante faz
história, não fazendo mais do que cuidar dos seus interesses financeiros. Esta classe
dominante promove a construção dos caminhos de ferro para aumentar o valor das suas
acções e apoia Luís Filipe porque vê nele o cidadão particular que administra negócios.
Com a Revolução de Julho, a burguesia tinha atingido os objectivos de 1789 (Marx).
Para o indivíduo particular, o lugar em que vive e o local de trabalho encontram-se, pela
primeira vez, em oposição. O primeiro constitui o interior; o escritório é o seu
complemento. O indivíduo que no seu escritório ajusta contas com a realidade exige que
os seus interiores lhe mantenham as ilusões. Esta necessidade torna-se ainda mais
premente porque ele não tenciona completar as reflexões que consagra aos seus negócios
com reflexões sobre a sua função social. Na configuração do seu quadro de vida privada,
o indivíduo reprime ambas as preocupações. Daí nasce a fantasmagoria dos interiores.
Para o indivíduo particular, o interior representa o universo. Aí ele reúne o longínquo e
o passado. A sua sala-de-estar é um camarote no teatro do mundo.[...]
Haussmann ou as Barricadas
A barricada é ressuscitada pela Comuna. Mais forte agora e melhor concebida que
nunca. Barrando o acesso aos grandes boulevards, a barricada ergue-se frequentemente à
altura do primeiro andar e protege verdadeiras trincheiras. Tal como o Manifesto do
Partido Comunista põe fim à era dos conspiradores profissionais, também a Comuna
põe fim à fantasmagoria que domina as primeiras aspirações do proletariado. Graças à
Comuna, dissipa-se a ilusão de que a tarefa da revolução do proletariado era completar,
em estreita colaboração com a burguesia, a obra de 1789. Esta quimera marca o período
de 1831 a 1871. A burguesia nunca comungou deste logro. A sua luta contra os direitos
sociais do proletariado havia já começado na Grande Revolução e coincide com o
movimento filantrópico que a dissimula e que conheceu o seu mais importante
desenvolvimento sob Napoleão III. É durante o reinado deste último que é escrita a obra
monumental deste movimento — Os Trabalhadores Europeus, de Le Play31.
Paralelamente à posição dissimulada da filantropia, a burguesia sempre assumiu
claramente a luta de classes. Desde 1831 que a burguesia reconheceu, no Journal des
Débats: "Todo o industrial vive na sua fábrica como os donos das plantações vivem
entre os seus escravos". Se, por um lado, a falta de uma teoria orientadora da revolução
foi fatal às velhas insurreições dos trabalhadores, por outro lado, essa foi a condição
necessária da energia e do entusiasmo imediatos com os quais se lançaram na construção
de uma nova sociedade. Este entusiasmo, que atingiu o paroxismo na Comuna, por
vezes, atraiu à causa dos trabalhadores os melhores elementos da burguesia, mas, no
final, levou os trabalhadores a sucumbir aos seus elementos mais vis. Rimbaud e
Courbet declaram o seu apoio à Comuna. O incêndio de Paris é o condigno remate da
obra de destruição levada a cabo pelo barão Haussmann.
Balzac foi o primeiro a falar das ruínas da burguesia. Mas só o Surrealismo as expôs
completamente. O desenvolvimento das forças de produção arruinou os símbolos das
aspirações do século anterior, muito antes de ruírem os monumentos que as
representavam. No século XIX, este desenvolvimento emancipou as formas de
construção da tutela da arte, tal como, no século XVI, as ciências se libertaram da
filosofia. A arquitectura abre caminho como construção de engenharia. Com a fotografia
segue-se a reprodução da natureza. As criações da fantasia tornam-se práticas,
77
NOTAS
1 Texto não integral, traduzido a partir da versão francesa da autoria de Jean Lacoste (Paris, Capitale du
XIXe siècle. Le Livre des Passages, Paris, Éditions du Cerf, 1989, pp. 35-46), que teve, como texto de
partida, a edição original alemã estabelecida por Rolf Tiedemann (W. Benjamin, Das Passagen-Werk,
Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1982, pp. 45-59, contido no vol. V de W. Benjamin, Gesammelte
Schriften, editado por Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser, com a colaboração de Theodor
Adorno e Gershom Scholem).
2 Optámos por traduzir assim o vocábulo francês passages e a correspondente expressão alemã Passagen,
porque um dos múltiplos significados que o termo "galeria" oferece é o de espaço coberto, geralmente
provido de tecto envidraçado, mais comprido do que largo, em que se passeia e se realizam exposições.
Rejeitámos o termo alternativo "arcadas" (usado na versão inglesa) por se nos afigurar um vocábulo
menos abrangente, já que remete para construções arquitectónicas que usam arcarias, o que nem sempre
acontece nas passages de Paris. Em vários fragmentos da obra de W. Benjamin são também frequentes as
expressões galeries e rues-galeries. (Nota da Tradutora).
4 Mantêm-se em francês os vocábulos ou expressões que assim aparecem no original alemão. (Nota da
Tradutora).
5 "O grande poema da ostentação declama as suas estrofes multi-cores desde a Madalena à porta de Saint-
Denis" (Honoré de Balzac, Histoire et psychologie des boulevards de Paris, in Le Diable à Paris, 2,
Paris, 1846).
6 Arqueólogo alemão (1806-1899), autor de várias obras sobre ornamentação e arquitectura gregas.
7 Frase da autoria do suíço Sigfried Giedion (1888-1986), historiador de arte, professor e autor de
numerosas obras sobre arquitectura.
10 Tratado sobre a educação, publicado em 1807, onde Jean Paul pretende "elevar a alma acima do
espírito da época".
11 Jacques Daguerre (1787-1851) começou por inventar, em 1822, o diorama, vasto quadro ou conjunto
de telas planas pintadas que, por iluminações variadas, permitem obter efeitos ópticos muito diferentes,
como a passagem de um efeito diurno para um nocturno. O panorama, que se lhe segue, tem a
particularidade de ser pintado em tela de forma cilíndrica, destinado a ser observado a partir do centro, e
que representa a vista perspectiva de uma cidade ou de uma paisagem. Designam-se também por
panoramas os edifícios onde se encontram esses quadros. Em 1835, Daguerre descobre a acção do vapor
de mercúrio sobre o iodeto de prata impressionado e, dois anos mais tarde, a possibilidade de dissolver o
iodeto residual em solução quente de sal de cozinha. Deste modo, conseguiu, em 1838, as primeiras
imagens fotográficas, conhecidas por daguerreótipos. (Nota da Tradutora).
13 Jacques Louis David (1748-1825), o mais célebre pintor da época napoleónica. Oriundo de uma família
burguesa, David procurou evitar os círculos aristocráticos e tentou criar uma nova arte para a emergente
classe média. Os seus quadros pretendiam pregar uma moral, incitando à revolução, e quando esta estala,
em 1789, David colocou a sua arte ao serviço do novo regime. A evolução do seu estilo, do neo-
classicismo para o realismo, reflecte o conturbado período revolucionário do virar do século. (Nota da
Tradutora).
14 Émile de Girardin (1806-1881), escritor e pioneiro do moderno jornalismo popular, conhecido como o
"Napoleão da imprensa". Fundou Le Voleur, uma revista mensal consagrada às artes e à ciência, e o jornal
La Presse, para além de ter assumido o controlo de outros jornais franceses. (Nota da Tradutora).
15 François Jean Dominique Arago (1786-1853), geodeta, astrónomo, físico e político francês. Figura
destacada a quem se ficou a dever, na física, a descoberta da polarização cromática, a polarização
rotatória e o fenómeno a que chamou "magnetismo de rotação". Com Ampère criou o electro-íman e com
Dulong mediu a tensão do vapor de água. (Nota da Tradutora).
17 "La Photographie", in A. J. Wiertz, Oeuvres litéraires, Paris, 1870. O pintor belga Wiertz (1806-1865)
pintou quadros de grandes dimensões, de feição realista e de inspiração humanista e progressista, que têm,
segundo W. Benjamin, alguma afinidade com os panoramas. (Nota da Tradutora).
19 O autor da tradução francesa diz tratar-se de uma afirmação de Renan e não de Taine.
20 Citação retirada do livro de Grandville, Un autre monde (1844). Benjamin esclarece o sentido desta
afirmação no seu "Paris, Capitale du XIXème siècle. Exposé", ao acrescentar: "Da mesma maneira que
uma varanda em ferro forjado representaria, na exposição universal, o anel de Saturno e os visitantes que a
ela subissem ver-se-iam arrastados numa fantasmagoria em que se sentiriam transformados em habitantes
de Saturno" (Das Passagen-Werk, Frankfurt am Main, Edition Suhrkamp, 1982, p. 66). (Nota da
Tradutora).
21 "A cabeça...
Sobre a mesa de cabeceira, como um ranúnculo,
Repousa."
Sendo Averno o lago infernal, o sentido seria o de que é fácil trilhar o caminho do mal. (Nota da
Tradutora).
27 Cintura de muralhas, mandada edificar durante o Ministério de Thiers, em 1841. (Nota da Tradutora).
28 Maxime Du Camp, Paris: Ses organes, ses fonctions et sa vie dans la séconde moitié du XIX ème
siècle. Paris, 1869.
31 Frédéric Le Play — Les Ouvriers européens. Études sur les travaux, la vie domestique et la condition
morale des populations ouvrières de l'Europe. Précédées d'un exposé de la méthode d'observation. Paris,
1855.
Parte II
GLOBALIZAÇÃO
E
INTERMEDIAÇÃO
CULTURAL
82
CAPÍTULO 4
Mike Featherstone
Quem julga que o seu país é aprasível encontra-se ainda num estado de
imaturidade; quem considera qualquer país como igual ao seu já pode
considerar-se um indivíduo maduro; mas é apenas perfeito quem julga que
o mundo inteiro é um país estrangeiro.
(Eric Auerbach, cit. in McGrane, 1989: 129)
A ideia de que vivemos num mundo único tem-se vindo a tornar um cliché. Esta ideia
remete-nos para uma variedade de imagens: fotografias do planeta Terra tiradas do
espaço pelos astronautas da missão Apolo depois de terem pisado a Lua; a percepção da
iminência de um desastre global em consequência do efeito de estufa ou de outra
qualquer catástrofe provocada pelo Homem; a visão ecuménica dos vários movimentos
religiosos, quer convencionais quer recentes e da sua capacidade de unificar a
Humanidade; ou a exploração comercial que se faz desse sentimento ecuménico tal
como a encontramos no anúncio da Coca-Cola que utiliza imagens de legiões de jovens
de olhar radioso vindos de todo o mundo a cantar em uníssono "We are the world". Tais
imagens reforçam o sentimento de que somos interdependentes; de que a circulação de
informação, conhecimento, dinheiro, bens de consumo, pessoas e imagens se tem
intensificado a tal ponto que a noção de distância espacial, que outrora nos permitia não
termos que pensar sempre em todos quantos formam aquilo que se convencionou
chamar Humanidade, deixou de ter sentido. De facto, cada um de nós vive hoje "no
quintal do vizinho". Daí que uma das consequências paradoxais do processo de
globalização — a tomada de consciência da existência de limites à escala do planeta e da
própria Humanidade — tenha sido não a produção de homogeneidade mas sim a nossa
83
familiarização com uma maior diversidade, com um leque cada vez mais amplo de
culturas locais.
A GLOBALIZAÇÃO DA CULTURA
ser a modernidade ocidental, possuiam uma força universalizante, pelo que a história
ocidental era antes de mais uma História Universal. Inserida nestas teorias, e sujeita a
vários graus de explicitação, surge a ideia de que a História possui uma lógica
intrínseca, ou um ímpeto direccional próprio, entendidos sempre em termos de
progresso. A ideia de progresso implica uma certa direcção que, imprimida à História,
sugere a existência de limites à própria História, o seu eventual epílogo, ou a sua
resolução em termos de uma sociedade melhor, ou mesmo perfeita — uma "sociedade
ideal".
Esta ideia da existência de um destino histórico tem sido fortemente criticada pelas
chamadas teorias pós-modernas. Vattimo (1988), por exemplo, argumenta que nos
estamos a afastar da modernidade ao abandonarmos a noção de desenvolvimento. A pós-
modernidade não deve ser encarada como uma nova época, como uma nova fase de
desenvolvimento posterior à modernidade, mas como a consciencialização da
fragilidade das premissas em que esta última se baseou. O progresso é a ideia-chave da
concepção moderna de História Ocidental. De facto, trata-se da secularização das noções
judaico-cristãs de salvação e redenção que, progressivamente, têm vindo a dar lugar à
crença de que o progresso, visto como desenvolvimento da ciência e da tecnologia,
conduz ao aperfeiçoamento do Homem e da sociedade humana. O pós-modernismo deve
ser entendido como "o fim da História" no sentido do fim da crença nas possibilidades
de ultrapassar o presente, para se atingir algo de verdadeiramente "novo"3. Não se trata,
obviamente, do fim do processo objectivo da História, mas apenas do fim da sua
concepção enquanto processo unitário. Esta secularização das noções de progresso e de
um mundo perfeccionista tem, desde há um século, conduzido a uma maior consciência
da natureza da História como sendo algo construído, mas também a uma crescente
utilização de instrumentos retóricos e ao aumento da capacidade de desconstrução das
formas narrativas (Bann, 1984), algo que Simmel (1977) discutiu amplamente.
Uma outra dimensão, que tem também conduzido a uma maior consciencialização da
pluralidade da História, é a supressão das narrativas que a constituem, o que sugere que
não há uma História privilegiada e unitária mas apenas histórias diferentes4. Nesta
perspectiva, existem claramente desenvolvimentos e processos globais que, cada vez
mais, interligam histórias individuais de nações e de blocos particulares, mesmo que se
tenha perdido a confiança na possibilidade de estes poderem vir a ser incorporados numa
única narrativa histórica, global e explicativa. Assim, qualquer tentativa de construir
uma história global torna-se imensamente difícil. A perspectiva e os valores em que tal
construção se baseia são objecto de contestação e, de facto, relegam as teorias de
carácter universalizante para o estatuto de histórias locais.
Se uma das características associadas ao pós-modernismo é a perda de sentido da
existência de um passado histórico comum e o nivelamento e espacialização das antigas
hierarquias simbólicas (Featherstone, 1991), o processo de globalização, o emergir da
85
ideia de que o mundo é um espaço único, contribuiu, certamente e de modo directo, para
a construção desta perspectiva. Fê-lo, ao possibilitar a emergência de situações, quer de
interdependência quer de conflito, entre as diferentes imagens de ordem global e as suas
respectivas narrativas históricas. Com o surgimento das transformações que atingiram,
de forma estrutural, o equilíbrio de poderes entre os países não-ocidentais, a definição da
História como um processo infindável e linear, conducente à unificação do mundo em
torno da Europa do século XIX e dos Estados Unidos da América do século XX, é cada
vez mais difícil de sustentar. Consequentemente, neste final do século XX, deparamo-
nos com o reconhecimento cada vez maior de que o mundo não-ocidental possui a sua
própria história.
Após a Segunda Guerra Mundial, um dos fenómenos particularmente decisivos para este
processo tem sido a ascensão do Japão. Não apenas porque o sucesso económico
japonês terá tido efeitos de modernização superiores aos do Ocidente, mas acima de
tudo porque os japoneses passaram, eles próprios, a construir teorias sobre a História
Mundial que põem em causa o lugar do país no continuum pré-moderno, moderno e pós-
moderno das sociedades ocidentais (Miyoshi e Harootunian, 1989). Daí, o
reconhecimento crescente de que a História não é apenas "temporal ou cronológica, mas
também espacial e relacional" (Sakai, 1989: 106), ou de que se tem desenvolvido em
consonância com outras temporalidades, espacialmente distintas da nossa e coexistentes
com ela. Se as nações se podem manter isoladas, ou exercer, enquanto bloco de nações,
poder político e económico a ponto de ignorarem os desafios provenientes de outros
espaços, parece muito provável que também sejam capazes de construir imagens
fantasistas em relação à sua própria superioridade.
Esta situação pode assumir diversas formas. Uma das mais divulgadas encontra-se na
imagem do Oriente, como incorporando todas as diferenças exóticas e alteridades que o
Ocidente tem reprimido e rejeitado, como forma de construir, de si próprio, a ideia de
uma identidade coerente (Said, 1978). Em alternativa, existe também a convicção de
que, em última análise, "eles são iguais a nós" e que, ao Ocidente, se confere o direito e
o dever moral de guiar e educar os outros, dada a necessidade de civilizar a totalidade do
Globo5. Em qualquer dos casos, o Ocidente vê-se a si próprio como o guardião das leis
universais, em nome de um mundo criado à sua própria imagem. Quando as outras
nações alcançam capacidade de resposta e poder para pressionar o Ocidente a ouvir e a
tomar conhecimento da sua resistência, construções como "o Oriente" — a que se
confere um sentido vago de unidade de molde a objectivar tudo o que se encontra para
além do Ocidente e, assim, fortalecer a ideia de uma identidade em construção —
tornam-se claramente problemáticas (Sakai, 1989: 117). Só então se começa a descobrir
a existência de uma enorme complexidade e diversidade de civilizações orientais e não-
ocidentais que, para o Ocidente, representam recorrentemente "o Outro".
86
externa, devendo-se imaginar, assim, o globo sujeito a uma qualquer ameaça extra-
terrestre ou intergaláctica. Uma outra possibilidade de constituição de uma cultura
global decorreria da necessidade de reagir perante uma possível ameaça à vida no
planeta em consequência, por exemplo, de uma catástrofe ecológica. Em ambos os
casos, o processo de constituição e desenvolvimento de uma identidade cultural mundial
surgiria como resposta a uma ameaça oriunda do exterior. Existe, é claro, uma série de
outras possibilidades que poderiam, hipoteticamente, conduzir à formação desta cultura
global, como sejam a federação de nações, ou o triunfo hegemónico de uma determinada
religião ou de uma multinacional (Robertson, 1990a; 1991).
A forma como as diferentes nações se têm aproximado entre si, através de relações
financeiras e comerciais, do desenvolvimento crescente de uma tecnologia capaz de
produzir meios de comunicação mais eficazes e rápidos (mass media, transportes,
telefones, telefax, etc.), e até de conflitos armados, tem conduzido a uma maior
densificação de trocas e de experiências culturais. Tem-se registado uma crescente
diversificação de fluxos culturais que contribuem para a intensificação de encontros
transnacionais. Appadurai (1990), por exemplo, refere o aumento do fluxo de indivíduos
(imigrantes, trabalhadores, refugiados, turistas, exilados), de tecnologia (maquinaria,
equipamentos, electrónica), de informação financeira (dinheiro, acções), de imagens e
informações transmitidas através dos meios de comunicação de massas (televisão,
filmes, rádio, jornais, revistas) e até mesmo de ideologias e visões do mundo. Embora
alguns possam desejar que a força motora destas mudanças seja o inevitável progresso
da economia capitalista, conducente à criação de um sistema-mundo (Wallerstein, 1974;
1980), ou ainda, o movimento no sentido de uma nova fase do capitalismo pós-fordista
— a fase da sua desorganização (Lash e Urry, 1987) —, para Appadurai, isto traduz uma
desconexão entre fluxos culturais. Na verdade, a intensificação destes fluxos torna
indispensável a resolução dos problemas relacionados com a comunicação intercultural.
Nalguns casos, leva ao desenvolvimento de terceiras culturas que têm uma função de
mediação comparável aos conflitos jurídicos entre pessoas de culturas nacionais
diferentes (Gessner e Schade, 1990). Para além de uma nova categoria de profissionais
(advogados, contabilistas, assessores, consultores financeiros, etc.) que se tornaram
preponderantes com a desregulação e a globalização dos mercados financeiros, em
consequência do funcionamento ininterrupto do mercado de acções, existe, ainda, um
número crescente de "profissionais do design" (especialistas que trabalham em filmes,
videos, televisão, música, moda, publicidade e outras indústrias culturais) (King, 1990).
Todos estes profissionais se viram forçados a familiarizar-se com um certo número de
culturas nacionais e a contribuir para o desenvolvimento destas terceiras culturas e
mesmo, nalguns casos, a viver no seu seio. A maioria destas terceiras culturas
absorveram a cultura do país com que mais se aparentavam e onde encontraram a raíz da
sua organização. Não admira, assim, que muitas das culturas que se estão hoje a
88
A CULTURA LOCAL
ponto de se proclamar que "tudo é igual em todo o lado". Muitas vezes, parte-se também
do princípio de que vivemos hoje em localidades nas quais os fluxos de informação e de
imagens destruiram o sentido de memória colectiva e de tradição da própria localidade,
a um ponto em que é "o próprio sentido de lugar" que se esvanece (Meyrowitz, 1985).
Na sequência dos comentários anteriores sobre as reacções à compressão global no
sentido de uma desglobalização e sobre a crescente intensidade de fluxos globais, seria
de esperar que o surgimento de tais reacções nacionalistas, étnicas e fundamentalistas ao
fenómeno da globalização conduzisse a um movimento reinvidicativo forte por parte das
culturas locais. Estas poderiam, então, assumir a forma de tradições locais revivalistas
ou fantasistas. Tal reacção poderia mesmo levar à invenção de novas culturas. Antes de
procedermos à discussão dessas estratégias, seria útil centrarmo-nos na noção de perda
do "sentido de lugar", no sentimento de desenraizamento.
A sensação de nostalgia está, normalmente, associada à perda do lar em termos de um
dado espaço físico (Davis, 1974). Mas para além deste sentimento de saudade do local,
o sentimento de nostalgia tem sido utilizado, também, para descrever um sentimento
mais geral de perda da totalidade, um descrédito dos valores morais, das relações sociais
genuínas, da espontaneidade e expressividade (Turner, 1987). Se bem que este
sentimento de perda possa levar alguns a formular estratégias românticas (ligadas à
criação de formas artísticas, no sentido de recriar uma certa idade de ouro, ou à
construção de utopias futuras) vale a pena tentar perceber em que condições é que se
forma um sentimento de pertença a um lugar.
Pode-se argumentar que o sentimento de pertença a um lugar se sustenta numa memória
colectiva que, por sua vez, depende de práticas e cerimónias ritualísticas e
comemorativas (Connerton, 1989). Neste domínio, a questão central reside em que a
nossa noção de passado está longe de depender das fontes escritas, mas passa, acima de
tudo, por práticas ritualísticas, de algum modo regulamentadas, e pelo formalismo da
linguagem ritual. Aqui enquadram-se rituais comemorativos tais como casamentos,
funerais, festas de Natal, de Ano Novo, e a nossa participação ou envolvimento, como
espectadores, em rituais locais, regionais e nacionais (casamentos célebres, feriados
nacionais, etc.). Estes podem ser vistos como alimentadores das ligações emocionais
entre as pessoas, que renovam o sentimento do sagrado. Este sagrado só raramente
funciona como um invólucro integrador em relação ao Estado-nação. No entanto, não
nos podemos permitir a conclusão de que o elemento sagrado tenha desaparecido
completamente, sob o efeito destrutivo das referidas forças globalizantes. Melhor será
falar da dissipação do sagrado, dado que opera numa grande diversidade de formas para
uma grande variedade de grupos e indivíduos (Featherstone, 1991; Alexander, 1988)8.
Uma das formas sob as quais o sagrado opera, ao nível das localidades, é através de
pequenos e inúmeros rituais, ritos e cerimónias que se desenrolam enquanto práticas
vivenciadas por amigos, vizinhos e conhecidos. Os pequenos rituais que têm lugar em
92
torno de uma rodada de bebidas, ou no encontro semanal num mesmo bar, contribuem
para a formalização de modos de relacionamento que sedimentam as relações sociais
entre indivíduos. Só quando deixamos um dado lugar, durante um certo tempo, e
regressamos mais tarde, é que procuramos reencontrar os hábitos simples a que o nosso
corpo parece responder com facilidade, acomodando-se a rotinas que lhe são
confortáveis e inquestionáveis — como o cão que deseja exibir as suas habilidades ao
dono que regressa a casa. Trata-se da coordenação da gestualidade corporal e de
movimentos nunca verbalizados ou sujeitos a reflexão: os cheiros e sons familiares, a
capacidade de olhar e tocar coisas que foram sendo investidas de simbolismos e afectos.
A evidente ausência destas sedimentações simbólicas na matéria-prima de que são feitos
os edifícios e o meio ambiente na sua relação com as práticas sociais justificam os
comentários de Gertrude Stein sobre Oakland na Califórnia: "there’s no there there".
Claro que os habitantes desta cidade, devem ter um forte "sentido de lugar" e da cultura
local, mas Stein estava a referir-se ao capital cultural reconhecível.
Um dos perigos do debate sobre a ausência de "sentido de lugar" decorre do facto de
remeter para processos assumidos como tendo um impacto universal e serem imunes,
portanto, a alterações ao longo do tempo. É possível, por exemplo, detectar situações ou
fases históricas, induzidas por mudanças no processo de globalização e de
relacionamento entre Estados, que, por sua vez, intensificam ou fazem diminuir o
sentimento de desenraizamento e nostalgia. Tem-se argumentado que a fase de intensa
globalização ocorrida entre 1880 e 1920 — responsável pela aproximação das nações,
ao fomentar uma malha densa de interdependências e de equilíbrios de poder numa
configuração global — produziu um intenso nacionalismo e uma "obstinada nostalgia"
(Robertson, 1990b: 47ss.). Os esforços desenvolvidos pelos Estados-nação, no sentido
da produção de culturas comuns integradas e homogéneas, assim como de cidadãos
comuns, leais ao ideal nacional, levaram a tentativas de eliminação das diferenças
étnicas, locais e regionais. Esta fase coincidiu com a criação de símbolos e cerimoniais
nacionais e com a reinvenção de tradições tais como os Júbileus Reais, o Dia da
Bastilha, os Jogos Olímpicos, o Final de Taça, a Volta à França, etc. Nas sociedades que
se encontravam em fase de rápida modernização e eliminação das suas tradições, estes
ritos contribuiram para reforçar o desejo de celebração do passado, instituindo formas de
imitação e de identificação mítica que ainda hoje persistem (Connerton, 1989).
O facto destes ritos e cerimónias terem sido criados de modo artificial não significa que
tenham sido criados ex nihilo — surgiram a partir de tradições e culturas étnicas já
existentes. O facto destas formas de espectáculo se terem tornado objectos de consumo e
terem sido produzidas para largas audiências, não deve ser entendido como tendo criado
passividade em cidadãos sujeitos a processos de manipulação. Ao tornarem-se parte da
cultura popular das sociedades modernas, foram muitas vezes utilizadas por certos
grupos de uma forma diferente da prevista pelos seus criadores, dado que o significado
93
dos seus símbolos, assim como o do próprio sagrado, acaba na prática por ter que ser
renegociado. Daí que os espectadores não devam ser vistos como passivos, ou alheados
das vivências desses rituais. Para aqueles que vêem pela televisão a acontecimentos
importantes como um Final de Taça ou um Casamento Real, o local onde assistem a
esses acontecimentos pode adquirir uma parte da aura festiva do próprio acontecimento,
pela maneira como as pessoas se vestem, cantam, dançam, etc., quer estejam a ver a
televisão em casa, ou em espaços públicos, como bares ou hotéis.
