(Frutuoso. M.A. Morram Marotos!) VFD
(Frutuoso. M.A. Morram Marotos!) VFD
(Frutuoso. M.A. Morram Marotos!) VFD
“MORRAM MAROTOS!”:
ANTILUSITANISMO, PROJETOS E IDENTIDADES POLÍTICAS EM
RIO DE CONTAS (1822-1823)
Salvador – BA
2015
MOISÉS AMADO FRUTUOSO
“MORRAM MAROTOS!”:
ANTILUSITANISMO, PROJETOS E IDENTIDADES POLÍTICAS EM
RIO DE CONTAS (1822-1823)
Salvador – BA
2015
Frutuoso, Moisés Amado
F945 “Morram marotos!”: antilusitanismo, projetos e identidades políticas em
Rio de Contas (1822-1823) / Moisés Amado Frutuoso. – Salvador, 2015.
139 f.
“MORRAM MAROTOS!”:
ANTILUSITANISMO, PROJETOS E IDENTIDADES POLÍTICAS EM
RIO DE CONTAS (1822-1823)
Banca Examinadora
INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 12
CAPÍTULO 1
PROJETOS REGIONAIS E DISPUTAS POLÍTICAS EM RIO DE CONTAS .................................. 21
1.1 A “Idade de Ouro” de Rio de Contas .............................................................................................. 25
1.2 A Bahia no processo de desagregação do Império luso-americano ................................................ 36
1.3 “Papéis incendiários” em Rio de Contas ......................................................................................... 39
1.4 “Um governo desgovernado” em Rio de Contas............................................................................. 45
1.5 Uma província nos sertões de cima? ............................................................................................... 50
CAPÍTULO 2
“ISTO É MUNDO NOVO!”: VIOLÊNCIA, MORTE E PERSEGUIÇÃO EM RIO DE CONTAS ... 60
2.1 “... uma morte tão cruel feita a um brasileiro patriota” ................................................................... 65
2.2 “... o mesmo que matar cachorros” ................................................................................................. 77
CAPÍTULO 3
DE ACUSADORES A RÉUS: UMA EXPEDIÇÃO CONTRA O PARTIDO EUROPEU.................. 91
3.1 Adesões e doações em apoio à “Santa Causa do Brasil” .............................................................. 105
3.2 “[...] e ficaram impunes. Oh, Deus!” ............................................................................................. 113
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................................. 121
REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 124
APÊNDICE A ..................................................................................................................................... 136
INTRODUÇÃO
1
AMRC. Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823. Nesta e nas
demais citações, optamos por atualizar a grafia e a concordância dos vocábulos para tornar a leitura mais fluída.
2
Idem.
3
Idem.
4
Idem.
13
Ainda que os acusados não tenham dito as palavras citadas pelo português Francisco
José Alves, elas refletiam a (re)elaboração das identidades políticas em operação durante o
processo de desagregação do Império luso-americano. “Ser brasileiro” e “ser português” não
estava necessariamente relacionado ao local de nascimento daqueles indivíduos. O que
prevaleceu durante o período colonial foi uma “identidade de dupla face”: tanto lusitana
quanto regional.5 Todos os nascidos em territórios vinculados a Portugal consideravam-se
portugueses, fossem nascidos no continente europeu, americano ou nos demais domínios
ultramarinos; baianos, pernambucanos, mineiros e paulistas eram identidades regionais
engendradas na América portuguesa que, em momentos de instabilidade, convertiam-se,
também, em identidades políticas. No início da década de 1820, a identidade política
brasileira passou a fazer parte do cenário político.
Mesmo afastada dos principais centros urbanos, a vila de Rio de Contas, localizada
no alto sertão da Bahia,6 vivenciou de forma dramática os momentos de incerteza política,
social e econômica que o então nascente Império do Brasil experimentava. A instabilidade
nesta localidade dos sertões de cima7 foi demonstrada através do antilusitanismo, que se
manifestou durante o processo de (re)elaboração das identidades políticas nesta vila do
interior baiano.
Entendemos por antilusitanismo as manifestações de aversão aos portugueses natos
expressas através de ideias, ações políticas e práticas cotidianas. Em Rio de Contas, essas
5
JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo Garrido. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da
emergência da identidade nacional brasileira). In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta: a
experiência brasileira (1500-2000). São Paulo: Senac, 2000, p. 129-173. A expressão “identidade de dupla face”
foi utilizada por DOLHNIKOFF, Miriam. Elites regionais e a construção do Estado Nacional. In: JANCSÓ,
István (Org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Unijuí, Fapesp, 2003, p. 432.
6
Altos sertões são regiões formadas por “faixas semiáridas rústicas e típicas existentes nas depressões colinosas
de todos os ambientes sertanejos” presentes nos territórios brasileiros. AB’SÁBER, Aziz Nacib. Os domínios da
natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003, p. 89; Erivaldo Fagundes
Neves utiliza a expressão Alto Sertão, para o sudoeste baiano, referindo-se à “distância do litoral, talvez com os
reforços da posição relativa ao curso do rio São Francisco e do relevo baiano, que ali projeta as maiores altitudes
do Nordeste do Brasil”. Tal escolha, além do sentido geográfico, também carrega uma historicidade na
consciência e no pertencimento da população da região, sendo utilizada como epígrafe do jornal A Penna, que
circulou, com algumas interrupções, entre as décadas de 1880 e 1930. Ver: NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma
comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história local e regional). Salvador: EDUFBA;
Feira de Santana: UEFS, 2008, p. 26-28; Caio Prado Junior, Anísio Teixeira e Risério Leite também se referiram
à região como alto sertão. Ver: PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011, p. 158; LEITE, Risério. Famílias sertanejas: os Mouras. In: Revista do Instituto
Histórico da Bahia. Ano 8, n. 8, Salvador: Tipografia Manu, 1953, p. 42; TEIXEIRA, Anísio. O alto sertão da
Bahia. In: Revista do Instituto Geographico e Historico da Bahia. Salvador, v.52, 1926, p. 295-309.
7
Dotada de historicidade, a expressão sertão de cima também faz referência às altas altitudes da região. No
entanto, possui maior amplitude que alto sertão, pois incorpora outras áreas do interior, como a região centro-
norte da Bahia e, por conta da proximidade, das vilas localizadas na margem esquerda do rio São Francisco. Ver:
SILVA, Candido da Costa e. Os Segadores e a Messe: o clero oitocentista na Bahia. Salvador: Secretaria da
Cultura e Turismo; Edufba, 2000, p. 47-73; MORAES, Walfrido. Jagunços e heróis: a Civilização do Diamante
nas lavras da Bahia. Salvador: Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural, 1991, p. 30, 32 (notas 6-17).
14
8
DIAS, Maria Odila Leite da Silva Dias. Teoria e método dos estudos feministas: perspectiva histórica e
hermenêutica do cotidiano. In: COSTA, Albertina de Oliveira; BUSCHINI, Cristina. (Org.). Uma questão de
gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992, p. 51.
9
DIAS, Maria Odila Leite da Silva Dias. Quotidiano e Poder em São Paulo no Século XIX. São Paulo:
Brasiliense: 1995, p. 14-15.
10
REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês em 1835. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003, p. 47.
11
Um dos principais estudiosos sobre o tema é Stuart Hall, autor de A identidade cultural na pós-modernidade.
Nesta obra, Hall analisa a existência de uma crise identitária, a partir da “descentração” do indivíduo tanto do
seu mundo social e cultural quanto de si mesmo. Para alcançar seu objetivo, o autor discute a constituição das
identidades culturais, sejam étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e nacionais. Em relação à identidade nacional,
Hall entende a nação como uma “comunidade simbólica” e as identidades nacionais como “formadas e
transformadas no interior da representação”. Mesmo considerando o caráter histórico na construção das
identidades e admitindo que os discursos identitários fundamentem sua legitimidade por meio de referências ao
passado, as características atribuídas por este autor ao sujeito moderno (“unificado”, “estável”, “centrado”)
distanciam-no do sujeito histórico observado nas fontes documentais analisadas neste trabalho e, em virtude
disso, não servem para nossas análises sobre a constituição das identidades políticas em Rio de Contas. HALL,
Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 47-57.
12
WORDWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz
Tadeu da. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 9.
15
que ela não é. Com base nesses pressupostos, a identidade política brasileira dependeu, para a
sua existência, da identidade portuguesa – que forneceu, assim, as condições necessárias para
sua constituição. Dessa forma, a identidade política brasileira se delineou a partir desta
relação de alteridade. No entanto, não podemos esquecer que as identidades políticas em
questão eram fluídas e foram (re)elaboradas de acordo com o contexto político analisado.
As proposições de Benedict Anderson13 sobre identidade e nação são apropriadas
para pensarmos a construção e as significações socioculturais destes conceitos. Em
Comunidades Imaginadas, Anderson define nação como
13
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
14
Ibidem, p. 32-34.
15
Ibidem, p. 33.
16
CHIARAMONTE, José Carlos. Cidades, províncias, Estados: Origens da nação Argentina (1800-1846). São
Paulo: Hucitec, 2009, p. 61.
16
17
PIMENTA, João Paulo Garrido. Portugueses, americanos, brasileiros: identidades políticas na crise do Antigo
Regime luso-americano. Almanack Braziliense, São Paulo: IEB/USP, n.3, maio 2006, p. 70, nota 3.
18
JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo Garrido. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da
emergência da identidade nacional brasileira). In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta: a
experiência brasileira (1500-2000). São Paulo: Senac, 2000, p. 129-173.
19
Ibidem, p. 131-2.
20
AMADO, Janaína. História e região: reconhecendo e construindo espaços. In: SILVA, Marcos (coord.).
República em Migalhas: História regional e local. São Paulo: ANPUH/Marco Zero; Brasília: CNPQ, 1990, p. 8.
17
José D’Assunção Barros ressalta que o simples recorte espacial-localizado não implica
necessariamente em história regional.21 O enfoque no regional “associa-se à noção de que
temos agora um lugar que se apresenta, ele mesmo, como sistema – com sua própria dinâmica
interna, suas regras, sua totalidade interna – e que habitualmente se encontra ligado ou a uma
rede de outras localidades análogas, ou a um sistema mais amplo”.22
O fato de Rio de Contas ter exercido relativa preponderância em áreas sertanejas até as
primeiras décadas do século XIX nos levou a utilizar esta abordagem, pois o estudo de
história regional proporciona “[...] grande importância para as cidades que exercem o poder
regional como também para aqueles que gravitam em sua órbita, diante das inúmeras
possibilidades que oferece para a pesquisa histórica e para a construção das identidades”.23
As experiências vividas pelos sujeitos históricos contribuem para a construção do
espaço regional. Nesse sentido, Claudia Viscardi24 considera que o espaço regional, enquanto
uma “construção abstrata”, é constituído “por um conjunto de valores socialmente aceitos e
partilhados pelos seus agentes, que conferem à região uma identidade própria, capaz de gerar
comportamentos mobilizadores de defesa de interesses”.25 E foi em defesa de seus projetos
políticos que segmentos sociais da vila de Rio de Contas se manifestaram no contexto de
incertezas existentes na província da Bahia durante os anos 1822-23.
Num estudo que abordou a participação dos habitantes das vilas do alto sertão no
conflito pela Independência do Brasil na Bahia, Argemiro Ribeiro de Souza Filho26 destacou
as manifestações de violência política ocorridas em Rio de Contas e em Caetité, além de seus
desdobramentos políticos na década de 1820. Para Souza Filho, a violência política é
resultado das disputas pelo poder político entre aqueles que denominou de “homens/filhos da
terra” com os portugueses.
Os violentos embates ocorridos, no nosso entendimento, resultaram do processo de
(re)elaboração das identidades políticas na esfera social de Rio de Contas, tendo sido o
antilusitanismo seu traço preponderante. Este aspecto é algo que Souza Filho aponta, mas não
21
BARROS, José D’Assunção. O lugar da História Local. In: A expansão da História. Petropólis: Vozes, 2013,
p. 165-188.
22
Ibidem, p. 181.
23
ARAS, Lina Maria Brandão de. Comarca de São Francisco: a política Imperial na conformação regional. In:
OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos; REIS, Isabel Cristina Ferreira dos (Org.). História Regional e
Local: discussões e práticas. Salvador: Quarteto, 2010, p. 194.
24
VISCARDI, Claudia Maria Ribeiro. História, região e poder: a busca de interfaces metodológicas. Locus:
Revista de História. Juiz de Fora, v. 3, n. 1. p. 84-97.
25
Ibidem, p. 96.
26
SOUZA FILHO, Argemiro Ribeiro de. A Guerra da Independência da Bahia: Manifestações políticas e
violência na formação do Estado nacional (Rio de Contas e Caetité). Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2003.
18
aprofunda em sua análise, já que não era o objetivo de sua pesquisa. Ademais, documentos
depositados em diversos acervos ou em coletâneas de documentos que não foram utilizados
por Souza Filho,27 lançaram novas luzes sobre as disputas políticas ocorridas na sociedade
rio-contense nos anos 1822-23, principalmente no que diz respeito aos projetos políticos de
tais grupos sociais.
A dissertação tem, portanto, a pretensão de estudar as manifestações de
antilusitanismo e a (re)elaboração das identidades políticas que ocorreram em Rio de Contas
durante o processo de ruptura política entre Brasil e Portugal. O recorte temporal escolhido
compreende os anos de 1822 e 1823, período de grande instabilidade social e política na vila e
seu termo. No entanto, a baliza final adotada não significa que deixaram de ser utilizados
documentos posteriores a este período que pudessem iluminar nossas análises sobre os objetos
de estudo em questão.
Ao abordar a construção do Império do Brasil, Ilmar Rohloff de Mattos28 aponta para
as diferentes ressignificações do termo “brasileiro” até os primeiros anos do século XIX.
Inicialmente, “brasileiro” designou apenas o nome de uma profissão, para depois indicar os
portugueses que retornaram enriquecidos para a Europa após terem vivido em terras
americanas. Nas páginas do Correio Braziliense (1808-1822), publicado em Londres por
Hipólito José da Costa, “brasileiro” era o português ou o estrangeiro radicado no Brasil;
“brasiliano”, o indígena; “brasiliense” o natural do Brasil. Para Mattos, a noção de
“brasileiro” somente ganhou uma conotação eminentemente política com os eventos mais
próximos a emancipação política, tendo a palavra “brasileiro” servido “para definir um grupo
político ou uma corrente de opinião que se contrapunha ao ‘partido europeu’”.29
O uso do termo brasileiro (ou brasileiros), nesta dissertação, refere-se à construção
identitária, de cunho político, elaborada por indivíduos nascidos no Brasil no contexto de
desagregação do Império luso-americano. Salvo momentos em que fazemos uma indicação
direta, o termo brasileiro não alude, assim, ao que se designa por identidade nacional, ainda
que esta denominação tenha tido também a pretensão de se tornar uma identidade de
abrangência mais ampla.
27
Podemos citar, por exemplo, algumas correspondências presentes em: ALAGOAS, Comissão Executivo dos
Festejos do Sesquicentenário da Independência do Brasil; IHGA – INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO
DE ALAGOAS (Org.). Documentos para a história da Independência. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1972.
28
MATTOS, Ilmar Rohloff de. Do Império do Brasil ao Império do Brasil. In: SILVA, Francisco Ribeiro da. et.
al. (Org.). Estudos em homenagem a Luis Antonio de Oliveira Ramos. Porto: Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, 2004, v.2, p. 727-736.
29
Ibidem, p. 733.
19
30
BAHIA, Coleção Independência do Brasil na Bahia: descrição dos documentos custodiados pelo Arquivo
Público da Bahia. Salvador: Fundação Pedro Calmon, Arquivo Público da Bahia, 2011.
20
CAPÍTULO 1
PROJETOS REGIONAIS E DISPUTAS POLÍTICAS EM RIO DE CONTAS
“Maroto pé de chumbo
Calcanhar de frigideira...
Quem te deu confiança
De casar com a brasileira?
O processo de ruptura política entre Brasil e Portugal foi marcado por ambiguidades,
dúvidas e contradições. Este clima de incertezas foi vivenciado de forma intensa por aqueles
que estavam envolvidos em tais acontecimentos. No decorrer dos fatos, o antilusitanismo
configurou o “ser brasileiro” como elemento de distinção daqueles que estavam em luta pela
“Santa Causa da Liberdade” contra a “tirania lusitana”. Os “portugueses da Europa” e seus
aliados se tornaram alvos daqueles que lutavam por uma maior participação política no
nascente Império: os brasileiros.
O novo discurso sobre os portugueses foi pautado a partir de uma relação de
alteridade, como já exposto anteriormente. Quando a independência mostrou-se como opção
para a manutenção da autonomia, a evitar, assim, a dissolução do Reino do Brasil proposto
pelas Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa reunidas em
Lisboa, sentimentos represados de aversão aos nascidos em Portugal vieram à tona.32
Enquanto fenômeno coletivo, o antilusitanismo se fez presente em diferentes
conjunturas sociais e econômicas durante o período imperial. Os atos de violência extrema,
dos quais os lusitanos eram vítimas, foram denominados de diferentes formas de acordo com
a região: mata-caiado, em Sergipe;33 mata-marinheiro, em Pernambuco;34 mata-bicudo, em
31
PEIXOTO, Afrânio. Breviário da Bahia. Rio de Janeiro: Agir, 1946, p. 179. A segunda estrofe da quadrinha
também é citada por João José Reis, sendo identificada como parte de uma correspondência de Viridiana Barata,
filha do revolucionário Cipriano Barata, encaminhada ao médico e historiador alagoano Alexandre José de Mello
Moraes em 6.11.1868. Cf.: REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil..., p. 51.
32
Em linhas gerais, os decretos de setembro e outubro de 1821 determinavam que “1) as capitanias do Brasil,
eram, agora, transformadas em províncias; 2) os governadores nomeados por d. João estavam depostos, e juntas
provinciais deveriam assumir o controle dos governos regionais; 3) as juntas já formadas, como a da Bahia e a
do Pará, eram reconhecidas como legítimos governos provinciais; 4) estes teriam seus presidentes subordinados
às Cortes e ao rei; 5) elas não teriam nenhuma autoridade militar, e um governo de armas deveria ser formado
em cada província, também submetido à Lisboa; 6) todos os órgão do governo formados no Rio de Janeiro
depois da transferência da Corte deveriam ser extintos; 7) o príncipe regente deveria voltar para a Europa,
retirando do Brasil o estatuto de uma unidade política com relativa autonomia”. BERBEL, Márcia Regina. A
retórica da recolonização. In: JANCSÓ, István (Org). Independência: história e historiografia. São Paulo:
Hucitec; Fapesb, 2005, p. 794.
33
MOTT, Luiz. Escravidão, homossexualidade e demonologia. São Paulo: Ícone, 1988, p. 16.
22
Mato Grosso;35 e, na Bahia, mata-maroto. Maroto, além de designar “marinheiro”, era uma
forma pejorativa utilizada pelos baianos para indicar os portugueses natos. Segundo o
Dicionário da Língua Brasileira, escrito por Luiz Maria da Silva Pinto e publicado em 1832,
maroto significava “vil, aquele que se porta mal, descortês”,36 muito próximo de algumas das
definições mais recentes do termo: “indivíduo capaz de ações vis, canalhas, condenáveis;
ladino, vivo, malandro”.37
É importante ressaltar que esta dissertação não considera a independência política do
Brasil como uma conclusão inevitável do processo desencadeado pela presença da Corte
portuguesa no continente americano. A abertura dos portos (1808) e a elevação do Brasil a
reino (1815) foram acontecimentos importantes, mas não determinantes para a separação de
Portugal. A ruptura política com a antiga metrópole era apenas uma das opções que se
apresentavam após a Revolução do Porto, período este de instabilidade política para toda a
“Nação Portuguesa”. Junto com a independência política, um crescente sentimento de aversão
aos portugueses se constituiu em alguns segmentos da população de várias províncias do
Império.
O antilusitanismo permeou as relações sociais no período pós-Independência do
Brasil através de disputas políticas e práticas de violência entre indivíduos que, até 1822,
consideravam-se portugueses: uns nascidos na Europa, outros na América. Na historiografia
brasileira, o antilusismo é vinculado a determinados momentos de crise: nos anos de 1822-24,
durante o processo de independência política e formação do Estado; e, também, no período
que precedeu a abdicação do imperador d. Pedro I (1831). Essa visão destaca somente as
mobilizações urbanas ocorridas por meio da aliança entre liberais exaltados e/ou republicanos
com segmentos da população pobre, em manifestações de explosão de ódio aos portugueses
natos, seus familiares e aliados. Os sentimentos antilusos não cessaram no período regencial
(1831-1840) e compuseram, inclusive, as propostas políticas dos movimentos de cunho
constitucionalista e federalista que ocorreram na Bahia entre 1831-33.38
34
CARVALHO, Marcus J. M. O antilusitanismo e a questão social em Pernambuco, 1822-1848. In: PEREIRA,
Miriam Halpern; BAGANHA, Maria Ioannis; SILVA, Maria Beatriz Nizza da; MARANHÃO, Maria José
(org.). Emigração e imigração portuguesa: séculos XIX e XX. Lisboa: Fragmentos, 1993, p. 145-162.
35
REIS, Arthur Cézar Ferreira. Mato Grosso e Goiás. In: HOLLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). História
Geral da Civilização Brasileira. Tomo II: O Brasil Monárquico. Dispersão e unidade. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2004, p. 181.
36
PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira. Ouro Preto: Typographia de Silva, 1832, p.
699.
37
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2009, p. 1.250.
38
ARAS, Lina Maria Brandão de. A Santa Federação Imperial. Bahia. 1831-1833. Tese (Doutorado em
História). Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995, p. 91-92.
23
39
Sobre essas manifestações, consultar RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção: identidade
nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; Faperj, 2002.
CARVALHO, Marcus J. M. Marcus J. M. O antilusitanismo e a questão social...
40
REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil..., p. 47.
41
GARDNER, George. Viagens no Brasil, principalmente nas províncias do norte e nos distritos do ouro e
diamantes durante os anos de 1836-1841. São Paulo: Nacional, 1942, p. 10.
42
CALMON, Pedro. História social do Brasil: espírito da sociedade Imperial. São Paulo: Nacional, 1937, v.2, p.
15; 24.
43
PINHO, José Wanderley de Araújo. A Bahia, 1808-1856. In: HOLLANDA, Sérgio Buarque de (Org.).
História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II: O Brasil Monárquico: Dispersão e Unidade. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2004, v. 2, p. 268.
24
“problema de ordem pública”, estando presente, inclusive, nas festas comemorativas do Dois
de Julho.44
Luis Henrique Dias Tavares considerou o mata-maroto – expressão maior do
sentimento antiluso – como um “movimento político imaturo e carregado de ressentimentos
que ficaram da longa guerra pela independência do Brasil na Bahia”.45 Mesmo tendo
considerado o antilusitanismo uma expressão de cunho político, nenhuma destas
interpretações indicou, com maior ênfase, a possibilidade desta manifestação ser um reflexo
das obstruções formais e subjetivas que impediam a ascensão social dos nascidos na América
portuguesa, como novas abordagens sobre o tema tem apontado nos últimos anos.
Nessa perspectiva, Dilton Oliveira de Araujo considerou o antilusitanismo como uma
forma de manifestação política de natureza contestatória presente cotidianamente na província
da Bahia e utilizada como uma “bandeira que poderia servir à mobilização das parcelas mais
pobres da população”, ao lado de outras “bandeiras propriamente políticas, que objetivavam
uma reorganização do Estado, que serviam à resistência ao centralismo, como era a da
república e a da federação”.46 Como comprova Araújo, o antilusitanismo continuou presente
na província da Bahia ainda na década de 1840, manifestando-se através do periódico rebelde
O Guaycuru.47
Em seus recentes estudos, Sérgio Armando Diniz Guerra Filho associou o
antilusitanismo ocorrido na Bahia durante o Primeiro Reinado também às disputas por postos
de trabalho entre portugueses natos e segmentos da população baiana. Numa ampla pesquisa
sobre o tema, Guerra Filho esmiuçou as relações entre o antilusitanismo e o federalismo, além
de ter lançado um olhar mais próximo sobre os personagens envolvidos em episódios de
violência extrema contra os lusitanos.48
Na Bahia, o antilusitanismo não esteve circunscrito à capital da Província e ao seu
Recôncavo. Em regiões mais afastadas, como na vila de Rio de Contas, tais manifestações
ocorreram de três formas: através de ações de cunho político com o objetivo de ocupar os
44
PINHO, José Wanderley de Araújo. A Bahia..., p. 268.
45
TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia. Salvador: EDUFBA; São Paulo: UNESP, 2001, p. 260.
46
ARAÚJO, Dilton Oliveira de. Antilusitanismo: a que (será que) se destinava na Bahia do século XIX. In:
Simpósio da Associação Nacional de Professores de História-Bahia, 2006, Feira de Santana. Anais do Simpósio
da Associação Nacional de Professores de História-Bahia. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2006. v. 1, p. 10.
47
ARAUJO, Dilton Oliveira de. O Tutu da Bahia: transição conservadora e formação da nação, 1838 – 1850.
Salvador: Edufba, 2009.
48
GUERRA FILHO, Sérgio Armando. O Antilusitanismo na Bahia (1822-1831). Tese (Doutorado em História).
Universidade Federal da Bahia. Salvador. 2015.
25
49
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823;
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Governo da província – Juízes das Minas do Rio de Contas, maço 2483,
Correspondência de 28 de abril de 1831.
50
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823;
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Presidência da província. Correspondências recebidas das vilas e
Câmaras, maço 1354, Correspondência de 25 de abril de 1831.
51
AMRC. Acervo Poder Legislativo. Fundo Câmara Municipal, Caixa 7, maço 1. Correspondência de 3 de maio
de 1836.
52
AHU_ACL_CU_005, cx. 16, Brasil/Bahia. Doc. 1365. Carta-Régia de 20 de outubro de 1722.
53
SILVA, Ignácio de Accioli de Cerqueira e. Memórias históricas e políticas da Província da Bahia. Anotações
de Braz do Amaral. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1925, v. 2, p. 358; Cf. APEB. Seção de Arquivo Colonial
e Provincial. Ordens Régias – Livro 19 (1723-1725). Cartas Régias de 9 de fevereiro de 1725 (Documentos 43-
46). Em 1840, a vila recebeu a denominação de Minas do Rio de Contas. No entanto, como alguns registros já
denominavam a vila como Rio de Contas nas décadas de 1820-30, optamos por designá-la dessa forma nesta
dissertação.
26
insalubridade do local a sede da vila foi transferida para o sítio denominado Pouso dos
Creoulos, no planalto da Serra das Almas, ponto de descanso de viajantes e tropeiros oriundos
de Goiás e Minas Gerais que se dirigiam para a capital da Bahia.54
A solicitação de transferência de local, feita por seus moradores, foi atendida por
meio da provisão régia de 2 de outubro de 1745. A antiga sede perdeu parte de sua população
para o novo sítio e passou a ser denominada Vila Velha, tornando-se distrito da nova vila
construída às margens do rio de Contas Pequeno (atual rio Brumado).55
Figura 1
Vista de Vila Velha, ao sopé da Serra do Brumado (entre 1817 e 1820). In: SPIX, Johann Baptist
von; MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Viagem pelo Brasil 1817-1820. São Paulo:
Melhoramentos, 1938. p. 145.
54
Alguns autores, como Pedro Tomás Pedreira, indicam que o Pouso dos Creoulos era “um grande ‘quilombo’
de negros fugidos”. Cf.: PEDREIRA, Pedro Tomás. Os quilombos baianos. In: Revista Brasileira de Geografia,
n. 4, 1962, p. 588. _______. Os quilombos brasileiros. Salvador: Prefeitura Municipal de Salvador;
Departamento de Cultura do SMEC, 1973, p. 147.
55
AMRC, Fundo Câmara Municipal. Diversos. Cópia da Carta-Régia de 02.10.1745; FREIRE, Felisbello.
História Territorial do Brazil (Bahia, Sergipe e Espírito Santo). Salvador: Secretaria da Cultura e
Turismo/Instituto Geográfico Histórico da Bahia. 1998, v.1, p. 85-6; 522 (Ed. Fac-similar, 1906); PEREIRA,
Gonçalo de Athayde. Minas do Rio de Contas, hoje município do Rio de Contas. Bahia: Typ. São Miguel, 1940,
p. 18.
27
O processo de ocupação do interior da Bahia ocorreu antes dos atos oficiais da Coroa
portuguesa no século XVIII. A expansão da pecuária e da mineração na região atraíram fluxos
migratórios, principalmente, de baianos e paulistas. Os primeiros, subindo o rio São Francisco
e, os segundos, descendo o caudaloso rio. Erivaldo Fagundes Neves aponta que o alargamento
das fazendas de gado de Antônio Guedes de Brito e seus rendeiros no entorno do São
Francisco contribuíram para o povoamento da região, bem como o contingente populacional
atraído pela grande exploração aurífera das Minas Gerais, nas cabeceiras do rio Itapicuru
(Jacobina), nas serras do Tromba e das Almas e, também, nas nascentes dos rios de Contas e
Paramirim.56
Durante o século XVIII, a vila de Rio de Contas exerceu papel de importância no
alto sertão em virtude da mineração. A descoberta do ouro e a conquista e incorporação do
sertão fazem parte de
[...] um processo que, de um lado, significou novas alternativas de exploração
econômica e de ampliação do poder metropolitano, através da extensão da estrutura
político-administrativa e jurídica e, de outro, instituiu relações com novas formas de
sujeição para diferentes grupos sociais, além de consolidar as relações escravistas. 57
56
NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja..., p. 96.
57
VASCONCELOS, Albertina Lima. Ouro: Conquistas, tensões, poder, mineração e escravidão. Bahia do
século XVIII. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Campinas. Campinas. 1998, p. 16.
58
COSTA, Miguel Pereira. Relatório apresentado ao vice-rei Vasco Fernandes Cezar pelo mestre de campo dos
engenheiros Miguel Pereira da Costa quando voltou da commissão em que fora ao districto das Minas do Rio das
Contas. Revista Trimestral de História e Geographia ou Jornal do Instituto Historico e Geographico Brazileiro.
Rio de Janeiro, n. 17, abr. 1843, p. 46.
59
Idem.
28
sertão.60 Essa propriedade rural, localizada numa região que foi distrito de Rio de Contas até
1810,61 foi estudada por Lycurgo Santos Filho numa obra que abordou as dinâmicas
socioeconômicas da região tendo por núcleo este empreendimento agrícola. O autor
apresentou, com base numa documentação até então inédita, a vida cotidiana de seus
proprietários, agregados, vaqueiros, feitores e cativos na atuação de diversas atividades, com
foco nos aspectos da vida patriarcal, rural e comercial desta fazenda durante os séculos XVIII
e XIX.
Grande parte das atividades econômicas desenvolvidas nesta propriedade era voltada
para o mercado interno, com exceção do plantio do algodão, que seus donos iniciaram em fins
do século XVIII.62 Em suas análises, Santos Filho não deixou de registrar as flutuações
econômicas às quais os gêneros de primeira necessidade estavam submetidos, auxiliando na
compreensão do funcionamento da economia setecentista e oitocentista. Mesmo
reconhecendo que as culturas de subsistência não deixavam de influenciar a economia
regional e que a produção cerealífera contribuiu sobremaneira para a autossuficiência dos
fazendeiros, Santos Filho avaliou, apressadamente, que a produção voltada para o mercado
interno era “limitada e destinada apenas a prover à alimentação do homem”, destituída, na
maior parte das vezes, de objetivo econômico.63
Ao analisar as diversas regiões que compunham os sertões da Bahia no século XIX,
Kátia Mattoso as reconheceu enquanto economias locais, tendo como característica a
produção de gêneros alimentícios de forma estruturada, com o cultivo de diversos produtos,
como o fumo e a cana-de-açúcar, voltados para o mercado local.64 Apesar de ter considerado
essas regiões sertanejas como economicamente isoladas, a autora ainda as percebeu como
dinâmicas, sem deixar de ressaltar as secas que as assolavam de tempo em tempos.65
60
SANTOS FILHO, Lycurgo. Uma comunidade rural do Brasil antigo (Aspectos da vida patriarcal no sertão da
Bahia nos séculos XVIII e XIX). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956. p. 117.
61
Em 1810, Rio de Contas sofreu seu segundo desmembramento, dando origem a Vila Nova do Príncipe e
Sant’Ana de Caetité; o primeiro havia ocorrido em 1732, quando Barra do Rio de Contas (atual Itacaré) se
emancipou. Ver: NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja... , p. 108.
62
SANTOS FILHO, Lycurgo. Op.cit., p. 269.
63
SANTOS FILHO, Lycurgo. Uma comunidade rural..., p. 306.
64
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia, século XIX: uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1992, p. 458.
65
Ibidem, p. 459-60.
29
Mapa Mapa 1
AAProvíncia
ProvínciadadaBahia
Bahia(1822-1823)
(1822)
Estudos recentes sobre as dinâmicas da economia escravista dos séculos XVIII e XIX
apontam que não se pode desprezar o desenvolvimento da agricultura de abastecimento para o
mercado interno. B. J. Barickman afirma que
66
BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-
1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 30.
67
Para uma crítica sobre o suposto isolamento das economias dos sertões baianos, ver: PIRES, Maria de Fátima
Novaes. O crime na cor: escravos e forros no alto sertão da Bahia (1830-1888). São Paulo: Annablume/Fapesp,
2003, p. 38-42.
68
NEVES, Erivaldo Fagundes. Estrutura fundiária e dinâmica mercantil: Alto Sertão da Bahia, séculos XVIII e
XIX. Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS, 2005, p. 116-120 e 157, nota 81. Cf. SANTOS, Márcio.
Bandeirantes paulistas no Sertão do São Francisco: povoamento e expansão pecuária de 1688 a 1734. São
Paulo: Edusp, 2009, p. 118-120.
Mapa 2
Rio de Contas e algumas localidades do seu termo (1822-23)
Fonte: Google Maps (com adaptações). Acessado em 21.08.2014. Sobre a altitude das localidades, ver: BAHIA; SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS
ECONÔMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. Anuário Estatístico da Bahia: 2012. [CD-ROM]. Salvador: SEI, 2014, p. 22-30.
32
69
O sistema dos morgado, ou morgadio, foi uma instituição que influenciou as transferências de bens e
propriedades de certas camadas sociais do Império português, tendo sido abolido somente no período imperial
brasileiro, em 1835. Com objetivo de “proteger as fortunas da família”, os bens de morgadio “estavam sujeitos a
limitações no direito de propriedade e deviam permanecer perpetuamente com a mesma família, não podendo ser
partilhados ou alienados”. MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia, século XIX..., p. 137.
70
NEVES, Erivaldo Fagundes. Estrutura fundiária... , p. 144-159.
71
NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja..., p. 88.
72
PEREIRA, Gonçalo de Athayde. Minas do Rio de Contas..., p. 28; TANAJURA, Mozart. História de
Livramento – A terra e o homem. Salvador, Secretária de Cultura e Turismo, 2003, p. 67-70; CASTRO, Samuel
Cândido de Oliveira. Castro: “tesouro de família”. Olímpia: S.C. de O. Castro, 2002, p. 65-67; MARINHO,
Raimundo; LESSA, Eduardo. Livramento é de Nossa Senhora. Livramento: Diocese de Livramento, 1995, p. 23-
26.
73
ARAUJO, Ubiratan Castro de. A política dos homens de cor no tempo da Independência. In: Estudos
Avançados, v.18, n.50, jan/abr, 2004. São Paulo: IEA/USP, São Paulo-FIPE/USP, p. 254.
33
A busca por inserção nas esferas do poder e por posições de status social na sociedade
colonial fizeram com que os nascidos na América portuguesa buscassem a desobstrução das
barreiras que os impediam de ascender às altas posições civis, militares e eclesiásticas. Esta
situação tornou-se um manancial de ressentimentos contra os lusitanos, num processo lento e
cumulativo, sendo um dos elementos que contribuíram para o desenvolvimento de ações
antiportuguesas ocorridas nas décadas de 1820-30 em Rio de Contas.
Como em diversas regiões das capitanias do Norte (após 1821, províncias), as secas
afetaram a população do alto sertão no decorrer do século XIX. Segundo Graciela Rodrigues
Gonçalves, as secas na Bahia durante os oitocentos provocaram “episódios de fome, escassez
e carestia de alimentos, movimentos migratórios, [além de] prejuízos ao comércio”.74 Nas
primeiras décadas do século XIX, a ausência de chuvas prejudicou a produção agrícola e a
criação de gado no interior baiano entre os anos de 1806-1808, 1818-1819 e 1833-1834.75
Esse fenômeno climático agravou, ainda mais, a situação socioeconômica dos sertões baianos
e se refletiu em colheitas desfavoráveis, com perdas para pequenos e grandes produtores. Na
Fazenda do Campo Seco, a estiagem teria acarretado a perda de 300 cabeças de gado em
1808.76
Os naturalistas bávaros Spix e Martius77 percorreram Rio de Contas e seus distritos em
meados de 1818, pouco antes do acirramento das disputas políticas locais entre brasileiros e
portugueses durante o processo que culminou na dissolução do Império luso-americano.78 A
passagem deles pela região coincidiu com o período de secas que atingiu o interior baiano
entre os anos de 1818 e 1819. A estiagem foi tão intensa neste período que o ano de 1819 foi
denominado de “ano da fome” pelo então proprietário da fazenda Brejo do Campo Seco,
Antônio Pinheiro Pinto.79
74
GONÇALVES, Graciela Rodrigues. As secas na Bahia do século XIX (Sociedade e política). Dissertação
(Mestrado em História). Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2000, p. 10.
75
Ibidem, p. 13-35; SANTOS FILHO, Lycurgo. Uma comunidade rural..., p. 324.
76
SANTOS FILHO, Lycurgo. Op.cit., p. 208.
77
Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, naturalistas do Reino da Baviera (estado
independente existente entre 1805 e 1918, atualmente território da República Federal da Alemanha), foram
nomeados pelo rei Maximiliano José I para comporem uma expedição ao Brasil, seguindo as instruções da
Academia de Ciências da Baviera. Tal iniciativa fazia parte das redes de relações políticas e culturais existentes
entre a coroa da Baviera e o Império austríaco. Em 1817, os cientistas bávaros acompanharam a comitiva que
trouxe ao Brasil a princesa Carolina Josefa Leopoldina, filha do imperador habsburguês Francisco I, para
contrair matrimônio com o príncipe herdeiro d. Pedro de Alcântara. A expedição dos bávaros atravessou o Brasil
por três anos (1817-1820), passando pelo Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, o atual Nordeste brasileiro e
a bacia amazônica, chegando até as fronteiras com o Peru e a Colômbia. DIENER, Pablo; COSTA, Maria de
Fátima. Um início. In: DIENER, Pablo; COSTA, Maria de Fátima (Org.). Karl Friedrich Philipp Von Martius.
Rio de Janeiro: Fundação Miguel de Cervantes, 2012, p. 14-15.
78
SPIX, Johann Baptist von e MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Viagem pelo Brasil 1817-1820. São
Paulo: Melhoramentos, 1938.
79
SANTOS FILHO, Lycurgo. Uma comunidade rural...,, p. 287.
34
80
SPIX, Johann Baptist von e MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Viagem pelo Brasil...; p. 138.
81
Idem.
82
Idem.
83
Idem.
84
Ibidem, p. 135.
85
CASAL, Manuel Aires de. Corografia brasílica. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional; Ministério da Educação e
Saúde, 1947. t. 2. (Coleção de Obras Raras). Fac-símile da edição de 1817.
86
Ibidem, p. 136.
87
Idem.
35
Por conta da relevância regional apresentada por Rio de Contas que d. Fernando José
de Portugal, governador da capitania da Bahia, solicitou ao ministro e conselheiro real, d.
Rodrigo de Sousa Coutinho, em 5 de junho de 1799, a criação do cargo de juiz de fora em Rio
de Contas, em função da vila “ser a mais povoada da comarca [de Jacobina] e a mais
interessante pela lavoura do algodão e seu comércio”.88 Tal solicitação tinha como objetivo o
maior controle da Coroa portuguesa na política local, em virtude deste funcionário régio ter
atuação no comando e administração das câmaras locais.89 A solicitação foi atendida em 15
de janeiro de 1810, quando o então príncipe regente d. João concedeu o alvará que autorizou a
criação deste importante cargo nesta vila dos sertões de cima.90 A atuação dos juízes de fora
na condução dos negócios da vila, como veremos a adiante, foi um foco de disputas com os
grupos políticos locais.
Tanto os viajantes bávaros Spix e Martius quanto d. Fernando José de Portugal
ressaltaram a importância do cultivo do algodão na região. A produção têxtil inglesa,
beneficiada pela revolução industrial, necessitava de grandes quantidades de matéria-prima, o
que favoreceu a cotonicultura desde o último quartel do século XVIII. Mesmo inferior ao
algodão produzido em outras regiões, o alto preço do produto no mercado internacional
trouxe fôlego novo à economia de Rio de Contas e das vilas circunvizinhas.91 Como bem
observou Caio Prado Junior, “nos altos sertões limítrofes da Bahia e de Minas Gerais forma-
se uma região algodoeira de certa importância” que “abrira perspectivas agrícolas para zonas
que até aí só tinham conhecido o pastoreio ou a mineração”.92
O desenvolvimento tecnológico (com a invenção da máquina de descaroçar o algodão
pelos estadunidenses em 1793) e o excesso de oferta da fibra algodoeira no mercado
internacional (ocasionada também pela grande produção do sul dos EUA) contribuíram para
que o preço do produto caísse. Ao estudar a economia colonial, Roberto C. Simonsen apontou
88
ABN. Ofício do Governador d. Fernando José de Portugal para d. Rodrigo de Sousa Coutinho, no qual se
refere à prisão de um grupo de facínoras. Rio de Janeiro, 1916, v. 36, p. 145-146.
89
Durante o período colonial e até os primeiros anos do Império, as funções judiciais confundiam-se com as
funções administrativas e, também, com as policiais. O cargo de juiz de fora foi criado na América portuguesa
em 1696, sendo nomeado pelo rei para mandatos de três anos. Além das funções administrativas das Câmaras,
competia-lhes processar julgar os feitos cíveis e criminais, além de poderem proceder devassas especiais. Este
funcionário régio tinha também como atribuição a fiscalização das atividades desenvolvidas pelos alcaides-
mores e alcaides-pequenos. Na ausência do juiz de fora, a substituição temporária era feita pelo vereador mais
velho. FERREIRA, Vieira. Juizes e Tribunaes do Primeiro Imperio e da Regencia. (Boletim do IHGB). Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1937, p. 6; SALGADO, Graça (Org.). Fiscais e meirinhos: a administração no
Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 59; 261-262.
90
Alvará de 15 de janeiro de 1810. In: BRASIL. Collecção das Leis do Brazil de 1810. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1891, p. 5.
91
Sobre a qualidade do algodão produzido na Bahia, ver SPIX, Johann Baptist von e MARTIUS, Carl Friedrich
Philipp von. Viagem pelo Brasil..., p. 181.
92
PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo..., p. 158.
36
a constante queda dos preços do algodão na Bolsa de Amsterdã às vésperas da ruptura política
entre o Brasil e Portugal: em 1816, a arroba custava 8$000 (oito mil réis); cinco anos depois,
em 1821, o preço da arroba caiu para 4$500 (quatro mil e quinhentos reis), uma queda de
43,75%.93 O declínio dos preços do algodão intensificou-se ainda mais nos mercados
europeus a partir de 1822.94
Como os custos de transporte da produção algodoeira dos sertões de cima para a
capital baiana eram bastante altos, a queda dos preços foi extremamente prejudicial a toda
cadeia produtiva do algodão.95 Pequenos e grandes produtores da fibra, negociantes,
comerciantes e tropeiros foram afetados. A crise econômica se instalou na vila de Rio de
Contas e seu termo na década de 1820 e se intensificou ainda mais por conta da crise política
instaurada com a desagregação do Antigo Regime na América portuguesa.
Mesmo com as dificuldades apresentadas, Rio de Contas era um importante centro
econômico dos sertões baianos nas primeiras décadas do século XIX. Ainda que as secas
assolassem seus territórios, a manutenção da produção de gêneros agrícolas de forma
estruturada era uma característica da região, o que nos permite afirmar que se tratava de uma
economia dinâmica e diversificada, baseada no trabalho escravo, mas, também, com a
presença de homens livres pobres em diversas atividades econômicas.
O novo contexto político marcado pela chegada da Família Real e sua Corte trouxe
mudanças para a América portuguesa. O deslocamento do centro de poder do Império
português de Lisboa para o Rio de Janeiro, a eliminação dos entraves econômicos com o fim
do exclusivo comercial (ambos em 1808) e a transformação do estatuto político que
demarcava o antigo domínio colonial para a condição de Reino Unido a Portugal e Algarves
(1815) foram algumas das mudanças observadas. A transferência das estruturas jurídico-
político-administrativas do Estado português para o território americano propiciou uma nova
configuração política que favoreceu as elites regionais e locais. Estes grupos sociais, inseridos
93
SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil: 1500-1820. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 474.
Tais dados também foram citados por João Luís Fragoso, que apresentou um resultado levemente diferente
(43,6%). Cf. FRAGOSO, João Luís. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do
Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 16.
94
NORMANO, J. F. Evolução Econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975, p. 49. Após
este período, um novo impulso à exportação do algodão brasileiro ocorreu durante a Guerra Civil americana.
95
NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja..., p. 192-193.
37
num processo de aprendizado político, não estavam interessados em se desvincular dessa nova
realidade.
A transmigração da Corte gerou insatisfações em vários setores sociais em Portugal.