Uma segunda situação de nostalgia está relacionada com a fase de globalização de finais
do século XX, que começou a instalar-se, progressivamente, desde os anos sessenta e é
associada, por muitos comentadores, ao pós-modernismo (Robertson, 1990b; Heller,
1990). Esta fase surge como resposta a alguns dos processos de globalização já
referidos, os quais, no presente, podem ser relacionados com pressões (que, na sua
maioria, têm sido bem sucedidas no Ocidente) no sentido dos Estados-nação
reconstruirem as suas identidades colectivas de acordo com estratégias pluralistas e
multiculturais, tomando em consideração diferenças étnicas e regionais. Nesta fase
actual, a resposta à nostalgia, contida na recriação e invenção de culturas locais,
regionais e subnacionais (na Europa temos a afirmação cultural de galeses, escoceses,
bretões, bascos, etc.), tem de ser posta em pé de igualdade com a destruição da ideia de
localidade, resultante da globalização da economia mundial — expansão dos meios de
comunicação de massas e da sociedade de consumo —, mas pode ser também entendida
como possibilitando a utilização desses meios na reconstrução do sentido de localidade.
Daí que as qualidades do populismo, do sincretismo, da fragmentação e da multi-
codificação, o colapso das hierarquias simbólicas, o fim do sentido de progresso e da
"novidade" histórica, bem como as atitudes positivas perante "o Outro", todos
normalmente associados ao pós-modernismo, já se encontrem presentes no processo de
desenvolvimento da sociedade de consumo (Featherstone, 1991). É este o caso dos
desenvolvimentos ocorridos na arquitectura e na organização do espaço, classificados
frequentemente de pós-modernos, e que representam um movimento que se situa para
além da caracterização abstracta do espaço e do destaque das formas puras que se
encontram no modernismo arquitectónico (Cooke, 1990). Com o pós-modernismo,
assiste-se ao ressurgimento de formas vernaculares e de representação, combinadas, de
forma lúdica, com o uso do pastiche e de colagens de estilos e tradições. Em suma,
estamos perante um retorno às culturas locais, com uma ênfase especial na noção de
culturas locais no plural, assim como no facto de estas poderem ser comparadas entre si,
sem quaisquer distinções hierárquicas.
A reconstrução de espaços urbanos e de zonas ribeirinhas, do início do boom financeiro
global da década de 1980, deu origem a uma enorme variedade de edifícios sob a forma
de centros comerciais, hiper-mercados, museus, marinas e parques temáticos. O efeito
de localização é claramente evidente em processos de aburguesamento das novas classes
94
médias que retornam à cidade, onde tentam restaurar antigas relações de vizinhança ou
viver em áreas que proporcionam uma identidade própria, ao recriarem ambientes
particulares, sejam ambientes mediterrânicos nas zonas ribeirinhas, sejam zonas
artísticas e de boémia por entre anteriores armazéns de bairro.
Um dos traços mais recorrentes da caracterização deste tipo de arquitectura é a sua
função lúdica. Claro que muitos dos espaços e fachadas foram projectados para produzir
uma sensação de encantamento, de desorientação ou de espanto, à medida que se entra
em lugares que recriam velhas tradições ou alimentam fantasias futuristas ou infantis.
Os parques temáticos, alguns museus contemporâneos e toda a indústria relacionada
com o património, contribuem para produzir uma sensação de bem-estar que nos
transporta a um passado vivido sob a forma de ficção. O Mundo Disney é um dos
melhores exemplos deste tipo de espaços: tanto podemos andar no barco do Tom
Sawyer, como subir à casa-na-árvore da Família Robinson. A combinação de cenários
realistas semelhantes aos do cinema, a tecnologia de animação, os sons e os cheiros
bastam, muitas vezes, para persuadir os adultos a suspender a sua atitude incrédula e
convencê-los a reviver a ficção. Se nos é possível voltar ao mundo das fantasias infantis,
é também forte a sugestão para vivermos as nossas memórias de infância, e as dos
outros, em segmentos: a exploração de eco-museus, museus monográficos ou industriais
relacionados com a vida quotidiana, como no caso de Beamish, no nordeste de Inglaterra
(Urry, 1990). Neste caso, a reconstrução de minas de carvão em actividade, carros-
eléctricos, lojas de bairro e comboios pode, de facto, induzir as pessoas na reconstrução
de localidades do passado (em termos físicos), onde a preservação do real se confunde
com a simulação. Aos mais idosos, estes ambientes poderão criar-lhes o sentimento
pertubador de estarem perante culturas locais em que viveram noutros tempos, ao
entrarem num quarto daquela época, ao tocarem numa banheira de estanho, ou numa
calandra para espremer roupa. Estes espaços pós-modernos podem ser vistos como
rituais comemorativos que servem para reforçar, ou ajudar a recriar um "sentido de
lugar" já perdido. Simultaneamente, encorajam a realização de ritos, espectáculos de
simulação ou de participação, que permitem reviver, realisticamente, muitos aspectos
culturais do passado. Estimulam uma "forma controlada de descontrole das emoções",
uma receptividade e uma vivência de emoções e de memórias colectivas que tinham
sido, até aí, mantidas longe da experiência do dia-a-dia. Encorajam o adulto a tornar-se
novamente criança e permitem à criança brincar com formas simuladas que se
relacionam com as experiências do mundo dos adultos9.
Claro que nem todos vivem estes locais da mesma forma. São as novas classes médias e,
em especial, aqueles que possuem níveis mais elevados de escolaridade, ou trabalham
em indústrias culturais e em profissões afins, que estão mais disponíveis para vivenciar a
reconstrução de localidades, o "controle descontrolado das emoções" e a construção de
comunidades estéticas e efémeras, do tipo daquelas a que se refere Maffesoli (1988).
95
Temos, portanto, uma imagem fragmentada destes locais, dado que a possibilidade de
leituras díspares provenientes de fracções de classe, grupos de idade e agrupamentos
regionais, se mistura nos mesmos espaços urbanos, ao se consumirem os mesmos
programas televisivos e os mesmos bens simbólicos. Estes grupos sociais possuem
diferentes capacidades de adesão a estes lugares e também diferentes capacidades de se
deixarem envolver na construção de "comunidades imaginadas". Utilizam bens e
experiências de modos diversos, pelo que se torna indispensável uma análise cuidada
das suas práticas e do seu trabalho quotidianos, se quisermos compreender as diferentes
formas de ligação a uma dada localidade.
CONCLUSÕES
É claro, neste momento, o carácter relacional das noções de culturas globais e culturas
locais. É possível referir uma grande diversidade de respostas ao processo de formação
de globalismos, que pode ser acentuado ou atenuado consoante os diferentes momentos
históricos do processo de globalização. Em primeiro lugar, podemos descrever o
significado do efeito de imersão numa cultura local. Este efeito pode assumir a forma de
um certo retraímento de uma localidade com história e tradições de longa data,
ignorando, deste modo, os esforços de contacto com colectividades mais abertas e
erguendo barreiras contra os fluxos culturais externos. Esta atitude é, no entanto, difícil
de assumir se não se detiver o poder militar e económico indispensável para impedir a
imersão destas culturas locais em interdependências e conflitos regionais mais vastos.
Corre-se, contudo, o risco de se ser deixado no isolamento, de se permanecer por
descobrir, ou de se controlar e regular o fluxo de trocas, sobretudo quando existem
razões de carácter geográfico que facilitam o isolamento, como no caso do Japão. A um
nível mais mundano, e do ponto de vista de certas tribos, esta perspectiva pode levar à
elaboração de estratégias de resistência perante os turistas que buscam alguma
manifestação de autenticidade que tenha permanecido intacta da "cultura real", como
seja, por exemplo, o caso dos que se deslocam à Nova Guiné em busca do "mundo dos
canibais". Isto pode estar relacionado com os problemas que os indivíduos do mundo
Ocidental têm de enfrentar e que, neste contexto, desenvolvem uma espécie de
responsabilidade protectora e procuram criar estratégias de conservação daquilo que
consideram ser uma cultura local, evitando, ao mesmo tempo, colocá-la sob reserva
protegida, tornando-a uma simulação de si própria. Um exemplo desta situação é a
discussão em torno da tribo alegadamente desconhecida e recentemente descoberta nas
Filipinas (Baudrillard, 1983).
Em segundo lugar, estas comunidades, que começam a ligar-se cada vez mais à
figuração global, terão também de cooperar, de tempos a tempos, com os refugiados da
modernização: os membros de grupos étnicos que se sentem romanticamente atraídos
96
pelo que consideram ser a autenticidade de uma vida mais simples e o sentimento de
pertença a um lugar. Neste caso, vêm-nos à ideia as descrições díspares que deles
oferecem os grupos anfitriões e que revelam dúvidas sobre a capacidade de reintegração
dos que são, localmente, tidos por "maçãs vermelhas" ("red apples" — os índios norte-
americanos regressados às suas comunidades de origem, de quem se diz serem
vermelhos por fora e brancos por dentro), ou por "cocos" ("coconuts" — os havaianos
regressados, vistos como castanhos por fora e brancos por dentro) (Friedman, 1990).
Enquanto alguns grupos podem ser vistos como procurando viver a sua própria versão
de "comunidade imaginada", a preocupação dos grupos locais quanto à sua integração
mostra que um dos aspectos cruciais da relação entre eles pode tomar a forma de lutas
entre integrados-locais e desintegrados-vindos-de-fora.
Em terceiro lugar, também se encontram variantes da "comunidade imaginada" na
tentativa de redescoberta da etnicidade e das culturas regionais, típica da fase actual dos
Estados-nação ocidentais, que procuram um maior reconhecimento da diversidade
regional e local e do multiculturalismo. Em certos contextos, pode ser apropriado usar a
máscara da inserção local, como sucede quando se tem de lidar com turistas, ou com
rivais locais (por exemplo, quando escoceses encontram ingleses). Esta situação pode
envolver vários graus de seriedade ou de paródia. Pode-se referir, a este propósito, o
facto de que estes avanços e recuos dos vários elementos das culturas nacionais se
manifestam em situações relacionadas com o quotidiano e o trabalho dos indivíduos. A
sua integração na localidade pode assumir a forma de rituais regularmente recriados na
sua relação com a "comunidade imaginada". Este é claramente o caso de sociedades
como os Estados Unidos da América, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia nas
quais, todavia, tendo sido fundadas por europeus, várias comunidades indígenas locais e
grupos de imigrantes, apostados na manutenção de "comunidades imaginadas",
trouxeram a lume a questão do multiculturalismo e do respeito pelas culturas locais.
Em quarto lugar, os indivíduos que viajam, como por exemplo os expatriados,
geralmente, transportam consigo as suas próprias culturas locais (Hannerz, 1990). Este é
também o caso de muitos turistas (especialmente os provenientes das classes operárias)
cujas expectativas em relação ao encontro com outra cultura permanece ao nível dos
estereótipos: sol, mar, areia e "Viva España". Com efeito, pretendem acrescentar algo à
sua própria vivência nos seus locais de origem (uma "mais-valia" cultural) e tudo farão
para transportar consigo aspectos reconfortantes da sua própria cultura e limitar os
perigos provenientes dos encontros inter-culturais como sucede com experiências do
tipo "reservas de indígenas" (Bauman, 1990).
Em quinto lugar, encontram-se aqueles cuja afinidade local é limitada, mas cuja
mobilidade geográfica e cultura profissional apresentam uma clara orientação
cosmopolita. São todos os que vivem em terceiras culturas e que se satisfazem ao
movimentar-se numa variedade de culturas locais com as quais desenvolvem um relação
97
prática de trabalho, reforçando laços com as referidas terceiras culturas, uma vez que
comunicam com indivíduos de todo o mundo em situação idêntica.
Em sexto lugar, situam-se os intelectuais cosmopolitas e intermediários culturais,
especialmente aqueles que surgiram no pós-Guerra. Não pretendem julgar as culturas
locais de acordo com qualquer critério modernista de progresso, mas ficam satisfeitos
por interpretá-las para audiências crescentes de intelectuais das classes médias, assim
como para audiências indiferenciadas, típicas da sociedade de consumo (Bauman, 1988).
São especialistas em reduzir outras culturas a fórmulas condensadas e em representar o
exótico como "espaço incrível", para audiências ávidas de experiências novas. São
capazes de trabalhar e de viver no seio das terceiras culturas e, deste modo, são capazes
de mostrar que conhecem outras culturas locais por dentro e, até, de "falar em nome dos
seus nativos". Este grupo pode ser visto como pós-nostálgico e está ligado a audiências
cada vez mais amplas, no seio das classes médias, que desejam, deste modo, ter uma
experiência lúdica da cultura e fazem por esquecer o que é autêntico e real. Estas classes
médias contentam-se em ser "pós-turistas" e comprazem-se, quer com a reprodução dos
efeitos reais, quer com a sua imersão nesse mundo, embora de forma controlada ou
lúdica, contentando-se com a visita aos seus bastidores (Feifer, 1985).
É preciso chamar a atenção para o facto de não ser exaustiva esta lista de possíveis
afinidades a várias formas de culturas locais e globais. Uma das têndencias,
frequentemente associada às teorias pós-modernas, assume que o actual estádio de
desenvolvimento (ou seja, o nosso conjunto de aporias teóricas) é de certa forma
derradeiro e eterno. O actual fascínio pelas culturas locais e pelo "Outro" pode não
sobreviver devido à tendência para este ser desmembrado, em resultado da procura
exaustiva de definições mais complexas de alteridade. Embora esta percepção possa ser
suscitada pelas tendências igualitárias e populistas associadas ao pós-modernismo, pode-
se argumentar que a cada vez maior procura de particularismos e de pormenores —
tendência no sentido da desconstrução e desconceptualização — pode, por si só,
representar uma mudança, ainda que parcial, no sentido de ser desviado o equilíbrio de
poder para fora da área das nações ocidentais, o que constitui um indicador de que se
está a assistir ou se caminha para uma nova forma de homogeneização. Daí que a
descoberta de diferentes vozes, vindas de um conjunto mais amplo e diversificado de
localidades e de novas formas de alteridade, possa surgir em determinadas fases de um
processo no qual poderosos establishments são forçados a reconhecer legitimidade às
exigências vindas do exterior. Isto não quer dizer, necessariamente, que tenha ocorrido
uma homogeneização com consequências graves. Parece, antes, indiciar uma luta no
sentido da reconfiguração do instrumental conceptual de forma a dar conta das
implicações desta mudança, reconfiguração essa em que as noções de pormenor,
particularidade e alteridade são usadas para ultrapassar a dificuldade de abarcar,
conceptualmente, um grau mais elevado de complexidade cultural. Ao mesmo tempo,
98
estas lutas, tantas vezes conduzidas por grupos exteriores às culturas ocidentais
instituídas, podem ser interpretadas como sendo limitadas e paternalistas por parte
daqueles que as procuram incluir no conceito vago de alteridade. Do mesmo modo, para
quem tem um acesso muito limitado aos meios globais de comunicação, ou se vê mesmo
privado dele, parece ser muito reduzida a possibilidade de os seus pontos de vista serem
levados seriamente em consideração, por parte dos que se situam em centros culturais
dominantes. Nestas situações, uma resposta típica destes grupos aos seus auto-nomeados
guardiões ocidentais pode ser: "Não me descriminem!".
Isto sugere-nos que a chamada condição pós-moderna é melhor entendida, não como
condição, mas como processo. É possível antever que o equilíbrio global do poder se irá
afastar do bloco ocidental sem que, por isso, venha a beneficiar grandemente os
"Outros" do Terceiro Mundo, hoje fonte de grande preocupação. Certamente, se
continuar a aumentar o poder do Japão e de outras nações da Ásia oriental, é possível
que estas nações do Terceiro Mundo venham a ser confrontadas com uma nova vaga de
imagens globalizantes e universalizantes, que irão provocar novos problemas e dar
origem a novas estratégias defensivas. Escusado será dizer que estas tendências não
deixarão de desencadear outros problemas relativos à reconceptualização de uma
imagem capaz de reforçar a auto-confiança do Ocidente. Embora a História Mundial do
passado possa servir de guia para o futuro (ainda que uma resolução possível para a
situação presente seja um mundo capaz de tolerar a diversidade) existem outras
alternativas. Não pode ser afastada a possibilidade da intensificação da competição entre
blocos e Estados-nação, que poderá ter em vista a eliminação dos outros Estados,
envolvendo guerras comerciais e outras hostilidades. Nestas condições, seria de esperar
uma série de reacções defensivas que poderiam surgir como uma mobilização de
nacionalismos e de culturas comuns, que definissem com nitidez imagens estereotipadas
de "nós" e de "eles" sem grande espaço para noções mais detalhadas de alteridade. É
evidente que as circunstâncias globais actuais já admitem estas e outras possibilidades,
pelo que se deve evitar que as nossas próprias concepções de cultura global e de cultura
local se perpetuem, por mais sugestivas que possam parecer.
99
NOTAS
1 Uma primeira versão deste texto surgiu em Jon Bird, Barry Curtis, Tim Putney, George Robertson e
Lisa Tickner (eds.) (1993), Mapping the Futures: Local Cultures, Global Change. Londres e Nova
Iorque, Roudledge (169-187).
2 Veja-se, sobre esta temática, o trabalho de Mattelart (1979), especialmente o seu livro How to Read
Donald Duck, assim como Schiller (1985). Para uma discussão crítica das teorias do imperialismo cultural
cf. Smith, 1990; Featherstone, 1987; e Tomlinson, 1991. Embora a noção de americanização se tenha
tornado mais explícita com a emergência das teorias da modernização que ganharam relevo nos anos
sessenta, numerosos cidadãos americanos criam que a modernização conduziria à americanização cultural.
3 A noção do "fim da História" foi usada pela primeira vez por Cournot, em 1861, para se referir ao fim
da dinâmica histórica que acompanhou o aperfeiçoamento da sociedade civil (Kamper, 1990). Arnold
Gehlen adoptou-a em 1952. Esta noção foi recentemente recuperada por Heidegger e Vattimo.
4 Veremos, em breve, que o ímpeto nesse sentido não vem apenas do Oeste, enquanto perda (interna) de
auto-confiança, mas surge em termos práticos dos encontros com o "Outro": como aquele que se recusa a
aceitar a versão ocidental da História. Um exemplo da construção de uma cultura global é, portanto, a
necessidade de construir histórias mundiais. Para uma discussão das dificuldades relacionadas com a
participação no projecto da UNESCO, que tentou congregar historiadores de várias nações para a
construção de uma História do Mundo, e dos conflitos e lutas de poder que daí resultaram, veja-se o
trabalho de Burke (1989).
5 Desnecessário será dizer que esta ideia é muito diferente da ideia de que "somos iguais a eles" que
silencia a noção subjacente de que eles nos são subordinados e que irão ser educados para se tornarem
iguais a nós. Em vez de se assumir que "somos iguais a eles" dever-se-ia assumir que podemos aprender
com eles e que com eles nos queremos identificar.
6 É importante referir que o processo de modernização da cultura é uma imagem que os Estados-nação
criaram para si próprios, a qual pode adquirir inúmeras formas, tais como rituais e cerimoniais. O que se
tornou crucial, não foi a eliminação actual das diferenças e dos vestígios das afinidades regionais, étnicas
e locais, mas a noção de que os Estados têm o direito de proceder a essa eliminação e de que tais
identificações (regionais, étnicas e locais) são retrógradas e constituem desvios que têm de ser
neutralizados, através de acções de educação e de processos civilizacionais.
7 Para uma discussão interessante sobre a elasticidade espacial do conceito de "terra-mãe" (agar) que na
cultura etíope pode significar desde uma aldeia pequena ao Estado nacional, veja-se Levine (1965).
8 Uma das preocupações de Durkheim era a de que a consciência colectiva e o sentido do sagrado, que
têm mantido coesas as sociedades, pudessem continuar a ter um papel importante nas sociedades
modernas. No entanto, este autor, assim como o seu herdeiro — Marcel Mauss —, mal se aperceberam
que as suas concepções de sociedade haveriam de ser actualizadas aquando das manifestações nazis em
Nuremberga. Como Mauss comentou, posteriormente, "devíamos ter previsto que esta tendência viesse a
verificar-se para o mal e não para o bem" (citado por Moscovici, 1990: 5).
9 Deve igualmente mencionar-se que, para certos sectores da juventude, os novos espaços urbanos das
grandes cidades (como, por exemplo, Les Halles, em Paris) oferecem a oportunidade de experimentar
tipos de afinidade muitas vezes negadas. Daí que Maffesoli (1988) se refira à emergência de
"comunidades afectivas" pós-modernas nas quais os jovens se juntam temporariamente para gerar
espontaneamente um sentido de Einfuhlung — identificação emocional intensa. Estas tribos não estão
ligadas a locais particulares, assim como não detêm a exclusividade do recrutamento de novos membros
— característica normalmente associada às tribos — embora possuam a capacidade de gerar experiências
emocionais colectivas, em termos da disseminação do sagrado de que falamos. O mesmo se poderia dizer
dos concertos de rock, que podem gerar um sentimento intenso de comunhão e uma preocupação ética
relacionada com a natureza, com o Terceiro Mundo, etc. Este facto sugere-nos que as ameaças à
"segurança ontológica", que Giddens (1990) associa à fase presente, possam ter sido sobrevalorizadas.
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101
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Robertson, R., 1991, "Social, theory, cultural relativity and the problem of globality", in A. D. King (ed.),
Culture, Globalization and the World System. Nova Iorque, Macmillan.
Sakai, N., 1989, "Modernity and its critique: the problem of universalism and particularism", in Miyoshi,
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e Patterson, R. (eds.), Television in Transition. Londres, British Film Institute.
Schor, N., 1987, Reading in Detail: Aesthetics and the Feminine. Londres, Methuen.
Simmel, G., 1977, The Problem of a Philosophy of History. Nova Iorque, Free Press. (Trad. e ed. de G.
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Wallerstein, I., 1974, The Modern World-System, (vol. 1). Londres, Academic Press.
Wallerstein, I., 1980, The Modern World-System, (vol. 2). Londres, Academic Press.
CAPÍTULO 5
Laura Bovone
É difícil dizer alguma coisa de novo sobre a pós-modernidade, mesmo quando se trata
de uma categoria que não tem muitos apoiantes, como sucede no panorama sociológico
italiano (Crespi, 1988; Belohradsky, 1989; Bovone, 1990; Ferrara, 1992; Donati, 1993),
ou suscita uma relação de afastamento (Ardigò, 1988). Contudo, como ocorre em meios
ligados ao estudo das Ciências Sociais de raiz anglo-saxónica, falar de pós-modernidade
tornou-se um lugar comum a que, por vezes, se recorre de modo excessivo, (Foster,
1984; Jameson, 1984; Lash, 1990; Featherstone, 1991; Bauman, 1991 e 1992; Seidman
105
e Wagner, 1992), dado o facto de, salvas algumas excepções (Habermas, 1981; Giddens,
1990), ser tratado de modo equivalente ao termo pós-industrial. Com efeito, o conceito
de pós-modernidade penetra o campo disciplinar da Sociologia através do trabalho de J.
F. Lyotard (1979), que no-lo apresenta como a face cultural do pós-industrialismo. Nem
todas as características da pós-modernidade têm a mesma revelância para o nosso
trabalho, ainda que reconheçamos que se revela um conceito válido para analisar a
cultura contemporânea, em especial, o papel dos seus difusores.
Do moderno ao pós-moderno
descrição da mudança cultural, mais concretamente, dos seus elementos mais visíveis,
aqueles que se contrapõem aos que foram sempre considerados típicos da modernidade,
e não necessariamente por se substituirem a estes últimos (Mora, 1990). Além disso, é
próprio do exasperado pluralismo pós-moderno conviver, sem polémica, com o seu
oposto, fazer da combinação de estilos de vida, um estilo de vida próprio, e da
recuperação de fragmentos do passado, não um cadinho onde se anulariam as
diferenças, mas uma colagem.
Assim, definir a pós-modernidade como um "paradigma cultural" (Lash, 1990) pode
parecer excessivo, mesmo conhecendo-se o relativismo que subjaz a tal termo (Kuhn,
1970). Sem crer na verdadeira hegemonia das características da pós-modernidade, a
partir do momento em que elas contêm e se articulam com pedaços da cultura moderna,
parece legítimo que possamos recorrer a esse tão flexível sistema conceptual.
taste maker, de modo bem mais significativo do que o faz o capital escolar, de tipo
académico.
Bourdieu reconhece abertamente a "ambiguidade" essencial e a dupla lealdade que
caracteriza o papel dos intermediários. Por um lado, as suas referências incidem sobre
elementos estruturais que dizem respeito à sua posição de classe ("colocados numa
posição instável na estrutura social, como o baixo clero de outras épocas"), e reflectem,
de modo evidente, expressões típicas do marxismo. Por outro lado, o sociólogo francês
mostra-se muito atento aos aspectos psicológicos próprios de uma tal posição, bem
como ao modo segundo o qual esta posição influi sobre as biografias individuais e a
imagem que estes actores fazem de si próprios. Eles são (ou parecem ser?) "mercadores
de... necessidades que também se vendem continuamente a si próprios, como modelos e
como garantes do valor dos seus produtos, são óptimos actores, apenas porque se sabem
apresentar muito bem e porque acreditam no valor daquilo que apresentam e que
representam". Em contrapartida, como se encontram numa posição subordinada e, por
vezes, quase alienada, são condenados "à substancial ambiguidade que deriva da
diferença entre atitudes, simbolicamente subversivas, ligadas à sua posição na divisão
do trabalho, e funções de manipulação e de conservação inerentes a estas posições"
(idem, 367-369).
Em suma, apesar de Bourdieu se distanciar, explicitamente, tanto de uma abordagem
sociológica objectivista, de tipo durkheimiano, como das teorias subjectivistas de base
etnometodológica que reduzem os significados e as diferenças sociais a construções de
tipo discursivo (idem, 478), propondo, em boa parte, a sua integração, não são poucos os
indícios que testemunham a maior atenção conferida aos elementos estruturais, em
relação aos supra-estruturais. O capital individual, na sua composição e dinâmica, não
parece abrir verdadeiras possibilidades para além de recriar e inventar novas condições
de trabalho. Permanecem a lógica do domínio, do poder de impor significados e estilos
de vida, de identificar valores in e out, de demarcar as fronteiras da "distinção".
Uma visão muito mais possibilista do papel daqueles que possuem uma grande bagagem
de informações e de significados é a que oferecem M. Douglas e B. Isherwood. Para
estes, os bens (o capital, na terminologia de Bourdieu), "o sistema de informação" ou "a
parte visível da cultura" são, em si, "neutros, embora os seus usos sejam sociais e
possam ser utilizados quer como obstáculos quer como ligações" (Douglas e Isherwood,
1979: 74).
Na hierarquia estabelecida por estes autores, a classe superior é a que investe na
informação mais do que na tecnologia (e obviamente, mais do que na alimentação,
domínio no qual os pobres gastam sempre mais, percentualmente, do que os ricos).
111
Ao contrário da categoria de classe, o status foi, desde Weber, passível de um uso mais
flexível, menos vinculativo sob o ponto de vista ideológico, e circunscrito às
características culturais dos sujeitos. Não nos parece desajustado, pois, classificar os
novos intermediários culturais como um dos estratos ou camadas de intelectuais
emergentes (Bovone, 1993), não apenas como modo de conservar as distâncias em
relação a Bourdieu e à sua terminologia, mas também para colocar a tónica sobre a
óptica absolutamente cultural do nosso discurso.