Em 24 de agosto de 1820, eclodiu, na cidade do Porto, um movimento de cunho liberal e
constitucional, que questionou a legitimidade do sistema absolutista do rei d. João VI ao
submetê-lo às Cortes convocadas para a elaboração de uma Constituição que deveria reger o
Império português. Várias juntas de governo que apoiavam Lisboa foram instituídas, inclusive
na Bahia. Essa Junta Provisória de Governo, estabelecida em Salvador em 10 de fevereiro de
1821, reconheceu o movimento constitucional-liberal vintista e enviou, tempos depois, oito
deputados para as Cortes, entre eles Cipriano José Barata de Almeida, Francisco Agostinho
Gomes e Luís Paulino de Oliveira Pinto da França.96
A mudança nas estruturas políticas a partir da Revolução do Porto marcou a vida
política da “nação portuguesa” dos dois lados do Atlântico. As elites que compunham a
sociedade baiana, formadas por proprietários de terras, grandes negociantes e militares,
tornaram-se “revolucionárias” quando aderiram ao movimento vintista e ao projeto de
monarquia constitucional, mas tiveram uma forte decepção quando perceberam que os
deputados portugueses reunidos em Lisboa pretendiam elaborar medidas restritivas ao Reino
do Brasil. O recrudescimento das ações das Cortes e os impasses criados com o então príncipe
regente Pedro de Alcântara deflagraram conflitos em várias regiões, sendo a Bahia uma delas.
No decorrer de 1821, vieram à tona insatisfações em relação às posturas adotadas
pela Junta Provisória de Governo estabelecida em Salvador. Alguns dos descontentamentos
manifestados foram a instalação de uma comissão de censura para os jornais, a continuidade
dos problemas relacionados ao abastecimento e, também, a deficiência da instrução pública.
Tais questões frustraram as pretensões de segmentos da população soteropolitana, que
acreditava na possibilidade de materialização dos ideais emanados do liberalismo português e
da Revolução do Porto em solo americano.97
Os eventos de fevereiro de 1822 na Bahia, em decorrência da nomeação do
brigadeiro Inácio Luís Madeira de Melo para o governo das Armas, insuflaram os ânimos da
população e provocaram o êxodo para o Recôncavo. O controle de Salvador pelas tropas
lusitanas deu início a uma série de escaramuças e batalhas entre o Exército português e as
96
Sobre a atuação dos deputados baianos e brasileiros nas Cortes, ver: BERBEL, Márcia Regina. A nação como
artefato: deputados do Brasil nas cortes portuguesas. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 1999.
97
Para uma análise das insatisfações contra os representantes durante o governo constitucional na Bahia, ver:
SILVA, Marcelo Renato Siquara. Independência ou morte em Salvador: o cotidiano da capital no contexto do
processo de independência brasileiro (1821-1823). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da
Bahia. Salvador. 2012.
38
forças lideradas pelas elites políticas das vilas do Recôncavo que pretendiam retomar a capital
da Província.
As juntas governativas, ou juntas temporárias de governo, foram constituídas nas
vilas do interior da Bahia a partir de junho de 1822, com o objetivo de reconhecer a regência
do príncipe d. Pedro e, também, imbuída de algumas atribuições administrativas em virtude
de Salvador ter sido ocupada pelas tropas portuguesas comandadas pelo governador das
Armas Madeira de Melo. As juntas locais, no contexto da desagregação do Império Luso-
americano, além de se constituir como uma expressão institucional do poder local,
“representavam uma importante mudança político-administrativa e refletiram, em sua
composição e em seu modo de atuação, as especificidades dos espaços nos quais iam sendo
criadas”.98
Enquanto entes jurídicos, as juntas governativas não foram constituídas para
substituir a administração das câmaras nas vilas. As câmaras continuaram sendo responsáveis
pelas atividades de governança, tendo as juntas assumido um papel político mais amplo nas
províncias até a sua extinção, através da Lei Imperial de 20 de outubro de 1823. Ademais, os
homens bons das câmaras poderiam ser membros das juntas governativas e vice-versa.
Espaços de exercício do poder local, as câmaras tiveram um papel fundamental durante o
período colonial e, também, no processo de ruptura política entre o Brasil e Portugal, à
medida que seus vereadores tomaram parte nas disputas políticas e aderiram ao poder
emanado pela Corte no Rio de Janeiro.99
Na vila de Cachoeira formou-se, em 6 de setembro de 1822, o Conselho Interino de
Governo, que articulou as ações contra as tropas de Madeira de Melo e que, além disso,
manteve contato permanente com a Corte no Rio de Janeiro. Este comando reuniu
representantes das diversas vilas do Recôncavo que haviam reconhecido d. Pedro como
Regente Constitucional do Brasil desde os fins de junho de 1822. Durante o conflito, o
Conselho Interino “exerceu enérgica e constante ação política, militar e administrativa desde a
sua instalação” e “procurou manter-se governo ao longo da campanha militar para expulsar o
Exército português da cidade do Salvador”.100
A chegada do francês Pedro Labatut ao palco de guerra mudou o curso das ações
belicosas na Bahia. Além do ultimato para que as tropas de Madeira de Melo desocupassem
98
BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São
Paulo: HUCITEC; Recife: UFPE, 2006, p. 317.
99
Sobre o papel das câmaras municipais e, em especial a de Salvador, ver: SOUSA, Avanete Pereira. Poder
político local e vida cotidiana: a Câmara Municipal da cidade de Salvador no século XVIII. Vitória da
Conquista: UESB, 2013.
100
TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia..., p. 237.
39
Salvador, o general Labatut trouxe ordens expressas para transformar aqueles grupos armados
sob o comando do Conselho Interino em “um exército disciplinado, leal ao novo Império do
Brasil, em condições operacionais de vencer o exército do Madeira”.101
Labatut comandou o Exército Pacificador durante grande parte da campanha militar e
permaneceu na liderança das tropas até que uma conspiração organizada pelos comandantes
do seu próprio exército o depôs do comando, sendo preso em 24 de maio de 1823 – mesmo
com o sucesso militar alcançado. A vitória das tropas foi concretizada em 2 de julho de 1823,
com a entrada do Exército Pacificador em Salvador após a retirada das tropas de Madeira de
Melo.102
Para que os baianos triunfassem nas batalhas contra o exército português comandado
por Madeira de Melo foi necessário que as vilas do interior da província contribuíssem com
auxílio financeiro, armas, munições e víveres para as áreas em guerra, além de participarem
ativamente com o envio de homens que se engajaram nas ações pela retomada da capital.103
Entre essas vilas, estava presente a de Rio de Contas.
O conflito potencializou as tensões sociais existentes na região e expressou-se na
construção de novas identidades políticas no âmbito de sua tessitura social. Como já dito, no
processo de formação do Estado e da nação no Brasil, tais identidades não correspondiam
necessariamente ao local de nascimento dos indivíduos envolvidos, referindo-se mais às suas
ações, seus posicionamentos políticos e às alianças estabelecidas. Para a (re)elaboração destas
identidades, a imprensa exerceu papel fundamental.
101
ARAUJO, Ubiratan Castro de. A Guerra da Bahia. Salvador: Ceao, 2001, p. 47.
102
Para discussões acerca do processo de Independência da Bahia, ver: TAVARES, Luís Henrique Dias.
Independência do Brasil na Bahia. Salvador: EDUFBA, 2005; ARAUJO, Ubiratan Castro de. A Guerra da
Bahia...; WISIAK, Thomas. Itinerário da Bahia na Independência do Brasil (1821-1823). In: JANCSÓ, István
(org). Independência: História e Historiografia. São Paulo: Hucitec, Fapesp, 2005, p. 447-474.
103
SOUZA FILHO, Argemiro Ribeiro de. A Guerra da Independência da Bahia...
104
MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro de. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no
Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 7.
40
novo vocabulário político, do qual faziam parte termos como nação, pátria, constituição,
liberdade, entre outros.
O ano de 1808, além de marcar a chegada da Família Real em solo americano, se
destacou também por ser o início das atividades da imprensa periódica na América
portuguesa.105 Mesmo com a baixa alfabetização no século XIX, é preciso ter cautela ao
caracterizar a imprensa como “elitista”, pois as práticas de leitura coletiva em papéis
manuscritos já faziam parte do cotidiano da população desde período colonial, tendo os
periódicos impressos potencializado tais práticas. Nesse contexto, Andréa Slemian e João
Paulo Garrido Pimenta observam que
Portanto, não seria exagero afirmar que nos oitocentos, por mais remota que fosse a
região, a palavra impressa se fazia presente como instrumento político em leituras privadas ou
ao ser lida coletivamente. Dessa forma, a imprensa periódica foi uma “força ativa na história”
por ter ajudado a dar forma aos eventos que registrou e, também, por ter propagado para as
diversas localidades os acontecimentos dos principais centros urbanos ocorridos durante o
Primeiro Reinado.107 Em Rio de Contas, os periódicos publicados na capital da Província
105
O primeiro jornal publicado na Corte pela Imprensa Régia foi a Gazeta do Rio de Janeiro, dirigido pelo frei
Tibúrcio José da Rocha. Sua primeira edição foi lançada em 10 de setembro de 1808. Veículo oficial do governo
sem atrativos para o público, a Gazeta do Rio de Janeiro foi um periódico mais voltado para os acontecimentos
europeus do que uma reflexão sobre os problemas da América portuguesa. Três meses antes da publicação da
Gazeta do Rio de Janeiro, Hipólito José da Costa fundou em Londres o Correio Braziliense, que circulou
clandestinamente em solo americano entre 1808 e 1822. Livre da censura, o Correio Braziliense criticava
abertamente as ações da Coroa no Brasil, apesar de também possuir uma postura monarquista. Cf. SODRÉ,
Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. p. 22-29. Da
mesma forma que no Rio de Janeiro, a censura política também se apresentava na Bahia, interferindo nas
notícias veiculadas em A Idade d’Ouro do Brazil, segundo periódico publicado na colônia. O português Manuel
Antônio da Silva Serva recebeu autorização real em 5 de fevereiro de 1811 para instalar uma tipografia em
Salvador. Três meses depois, a Idade d’Ouro já estava em circulação. O Conde dos Arcos, então governador da
Bahia, elaborou uma série de diretrizes que deveriam nortear o redator do periódico. Dentre os princípios a
serem seguidos, um ressaltava que as notícias políticas deveriam ser apresentadas “[...] sempre de maneira mais
singela, anunciando simplesmente os fatos, sem interpor quaisquer reflexões que tendam direta ou indiretamente
a dar qualquer inflexão à opinião pública”. In: CASTRO, Renato Berbert de. A primeira imprensa da Bahia e
suas publicações: tipografia de Manuel Antonio da Silva Serva, 1811-1819. Salvador: Imprensa Oficial, 1969, p.
27.
106
SLEMIAN, Andréa; PIMENTA, João Paulo G. O “nascimento político” do Brasil: as origens do Estado e da
nação (1808-1825). Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 45-46.
107
Sobre o papel da imprensa como “força ativa na história”, ver: DARNTON, Robert; ROCHE, Daniel (Org.).
A Revolução Impressa: a imprensa na França, 1775-1800. São Paulo: Edusp, 1996, p. 15.
41
contribuíram para a constituição da junta local a partir dos embates entre os soldados das vilas
do Recôncavo e as tropas sitiadas em Salvador comandadas por Madeira de Melo.
Para análise dos acontecimentos da vila de Rio de Contas desse período, dispomos
das correspondências trocadas entre o Conselho Interino de Governo e a junta rio-contense,
além da representação encaminhada em novembro de 1822 ao mesmo Conselho Interino por
indivíduos que eram contra as lideranças da junta local e que se autodenominavam
brasileiros.
Ao confrontar as duas versões dos fatos narrados, pretendemos apresentar nossa
interpretação, relacionando-os com os acontecimentos em curso no Recôncavo e na Corte do
Rio de Janeiro. No desenrolar dos fatos, novas identidades políticas foram forjadas, pois “ser
português” ganhou um novo significado e “ser brasileiro” foi proposto enquanto uma nova
identidade coletiva. No processo de (re)elaboração destas identidades a imprensa periódica
exerceu relevante papel, principalmente no que diz respeito à circulação e divulgação de
ideias.108
A Junta Temporária de Rio de Contas foi estabelecida em 14 de agosto de 1822
mediante o uso da força, sob a égide daqueles que, meses depois, foram apontados como
componentes do partido europeu (ou português).109 Posteriormente, alguns indivíduos
nascidos na região, que também apoiaram a constituição da junta local, se agruparam
politicamente e se autodenominaram brasileiros – o que indica a fluidez das identidades
políticas no processo de desagregação do Império americano.
Em correspondência ao Conselho Interino de Governo, a junta rio-contense explicou
que os relatos sobre a aclamação de d. Pedro como “Regente Constitucional do Brasil”,
realizada em Cachoeira, chegaram a Rio de Contas em 20 de julho de 1822, acompanhados
das edições de “O Constitucional número trinta e sete e o Semanário Cívico número sessenta
e seis [...] [indicando também] a notícia das aclamações do Rio de Janeiro e de Pernambuco”.
108
Para Benedict Anderson, o desenvolvimento da imprensa como mercadoria, fenômeno que denominou
capitalismo editorial, contribuiu para a criação do “vínculo imaginário” entre os indivíduos e,
consequentemente, para a constituição da “consciência nacional”, a partir do momento que milhares de pessoas,
conectadas “através da letra impressa, constituíram, na sua invisibilidade visível, secular e particular, o embrião
da comunidade nacionalmente imaginada”. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas..., p. 80, passim.
109
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 19 (antigo
maço 638-2), série Correspondências, documento 65. Correspondência de 18 de outubro de 1822. Sobre as
expressões partido europeu e brasileiro, cabem duas ressalvas: (1) o termo “partido”, no sentido utilizado à
época, não corresponde à sua acepção atual, que se refere a uma agremiação política formal. Podemos entendê-
lo, no início do século XIX, como um grupo detentor de certa coesão (mas não homogêneo), ou mesmo uma
corrente de opinião, no qual os interesses em jogo conferiam a tônica das alianças estabelecidas. Partilhar ideias
e interesses, “tomar um partido”, conferia a estes indivíduos uma identidade política; (2) no decorrer da década
de 1820, a expressão partido português passou a ser utilizada ao invés de partido europeu, pois até então todos
os nascidos no Reino do Brasil consideravam-se “portugueses da América”, sendo os nascidos na metrópole
chamados de portugueses europeus.
42
Segundo os componentes da Junta, o povo da vila, cheio “do mais patriótico entusiasmo”,
pretendeu fazer a mesma aclamação. No entanto, esta não ocorreu por ter sido impedida pelo
juiz de fora Miguel Joaquim de Castro Mascarenhas.110
Ainda de acordo com a correspondência encaminhada ao Conselho Interino, a
aclamação somente foi realizada em 14 de agosto, quando a vila teria sido cercada por 500
homens armados que ali estariam para garantir a realização do ato. Nesse mesmo dia, a Junta
Temporária de Rio de Contas foi constituída. Assumiu sua presidência o tenente-coronel
Joaquim Pereira de Castro que, como já vimos, era proprietário de terras, procurador da Casa
da Ponte e, aquela altura, quase um octogenário. Em sua companhia, outros indivíduos
oriundos da região: o bacharel, recém-chegado de Coimbra, Joaquim José Ribeiro de
Magalhães e o sargento-mor das ordenanças Antonio Rocha de Bastos,111 ambos como
secretários. Também participaram da junta local, como vogais, o capitão José Valentim de
Souza e o português Antônio de Souza de Oliveira Guimarães. 112 A composição do órgão
deliberativo, assim como daqueles que conferiam apoio às suas ações, era majoritariamente de
portugueses natos, além de alguns aliados nascidos na região que tinham interesses
vinculados aos dos lusitanos.
Constata-se, assim, que entre a chegada dos periódicos impressos e a formação da
Junta Temporária de Rio de Contas, os relatos sobre os acontecimentos do Recôncavo e as
notícias veiculadas nos jornais motivaram os portugueses natos, com apoio de alguns nascidos
na região, a reconhecerem d. Pedro como “Regente Constitucional”. Estas, pelo menos, foram
as motivações apresentadas ao Conselho Interino de Governo por aqueles que estavam à
frente da junta local. No entanto, as tensões sociais existentes no restante da Província e,
também, em Rio de Contas, apontam que estes eventos foram bem mais complexos.
Os jornais O Constitucional113 e Semanário Cívico,114 apesar de possuírem
posicionamentos contrários, delinearam um cenário dramático que repercutiu na estrutura
110
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 19 (antigo
maço 638-2), série Correspondências, documento 65. Correspondência de 18 de outubro de 1822.
111
As Companhias de Ordenanças eram tropas auxiliares, organizadas no período colonial, composta pela
população local e encarregadas da manutenção da ordem interna das capitanias/províncias, não recebendo
pagamento pelo desempenho de tal função. Esta instituição, de caráter militar, foi extinta em 1831, com a criação
da Guarda Nacional. Cada ordenança possuía seu capitão-mor, que era auxiliado pelo sargento-mor e demais
capitães. SALGADO, Graça (Org.). Fiscais e meirinhos..., p. 97-8; MELO, Osvaldo Ferreira de. Glossário de
instituições vigentes no Brasil-Colônia e Brasil-Império. Brasília: OAB, 2004, p. 64.
112
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 19 (antigo
maço 638-2), série Correspondências, documento 65. Correspondência de 18 de outubro de 1822.
113
O Constitucional (anteriormente denominado Diário Constitucional) foi o jornal que se conservou leal ao
príncipe d. Pedro e ao projeto de autonomia do Reino do Brasil após a Revolução do Porto. Publicado entre 1821
e 1822, este periódico teve como um dos seus redatores Francisco Gomes Brandão Montezuma que,
posteriormente, exerceu papel de destaque no Conselho Interino e na vida política do Império. Maria Beatriz
43
Nizza da Silva afirma que este periódico não defendeu a Independência do Brasil, mas a existência da ligação
entre a Bahia e o Rio de Janeiro, sendo a Corte carioca o centro político e administrativo com d. Pedro enquanto
regente. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Diário Constitucional: um periódico baiano defensor de d. Pedro –
1822. Salvador: EDUFBA: 2011.
114
O Semanário Cívico, publicação que circulou na Bahia entre 1821 e 1823, teve como único redator o
comerciante português Joaquim José da Silva Maia, natural da cidade do Porto. Nas palavras do próprio Silva
Maia, o Semanário tinha como missão “não só instruir o povo e dirigir-lhe a opinião para os verdadeiros
princípios constitucionais”, mas também “desmascarar a impostura” e “fazer calar a calúnia” sobre os cidadãos
honrados (Semanário Cívico, nº 23, 2 de agosto de 1821. p. 3). Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, este
periódico apoiou Madeira de Mello e posicionou-se contra o governo do Rio de Janeiro, sendo o mais combatido
pela imprensa carioca. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Semanário Cívico: Bahia, 1821-1823. Salvador:
EDUFBA, 2008.
115
O Constitucional, nº 37, 3 de julho de 1822. p. 2.
116
Semanário Cívico, nº 66, 5 de junho de 1822. p. 1. Luís Henrique Dias Tavares destacou que os ataques do
Semanário Cívico à Junta de Pernambuco se davam porque este órgão governativo buscou firmar uma autonomia
de Pernambuco tanto em relação às Cortes de Lisboa quanto ao governo do Rio de Janeiro. TAVARES, Luís
Henrique Dias. Independência do Brasil na Bahia..., p. 84.
117
FRANÇA, Antonio D’Oliveira Pinto da (Org.). Cartas baianas, 1821-1824: subsídios para o estudo dos
problemas da opção na independência brasileira. São Paulo: Nacional; Rio de Janeiro: UERJ, 1980, p. 54.
Correspondência de 12 de maio de 1822.
44
decreto das Cortes, de outubro de 1821, que exigiu seu retorno para a Europa. No entanto,
mesmo a presença do príncipe d. Pedro em solo americano não diminuiu as tensões sociais
existentes no Reino do Brasil.
As rivalidades entre portugueses natos e baianos não se restringiam apenas a
Salvador e ao Recôncavo. Em virtude disso, os componentes da junta rio-contense
almejavam, a partir da constituição daquela instância de poder local, atuar na conservação da
“harmonia social com todos os portugueses ultramarinos, domiciliados no Brasil” e, se fosse
necessário, “unir-se à província de Minas [Gerais], que esta[va] de posse da liberdade”.118
Tais aspirações vinculavam-se aos relatos vindos do Recôncavo e, também, aos fatos
veiculados pelos jornais O Constitucional e o Semanário Cívico.
Acreditamos que as notícias e relatos referentes à perseguição dos portugueses
europeus poderiam, no entendimento daqueles que detinham o poder político e econômico em
Rio de Contas, contribuir para que segmentos da população rio-contense realizassem a
aclamação de d. Pedro e mudar o status quo na região. Como em toda a América portuguesa,
os lusitanos exerciam papel de destaque na estrutura político-administrativa de Rio de Contas,
além de serem grandes proprietários de terras. Por isso, para não perderem o prestígio político
que detinham naquele espaço regional, conduziram na vila o movimento que culminou na
adesão ao príncipe regente. Seguiram, assim, a máxima do escrito italiano Giuseppe Tomasi
di Lampedusa: “Se quisermos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”.119
Com base na versão apresentada ao Conselho Interino pelos componentes da junta
rio-contense, Ladislau dos Santos Titara, em seu poema épico “Paraguassú”, eternizou, em
alguns versos, os acontecimentos que envolveram a constituição da Junta de Rio de Contas:
118
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 03 (antigo
maço 633-3), documento 75. Traslado do Requerimento encaminhado à Câmara em 14 de agosto de 1822.
119
Numa tradução livre do original: “se vogliamo che tutto rimanga com’è, bisogna che tutto cambi”.
LAMPEDUSA. Giuseppe Tomasi di. Il Gattopardo. Milão: Feltrinelli, 1962. p. 42.
120
TITARA, Ladislau dos Santos. Paraguassu: epopéia da guerra da independência da Bahia. São Paulo: Brasil
Ed., 1973. p. 224.
121
Ibidem, p. 263.
45
122
Titara, que provavelmente escreveu tais versos baseados em relatos, não revelou a identidade de Castro
Mascarenhas, indicando-o apenas como um “brasileiro que ali exercia magistratura”. TITARA, Ladislau dos
Santos. Paraguassu..., p. 224.
123
Representação dos habitantes da vila do Rio de Contas ao Conselho Interino. In: MELLO MORAES,
Alexandre José de. História do Brasil-Reino e do Brasil-Império. Rio de Janeiro: Typ. de Pinheiro e Companhia.
1873. Tomo II. p. 31-34. Em 1982, através de uma parceria, as editoras Itatiaia e Edusp lançaram uma nova
edição do referido livro de Mello Moraes (em dois volumes) que contemplou somente o primeiro tomo da obra,
publicado originalmente em 1871. O segundo tomo, publicado em 1873, não foi incluído na referida edição. Cf.:
MELLO MORAES, Alexandre José de. História do Brasil-Reino e do Brasil-Império. Belo Horizonte: Itatiaia;
São Paulo: Edusp, 1982. Tomos I e II.