Feitas estas considerações teóricas, o objectivo da nossa pesquisa empírica é procurar
identificar o nexo que relaciona e confere significado às diversas profissões referidas, no
âmbito da cultura pós-moderna. Pretendemos, além disso, verificar se existe uma
proximidade entre os diferentes percursos educacionais, se existe alguma analogia de
posicionamentos face ao trabalho e às histórias de vida e, por fim, se existe alguma
contiguidade entre estas histórias de vida e o modo como são percepcionadas. Estas
questões relacionam-se, naturalmente, com o facto de estes sujeitos se encontrarem
numa posição semelhante, enquanto veículos de transmissão da informação, e serem
intelectuais, não apenas por formação, mas também por fazerem uso de "um meio de
produção que é uma forma simbólica de produzir… uma outra forma simbólica"
(Ammassari, 1993: 45).
Não poderemos deixar de interrogar sobre o grau de variabilidade dos valores políticos,
dos estilos de vida e dos modos como estes sujeitos se relacionam com a comunicação,
porquanto a sua relação privilegiada com a pós-modernidade se constrói por intermédio
de malhas larguíssimas — acumulação de informações, reflexividade, ambivalência,
sincretismo, etc. —, em que se cruzam e tornam compatíveis trajectos muito diferentes
entre si. Numa palavra, é provável que as diferentes profissões analisadas levem os
sujeitos a relacionar-se de modo muito diverso com os elementos que caracterizam a
cultura pós-moderna.
constituem uma das actividades potencialmente mais inovadoras para quem pretende
conhecer-se, ou, simplesmente, para quem pretende viver como puro artista ou
intelectual. O crescente número daqueles que perseguem um currículo educacional de
"artista" ou de "intelectual" na sociedade pós-industrial faz deles, inevitavelmente,
empregados ou, quando muito, profissionais liberais (Prandstraller, 1990), parecendo ser
o mundo dos mass-media o seu lugar ideal.
Se, até há pouco, a arte e a cultura eram mundos à parte e altamente selectivos, hoje,
perante o processo de des-diferenciação social da pós-modernidade (Lash, 1990; Crook-
Pakulsky-Waters, 1992), a cultura de elite e a cultura popular misturam-se, e a cultura
de massas contém-nas a ambas. Com a pós-modernidade assiste-se ao declínio da
procura do único, do personalismo típico da cultura burguesa, da vanguarda artística ou
política que constituía a verdadeira escola do intelectual típico até aos anos sessenta.
Hoje, também o intelectual académico aspira, em muitos casos, tornar-se um intelectual
"mediático", mestre do prêt-à-penser (Berthoud e Busino, 1990). Coloca-se objectivos
que não são apenas de ordem cognitiva e do saber, mas trata também da sua aparência
estética, de molde a ser apreciado por um vasto público (Boudon, 1990).
Em particular na esfera artística, parece ter desaparecido o percurso orgulhoso, feito de
investigação, de descobertas imprevistas, de inversões de estilos. Se, por um lado, tudo
isto parece já ter sido experimentado — a história está demasiado presente para no-lo
fazer esquecer —, por outro lado, a arte mistura-se com a vida, e os seus valores
confundem-se. O ideal do artista moderno, os motivos que o levavam a combater o
burguês bem-pensante — hedonismo, libertação, expressão total da própria
personalidade —, tornou-se a norma cultural de qualquer cidadão pós-moderno,
"perfeito micro-artista da própria vida privada", como ilustra A. De Paz (1992: 102). As
últimas vanguardas mostraram-nos que tudo pode ser tornado arte-mercadoria e ser
vendido. De resto, de há algum tempo a esta parte, foi o mercado, enquanto tal, que se
apoderou da qualidade da inovação. É então que, com frequência, o artista regressa ao
profissionalismo, exerce a sua profissão onde quer que haja espaço para ela, troca o
individualismo pelo trabalho de equipa e pelo emprego em macro-estruturas, na mira de
segurança e subsídios estatais. A sociedade da comunicação e a cultura da imagem são o
seu terreno e nenhum deles dispensa o outro. O mundo da produção cultural deixou de
ser "um mundo económico às avessas", como se quis fazer crer (Bourdieu, 1993).
A des-diferenciação interfere com a arte e o mercado, a arte e a vida, a cultura de elite e
a cultura popular, não no sentido da impossibilidade de manejar separadamente tais
categorias analíticas, mas no sentido de que as sobreposições entre as respectivas
realidades são tais, que tornam mais premente o conhecimento das suas interconexões
do que das suas realidades isoladas (Muench, 1992). Neste sentido, parece-me
importante atentar na categoria dos novos intermediários culturais, como encruzilhada
onde convergem lógicas diferentes — de informação e de mercado, comunicativas e
114
Isto é, se definirmos a sociedade como "o conjunto de acções recíprocas onde conteúdos
e interesses materiais ou individuais assumem uma determinada forma" que os agrega, a
história ensina-nos que "estas formas se autonomizam e agem por si" (Simmel, 1950:
43). Logo, levado ao seu extremo, o jogo da sociabilidade, da arte, da ciência, ou da
moda esvazia-se de conteúdo. Parece-me, no entanto, de toda a conveniência seguir
Simmel até ao fim e assentar no facto de que tais formas de relação constituem sempre
um recurso em potência.
Se procurarmos encontrar na moda aquilo que Simmel não nos pode dizer sobre a
cultura de massas, notamos nas suas palavras um entusiasmo que não parece ter sido
refreado por uma certa preocupação face aos excessos da moda típicos do nosso "tempo
impaciente". "O verdadeiro fascínio pela moda… está …quer na possibilidade de
sermos guiados por um círculo social que permite que os seus membros se imitem
reciprocamente, libertando o indivíduo de qualquer responsabilidade ética e estética,
quer na possibilidade de, dentro dos seus limites, os indivíduos criarem estilos próprios,
quer por intensificação, quer por recusa da moda" (Simmel, 1985: 60-61).
A duplicidade e a ambivalência que Douglas e Isherwood atribuem globalmente ao
sistema de consumo, gerador da vontade simultânea de exclusão e de pertença,
correspondem, em Simmel, à ambivalência e à duplicidade da moda. Também me
parece evidente a analogia com o que Habermas chama o "potencial ambivalente" dos
media, quando defende que "as esferas públicas dos media hierarquizam e, ao mesmo
tempo, abrem os horizontes possíveis de comunicação". Na verdade, o "potencial
autoritário" dos media, resultante da estrutura hierárquica e centralizada que os governa,
convive com um "potencial emancipatório", decorrente do facto de se continuarem a
servir de "formas generalizadas de comunicação que não substituem a compreensão
linguística, antes a condensam, e permanecem ligadas, assim, ao universo da vida real"
(Habermas, 1985: 1069).
Se a teoria de Habermas é válida para "as esferas públicas dos media", é também
susceptível de ser aplicada aos sujeitos que trabalham nessas esferas, que podem ser
considerados os sujeitos que condensam e fazem o encontro do potencial autoritário
com o potencial emancipatório. Tendo acesso tanto aos "media de controle" (dinheiro e
poder), como aos "media de comunicação" (influência e prestígio), estes sujeitos são
também capazes de construir tanto oportunidades de "integração do sistema", como de
"integração social" no sistema, consoante visem primordialmente o sucesso ou o
entendimento (idem, 784-792).
Torna-se evidente, deste modo, que o tipo de oportunidades que estes profissionais da
comunicação podem oferecer ao seu público depende, em grande parte, de onde e como
se posicionam a si próprios no continuum da ambivalência. Por analogia com o que
Crespi (1992: 149) afirma acerca dos artistas, pode-se dizer que, para os especialistas de
comunicação, a responsabilidade reside na "grande atenção que dispensam aos meios de
116
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CAPÍTULO 6
Alan Warde
Este trabalho é o resultado dum interesse mais global pela forma como o
comportamento dos consumidores se tem transformado nos últimos vinte e cinco anos,
dado que existem razões teóricas para suspeitar que se deram transformações
importantes no que respeita às práticas do consumo durante este período.
Embora não tenha sido alvo de grande atenção sociológica, a questão do consumo tem
sido normalmente explicada pela produção. Tem-se igualmente partido do princípio que
diferentes padrões de consumo correspondem a diferentes posições de classe. Uma
versão mais recente e mais sofisticada desta interpretação encontra-se nos estudos
realizados por Bourdieu (1984). Bourdieu defende que o comportamento do
consumidor, entendido em termos latos, é um meio pelo qual as classes sociais
exteriorizam o seu capital cultural e através do qual definem, igualmente, um
determinado lugar no sistema hierárquico de distinção social. Podendo o capital cultural,
adquirido principalmente através da educação, ser convertido em capital económico,
encontramo-nos perante um sistema de desigualdade social, em termos de classes. Na
teoria de Bourdieu sobre a origem das práticas de consumo, é decisivo o conceito de
habitus, enquanto conjunto de disposições adquiridas que compreendem, e através das
quais se geram, julgamentos sociais e culturais, os quais emergem em situações sociais
correntes ou inesperadas. Para Bourdieu, o gosto está profundamento ligado, em termos
afectivos, às culturas de classe e é em geral altamente regulado em termos normativos.
Muitos dos actuais estudiosos do consumo acusam Bourdieu de ser empiricamente
inconsistente. Segundo estes autores, a tese de que as classes sociais estão a perder
significado contradiz a posição defendida por Bourdieu. Os proponentes desta tese não
120
***
A análise que aqui se desenvolve recai sobre um tipo particular de representações das
formas de comer que, de acordo com algumas revistas femininas, são dadas como
apropriadas, aceitáveis ou mesmo recomendáveis. Comparei, de forma sistemática,
todos os artigos relacionados com a alimentação numa amostra das revistas britânicas de
maior tiragem em 1967-68 e em 1991-92. Começo por discutir a natureza destas revistas
femininas no contexto do Reino Unido. Sugiro, depois, que o modo de compreensão,
classificação e interpretação dos conteúdos das colunas de gastronomia, se baseie nos
oito princípios e recomendações, recorrentes nestas revistas. Estes, por seu lado, podem
ser agrupados em conjuntos de quatro antinomias frequentes e fundamentais quanto à
orientação na escolha dos alimentos. O texto prossegue com os resultados da análise de
conteúdo das revistas para os dois anos considerados. Trata-se de compreender a forma
como as ementas são aconselhadas aos leitores; quais são os princípios que emergem em
resposta à questão "o que deverei eu, e a minha família comer?". A concluir, analiso os
resultados alcançados, tanto em termos das preferências por certos alimentos, como das
implicações deste tipo de análise para a compreensão da mudança cultural mais geral.
123
Foi definida uma amostra de receitas culinárias retiradas das cinco revistas semanais de
maior tiragem e das cinco revistas mensais mais lidas nos anos de 1967-68 e 1991-921.
O critério "mais lidas", para estes anos, foi obtido através do National Readership
Survey (JICNARS). A amostra das revistas refere-se a meados de Novembro, Fevereiro,
Maio e Agosto de cada ano, de forma a dar conta das mudanças sazonais detectáveis no
conteúdo das colunas relativas à gastronomia. Obtiveram-se, deste modo, 114 receitas
para o ano de 1967-68 e 124 para o ano de 1991-92, as quais, dada a forma aleatória
como foram escolhidas, foram consideradas suficientes para a formulação de algumas
generalizações provisórias sobre as receitas e as transformações que sofreram ao longo
do tempo.
Apesar do substancial decréscimo de leitura registado desde 1967, na sua totalidade,
estas revistas apresentam um número considerável de leitores, tendo cada conjunto de
dez revistas sido lido por cerca 29 milhões de leitores em 1991. Cada uma delas dedica
uma parcela significativa do seu espaço a artigos e anúncios sobre alimentação: 11% e
12%, respectivamente, em 1991. Pode-se partir do princípio que estas colunas dedicadas
à gastronomia terão suscitado a atenção de um largo número de mulheres britânicas e,
deste modo, poderão ter exercido alguma influência quanto à determinação e à educação
do gosto alimentar.
PRINCÍPIOS E RECOMENDAÇÕES
Aos leitores das revistas são recomendados alimentos, pratos e ementas, sob a forma de
preâmbulos para cada conjunto de receitas, receita a receita, ou conjugando ambos os
modos de apresentação. Em certos casos, a recomendação implica uma explicação mais
detalhada, noutros utiliza alguns adjectivos que apenas servem para introduzir as
receitas. A estas introduções chamarei, adaptando a terminologia de Tomlinson (1986),
modos de promoção das receitas. São usados termos muito diversos para recomendar
diferentes tipos de comida. Estes termos parecem, no entanto, ser redutíveis a um
pequeno número de conceitos empregues recorrentemente.
Admite-se que alguns critérios gerais, de carácter funcional, possam ter sido usados
desde sempre para persuadir as pessoas a comer. Convites de tipo utilitário visam
convencer as pessoas de que ficarão satisfeitas e irão, desse modo, beneficiar do valor
nutritivo de determinado prato que pode, por exemplo, ser descrito como bom, nutritivo,
agradável, perfeito, de confeccção fácil, útil ou esplêndido. Há ainda alguns critérios
funcionais que apelam aos sentidos: um alimento pode ser, por exemplo, saboroso,
124
Nesta secção irei expor alguns resultados da análise de conteúdo, feita com base na
distribuição de frequências com que os temas aparecem referidos na promoção das
receitas.
Um dos truísmos da teoria social actual é que a modernidade gera uma ambivalência
face a um constante desejo de experiências permanentemente renovadas e a uma
profunda ansiedade derivada da perda de segurança, contida na rotina e na continuidade
(Martin, 1981; Berman, 1983).
Pela análise da promoção das receitas, torna-se evidente que, no último quarto de século,
o apelo à novidade diminuiu. Em 1967-68, 43% das receitas fizeram uma referência
positiva, explícita ou implícita, aos seus aspectos inovadores. Em 1991-92 esta
percentagem baixou para 22%. Em 1967-68, só 13% (15 receitas) assumiam que o leitor
não conhecia nem os ingredientes, nem as técnicas utilizadas na sua preparação; 11%
eram apresentadas como motivo de aventura e de experiência inovadora face ao uso de
ingredientes convencionais; por fim, 13% eram recomendadas pelo seu exotismo ou por
traduzirem um estilo especial. Em 1991-92, a promoção de receitas que exaltavam a
diferença e a inovação correspondia a apenas 5% do total; a promoção de experiências
novas com os ingredientes alimentares representava 2%, e as receitas pouco vulgares,
exóticas, ou com um estilo particular, 6%.
Esta mudança não se fez acompanhar, como se poderia julgar, de qualquer valorização
da gastronomia estrangeira. A proporção de receitas que promovem, de modo explícito
ou ímplicito, alguma dimensão étnica do prato não sofreu alterações significativas: 28%
em 1967-68 e 27% em 1991-92. Esta continuidade encobre algumas diferenças reais. Os
atributos étnicos tornam-se mais explícitos e precisos nos anos noventa. A proporção de
receitas originárias das Ilhas Britânicas (Irlanda, Escócia, Inglaterra Ocidental, etc.)
diminuiu de 9% para 5%. Houve igualmente um aumento significativo do número de
receitas explicitamente provenientes de cozinhas não-europeias. Em 1967-68, 86% das
receitas que referem a origem geográfica eram britânicas, francesas ou italianas, e
apenas 10% eram não-europeias. Em 1991-92, a cozinha italiana continua a ser o tipo
mais divulgado, embora surjam, aqui e ali, cozinhas europeias provenientes de outras
áreas, sendo 39% receitas de países fora da Europa.
Regista-se ainda uma crescente preocupação quanto à autenticidade das receitas
estrangeiras. Daí que, enquanto, em 1967-68, uma receita pode sugerir que, na
confecção de uma paella, se ponham de lado os mexilhões e as lulas por não se
adequarem ao gosto britânico, em 1991-92, 10% das receitas da amostra insiste no rigor
de uma receita não-britânica (3% para 1967-68). Nota-se, uma maior preocupação com a
diversidade gastronómica e o rigor no campo da cozinha étnica. No entanto, nos últimos
vinte e cinco anos, a tendência geral parece ser a da diminuição do apelo à novidade.
Uma recomendação alternativa consiste num apelo maior à tradição. As colunas
debruçam-se sobre as receitas locais, regionais ou tradicionalmente britânicas. Os apelos
a referências habituais e tradicionais aumentaram significativamente: de 16%, em 1967-
68, passaram para 31%, em 1991-92. Grande parte deste aumento ficou a dever-se a
pratos estrangeiros, por exemplo, pratos orientais, em consonância com a sua própria
126
Comodidade e cuidado
Quantificação e Racionalização
Banalização do Exótico
Uma das fontes de atracção da alimentação é a curiosidade por tudo o que é novo e
original na preparação das refeições. É a satisfação do desejo da procura de novas
experiências, de novos estilos e de novos gostos. Mas, como forma de promoção, esta
curiosidade é hoje utilizada com menos frequência do que há 25 anos atrás. Não é fácil
interpretar esta tendência. Em 1991-92, prestou-se pouca atenção aos novos
ingredientes; apelou-se pouco à experimentação e ao espírito de aventura, e as
referências ao exotismo e ao requinte foram menos explícitas, embora tenham
continuado a ser importantes.
Este processo poderá ser descrito como uma banalização do exótico. Em 1967-68,
acreditava-se que as leitoras nunca teriam experimentado técnicas culinárias diferentes,
compostas de ingredientes internacionais e raros, e que teriam ao seu dispor um
conjunto limitado tanto de técnicas e de receitas, como de aspirações e de gostos. Essas
leitoras eram vistas como devendo ser confrontadas com uma maior variedade culinária,
à qual eventualmente resistiriam. Foram assim encorajadas a experimentar e a serem
audaciosas, o que, em geral, significava abertura às influências estrangeiras. Nos anos
noventa, parte-se do princípio de que as pessoas aceitam outros tipos de cozinha e que o
valor das receitas não-europeias não necessita de ser justificado nem mesmo
questionado. Em termos gerais, esta questão pode ser relacionada com os processos de
globalização tanto das mensagens, como das matérias-primas utilizadas. Daí que, a
atitude de que "se deve experimentar de tudo", que, para Baudrillard (1988), traduz o
ethos do consumo contemporâneo, tenha sido mais sugestiva numa década menos
confiante, ainda que mais expansiva e aberta à experimentação, como foram os anos
sessenta. Tornou-se trivial experimentar, uma vez por outra, a cozinha internacional,
tendo-se cada vez menos a preocupação com a sua adaptação ao gosto britânico.
Escolha Pessoal
Institucionalização da Ansiedade
NOTA FINAL
Este estudo de caso é, sem dúvida, inconclusivo quanto aos indicadores de mudança
identificados na primeira parte do texto. O que se pode destacar é a complexidade das
mudanças culturais, tal como surgem através deste meio de comunicação relativamente
mundano, mas de grande divulgação, que são as revistas femininas. O estudo das formas
131
NOTA
1 As revistas semanais mais divulgadas na primeira metade de 1968, em termos do número de leitores,
foram Woman, Woman's Own, Woman's Realm, Woman's Weekly e My Weekly; quanto às revistas
mensais, destacaram-se as seguintes: Family Circle, Woman and Home, Good Housekeeping, Ideal Home
e She. As revistas semanais com maior tiragem entre Julho de 1990 e Junho de 1991 foram Woman's Own,
Bella, Woman, Woman's Realm e Best; entre as revistas mensais destacaram-se Prima, Family Circle,
Good Housekeeping, Woman and Home e Cosmopolitan.
133
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Parte III
CIDADES
E
GLOBALIZAÇÃO
135
CAPÍTULO 7
O CASO DE ANTUÉRPIA 93
A "Cidade" em Perspectiva
grega. A sua proposta da institucionalização da "Cidade Capital Cultural" foi aceite por
unanimidade pelos Ministros da Cultura em 5 de Junho de 1985, assistindo-se, desde
então, à designação anual de uma cidade diferente por parte do Conselho de Ministros
da União Europeia.
A iniciativa foi apresentada como uma marca de distinção e uma forma de explorar a
riqueza e a diversidade da cultura europeia:
A acção não reflecte a procura de uma cultura europeia homogénea, mas sim o
reconhecimento de todas as entidades culturais, na sua diversidade. De acordo com
Rawlings (1990), relator do Parlamento Europeu, a cidade é "um monumento e um
exemplo vivo da existência humana e a obra mais visível e significativa da própria
civilização europeia". Por esta razão, a identidade europeia deveria ser estimulada e
construída através das cidades. Esta posição, como mostraremos adiante, torna-se um
argumento importante no processo de unificação europeia.
Para os ministros, há que ter em conta dois objectivos na concepção do programa de
uma Cidade Capital Cultural. O primeiro é o de tornar a cultura da cidade acessível a um
público europeu e internacional. O segundo é o de sustentar uma imagem da cultura
europeia, tal como ela hoje se nos apresenta:
Resta, apesar de tudo, uma ampla variedade de possibilidades de combinação destes dois
objectivos.
Em 18 de Maio de 1990, o Conselho dos Ministros da Cultura reuniu-se para discutir o
perfil futuro da "Capital Europeia da Cultura". Rawlings (1990) relata que os ministros
consideraram necessário adoptar objectivos mais específicos para o programa das
"Cidades Europeias da Cultura". Tais objectivos passaram a ser os seguintes:
Toda esta iniciativa ao nível europeu demonstra a ausência de uma visão clara quanto ao
papel da política cultural no processo de unificação europeia. As recomendações do
Conselho podem ser lidas como comentários, mais do que como orientações políticas
claras. No âmbito de uma concepção de União Europeia que se baseia na integração
económica e na colaboração política, a cultura mantém-se como um domínio estranho.
Continua prisioneira das opções fundamentais feitas pelos Estados-nação, que tendem a
combinar cultura nacional com política nacional. Por essa razão, fica-lhe reservado um
papel de espectadora das transformações profundas operadas pelo processo de
globalização-localização. O verdadeiro actor é cada Cidade Cultural em si mesma, a
quem é permitido colocar a sua própria "marca" na programação.
Esta ausência de orientação política pode também ser observada ao nível da própria
designação das Capitais Culturais. Apresentam-se para este fim critérios bastante
técnicos e de natureza quantitativa, tais como:
Tudo isto é bastante formal e sem consistência para uma política europeia de designação
das Capitais Culturais. Poder-se-ia conceber uma modalidade que tomasse em
consideração um contexto político mais vasto. A selecção das "Cidades Europeias da
Cultura" poderia ter sido contextualizada no âmbito das tranformações fundamentais
que têm vindo a ser testemunhadas pela Europa e pelo resto do mundo. Estas
transformações não têm sido tomadas em consideração, como ilustra a recusa dos
Ministros Europeus da Cultura, em reunião do Conselho de 5 de Novembro de 1993, em
designar Sarajevo como "Capital Cultural da Europa", entre Antuérpia 93 e Lisboa 942.
Mas há um outro paradoxo: se, por um lado, a iniciativa da "Cidade Europeia da
Cultura" pretende enfatizar a importância crescente das cidades na Europa
contemporânea, por outro lado, a selecção das cidades continua a basear-se nas escolhas
dos Ministros da Cultura dos Estados-nação. Isto parece querer significar que cada
Cidade Capital Cultural representa uma cultura nacional e não, por exemplo, uma
cultura regional. Será que o Conselho de Ministros encara a hipótese de designar
Marselha ou Bordéus como centros urbanos do Sul de França, Barcelona como capital
da Catalunha, Bilbau do País Basco, ou mesmo Milão como capital da Lombardia? É
ambivalente a escolha de Antuérpia como Cidade Capital Cultural, já que não é nem
capital da Flandres nem da Bélgica.
A Grécia, cuja Ministra da Cultura, Melina Mercouri, lançou a ideia, teve a honra de
"enfrentar o desafio" nesse ano. Atenas, a primeira "Capital Europeia da Cultura", em
1985, usou o título como um instrumento para reavivar o espírito cultural enraizado na
sua própria identidade e para melhorar as suas infraestruturas. Organizaram-se 650
eventos culturais e venderam-se 1,5 milhões de entradas. O orçamento final foi de cerca
de 5,4 milhões de ECUs. A própria Melina Mercouri foi a directora geral do festival, e
Spiros Merkouris o seu responsável executivo.
As festividades orientaram-se prioritariamente para o público grego. Foram três os
objectivos do festival:
140
De acordo com Armand (in Bartlett, 1990), observou-se uma verdadeira mudança de
atitude pela parte dos gregos, em vista da longa e forte oposição do país à sua integração
na União Europeia. A concretização do programa em Atenas foi dificultada pela falta de
dinheiro e pela deficiente organização. O programa não ofereceu grande inovação nas
formas artísticas. No programa, constavam principalmente grandes nomes estrangeiros e
arte grega antiga, sendo escassa a presença de artistas gregos contemporâneos, ao
contrário do proposto nos objectivos estabelecidos. A crítica maior lançada contra o
festival centrou-se no seu carácter populista. De acordo com o jornalista alemão van
Gent, os artistas gregos argumentavam que o título de Cidade Capital Cultural não se
justificava para Atenas, já que o elevado custo do projecto contrastava com a pobreza da
política cultural da cidade, não indo o festival além de um único e grande anúncio
publicitário (Baeten, 1989).
Florença foi a segunda cidade escolhida. Esta cidade quase não necessitava de um
acontecimento especial como este para realçar a sua fama e capacidade de atracção
turística. Por esta razão, foram feitos esforços para dar relevância especial ao Ano da
Cidade Capital Cultural em si. A organização e preparação do festival foram dificultadas
pela crise política municipal e, de acordo com os organizadores, pela lentidão da
máquina burocrático-administrativa.
Foi constituída uma comissão de doze pessoas para a selecção de entre mais de 200
projectos propostos pelas organizações culturais da cidade. O programa final foi
dividido em três secções:
O programa cobriu 184 eventos. Florença gastou 4,2 milhões de ECUs, grande parte dos
quais na recuperação de exemplares da arquitectura. O programa foi bastante rico em
ópera e teatro, especialmente em projectos de grande dimensão. A literatura foi muito
pouco beneficiada e a cidade fez realçar à sua já notória importância histórica.
Para alguns críticos, o festival consistiu numa grande oferta de eventos sem qualquer
linha orientadora. Para Mecatti, o responsável pelo projecto, a falta de coerência do
programa ficou a dever-se ao curto período de preparação. O organizador admitiu que o
resultado final revelou falta de coragem e de uma mensagem coerente, ainda que se
141
dissesse convencido de que a totalidade dos eventos de Florença fora de qualidade muito
superior à dos anos normais (Baeten, 1989).
Tal como Amesterdão, Berlim é um centro de criação artística e a cidade é uma mostra
permanente da cultura internacional, oferecendo uma enorme variedade de actividades
culturais. Não foi fácil, por isso, dar um sentido especial ao facto de ser, durante um
ano, a Cidade Europeia da Cultura. Tanto Amesterdão como Berlim contribuiram para a
interpretação desta noção, quer pela forma como demonstraram que tanto cultura, em
geral, como cultura europeia, em particular, são noções ambíguas, quer pelo modo como
deram lugar a expressões contemporâneas e inovadoras de arte, em articulação com os
traços históricos e tradicionais característicos das respectivas cidades.
Paris, Cidade Capital Cultural em 1989, fez uma interpretação do conceito centrada na
nação. A sua nomeação, no entanto, confrontou-se com a celebração do 200º aniversário
da Revolução Francesa. Jacques Chirac, então Presidente da Câmara, afirmou que, por si
só, esta celebração era um acontecimento de significado europeu. O resultado foi que o
ano da Cidade Europeia da Cultura não teve efeitos visíveis na cidade. Para além disso,
Paris não necessita de eventos ou títulos especiais para enaltecer a sua imagem. A
administração política não se empenhou na organização do Ano, tendo-se notado uma
total falta de coordenação da iniciativa que não chegou sequer a estabelecer um
programa especial. A cidade apenas usou o orçamento para acrescentar mais algumas
exposições e pequenos festivais com pouco interesse público.
A primeira cidade não-capital a ser nomeada foi Glasgow — uma cidade de província
sem pretensões a cidade artística — que, em 1986, recebeu a nomeação para 1990, num
confronto de oito candidaturas (Myerscough, 1992).
O programa de Glasgow terá sido talvez o mais proeminente, devido à impressionante
oferta de actividades culturais, com cabeças de cartaz e opções dispendiosas, com o
objectivo de modificar a imagem negativa de cidade industrial empobrecida. Dispôs de
um orçamento de 67 milhões de ECUs, posto ao serviço da promoção internacional da
cidade e do reforço da sua auto-confiança. O Gabinete do Festival foi nomeado pelo
Conselho Municipal de Glasgow que não centralizou a administração do festival nem
impôs o programa, optando antes por descentralizar a organização e o planeamento da
iniciativa. Neil Wallace estimou que só cerca de 20% dos eventos foram organizados
pelo Gabinete do Festival. Os restantes acontecimentos foram deixados a cargo das
organizações culturais da cidade, que receberam parte do orçamento e trabalharam com
autonomia. O conceito de Cidade Capital Cultural foi integrado no processo de
notabilização urbana3 de Glasgow, e revelou-se de um significado especial, enquanto
instrumento de publicitação e promoção da cidade. A palavra "cultura" teve aqui uma
interpretação muito ampla. O ano de 1990 tinha que ser um acontecimento em que todos
pudessem participar, tendo sido orientado para a diversos aspectos, como a cultura
144
Dublin, Cidade Europeia da Cultura em 1991, à semelhança de Glasgow, optou por uma
abordagem vasta do conceito, embora a uma escala mais reduzida. A nomeação oficial
de Dublin foi anunciada no Outono de 1988, tendo-se seguido um longo silêncio. O
curto prazo para a realização e o pequeno orçamento disponível, obrigaram a cidade a
optar por uma orientação mais pragmática, tendo a organização do festival foi
totalmente entregue à Dublin Promotions Ltd.. De acordo com o líder do projecto, Lewis
Clohessy, o orçamento de 5,4 milhões de ECUs era demasiado limitado para grandes
renovações ou para o desenvolvimento de infraestruturas. Tal como Glasgow, Dublin
vinha a ser objecto, na última década, de uma espécie de renascimento, o qual foi
continuado através do rejuvenescimento dos principais centros da cidade.
O conceito de cultura surgiu dividido em três segmentos:
145
A cidade mostrou velhos e novos contributos para a cultura e alargou o leque das
actividades culturais já existentes. A orientação das festividades foi prioritariamente
social, mas também conseguiu fazer da tradição literária irlandesa o foco das atenções.
Apesar das limitações orçamentais, a cidade ainda foi capaz de pôr em marcha alguns
projectos de desenvolvimento urbano. Porém, como dizia o Irish Times (31 de
Dezembro de 1991), "muita gente se esforçou, mas a falta de meios fez bloquear muitas
iniciativas". As actividades podem não ter preenchido o programa de um ano, mas,
como festival, a experiência de Dublin pode ser considerada um sucesso.
Madrid foi nomeada em 27 de Maio de 1988 como a Cidade Capital Cultural de 1992. O
festival foi, no entanto, abafado pelos Jogos Olímpicos de Barcelona e pela Expo de
Sevilha. Com um orçamento de 53,9 milhões de ECUs, Madrid, tal como Paris, também
fracassou já que os madrilenos não sentiram que algo de especial estivesse a ter lugar na
sua cidade. O programa não apresentou uma linha de orientação ou uma estrutura clara,
embora as actividades tivessem sido organizadas em redor dos seguintes três grandes
temas:
Em resumo, não existe qualquer orientação em comum por trás da programação das
diferentes cidades culturais. Todas as cidades aplicaram significados próprios à
147
O nosso argumento será o de que Antuérpia 93 serviu como exemplo para uma nova
categoria de projectos da Cidade Capital Cultural: a opção de colocar a arte no centro da
decisão política. Iremos demonstrar esta tese fazendo uma análise do programa de
Antuérpia 93, por comparação com as Capitais Culturais anteriores. O objectivo
principal foi o de recolher tanta informação escrita quanto possível antes, durante e
depois do evento (documentos da C.E., artigos de jornais, relatórios manuscritos e
documentos da "Fundação Antwerp 93"), a que acrescentámos um certo número de
entrevistas4, centrando a nossa atenção na retórica que acompanhou a elaboração do
programa, assim como no debate público que o envolveu.
Antuérpia foi e continua a ser o centro económico da Bélgica. A cidade, com os seus
cerca de 465.000 habitantes, tem uma localização geográfica central ideal (nas margens
do rio Scheldt) e uma clara vocação europeia. A zona de influência do porto sempre
excedeu a própria Bélgica e o contexto de um mercado europeu integrado amplia as
oportunidades de Antuérpia. O cunho multicultural e internacional da comunidade
urbana e a sua dimensão europeia são contribuições positivas para a imagem da cidade
(De Brabander, 1991).
No entanto, apesar deste elementos positivos, a cidade apresenta também algumas
deficiências. Tal como a maior parte das cidades europeias industrializadas, Antuérpia
tem vindo a confrontar-se com o declínio urbano. A desertificação do centro da cidade, a
suburbanização, a congestão, a crise industrial, a redução dos gastos governamentais e a
ineficiência da administração da cidade são indicadoras deste declínio. Tal como no
resto da Europa, a crise política e social provocou o aumento da influência de partidos
148
Estou convencido que ninguém na Bélgica sabia sequer que existia uma tal
coisa. Assim, a vantagem da ignorância e a rapidez da nomeação foram
factores que contribuiram para o sucesso da designação (Entrevista com
Cools).
Antuérpia não tem uma política cultural, nem uma mentalidade cultural (...).
As autoridades não comunicam, mas fecham-se nas suas próprias políticas
culturais (...). A política cultural sofre de burocracia e de sindicalismo
incompreendido (De Morgen, 5 de Dezembro de 1990).
Não foi fácil a escolha de um coordenador, mas, finalmente, Eric Antonis aceitou o
título de "Director". Antonis é um gestor cultural e artístico, com uma experiência de
mais de 25 anos. Originário de Turnhout, cidade onde foi director de um centro cultural,
entre 1987 e 1990 dirigiu uma companhia de teatro em Eindhoven. A sua prática de
gestão de centros de arte e de companhias de teatro e o seu dinamismo faziam dele o
líder ideal para o festival. Porém, para uma cidade chauvinista como Antuérpia, a
escolha de um director sem raízes e vivência na cidade não foi pacífica.
Como condição prévia, Eric Antonis exigiu completa autonomia e liberdade artística.
Antuérpia 93 teria que garantir um enquadramento flexível e estável, dentro do qual se
pudesse integrar a organização, promoção e administração financeira do festival. Como
iremos ver de imediato, esta foi uma situação excepcional e traduz uma inovação na
orientação política dos festivais. Em 27 de Setembro de 1990, uma fundação autónoma,
com o nome de "Antwerp 93", estabeleceu-se sob a alçada de Maurice Velge, figura
influente no sector económico de Antuérpia.
A estrutura independente5 na qual a cidade delegou o projecto era como que um corpo
estranho. A situação era excepcional para uma cidade como Antuérpia, onde tudo se
organiza à volta de redes de influência política e social, sendo a própria cidade
governada, desde 1947, por uma coligação de social-democratas e democratas cristãos.
É normal, na Bélgica, que a vida e as estruturas sociais (saúde, segurança social,
sindicatos, associações...) estejam fortemente ligadas a ideologias políticas e que a cada
partido político possua as suas próprias estruturas e organizações. Esta regra6 foi
quebrada pela constituição da Fundação.
O distanciamento das influências políticas por parte da comissão organizadora de uma
"Cidade Europeia da Cultura", assim como a entrega incondicional do festival a um
profissional de arte, constituiram uma situação sem precedentes. Para o líder das
exposições históricas, "isto não significa que não tenha havido cooperação com a cidade.
Houve sempre colaboração e discussão entre a Câmara Municipal e a "Antwerp 93".
Nunca foi nossa intenção o afastamento total da cidade." (Entrevista com Van der
Stock). Por sua vez, um dos coordenadores gerais da "Antwerp 93" diria que
Apesar da autonomia da "Antwerp 93", a cidade, assinala Van der Stock, manteve
sempre uma vigilância apertada sobre a organização. Berckmoes, também ele
coordenador geral, referiu que a organização se esforçou bastante para manter a cidade
sempre informada, já que a realização do festival não seria possível sem a cooperação da
Câmara Municipal.
O Presidente da Câmara de Antuérpia discordou da estrutura organizativa escolhida,
alegando que esta poderia tornar-se pouco transparente. Não pôde, no entanto, deixar de
aceitar, que "este tipo de organização, em que se trabalha de forma flexível, com
capacidade para arranjar subsídios e patrocínios e se colabora com outros parceiros, foi
de facto necessária e constituiu a base da programação cultural" (Entrevista com Cools).
Este relacionamento ambivalente foi também reconhecido pelo Director: "Em alguns
momentos existiram conflitos e alguma tensão, que só à custa de muita energia se
resolveram (...). Não considero isto negativo, mas apenas que torna a realização mais
lenta" (Entrevista com Antonis).
Todo o projecto poderia ser condensado numa só questão: qual o lugar da arte na
sociedade? Durante a sua longa e complexa história, a arte tem desempenhado múltiplas
funções. A arte deu brilho aos poderes religiosos, políticos e económicos. Nos nossos
dias, a arte é uma actividade de lazer, um pretexto para o turismo, um importante
instrumento de promoção das cidades, uma fonte de emprego, e muito mais.
Simultaneamente, e apesar do facto de que todos a utilizam a seu bel-prazer, a arte é
autónoma, não é propriedade de ninguém. Por isso, a arte não implica obrigações, nem
tem um lugar claro e estabelecido na sociedade (Entrevista com Verschaffel).
Porque se põe demasiadas vezes de lado a arte contemporânea e porque se dá pouca
atenção aos artistas vivos, arte e artistas estão em perigo por não serem compreendidos
151
na sociedade de hoje. A opção não foi a da "arte pela arte", mas sim a da arte pelo
significado que tem para a sociedade. A opção pela arte teve como objectivo intrínseco
abrir o debate e alertar para a importante função que a arte desempenha na nossa
sociedade.
Antuérpia 93 não pretendeu ser um evento representativo da vida cultural flamenga. Tão
pouco quis fazer opções por preferências mediáticas ou nomes famosos. A opção de
expor alguma da tradição artística belga ou flamenga, assim como a selecção de algumas
obras de arte europeia, teve como objectivo principal o de contribuir para a cultura
nacional e internacional, de forma suplementar e a longo prazo.
Antonis não incluiu as instituições culturais já estabelecidas na cidade, tal como a
Ópera, a consagrada Companhia de Dança da Flandres ou a Galeria de Arte. De acordo
com o Director, estas instituições manter-se-iam activas de qualquer modo (Financial
Times, 6-7 Março de 1993). O orçamento disponível para o projecto era a todos os
títulos supletivo, mas, no entanto,
Este ano temos a oportunidade ideal para investir tempo, ideias, dinheiro e
outros meios em espaços ameaçados, que precisam de algum oxigénio para
sobreviver" (Entrevista com Verschaffel).
O projecto foi, assim, elaborado num ambiente de tensão. Cada grupo de interesses
dentro da cidade apresentava os seus objectivos particulares. Tal facto tornou Antuérpia
93 ainda mais interessante:
Um dos pontos de partida do festival foi o de apresentar a cidade como um palco e não
como uma mercadoria. A dimensão internacional foi também importante, enquanto
plataforma europeia para a confrontação e o intercâmbio de diferentes culturas e
opiniões artísticas. Um segundo elemento importante foi o de que o programa tinha que
ser distinto de outros anteriormente havidos em Antuérpia, sem se lhes opor.
Antuérpia 93, que começou em 26 de Março e terminou em 18 de Dezembro de 1993,
dividiu o ano em três fases. A primeira fase, deu ênfase especial às festividades. Durante
a segunda fase, o período de verão, o "Eurosail" e a celebração dos 150 anos do Jardim
Zoológico de Antuérpia estiveram no centro das atenções, assim como "A Arca" e a
ópera "Zíngaro". O Outono trouxe música, as artes visuais e dramáticas.
Foram os seguintes, os quatro temas principais:
ainda que a "Eurosail" — que, com os seus 2,3 milhões de visitantes, foi o evento mais
popular — não foi programado pela equipa da "Antwerp 93". Teceu duras críticas à
abordagem elitista da equipa e ao fracasso do fogo-de-artifício da abertura, perante meio
milhão de espectadores.
Do outro lado, Eric Antonis, o Director do evento, argumenta em favor dos benefícios
da estrutura independente e da opção deliberada pela arte. Sublinha que a concepção do
acontecimento contou com efeitos multiplicadores, mas o seu elemento central foi o
programa artístico. Opõe-se à fragmentação do balanço do projecto, acentuando que a
sua característica central foi sempre a coerência interna. Critica o populismo, que regista
apenas sucessos quantitativos, quando o objectivo era exactamente o de optar por um
critério qualitativo. O Director mostra-se desiludido com a falta de reconhecimento dos
políticos pelo contributo trazido pelas escolhas centrais da programação, lamentando a
marginalização da arte pelas decisões políticas.
Aparte este debate, o balanço político está já delineado. Todos os planos feitos por
Antonis para implementação futura de uma política cultural em Antuérpia foram postos
de lado e Cools apresentou — sem qualquer consulta prévia à equipa de "Antwerp 93"
— o seu próprio plano de desenvolvimento para 1994. Maurice Velge, presidente do
instituto autónomo, apelou à continuidade da colaboração entre a Fundação e a Câmara
Municipal, para não se desperdiçasse o saber técnico da equipa da "Antwerp 93", em
benefício da cidade.
Mas a relação entre a Câmara Municipal e a equipa da "Antwerp 93" não era das
melhores. Após o encerramento do festival, a equipa publicou na imprensa uma carta
aberta ao Presidente Cools. Nessa carta, reage-se às propostas de planeamento cultural
feitas por Cools para a Antuérpia Cidade Cultural 1994 e reitera-se a opção central da
"Antwerp 93": em vez de enveredar pela afirmação da identidade da cidade, a
programação apostou nas artes como meio para estimular a mudança, a dinâmica e o
questionamento crítico. Para os autores da carta, o principal elemento do balanço final é
o processo em si, visto, aliás, como grande ensinamento para as "Capitais Culturais
Europeias" subsequentes. Este processo teria sido equilibrado e levado a cabo de forma
profissional: com o apoio do sector público e privado, com um programa diferenciado,
orientado para todas as camadas da população e com grande rigor financeiro. A equipa
reage ainda, veementemente, ao modo como o Presidente da Câmara rejeita este aspecto
positivo, interpreta a opção pelas artes como um elemento marginal e elitista e entende a
independência artística e programática como um obstáculo. Opõe-se também à política
cultural de Cools para 1994, considerando-a populista e promocional. Finalmente,
recusa aceitar este novo programa como a continuação do projecto de Antuérpia 93.
Antuérpia 93 foi um projecto importante para a cidade. Não só preparou a cidade para
novos desafios internacionais, como também a renovação e o embelezamento das ruas, a
restauração de edifícios antigos e a apresentação de um fascinante programa cultural
deram uma nova dinâmica à cidade e à sua imagem. Nesta cura de rejuvenescimento,
para além de cidade portuária e centro do comércio de diamantes, Antuérpia pode agora
ter também a pretensão de vir a tornar-se um centro internacional de arte (De Nieuwe
Gazet, 23 de Junho de 1993).
Antuérpia 93 foi ainda um sucesso turístico e uma nova fonte de orgulho para os seus
cidadãos. O programa artístico atraiu um público muito vasto. Houve pessoas que foram
a um concerto, a uma exposição ou a qualquer outra actividade cultural pela primeira
vez. Se bem que não exista ainda um relatório completo, a investigação parcial aponta
para o envolvimento no festival de mais de metade da população da cidade: "Todo o
acontecimento está a motivar e a movimentar a população, a torná-la mais cosmopolita,
menos provinciana e mais atenta à sociedade" (Het Laaste Nieuws, 12 de Julho de
1993).
O projecto contribuiu para o desenvolvimento da cultura europeia, pela sua aposta na
criação e na inovação. Escreveram-se novos textos para os "Cahiers", trouxeram-se
novas esculturas para o Middelheim, fizeram-se novas produções no teatro Bourla e na
"Arca", novas produções de cinema e de instalação video, surgiram novas ideias no
domínio do planeamento urbanístico, criaram-se novas composições, e assim por diante.
Quanto a futuros desenvolvimentos, o projecto teve, desde o seu estádio inicial, claros
objectivos de longo prazo. Os melhoramentos das infraestruturas e das organizações
existentes são de longa duração. Para além da restauração de edifícios, há que mencionar
ainda o Monty (fábrica de cultura), as extensões do Museu de Arte Contemporânea de
Antuérpia, e as novas obras de escultura ao ar livre do Museu Middelheim e as novas
infraestruturas: a "Arca", o teatro Bourla e o novo Centro para a Cultura Visual:
Eldorado. Algumas das iniciativas foram programadas para além de 1993: o Festival de
Ópera Contemporânea, o Festival Infantil "Artundereight" e algumas das actividades do
projecto "Cidade Aberta".
Como espaço de reflexão, a Fundação "Antwerp 93" provocou o debate sobre as
políticas culturais que, embora, constituindo implicitamente parte do programa, não teve
o devido eco nos meios de comunicação social.
durante este ano, pelo que a discussão mais profunda deveria acontecer num
contexto mais vasto (Entrevista com Antonis).
Uma segunda razão relaciona-se com o facto de que foram os assuntos controversos
aqueles que mais atrairam a atenção da imprensa (por exemplo a polémica sobre a
literatura). O programa foi notoriamente diferente do de um festival oficial, em que a
cultura se auto-elogia, não se tendo Antuérpia 93 baseado em consensos, antes
157
concentrando uma grande parte dos seus recursos em projectos polémicos. Podia, assim,
parecer de acesso difícil, já que um grande número de eventos pressupunham um
conhecimento prévio sobre a arte contemporânea e os assuntos por ela abordados. A
questão é, neste caso, "para quem serve a arte?" Estaremos perante a ideia da difusão
cultural, isto é, a arte torna-se tanto mais importante quanto mais vasto é o público que
atinge? Parece óbvio que a arte deve ser acessível a todos; mas acessível no sentido de
ser dada essa oportunidade a todos os que nela queiram participar. Isto tem que ver, por
exemplo, com o preço dos bilhetes, horas de abertura os eventos, condições básicas
como a apresentação e a produção de obras de arte em quantidade suficiente, mas tem
também a ver com a oportunidade de desenvolver o gosto e a capacidade de julgamento,
o que, por sua vez, está relacionado com a educação. Do facto de que a arte exige
envolvimento, experiência e tempo, e que interessa apenas a um grupo restrito de
pessoas, não se infere o seu carácter elitista. A arte só se torna elitista quando aqueles
que nela querem participar são incapazes de o fazer por razões sociais, financeiras ou
educativas (Verschaffel, 1993).
Conclusão
As controvérsias acima discutidas estão relacionadas com dois problemas mais gerais. O
primeiro diz respeito ao estilo da acção política. O segundo tem que ver com os aspectos
substanciais da política cultural. Ambos dão uma nova matiz ao futuro das "Capitais
Europeias da Cultura".
Apesar da problemática pós-moderna sobre o fim das meta-narrativas ou sobre os
limites da praticabilidade da sociedade, toda a decisão política é ainda pensada
hierarquicamente, a partir dos centros de poder. Isto aplica-se, igualmente, aos que
defendem menos Estado e mais mercado. Também esses definem planos estratégicos
que se baseiam numa determinada exequibilidade do gosto do consumidor e se orientam
para os seus próprios interesses particulares. Desta forma, tanto os responsáveis públicos
pelas decisões políticas, que desejam manter o poder e ser reeleitos, como os
empresários, que querem vender e obter lucro, optam por orientações políticas de que
são eles próprios os beneficiários finais.
O impasse da burocracia de Antuérpia no planeamento inicial do evento levou à
interessante experiência de adoptar uma estrutura autónoma e independente, a quem se
deu autonomia para programar um evento que iria determinar grande parte da vida da
cidade em 1993. Não foi de modo algum uma forma democrática de planeamento
político, já que não houve uma negociação das decisões com o eleitorado. Mas foi uma
forma de decisão política que colocou recursos importantes ao serviço de
desenvolvimentos futuros. Uma forma de decisão que suscitou um debate sem
precedentes sobre as políticas da cidade e que lançou mais iniciativas do que nunca. Foi
158
NOTAS
1 O nome original, "Cidade Europeia da Cultura", lançado por M. Mercouri, e o título de "Cidade Capital
Cultural da Europa" serão indistintamente utilizados neste texto.
2 A rede das 16 antigas Cidades Capitais Culturais decidiu então organizar em cada uma das cidades, em
28 de Janeiro de 1994, acções de solidariedade com o Festival de Inverno de Sarajevo, com o objectivo de
pagar a reconstrução da biblioteca multicultural da sua universidade, fundada em 1945, como uma
biblioteca para muçulmanos, croatas, sérvios e judeus.
3 Decidimos adoptar esta fórmula como equivalente ao vocábulo inglês gentrification. Mesmo no original
inglês, estamos perante um neologismo, formado a partir de gentry (nobreza) que pretende significar o
processo de reestruturação de algumas zonas urbanas, acompanhado de um efeito de atracção sobre
grupos sociais de recursos (económicos e culturais) médios e superiores que ali estabelecem residência ou
comércio. A notabilização urbana traduz, portanto, o efeito cruzado da renovação arquitectónica e
infraestrutural de áreas anteriormente degradadas e decadentes da cidade e da alteração da natureza social
dos seus (novos) residentes. (Nota do Organizador).
5 A estrutura da "Antwerp 93" é composta por uma comissão de coordenação, responsável pela
administração geral, pela equipa artística, constituída por todos os líderes de projectos e colaboradores,
por uma Assembleia Geral e um Conselho de Administração, que englobam todas as instituições
patrocinadoras, governamentais e do sector privado.
7 Artwerpen refere-se ao nome da cidade em neerlandês, "Antwerpen", sendo o 'n' substituído por um 'r'.
Pretende-se com isto fazer uma distinção entre as actividades organizadas pela própria Fundação, que
levam a marca de qualidade "art", e outras actividades diferentes.
161
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• Jornais e Revistas
Antwerpen 93. Cultural Capital of Europe.
Carrefours, De Morgen, De Nieuwe Gazet, De Standaard, Financial Times, Gazet van Antwerpen,
Glasgow Herald, Het Laatste Nieuws, Knack, The Irish Times.
CAPÍTULO 8
Hans Mommaas
Há uma década, pelo menos, que a questão do moderno surgiu de novo na teoria social.
Apesar da sua história antiga que, de acordo com Jauss (1964), remonta ao ano de 494,
do seu carácter abstracto e da contundente crítica das décadas de 60 e 70, desde meados
dos anos 80 que o conceito tem atraído um público crescente, sobretudo nos meios
académicos. Por si só ou engalanado com uma mescla variável de prefixos e
conjugações ("pré" ou "pós", "tardio" ou "alto", "primeiro" ou "segundo", "simples" ou
"reflexivo"), o conceito figura recorrentemente em títulos de monografias, artigos de
revistas e conferências. Usado numa extensa variedade de contextos temáticos e
disciplinares, com uma vasta multiplicidade de sentidos, o termo não só reflecte uma
história plural, mas também uma complicada geografia (Mommaas, 1993).
O recente ressurgimento do moderno deve-se, em grande parte, ao trabalho de autores
que mantêm uma relação particular com o urbano e/ou o espacial. Soja (1988) e Harvey
(1989), entre outros, mostraram como, no passado, o tema do moderno surgia sobretudo
associado a um corpo de pensamento sociológico caracterizado pela subordinação do
elemento espacial ao elemento temporal. Hoje, quando se sustenta que, graças ao
desenvolvimento tecnológico, o factor tempo conflui com o espaço, o ressurgimento da
questão do moderno faz-se acompanhar da "espacialização" da teoria social e da
crescente tomada de consciência de que algo de fundamental mudou no tecido sócio-
espacial da vida urbana. Esta viragem tornou problemáticas como nunca as anteriores
noções historicistas do moderno.
O urbano e a "urbanidade" sempre figuraram como emblemas da vida "moderna".
Durante as décadas de 70 e 80, contudo, as mudanças que até então tinham sido
sancionadas como sinais de uma crescente e harmoniosa modernização, perderam esse
sentido e, no âmbito da teoria espacial e urbana, assistiu-se à reinterpretação das
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acepções do moderno. Estas dizem respeito, não apenas à composição económica, mas
também à mais ampla configuração sócio-política, cultural e espacial, na qual estavam
"contidos" os anteriores desenvolvimentos "modernizantes".
Para alguns analistas, as transformações ocorridas exprimem um avanço para além do
moderno, isto é, uma nova era que transcende as antigas promessas do funcionalismo,
do utilitarismo ou do instrumentalismo, tanto nos domínios do estético e do cognitivo,
como nos domínios mais amplos do cultural, do social e do espacial. Para outros,
todavia, as mudanças dos anos 60 e 70 significam o contrário e são consideradas como
mera expressão da dinâmica de longo prazo, própria das sociedades em que vivemos
hoje, a qual terá sido mal interpretada por anteriores teorias.
O que pretendo apresentar neste capítulo é uma análise contextualizada da passagem
para o pós-moderno, entendido como uma condição sócio-espacial. Não tanto a partir da
perspectiva daquilo que Zukin (1991) tipificou como a paisagem pós-moderna do poder
(zonas ribeirinhas, centros comerciais, cafés-esplanadas, baixas esteticizadas e parques
temáticos), mas a partir da perspectiva daquilo que é deixado intocado. O que está aqui
em causa não é o suposto novo renascimento urbano, mas antes o que se pode consider
ser a actual crise da urbanidade (Robins, 1993). Por outras palavras, não se faz incidir a
atenção sobre a nova geografia da centralidade associada ao pós-moderno, mas antes
sobre a nova geografia da marginalidade, que acompanha inevitavelmente as formas
centralizadoras de reestruturação (Sassen, 1994). Privilegia-se, portanto, aquilo que,
devido a uma reestruturação das relações espaciais, foi transferido para a periferia da
vida, das atenções e dos apoios públicos.