46
A situação dos homens livres pobres era mais complexa; fossem brancos, mestiços
ou libertos, sentiam os grandes problemas causados pela exclusão social de seu tempo. Sabe-
se que nem todos eles participavam espontaneamente das disputas políticas em curso na vila
de Rio de Contas. Os potentados locais (composto por nascidos na região e portugueses natos)
exerciam sua forte dominação pessoal para arregimentá-los e submetê-los aos seus interesses,
em troca de uma suposta proteção ou a cessão de uma porção de terra para criação de gado e
cultivo de produtos agrícolas.
Para os livres pobres, a inserção nas “funções de governança” poderia até ser um
anseio, mas dificilmente foi vislumbrado por eles como uma possibilidade concreta em seus
horizontes políticos e sociais mais imediatos. No entanto, não podemos descartar a
possibilidade de que alguns homens livres pobres, cientes da realidade que os rodeava, se
esforçassem para fazer parte de uma luta política mais ampla, ingressando num movimento
detentor de ideias envolventes, organizado por segmentos da sociedade mais seguros de si e
conscientes de que aquele momento de instabilidade poderia representar uma oportunidade
para mudanças na tessitura social rio-contense, mesmo que, para isso, a violência também
fosse um recurso a ser utilizado.124
Segundo os brasileiros, o partido europeu impediu a aclamação de d. Pedro como
“Regente Constitucional do Brasil” que seria realizada em 20 de julho de 1822, mesmo sendo
o “sentimento manifestado pela vontade geral”. O juiz de fora Miguel Joaquim de Castro
Mascarenhas e o capitão-mor José Joaquim Casemiro de Novaes se achavam em diligência
pelo termo da vila e não poderiam participar da “feliz aclamação de Sua Alteza Real”
proposto pelos “honrados brasileiros de Rio de Contas”. Ainda de acordo com a representação
encaminhada ao Conselho Interino, tanto o juiz de fora quanto o capitão-mor eram inimigos
dos componentes do partido europeu.125
Os dias que precederam a realização da assembleia agendada pela Câmara para 14 de
agosto foram de articulação de ambos os lados. No entanto, a força daqueles que exerciam o
poder político em Rio de Contas foi mais forte. Conforme relatado, na data indicada, “o
partido europeu, de mistura com certos brasileiros, inocentes da futura cabala, [...] fizeram
124
No capítulo 2 desta dissertação será abordada a trajetória de José Joaquim Barbosa e os atos aos quais foi
acusado durante a exacerbação das disputas políticas entre brasileiros e portugueses em Rio de Contas nos anos
de 1822-23. Sobre a situação do livres pobres em Rio de Contas durante o século XIX, ver SANCHES, Nanci
Patrícia Lima. Os livres pobres sem patrão nas Minas do Rio de Contas/BA – Século XIX (1830-1870). 2008.
140f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.
125
Representação dos habitantes da vila do Rio de Contas ao Conselho Interino. In: MELLO MORAES,
Alexandre José de. História do Brasil-Reino..., p. 32.
47
126
Representação dos habitantes da vila do Rio de Contas ao Conselho Interino. In: MELLO MORAES,
Alexandre José de. História do Brasil-Reino..., p. 32.
127
Idem.
128
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 19 (antigo
638-2), série Correspondências, documento 65. Correspondência de 18 de outubro de 1822.
129
Representação dos habitantes da vila do Rio de Contas. In: MELLO MORAES, Alexandre José de. Op.cit., p.
32.
130
Idem.
131
Nascido na vila de Santo Amaro (Bahia) em 1788, o magistrado Miguel Joaquim de Castro Mascarenhas
graduou-se na Universidade de Coimbra em 1819, sendo nomeado por D. João VI juiz de fora em Minas do Rio
de Contas em 24 de junho de 1820. Foi alçado à Ministro do Supremo Tribunal de Justiça do Império em 1850,
além de ter atuado como Provedor da Alfândega de Morro de São Paulo (1823), Ouvidor da Comarca de Ilhéus
(1823), Desembargador da Relação em Pernambuco (1824) e Desembargador da Relação da Bahia (1831). Ver:
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. A junta governativa da Bahia e a Independência. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1975, p. 32-33; NASCIMENTO, Willian Vieira do; FONSECA, Jorge Ricardo Almeida. Baianos nos
Tribunais Superiores do Brasil (Da Casa de Suplicação ao Supremo Tribunal Federal). Salvador: Do Autor,
2008, p. 83-84; SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ministros. Supremo Tribunal de Justiça – Império.
132
Representação dos habitantes da vila do Rio de Contas. In: MELLO MORAES, Alexandre José de. História
do Brasil-Reino..., p. 32.
48
instalação e posse do Conselho Interino de Governo junto com outras 174 autoridades civis,
militares e eclesiásticas.133
Cabe discutir alguns acontecimentos em que tomou parte o juiz de fora Miguel
Joaquim de Castro Mascarenhas nos dias subsequentes à Revolução Constitucional na Bahia,
ocorrida no início de 1821, quando alguns segmentos sociais baianos aderiram aos ideais
revolucionários emanados da cidade do Porto contra o governo do Reino Unido de Portugal,
Brasil e Algarves, sediado no Rio de Janeiro.
Em 30 de março de 1821, uma representação encaminhada ao governo
revolucionário constitucional, estabelecido na capital baiana, narrou as repercussões dos
“gloriosos sucessos do memorável dia 10 de fevereiro [de 1821]”134 e acusou o referido
magistrado de várias arbitrariedades. Seu autor, o português e ex-escrivão da Câmara rio-
contense Joaquim de Souza Trepa, informou que o juiz de fora Castro Mascarenhas mandou
prender o mensageiro do correio José Afonso, responsável pela divulgação da “tão grata
notícia [que] acordou do sono em que jaziam os moradores” de Rio de Contas sobre a adoção
do sistema político constitucional em Salvador, onde “se proclamou a Constituição da
Espanha [Constituição de Cádiz], com as modificações mais liberais que lhe fizessem as
Cortes de Lisboa”.135
Conforme as denúncias do ex-escrivão, Castro Mascarenhas ainda mandou prender,
sob a acusação de desacato, o português e proprietário de terras Manoel de Almeida. Sem
conseguir incriminar o lusitano e com medo de que este pudesse persuadir a todos a tomar o
seu partido, o magistrado teria tentado assassiná-lo no interior da cadeia, mas não conseguiu
devido ao fato de a sua pistola ter falhado e, também, por conta da chegada de várias pessoas
que se dirigiram à prisão para impedir tal ato.136
Ainda de acordo com Souza Trepa, o juiz de fora almejou prendê-lo em virtude de
um jantar que este promoveu em homenagem ao “faustíssimo dia dez [de fevereiro de 1821]”
e ao novo regime político da Província.137 Os lusitanos que viviam em Rio de Contas
provavelmente perceberam os eventos ocorridos na capital baiana como parte da Regeneração
133
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 18 (antigo
638-1), série Atos Normativos, documento 02. Ata de 08 de setembro de 1822. No livro de “Atos Normativos”, a
assinatura de Miguel Joaquim de Castro Mascarenhas encontra-se na f. 6v e a de José Joaquim Casemiro de
Novais na f. 7.
134
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 09 (antigo
maço 637), série Correspondências, documento 53. Correspondência de 30 de março de 1821.
135
Idem.
136
Idem.
137
Idem.
49
do império portuguez138 – o que, para eles, enquanto reinóis, criava a expectativa de angariar
inúmeros benefícios. Como Souza Trepa foi avisado da chegada dos soldados que
executariam sua prisão, ele conseguiu escapar e refugiou-se em Salvador, onde solicitou que o
magistrado Castro Mascarenhas fosse “removido do lugar que ocupa tanto para poder-se
proclamar a Constituição, como para não continuarem os povos [de Rio de Contas] a
gemerem debaixo de sua férrea vara”.139
Como já abordado, a presença da Família Real no Brasil trouxe um novo cenário
político para a América portuguesa. Os nascidos em terras americanas, aos poucos,
começavam a ter maior espaço no jogo político, situação que se constituiu como uma ameaça
para aqueles que detinham o poder. Em Rio de Contas não foi diferente. Acreditamos que as
ações de Castro Mascarenhas como magistrado, desde sua nomeação em junho de 1820,
tenham incomodado o exercício do poder dos portugueses natos e de seus aliados políticos na
vila.
Durante o período que exerceu a magistratura em Rio de Contas, Castro Mascarenhas
conquistou inimigos poderosos, que atentariam contra a sua vida mais de uma vez. Entre fins
de 1821 e início de 1822, o magistrado teve que se afastar do exercício de suas atividades na
vila por conta de perseguições políticas de alguns grupos que atuavam “em prejuízo da boa
administração da justiça”, sendo reempossado no cargo pela Junta Provisória de Governo da
Bahia, conforme ofício de 18 de março de 1822, publicado no jornal Diário Constitucional.140
Em relação às atitudes de Castro Mascarenhas em fevereiro de 1821 (se é que de fato
aconteceram),141 uma possibilidade é que sua atuação, enquanto um agente externo da
dinâmica política local tenha incomodado o exercício do poder por aqueles poderosos homens
acostumados a se autogovernarem; ou, então, que suas atitudes tivessem sido um
posicionamento frente às disputas políticas locais.142 Como já observamos, somente após a
138
Gladys Sabina Ribeiro ressalta que o termo “regeneração”, à época, foi preferida à “revolução”, pois
designava o movimento iniciado na cidade do Porto. Ainda segundo Ribeiro, “‘revolução’ era um termo
raramente utilizado; quando mencionado, referia-se à maneira contra-revolucionária de ver os eventos levados à
cabo a partir de 1820, vinculando-os à radicalização e à destruição do Antigo Regime”. RIBEIRO, Gladys
Sabina. A liberdade em construção..., p. 111, nota 24; sobre as discussões acerca da Regeneração portugueza na
Bahia, ver RIBEIRO, Elisa de Moura. Entre adesões e rupturas: projetos e identidades políticas na Bahia (1808-
1824). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2012.
139
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 09 (antigo
maço 637), série Correspondências, documento 53. Correspondência de 30 de março de 1821.
140
Diário Constitucional, nº 36, 2 de abril de 1822, p. 1.
141
Não encontramos na documentação nenhum indicativo que as denúncias foram apuradas.
142
Segundo Maria Fernanda Bicalho, “o fato de [os juízes de paz] às vezes permanecerem por longos anos no
cargo – e não apenas o triênio, como em geral queriam seus regimentos – fazia com que estes magistrados se
imiscuíssem nos conflitos das facções locais, ou entre estas e o poder central, tomando partido dos interesses
locais”. BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 348.
50
143
Os naturalistas bávaros Spix e Martius ouviram relatos que os “valentões” eram indivíduos “aventureiros,
que, deserdados ou empobrecidos, ora levados pelo desespero, ora pela inclinação ao banditismo, vaga[va]m
pelo sertão praticando perversidade de toda a espécie, quer a serviço de outros, quer por conta própria, e
escapa[va]m ao castigo da justiça, às vezes por muito tempo, graças ao conhecimento exato da região e ao
auxílio de parentes e aliados”. SPIX, Johann Baptist von e MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Viagem pelo
Brasil ..., p. 133.
144
Expressão utilizada pelo Conselho Interino para se referir às diversas juntas temporárias existentes no interior
da província, conforme indicado numa correspondência com a Junta Temporária de Rio de Contas. APEB. Seção
de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 17, série Correspondências,
documento 03. Correspondência de 30 de setembro de 1822.
51
solicitar “a ratificação do governo instalado pelo povo”,145 entre outros pedidos que serão
abordados adiante. O segundo, não menos importante, foi o envio de uma correspondência à
Câmara da Vila Nova do Príncipe de Sant’Ana de Caetité, que indicava a intenção de pedir à
Sua Alteza Real algo que seria de grande relevância para a população dos sertões de cima.146
A presença do secretário e procurador da junta rio-contense Joaquim José Ribeiro de
Magalhães perante a Corte no Rio de Janeiro tinha intenções mais ambiciosas do que somente
garantir a autonomia em relação ao Conselho Interino. A representação da qual este era o
portador, datada de 3 de setembro de 1822, fazia uma séria crítica ao governo da província da
Bahia e solicitava o não recolhimento dos impostos devidos pela vila de Rio de Contas,
“porque a nossa capital nada mais quer do que extorquir estes dinheiros, e nada de pagar aos
empregados públicos desta vila” além de não atuar nos “consertos de estradas, pontes [e]
canais para facilidade do comércio interno”.147 Investimentos desse tipo, para os componentes
da junta rio-contense, contribuíam para o progresso e faziam parte das aplicações da fazenda
nacional, sem contar que “dando emprego à multiplicidade de braços que nele se ocupam,
aumentam a indústria, favorecendo a classe indigente”.148
As principais críticas da representação encaminhada pela junta rio-contense eram
direcionadas aos ouvidores de comarca.149 Para descontentamento daquelas lideranças, a vila
145
Representação da Junta Temporária de Minas do Rio de Contas ao Governo Central do Rio de Janeiro. In:
MELLO MORAES, Alexandre José de. História do Brasil-Reino..., p. 3.
146
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 19 (antigo
638-2), série Correspondências, documento 10. Correspondência de 22 de agosto de 1822.
147
Representação da Junta Temporária de Minas do Rio de Contas ao governo central do Rio de Janeiro. In:
MELLO MORAES, Alexandre José de. Op.cit., p. 3-4. As fontes não informam quando Joaquim José Ribeiro de
Magalhães chegou à Corte, mas acreditamos que tenha sido em meados de outubro de 1822, pois a viagem para
o Rio de Janeiro através do norte de Minas Gerais durava cerca de 30 dias de marcha contínua. Afirmamos isso
com base no percurso percorrido em 1822 por José Egídio Gordilho de Barbuda (futuro visconde de Camamu e
presidente da província da Bahia entre 1827 e 1830), que fez o trajeto do Rio de Janeiro à Cachoeira-BA em 57
dias (46 dias de marcha e 11 dias de paradas forçadas em vários pontos), tendo passado pela província de Minas
Gerais e pelas vilas de Rio de Contas e Caetité. Ver: Correspondência enviada por José Egídio Gordilho Veloso
de Barbuda à José Bonifácio de Andrada e Silva, de 19 de dezembro de 1822. In: ALAGOAS, Comissão
Executivo dos Festejos do Sesquicentenário da Independência do Brasil; IHGA – INSTITUTO HISTÓRICO E
GEOGRÁFICO DE ALAGOAS (Org.). Documentos para a história da Independência. Recife: Ed.
Universitária da UFPE, 1972, p. 132-134.
148
Representação da Junta Temporária de Minas do Rio de Contas ao governo central do Rio de Janeiro. In:
MELLO MORAES, Alexandre José de. Op.cit., p. 3-4.
149
Os ouvidores de comarca eram magistrados nomeados pela Coroa para mandatos de três anos. Além de
funções meramente administrativas, eram também responsáveis por: atuar nas suspeições das quais os juízes
ordinários e de fora fossem suspeitos; atuar, em ações civis e criminais em que uma das partes fossem juízes,
alcaides, procuradores, tabeliães, fidalgos, abades, priores e pessoas poderosas; proceder ou suspender devassas,
com atuação em tudo que fosse necessário na ausência dos intendentes, caso estes existissem; ordenar prisão de
criminosos; inspecionar prisões; comunicar aos prelados clérigos que possuíam mau comportamento; examinar
se os forais referentes à impostos, pedágios e multas de cada localidade estavam corretos, com o intuito de
recuperá-los caso houvesse usurpação dos direitos da Coroa; anular as posturas elaboradas pelas Câmaras, entre
outras atividades. Em vilas em que existisse atividade mineradora, como em Minas do Rio de Contas, a alçada
dos ouvidores era superior que as de outras comarcas. Ver: FERREIRA, Vieira. Juizes e Tribunaes do Primeiro
Imperio..., p. 7-8.
52
de Rio de Contas fazia parte da Comarca de Jacobina, distante cerca de cem léguas através de
um caminho “péssimo, com travessias despovoadas e sem [disponibilidade de] água”, além
de, segundo eles, inexistirem relações comerciais entre as duas vilas. 150 Sob a alegação de que
se somassem os vinte mil habitantes existentes na vila e seu termo com a população residente
em Santo Antonio do Urubu (atual Paratinga) e, também, de Caetité, os componentes da Junta
pleitearam a criação de uma nova comarca, “já que a população das três é mais do que
suficientemente considerável” para a concretização de tal ato.151 Tanto que, como alegaram,
em 1821 havia sido solicitado ao governo constitucional da cidade da Bahia (Salvador) que
levassem tal pedido às Cortes em Lisboa, da qual não obtiveram resposta.152
A grande dimensão da comarca de Jacobina já havia chamado a atenção do padre
Aires de Casal. Em 1817, o clérigo indicou que seria “natural” que esta comarca “pela sua
[grande] extensão venha a ser repartida em duas, quando a multiplicação dos povoadores tiver
multiplicado as povoações, ficando a vila de Rio de Contas cabeça da comarca futura”.153
Como uma resposta não foi dada pelo governo constitucional que apoiava as Cortes
em Salvador, Rio de Contas permaneceu vinculada à comarca de Jacobina e aos seus
ouvidores, que na concepção da junta rio-contense eram
[...] devoradoras harpias do suco e sangue humano, pois o que é dotado de mais
humanidade tira da comarca [de] trinta a quarenta mil cruzados, dinheiro este que
não [re]torna, ficando a comarca em pior estado do que a achou. E isto não quer
dizer que não queremos magistrados; queremos, mas que sejam executores das leis e
não transgressores delas, e [queremos também] uma junta que vigie [...] os abusos
desses magistrados, e uma Câmara bem organizada em todas as vilas, para a pronta e
150
Representação da Junta Temporária de Minas do Rio de Contas ao governo central do Rio de Janeiro. In:
MELLO MORAES, Alexandre José de. História do Brasil-Reino..., p. 4. Até meados do século XIX, o principal
caminho que ligava Rio de Contas e Jacobina era a Estrada Real, obra concluída em 1725 sob a condução de
Pedro Barbosa Leal, que fundou ambas as vilas. Segundo Maria Cristina Dantas Pina e Antonieta Miguel, a
construção dessa estrada “significou, além de via comercial, a possibilidade de fixação de populações ao longo
do seu curso e criação de pontos de apoio para viajantes, estabelecendo novas alternativas de aglomeramentos
populacionais”. PINA, Maria Cristina Dantas; MIGUEL, Antonieta. Rota de Jacobina a Rio de Contas.
Apresentação (e notas): a Estrada Real. In: NEVES, Erivaldo Fagundes; MIGUEL, Antonieta (Org.). Caminhos
do Sertão: ocupação territorial, sistema viário e intercâmbios coloniais dos sertões da Bahia. Salvador: Arcádia,
2007, p. 79. Este caminho foi percorrido em 1731 pelo sertanista baiano Joaquim Quaresma Delgado, tendo a
descrição das localidades pelas quais passou transcrita na obra supracitada e também em FREIRE, Felisbello.
História Territorial do Brazil..., p. 501-532. No final do século XIX, Durval Vieira de Aguiar afirmou que a
distância entre Rio de Contas e Jacobina era de 60 léguas, e não as 100 léguas indicadas pelos representantes da
junta rio-contense. Cf. AGUIAR, Durval Vieira de. Província da Bahia: uma declaração de todas as distâncias
intermediárias das cidades, vilas e povoações. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1979, p. 158.
151
Representação da Junta Temporária de Minas do Rio de Contas ao governo central do Rio de Janeiro. In:
MELLO MORAES, Alexandre José de. Op.cit., p. 4.
152
Idem.
153
CASAL, Manuel Aires de. Corografia brasílica. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional; Ministério da Educação
e Saúde, 1947. t. 2. (Coleção de Obras Raras, v. 2). Fac-símile da edição de 1817, p. 129-130.
53
fácil administração da justiça. Mas não ouvidores, que no estado das coisas nada
servem senão de verdugo [carrasco] aos povos. 154
Não é muito [que] queiramos [ser] uma província, sendo esta vila sua capital, por
ser a mais central e com as comodidades necessárias; um bispo para nosso pastor
espiritual e mesmo para promover a população, dissolvendo os impedimentos
matrimoniais, tão difíceis como dispendiosos, por causa da longitude [distância] em
que fica da [cidade da] Bahia [...] Esta província deve compreender o julgado de
Xique-Xique, que fica nas margens do rio São Francisco, e por este acima até a
extremidade da freguesia de Contendas, isto de norte a sul, e pelo nascente com
a extrema que faz esta comarca com a cidade da Bahia, de sorte que a província
virá a compreender 130 a 140 léguas de norte a sul, e de nascente a poente 120
pouco mais ou menos. (grifos nossos) 156
154
Representação da Junta Temporária de Minas do Rio de Contas ao governo central do Rio de Janeiro. In:
MELLO MORAES, Alexandre José de. História do Brasil-Reino..., p. 4.
155
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 03 (antigo
maço 633-3), documento 75. Correspondência de 14 de agosto de 1822.
156
Representação da Junta Temporária de Minas do Rio de Contas ao governo central do Rio de Janeiro. In:
MELLO MORAES, Alexandre José de. Op.cit., p. 4; Segundo Henrique de Oliva Brasil, a freguesia de
Contendas está localizada atualmente no município de Brasília de Minas (MG). BRASIL, Henrique de Oliva.
História e desenvolvimento de Montes Claros. Belo Horizonte: Lemi, 1983, p. 225; ver também: _________ . De
Contendas à Brasília de Minas. Belo Horizonte: São Vicente, 1978.
54
Mapa 3
Provável dimensão da nova Província, de acordo com a proposta da Junta Temporária
de Rio de Contas (1822)
[...] se reforçou na América pois atendia as expectativas das elites locais. [...] ao
contrário da América hispânica, o conservadorismo político das elites encontrou no
projeto imperial o instrumento de sua efetividade e os meios para rompimento
dos particularismos que no período anterior se apresentavam como
demarcadores dos limites de seus projetos políticos possíveis. [...] os
representantes das elites brasileiras se dão conta da operacionalidade política da
unidade da América portuguesa, já Brasil, para a preservação e ampliação de seu
espaço político próprio.157 (grifo nosso).
157
JANCSÓ, István. A construção dos Estados Nacionais na América Latina – apontamentos para o estudo do
Império como projeto. In: História Econômica da Independência e do Império. SZMRECSÁNYI, Tamás;
LAPA, José Roberto do Amaral (Org.). São Paulo: Hucitec; Associação Brasileira de Pesquisadores em História
Econômica; Edusp; Imprensa Oficial, 2002, p. 25.
158
MATTOSO, Kátia Maria de Queirós. A cidade de Salvador e seu mercado no século XIX. São Paulo: Hucitec,
1978, p. 112.
56
159
A desagregação do Império luso-americano também teve reflexos na tessitura social da vila de Santo Antônio
do Urubu. Correspondências não datadas ao Conselho Interino, provavelmente de 1822, informaram que a sede
da vila teve que ser transferida para o arraial de Macaúbas, devido “aos ataques de despotismo contra os
cidadãos”; além do aliciamento de cativos realizado pelos portugueses para que estes se voltassem contra seus
senhores e contra a “Santa Causa” da Independência. Cf.: APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial.
Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 02 (antigo 633-1), documento 01; Dossiê 03 (antigo 633-3),
documento 133.
160
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 03 (antigo
633-3), série Correspondências, documento 10. Correspondência de 22 de agosto de 1822.
161
Segundo Araújo, “os militares portugueses tinham vivido as guerras napoleônicas e as guerra peninsulares,
nas quais afirmou-se um novo modelo de exército nacional, politizado, filho da revolução francesa”. ARAUJO,
Ubiratan Castro de. A Guerra da Bahia..., p. 29.
162
Incorporação e desmembramento de territórios foram práticas do governo central do Rio de Janeiro durante o
Primeiro Reinado. Em fins de 1822, Sergipe Del Rey se tornava uma província; Em 1824, por conta da
Confederação do Equador, a comarca do São Francisco foi anexada à província de Minas Gerais, sendo
transferida para o território da Bahia provisoriamente em 1827 e, definitivamente, em 1831. FREIRE, Felisbello.
História Territorial do Brazil..., p. 322; COSTA, F. A. Pereira da. Em prol da integridade do território de
Pernambuco..., p. 16-17; 35-36. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/221743. Acessado em:
20.07.2014.
57
[...] promessas de que para o futuro ninguém seria vexado pelos ouvidores [e] juízes
de fora; que todos ficariam livres isentos de contribuições e que ninguém veria seus
filhos recrutados, nem curvados debaixo de pesadas correntes encaminhados para a
praça da metrópole.163
163
Representação dos habitantes da vila do Rio de Contas ao Conselho Interino. In: MELLO MORAES,
Alexandre José de. História do Brasil-Reino..., p. 32.
164
Sobre o recrutamento forçados de soldados no Exército, ver KRAAY, Hendrik. Política racial, Estado e
Forças Armadas na época da Independência: Bahia, 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2011, p. 97-104.
165
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 03 (antigo
633-3), série Correspondências, documento 12. Correspondência de 07 de setembro de 1822.
166
Idem.
167
MELLO MORAES, Alexandre José de. História do Brasil-Reino..., p. 3.
58
173
BRASIL. Annaes do Parlamento Brazileiro da Camara dos Srs. Deputados: Primeiro Ano da Quarta
Legislatura colligidos por Antônio Enoch dos Reis. Rio de Janeiro: Typographia da Viúva Pinto & Filho, 1887,
Tomo Segundo, p. 450.
174
Correio Mercantil, nº 559, 19 de setembro de 1838, p. 2.
60
CAPÍTULO 2
“ISTO É MUNDO NOVO!”: VIOLÊNCIA, MORTE E PERSEGUIÇÃO EM RIO DE
CONTAS
175
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 19 (antigo
638-2), série Correspondências, documento 69. Correspondência de 17 de novembro de 1822; APEB. Seção de
Arquivo Colonial e Provincial. Patentes, Apostilas, Registros (1820-1822). Livro 405. f. 174. Patente concedida
em 28.09.1821. Neste livro, consta o registro de patente de sargento-mor a Antonio Rocha de Bastos. Após a
fuga do capitão-mor José Joaquim Casemiro de Novaes, Rocha de Bastos substituiu-o na função de capitão-mor.
176
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 19 (antigo
638-2), série Correspondências, documento 69. Correspondência de 17 de novembro de 1822.
177
Idem.
178
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 17 (antigo
638), série Correspondências, documento 03. Correspondência de 30 de setembro de 1822.
61
179
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 17 (antigo
638), série Correspondências, documento 03. Correspondência de 30 de setembro de 1822.
180
O trajeto entre a vila de Rio de Contas e o Recôncavo era realizado em um pouco mais que 15 dias nas
décadas de 1820-30. Como evidência para tal afirmação, tomamos por base as datas em que várias
correspondências foram enviadas e, também, as datas de suas respectivas respostas. No caso específico, como o
Conselho Interino foi constituído em 6 de setembro de 1822, é possível que antes da chegada da correspondência
encaminhada da vila de Cachoeira em 30 de setembro de 1822 as lideranças da junta rio-contense já estivessem
cientes que aquele órgão deliberativo havia sido formado.
181
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 19 (antigo
638-2), série Correspondências, documento 65. Correspondência de 18 de outubro de 1822.
182
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 18 (antigo
638-1), série Atos Normativos, documento 02. Ata de 8 de setembro de 1822.
62
[...] muitos andavam pelas ruas sem batina (violando a norma estabelecida no século
XVI), alguns portavam armas ou adagas no cinto e jogavam cartas. [...] [o padre] era
183
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 19 (antigo
638-2), série Correspondências, documento 65. Correspondência de 18 de outubro de 1822.
184
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
185
Representação dos habitantes da vila do Rio de Contas ao Conselho Interino. In: MELLO MORAES,
Alexandre José de. História do Brasil-Reino..., p. 32.
186
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
63
[...] novo ajuntamento se apresenta, e com ele os europeus Manoel de Souza e Silva,
acompanhado de 100 homens, Manoel Joaquim de Magalhães [ao lado] de sessenta
e tantos [homens], Luis Ribeiro de Magalhães à frente de vinte, sem contar neste
número outro maior de criminosos matadores, além do enfeitado coronel Antonio
Ribeiro de Magalhães, chefe descoberto deste partido, ou mais propriamente
desta brigandage. (grifo nosso).190
187
SERBIN, Kenneth P. Padres, celibato e conflito social: uma história da Igreja Católica no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008, p. 68.
188
SILVA, Candido da Costa e. Os Segadores e a Messe: o clero oitocentista na Bahia. Salvador: Secretaria da
Cultura e Turismo; EDUFBA. 2000, p. 50.
189
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 19 (antigo
638-2), série Correspondências, documento 65. Correspondência de 18 de outubro de 1822.
190
Representação dos habitantes da vila do Rio de Contas ao Conselho Interino. In: MELLO MORAES,
Alexandre José de. História do Brasil-Reino..., p. 32. A palavra francesa brigandage é derivada da palavra
brigand (salteador), e podemos traduzi-la como bando, corja, horda; no sentido figurado, tal termo pode
significar também o mau uso na administração publica. A acepção de brigand e brigandage também eram estas
no século XIX. Cf.: Dictionnaire de L’Académie Françoise. Paris: Chez J, J. Smits et Ce., Imp.-Lib., 1833.
Tomme Premier, p. 173.
64
pois o coronel Antonio Ribeiro de Magalhães e “toda cáfila de Paramirim, ali postada em
armas, atentava contra a sua segurança e contra a sua própria vida”. 191
Finalmente, a Câmara de Rio de Contas realizou os novos juramentos de “fidelidade
ao Príncipe Regente Constitucional e adesão a Causa do Brasil”, além da “devida obediência
ao Governo Interino da Província do Conselho da vila de Cachoeira”. 192 Segundo o partido
brasileiro, os representantes da junta local ainda teriam resistido quanto à realização dos atos
solicitados, quando um de seus membros propusera “secretamente contra a eleição do
deputado, insistindo na porfiosa teima de não reconhecerem [...] [o] Conselho Interino”,
mesmo com a objeção que teria sido feita por Martiniano de Moura e Albuquerque a favor da
votação.193 Ainda segundo o partido brasileiro, Martiniano quase foi expulso da Câmara após
a conclusão do seu discurso por ordens daqueles que eram contra os seus posicionamentos,
além de ter sido ameaçado de morte por Luiz Ribeiro de Magalhães e Manoel Joaquim de
Magalhães.194
As lideranças do partido brasileiro teriam acusado também os membros da junta rio-
contense de coagirem os representantes da Câmara, sob “a força das armas”, para mudarem de
posicionamento quanto ao juramento de obediência ao Conselho Interino de Governo.195 As
supostas ameaças, caso tenham ocorrido, tinham como objetivo manter a autonomia da junta
rio-contense em relação àquele órgão deliberativo do Recôncavo que servia de governo
provisório da Província enquanto Salvador estava ocupada pelas tropas de Madeira de Melo.
Ao consultarmos a documentação, encontramos o registro das assinaturas de alguns
componentes da junta local numa cópia da ata de vereação de 1º de novembro de 1822 que foi
encaminhada posteriormente ao Conselho Interino.196
Diante dos fatos, temos duas possibilidades: (1) os brasileiros exageraram em seu
relato sobre os acontecimentos da Câmara naquele conturbado dia ou (2) os representantes da
junta local tiveram que, apressadamente, mudar de postura em relação ao Conselho Interino.
Acreditamos que as motivações para essa mudança de posicionamento estejam relacionadas
aos eventos que tiveram lugar em Rio de Contas depois da sessão da Câmara que, enfim,
191
Representação dos habitantes da vila do Rio de Contas ao Conselho Interino. In: MELLO MORAES,
Alexandre José de. História do Brasil-Reino..., p. 32.
192
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 03 (antigo
634), série Correspondências, documento 63. Traslado da Ata de Vereação de 1º de novembro de 1822.
193
Representação dos habitantes da vila do Rio de Contas ao Conselho Interino. In: MELLO MORAES,
Alexandre José de. Op.cit., p. 32.
194
Ibidem, p. 32-33.
195
Ibidem, p. 33.
196
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 03 (antigo
634), série Correspondências, documento 63. Traslado da Ata de Vereação de 1º de novembro de 1822.
65
197
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 19 (antigo
638-2), série Correspondências, documento 65. Correspondência de 18 de outubro de 1822.
198
Correspondência enviada pelo general Pedro Labatut ao Conselho Interino de Governo da Bahia, de 7 de
dezembro de 1822. In: ALAGOAS, Comissão Executivo dos Festejos do Sesquicentenário da Independência do
Brasil; IHGA – INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE ALAGOAS (Org.). Documentos para a
história da Independência..., p. 94-95.
199
Representação dos habitantes da vila do Rio de Contas ao Conselho Interino. In: MELLO MORAES,
Alexandre José de. História do Brasil-Reino..., p. 33.
200
AMRC. Seção Judiciário. Série Inventários. ID. Maria Efigênia da Rocha Albuquerque (1801-1802). Estante
02, caixa 37, maço 71, documento 336. Auto com 48f.; Risério Leite registrou que o nascimento de Manoel
Justiniano ocorreu em 1798. No entanto, consta no inventário de Maria Efigênia que seu filho mais novo estava
no primeiro mês de vida quando foi iniciado o arrolamento dos seus bens, em 12 de outubro de 1801. Neste
mesmo documento consta também que o falecimento da matriarca ocorreu em 7 de setembro de 1801. Cf:
LEITE, Risério. Famílias sertanejas: os Mouras. In: Revista do Instituto Histórico da Bahia. Ano 8, n. 8,
Salvador: Tipografia Manu, 1953, p. 44; 53, nota 10.
66
que o valor de 130 mil-réis pagos pela cabra Martinha eram insuficientes para a compra de
sua liberdade, mesmo que esta contasse com uma idade relativamente avançada (46 anos).201
Independente da ajuda que a cativa havia dado em sua criação e na de seus irmãos mais novos
após a morte de sua mãe, ele ponderou que os interesses financeiros da família estavam em
primeiro plano.202
Aos 22 anos, José Honório passou a administrar os bens de sua família após a morte
de seu pai, ocorrida em setembro de 1817. Até então, os Moura e Albuquerque possuíam duas
propriedades rurais: um sítio em Vila Velha, onde residiam, avaliada em 150$000 (cento e
cinquenta mil réis); e a Fazenda São Gonçalo, avaliada em 600$000 (seiscentos mil-réis),
localizada na vila de Caetité. Durante o arrolamento dos bens do inventário de seu pai, José
Honório declarou que ele e seus irmãos eram também donos da Fazenda Umbuzeiros,
localizada no julgado de Xique-Xique, termo da vila de Santo Antônio do Urubu.203 No
entanto, acreditamos que os Moura e Albuquerque eram arrendatários desta propriedade, pois
além de não ter sido incluída na partilha dos bens entre os herdeiros, em 1821 a compra desta
mesma fazenda foi feita por José Honório pelo valor de 600$000 (seiscentos mil-réis), que
deveriam ser pagos em quatro parcelas anuais de 150$000 (cento e cinqüenta mil-réis) ao
morgado da Casa da Ponte.204
As questões políticas existentes em Rio de Contas somavam-se as questões
econômicas, que afetavam a população da vila e seu termo. As secas e o baixo preço do
algodão no mercado internacional, como apontamos no primeiro capítulo desta dissertação,
prejudicavam a produção agrícola e a criação de gado no interior baiano. Os Moura e
Albuquerque eram criadores de gado e praticavam a cotonicultura na Fazenda São Gonçalo,
201
Cabra é uma designação identitária que foi utilizada para indicar o mestiço de negro e mulato. No entanto,
alguns autores afirmam que cabra é o indivíduo proveniente da miscigenação do indígena com o africano.
MOURA, Clóvis. Dicionário de escravidão negra no Brasil. São Paulo: Edusp, 2004, p. 75. Na literatura, o
escritor baiano Rodolpho Teophilo associou os indivíduos considerados cabras à criminalidade: “O cabra é pior
do que o caboclo e do que o negro. É geralmente um indivíduo forte, de maus instintos, petulante, sanguinário,
muito diferente do mulato por lhe faltarem as maneiras e a inteligência deste. E, tão conhecida é a índole
perversa do cabra que o povo diz: não há doce ruim, nem cabra bom”. THEOPHILO, Rodolpho. Os brilhantes.
Fortaleza: Typ. Minerva de Assis Bezerra, 1906, p. 72; Sobre a idade de Martinha, ver: AMRC. Seção
Judiciário. Série Inventários. ID. Maria Efigênia da Rocha Albuquerque (1801-1802).
202
AMRC, Seção Judiciário. Livro de Notas n. 31 (1815-1822). Diante da contestação do valor pago, ocorrida
em abril de 1817, Martinha fugiu em posse do recibo que atestava o pagamento efetuado. Em seguida, reuniu
testemunhas e impetrou uma ação na Justiça para garantir sua liberdade. Para mais detalhes sobre o caso, ver:
SILVA, Ricardo Tadeu Caires. Os escravos vão à Justiça: a resistência através das ações de liberdade. Bahia.
Século XIX. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2000, p. 31-33.
203
AMRC. Seção Judiciário. Série Inventários. ID Martiniano José de Moura Magalhães. (1818-1822). Estante
02, caixa 50, maço 96, documento 472. Auto com 51f. A Fazenda Umbuzeiros, às margens do rio São Francisco,
no julgado de Xique-Xique, termo da vila de Santo Antonio Urubu, possuía 900 hectares. Para informações
referentes aos valores e tamanhos desta e de outras propriedades rurais pertencentes à Casa da Ponte, ver:
NEVES, Erivaldo Fagundes. Estrutura fundiária..., p. 170-79.
204
APEB. Judiciário. Escrituras. Livro 205, p. 197. Escritura lavrada em 15 de dezembro de 1821.
67
além de produzirem gêneros alimentícios voltados para a subsistência, como a mandioca. 205 É
provável que a ausência de chuvas, que se prolongava desde 1818 na região, tenha afetado o
desenvolvimento de tais atividades no período que antecedeu as disputas políticas em Rio de
Contas ocorridas entre 1822-23, fazendo com que José Honório e seus familiares passassem
por dificuldades financeiras.
Em meio às disputas políticas que ocorriam em Rio de Contas, José Honório
contraiu, até onde podemos apurar, dois empréstimos. O primeiro, no valor de 50$000
(cinquenta mil-réis), junto ao tenente-coronel Joaquim Pereira de Castro.206 O segundo
empréstimo, no valor de 400$000 (quatrocentos mil-réis), junto ao Cofre do Juízo de Orfãos e
Ausentes da vila, “hipotencando escravos e gados situados na Fazenda São Gonçalo”.207
Sob a alegação de que a referida fazenda se localizava na vila de Caetité, o
primogênito dos Moura e Albuquerque propôs ao Juizado de Orfãos, “para melhor segurança
do débito”, alterar a hipoteca dos bens indicados anteriormente, substituindo-os pela parte que
possuía no sítio localizado em Vila Velha (quinhão este avaliado em 1817 por 37$500) e mais
três cativos de sua propriedade. Apesar do parecer favorável emitido pelo curador do Cofre de
Órfãos, o vereador mais velho e juiz pela ordenação208 João Nunes de Souza se esquivava em
deferir a solicitação. Diante da demora da autoridade em acatar seu pleito, José Honório
solicitou o registro de tais fatos no tabelionato no dia 31 de outubro de 1822. No entanto, os
acontecimentos políticos em curso na vila, como se verá a seguir, o impediram de validar as
informações contidas no livro de notas.209
Acreditamos que as discordâncias políticas existentes na vila interferiram na
aceitação das propostas de mudança da hipoteca. Seria possível que José Honório tivesse a
pretensão de vender parte do gado que possuía na Fazenda São Gonçalo para realizar o
pagamento da segunda parcela de 150$000 (cento e cinquenta mil-réis) do débito com o
205
AMRC. Seção Judiciário. Série Inventários. ID Martiniano José de Moura Magalhães. (1818-1822) Estante
02, caixa 50, maço 96, documento 472. Auto com 51f.
206
AMRC. Seção Judiciário. Série Inventários. ID Joaquim Pereira de Castro. (1825-1830). Estante 02, caixa 56,
maço 108, documento 542. Auto com 76f. f. 23v.
207
AMRC. Seção Judiciário. Livro de Notas n. 31. Escritura lavrada em 31 de outubro de 1822, f. 398.
208
Segundo as Ordenações Filipinas, “os substitutos do juiz de fora nas Câmaras assim organizadas eram os
vereadores, graduados, não pela votação, mas pela idade, e eram chamados juízes pela ordenação, e não
ordinários. Traziam por isso varas brancas, e não vermelhas como os juízes ordinários, tendo a mesma alçada, e
percebendo os mesmos emolumentos como os juízes de fora” (Livro I, Título 67, nota 1) (grifo nosso). In:
ALMEIDA, Candido Mendes de. Código Filipino ou Ordenações do Reino de Portugal. Rio de Janeiro:
Typografia do Instituto Philomathico, 1870, p. 153.
209
AMRC. Seção Judiciário. Livro de Notas n. 31. Escritura lavrada em 31 de outubro de 1822, f. 398v-399.
Como José Honório de Moura e Albuquerque não validou com sua assinatura as informações contidas no Livro
de Notas, o registro foi tornado pelo funcionário-régio como “sem efeito”.
68
210
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 17 (antigo
638), série Correspondências, documento 03. Correspondência de 30 de setembro de 1822.
211
Representação dos habitantes da vila do Rio de Contas ao Conselho Interino. In: MELLO MORAES,
Alexandre José de. História do Brasil-Reino..., p. 33; LEITE, Risério. Famílias sertanejas..., p. 44.
69
excelentíssimo [Conselho Interino de] Governo [...] [para] virem arrasar esta vila e seus
habitantes”.212
A representação encaminhada ao Conselho Interino pelos brasileiros de Rio de
Contas, além de ter narrado a situação de instabilidade política da vila, acusou os
componentes da junta rio-contense de serem entusiastas das ações de Madeira de Melo. O
objetivo era conseguir a autorização e o apoio, com envio de tropas, para destituírem aquele
“punhado de ignorantes, servis e rebeldes europeus” dos postos de comando da vila.213
Segundo a representação encaminhada pelos brasileiros, no dia seguinte ao
assassinato de José Honório de Moura e Albuquerque teriam se reunido na residência do
português Manoel de Oliveira Guimarães diversos
[...] europeus e alguns indignos brasileiros que, rodeando a mesa de uma liberal ceia,
e cada um dos copos rendendo cada vez infalíveis as suas ideias, só se ouvia: “ –
Viva o senhor coronel Ribeiro, segundo Madeira!” Ao que se obsequiosamente
correspondia com as suas agradecidas vozes: “ – Viva, viva!”.214
Ainda de acordo com o partido brasileiro, um grupo formado em sua maioria por
portugueses natos seguiu para o Arraial da Furna (hoje distrito de Arapiranga, termo do
município de Rio de Contas) após o mencionado jantar e, ao adentrarem na localidade, teriam
sacado suas armas e disparado tiros para o alto, aos gritos de “Viva os europeus! Morram os
brasileiros! Cortou-se a cabeça da cobra; já ficou sepultada. Logo, porém, se cortarão as
demais!”,215 numa alusão ao assassinato de José Honório de Moura e Albuquerque.
No entanto, nada indica a existência de uma adesão ou posicionamento favorável à
Madeira de Melo por parte dos portugueses natos e seus aliados que viviam em Rio de Contas
e seu termo. É possível que os brasileiros os acusassem para comprometê-los, ainda mais,
junto às lideranças do Conselho Interino. Não encontramos, na documentação consultada,
indícios que corroborem tal associação. Muito provavelmente, os portugueses que viviam
naquela localidade do alto sertão seriam tão prejudicados quanto os demais súditos nascidos
no Brasil caso os vínculos com a antiga metrópole se perpetuassem nas condições impostas
pelas Cortes lisboetas. Ora, os interesses dos lusitanos estavam enraizados em terras
americanas, o que justificaria, em parte, o apoio concedido ao então príncipe d. Pedro.
Ademais, como bem salientaram Luiz Felipe de Alencastro e Maria Luiza Renaux,
212
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
213
Representação dos habitantes da vila do Rio de Contas ao Conselho Interino. In: MELLO MORAES,
Alexandre José de. História do Brasil-Reino..., p. 31, 34.
214
Ibidem, p. 33
215
Idem.
70
Os brasileiros de Rio de Contas não iriam aceitar de forma natural, nos primeiros
anos pós-Independência política, esse “abrasileiramento” por parte dos portugueses que
viviam em Rio de Contas. Ainda mais quando perceberam que eles continuariam beneficiando
seus patrícios e aliados, como no caso do português João Nunes de Souza, que mesmo sendo
“leigo por falta de aplicações” em Direito, teria sido nomeado pela junta rio-contense “juiz
pela ordenação” em meados de 1822.217
Sobre as acusações dos brasileiros, acreditamos que os portugueses natos e seus
aliados foram vinculados ao partido europeu por capitanearem um projeto político em que
permaneceriam exercendo o poder local em detrimento dos nascidos na região, e não em
virtude de um improvável apoio dos lusitanos à Madeira de Melo. Em nosso entendimento, o
novo grupo político surgido na vila de Rio de Contas em meados de 1822, ao incorporar a
identidade política brasileira, “imaginou-se” como partícipe legítimo da nova nação, na qual
não existiriam entraves que impedissem a ascensão social destes indivíduos (pelo menos
hipoteticamente).