O objecto de estudo de que nos ocupa é um bairro do pós-guerra, situado na cidade de
Tilburg. Tilburg é uma cidade pequena, que com cerca de 165.000 habitantes, localizada
no Sul da Holanda, ao Norte da província de Brabante e que faz fronteira, desde 1830,
com a Bélgica Flamenga, precisamente entre Amesterdão e Bruxelas. É uma antiga
cidade industrial, produto do processo de industrialização ocorrido durante o "longo"
século XIX.
A indústria têxtil local desenvolveu-se a partir de uma sólida tradição regional de
manufactura da lã. No decurso do século XVIII, esta tradição foi integrada num sistema
supra-regional de fabricação e comercialização, de feição proto-industrial, ligando a
região hinterland de produção a um sistema urbano de cidades comerciais,
originariamente circunscrito ao Norte e ao Ocidente europeus.
Durante o século XIX, desenvolveu-se uma indústria têxtil mais ou menos
independente, constituída por uma amálgama de pequenas fábricas, cujo
desenvolvimento conduziu a cidade de Tilburg a uma posição cimeira no panorama
industrial holandês, ele próprio em vias de ganhar uma feição nacional (Knippenberg e
De Pater, 1988). Por volta de 1875, a cidade apresentava o maior número de
trabalhadores de todas as cidades industriais holandesas, o que valeu a Tilburg ser
165
A "modernização" urbana
Newplace é emblemático de muitos dos bairros construídos nas periferias das cidades
holandesas durante o período do apogeu da modernização holandesa do pós-guerra.
Tilburg encontra-se, então, em plena fase de reestruturação económica, política, social e
espacial. De acordo com uma associação local de políticos, funcionários e intelectuais
católicos, a economia e a cultura da cidade tinham crescido à sombra da omnipresente
indústria têxtil local. Agora era preciso que a cidade se libertasse do seu passado
industrial, mas também da vida comunitária fechada, do "particularismo" da hegemonia
católica, da tutela arcaica das relações de trabalho de tipo feudal, da "caótica" estrutura
dos micro-espaços e do "tradicionalismo" cultural. A cidade teria de entrar num tempo
"moderno" e pós-industrial, adoptando um esquema de relações culturais transparentes,
um planeamento sócio-espacial com formas funcionais, uma mão-de-obra flexível e
cidadãos responsáveis e auto-confiantes. Às tão enraízadas noções de sedentariedade e
comunidade teriam de substituir-se as noções de mobilidade e mercado.
O pretexto para esta reestruturação era, antes de mais, de natureza económica: a região
de Brabante, em geral, e Tilburg, em particular, encontravam-se na cauda do
desenvolvimento económico. Existia o sentimento de que, dada a sua unilateralidade, a
base económica de Tilburg se tinha tornado demasiado vulnerável, um sentimento
reforçado pela OCDE que, nos princípios da década de 50, indicava que as indústrias
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têxteis da Europa Ocidental estavam agora bruscamente a perder mercado, por efeito da
acentuada competição internacional.
Por outro lado, as transformações pretendidas radicavam em motivações sócio-culturais.
Reflectiam interesses, aspirações e filiações supra-locais de uma elite local em ascensão,
que nada beneficiavam com a anterior configuração económica e social local e que
pretendia, ao contrário, conferir a Tilburg uma feição modernizante. A opinião pública
local começava a deixar-se influenciar por imagens de uma Berlim Ocidental
reconstruída ou de uma Manhattan, tendo mesmo o planeamento municipal de Tilburg
passado a adoptar uma matriz "americanizada" e/ou "universalizada" na do seu espaço
urbano.
Além disto, o processo encerra também uma dimensão política. Pelas transformações
em causa perpassavam imagens de uma abertura das configurações político-industriais
locais e de democratização da cultura local, que ofereciam novas oportunidades políticas
a uma elite recém-constituída, mediadora activa de uma vasta reestruturação económica,
política e cultural da cidade.
A "modernização" de Tilburg no pós-guerra ficou marcada por dois planos estratégicos
locais. Em primeiro lugar, o "plano dos 72 milhões", do início dos anos 50, tratou dos
aspectos mais "duros" das transformações tidas como necessárias, da reestruturação
económica e espacial. Na década de 60, seguiu-se um outro plano, centrado sobre o
tecido sócio-cultural e a vida local da cidade.
De acordo com o primeiro plano, "modernizar" Tilburg, arrancando-a ao seu passado
industrial, "tradicionalista", fechado e católico, impunha três requisitos: i) a criação de
um centro municipal, amplo e funcional, capaz de acomodar as novas indústrias de
serviços a aliciar e desenvolver; ii) o desenvolvimento de infraestruturas de educação,
assistência médica, lazer e cultura; iii) a expansão, em grande escala, dos programas de
habitação.
Komter, um confesso partidário do alto modernismo, foi o arquitecto responsável pelo
futuro desenho espacial da cidade. Além de ter, em tempos, trabalhado com Corbusier,
Komter era membro de "Os 8", um célebre movimento arquitectónico holandês, do
período de ante-guerra, que orgulhosamente se auto-definia como "a-estético, a-
romântico, a-dramático e a-cubista", defensor da preferência por arquitectura insípida
mas funcional, a uma arquitectura prestigiosa e monumental.
O responsável político-administrativo pelo processo de reestruturação foi o presidente
do município, Becht, mais tarde também apelidado de "o demolidor", devido às suas
acções e aspirações. Em 1957, Becht terá afirmado:
Newplace toma forma no meio desta experiência de mudança e mobilidade, não tanto
associada ao caos e à desordem, mas, pelo contrário, a um progresso e melhoramento,
racionalmente fundados e universalmente orientados.
A área caracteriza-se por um modelo de arruamento espaçoso, simétrico e rectangular,
combinado com zonas de pátios, vedados ao trânsito e envolvidos por zonas verdes.
Quatro sub-quarteirões de habitações unifamiliares circundam a praça principal. Conta
ainda com um enorme edifício de apartamentos e um pequeno centro comercial, sendo a
orla limítrofe da cidade composta de blocos de apartamentos e andares. Em certo
sentido, a área reflecte ainda as estruturas espaciais comunitárias vernáculas da velha
cidade, cercada de muralhas, com a igreja, a praça e as pequenas lojas situadas no seu
centro.
Os primeiros residentes instalaram-se em 1963. Sentiram-se como pioneiros, a explorar
os limites de uma cidade em expansão, tanto em termos espaciais como temporais. Até
1968 registou-se um fluxo contínuo de famílias que ocuparam um número crescente de
casas, na sua maior parte, casas camarárias. Entre os novos residentes, encontra-se um
grupo de pessoas oriundas das Ilhas Molucas, parte da antiga colónia holandesa da
Indonésia, que foram forçados a abandonar o país, juntamente com os colonizadores, por
169
Até que se alterem as condições básicas que lhes subjazem, as mais elementares regras
cognitivas e morais que sustentam os modos de vida vigoram e são aceites
implicitamente. Muitas vezes, com a chegada de estranhos, menos identificados com as
regras estabelecidas, estas perdem em efectividade. A cultura em questão torna-se mais
aberta e criam-se outras possibilidades de escolha e de reflexividade, incluindo para a
própria população de origem. As convicções morais, os fundamentos racionais e as
orientações simbólicas tornam-se mais fluidos, como se, de repente, se situassem numa
espécie de espaço sócio-simbólico sem gravidade.
Um pouco de tudo isto acontece em Newplace nos anos 70 e no princípio da década de
80. As mudanças podem talvez atribuir-se ao normal "ciclo de vida" de um bairro novo
e homogéneo. Os primeiros residentes envelhecem e os seus filhos mudam-se. Alguns
melhoram a sua condição social e, consequentemente, saem eles próprios do bairro.
Gradualmente, o espaço é ocupado por uma nova geração, com diferentes rotinas, gostos
e maneiras de agir.
Porém, a mudança de gerações não ocorre num ambiente estático, mas coincide com
transformações institucionais de vulto. Assim, são de registar, entre outras, a
secularização das relações sociais, o aumento geral da riqueza material, a transformação
do trabalho comunitário, a disseminação da cultura de consumo, a destradicionalização
das relações primárias e entre sexos, a mediatização da cultura e a lenta diversificação
étnico-cultural. Certezas e rotinas culturais consolidadas tornam-se agora tema de
debate, tanto entre pais e filhos, como entre clero e paroquianos, entre pais e professores
e entre funcionários ao serviço da comunidade e residentes.
As primeiras brechas no contrato modernista tornam-se visíveis literalmente. Algumas
das casas e apartamentos revelam uma construção menos sólida do que aparentavam. Na
década de 70, descobrem-se defeitos de construção a necessitar de reparações profundas.
Os conflitos que acompanham a identificação destas reformas, tão indispensáveis como
171
Até certo ponto, aos olhos dos primeiros residentes, estas mudanças parecem
"suportáveis" e controláveis. Em geral, elas são consideradas pelas instituições públicas
como algo de positivo e em conformidade com hegemónicas aspirações
"modernizantes". Tudo isto se altera durante a década de 80. Mediada por uma
reviravolta neo-liberal em matéria de políticas sociais, a crise dos anos 70 e 80 põe a
descoberto os limites do anterior projecto modernista. Daí resulta uma espécie de pânico
moral, baseado no sentimento de que as promessas encerram o risco de não serem
cumpridas. O contrato moral que os "respeitáveis" trabalhadores pensavam ter feito
revela-se menos sólido do que lhes fora sugerido. As instituições públicas alteram os
planos de trabalhos, contrariam as antigas promessas, "reconhecem" as suas "limitações"
e adoptam uma posição mais "pragmática".
174
Uma vida de trabalho árduo não surtiu o que dela se poderia razoavelmente esperar
poucos anos antes. Os desempregados e incapacitados mais idosos sentem-se
abandonados, inúteis, sozinhos, deslocados, vigiados e objectos de pressão.
Regularmente têm de se apresentar no centro da cidade, na repartição da segurança
social, para entregar a candidatura de emprego semanal — um acto que a alguns
convoca à memória a depressão dos anos 30. As agências públicas de emprego parecem
já não se importar com os que contam mais de 57 anos de idade. Até mesmo os
descontos para a segurança social, feitos ao longo de toda a vida activa, se revelam
insuficientes para garantir a segurança financeira que outrora asseguravam. Obter
empregos estranhos no sector informal ou mercado paralelo é uma possibilidade
dificilmente exequível. O que resta são sentimentos de ressentimento dirigidos a um
outro generalizado — aos felizardos, aos trapaceiros, aos que fogem aos impostos, aos
políticos vivaços e aos oportunistas, todos eles mais bem sucedidos. Esta espécie de
"bode expiatório" exprime o sentido de um destino pessoal marginalizado.
A ironia da história é evidente. Trata-se de um grupo de respeitáveis cidadãos e de
trabalhadores especializados que se identificaram com valores próprios do modo de vida
da classe média e os vivenciaram, por forma a alcançar o padrão universal do cidadão
moderno. No entanto, foram efémeros os mais implícitos alicerces económicos, sociais e
morais em que assentava este projecto modernizante. A crescente diversidade cultural e
mobilidade espacial, a crescente heterogeneidade de famílias, a crise do Estado-
Providência e, em último lugar mas de não menos importância, o crescente número de
desempregados e deslocados, tudo isto fez com que as aptidões requeridas e os
esquemas de orientação e avaliação instituídos perdessem a sua obviedade e o seu
carácter racional. De modo variado, as pessoas em questão fortalecem-se na ideia de que
se tornaram vítimas das suas próprias restrições morais: a sua moralidade já não
funciona, antes lhes restringe as suas capacidades sociais. Essa moralidade impede-as
mesmo de expressar publicamente a sua frustração, o que contradiz o respeitável estilo
de vida privatizado e auto-confiante que um dia adoptaram. Apesar do facto de se terem
identificado com o papel modelar do "Bom Cidadão" e viverem a sua vida na base da
responsabilidade pessoal como deseja a "Boa Sociedade", as autoridades públicas
denegam-nas e apoiam, por outro lado, grupos de pessoas que, segundo eles,
desrespeitam a moralidade cívica. As organizações públicas perdem a sua legitimidade e
estes moradores deixam de se identificar com os partidos políticos cujos programas
constituiam outrora uma extensão óbvia das suas preocupações e experiências
quotidianas, fosse o Partido Democrático Cristão, que defendia o seu "modo de vida"
católico, fosse o Partido Social Democrata, que defendia os seus interesses enquanto
trabalhadores especializados. Em suma, os esquemas morais e cognitivos que em
tempos organizavam o seu modo de vida, perderam o seu carácter racional e a sua
eficácia numa situação de crescente dinamismo e fragmentação cultural.
176
passada. Existe nisto um risco de reificação das pretensões dos intelectuais, planeadores
e políticos modernistas, transformando as suas ideias num critério conceptual de
avaliação dos acontecimentos, em vez de as submeterem a uma crítica e desconstrução
histórica. Existe ainda o perigo de se apresentar a modernização do pós-guerra como a
fase conclusiva de um desenvolvimento modernizante de longo prazo. O resultado seria
uma noção historicista e excessivamente homogénea do "moderno", começando por se
ignorar a natureza ambivalente e as características distintivas de muitas experiências
"modernas".
Foram estas considerações, conjugadas com a crise do "providencialismo" e da
urbanidade que, a partir de meados da década de 80, conduziram ao reexame das
consagradas conceptualizações do moderno e à busca de alternativas. No fundo, o que
alguns autores fizeram foi resgatar algumas noções sócio-teóricas do moderno, típicas
do pensamento social das décadas de 50 e 60, entretanto marginalizadas.
No âmago destas mais amplas e renovadas concepções de modernidade encontra-se uma
variedade de tensões, de contradições e disjunções que muitos consideram
profundamente enraízadas na estrutura institucional moderna. Berman (1985) detectou a
contradição, já significativa no século passado, entre a aspiração de um mercado
orientado para o crescimento e para a expansão, por um lado, e o desejo de enraizamento
num passado estável e coerente, por outro. Esta interminável contradição é para Berman
emblemática da vida moderna e responsável por uma infindável sucessão de
"modernismos", perspectivas e representações da realidade. Harvey (1989), fazendo eco
de Baudelaire e Simmel, e citando Berman, Frisby e Schorske, realça a tensão constante
entre o carácter fragmentário, efémero e caótico da vida moderna (capitalista) e a,
igualmente moderna, busca de coerência, do universal e do imutável. Harvey condena a
posição pós-modernista por celebrar a primeira e caricaturar a segunda, até ao ponto em
que "deixam de existir políticas coerentes" (1989: 116). De um ponto de vista
conceptualmente mais abrangente e pluri-dimensional, Giddens (1991), na esteira de
Simmel, refere-se à tensão entre uma crescente "abertura" da vida moderna num meio
globalizante e a procura de segurança ontológica. Devido à variedade de acções políticas
e à pluralização do poder, num mercado globalizante e fugaz, a estrutura protectora da
comunidade, da tradição e das entidades instituídas, encontra-se cada vez mais
vulnerável e tende a ser substituída pela cultura da reflexividade, não-fundacional e
inquietante, pelo risco e pela liberdade de escolha. Hoje em dia, não vivemos num
mundo pós-moderno, mas numa situação de modernidade radical, cujos mecanismos
somos finalmente obrigados a compreender. Zukin (1991), referindo-se a Benjamin, fala
sobre a tensão entre lugar e mercado, entre comunidade e capital, uma tensão que os
empresários do século XIX já tinham tentado resolver através da construção de cidades
industriais, onde a vida decorria sob o signo do paternalismo. Hoje, porém, "os espaços
urbanos respondem às pressões do mercado com sonhos públicos definidos por
181
culturais de âmbito regional, para uma economia de pós-guerra, orientada para o Estado-
Providência, baseada no sector de serviços e caracterizada por relações culturais mais
abertas e de dimensão nacional.
Vários desenvolvimentos podem ser aduzidos, todos eles visando mudar a estrutura
local/global na qual decorria a vida local. Pode referir-se, assim, o plano de
reestruturação sócio-espacial da cidade dos anos 60, que proporcionou a abertura do
espaço cultural local, ao mesmo tempo que desarticulava as noções de vizinhança e
comunidade. De igual modo, a pluralização da estrutura do mercado de trabalho local (o
resultado de uma reestruturação local/global da economia), juntamente com a expansão
local/global dos mercados de consumo e dos media, enfraqueceu a instância local de
autoridade e poder, onde pontuavam os legisladores da moralidade (católica) e as
relações comunitárias (controladas pela Igreja) (Van den Heuvel e Mommaas, 1990).
Além disso, importa referir a influência des-normalizadora dos chamados "movimentos
de protesto" locais, do princípio dos anos 70, que introduziram na cidade as mensagens
dos movimentos estudantis americano, francês e alemão. Não se pode esquecer ainda o
efeito des-normalizador de várias minorias étnicas que foram chegando a Newplace, ao
longo dos anos (o que é tanto uma consequência do passado colonial, como uma
componente da reestruturação global do mercado de trabalho). A isto acrescem ainda a
crise fiscal e do emprego, dos últimos anos da década de 70 e princípios dos anos 80, o
aumento da população trabalhadora (resultante da destradicionalização da estrutura
familiar e dos movimentos migratórios) e a crescente procura de bem-estar social. Todos
estes acontecimentos acabaram por conduzir ao completo desmoronamento da estrutura
de certezas e seguranças económicas, sociais e morais do pós-guerra, com efeitos
indeléveis, quer no domínio público da política local de Tilburg, quer no domínio
privado do "modo da vida" de um amplo segmento dos primeiros residentes de
Newplace.
Observações finais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Press.
CAPÍTULO 9
O título "Das Margens para o Centro" resulta implicitamente da referência a três temas
inter-relacionados que têm surgido recorrentemente nos debates dos anos 80 e 90 sobre a
pós-modernidade e a cidade. Em primeiro lugar, o conceito de notabilização urbana1,
que diz respeito à inversão do movimento centrífugo, para fora do centro da cidade, por
parte das classes abastadas e resulta no recentramento de áreas da cidade anteriormente
consideradas "marginais". Em segundo lugar, está aqui contida uma referência ao
processo de reestruturação urbana pelo qual muitas das actividades julgadas periféricas,
face à essência da cidade "produtiva" ou "fordista", convergem agora para o centro, o
que se tornou uma preocupação nuclear das cidades nos anos 80. Em terceiro lugar, uma
referência ao processo pelo qual alguns grupos, anteriormente considerados "marginais",
se têm tornado centrais para a cidade e/ou tornaram o centro da cidade num lugar central
para si próprios, não apenas do ponto de vista residencial, mas também do ponto de vista
do uso que dele fazem e, ainda, pelo facto de esse uso ser promovido como marca da
"centralidade" desse centro urbano.
Usando a cidade de Manchester como ilustração, daremos uma atenção especial às
formulações teóricas que vêem nesta transformação um percurso a caminho da chamada
cidade pós-moderna, em íntima relação com as iniciativas de uma classe social ou
fracção de classe determinada que, mais do que qualquer outro grupo, se preocupa com a
promoção de estilos de vida próprios. Quem avançou este argumento mais vigor foi
Sharon Zukin (1982, 1991) e é sobre o seu trabalho que, em primeira instância, nos
debruçaremos. São quatro os aspectos particulares do argumento de Zukin que
analisaremos em pormenor: (i) a relação entre o capital económico e o capital cultural,
salientando algumas consequências da "relativa autonomia" deste último; (ii) a relação
entre o global e o local na reestruturação do centro da cidade; (iii) a relação entre
"paisagem construída" e "elemento vernacular" no centro da cidade; (iv) as noções
alternativas de "liminaridade" aplicadas à cidade pós-moderna.
Segundo Zukin, o papel destes especialistas da cultura assume uma função de distinção
social numa época em que "a cultura é produzida e distribuída massivamente". Na
ausência de "hierarquias baseadas em redes pessoais e na posição social" (idem, 203), os
especialistas — a "massa crítica" — surgem para nos orientarem através da nova
paisagem do consumo e para a promoverem:
Autonomia relativa
pessoas o usavam nem sobre o grau ou a base do seu eventual sucesso (Chambers, 1990;
Cooke, 1988).
Este modelo de regeneração urbana foi directamente importado pelo Reino Unido no
princípio da década de 80. Em primeiro lugar, o governo de Thatcher, tendo ganho um
segundo mandato de modo retumbante em 1983, virou a sua atenção para as "cidades do
interior", especialmente depois de os distúrbios de 1981 as terem apontado como
símbolos do "mal britânico" (Robson, 1986). Em segundo lugar, o governo destas
cidades era maioritariamente controlado pelo Partido Trabalhista, na oposição. O
governo central era avesso em aceitar qualquer possibilidade de sucesso destes
programas e culpava os autarcas pelos fracassos burocrato-socialistas dos anos 60 e 70.
A regeneração urbana deveria ser, sob o governo de Thatcher, o símbolo da libertação
do país do ciclo de fracassos do pós-guerra. Em terceiro lugar, o governo pretendia
dinamizar a livre iniciativa, o que pressupunha uma política de desregulação e um
sistema de planificação mais flexível. Com esse propósito em vista, houve lugar a um
conjunto de alterações legislativas destinadas a retirar competências ao poder local, a
permitir o acesso do capital privado ao espaço público e aos contratos de
desenvolvimento e a criar novos órgãos semi-autónomos, à margem do controlo
autárquico (Thornley, 1990). Em quarto lugar, tudo isto ocorreu numa época de
acentuada e dramática desindustrialização. Afora as consequências sociais e económicas
directas, este foi também um processo de inegável ruptura cultural, especialmente nas
cidades industriais do Norte, onde a identidade se centrava, de forma mais notória, no
trabalho manual e industrial. A regeneração urbana foi feita com base numa consciente e
explícita mudança das indústrias manufactureiras para as indústrias de serviços,
simbolizada pela transformação das antigas zonas históricas e industriais das cidades em
zonas de consumo e de lazer. Assim, e em quinto lugar, o trabalho de regeneração
urbana foi visto por muitos sectores políticos de esquerda como um símbolo do
thatcherismo e, como tal, menosprezado.
No Reino Unido dos anos 80, o debate sobre os yuppies, a notabilização urbana e a pós-
modernidade não pode dissociar-se deste contexto político interno, o qual não deixou de
ter um impacto directo sobre a construção da paisagem cultural e o papel da chamada
massa crítica. Assim aconteceu com o caso de Manchester. Manchester é a terceira
maior cidade de Inglaterra, embora, para alguns, possa ser considerada a segunda, a
capital do Norte, em virtude do seu papel histórico como centro da revolução industrial.
Em 1988, uma área de dimensão considerável, localizada a sul do CNC da cidade, foi
entregue à Agência para o Desenvolvimento do Centro de Manchester (doravante,
ADCM). Órgão semi-autónomo, dependente do governo central, a ADCM foi instada a
ignorar o "discurso vermelho" dos socialistas e a envolver capitais privados na
regeneração da cidade, dispondo, para o efeito, de fundos públicos. A tarefa inicial
190
O Global e o Local
Enquanto paisagens de poder, os centros das cidades, por vezes, perdem essa qualidade.
A paisagem de Manchester é o exemplo paradigmático do modo como tal sucedeu nas
cidades industriais britânicas. O capital industrial abandonou o centro da cidade após a
Segunda Guerra Mundial, levando extensas áreas do seu centro à decadência. Estas áreas
192
e um sentido de lugar que são cruciais para um bem sucedido investimento local de
capital, sob a forma da construção de uma nova paisagem cultural. As novas redes e a
mudança que se verifica ao nível das práticas de trabalho não deixarão de afectar os
intermediários culturais. Mas, se os ditames deste novo campo cultural lhes trouxeram
novos problemas quanto à negociação da autonomia e da criatividade, também lhes
proporcionaram um novo e mais alargado âmbito de operações. Anteriormente
distanciados da política e da economia locais, os intermediários culturais detinham agora
uma maior capacidade de influência sobre as agências públicas e sobre a definição da
natureza do investimento cultural.
No caso de Manchester, a promoção da "cidade europeia" pode considerar-se como parte
da nova competição globalizada e como uma imposição de um habitus específico
favorável ao estatuto cultural dos intermediários da cultura e à expansão do sector
cultural do qual é indissociável. Todavia, esta noção de "cidade europeia" é também
uma questão de identidade. Num contexto de dominação económico-política a partir do
centro, o "espírito europeu" foi um meio de redefinir a relação entre o Norte e o Sul
ingleses, passando ao lado da dominação cultural de Londres. Foi nesse sentido que
Glasgow e Edimburgo insistiram na sua qualidade de cidades europeias e não inglesas.
Tratou-se de uma negociação da identidade através da reorganização do seu lugar no
espaço cultural. A cultura da "província" podia agora tornar-se semi-autónoma, à
medida que se aproximava da "Europa das regiões" e olhava (com inveja) para as
grandes cidades da Europa. A "cidade europeia" foi uma questão sobre a possibilidade
de novas imagens de identidade, sobre as possibilidades da transformação, como ilustra
o caso de Manchester, ao tentar inscrever-se num espaço cosmopolita transnacional. A
europeização da centralidade colocou este espaço cosmopolita ao nível do local.
Este era também o local da cultura do Norte. Manchester era a cidade industrial, onde o
sentido de identidade da classe operária estava profundamente enraízado, onde até
mesmo o sistema administrativo local se auto-descrevia como "prático", "directo" e
preocupado com o trabalho, em oposição à elite rentier do Sul (Shields, 1991). A
recriação de Manchester como cidade cultural esteve, como vimos, profundamente
condicionada pela desindustrialização e por um processo de construção de novas
imagens. Mas esta recriação envolveu também mudanças culturais reais e uma
verdadeira renegociação de identidade. Embora a dinâmica específica deste processo
ainda não seja clara, Manchester afirmou, a par de outras cidades do Norte, a sua
preocupação com a cultura e a produção cultural, nos termos de uma autenticidade
derivada do sentido de lugar, por contraposição à preocupação de Londres com as
finanças e as grandezas. Do que se tratava era da tradicional oposição aos rendimentos
"imerecidos" do capital, agora mediados pela cultura e não pelo "trabalho árduo". O
espírito de comunidade, profundamente enraízado na mitologia do Norte, converteu-se
194
numa vibrante esfera pública, tão desejada pela Manchester cosmopolita, desejosa de
reconhecimento como cidade europeia de cultura.
Isto representa a tomada de consciência das complexidades contidas naquilo que Shields
(1991) designa por espacialização social e que, em Zukin surge continuamente reduzido
à oposição entre paisagem e elemento vernacular. Ambos os elementos operam sob a
mesma lógica e encontram-se cada vez mais interligados, de tal maneira que Zukin
recorre ao conceito de 'liminaridade' para descrever a mediação da cultura nas mudanças
sócio-espaciais.
Esta é seguramente uma lógica singular pela qual as dimensões macro e micro se
combinam para inserir a paisagem local na organização global do consumo. Parece,
contudo, ignorar as qualidades "estruturantes" do espaço local e os modos pelos quais a
acção local pode intervir nessa espacialização. Ignora também a fluidez com que a
paisagem e o elemento vernacular — se é que podemos separá-los — se interpenetram
no centro da cidade. A liminaridade do centro não tem necessariamente de ser concebida
como um movimento unidireccional do vernáculo para a paisagem. Algumas áreas da
paisagem abandonada de Manchester tornaram-se vernáculas pela via da produção e do
consumo cultural.