Por conta da comitiva que se dirigiu ao Recôncavo, os componentes da Junta
Temporária tiveram que agir rápido. A formalização de um protesto contra eles seria uma
importante prova para que o Conselho Interino intercedesse de forma mais enérgica em Rio
de Contas, ainda mais porque a junta local não tinha a dimensão do que seria representado
pelos brasileiros em Cachoeira.
Em decorrência disso, manifestações de apoio e concessões financeiras foram
realizadas para demonstrar o engajamento das lideranças rio-contenses nas lutas pela
retomada da capital. No dia seguinte ao assassinato de José Honório, a Junta Temporária de
Rio de Contas se reuniu e deliberou por utilizar todo o “dinheiro público” existente no cofre
da vila (um total de 400 mil-réis) para a aquisição de oitenta arrobas de pólvora e, em seguida,
enviá-las ao Conselho Interino.218
216
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. RENAUX, Maria Luiza. Caras e modos dos migrantes e imigrantes. In:
NOVAIS, Fernando (Coord.) e ALENCASTRO, Luiz, Felipe de (Org.). História da vida privada no Brasil.
Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, v.2, p. 308.
217
Representação dos habitantes da vila do Rio de Contas ao Conselho Interino. In: MELLO MORAES,
Alexandre José de. História do Brasil-Reino..., p. 32.
218
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 16 (antigo
637-7), série Correspondências, documento 52-A. Traslado da Ata da Sessão de 2 de novembro de 1822.
71
219
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 16 (antigo
637-7), série Correspondências, documento 52-A. Traslado da Ata da Sessão de 2 de novembro de 1822.
220
Representação dos habitantes da vila do Rio de Contas ao Conselho Interino. In: MELLO MORAES,
Alexandre José de. História do Brasil-Reino..., p. 33.
221
Idem.
222
Idem.
223
Idem.
72
mais que diversas propriedades fundiárias mudaram de donos, em virtude das vendas de
fazendas e sítios realizados pelos procuradores do sétimo Conde da Ponte a partir de 1818.224
Nos dias que se seguiram, a Junta Temporária elegeu José Valentim de Souza,
nascido na região e ex-aliado de José Honório, para ser o deputado que representaria a vila de
Rio de Contas no Conselho Interino de Governo. Os componentes da junta local informaram
que José Valentim deveria receber a procuração da Câmara e ser o portador dos “dinheiros
públicos” que seriam encaminhados para Cachoeira, sendo que deste valor deveria ser retirado
200 mil-réis para as suas despesas. Além disso, ressaltaram que o Conselho Interino decidiria
quanto o deputado receberia por sua atuação, sendo que os pagamentos destes valores
ficariam as expensas da vila de Cachoeira.225
O Alvará com a procuração da Câmara foi emitido em 22 de novembro de 1822.
Quando o deputado eleito pela junta rio-contense chegou a Cachoeira, muito provavelmente a
comitiva dos brasileiros já se encontrava no Recôncavo. Eles estavam bem articulados, pois
além da representação entregue ao Conselho Interino de Governo, documento pelo qual nos
baseamos para confrontar com a versão apresentada pelos componentes da Junta Temporária,
eles encaminharam um requerimento ao general Pedro Labatut, comandante em chefe do
Exército Pacificador.
De posse do requerimento assinado por Martiniano de Moura e Albuquerque, irmão
de José Honório, o militar francês solicitou que o Conselho Interino mandasse uma
“autoridade competente devassar sobre o acontecido” em Rio de Contas para que os culpados
fossem castigados, pois “não deve[ria] ficar impune uma morte tão cruel feita a um brasileiro
patriota”.226
Após o assassinato de José Honório, a junta rio-contense demonstrou sinais de
fragilidade. Em sessão de 15 de novembro, suas lideranças argumentaram que em vista da
realização dos juramentos de “adesão à Causa do Brasil” e “obediência ao Conselho Interino
de Governo”, suspenderiam as atividades ali desenvolvidas, sem dissolver inteiramente a
Junta, “até que se chegue a resposta de Sua Alteza Real sobre as representações que fez este
governo com algumas requisições relativas à nossa existência política”,227 numa referência ao
224
AMRC. Acervo Poder Judiciário. Livro de Notas n. 31 (1815-1822). Diversos registros.
225
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 16 (antigo
637-7), série Correspondências, documento 52-A. Traslado da Ata da Sessão de 14 de novembro de 1822.
226
ALAGOAS, Comissão Executivo dos Festejos do Sesquicentenário da Independência do Brasil; IHGA -
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE ALAGOAS (Org.). Documentos para a história da
Independência..., p. 95.
227
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 16 (antigo
637-7), série Correspondências, documento 52-A. Traslado da Ata da Sessão de 15 de novembro de 1822.
73
pedido de criação de uma nova província feita à Corte no Rio de Janeiro, como tratado no
primeiro capítulo.
Em correspondência encaminhada nesse mesmo dia ao Conselho Interino de
Governo, seus componentes ressaltaram que a interrupção das atividades era motivada,
também, pelo fato do Conselho “ter tomado [para si] o título de governo da província”. No
entanto, deram a entender que isto pouco alteraria a relação entre os dois órgãos deliberativos,
pois mesmo com as atividades suspensas, as lideranças do Conselho Interino ainda deveriam
se “dirigir às autoridades aqui estabelecidas quando precisarem de alguma coisa relativa à
causa pública”.228
Para o Conselho Interino de Governo, aquela resposta, qualificada como “paliativa e
dissimulada”, era uma grande afronta, já que anteriormente havia solicitado a dissolução
daquela junta local.229 Por conta disso, o Conselho Interino recorreu, em 17 de dezembro de
1822, ao ministro e secretário de Estado dos Negócios do Império, José Bonifácio de Andrada
e Silva, para que intercedesse junto ao imperador d. Pedro I para “chamar à ordem as vilas de
Rio de Contas e Caetité, que fazem economia separada da família provincial e se tem
subtraído à autoridade deste Conselho Interino, conservando seus governos particulares”.230
Além disso, o Conselho Interino de Governo argumentou que tal solicitação, em
relação àquelas vilas, não se dava “por ciúme de autoridade ou ambição de governar do
Conselho Interino”, mas porque “o partido europeu ali se acha mui altanado [altivo, soberbo]
perseguindo brasileiros, alguns dos quais aqui refugiados [nesta vila de Cachoeira]”,
conforme atestava uma representação com quarenta e duas assinaturas dos moradores de Rio
de Contas que, como sabemos, eram de aliados e familiares de José Honório de Moura e
Albuquerque.231
228
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 16 (antigo
637-7), série Correspondências, documento 52. Correspondência de 15 de novembro de 1822.
229
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 11 (antigo
637-2), série Correspondências, documento 07. Correspondência de 17 de dezembro de 1822; este documento foi
transcrito em: ALAGOAS, Comissão Executivo dos Festejos do Sesquicentenário da Independência do Brasil;
IHGA -INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE ALAGOAS (Org.). Documentos para a história da
Independência..., p. 125-130.
230
Idem. Sobre a situação de Caetité, Argemiro Ribeiro de Souza Filho destaca que apesar de não ter instalado
uma junta governativa, a Câmara da vila realizou por algum tempo algumas sessões extraordinárias, suspensas
posteriormente por ordem de José Bonifácio de Andrade e Silva, em nome do imperador. O historiador ressalta a
contestação feita pelo sargento-mor das Ordenanças daquela vila ao Conselho Interino, Francisco de Souza
Lima, que afirmou que o envio direto de representantes à Corte em agosto de 1822 foi em razão da inexistência
de um centro de poder na Bahia ao qual pudesse recorrer. SOUZA FILHO, Argemiro Ribeiro de. A guerra da
Independência da Bahia..., p. 96-97.
231
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 11 (antigo
637-2), série Correspondências, documento 07. Correspondência de 17 de dezembro de 1822.
74
[...] aclamada Sua Majestade Imperial com maior entusiasmo em todas as vilas,
povoações e arraiais, [...] em todo o restante da Província de Minas Gerais
repercutindo nas vilas de Caetité e Rio de Contas pertencentes a esta [Província da
Bahia], cujos habitantes deixei alegres e tranqüilos, reconhecendo a autoridade do
governo provisório deste Recôncavo. 233
232
Em meados de outubro de 1822, o brigadeiro José Egidio Gordilho Veloso de Barbuda foi incumbido pela
Corte no Rio de Janeiro comunicar às lideranças do Conselho Interino a necessidade da eleição dos deputados
baianos para a Assembleia Constituinte, bem como declarar-lhes que a vila de Cachoeira havia sido considerada
a capital da Província. Ver: SILVA, Alfredo Pretextato Maciel da. Os generaes do exército brazileiro de 1822 a
1889 (traços biográficos). Rio de Janeiro: M. Orosco & C., 1906, v. 1, p. 228-229; MONTEIRO, Tobias. A
elaboração da Independência. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, v. 2, p. 555, nota 9.
233
Correspondência enviada por José Egídio Gordilho Veloso de Barbuda à José Bonifácio de Andrada e Silva,
de 19 de dezembro de 1822. In: ALAGOAS, Comissão Executivo dos Festejos do Sesquicentenário da
Independência do Brasil; IHGA – INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE ALAGOAS (Org.).
Documentos para a história da Independência..., p. 132-134.
234
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 26 (antigo
1618), série Correspondências, documentos 242 e 244. Correspondências de 25 de dezembro de 1822.
75
permeavam a Província naquele período e que se manifestavam em Rio de Contas por meio
de disputas políticas.
Apesar da insistência por parte do Conselho Interino para que a Câmara rio-contense
encaminhasse o seu deputado, as lideranças do órgão deliberativo do Recôncavo não tinham
intenções reais em compartilhar o poder com representantes das demais vilas. Na mesma
correspondência em que solicitou ao ministro José Bonifácio de Andrada e Silva uma
intercessão junto ao imperador d. Pedro I para que este chamasse “à ordem” a vila de Rio de
Contas, os membros do Conselho solicitaram também que fosse “organizado o quanto antes
um novo governo provincial” diante da “dificuldade de poder ser bem governada esta
Província por uma assembléia tão numerosa” quanto o Conselho Interino.235
Segundo Keila Grinberg, o advogado, político e intelectual baiano Antônio Pereira
Rebouças, numa de suas memórias redigidas na segunda metade do século XIX, teria
condenado os meios empregados pelos representantes do Conselho Interino que “não
hesitavam em excluir os novos membros eleitos por vilas menos importantes”. 236 Apesar dos
ressentimentos por parte do advogado baiano em relação ao fato de não ter sido escolhido
representante da vila de Cachoeira no ato de constituição daquele órgão, sua declaração
aponta que alguns membros do Conselho Interino buscavam concentrar o poder entre si.
Em janeiro de 1823, os membros do Conselho Interino foram informados que o
imperador d. Pedro I havia autorizado, em 5 de dezembro de 1822, a nomeação de um outro
governo para aquele órgão deliberativo.237 Após as eleições, realizadas agora “na
conformidade das ordens e instruções de Sua Majestade Imperial”, assumiu a presidência do
Conselho Interino Francisco Elesbão Pires de Carvalho e Albuquerque, ao lado de outros seis
proeminentes representantes da elite política baiana.238
Com a dissolução da Junta Temporária de Rio de Contas, a Câmara voltou a ser a
principal instituição de representatividade do poder local. Enquanto a junta rio-contense
estava em atividade, observamos que este órgão deliberativo tinha uma proeminência em
relação à Câmara, apesar da existência de vínculos comerciais e de sangue entre os indivíduos
que ocupavam posições em tais espaços de poder. Podemos citar, como exemplo, os irmãos
235
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 11 (antigo
637-2), série Correspondências, documento 07. Correspondência de 17 de dezembro de 1822.
236
GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio
Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 75.
237
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. As juntas governativas e a Independência. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
1973, v.2, p. 791.
238
Ibidem. p. 842. Foram eleitos também Joaquim Inácio de Siqueira Bulcão, José Joaquim Muniz Barreto de
Aragão, Antônio Augusto da Silva, Manoel Gonçalves maia Bittencourt, Joaquim José Pinheiro de Vasconcelos
e Felisberto Gomes Caldeira.
76
José da Rocha Bastos e Antônio Rocha de Bastos: o primeiro era vereador na Câmara; o
segundo havia sido secretário da junta local. Ambos, ao posicionarem ao lado dos portugueses
natos da região, estiveram intensamente envolvidos nas disputas políticas com os
autodenominados brasileiros de Rio de Contas, como veremos adiante.
Até onde se pode apurar, o capitão José Valentim de Souza não assumiu a vaga
destinada à vila de Rio de Contas no Conselho Interino e, tampouco, houve uma nova eleição
para a escolha de um novo representante da vila para o órgão deliberativo do Recôncavo. Em
fins de fevereiro de 1823, José Valentim de Souza estava na sede da vila, quando atuou como
secretário nas atividades que envolveram a escolha dos eleitores da freguesia da junta
paroquial, o que corrobora para a hipótese de não ter assumido a referida função em
Cachoeira.239 Posteriormente, o capitão assumiu o cargo de vereador na Câmara rio-
contense.240
Durante a ausência dos brasileiros, foi realizada em Rio de Contas uma devassa para
apurar as circunstâncias da morte de José Honório de Moura e Albuquerque, mas não ocorreu
a prisão de nenhum dos envolvidos no crime.241 O assassinato dessa liderança, num contexto
de acirramento das disputas entre os partidos europeu e brasileiro, intensificou os
sentimentos antilusitanos existentes nesta vila dos sertões de cima. Na representação
encaminhada ao Conselho Interino, os aliados do falecido José Honório acreditavam que
nenhuma providência seria tomada em relação ao “bárbaro homicida”, pois este “era
protegido pelos guardas que rodeavam o mesmo governo”.242
A viagem para Cachoeira não surtiu, de imediato, o resultado esperado para os
brasileiros. Os aliados e familiares de José Honório esperavam um apoio mais ativo do
Conselho Interino que, na expectativa deles, envolveria o envio imediato de forças militares
para expulsar aqueles que compunham o denominado partido europeu das esferas de poder da
vila. Como não alcançaram este objetivo, no retorno a Rio de Contas, buscaram ampliar
alianças e promover ações mais audaciosas, com o intuito de provocar a derrocada do
“governo adulterino” composto, majoritariamente, por portugueses natos. Os sentimentos
antilusitanos, intensificados em Salvador e no Recôncavo em decorrência da “guerra da
Bahia”, se manifestariam também na vila de Rio de Contas...
239
AN. Secretaria do Poder Executivo. Série Interior – Eleições. Acta de Recolhimento, numeração das listas,
apuração dos votos, e reunião de Eleitores desta Freguezia de Nossa Senhora do Livramento das Minas do Rio
das Contas. Maço IJJ5-26. Ata de 26 de fevereiro de 1823.
240
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Câmara de Rio de Contas (1824-1838), maço 1354.
Correspondência de 1º de julho de 1825.
241
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
242
Representação dos habitantes da vila do Rio de Contas ao Conselho Interino. In: MELLO MORAES,
Alexandre José de. História do Brasil-Reino..., p. 33.
77
O retorno dos brasileiros para Rio de Contas foi marcado por algumas manifestações
que tiveram como objetivo desafiar os portugueses e seus aliados que compunham os
potentados da vila e seu termo. Naquele momento, o padre Antonio Firmino Severino da Silva
e o soldado Antonio Firmo Vieira Célio eram as principais lideranças desse grupo político,
tanto que foram os primeiros a assinar a representação encaminhada ao Conselho Interino. 244
Nascido em 25 de setembro de 1794, na freguesia de São Sebastião do Sincorá
(termo de Rio de Contas), Antonio Firmino Severino da Silva iniciou, junto com o seu irmão
José Antônio Severino da Silva, os estudos que o tornariam padre na década de 1810.245 No
entanto, por motivos desconhecidos, somente Antonio Firmino realizou seus votos. Este
sacerdote era filho de um funcionário de médio escalão na administração rio-contense, o
tabelião e capitão Manoel Severino da Silva que, à época da constituição da junta rio-
contense, teria salvado de um atentado o juiz de fora Miguel Joaquim de Castro Mascarenhas,
conforme abordado no primeiro capítulo.
Estabelecido como capelão no arraial da Furna, o padre Firmino era o encarregado da
celebração de missas, da administração dos sacramentos e da benção das colheitas nesta
localidade e em seu entorno. Tais práticas, comuns a todos os capelães das áreas rurais do
século XIX, eram realizadas por meio de contratos privados, o que estabelecia uma relação de
dependência, muitas vezes, com os grandes proprietários de terras. 246 Se em sua trajetória
religiosa, até aquele momento de sua vida, o padre Firmino havia estabelecido um vínculo de
subordinação aos potentados locais, o sacerdote rompeu-o a partir do dia em que incorporou o
discurso patriótico e se autoidentificou brasileiro. Após a morte de José Honório, este clérigo
utilizou de sua posição de influência e do discurso antiluso para cooptar homens livres pobres
para seu grupo político e, assim, afrontar os portugueses natos e seus aliados.
Como foi indicado anteriormente, expectativas e incertezas marcaram o cenário
político no Império luso-brasileiro. Muitos indivíduos que buscavam uma inserção política se
manifestaram no momento em que as juntas provisórias de governo foram instituídas nas vilas
baianas. Foi por esta razão que, em 22 de agosto de 1822, o padre Firmino compareceu à
residência do vereador mais velho, João Nunes de Souza, para prestar os juramentos de
243
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
244
Representação dos habitantes da vila do Rio de Contas ao Conselho Interino. In: MELLO MORAES,
Alexandre José de. História do Brasil-Reino..., p. 31-34.
245
ACMS. De Genere. Estante 1, Caixa 3, 5-GE2-33.
246
Para uma análise mais ampla sobre a atuação dos capelães no interior baiano no século XIX, ver: MATTOSO,
Kátia Maria de Queirós. Bahia, século XIX..., p. 336-43.
78
obediência ao príncipe d. Pedro. Naquela ocasião, a casa desse vereador, que era português,
servia de sede da Câmara da vila.247 Em seguida, o clérigo reconheceu, em companhia de
outros moradores do arraial em que residia, a Junta Temporária constituída em Rio de Contas,
e afirmou que todos “se achavam prontos e vigilantes para tudo que a benefício da Causa [do
Brasil] e [da] pátria”.248
O fato de o padre Firmino ser afilhado do presidente da junta local, o tenente-coronel
Joaquim Pereira de Castro, teria influenciado sua adesão à Junta Temporária de Rio de
Contas.249 No entanto, por conta da postura dúbia em relação ao Conselho Interino por parte
daquele órgão deliberativo e, também, em virtude das ações consideradas pouco favoráveis
aos brasileiros, o clérigo retirou seu apoio da junta rio-contense. O padre tivera tanta certeza
que obteria o apoio do Conselho Interino para destituir o partido europeu das esferas de poder
da vila que teria declarado, segundo alguns relatos, que “não lhe chamasse mais padre”, caso
o “governo de Cachoeira não lhe desse um regimento” para atacar Rio de Contas.250
Rumores davam conta que em seu regresso da vila de Cachoeira, o padre Firmino
teria convocado "todo povo de péssima conduta e costume para o roubo e saque desta vila e
seu termo", como depois foi alardeado por pessoas que, posteriormente, foram acusadas de
pertencer ao partido europeu.251 Um dos acompanhantes do clérigo no retorno para o termo
de Rio de Contas era João Ferreira Mucunã, conhecido por “Mucunã moço”. Ao lado de
outros membros de sua família, João Mucunã iria aterrorizar os sertões baianos no decorrer
das décadas de 1820-30, em ações que chamaram a atenção do futuro presidente da Província
José Egídio Gordilho Veloso de Barbuda.252
247
Durante os eventos analisados nesta dissertação, por alguma razão que nos é desconhecida, as sessões da
Câmara da vila de Rio de Contas não ocorriam num lugar fixo, ora realizando-se na residência do juiz de fora,
ora na residência do vereador mais velho. Uma nova edificação somente teria sido erigida entre os anos de 1826
e 1827, pois o escrivão da Câmara relatou num documento enviado à Presidência da Província, em 8 de
novembro de 1827, que os vereadores se encontravam reunidos “em casas novas da Câmara”. Dois dias depois, o
juiz de fora Manoel Messias de Leão indicou também para a Presidência da Província, que as “salas da Câmara e
Audiências” localizavam-se em cima da cadeia da vila, num “edifício que se acha[va] bem construído, e que
pouco falta[va] para o seu acabamento”. APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Juízes de Rio de
Contas (1827-1859). Maço 2483. Termo de Avaliação de Despesa de 8 de novembro de 1827 e correspondência
de 10 de novembro de 1827.
248
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 03, série
Correspondências, documento 75. Ata de Vereação de 22 de agosto de 1822.
249
ACMS. De Genere. Estante 1, Caixa 3, 5-GE2-33.
250
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
251
Idem.
252
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Presidência da Província. Registro de correspondência
emitida, maço 1628. Correspondência de 7 de abril de 1829. Cf: SILVA, Ignácio de Accioli de Cerqueira e.
Memórias históricas e políticas da Província da Bahia. Anotações de Braz do Amaral. Bahia: Imprensa Oficial
do Estado, 1925, v.4, p. 343; PINHO, José Wanderley de Araujo. A Bahia, 1808-1856..., p. 273.
79
Relatos indicaram que a comitiva que viajou para a vila de Cachoeira retornou o
termo de Rio de Contas em 27 de dezembro de 1822. O padre Firmino, em companhia de
outros brasileiros, dentre eles Antonio Firmo Vieira Célio, José Joaquim da Hora, Simão
Gonçalves e Manoel Rodrigues, adentraram no arraial da Furna dando tiros para o alto, aos
gritos de “morram marotos!”. Para justificar tal ação, um blefe teria sido suficiente: afirmou
ter recebido ordens do Conselho Interino “para matar a todos os europeus e aqueles que
fossem da sua amizade”, argumentando que matar portugueses “era o mesmo que matar a
cachorros”. Outros testemunhos informaram que, ao percorrer posteriormente a cavalo as
cercanias da vila de Rio de Contas, também com armas em punho, o padre asseverou: “isto é
mundo novo, eu trago os olhos abertos, apareçam marotos!” (grifo nosso).253
Tais relatos, sobretudo de inimigos políticos dos brasileiros, indicam o quanto o
padre Firmino teria sido enfático em suas declarações contra os portugueses e seus aliados. A
população da vila testemunhou, ainda, que o clérigo teria afirmado que “na ponta de sua
espada [haveria de] matar todos os marotos e alguns filhos da puta que quisessem competir
[com ele]”. Além disso, asseguraram que ele teria dito que na vila de “Cachoeira mais
estimavam a um negro do que um europeu”.254
A comparação de “europeu” com “negro”, se realmente declarada pelo padre
Firmino (o que não é improvável), tinha como objetivo fomentar o desprezo pelos
portugueses. No entanto, esta afirmação não deve ser compreendida apenas com base em
critérios raciais. Naquela época, “ser negro” era sinônimo de “ser escravo”.255 A escravidão,
ao caracterizar juridicamente pessoas enquanto “coisas”, estabelecia legalmente um grau de
dominação/subordinação entre seres humanos.