Assim aconteceu, por exemplo, com o ambiente rave de Manchester, surgido em alguns
clubes do centro da cidade, mas também fora dele. A zona de Oldham Street, no centro
195
da cidade, tornou-se um importante lugar de encontro para os amantes deste estilo rave.
Anteriormente o local de trabalho e de residência de uma dedicada classe operária, esta
zona foi sendo negligenciada nas décadas de 60 e 70, quando muitos postos de trabalho
fecharam e os moradores se mudaram. Hoje em dia, o "ambiente cultural jovem"
promoveu a área com lojas, bares e clubes dedicados à promoção daquele estilo. O
Afflecks Palace, um edifício abandonado de três andares, foi convertido em pequenos
apartamentos de rendas baratas, onde se podem encontrar produtores e consumidores
desta cultura 'pop'.
É possível argumentar que as novas paisagens construídas pela renovação urbana,
precisamente porque tentam invocar a centralidade, convidam a novos usos dos espaços
e lhes devolvem a sua condição de vernáculo. Em Manchester, a zona cultural e a zona
residencial, apresentadas como paisagem, foram transformadas em espaços de prazer, de
produção e consumo cultural, não previstos pelos planificadores nem pelos agentes
imobiliários. Uma das áreas mais animadas de Manchester é o "Bairro Gay", não
incluído na paisagem cultural da ADCM, tal como a ocupação de uma das zonas
residenciais por homossexuais não fora prevista no projecto de reforma arquitectónica
que visava um padrão de gosto conservador e "suburbano".
O que ficou conhecido por "Bairro Gay" é uma pequena área do centro da cidade
localizada junto da passagem da Whitworth Street e do canal adjacente. Anteriormente
negligenciada, a área tornou-se num local vital para a celebração de sexualidades
alternativas (Whittle, 1994). A transformação de velhos armazéns em estúdios e
apartamentos de uma ou duas assoalhadas revelou-se uma medida popular para quantos
optavam por ali viver. Longe de criar uma paisagem "impregnada de poder", a área
oferece agora à cidade um elemento vernacular homossexual de uma forma aberta e
natural.
Em que consiste o elemento vernacular e em que consiste a paisagem? Como defini-los?
Não arriscaremos incorrer num sentimento de nostalgia relativamente a um vernáculo
"livre", por oposição a uma paisagem "impregnada de poder"? Um e outra podem
considerar-se como níveis diferentes de intensidade, diferentes proximidades
relativamente a diferentes fluxos de informação e capital, diferentes entrelaçados de
memória e de desejo. A par da liminaridade proposta por Zukin, que consiste na
transformação do vernáculo industrial em paisagem, devemos atentar na liminaridade
por meio da qual a cultura 'pop' ou a cultura homossexual, por exemplo, são recuperadas
para a imagem promocional da cidade, na qual actividades anteriormente tidas como
marginais se tornaram símbolos de criatividade e de vitalidade.
Em Manchester, o impacto do ambiente rave dos finais da década de 80, redefiniu por
completo a paisagem cultural da cidade bem como as relações entre ela e as agências
locais. Os fluxos culturais, associados à candidatura para a realização de Olimpíadas e
as salas de concerto "internacionais", empurraram Manchester, por um curto espaço de
196
tempo, para o próprio centro da informação global, sob a forma de uma "Madchester".
Jornalistas, críticos e consumidores invadiram a cidade, perante o olhar distraído dos
agentes do desenvolvimento e políticos locais, entretidos na busca de uma fonte de
capital cultural. Invadiram os espaços como se se tratasse de um novo elemento
vernacular 'pop' a celebrar uma nova intersecção do global e do local. Foi nos finais da
década de 80 que a Câmara convocou ao diálogo estes produtores de cultura. Condenado
à demolição, o Afflecks Palace obteve, no último minuto, uma suspensão da sentença.
No "Bairro Gay" (que, nos últimos anos, havia passado a primeiro plano no domínio da
vida social ligada aos clubes), confrontos com a polícia obrigaram à realização de acções
de vigilância por parte da comunidade.
A dialéctica do vernáculo e da paisagem aproximam-se. O poder cultural depende
certamente do facto de as paisagens se apresentarem como vernáculo e os seus
defensores não gostarem de o ver tomado por paisagem. Daqui que não seja muito claro
se o "Bairro Gay" pretende ou não alcançar aquela respeitabilidade que durante tanto
tempo procurou evitar (Whittle, 1994).
Espaços liminares
É a partir daqui que se pode argumentar que a cultura popular se torna operativa. Uma
acelerada modificação quer da alta cultura quer da cultura popular, em conjunção com
uma generalizada liminaridade são, em parte, responsáveis pela desestabilização das
hierarquias culturais e das distinções de gosto. Não é apenas o próprio jogo da distinção
que se encontra ameaçado. Um tal colapso das hierarquias convida ao surgimento de
uma combinação de alternativas. A distinção, enquanto tal, pode bem ser a descrição de
um código aplicável em situação de "escassez" (Beck, 1992) e, portanto, incompatível
com a proliferação de bens associada à cultura popular (Schulze, 1993).
199
A esteticização da vida quotidiana pode, então, ser entendida nos termos desta
'articulação de alternativas' produzida, em parte, através das biografias auto-reflexivas.
Duas destas 'articulações alternativas — o "Bairro Gay" e "Madchester" — podem ser
encaradas como espaços culturais que se tornaram proeminentes na nova imagem de
Manchester.
O modo como Zukin entende a função da "massa crítica", isto é, como intermediários na
transição entre vernáculo e paisagem, entre lugar e mercado, entre identidade produtora
e identidade consumidora, circunscreve a transformação da cultura e da cidade
contemporâneas a uma lógica unilinear e unidireccional do capital, onde até a autonomia
relativa do capital cultural cede aos imperativos do mercado global. Já sugerimos que as
mudanças associadas à "cidade pós-moderna" são mais complexas do que isto. Tal como
a sua percepção da "massa crítica" a reduz a um mero fantoche nas mãos do capital,
também a nova paisagem da cidade é, na sua abordagem, uma paisagem produzida
autonomamente pelo poder do capital global, isto é, tornados "espaços totalmente
programados" (Thrift, 1993).
Em cidades industriais tradicionais, a criação de uma nova centralidade a partir dos
espaços anteriormente ocupados pela indústria e agora devolutos, pode acarretar
consequências imprevistas. Estes espaços podem constituir o centro de convergência de
um amplo conjunto de renegociações — associadas à identidade de lugar e às
identidades daqueles cujos prazeres e ansiedades se cruzam com a grandeza e a exclusão
que o capital global gera. Além do mais, é infundada a tentativa de Zukin para, com base
na sua abordagem do SoHo, apresentar a história da contra-cultura de uma forma
200
NOTA
1 Decidimos adoptar esta fórmula como equivalente ao vocábulo inglês gentrification. Mesmo no original
inglês, estamos perante um neologismo, formado a partir de gentry (nobreza) que pretende significar o
processo de reestruturação de algumas zonas urbanas, acompanhado de um efeito de atracção sobre
grupos sociais de recursos (económicos e culturais) médios e superiores que ali estabelecem residência ou
comércio. A notabilização urbana traduz, portanto, o efeito cruzado da renovação arquitectónica e
infraestrutural de áreas anteriormente degradadas e decadentes da cidade e da alteração da natureza social
dos seus (novos) residentes. (Nota do Organizador).
202
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Bianchini, F., 1989, "Cultural Policy and Urban Social Movements: the Response of the 'New Left' in
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Zukin, S., 1991, Landscapes of Power: From Detroit to Disneylworld. Berkeley, Univ. of California
Press.
CAPÍTULO 10
Robert G. Hollands
Por mais extraordinário que possa parecer, aquilo que hoje em dia faz a fama
da região do Tyneside já não são as indústrias manufactureiras, mas sim os
centros comerciais, os clubes nocturnos e os bares da moda.
(Robinson, 1988)
É certo que à sexta-feira à noite se dizem muitas petas. Cada um pode ser
aquilo que muito bem quiser. Quando saí, na semana passada, eu fui
contabilista e ele [o amigo] foi chui, polícia. Na semana anterior eu tinha sido
um homem de negócios e ele advogado. É isso que as pessoas fazem quando
saem à noite.
(Entrevista com Gerry)
a este fenómeno são complexas e prendem-se com a variação das relações entre a
produção, o consumo e a economia doméstica, com a sobreposição de imagens de
centros urbanos recuperados e as de comunidades em declínio, com as noções de risco e
de segurança, com a relação entre necessidades forjadas e a apropriação das
mercadorias, e ainda com as interacções de incidência local e global. Irei centrar a
atenção na perda de vigor dos espaços tradicionais de formação identitária dos jovens
adultos — patente na dilatação dos períodos que antecedem a obtenção de um emprego
propiciador de realização pessoal e na falta de oportunidades para formar agregados
familiares independentes —, colocando este aspecto em contraste com a importância
crescente do consumo e a utilização dos espaços urbanos, antes considerados
"marginais", enquanto meio de reconstrução da identidade local. Esta reconstrução,
exercida através de um lento "rito de passagem" centrado na prática de sair à noite4,
implica, quer uma reinterpretação selectiva da cultura ocupacional tradicional, quer a
adopção criativa de novos estilos de vida por parte do consumidor. Assim, e
paradoxalmente, o envolvimento no consumo e nos rituais urbanos permite aos jovens
abandonar — num sentido que é simultaneamente temporal e espacial — e transgredir
determinados papéis e normas sociais, do mesmo passo que reafirma as identidades
locais, culturais e de consumo.
Depois de uma primeira parte onde procuro referir muito resumidamente a relação entre
a reestruturação económica, a modernidade e cidade, apresentarei alguns resultados
decorrentes de um estudo etnográfico, levado a efeito em Newcastle Upon Tyne e
dedicado às culturas juvenis e à cidade5.
permanência no sistema de ensino têm vindo a subir de forma consistente desde os finais
da década de oitenta, apesar de continuarem a situar-se 10% abaixo da média nacional
(Tyneside Tec, 1993: 26). Presentemente, existe muito pouca informação sobre a
economia informal ou paralela, sobre o trabalho clandestino e sobre a opção por
carreiras alternativas — como seja a criminalidade —, mas, como é evidente, trata-se,
em todos estes casos, de opções dentro de um mercado de trabalho em crise (Campbell,
1993; The Independent, 1994).
Já no que se refere ao nosso inquérito, que inclui uma franja da população de jovens
adultos de idade ligeiramente superior (até aos 30 anos), verificou-se que o número dos
economicamente activos rondava os 60%, que um terço se encontrava a estudar
(encontrando-se alguns destes também a trabalhar a tempo parcial), e que
aproximadamente um quarto se achava no desemprego. Quanto à diferenciação por
sexo, o número de mulheres economicamente activas era ligeiramente inferior ao dos
homens (55%, encontrando-se mais de metade empregada a tempo parcial), 40%
andavam a estudar (algumas delas aliando os estudos ao trabalho), e 22% estavam
desempregadas. Relativamente aos jovens do sexo masculino, eram cerca de 70% os
economicamente activos — apenas um quinto dos quais trabalhando a tempo parcial —,
30% andavam a estudar (sendo alguns destes estudantes-trabalhadores), e 20% eram
desempregados.
Ao tempo do inquérito, as jovens dadas como economicamente activas trabalhavam em
escritórios, em profissões relacionadas com os cuidados de assistência (como a
enfermagem), em estabelecimentos comerciais e no sector das vendas. Os seus
empregos anteriores, desde o fim do liceu, eram também do tipo do que se poderá
designar por trabalho tradicional feminino (cuidados de assistência, serviços, etc.). Dos
mais de quarenta empregos anteriores, referidos pelas jovens entrevistadas, nem um
único encontrámos que se pudesse dizer que fosse não-tradicional. Acresce que mais de
metade das mulheres economicamente activas se encontravam, efectivamente, a
trabalhar a tempo parcial. Esta circunstância, aliada ao facto de um certo número das
entrevistadas beneficiar de bolsas de estudo e de outras receberem abono, tem como
resultado que o montante semanal médio auferido pelas jovens inquiridas era de 60
libras para o grupo no seu conjunto e de 115 libras para as que trabalhavam a tempo
inteiro.
Quanto às ocupações dos jovens do sexo masculino, pode dizer-se que se distribuíam
mais regularmente, encontrando-se a maioria a trabalhar na área dos serviços, tanto em
indústrias do sector público, como do sector privado. As principais ocupações e
actividades, neste caso, passavam pelo trabalho de escritório na função pública, por
empregos como o de carregadores e de pessoal administrativo no sector da hotelaria e do
lazer, ajudantes de vendas na indústria alimentar, pintores e decoradores (um tipo de
trabalho que tende a ser clandestino) e empregados de bar. Mais uma vez, a conjugação
211
de factores como o regime de trabalho a tempo parcial, a atribuição (ou não) de bolsas
de estudo e o eventual recebimento de abono fazia com que fosse de 100 libras o
montante médio semanal de que os jovens dispunham, cifrando-se em 135 libras o dos
jovens trabalhadores a tempo inteiro.
Deve-se acrescentar, para abreviar, que todas as jovens entrevistadas se mostraram
empenhadas em trabalhar e em melhorar a sua situação económica — e isso apesar do
elevado índice de desemprego, do leque limitado de ocupações por sexo, da falta de
perspectivas de promoção ou de oportunidades claras de aceder a lugares de destaque ou
de desempenhar um trabalho socialmente reconhecido, e ainda, para algumas delas,
apesar da sua condição de mães. Se, por um lado, o emprego proporciona a algumas
mulheres um certo acesso à esfera pública, ficou claro, por outro lado, que muitas
aspiravam a mais, em termos da qualidade do trabalho.
Quanto aos jovens do sexo masculino, as opções de emprego, apesar de não serem tão
restritivas, também se afiguram limitadas nalguns aspectos fundamentais. Do nosso
inquérito, por exemplo, não consta ninguém que estivesse empregado naquilo que se
pode designar por "indústrias tradicionais" da região do Tyneside. A grande maioria
destes jovens trabalhava na área dos serviços (muitos deles em empregos na função
pública), e, apesar de na sua grande parte começarem por afirmar que de um modo geral
gostavam do trabalho que faziam, alguns mostraram-se particularmente desapontados
com a natureza dos "empregos de secretária". No inquérito tornou-se claro que, a grande
maioria dos jovens adultos do sexo masculino não optou, nem pelos empregos
"tradicionais", nem pelo trabalho "de secretária", expressando antes um desejo muito
forte no sentido de enveredar por carreiras mais independentes, em áreas como o lazer, a
música, o jornalismo, o design, os desfiles de moda masculina e a arquitectura. Na
verdade, tornou-se manifesto que uma boa parcela dos homens mais jovens rejeitava
com veemência tanto as ocupações tradicionais como as ocupações pós-industriais da
área dos serviços, em detrimento de actividades mais próximas das profissões liberais.
Além disso, as reduzidas oportunidades de trabalho manual assinalam aqui, também, o
início de um afastamento em relação às antigas imagens masculinas, não apenas em
termos de emprego, mas também no que se refere à esfera doméstica e do consumo.
É igual ao trabalho, não sei se ‘tás a ver? Um amigo meu chama-lhe "o fim-
de-semana do trabalhador", que é assim: na Sexta-feira à noite sai-se com a
malta e no Sábado sai-se com a namorada a comer fora ou qualquer coisa do
género. Depois, no Domingo de manhã, joga-se futebol num campeonato
regional, e é isto o fim-de-semana do trabalhador Geordie (Entrevista com
Geoff).
É interessante notar como estas construções sociais (atitude rude e vigor físico, o
estereótipo do fins-de-semana para descansar do trabalho e descarregar as tensões, o
sexismo, etc.) estão arreigadas a um sentido do passado que é do domínio da
imaginação, e como, apesar disso, elas acabam por inadvertidamente misturar estas
imagens tradicionais com certas noções que são, de facto, claramente contemporâneas
(por exemplo, os restaurantes étnicos ou os campeonatos regionais de futebol jogados ao
Domingo).
Os trabalhos de Gofton sobre a bebida e a cidade (Gofton, 1983; 1986; 1990) são
pertinente para a compreensão das transformações ocorridas com a identidade masculina
no Norte de Inglaterra. A sua tese é que toda esta cultura relacionada com o sair à noite,
com o beber e com a própria aprendizagem de como beber, sofreu alterações
significativas na região. Essa mudança traduz-se no facto de os homens jovens terem
abandonado a prática de beber "na comunidade" (ou seja, no "pub" local), onde outrora
eram iniciados na bebida pelos pais ou por algum familiar, para passarem a um tipo de
iniciação que é feito juntamente com companheiros, seus iguais, e nesse aspecto também
inexperientes. Segundo Gofton, esta mudança deu origem a práticas e a padrões de
214
comportamento diferentes no que concerne ao consumo de álcool, que por sua vez
resultaram em acusações de violência e de comportamento desordeiro.
O trabalho de Gofton reveste-se, sem dúvida, de importância, quer por trazer o contexto
social para o estudo das transformações ocorridas nas modalidades de beber e de
vivenciar a noite fora, quer por deslocar a ênfase dos factores individuais para os
factores sociais enquanto causa do comportamento desordeiro. Mas nem por isso a
abordagem de Gofton é desprovida de fragilidades. Antes de mais, a análise que faz não
contempla as alterações ocorridas na situação das mulheres em toda esta transição
cultural. Em segundo lugar, tende a oferecer um panorama bastante nostálgico do antigo
hábito de sair à noite pela comunidade, onde supostamente não haveria crime,
vandalismo ou desacatos. Por outras palavras, em vez de olhar para as continuidades e
reconstruções que ligam o passado e o presente, Gofton limita-se a traçar uma simples
baliza histórica. Em terceiro lugar, a divisão que propõe dos jovens que à noite saem
pela cidade, em grupos perfeitamente diferenciados ("monstros da cerveja" e "marados",
entre outros), é demasiado restritiva, não conseguindo captar algumas das diferenças
mais subtis nem as sobreposições entre grupos que uma análise de tipo etnográfico e
mais minuciosa revelaria. Por fim, ao abordar a questão do álcool no contexto da
desordem ou do comportamento desordeiro, pode suceder que Gofton esteja,
inadvertidamente, a difundir a ideia de que existe de facto um problema social, em vez
de reconhecer que quem recebe esse rótulo acaba talvez por ser um certo grupo social (a
saber, trabalhadores do sexo masculino) e não o comportamento em si mesmo (ao passo
que se deixa passar em branco o comportamento de outros grupos que também saem à
noite, como por exemplo o dos estudantes). Vêm já de muito longe os medos de
natureza moral associados às actividades da classe operária, em especial quando se trata
de trabalhadores jovens e do sexo masculino (Pearson, 1983).
Em vez de entender estas mudanças através de balizas históricas algo artificiais, a nossa
análise vai antes no sentido de indicar que estas reconstruções históricas que envolvem o
presente e o passado são, hoje em dia, "ritualizadas" na prática de sair à noite, e
constituem marcas importantes da identidade regional dos jovens. Neste ponto é
fundamental a ideia da transformação dos ritos de passagem em rituais. Os rituais são
uma forma de posicionamento simbólico, um sair para fora da identidade e da cultura
que é, simultaneamente, a reconfirmação de ambas. Colls e Lancaster (1992) usaram a
noção de "carnaval" a este propósito. A reconstrução daquilo que é ser um Geordie por
via do simples recurso a uma certa forma de passar a noite, representa um determinado
modo de vida tornado impossível. Deste modo, é possível fazer a ligação entre uma
versão do passado e o presente — um processo que logra fundir o legado económico
com a experiência da modernidade e com as culturas globais. Neste processo quase
lúdico de reconstrução, as formas de comportamento tradicionais tanto podem tornar-se
exageradas, como podem ser assumidas com comprazimento, como podem ainda surgir
215
combinadas com padrões de consumo copiados dos meios de comunicação globais (por
exemplo, exibir um aspecto rude mas beber Castaway7).
Ainda a título de exemplo, note-se que — como Gofton (1990) correctamente sugere —
embora os padrões do consumo de álcool tenham mudado em Newcastle, devido às
transformações ocorridas na indústria das bebidas e do lazer e na organização espacial
dos bares do centro da cidade, é possível que eles tenham também a ver com esta
reconfirmação de uma identidade Geordie e que impliquem, não propriamente uma
ruptura com o passado, mas antes um processo de continuidade. Deste estereótipo
cultural fazem parte certas imagens de "rudeza" expressas pelo vestuário (como a "T-
shirt" ou o uso de manga curta no Inverno), pela pose (o aspecto duro, os modos
agressivos e o falar alto) e pelo comportamento (beber álcool em quantidade). À noite
vêem-se pela cidade grupos exclusivamente masculinos, quais "ranchos de operários"
que saiem para beber uma cerveja depois de um dia de trabalho árduo, e que transmitem
uma impressão de rudeza e de solidariedade operária (apesar de a maior parte deles
trabalhar na área dos serviços e não em trabalho manual, e de ser pouco provável que se
trate de grupos de companheiros de trabalho). A masculinidade exprime-se mais através
da sexualidade do que do trabalho físico, manifestando-se sob a forma de um sexismo
exacerbado. Os elementos do passado (um passado, como vimos, reconstruído em
termos de presente) giram, agora, em torno de um consumismo urbano, e já não à volta
das relações de produção.
Uma análise mais aprofundada do fenómeno ritual deverá, desde logo, acautelar-nos
quanto ao risco de nos concentrarmos excessivamente no exemplo mais óbvio e extremo
dessa cultura reconstruída. Assim, por exemplo, ver-se-á que debaixo desta aparente
carapaça de masculinidade se esconde uma realidade mais suave e muito menos sisuda.
Os nossos dados são de molde a sugerir que é algo exagerada a ideia de que os homens
jovens bebem em excesso na cidade. A questão é que, para a grande maioria, certos
padrões de consumo de álcool são sobretudo um ritual. Na verdade, as quantidades de
álcool efectivamente consumidas nem sempre correspondem à imagem dada, quer pela
imprensa, quer pelos restantes meios de comunicação locais. A maioria dos jovens do
sexo masculino com quem falámos não bebia quantidades significativamente maiores do
que, por exemplo, a população estudantil do mesmo sexo, e a maior parte nem sequer se
sentia especialmente pressionada a beber muito. Andar a "correr as capelas" é uma
prática que pode, eventualmente, levar ao desregramento e à embriaguez, embora, em
verdade, a maioria seja capaz de aguentar o álcool sem se deixar embriagar e não tenha
outra motivação, ao sair à noite, que não seja passar um bocado de tempo agradável. Por
outro lado, pela circunstância de estes rapazes andarem em grupo (de cinco membros no
máximo), gera-se um padrão que pode parecer intimidativo — se bem que, uma vez
mais, os casos de violência efectiva sejam relativamente raros8. Os conflitos e a
violência que eventualmente se verificam, tanto se podem dever a um desregramento
216
ocasional com a bebida, como a problemas e frustrações que pouco ou nada têm a ver
com a pista de dança do clube.
Os dados que recolhemos revelam também algumas interessantes alternativas à imagem
dominante do jovem Geordie. Por exemplo, uma das razões cruciais apresentadas como
justificação para se sair à noite foi a importância de se consolidarem amizades, de fazer
novos amigos ou, tão somente, de rir um bocado (e não, simplesmente, andar atrás de
mulheres ou apanhar uma bebedeira). Eis uma resposta típica sobre o "significado" de
sair à noite:
P.: Se tivesses que apontar apenas uma coisa para explicar o que é que
significa para ti sair à noite, o que é que dirias?
R.: Conviver e divertir-me.
P.: E se pudesses indicar outras duas razões para saires, quais seriam?
R.: Hmm … só … encontrar-me com a malta, sei lá — rir-me um bocado e
assim, abandalhar um bocado, soltar o cabelo. (…) E para ver montes de
gente, ver malta da escola e assim, que já não se vê há muito tempo. Há
muita gente que vai à baixa só para se ver, e assim...
É verdade que em parte esta mudança se manifesta sob a forma de uma camaradagem
masculina exagerada (presente no "grito de guerra" dos adeptos do clube de futebol
Newcastle United — "howay the lads"9), a qual por sua vez pode conter elementos de
sexismo explícito. Contudo, verificou-se igualmente a existência de grandes amizades
masculinas, e que as saídas nocturnas incluíam também grupos formados por jovens de
ambos os sexos. Nem todos os jovens do sexo masculino saem com o fito de "ir para o
engate", ainda que gostem de transmitir essa imagem e de assumir, relativamente ao
sexo oposto, em todo este ritual, o seu papel de parte "disponível". De qualquer modo, a
maioria reconhece que, apesar da moda que presentemente este fenómeno reveste e do
muito que se diz sobre o assunto, as possibilidades de êxito são relativamente escassas.
O espectro da SIDA, a vergonha inerente ao risco de tentar em demasia e acabar por
falhar e, porventura, uma atitude de maior respeito pelas mulheres por parte de alguns
homens, são factores que terão levado a importantes alterações do comportamento.
Um dos principais aspectos da imagem que vulgarmente é dada do homem Geordie tem
a ver com as suas atitudes relativamente às mulheres, ao casamento e ao trabalho
doméstico. A personagem Sid Sexista, do "cartoon" The Viz, é bem o exemplo deste
estereótipo cultural, o mesmo se passando com Andy Capp, a personagem de banda
desenhada. Alguns estudos académicos, por seu turno, têm sustentado que entre os
homens jovens se verifica uma falta de sentido de responsabilidade relativamente à
instituição do casamento e à paternidade (Dennis e Erdos, 1992). Curiosamente, dado
falar-se tanto da masculinidade e do sexismo Geordie, seria de esperar que os homens,
postos perante a hipótese de casar e ter filhos, mantivessem, mesmo assim, a expectativa
de continuar a sair à noite. O que sucede, porém, é que a tendência dos jovens do sexo
217
masculino para dizer que sairiam com menos frequência caso estivessem casados, é
quatro vezes superior à manifestada pelas jovens Geordie. As principais razões
apontadas para este facto são as obrigações para com a companheira e o acréscimo de
responsabilidades financeiras. Cem por cento dos inquiridos do sexo masculino
responderam que sairiam menos se tivessem filhos. Não obstante as razões aduzidas
terem menos a ver com uma eventual preocupação de ajuda efectiva do que com a
perspectiva do seu novo papel enquanto "ganha-pão" e "protector" da família, este facto,
já que mais não seja, indicia, só por si — e ainda que as palavras nem sempre se
traduzam em acção — uma atitude de responsabilidade.