Nesse sentido, a suposta fala do padre Firmino sugeria qual o lugar que, em sua
concepção, os portugueses deveriam ocupar neste “mundo novo” que ele “enxergara”, no qual
os nascidos em Portugal estariam subordinados aos interesses dos brasileiros. Este “mundo
novo”, vislumbrado pelo padre Firmino, não tinha nada de religioso. Em conversas com o seu
primo, o capitão Bernardo Teixeira Machado, o clérigo teria dado a entender que pouco se
importava com a liturgia do sacerdócio. Segundo o capitão Bernardo,
253
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
254
Idem.
255
“[...] negro e escravo eram pensados como categorias coextensivas. Conceitualmente, ser negro era ser
escravo e ser escravo era ser negro”. CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros, estrangeiros: os escravos libertos e
sua volta à África. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 111.
80
[...] o dito padre Firmino [...] dissera que dizia missa com interesse nas duas patacas,
e que a qualquer homem bastava se confessar se estivesse para morrer, e [diferente
do que todos pensavam] não havia [o] tal inferno. 256
[...] compartilhavam uma mesma atitude transgressora em relação àquilo que era
considerado um dos pilares da sociedade monárquica de Antigo Regime: a
concepção religiosa de mundo. E ao transgredirem normas e práticas
tradicionalmente aceitas exerciam, cada um a seu modo, o seu “direito moral” à
censura e à crítica.259
256
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823;
“Duas patacas” correspondiam a 640 réis. SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil..., p. 286.
257
O papa Bento XII (1334-1342), na Constituição “Benedictus Deus”, de 29.01.1336, estabeleceu que “segundo
a geral disposição de Deus, as almas dos que morrem em pecado mortal, logo depois da sua morte descem ao
inferno, onde são atormentadas com suplícios infernais”. DENZINGER-HÜNERMANN, Henrich. Compêndio
dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas; Ed. Loyola, 2007, p. 324.
258
MATTOSO, Kátia Maria de Queirós. Bahia, século XIX..., p. 339-40.
259
NUNES, Rossana Agostinho. Nas sombras da libertinagem: Francisco de Mello Franco (1757-1822) entre
luzes e censura no mundo luso-brasileiro. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal
Fluminense. Niterói. 2011.
81
Com o regresso do padre Firmino e seus aliados à Rio de Contas, uma série de
boatos assustou os moradores da vila e seu termo. Eles davam conta de que a partir de 5 de
janeiro de 1823,
[...] se achava próprio que a qualquer hora haver[ria] [...] [na vila] e seu termo um
grande destroço de mortandade de europeus e brasileiros, assim como um geral
saque nos povos, além de roubos de moças donzelas das casas dos seus pais, [com]
defloração delas, [além] de tiradas violentas de mulheres casadas do poder de seus
maridos.260
Em Rio de Contas, tais rumores tiveram como efeito prático incutir o medo na
população. A possibilidade de atentados contra seus familiares e seus bens atemorizou os
moradores da vila. Na Bahia, durante as décadas de 1820-30, a propagação de boatos foi algo
muito comum em decorrência do contexto de instabilidade que prevalecia na Província. O
sentimento antiluso, muitas vezes, contribuiu para a propagação destes boatos.
A cultura oitocentista no Brasil era marcada pela oralidade, mesmo após o início da
circulação de jornais e impressos. Nesse sentido, os boatos se constituíam como um
mecanismo de expressão e transmissão de acontecimentos e opiniões entre a população.
Enquanto fenômeno social, os boatos possuíam papel mobilizador e eram resultado de um
processo de dispersão da informação, mesmo que depois fossem comprovados como alardes
sem fundamento. Verdadeiros ou falsos, provocavam movimentos de ação e reação,
eventualmente manifestando-se em situações em que a violência era observada.261
A instabilidade político-social agravava, ainda mais, a vida dos moradores de Rio de
Contas. O capitão Faustino Pires Chaves, branco, 46 anos, proprietário de terras nascido na
região, afirmou que com o “terror dos fatos, todos habitantes pacíficos, atemorizados,
andavam uns a dormir pelos matos, e outros que tinham mais posses puseram-se em armas
para defender suas famílias”.262 O alferes Custódio Teixeira Ramos (que teria sido nomeado
para este posto pela junta rio-contense), branco, 66 anos, natural e morador do arraial de
Morro do Fogo (atual município de Paramirim), destacou os prejuízos econômicos causados
por aqueles boatos:
[...] por causa do mesmo terror muitas famílias se ausentaram para os matos e
aquelas pessoas que tinham algumas possibilidades, entraram a agregarem-se
homens forros e puseram-se em armas para guardarem as suas pessoas e bens,
tirando das suas lavouras os seus escravos, [o que causou] grave prejuízo destas. 263
260
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
261
Para uma análise interdisciplinar sobre o papel e a circulação dos boatos nas sociedades ocidentais, ver
KAPFERER, Jean-Noël. Boatos: o mais antigo mídia do mundo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993.
262
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
263
Idem.
82
[...] quero me ausentar [da vila] para guardar a minha vida e de alguns que quero
defender. Assim se ultrajam as autoridades nesta terra porque estão com a boca
doce, porém há de cessar as fúrias infernais do interesse, da vingança e da paixão e
algumas mais subalternas [...], eu me pretendo retirar para longe, no caso se isto for
verdade.265
264
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
265
Idem. “Estar com a boca doce” é uma expressão que significa “estar lisonjeado com mimos”, “lisonja”, ou,
como no sentido atribuído na citação, “estar corrompido”. Ver: CAMARA, Perestello da. Colleção de
Proverbios, Adagios, Rifão, Anexins, Sentenças Moraes e Idiotismos da Lingoa Portugueza. Rio de Janeiro:
Eduardo e Henrique Laemmert, 1848, p. 24.
266
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Judiciário. Assuntos diversos (1822-1830). Março 2712.
Correspondência de 18 de janeiro de 1823.
83
devassa, em 11 de janeiro de 1823, para apurar as ameaças de invasão da vila e seu termo. A
investigação foi iniciada tendo como escrivão José Antonio Severino da Silva, irmão do padre
Firmino, dispensado do registro dos autos logo no primeiro dia da abertura do inquérito. Os
escrivães seguintes, Joaquim José Villas-Boas e Joaquim José Guimarães, solicitaram
afastamento das investigações, tendo o segundo alegado ser “suspeito em razão de ser
europeu”.267 O então juiz pela ordenação acatou o pedido de Villas-Boas, por este ser tio do
padre Firmino, uma das lideranças dos brasileiros; o mesmo não aconteceu com o português
Joaquim José Guimarães, que teve seu pedido negado.268
No dia em que a devassa foi instaurada, o capitão José da Rocha Bastos ordenou o
encarceramento de várias pessoas ligadas ao padre Firmino. As prisões teriam sido realizadas
pelo coronel Antonio Ribeiro de Magalhães e pelo sargento-mor Manoel de Souza e Silva
entre os dias 11 e 13 de janeiro de 1823. Em meio aos prisioneiros se encontravam o pai e o
irmão do padre Firmino: Manoel Severino da Silva e José Antonio Severino da Silva. Foram
presos, também, Antonio Firmo Vieira Célio e José Joaquim Barbosa, entre outros. O clérigo,
José Joaquim da Hora e João Ferreira Mucunã conseguiram fugir, “metendo-se nos matos”.269
Parar deter os “amotinadores”, o capitão José da Rocha Bastos convocou também o
seu irmão, o sargento-mor das ordenanças Antonio Rocha de Bastos, que estava numa das
fazendas da família situada no termo da vila. Em 18 de janeiro de 1823, atuando
interinamente como capitão-mor, informou ao Conselho Interino sobre
[...] o miserável estado em que se tem reduzido esta vila, a qual esteve propensa a
sofrer uma grande carnagem [carnificina] se felizmente não atalhassem os malvados
intentos de uns poucos homens amotinadores e revolucionários, como sejam: o
padre Antonio Firmino Severino da Silva, José Joaquim da Hora, Simão Gonçalves,
o ajudante [de cavalaria] Antônio Firmo Vieira Célio, Manoel Rodrigues, João
Ferreira [Mucunã], e outros todos embasados em parentesco, os quais tendo saído
daqui em novembro passado para essa vila [de Cachoeira], e depois voltaram pelo
Natal, e clamavam que “vinham com os olhos abertos”, que “isto era mundo novo” e
que tinham ordem desse governo para matarem a todos os europeus, passando logo a
formar séquito e munir-se de armas proibidas e munição [...]. Eu fiz logo ver a
muitas pessoas que tais revoltosos nem ao menos tiveram ânimo de aparecer as
Vossas Excelências [...]. Foi lástima, Excelentíssimos Senhores, ver o terror que se
espalhou por esta vila e seu termo, onde muitas famílias passaram a dormir pelos
matos com crianças [...]. Os facciosos tinham já inficionado [contaminado] de
antemão a gente baixa e leviana [...]. Os dois cabeças, o padre Firmino e José
Joaquim da Hora fugiram protestando vingança [...] dos que embaraçaram o seu mau
projeto [...]. Este termo [...] tem grande abundancia de vadios e ociosos
ultimamente, [e] digo as Vossas Excelências que receio que depois da retirada das
pessoas que guarnecem a presente vila, [...] surja nova desordem. (grifos nossos). 270
267
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
268
Idem.
269
Idem.
270
Idem. Ofício de 18 de janeiro de 1823, apensado à devassa.
84
271
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
272
AMRC, Seção Judiciário. Livro de Notas n. 31 (1815-1822). Diversos registros.
273
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
274
Idem. A reescravização do liberto pelo padre Firmino, caso de fato tenha acontecido, indica o quanto a
liberdade dos negros e mestiços era precária antes do fim da escravidão no Brasil. A história do mulato santo-
amarense, que não teve seu nome identificado, longe de ser uma exceção, era comum na sociedade escravista
construída em solo americano pelos portugueses. A suspeição de que algum indivíduo era um escravo constituía-
se como motivo suficiente para a prisão de pessoas de cor no século XIX. Sobre a precariedade da liberdade no
século XIX, ver: CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012; GRINBERG, Keila. Reescravização, Direitos e Justiças no Brasil do Século
XIX. In: LARA, Sílvia H. & MENDONÇA, Joseli (Org). Direitos e Justiças no Brasil. Campinas, UNICAMP,
2006, p. 101-128.
85
magistrado “mandou fazer averiguações na vila de Santo Amaro da Purificação, de onde era
natural o dito mulato”, e de fato, teria constatado que este era liberto.275
Poderia o padre Firmino ter reescravizado o liberto? Ou esta, junto com as demais
denúncias, se tratava de uma campanha difamatória contra o sacerdote? Não foram
encontradas outras evidências que reforcem seu envolvimento em tais crimes, apesar do
negociante português Antônio Pinto Monteiro ter confirmado o envolvimento do clérigo no
assalto realizado em sua casa quando convocado para depor na devassa. Ainda assim, a
acusação do lusitano não se constitui como prova para incriminar esta liderança dos
autodenominados brasileiros.
A única denúncia contra o padre Firmino que foi contestada diz respeito ao suposto
furto sofrido pelo ferreiro João José Dias Mascarenhas, branco, 40 anos, natural e morador de
Rio de Contas, que afirmou que o crime não tinha ocorrido, pois se tratava de um empréstimo
feito ao padre e que a dívida contraída já havia sido quitada. No entanto, a postura do Padre
Firmino era bastante controversa, como será abordado mais a frente.
As acusações não se restringiram apenas ao padre Antonio Firmino. A primeira
testemunha, o negociante e tesoureiro dos cofres da Câmara João Gonçalves de Aguiar,
branco, 50 anos, também natural e morador de Rio de Contas, afirmou ter ouvido numa
conversa com José Joaquim Barbosa que a intenção dele, ao lado de outros indivíduos que se
autodenominavam brasileiros, “ainda no tempo de José Honório [de Moura e Albuquerque],
era roubar todo o sertão, e tirar até o último vintém, [...] e irem para as aldeias altas”, o que foi
confirmado por outras testemunhas durante a devassa.276
Ainda segundo esta mesma testemunha, José Joaquim Barbosa, além de “compadre e
especial amigo de José Honório”, seria uma pessoa “propensa a barulhos e desordens, pois
quando acontecia qualquer coisa, ele apresentava-se logo com um jogo de pistolas no cinto e
uma espingarda, [além de] uma faca e uma espada”. O negociante ainda destacou que às
vésperas do assassinato de José Honório, José Joaquim Barbosa havia dito que “a sua pobreza
havia de levar o diabo” e que também “ainda haver[i]a de ser feliz em sua terra”.277
As afirmações atribuídas a José Joaquim Barbosa apontam para uma ressignificação
do discurso patriótico por parte daqueles que nasceram na região e que eram destituídos de
275
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823. Se de
fato este episódio ocorreu, podemos situá-lo entre junho de 1820 e agosto de 1821, período da magistratura de
Miguel Joaquim de Castro Mascarenhas em Rio de Contas. Cf.: NASCIMENTO, Willian Vieira do; FONSECA,
Jorge Ricardo Almeida. Baianos nos Tribunais Superiores do Brasil (Da Casa de Suplicação ao Supremo
Tribunal Federal). Salvador: Do Autor, 2008, p. 83-84; SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ministros.
Supremo Tribunal de Justiça – Império.
276
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
277
Idem.
86
278
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
279
Idem.
280
Idem.
281
Idem.
87
de cavalaria Antônio Firmo Vieira Célio. Apesar da acusação sofrida, o alfaiate não foi preso
e nem incluído no rol de culpados, provavelmente por ter colaborado nas investigações.282
Outro implicado foi José Francisco de Nazaré que, ainda de acordo com o professor
português, “não se mostrava amante da Causa [do Brasil] e quer[ia] uma anarquia”, além de
“desejar ver extintos e mortos todos os europeus, a quem só deviam matar e tirar todos os
seus bens, pois antes queria tal raça de negro do que de europeus, e que estava pronto para
matar os mesmos” (grifo nosso).283 Mais uma vez, a questão socioeconômica se apresenta de
modo a indicar que a aversão aos portugueses natos e seus aliados perpassava principalmente
pelo fato destes serem os detentores de prestígio econômico e ocuparem os espaços de poder e
mando da vila. Nesse sentido, as ações dos brasileiros, em fins de 1822, tiveram como
pretensão subverter as posições de mando e comando estabelecidas na vila de Rio de Contas.
***
282
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
283
Idem.
88
284
ROCHA, Aurélio Justiniano da. História do município de Paramirim. Paramirim: do autor, 1981, p. 5;
AMRC. Seção Judiciário. Livro de Registro de Testamentos, n. 2 (1824-1840), fl.73-76v.
285
ROCHA, Aurélio Justiniano da. História do município de Paramirim. Paramirim: do autor, 1981, p. 5.
286
Idem.
287
Representação dos habitantes da vila do Rio de Contas ao Conselho Interino. In: MELLO MORAES,
Alexandre José de. História do Brasil-Reino..., p. 33
288
O vínculo de parentesco entre Antônio Ribeiro de Magalhães e Joaquim José Ribeiro de Magalhães consta
em: UNIVERSIDADE DE COIMBRA, Relação e Indice Alphabetico dos Estudantes Matriculados na
Universidade de Coimbra no Anno Lectivo de 1817 para 1818; suas naturalidades, filiações, e moradas.
Coimbra, Real Imprensa da Universidade, 1818, p. 13; ver também: Diário do Governo, nº 13, 15 de janeiro de
1822, p. 2 [Portugal]; O Independente, nº 11, 14 de janeiro de 1822, p. 7. [Portugal].
289
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
290
Idem.
89
do ofício de sapateiro. José Antônio Machado declarou que na noite do retorno do padre
Firmino e seus companheiros à vila, em meio aos tiros e gritos de “morram marotos!”, foi
questionado por José Joaquim Barbosa se “estava pronto para resistir”. Ao que respondeu, de
forma dúbia, que “estava pronto para tudo!”.291
A dubiedade da resposta de José Antônio Machado constituía-se como uma
estratégia de sobrevivência, pois, a rigor, apenas insinuava um comprometimento com os
brasileiros. A isenção em relação aos partidos português e brasileiro, provavelmente, foi uma
postura adotada também por vários livres pobres que residiam em Rio de Contas e seu termo
no momento em que tais identidades políticas eram reconfiguradas. Perder o (pouco) que
tinham, posicionando-se ao lado um ou outro partido, era um risco muito grande e nem todos
estavam dispostos a arcar com as consequências.
Nos embates políticos ocorridos em Rio de Contas, também se fazia presente uma
espécie de revide por parte daqueles que se autoidentificaram como brasileiros. Isto fica
patente nas falas de algumas testemunhas que depuseram na devassa. Francisco Pires da Silva,
homem branco de 27 anos, natural e morador da sede da vila, declarou que
[...] no dia cinco do corrente mês de janeiro do corrente ano [de 1823] estava nesta
vila cento e três homens recolhidos na casa de Quitéria Ferreira dos Anjos, [mãe de
Antônio Firmo Vieira Célio], na casa de Manoel Severino da Silva e, [também], na
casa de José Joaquim Barbosa, todos armados e munidos para matar europeus e
brasileiros ricos que fossem malcriados, e para saquear quem tivesse dinheiro.
(grifo nosso).292
291
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
292
Idem.
293
Idem.
90
políticas na vila e seu termo, as diferenças sociais existentes entre os brasileiros foram
escamoteadas (mas, com toda certeza, não esquecidas).
O coronel Antonio Ribeiro de Magalhães concluiu os autos em 8 de fevereiro de
1823, sem incluir novas pessoas ao rol dos culpados. Uma semana depois, o capitão e também
juiz pela ordenação Álvaro Luiz Pereira assumiu a investigação e ouviu algumas testemunhas
que foram mencionadas pelos depoentes anteriores da devassa. Aparentemente, adotou uma
postura de neutralidade na condução das investigações. Das quatro pessoas ouvidas por ele,
somente uma defendeu os brasileiros. Morador do arraial da Furna, o negociante português
Joaquim José da Silva, 46 anos, declarou que os tiros dados pelo Padre Firmino e seus
companheiros quando retornaram da vila de Cachoeira foram de “contentamento por
chegarem às suas casas com saúde, costume que ele testemunha também tem quando
chega[va] da [cidade da] Bahia”,294 destoando completamente do afirmado pelos demais
depoentes.
Os brasileiros ainda permaneciam presos. Martiniano de Moura e Albuquerque
continuava no Recôncavo, provavelmente ciente dos episódios que levaram a prisão e
dispersão dos seus aliados por toda região. No entanto, alguns acontecimentos na vila de
Cachoeira mudariam o cenário político rio-contense, com reviravoltas que desagradariam os
tanto portugueses natos e seus aliados quanto aqueles que assumiram a identidade política
brasileira.
294
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
91
CAPÍTULO 3
DE ACUSADORES A RÉUS: UMA EXPEDIÇÃO CONTRA O PARTIDO EUROPEU
O Conselho Interino, mesmo bastante envolvido nas lutas contra o exército português
que sitiava Salvador, resolveu atuar diretamente nas disputas políticas que ocorriam em Rio
de Contas desde fins de 1822. Restabelecer a ordem naquela vila do alto sertão representava
efetivar seu poder sobre os territórios do interior baiano e, também, garantir o envio dos
“dinheiros públicos” que seriam utilizados no esforço de guerra pela Junta Provisória de
Governo do Recôncavo.
Para tanto, o Conselho Interino emitiu uma portaria, no dia 13 de fevereiro de 1823,
nomeando juiz comissário o recém-formado bacharel em leis José Emídio dos Santos
Tourinho, natural de Jaguaripe (Bahia), com a ordem para que o magistrado fosse
[...] 1º marche com os praças da cavalaria que poder reunir, [para] se dirigir à vila do
Rio de Contas [...]; 2º chegando a Sincorá, informar-se-á do estado daquela vila, e
segundo as informações que tiver, chamará ou não [...] mais gente e tropa em ajuda
da expedição; 3º antes de entrar na vila [...], mandará participar as autoridades dela a
sua chegada ali, intimando-lhes [que] façam manter toda a tranquilidade e sossego
nos povos [...] 4º recebendo a resposta, entrará; e com a sua tropa, cuidará mui
particularmente da segurança pessoal e de propriedade de cada um dos cidadãos,
mantendo a pública tranquilidade, de forma que não pareça que ali entrou força
[militar], [mas] sim uma guarnição amiga, cujo fim é desmascarar políticos
295
AMRC. Seção Judiciária. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823;
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), documento 186. Correspondência de 14 de fevereiro de 1823; Sobre o
magistrado José Emídio Santos Tourinho, ver: Diário do Governo (Lisboa), nº 13, 15 de janeiro de 1822, p.98;
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Dez freguesias da cidade do Salvador: aspectos sociais e urbanos do
século XIX. Salvador: Edufba, 2007, p. 114.
296
Germano José da Silva Pinto era capitão ajudante numa tropa de segunda linha da vila de Cachoeira, tendo
sido responsável pela transferência de presos portugueses para a vila de Inhambupe em novembro de 1822.
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 26 (antigo 1618), Série
Correspondências (1822-1823), documento 169. Correspondência de 16 de novembro de 1822.
92
297
APEB. Seção Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 27 (antigo 1619),
Série Correspondências (1822-1823), documento 255. Correspondência de 13 de fevereiro de 1823. Por tratar de
forma minuciosa o modo como deveria o capitão ajudante Germano José da Silva Pinto proceder em Rio de
Contas, optamos por apresentar a íntegra do documento.
298
APEB. Seção Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 28 (antigo 1620),
Série Correspondências (1823), documento 110. Correspondência de 13 de fevereiro de 1823.
93
capitão e juiz pela ordenação José da Rocha Bastos foram irregulares, pois os primeiros
depoentes da devassa somente foram ouvidos em 14 de janeiro, três dias após o
encarceramento dos acusados, sem uma imputação formal de culpa.299
O tenente-coronel Manoel Joaquim Pereira de Castro alegou que a prisão daqueles
indivíduos ocorreu por “[...] serem os referidos patriotas, amantes da nossa Santa Causa do
Brasil e terem tomado a justa aversão contra todos os infames europeus madeiristas que tanto
tem contaminado esta terra com as suas falsas, terríveis e abomináveis provações [...]”, não
sendo justo “aqueles honrados patriotas sofrendo a prisão numa cruel masmorra sem terem
cometido culpa alguma”.300 O capitão e juiz pela ordenação Álvaro Luiz Pereira autorizou a
soltura dos brasileiros neste mesmo dia.301
O destacamento militar saído de Cachoeira, sob o comando do capitão ajudante
Germano José da Silva Pinto, e o juiz comissário José Emídio dos Santos Tourinho chegaram
a Rio de Contas em 28 de fevereiro de 1823. 302 Após verificar os autos da devassa, o
magistrado observou a inexistência de “denúncia ou legítimos indícios pelos quais se [...]
formar corpo de delito”, além de “outras nulidades insanas” existentes na investigação. Por
estas razões, Santos Tourinho julgou “a mesma devassa nula” e “sem nenhum efeito”,
devendo ser excluídos do rol de culpados todos aqueles que se achavam envolvidos “nos
sonhados crimes de roubo de donzelas, saques e mortes” investigados por José da Rocha
Bastos e pelo coronel Antônio Ribeiro de Magalhães.303
A alternativa jurídica encontrada pelo juiz comissário Santos Tourinho para
inocentar os “presos políticos” envolveu a negação da tentativa de invasão da vila que
pretendia destituir os portugueses natos e seus aliados dos espaços de poder da vila. Ora,
como os brasileiros não conseguiram de imediato o apoio do Conselho Interino durante a
estadia na vila de Cachoeira, era muito provável que estes tentassem derrubar, por conta
própria, os potentados de Rio de Contas. Se não fosse a prisão de alguns de seus membros, era
o que os brasileiros pretendiam realizar, conforme indicado pelas diversas testemunhas,
inclusive familiares dos acusados.