Que continuidades e transformações caracterizaram a formação da identidade das
mulheres jovens relativa ao trabalho, à casa e, acima de tudo, à prática de "sair"? Torna-
se claro que as mulheres continuam a ver-se limitadas em virtude do peso histórico da
sua aprendizagem doméstica. Apesar de a retórica alusiva à existência de novas
oportunidades de trabalho proporcionar às mulheres um acesso cada vez maior à esfera
pública, a verdade é que ela oculta o facto de a maioria apenas ter experiências de
trabalho em "part-time" e quase sempre mal pago. A passagem para a esfera pública do
mundo do emprego pós-industrial não conduziu necessariamente à independência
económica nem a modalidades de trabalho interessantes. Da mesma forma, o
envolvimento das mulheres jovens no trabalho doméstico continua a roubar-lhes tempo
para o lazer, criando expectativas futuras em termos do seu papel de trabalhadoras
domésticas e de responsáveis pelo bem-estar da família.
Alguns destes factores continuam a estruturar as experiências das jovens relativamente à
prática de sair à noite. Assim, por exemplo, verificaram-se indícios de que para algumas
delas a viabilidade destas saídas estava dependente de um salário masculino ou das
actividades do respectivo namorado. Mas de facto só uma minoria mostrou necessitar
dos maridos e companheiros para custear as saídas nocturnas, enquanto a grande maioria
afirmou sair às suas próprias custas. Tal só se torna possível por meio de negociações
bastante complexas no interior dos agregados mistos, ou através de um complexo
sistema de pedidos de empréstimo aos amigos. Em parte, isto pode estar também
associado ao maior empenhamento das mulheres no trabalho doméstico, um
empenhamento justificado com o intuito de garantir o direito a obter empréstimos junto
dos outros membros do agregado familiar.
As restrições financeiras e as obrigações domésticas mostraram igualmente constituir
uma limitação às saídas durante certos períodos de tempo. Quando, por exemplo,
perguntámos aos jovens de ambos os sexos qual o período mais longo em que não
saíram à noite, a média referida pelas mulheres foi de 13 semanas, ao passo que os
homens referiram 8 semanas. Enquanto as razões adiantadas pelas jovens parecem ser de
natureza mais restritiva (parto, falta de dinheiro), já os motivos deles poderão ser
entendidos mais facilmente num contexto de "preferência" (fazer uma pausa, deixar de
218
Uma vez que sei que ela anda no engate, à procura de gajo, eu não posso —
não consigo arrastá-la para outros lugares. É que de cada vez que ela quer
sair, quer arranjar um homem; anda à procura do homem ideal. O homem
dos desejos dela tem de ter cabelo comprido, tem de ter o tipo de mota que
ela lá sabe, tem de usar um certo tipo de roupa, tem de beber um certo tipo
de cerveja. Por isso, não temos outra alternativa senão irmos aos mesmos
bares, até ela o encontrar; no fundo é isso (Entrevista com Jan).
Nem as fontes literárias já citadas, nem o trabalho de Gofton já referido, são de grande
utilidade quando nos abalançamos a tentar explicar o número crescente de mulheres que
saem à noite pela cidade. Uma possível explicação, mais optimista, consiste em encarar
as saídas destas jovens como uma forma de feminismo operário (veja-se o filme Carta a
Brejnev). Uma outra visão, mais pessimista, é a de que as jovens Geordie não terão feito
mais do que adoptar os modos de comportamento masculino nesta esfera, como sejam o
beber em excesso, a estroinice e a promiscuidade (tipificados na banda desenhada "The
Fat Slags" e em The Viz). Uma explicação alternativa pode ser a de que existem, para
além desta, muito poucas situações em que as mulheres da classe trabalhadora tenham
conseguido assumir posições de controlo, afirmar-se, e, porventura, livrar-se do colete
de forças imposto pelos papéis tradicionalmente associados às diferenças de sexo. Pode,
efectivamente, dar-se o caso de estarmos perante uma subversão da ideia de que as
mulheres jovens foram autorizadas a entrar neste espaço público para dar prazer e
agradar aos homens, na medida em que é a pensar em si próprias que elas saem à noite.
Gostaria, ainda, de avançar a ideia de que, em termos da velha noção de uma
aprendizagem doméstica, ocorreram algumas modificações no que respeita às atitudes e
às relações existentes entre estas jovens. Em primeiro lugar, elas podem ter descoberto
que é possível e viável manter relações de amizade com outras mulheres e namorar ao
mesmo tempo. Em segundo lugar, resulta claro que as mulheres jovens estão a tornar-se
muito mais selectivas no que diz respeito aos futuros companheiros (atente-se no
depoimento da Jan, acima transcrito). Em terceiro lugar, é possível que, em certos casos,
seja consciente e deliberada a sua opção por sair à noite com pessoas do mesmo sexo,
desfrutando assim da companhia e da solidariedade de outras mulheres. Embora esta
opção possa, em parte, ter a ver com o problema da SIDA, parece evidente que o factor
determinante, em tais casos, é a exigência, por parte destas mulheres jovens, de passar
uma noite agradável sem a presença impositiva de homens. Por último, é admissível que
o desenvolvimento e a afirmação de uma sexualidade feminina como realidade válida
em si mesma, tenha começado a sobrepor-se às tradicionais ideias de subordinação e de
domesticidade (McRobbie, 1993).
Em que indícios poderemos fundamentar algumas destas afirmações? Colocámos às
jovens um certo número de perguntas respeitantes ao casamento, ao trabalho doméstico,
ao comportamento sexual, ao assédio e aos padrões de saídas. As respostas obtidas
permitem lançar alguma luz sobre o modo como as mulheres passaram a servir-se da
cidade. Assim, por exemplo, apesar da afirmação anterior segundo a qual o género
sexual é uma variável-chave para se explicar os diferentes graus de participação no
trabalho doméstico e de envolvimento na economia do agregado, apenas uma mulher
(no caso vertente, uma mãe com os filhos a seu cargo) afirmou que o trabalho doméstico
a havia impedido de sair. As jovens também se mostraram bastante optimistas quanto
aos eventuais efeitos do casamento sobre a sua liberdade futura. Excluindo as casadas (a
221
quem foi colocada a questão contrária), quase 90% afirmaram que se fossem casadas
sairiam mais ou, pelo menos, com igual frequência, ao passo que só 10% responderam
que sairiam com menos frequência. Mais uma vez, pode dar-se o caso de existir, aqui,
um desfasamento entre as atitudes assumidas e a realidade. Curiosamente, as duas
mulheres casadas a quem foi posta a pergunta disseram que provavelmente sairiam mais
se fossem solteiras. Resulta claro que muitas mulheres jovens valorizam a importância
de sair à noite e, pelo menos a nível das projecções futuras, continuariam a ter vontade
de sair mesmo sendo casadas.
As jovens mostram-se mais inclinadas a sair com o círculo das suas melhores amigas,
mas estão a surgir novos padrões. Há, assim, claros exemplos de grupos (de três a dez
elementos) formados exclusivamente por raparigas. Repare-se, por exemplo, no forte
sentimento de união aqui recordado por Jan a propósito de um grupo constituído apenas
por mulheres:
Conclusão
a cair numa espécie de determinismo económico, além de que ignora, em larga medida,
o papel desempenhado pela experiência da modernidade e da globalização. Ao mesmo
tempo, é necessário denunciar o credo pós-modernista do "fim da produção", pois que as
relações económicas, de classe e de género sexual continuam a facultar um importante
contexto para as representações, imagens e vivências culturais colectivas, as quais se
acham, todas elas, presentes no processo de formação identitária ao nível do lugar.
No que diz respeito à questão mais específica que é a de entender as identidades juvenis
contemporâneas, parece ser fundamental eliminar o fosso que tradicionalmente tem
separado os estudos sobre a transição e a análise cultural da juventude. Um tipo de
investigação que consiga integrar o estudo do desenvolvimento das culturas, estilos,
identidades e experiências de consumo da juventude no contexto da reestruturação
económica e das respostas do agregado familiar, pode ajudar a esclarecer e a colmatar
algumas das lacunas de que o nosso saber ainda padece no que diz respeito ao efeito
combinado dos factores capitalismo, lugar, cultura e geração. Por outras palavras, a
observação das mudanças de identidade de jovens adultos reveste-se de um significado
teórico que vai muito para além de um mero contributo para os estudos sobre a
juventude.
Sendo certo que o emprego — ou o desejo de o ter — continua a ser um elemento
importante e significativo das experiências da população jovem num espaço que, como
este, atravessa grandes transformações a nível económico, é, por outro lado, manifesto
que tanto o trabalho de tipo tradicional como o chamado trabalho pós-industrial parecem
incapazes de dar aos habitantes da região do Tyneside uma identidade e um sentido de
futuro adequados e viáveis. Do mesmo modo, o elevado índice de desemprego, os
salários baixos e as fracas perspectivas de uma carreira futura têm como consequência
que muitos jovens adultos da região apenas conseguem fazer face ao dia-a-dia através de
uma relação de dependência ou de negociação constante com o agregado familiar. Por
fim, gostaria de propor a ideia de que as fracas perspectivas económicas, aliadas ao
protelamento dos processos de transição (da casa paterna para o casamento) e à
impossibilidade de reviver a herança industrial da região do Tyneside, terão tido como
consequência o facto de a busca de uma identidade Geordie moderna ir ocorrer, em
grande medida, em locais outrora "marginais" da esfera do consumo e da vida urbana.
Atendendo à ausência de alternativas, não surpreende, por isso mesmo, que seja aí, mais
do que em casa ou no trabalho, que se vão forjando e ritualizando as identidades e que
se prefiguram possibilidades futuras. Se Colls e Lancaster (1992) têm razão quando
afirmam que aquilo que os Geordies são, depende de quem eles se imaginam ser, é da
maior importância que se comece a compreender como será a vida da nova geração.
223
NOTAS
1 Devido à natureza idealista das definições convencionais de lazer enquanto "liberdade ou ausência de
restrições", algumas abordagens mais radicais têm tendido a usar o termo "consumo" para referir o papel
que o capitalismo desempenha na actividade não-laboral e para acentuar as limitações que diversas
relações sociais impõem a esta esfera da vida social (Hollands e Cantelon, 1988; Clarke e Critcher, 1986;
Deem, 1986). De um modo geral, a ideia em vista será chegar a uma teoria mais materialista do lazer ou
do consumo. Pela minha parte, continuo a utilizar aqui o termo lazer nesta acepção mais radical, não o
distinguindo do conceito de consumo.
2 Devo tornar claro que a expressão "identidade e cultura juvenil Geordie", utilizada aqui e no título do
capítulo, designa o envolvimento e a participação de jovens adultos no conjunto de uma cultura local. Uso
aqui a expressão "cultura de juventude Geordie" simplesmente para designar uma identificação genérica
com a cidade e o lugar. Esta cultura não se limita à cobertura que os meios de comunicação fizeram do
projecto que eles próprios designaram por "pesquisa do Bigg Market" (não obstante uma percentagem
significativa da nossa amostra se ter debruçado sobre esta parte da cidade), nem implica que muitos dos
inquiridos aqui citados se não encontrem envolvidos em formas mais específicas de identificação cultural
juvenil. O projecto de investigação em que o presente texto se baseia detem-se, efectivamente, sobre estas
identidades e formas culturais mais específicas através do recurso a estudos de caso assentes na
observação participante e na perspectiva etnográfica.
3 Uma das principais restrições de classe inerentes à prática designada por "sair" tem a ver, no caso dos
jovens adultos, com o salário (ou a falta deste). Em trabalho anterior, levei a cabo investigação que se
debruçou sobre o impacto daquilo a que chamei um "salário substitutivo", ou seja, um subsídio de estágio
para os jovens integrados em programas de formação profissional (Hollands, 1990). Não pretendo com
isto sugerir que a possibilidade de uma formação identitária de tipo alternativo por parte dos jovens e do
uso que estes fazem da cidade seja algo aberto a todos. Alguns jovens ficam-se pelas zonas da cidade a
que pertencem, por não disporem de meios para mais, enquanto outros podem eventualmente recorrer a
drogas, que sempre é um meio de "diversão" mais barato do que sair à noite. Verifica-se ainda o
aparecimento de um fenómeno novo que tem a ver com a população estudantil e com a realização de
festas particulares. Trata-se de algo que carece de mais investigação. Contudo, não obstante a
circunstância de o desemprego, a redução das bolsas dos estudantes e a "diferença entre os sexos" terem
como consequência o facto de os jovens disporem de quantidades variáveis de dinheiro para gastar, a
nossa investigação mostra que a maioria continua a sair à noite, muito embora se registe uma redução nas
quantias dispendidas e na frequência das saídas. Em suma, diria que o fenómeno sair à noite continuará a
constituir um importante espaço alternativo para as identidades juvenis dos próximos anos.
4 A definição básica de sair à noite — ou simplesmente "sair" —, no nosso estudo, corresponde ao hábito,
por parte dos entrevistados, de ao fim do dia se deslocarem até ao centro da cidade de Newcastle para ir a
um "pub", a um bar, a um clube nocturno ou a um lugar com música a fim de aí beber, dançar ou ouvir
música (seja ao vivo, gravada ou passada por "disk jockeys") pelo menos uma vez de quinze em qinze
dias.
5 Trata-se de uma investigação sobre "As Culturas de Juventude e a Utilização dos Espaços Urbanos",
financiado pelo ESRC (referência nº ROO 23 4622). É um estudo etnográfico, dedicado à experiência
cultural do espaço urbano e da vida nocturna vivida por jovens adultos na cidade de Newcastle Upon
Tyne. A amostra é constituída por 60 jovens adultos (com idades compreendidas entre os 16 e os 30 anos),
divididos por igual em dois grandes grupos: um de 30 Geordies locais, e outro de 30 estudantes escolhidos
aleatoriamente nas duas universidades da cidade. Gostaria de agradecer o apoio financeiro prestado, bem
como a colaboração de Ros Taylor na elaboração das entrevistas.
6 Um episódio do romance de Jack Common Kidder´s Luck, passado em Westgate Road por volta do virar
do século, aborda ficcionalmente esta mesma questão:
Quando elas passavam na rua principal, os "pubs" cintilavam com as suas filas de candeeiros a
gás, e o latão das suas portas reluzia com o movimento de abrir e fechar. De um deles saiu um
grupo de rapazes, a cambalear, ruidosos e de faces coradas por causa da bebida. As raparigas
viram-se momentaneamente travadas por uma autêntica chuva de chalaças e dichotes — "Oh, oh,
é pá, olhem como ela dá às ancas! A tua mãe sabe que andas na rua? Mas que linda que ela é!" e
outros mais.
224
Uma das nossas entrevistas-piloto com uma mulher de 38 anos veio demonstrar que, mesmo ainda nos
anos setenta, a maioria dos "pubs" existentes no centro de Newcastle era principalmente frequentada por
homens:
Quer dizer, há vinte anos atrás (...), o que havia na cidade era só bares para homens.
7 Castaway é uma mistura de fraco teor alcoólico, feita à base de sumo de frutos. (Nota do Organizador).
8 Como afirmou um dos entrevistados, "a última coisa que um tipo quer, depois de ter gasto cinquenta
libras numa camisa nova, é meter-se em brigas".
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAPÍTULO 11
Carlos Fortuna
Évora, não é alheia a sua designação como Cidade Património da Humanidade, o que
me parece um bom exemplo para argumentar em favor da inovação que a conservação
da tradição patrimonial, artística e monumental, pode representar. Evidentemente que a
correlação íntima existente entre a designação da UNESCO e a crescente atracção
turística da cidade do Alentejo, factor que procurarei ter em conta ao longo do texto, é
reveladora de que a sua destradicionalização tem efeitos locais muito precisos. Mas, ao
mesmo tempo, projecta a cidade para fora de si própria, globaliza-a, e torna-a
simbolicamente elemento das representações emancipatórias dos sujeitos.
As imagens como as classificações das cidades não são processos uniformes nem
consensuais. Da Sociologia à Geografia, da História ao Urbanismo, em regra, todos os
campos de análise da cidade procedem à sua qualificação, atribuindo-lhe um sentido
próprio e uma identidade que, como se sabe, nem sempre, e só muito raramente,
alcançam reconhecimento universal. Nada há de surpreendente nesta manifestação de
conflitualidade interna das Ciências Sociais, a não ser o desafio que ela impõe de criação
de consensos mais alargados, inter-paradigmáticos, conceptuais e classificatórios, mais
aptos à compreensão das mais recentes modificações sociais. Com efeito, se os nossos
conceitos e descrições só ganham inteligibilidade à luz das interrogações de partida, é
natural que no interior de cada um dos campos de análise da cidade o consenso se
estabeleça e a caracterização da cidade seja, por algum tempo, partilhada de modo
amplo. Num outro campo disciplinar, mesmo contíguo, outros modos de interrogar
sugerem outros consensos, outras designações e, assim, outros modos de caracterização
e identificação das cidades.
A classificação das cidades é, portanto, sempre ambivalente. Tal como a sociedade, as
cidades sofrem transformações mais ou menos intensas ao longo do tempo, e a sua
identidade, como a identidade dos sujeitos, encontra-se sujeita a processos de contínua
recomposição1. Tanto numa perspectiva sincrónica e comparatista, quanto numa análise
evolutiva e diacrónica, a ambivalência da identidade da cidade decorre, em primeiro
lugar, do facto de ser forjada localmente mas estar sujeita ao reconhecimento público do
exterior, onde tende a estabilizar. A descoincidência da identidade localmente
estipulada, normalmente em função da sua própria materialidade, daquilo que ela é, de
onde se situa e do que faz, nem sempre recolhe no exterior o correspondente
reconhecimento público. O poder vinculativo da identidade forjada na materialidade da
cidade tende a dissipar-se com a distância de quem a aprecia e qualifica. Em seu lugar,
ganha proeminência o valor dos elementos simbólicos e representacionais, das
expressões culturais e das dimensões históricas e mnemónicas da cidade. Sem eliminar
in toto os predicados materiais da cidade, a imagem pública desta última é
crescentemente uma imagem compósita em que aos critérios geográficos e de
localização ou ao seu perfil produtivo e funcional, se juntam agora qualidades e valores
abstractos, apreciações estéticas, recursos e capitais simbólicos, nem por isso menos
228
eficazes na definição da sua condição. Nesta linha de ideias, a cidade não é, ou não é
apenas, aquilo que faz ou produz, nem a sua identidade depende da sua localização, para
passar também a ser aquilo que parece, representa e oferece aos nossos sentidos.
Esta combinação de elementos materiais e imateriais na configuração das identidades
sociais, tanto dos indivíduos como das cidades, encontra no pensamento social uma
tradição que parece estar hoje a reforçar-se e que, há falta de melhor, designaria por
Sociologia do sensível. De G. Simmel (1981), a M. Foucault (1979) ou a N. Elias
(1989), entre muitos outros, constituiu-se um potencial argumentativo sobre a
pertinência dos elementos qualitativos (visuais, simbólicos, estéticos e sensoriais) na
definição dos arranjos societais.
Perante esta valorização social do sensível, a imagem da cidade constrói-se e re-elabora-
se na articulação de elementos de natureza e efeitos aparentemente distintos. Mas esta
articulação não decorre no vazio e a cidade, enquanto conjugação de sedimentos e
práticas culturais, valoriza hoje tanto o seu presente como o seu passado, tanto a sua
economia como a sua expressão política e cultural. Todos estes elementos funcionam,
por igual, como potenciais recursos de formulação e redespertar da identidade e da
imagem da cidade, sendo o desenvolvimento desta última o corolário do modo como se
conjuguem e articulem entre si aqueles recursos (Fernandes, 1993). Porém deve
reconhecer-se que o passado e a memória colectiva ganharam, nos nossos tempos, uma
relevância inusitada. Paradoxalmente, tal deve-se ao facto de vivermos hoje sob uma
configuração cultural em que se privilegia o tempo instantâneo e a busca da gratificação
imediata (Urry, 1995). Perante a superficialização ou eventual perda das suas raízes
identitárias, os indivíduos procuram no passado e na memória da cidade compensação
para a correspondente e desconcertante ambivalência de valores. Tal impõe à cidade o
ónus da contínua valorização estética do seu património histórico e monumental
(Fortuna, 1997), ainda que, como geralmente sucede, aí se plasme, inelutavelmente, a
transfiguração do seu valor e significado histórico, sujeito a modulações diversas de
sentido.
No que se segue deste texto, procurarei discutir, numa primeira parte e em termos gerais,
a natureza do processo de destradicionalização da imagem da cidade, colocando a ênfase
no modo como a sua dimensão temporal tende a ser usada como elemento estratégico da
promoção do local — nomeadamente os seus recursos patrimoniais, históricos e
monumentais. Na segunda parte, apresentarei alguns traços da evolução da identidade e
da imagem da cidade de Évora, como ilustração do processo de destradicionalização que
ali toma lugar no decurso das últimas décadas. Argumentarei no sentido de mostrar que
este processo se alimenta quer das transformações sociais e estruturais da cidade, quer
da forma como esta é promovida e apropriada simbolicamente. Neste particular, a
crescente feição turística da cidade do Alentejo surge como sinal, não apenas da sua
reconversão, mas igualmente de uma situação de globalização simbólica que retira
229
imagem (Ashworth e Tunbridge, 1990). Do que disse antes, no entanto, ressalta que nem
o reconhecimento da existência de um património monumental, nem as precauções com
a sua preservação bastam, por si, para que este tenha uma função no processo de
destradicionalização3. É preciso "pô-lo em prática", torná-lo acessível, consumi-lo e usá-
lo de modo criativo.
Nesta instrumentalização do património, porém, está contido um custo. Enquanto
memória, o património põe a questão da orientação ou cardinalização dos sujeitos no
espaço e, bem assim, a questão da orientação ou da calendarização das práticas sociais
no tempo. Ora a desterritorialização remete sobretudo para a calendarização da acção e
marginaliza ou anula o critério espacial. Conquistar um património é sempre
desterritorializá-lo, retirá-lo das geografias físicas que o balizam para o colocar nas
geografias e mapas cognitivos dos indivíduos. Existe aqui um alargamento potencial do
universo de referências dos indivíduos. Numa cultura da instantaneidade e da
gratificação imediata, o património pode funcionar como intermediário entre a história e
a sociedade e, no acto da livre "apropriação" da mensagem patrimonial, os indivíduos
reenviam-na para o domínio das suas representações emancipatórias (Fortuna, 1995a). A
função de interface que o património desempenha é, assim, susceptível de gerar
solidariedades entre a história local e a sociedade no seu sentido amplo de construção
global e civilizacional.
Mas se, para servir a destradicionalização, o património tem de ser desterritorializado, a
questão que se põe é a de saber se é possível o estabelecimento de solidariedades e de
relações de proximidade que não sejam físicas. É minha convicção que o critério da
acessibilidade material, da presença física e da presença do corpo como critério de
definição do que é público e acessível a todos, por contraposição ao que é privado e
apenas reservado a alguns, é posto em causa pelo jogo do sensorial e cognitivo. A
experiência quotidiana obriga a pôr em causa o pressuposto da impermeabilidade do
público e do privado que se mostram de extrema porosidade e, a ser assim, a celebração
do património é sempre uma forma de memória colectiva, partilhada entre indivíduos e
grupos mesmo que fisicamente distantes (Chelkoff e Thibaud, 1992).
O património e a memória surgem deste modo como uma espécie de "objectos
históricos". Mas "objectos" especiais já que o seu valor de uso não tem equivalente de
troca, o que os aproxima dos bens de luxo, cuja avaliação, apropriação e consumo são
meramente subjectivos, simbólicos e posicionais. Geradores de um efeito afectivo e
emocional sobre os sujeitos, as diferentes formas da sua reprodução, tendem a fazê-los
aceder a um mercado cada vez mais amplo e a ganhar em extensão o que perdem em
intensidade do seu significado "real" (Benjamin, 1992).
A objectivação do património e da memória é um corolário da construção da
simultaneidade temporal que as cidades oferecem como estratégia da sua revalorização
competitiva. Trata-se da conjugação desordenada do passado (patrimonial) com o
233
larga influência regional (Gaspar, 1972), assumindo-se como o principal pólo urbano e
administrativo do Alentejo.
As transformações sociais decorrentes da democratização do país, na sequência do 25 de
Abril de 1974, se alteraram o quadro geral das relações sociais, terão sido mais sensíveis
numa cidade dominada por uma cultura patriarcal, de vincadas hierarquias e auto-
centrada. A democratização pós-25 de Abril é, assim, o primeiro traço da
destradicionalização da cidade. Com ela, instituiram-se práticas sociais e formas de
sociabilidade novas, alterou-se o quadro de relações políticas locais e diluiu-se a
influência política e cultural de famílias e grupos tradicionalistas. Questionaram-se, por
fim, valores e convenções que passaram a ser confrontados com novas referências e
universos culturais.
Foi nestes finais dos anos 70 e princípios dos anos 80 que a vocação de Évora como
capital regional se acentuou, precisamente à medida que começaram a gorar-se as
expectativas de desenvolvimento criadas pela Reforma Agrária. A Reforma Agrária
alentejana, que havia posto termo ao modelo produtivo dominante, assente na
exploração agrícola em regime de latifúndio, criando 33.000 novos postos de trabalho
permanentes e 17.200 eventuais, entra em falência declarada perante efeitos conjugados
da política económica nacional e da Política Agrícola Comum (Carvalho, 1990). Nos
anos 80 e 90, por assim dizer, assiste-se à desruralização do Alentejo, entendida como
acentuada crise do emprego agrícola, que encontra na emigração e no êxodo rural as
suas manifestações sociais mais dramáticas. Os desafios impostos à indústria agro-
alimentar da cidade e à gestão político-administrativa de um sector em decadência, bem
como ao comércio local, vieram pôr a claro a premência de uma intervenção e reforma
estratégica capaz de relançar a economia local e a imagem de Évora. Nestes termos,
pode sustentar-se que a destradicionalização da cidade surge articulada com o efeito da
desruralização da região que tem marcas indeléveis ao nível da estrutura local de
emprego4.
Em 1991, a cidade de Évora apresentava uma taxa de actividade geral ligeiramente
superior à taxa nacional (47% contra 44,6%). O mesmo sucedia com as suas taxas
específicas por sexos, que se situavam ao nível dos 40% no caso das mulheres e dos
58,3% no caso dos homens, contra, respectivamente, 35,5% e 54,3% das taxas nacionais
(Geoideia/CME, 1995). Naquela mesma data, a repartição por grandes sectores de
actividade da população residente na área urbana revela a predominância clara do sector
terciário (74%), seguido do secundário (23%) e do primário (3%) (INE, 1991). A cidade
tem, como seria de esperar, um perfil marcadamente terciário e denota um assinalável
dinamismo empresarial, a julgar pelas 406 empresas fundadas desde 1990, 179 das
quais, no entanto, não têm trabalhadores ao serviço (Geoideia/CME, 1995).
No domínio da actividade e emprego industriais, o relançamento da cidade de Évora tem
na decisão camarária de 1990 de aquisição do Parque Industrial de 50 hectares, na
236
uma tendência para a reconfiguração do Centro Histórico de Évora como espaço público
aberto ao usufruto de residentes e visitantes, que arrasta consigo um convite ao passeio,
ao consumo e à convivialidade ao ar livre, recriando o valor cultural da rua11.
Esta valorização do espaço público da cidade tem sido objecto de medidas restritivas e
de medidas pró-activas por parte da gestão autárquica. Entre as primeiras, encontram-se,
por exemplo, as medidas de contenção do tráfego automóvel na cidade "intra-muros" e a
constituição de alternativas conjugadas de transporte, com base em mini-autocarros, e
estacionamento urbanos (SITE — Sistema Integrado de Transportes e Estacionamento).
Entre as medidas pró-activas de reanimação cultural do espaço público conta-se, por
exemplo, a iniciativa "Viva a Rua!", levada a cabo com o objectivo de promover a
lógica da "participação sobre a lógica do consumo" e fomentar o "rompimento com o
formalismo da estética dominante e a recuperação de formas de expressão
diferenciadas" (Câmara Municipal de Évora, 1996).
Imagem 1
Folheto "VIVA A RUA" (enviado)
hoje disponível apenas em restaurantes e pastelarias da cidade. Nem por isso deixaram
de ser autênticos, mas tão-só sujeitos a uma re-invenção que ao recuperá-los para o
mercado os investe de sentido próprio, enquanto elementos significantes de uma cultura
local que se destradicionaliza no acto próprio da sua promoção.
Esta situação ilustra o modo como a cidade parece ter encontrado na valorização da sua
cultura local e regional, incluindo o seu património histórico-monumental, o
instrumento mediador privilegiado da sua imagem. Na verdade, nas suas expressões
icono-mediáticas, em si uma imagem e recurso modernista, a cidade de Évora apresenta-
se através da incorporação, feita em regra com assinalável criatividade, de elementos
patrimonialistas, histórico-monumentais e referências culturais locais, que, na sua
confluência, hibridizam e destradicionalizam a imagem de marca da cidade, oferecendo
ao exterior uma perspectiva futurante, caucionada pela consciência do passado local e
regional.
Imagem 4
Templo de "Diana", enviado em película
NOTAS
1 Num outro trabalho sustentei a possibilidade de caracterização deste processo de recomposição como
uma acção de destruição criadora das identidades para significar o contínuo reajustamento dos critérios
de auto-validação da imagem pública, de acordo com a multiplicidade de situações sociais e as
transformações económicas, políticas e culturais que caracterizam as sociedades contemporâneas
(Fortuna, 1995a).
2 No sentido em que a estou a utilizar, a noção de destradicionalização actualiza e amplia a situação que
Edgar Morin designa por "princípio dialógico" — a articulação, numa unidade complexa, de duas ou mais
lógicas diferentes, sem que a dualidade original se perca (Morin, 1988) — porquanto, da tensão imanente
entre novidade e tradição, a destradicionalização alimenta-se da preponderância da primeira sobre a
segunda.
3 Com efeito, ao invés, pode-se dizer que muitos dos monumentos de hoje, têm como objectivo primordial
o reforço da tradição. São os monumentos no sentido "etimológico" ou "intencional" de que fala Aloïs
Riegl, "construídos com o objectivo preciso de manter sempre presente e viva na consciência das gerações
futuras a memória de uma determinada acção" (Riegl, 1984: 35). Ainda de acordo com o pensador
austríaco, outros monumentos há — os "monumentos artísticos e históricos" (ibidem) — cujo valor e
reconhecimento público decorrem não da acção "intencional" dos seus criadores, mas do alargamento dos
conceitos de história, de história de arte e de memória, tal como foram evoluindo a partir do séc. XVIII, e
cuja legitimidade resulta de um saber especializado e erudito.
4 A nível do concelho, o peso da população activa com ocupação no sector primário representava, em
1960, 43,3% do total da população activa de Évora, tendo passado, em 1981, para os 16,4%, para se
situar, em 1991, nos 9,3%.
5 Entre 1985 e 1991, Évora atraiu 7% dos seus actuais residentes, na sua esmagadora maioria oriundos de
fora do distrito (Câmara Municipal de Évora, 1995).
7 Destes, 21 não dispunham de qualquer estudo urbanístico, 11 não tinham rede de abastecimento de água
e 17 não tinham rede de esgotos (Carvalho, 1990: 55).
8 Do Gabinete da Cidade, coordenado pela autarquia, fazem também parte o Centro Dramático de Évora
(CENDREV), a Comissão de Coordenação da Região do Alentejo (CCRA), o Núcleo Empresarial da
Região de Évora (NERE), a União de Sindicatos do Distrito de Évora (USDE) e a Universidade de Évora
(UE). A liderança política e técnica da autarquia nesta plataforma de interesses, ao mesmo tempo que
partilha estratégias de acção e procedimentos, ilustra, ao nível local, a necessidade que, de acordo com
Juan Mozzicafreddo (1997: 185), o Estado tem de consolidar um espaço de relativa autonomia política
que legitime e amplie o campo da sua acção perante os diversos interesses sociais, económicos, culturais e
profissionais.
9 Registe-se, no entanto, que apesar das intenções expressas, o Gabinete não conseguiu evitar que 77 de
um total de 153 estabelecimentos que iniciaram actividade entre 1984 e 1994, o fizessem em edifícios
anteriormente utilizados como residências particulares (Câmara Municipal de Évora, 1995).
10 Segundo estimativas da própria autarquia, o número de visitantes terá atingido os 280.000 em 1990
(Fortuna e Peixoto, 1997). Provavelmente, este número terá continuado a aumentar, mas a retracção
temporária de turistas entre 1991 e 1993 torna sobreavaliada a estimativa de 500.000 oferecida por
Farinha (1995). De qualquer modo, assinale-se que, num estudo sobre o impacto sócio-ambiental do
247
turismo em 25 cidades europeias e norte-americanas, patrocinado pela UNESCO, a cidade de Évora surge
numa posição intermédia na escala dos congestionamentos (Costa, Manente e Van der Berg, 1993).
11 Muitas vezes, a recriação do valor cultural da rua está associada à densificação da sua actividade
comercial, como acontece com a alteração, induzida pelo impulso turístico, da fisionomia da Rua 5 de
Outubro (antiga Rua da Selaria), eixo central de ligação entre dois pontos emblemáticos da cidade de
Évora (a Praça do Giraldo e a área histórico-monumental em torno do Templo Romano) (Ladeira et al.,
1992).
12 Exemplo desta regeneração da paisagem cultural da cidade encontra-se na assunção crescente, pelo
discurso autárquico, das virtudes turísticas potenciais de uma iniciativa como "Viva a Rua!". Com efeito,
como se lê no mais recente folheto promocional desta iniciativa, ela "constitui uma oferta cultural e
turística que tendencialmente contribui para induzir um maior dinamismo económico no Centro Histórico,
pela atracção e dilatação dos tempos de permanência de novos fluxos de visitantes, motivados, não só pela
cidade e pelos seus monumentos, mas também pelas manifestações artísticas que reanimam a
multiculturali que sempre marcou Évora. Esta dinâmica constitui um valor acrescentado para a indústria
hoteleira e para o comércio tradicional e um reforço da vida cultural dos eborenses" (Câmara Municipal
de Évora, 1997).
14 Organizados anualmente estes concursos vão hoje na sua 16ª edição. Igualmente regulares são as
conhecidas "Semana do Porco" e "Semana do Borrego", cada uma das quais contou, nas edições de 1997,
com a adesão de 48 restaurantes locais.
15 A reverberação é uma noção central da epistemologia bachelardiana, que traduz o modo como as
imagens poéticas influenciam os estados emocionais e físicos dos indivíduos (leitores), através do
accionamento de um processo de memorização e fantasia criativa (Bachelard, 1969).
248
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250
CAPÍTULO 12
António Arantes
À margem dos territórios que têm sido interpretados como expressão de identidades
claramente contrastadas e bem definidas, a experiência social contemporânea tem
propiciado a formação de lugares sociais efêmeros, particularmente no bojo dos
conflitos e das sociabilidades que se constituem nas praças e ruas das chamadas
"megacidades".
A seguinte afirmação feita numa entrevista para um programa de video por Hans, com
25 anos de idade, que se apresentou como pintor de carros, desempregado, ganhando
efetivamente a vida em São Paulo como michê, oferece um ponto de partida para estas
reflexões. Situando-se frente à repórter de televisão, em sua identidade híbrida, diz ele:
Somos partes de um mundo só. Estamos todos juntos, mas não estamos no
mesmo mundo. Você, se entrar no meu mundo, é estranha; eu, se entrar no
seu, sou estranho. Você não ia me aceitar se soubesse que tenho passagens
na polícia, e eu não ia te aceitar sabendo que você nunca roubou. Você tem
um mundo e eu tenho outro mundo. Os nossos dois mundos estão em guerra.
É isso!1
Como se estrutura o espaço social onde essa "guerra"2 ocorre? Qual é a natureza dessas
fronteiras contraditórias que, a um só tempo, separam práticas sociais e visões de mundo
antagônicas e as põe em contato, tornando possivel tal diálogo? Minha hipótese de
trabalho é que a experiência urbana contemporânea propicia a formação de uma
complexa arquitetura de territórios, lugares e não-lugares, que resulta na formação de
contextos espaço-temporais flexiveis, mais efêmeros e híbridos do que os territórios
sociais identitários (Canclini, 1990).
251
***
O metrô de São Paulo é um dos poucos espaços limpos e silenciosos da cidade. Numa
linguagem eficiente, uma voz que se dirige ao mesmo tempo a todos e a ninguém em
particular adverte: "Não ultrapasse a faixa amarela"; "Não apóie nas portas do trem em
movimento"; "Não force as portas para abrir"; "Use os corrimãos das escadas rolantes".
Como num manual de instruções e em tom persuasivo, mas inflexível, informa-se o
público sobre como usar o equipamento e como comportar-se. Sinais coloridos indicam
os caminhos do subterrâneo paulistano.
Essas mensagens dirigidas ao homem médio, ao passageiro indeterminado, estabelecem
entre os que transitam no metrô uma certa "contratualidade" ou cumplicidade solitária
de homens, mulheres e crianças que aí sentem-se seguros, sob a vigilância eletrônica da
autoridade invisível e confiantes na rapidez e previsibilidade dos serviços.
Os preços das tarifas não são muito diversos dos cobrados pelos ônibus urbanos e a
conjugação dos dois fatores, preço e eficiência, fazem conviver nesse ambiente
higienizado, onde prevalece o tempo pulsante, linear e uniforme dos relógios, uma gama
de usuários sensivelmente mais diversificada do que a dos que utilizam outras formas de
transporte de massa. De fato, embora evitem andar de ônibus, as classes média e alta
freqüentemente usam o metrô, ao lado de passageiros mais pobres.
Nos subterrâneos de São Paulo, as marcas paulistanas evidentemente não desaparecem.
A denominação das estações (Trianon-Masp, Liberdade, Paraíso, Tietê e Sé, entre
outros) sinaliza atividades, etnias, relações sociais (e de espaço) presentes e passadas
que participam da formação da vida social nesta cidade. Êsses topônimos nomeiam
marcos históricos e culturais que vão sendo constituídos (Armênia), reforçados
(República) ou apagados (Praça das Bandeiras) pelo uso rotineiro do transporte público.
253
Lugar por excelência da faceta letrada e ordeira da cultura de classe média paulistana, o
contexto asséptico das estações abriga, vez por outra, pequenos grupos que aí infiltram
as suas sociabilidades barulhentas. Mesmo assim, o espaço do metrô constitui
predominantemente um todo referenciado a si mesmo, um só lugar ou, na conceituação
de Marc Augé (1992), um "não-lugar"8.
***
Das escadas da estação que dão acesso à rua vêem-se as lanternas e postes vermelhos
que fazem parte da cenografia orientalizante do bairro da Liberdade. Penetra-se o
barulho das ruas onde se encontram lojas importadoras, casas de presentes e de
miudezas, armazéns de secos e molhados, delicatessens nikkey. Nas vitrines, oferecem-
se roupas, utensílios e alimentos vindos do Japão ou simplesmente de gosto (e aspecto)
oriental. Placas anunciam shiatsu, acupuntura, artes marciais. Integram a paisagem
templos budistas, um pequeno jardim onde carpas nadam num tanque entre pinheiros
miniaturizados, restaurantes e sushi-bares. Este é um dos ambientes onde se tematiza a
matriz cultural japonesa, oferecendo alguns produtos espetacularizados, outros não, ao
consumo e entretenimento de imigrantes japoneses, chineses, coreanos, descendentes e
visitantes.
Caminhando pela Rua da Liberdade avista-se a Catedral e ao chegar à Praça João
Mendes, o Forum e o Palácio da Justiça. Esses edificios monumentais que celebram a
igreja católica e o judiciário, desencadeiam a preparação do corpo para o encontro com
trombadinhas, drogados, mendigos, policiais e com os "meninos de rua", os novos anti-
heróis do centro da cidade. Um homem engravatado, com ares de magistrado, caminha a
passos largos em direção ao Palácio da Justiça, um metro à frente do guarda-costas que
leva desajeitadamente o seu portfolio de couro importado.
Na transição da Liberdade para a Sé não há passagens explícitas, pontes ou portas
simbólicas, construídas pelo costume, por onde se possa cruzar com segurança (Simmel,
1988). Olhares e movimentos de corpo, significados sugeridos por gestualidades à
primeira vista incompreensíveis, instalam no forasteiro uma progressiva sensação de
desconfiança e risco. Mãos dissimulam o volume do dinheiro nos bolsos, abraços
defendem ostensivamente pastas e carteiras da mira dos prováveis e supostos
trombadinhas.
Nesse espaço liminar tudo se vende: plantas medicinais e produtos para rituais de
umbanda e candomblé, mapas rodoviários e do corpo humano (os caminhos da geografia
e da anatomia), roupas e sapatos, frutas, salgadinhos e miudezas. Ao lado da Catedral
avisto os ambulantes. O pequeno comércio de rua, as bancas formando uma grande
aglomeração e principalmente os raizeiros que anunciam os seus medicamentos
milagrosos, transportam-me para o Mercado de São José, na cidade do Recife, talvez
254
para lembrar que entre aqui e lá pequenas diferenças se explicitam embora nem tudo
seja tão diverso.
A Praça da Sé, onde se encontra o marco-zero da cidade, é algo mais do que um lugar de
comércio e de tráfego intenso de pedestres, por onde todos passam e ninguém
permanece. A Catedral e o seu entorno constituem um importante marco de referência e
um lugar central para muitos moradores do espaço paulistano, como foi possivel
constatar em pesquisa recentemente realizada com jovens habitantes das ruas. Essa área,
que é suporte de muitos lugares sociais polissêmicos, simultâneos e entrecruzados, foi
um dos principais referentes utilizados por êles em seus desenhos sobre "centro da
cidade"9.
Policiais-militares vigiam. Crianças e adolescentes aí vivem a sua condição híbrida de
seres culturalmente invisiveis, que mimetizam a paisagem urbana como se fizessem
parte dela, e ao mesmo tempo são objeto de ações caritativas e de políticas sociais; de
jovens entretidos em suas brincadeiras ingênuas, em seus afetos e dramas pessoais e, não
obstante, pessoas tidas como violentas e perigosas que, ao se aproximarem de quem
passa, provocam medo e agressividade. Perto do chafariz, logo à saída do metrô,
meninos e meninas conversam em grupos de cinco ou seis, namoram, brincam e cheiram
cola ou esmalte em sacos plásticos reaproveitados, "fazendo a mente".
As torres e a cúpula da Catedral, a escadaria, as palmeiras alinhadas, a estelar rosa dos
ventos na base do marco onde a nave esculpida referencia as distâncias geográficas e os
pontos cardeais a partir do centro: marco zero, estou em São Paulo
O olhar do pesquisador parado identifica diferenças entre passantes ocasionais e
ocupantes. A observação das atividades que ocorrem num espaço delimitado, ao longo
do tempo, permite acompanhar como se configuram as relações sociais, os conflitos, os
jogos de poder e a violência. Não em movimento, mas ocupando um lugar fixo,
reconhecem-se tramas, a sucessão das dramas até o início do novo enredo.
Observo o desenrolar das cenas, a proximidade física dos corpos e os toques
freqüentemente procurados, que materializam a confiança e o aconchego. O homem
abraça a companheira maltrapilha e lhe dá um beijo no rosto. A mulher penteia os
cabelos do garoto sob a marquise de um prédio ao amanhecer, enquanto outras crianças
dormem abrigadas em caixas de cartão. O homem que faz bicos à noite, amarrando
pilhas de jornais numa distribuidora para receber o dinheiro da média e do pãozinho da
manhã seguinte, diz já ter sido assaltado várias vezes enquanto dormia. Agora, êle
descansa de dia por ser mais seguro. Cacos e restos delimitam domicílios onde a
intimidade dos gestos e das ações levanta paredes invisíveis mas presentes e, que ao
serem atravessadas pelo olhar do pesquisador, fazem-no sentir-se intruso, indiscreto, e
perceber a força dos limites simbólicos desses casulos no espaço público. A menina
empurra a fotógrafa-pesquisadora, fazendo-se notar ou defendendo a sua privacidade —
ou talvez ambos.
255
***
Tomo a cidade de São Paulo como um agregado de tensões e conflitos que se
espacializam numa amálgama de múltiplos territórios (ou lugares) e não-lugares. Nesse
contexto formam-se os desafios silenciosos aos projetos urbanísticos e de segurança que
se querem disciplinadores do seu uso e à intenção glamurizante da tímida valorização
(simbólica, estética e imobiliária) de algumas áreas e edificações.
Sou seduzido pelas inúmeras zonas de liminaridade: a cidade é um labirinto com vários
centros, formado por uma sucessão interminável de zonas intersticiais e marcos
257
fragmentários. Aí nada é fixo, nem mesmo os marcos edificados têm vida perene.
Transita-se constantemente, dificilmente se está.
Penso a cidade como um pulsar de espaços e lugares interpenetrados, confronto entre
singularidades, num amplo cenário explicitamente político. Praça da Sé e Praça da
República polos opostos e complementares do espaço central, articulados pelo sintagma:
Rua Direita, Praça do Patriarca, Viaduto do Chá (que perpetuou as plantações da
Baronesa de Tatuí) e Barão de Itapetininga, anacronismos coloniais que simbolicamente
ainda referenciam as práticas contemporâneas. As representações que fazem do centro
aqueles que habitam as suas praças e ruas não são indiferentes aos marcos e
monumentos da paisagem oficial. Pelo contrário, elas articulam experiências sociais a
um ambiente, dando-lhes um contexto e significações particulares.
Nesse espaço que tudo põe em relação, o planejamento urbano e as práticas de vigilância
afetam os sistemas sociais, a moralidade e as territorialidades efêmeras que se formam
nas ruas. Ruas fechadas ao trânsito, corredores de tráfego, terminais de ônibus, zonas de
estacionamento regulamentado, concentrações de lojas, bancos, escritórios: as normas
de zoneamento constroem outras fronteiras, atendendo a critérios técnicos e a interesses
empresariais. As rotinas de policiamento e a repressão ostensiva sinalizam a autoridade
e teatralizam o contrôle. Ambos, planejamento e policiamento, apagam limites e
fronteiras que são custosamente construídos e incessantemente reconstruidos pelos
habitantes das ruas em suas práticas cotidianas.
Nesse contexto espacial de lugares e fronteiras entre-cruzados formam-se as
sociabilidades que dão novo teto a esses jovens fugitivos dos "lugares antropológicos".
Ainda que a transgressão dessas fronteiras tradicionais implique em por em risco a
própria vida, o suposto desabrigo em que eles vivem parece ser vivido também como
prazer de movimentar-se num universo onde há alternativas a escolher, onde os
territórios aprisionam menos do que a casa de onde fugiram e à qual às vezes retornam.
Assim, o caráter tênue dessas fronteiras simbólicas só pode ser interpretado como
componente necessário de um modo de vida onde cruzar limites é vivenciado como
prazer e desafio lúdico, além de justificar-se como útil para a sobrevivência. Nesse
contexto, torna-se mais claro por que as formas de contrôle, nesses contextos, tendem a
utilizar na força e na intimidação direta.
***
Ao tematizar as transições complexas e as densas liminaridades que formam os
labirintos do centro de São Paulo, percorrí algumas das fraturas físicas e simbólicas
dessa paisagem. A fluidez do que observei levou-me a flexibilizar conceitos como
território, fronteira, identidade, lugar e mesmo não-lugar. Ao explorar o modo como
conflitos se espacializam, deixo de privilegiar os traços distintivos dos espaços sociais,
ou os contrastes semânticos que culturalmente os qualificam.
258
NOTAS
1 Entrevista apresentada no vídeo "Ipiranga", dirigido por Adelina Schlaich e veiculado pela TV Cultura,
em 1989.
2 Ao nuclear este ensaio em torno da idéia de "mundos em guerra" não pretendo enfatizar a noção de
extermínio físico, que foi tão bem descrita por Gilberto Dimenstein (1990) mas frizar os elementos de
violência, insegurança e risco que fazem parte das práticas de espaço aqui focalizadas.
3 O estudo sobre as sociabilidades de rua tem reafirmado de modo geral o princípio de que cada um dos
fragmentos do mosaico urbano, tal como as sociedades tradicionalmente estudadas pelos etnólogos, tem a
sua lógica interna, os seus códigos e normas, a sua própria estética e moralidade. Maffesoli, por exemplo,
argumenta que essas socialidades constituem um social que se realiza como "multidão de aldeias que se
entrecruzam, se opõem, se entreajudam e ao mesmo tempo que permanecem elas mesmas" (Maffesoli,
1987: 194).
4 Tomo aqui por base as reflexões de E. R. Leach (1964; 1976) sobre fronteiras simbólicas aplicadas a
zonas de espaço-tempo social.
5 Com referência ao meio urbano, prefiro o termo "territorialidade" ao de "território" que é mais
frequentemente utilizado na teoria social porque, ao denotar qualidade mais do que coisa substantiva, ele
flexibiliza o espaço social descrito. Tal flexibilidade, como veremos, é uma característica essencial dos
espaços sociais nas cidades contemporâneas.
6 Esta reflexão incide diretamente sobre um dos principais problemas focalizados pelos estudos sobre as
cidades contemporâneas e que Otília Arantes formula como sendo o da possibilidade do espaço público
contemporâneo alcançar uma presença estéticamente apreensivel. Esta questão decorre da tese
habermasiana de que, segundo a autora, "a forma de vida exigida como suporte e alimento do mundo
público a ser recomposto à contra-corrente do capitalismo avançado já não pode contar mais com a forma
outrora abracável da cidade" (Arantes, 1993: 117).
8 M. Augé define o não-lugar "par opposition à la notion sociologique de lieu, associé par Mauss et toute
une tradition ethnologique à celle de culture localisée dans le temps et l'espace. Les non-lieux, ce sont
aussi bien les installations nécessaires à la circulation accélérée des personnes et des biens (voies rapides,
échangeurs, aéroports) que les moyens de transport eux-mêmes ou les grands centres commerciaux, ou
encore les camps de transit prolongé ou sont parqués les réfugiés de la planéte." (Augé, 1992: 48).
9 Estes desenhos foram coletados como parte de um projeto piloto que visava refletir sobre metodologias
para o estudo do espaço urbano. O trabalho de campo foi realizado pelo auxiliar de pesquisa Alexandro
Dantas Trindade no Clube da Turma da Moóca, nos meses de fevereiro e julho de 1993. Obtivemos ao
todo 168 desenhos. O referido projeto, com o apoio financeiro do FAEP/UNICAMP e do CNPq,
adequava técnicas que vem sendo desenvolvidas por A. M. Niemeyer (1994) a hipóteses minhas sobre a
constituição simbólica do espaço urbano. Uma leitura desses desenhos orientou a definição de uma pauta
de trabalho a partir da qual foram fotografados 4 filmes (2 preto e branco e 2 diapositivos coloridos). As
fotos de M. L. Martinelli sublinham o recorte minucioso do assunto ou tema feito em muitos deles e/ou
ressaltam aspectos da linguagem gráfica e plástica utilizada por seus autores (ou seja, identificam ângulos,
composições e enquadramentos). Elas registram também algumas referências externas dessas
representações, que denotam um espaço que ao mesmo tempo é compartilhado pelos grupos e abriga
experiências individuais.
10 Roberto DaMatta (1991) identifica a tríade "casa", "rua" e "outro mundo" como estruturante das
práticas e representações do espaço social na cultura brasileira. A sua tese é de que há uma unidade ética
fundamental, subjacente a esse sistema, em que se articularia uma concepção igualitária, de natureza
jurídica, com a estrutura basicamente hierárquica da sociedade brasileira. Segundo ele, esse princípio
atravessaria as clivagens da estrutura social e teria uma permanência ou continuidade histórica desde o
período colonial até nossos dias. Apresento aqui uma abordagem que ao mesmo tempo se inspira nas
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hipóteses citadas e procura avançar para além delas privilegiando as zonas intersticiais mais do que
espaços definidos de maneira clara e distinta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Arantes, O., 1993, "A ideologia do 'lugar público' na arquitetura contemporânea. Um roteiro", in idem, O
Lugar da Arquitetura depois dos Modernos. São Paulo, Studio Nobel/Edusp/Fapesp.
Augé, M., 1992, Non-lieux. Paris, Seuil.
Calvino, I., 1993, As Cidades Invisíveis. São Paulo, Companhia das Letras.
Canclini, N. Garcia, 1990, Culturas Híbridas. México, Grijalbo.
DaMatta, R., 1991, A Casa e a Rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro,
Guanabara Koogan.
De Certeau, M., 1988, The Practice of Everyday Life. Berkeley, Univ. of California Press.
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Turner, V., 1982, From Ritual to Theater. Nova Iorque, Performing Arts Journal Publications.
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SOBRE OS COLABORADORES
António ARANTES é Professor Titular de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas. Publicou
diversos trabalhos sobre cultura e vida urbana contemporânea, entre os quais Produzindo o Passado (Ed.
Brasiliense) e Cidadania (número temático da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Walter BENJAMIN (1892-1940), crítico literário e ensaísta, foi um dos teóricos mais destacados da
Escola de Frankfurt, cujos escritos cobrem uma enorme variedade de áreas temáticas.
Eric CORIJN é Professor na Universidade de Tilburg, onde coordena o Mestrado Europeu em Estudos do
Lazer (Universidades de Bruxelas, Tilburg, Loughborough e Deusto). A sua investigação centra-se nas
políticas culturais urbanas da Europa.
Mike FEATHERSTONE é o editor da Revista Theory, Culture & Society. Professor de Sociologia e
Comunicação da Universidade de Nottingham-Trent, é autor de numerosas obras, entre as quais
Consumer Culture and Postmodernism (Sage, 1991) e Undoing Culture (Sage, 1995). Organizou a edição
de Cultural Theory and Cultural Change (Sage, 1992) e co-editou The Body: Social Processes and
Cultural Theory (Sage, 1991) e Cyberspace, Cyberbodies, Cyberpunk (Sage, 1995).
Georg SIMMEL (1858-1918) é hoje reconhecido como um dos fundadores da Sociologia, ainda que
tenha tido uma vida académica atribulada e marginal. É autor de numerosos ensaios, sobre um
variadíssimo leque de temáticas sociais, culturais e filosóficas, entre os quais se destaca Philosophie des
Geldes [1900].
Sabine VAN PRAET é Mestre em Estudos Europeus do Lazer e coordenadora do Centro de Lazer do
Hospital da Universidade de Bruxelas.
Louis WIRTH (1897-1952) foi uma figura central da Escola de Chicago com inúmeros trabalhos
publicados sobre a cidade e o urbanismo. Foi Presidente da Associação Americana de Sociologia e da
Associação Internacional de Sociologia.
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ÍNDICE REMISSIVO