Para apurar as causas que levaram os “presos políticos” à prisão sob a acusação de
serem “contrários ao sistema anti-brasílico”, o juiz comissário Santos Tourinho instituiu no
dia 3 de março de 1823 um sumário de culpa, no qual foram ouvidas novas testemunhas para
299
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
300
Idem.
301
Idem.
302
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), documento 185. Correspondência de 25 de março de 1823.
303
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
94
entender os fatos ocorridos em Rio de Contas nos últimos meses.304 Enquanto isso, o capitão
ajudante Germano José da Silva Pinto, alçado ao cargo de comandante do destacamento
militar, buscava cumprir as ordens do Conselho Interino, isto é, prender os componentes da
junta rio-contense e, especialmente, o coronel Antônio Ribeiro de Magalhães.
Após sua chegada, o comandante Silva Pinto informou ao Conselho Interino que os
membros do “ilegal governo” haviam se dispersado diante da notícia da aproximação do
destacamento militar. No entanto, conseguiu prender um deles: Antônio de Souza Oliveira
Guimarães, ex-vogal da junta rio-contense.305 No decorrer de março de 1823, outras prisões
foram realizadas, tendo como alvos os membros do partido europeu.
O juiz comissário José Emídio dos Santos Tourinho convocou oito novos depoentes
que, em suas declarações, inocentaram os “presos políticos”. Alguns deles afirmaram que o
encarceramento foi motivado por vingança em retaliação à representação feita pelos
brasileiros junto ao Conselho Interino em viagem realizada à vila de Cachoeira. Um dos
depoentes, o escrivão da Câmara Hipólito José Pereira de Lemos, 43 anos, casado, pardo,
natural da província de Goiás e residente em Rio de Contas, assegurou que, pelo fato de
conhecer os presos, sabia que eram “homens probos” e “por serem pacíficos [...] não fizeram
a mínima resistência” no momento de suas prisões.306
No total, durante a devassa e o sumário de culpa, foram ouvidas 56 testemunhas.
Apenas duas eram mulheres: Maria Gregória de Carvalho, 40 anos, casada, nascida no arraial
de Catulés e residente na sede da vila, onde vivia da “venda de molhados”; Josefa Joaquina de
Santana, 25 anos, solteira, nascida em Vila Velha e também residente na sede da vila, onde
vivia “de suas costuras”. Ambas foram consideradas pardas por aqueles que conduziram as
investigações.307
304
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), documento 185. Correspondência de 25 de março de 1823.
305
MILTON, Aristides A. Ephemerides Cachoeiranas. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1979. v. 1. p.
87.
306
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
307
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
95
Fonte: AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
No que diz respeito à cor da pele, 75% dos que depuseram na devassa e no sumário
de culpa eram homens brancos; 23% dos depoentes eram pardos e 2% foram identificados
como cabras (vide Tabela 1). Entre os depoentes, 61% se declararam casados, 34% solteiros e
3% viúvos, sendo que 2% não informaram seu estado civil. Coincidentemente, uma das
testemunhas de origem portuguesa se identificou como marido da tia do falecido José Honório
de Moura e Albuquerque.
Os nascidos em Portugal constituíam uma parcela significativa das testemunhas,
representando 23% do total, o que indica que a presença de lusitanos em Rio de Contas era
considerável. Entre os quarenta e três nascidos em solo americano, apenas quatro não
nasceram na Bahia (três eram naturais de Minas Gerais e um de Goiás). Mais de um terço
destes depoentes declarou “viver de suas lavouras” ou “de suas roças”; porém, encontramos
também testemunhas nascidas na região pertencentes a outros segmentos sociais: alfaiates,
ferreiros, sapateiros e até um capitão do mato (vide Tabela 2).
Entre as testemunhas nascidas em Portugal, duas deram depoimentos que
favoreceram os brasileiros e uma delas adotou uma postura de neutralidade. Entre os nascidos
na América portuguesa, apenas oito dos quarenta e três depoimentos foram favoráveis aos
brasileiros. Tais informações confirmam que as identidades políticas brasileira e portuguesa
não correspondiam necessariamente ao local de nascimento dos sujeitos envolvidos nas
disputas políticas em curso em Rio de Contas. Destes, mais da metade se declarou negociante
ou proprietário de terras; os demais ocupavam posições de destaque na sociedade rio-contense
(vide Tabela 2).
96
Brancos
Portugueses nascidos na
Ocupações / Profissões Pardos Cabra Total
natos América
portuguesa
Advogado 1 - - - 1
Alfaiate - 1 1 1 3
Caixeiro - 1 - - 1
Capitão do mato - - 1 - 1
Cirurgião 1 - - - 1
Costureira - - 1 - 1
Ferreiro 1 3 - - 4
Funções de Governança - 1 1 - 2
Negociante 4 6 1 - 11
Professor 1 - - - 1
Proprietário de terras 3 13 5 - 21
Sapateiro - 1 1 - 2
Comércio de molhados - - 1 - 1
Não informados / Sem profissão
2 3 1 - 6
definida
Total 13 29 13 1 56
Fonte: AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
este estava com “avançada idade de mais de 78 anos, achacado de moléstias [...] que se
agravariam com qualquer movimento” durante a viagem. Na representação alegou que seria
“muito difícil empreender uma longa jornada” de “mais de cem léguas” da Ribeira do Gavião
(termo de Caetité) até Cachoeira, “por travessias que se tem feito intransitáveis por causa das
grandes secas”. Por esta razão, colocou-se como fiador de seu genitor, que se apresentaria
assim que sua saúde fosse restabelecida. Para atestar a validade das informações prestadas,
Manoel Joaquim pediu aos quarenta e cinco eleitores da paróquia que estavam reunidos em
Rio de Contas para assinarem o requerimento.309
Nos dias que se seguiram à chegada do destacamento militar, foram recolhidos à
prisão o capitão José da Rocha Bastos e os portugueses José de Oliveira Rego Americano e
Antonio Joaquim da Silva Pereira, acusados de terem se “associado ao partido europeu” e se
“oposto a Causa da Regeneração e Independência brasileira”. 310 José da Rocha Bastos
argumentou, em requerimento ao Conselho Interino, que mesmo sendo “brasileiro nato” e
agindo “como bom patriota em meio das convulsões políticas”, foi preso e remetido à cadeia
de Rio de Contas, onde “jaz[ia] exposto a todos os detrimentos [e] torturas mais
pungentes”.311 Para ele, sua única culpa era ter caído “no desagrado de certos malfeitores que
infesta[va]m” a região e que pretendiam puni-lo em “vinganças particulares, cometendo o
sacrilégio político de envolverem os negócios da pátria”.312
Natural da ilha de São Miguel dos Açores (Freguesia de Nossa Senhora da Luz,
Bispado de Angra) e estabelecido em Rio de Contas desde 1791, o capitão José de Oliveira
Rego Americano declarou no requerimento ao Conselho Interino ser “um bom cidadão” e
merecido sempre ser “empregado nos lugares públicos mais preponderantes”, tendo “aderindo
da melhor forma a causa da Independência deste Império”. Atribuiu a sua prisão a “malévolos
309
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 12 (antigo 637-3),
Série Correspondências (1822-1823), documento 106. Correspondência s/d. Mesmo não tendo sido datado, este
documento provavelmente foi escrito em março de 1823, pois faz referência a ordem de prisão aos componentes
da Junta Temporária de Rio de Contas recebida pelo capitão ajudante Germano José da Silva Pinto.
310
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), documento 185. Correspondência de 25 de março de 1823; documento
185-B. Correspondência s/d, recebida pelo Conselho Interino em 22 de março de 1823.
311
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), documento 185-B. Correspondência s/d, recebida pelo Conselho Interino
em 22 de março de 1823.
312
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), documento 185-B. Correspondência s/d, recebida pelo Conselho Interino
em 22 de março de 1823.
98
que procuraram achar nos negócios públicos meios de se vingarem de ofensas particulares”,
da mesma forma que foi alegado pelo capitão José da Rocha Bastos.313
O português Antônio Joaquim da Silva Pereira, que vivia há seis meses em Rio de
Contas, informou no requerimento encaminhado ao Conselho Interino ter chegado ao Brasil
aos 11 anos de idade, tendo procurado “se estabelecer ao centro do seu continente [em Goiás],
[...] longe de se poder envolver naqueles partidos que naturalmente se envolvem os moradores
de beira-mar”. Declarou ter sobrevivido, durante a maior parte de sua vida, do “simples
exercício de mascatear”, mas que antes da sua prisão trabalhava como feitor na Fazenda Santa
Apolônia, de propriedade do capitão José da Rocha Bastos. Antônio Joaquim alegou ser
incapaz de “se envolver em negócios políticos” e atribuiu o seu encarceramento a “pessoas
intrigantes” que pretendiam “vingar-se dos maiores e mais possibilitados do país”, sendo que
tais desafetos passaram “a compreender [também] os seus caixeiros e feitores”.314
A expedição militar que seguiu para Rio de Contas tinha ordens expressas para
prender, além dos componentes da junta, o coronel Antônio Ribeiro de Magalhães. Para
agravar a situação do rico proprietário de terras, foi emitido um mandado de sequestro de seus
bens, incluindo os “bens móveis e semoventes”; e, no caso da inexistência destes, deveriam
ser incluídos os “bens de raiz”.315 Este mandado, assinado pelo capitão-mor Álvares Luis
Pereira, determinou que “os bens sequestrados, sendo móveis e semoventes, serão conduzidos
para esta vila [de Rio de Contas] e [efetuado o] depósito público deles; os bens de raiz serão
dilapidados” para pagamentos dos dízimos arrematados pelo coronel Ribeiro e que não foram
repassados ao tesouro nacional.316
A fazenda Arraial, de propriedade de Antônio Ribeiro de Magalhães, foi vistoriada
pelo destacamento do comandante Germano José da Silva Pinto em companhia dos
brasileiros Manoel Joaquim Pereira de Castro e José Trancoso de Lira Castro, entre outros.
Durante a ação, alguns de seus filhos e genros foram presos e levados às cadeias de Rio de
Contas. Tanto a expedição do mandado de sequestro dos bens do português quanto a incursão
313
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), documento 185-C. Correspondência s/d, recebida pelo Conselho Interino
em 22 de março de 1823.
314
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), documento 185-D. Correspondência s/d, com parecer anexo de 18 de abril
de 1823.
315
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), Documento 62. Correspondência s/d.
316
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), Documento 62. Correspondência s/d. O seqüestro dos bens de Antônio
Ribeiro de Magalhães não se baseou no decreto imperial de 11 de dezembro de 1822, que ordenou o confisco de
bens e mercadorias dos lusitanos. Sobre este decreto, ver: BRASIL. Colleção das Leis do Império do Brazil.
Decretos, cartas e Alvarás de 1822. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889, v.1, p. 96-7.
99
da fazenda ocorreram nos primeiros dias de março de 1823. Segundo a esposa do coronel
português, a senhora Maria Joaquina da Conceição, aquela “invasão” causou
[...] destroços, ruínas, prejuízos e roubos, de tanta forma que não ficou nas minhas
roças e fazendas de gado [...], nem algodões e nem mantimentos, porque aquilo que
não podia [...] roubar, [eles] destroçaram, a fim de que não houvesse na minha casa
senão desordens e prejuízos.317
A matriarca ainda declarou ser “público e notório” que seu marido “escapou quase
nu” da ação que tinha como intenção prendê-lo, tendo seus “inimigos” lhe roubado “uma mala
[...] [com] cinco mil e tantos cruzados em dinheiro de ouro”.318 Maria Joaquina relatou,
posteriormente, que um de seus escravos aproveitou-se da confusão para fugir para Rio de
Contas “em companhia daqueles malvados”, o que indica a possibilidade do discurso
patriótico dos brasileiros também tenha influenciado os escravos da região na luta por sua
liberdade.319
Nos dias que se seguiram à incursão, o encarregado da expedição militar, o capitão
ajudante Germano José da Silva Pinto, teria feito várias exigências à esposa do coronel
Ribeiro: solicitou o envio de um potro castanho que ele havia separado quando esteve na
fazenda e, também, a disponibilização de um tropeiro com três mulas para levar os impostos
arrecadados em Rio de Contas e seu termo para a vila de Cachoeira. 320 Segundo a matriarca,
supostos meirinhos321 continuavam a visitar as propriedades do rico português à “procura de
gados para criar”,322 ao ponto do comandante ordenar que não fosse entregue “coisa alguma
[...] a ninguém sem que se apresente letra [ordem de pagamento] minha”.323
Um mês após a inspeção realizada na fazenda Arraial, o coronel Ribeiro encaminhou
uma carta para Maria Joaquina do termo de Salgado (atual cidade de Januária-MG), as
317
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), documento 32. Correspondência de 27 de maio de 1823.
318
Idem. O valor indicado em ouro, representava cerca de 2:400$000 (dois contos e quatrocentos mil-réis).
319
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), anexo do documento 62. S/d. Sobre as expectativas, inquietações e ações
da população escrava durante o processo de independência do Brasil na Bahia, ver: REIS, João José. O jogo duro
do Dois de Julho: o “partido negro” na Independência da Bahia. In: REIS, João José; SILVA, Eduardo;
Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia da Letras, 1989, p. 79-98.
320
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), anexos do documento 62. Correspondência de 20 de março de 1823;
correspondência s/d.
321
Os meirinhos eram oficiais que auxiliavam os ouvidores ou juízes ordinários na execução da justiça, tendo
como função a execução de prisões, citações, penhoras e mandatos judiciais. ver: SALGADO, Graça (Org.).
Fiscais e meirinhos..., p. 129.
322
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), anexo do documento 62. S/d.
323
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), anexo do documento 62. Correspondência de 9 de março de 1823.
100
margens do rio São Francisco. Daquela localidade, o português informou a sua esposa que
seguiria para a Corte para evitar que fosse vítima de algum atentado.324 Em outra carta,
acusou Manoel Joaquim Pereira de Castro e José Trancoso de desejarem a sua morte, além de
ter lhe comunicado sobre a prisão do capitão Bernardo Teixeira e do roubo de “cinco mil e
tantos cruzados em dinheiro de ouro”.325 Do Rio de Janeiro, provavelmente pretendia articular
a suspensão do sequestro de seus bens e, também, garantir a sua liberdade diante das
acusações que lhe eram imputadas.
***
324
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), anexo do documento 62. Correspondência de 3 de abril de 1823.
325
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), anexo do documento 62. Correspondência sem data, mas provavelmente
anterior ao mês de maio de 1823.
326
APEB. Seção Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 28 (antigo 1620),
Série Correspondências (1823), documentos 240 e 243. Ambas as correspondências de 29 de março de 1823.
327
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), documentos 185-B, 185-C e 185-D. Correspondências sem datas,
recebidas pelo Conselho Interino em 22 de março de 1823.
328
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. As juntas governativas e a independência..., p. 805.
329
Idem.
101
330
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), documento 185-A. Correspondência de 18 de abril de 1823.
331
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), documento 185-A. Correspondência de 18 de abril de 1823.
332
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), documentos 185-B, 185-C e 185-D. Pareceres anexos de 18 de abril de
1823.
333
MILTON, Aristides A. Ephemerides Cachoeiranas..., p. 55.
334
Idem. No início do século XX, o escritor e político baiano Aristides Milton comentou que a decisão do
Conselho Interino de Cachoeira constituía-se como algo “original e típico!”.
102
[...] doloroso a uma mãe, cercada de treze filhos e dezesseis netos, [...] ver meu
marido perseguido, só a fim de o matarem, para depois melhor fazerem o que
pretendiam; ver meus filhos e genros, uns presos, outros foragidos; seus bens,
próprios bens, dilapidados; e, finalmente, entregues aos arbítrios de tantos monstros.
Antes [...] mil vezes a morte do que ser testemunha de tal quadro.336
Maria Joaquina denunciou que grande parte dos bens inventariados em sua
propriedade “se desencaminhou” antes de chegar a Rio de Contas. Bens pessoais de sua
família, como os arreios de prata de seu marido, estariam agora sendo utilizados pelo
comandante Germano José da Silva Pinto. Além disso, parte do seu rebanho, que deveria ser
vendido para atender o sequestro das posses de seu marido, estaria sendo trocado em diversos
lugares por animais de pior qualidade. Nas palavras da matriarca, aqueles homens se
consideravam “senhores e possuidores dos meus bens”.337 Diante de tais fatos, solicitava
providências para “semelhantes injustiças”.338 Como resposta, o Conselho Interino indicou,
em 27 de junho do mesmo ano, que a suplicante deveria utilizar-se “dos meios que em Direito
lhe são permitidos” para reaver suas perdas.339
O coronel Antônio Ribeiro de Magalhães permaneceu por dois anos no Rio de
Janeiro.340 Mesmo à distância, continuou a influenciar na conformação político-administrativa
de Rio de Contas. Em 12 de março de 1825, intercedeu a favor do escrivão de órfãos da
Câmara rio-contense junto à mesa de Desembargo do Paço.341 Provavelmente articulou para
que seu filho, Joaquim José Ribeiro de Magalhães, ainda no ano de 1823, fosse nomeado juiz
de fora da mesma vila342 e, posteriormente, assumisse a função de ouvidor da comarca de
Jacobina, através de ato do imperador d. Pedro I em 13 de outubro de 1824.343
335
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), documento 63. Correspondência de 12 de maio de 1823.
336
Idem.
337
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), documento 63. Correspondência de 12 de maio de 1823.
338
Idem.
339
Idem.
340
ROCHA, Aurélio Justiniano da. História do município de Paramirim..., p. 6.
341
Diário Fluminense, nº 77, 9 de abril de 1825.
342
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
343
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Correspondências expedidas para o Governo Imperial. Maço 675.
Correspondência de 13 de abril de 1824.
103
344
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Correspondências expedidas para o Governo Imperial. Maço 675.
Correspondência de 8 de abril de 1825.
345
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Correspondências expedidas para o Governo Imperial. Maço 675.
Correspondência de 12 de março de 1824.
346
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 17 (antigo 638),
Série Correspondências (1822-1826), documento 329. Correspondência de 17 de março de 1824.
347
AMRC. Seção Judiciário. Livro de Registro de Testamentos n. 2 (1824-1840), fl.73-76; ROCHA, Aurélio
Justiniano da. História do município de Paramirim..., p. 6.
348
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 07 (antigo 635),
Série Correspondências (1822-1823), documento 55. Correspondência de 12 de abril de 1823.
349
Idem.
104
350
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 17 (antigo 638),
Série Correspondências (1822-1823), documento 147. Correspondência de 30 de maio de 1823.
351
AMRC. Seção Judiciário. Traslado da correspondência de 9 de junho de 1823 anexada aos Autos da Devassa
(Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
352
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
353
AMRC. Seção Judiciário. Termo de remessa de 9 de agosto de 1823 anexada aos Autos da Devassa (Processo
Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
354
AMRC. Seção Judiciário. Termo de remessa de 9 de agosto de 1823 anexada aos Autos da Devassa (Processo
Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
105
355
EDELWEISS, Frederico G. A antroponímia patriótica da Independência. Salvador: Centro de Estudos
Baianos; UFBA, 1981, p. 5.
356
Ibidem, p. 8-13.
357
Como exemplos, podemos citar José Joaquim Rodrigues, que passou a se chamar José Joaquim Rodrigues
Brazileiro; Marciano Vieira Célio, irmão do ajudante de cavalaria Antonio Firmo Vieira Célio, que se tornou
Marciano Vieira Célio Brazílico. Cf. APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do
Brasil na Bahia. Dossiê 03 (antigo maço 633-3), documento 75. Traslado do Requerimento encaminhado à
Câmara em 14 de agosto de 1822.
106
adjetivar “Brazileiro” ou “Brazil” era também uma alternativa atraente, como nos casos de
Francisco de Paula Brazileiro Livre ou José Ricardo do Brazil Santinho.358
Outros, seja por questões práticas do cotidiano ou por decepção quanto aos rumos
tomados durante os acontecimentos políticos na vila, voltaram atrás em sua decisão. O
tabelião e capitão Manoel Severino da Silva e José Trancoso Lira de Castro podem ser citados
como exemplos de pessoas que desistiram de se afirmar como defensores da “Santa Causa do
Brasil”, pelo menos no sobrenome. O pai do padre Firmino passou a assinar Manoel Severino
Silva do Brazil, enquanto José Trancoso substituiu o “Lira de Castro” pelo Brazil Santinho.
Tempos depois, abdicaram do patronímico.359 O mesmo fez o português José de Oliveira
Rego que, ao ser preso pelo comandante Germano José da Silva Pinto, declarou numa carta ao
Conselho Interino chamar-se José de Oliveira Rego Americano. No mês seguinte, livre do
cárcere, o lusitano já havia excluído o novo sobrenome. Ao que parece, a inclusão do
sobrenome Americano era uma tentativa de alcançar a sua liberdade.360
Chamou-nos a atenção, por parte de alguns indivíduos que se envolveram nas
disputas políticas em Rio de Contas, a utilização de sobrenomes que remetiam a elementos
sertanejos. Rodrigo de Souza Meira incorporou Sertão ao seu sobrenome; José Antonio
Severino da Silva trocou o da Silva pelo Rio de Contas.361 No arraial da Furna, João Ferreira e
seus familiares incorporaram o termo Mucunã, nome de uma planta herbácea comum nas
regiões sertanejas, muito utilizada na medicina popular. Algumas espécies do mucunã
358
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 03 (antigo
maço 633-3), documento 75. Traslado do Requerimento encaminhado à Câmara em 14 de agosto de 1822; Cf.
AMRC. Seção Judiciário. Série Inventários. ID. Bento Joaquim Brasileiro Nato (1844-1844) Estante 03, caixa
74, maço 144, documento 830. Auto com 21f; ID. Francisco de Paula Brasileiro Livre (1861-1861). Estante 03,
caixa 86, maço 168, documento 1.145. Auto com 7f; ID. José Ricardo do Brasil Santinho (1827-1827). Estante
02, caixa 57, maço 111, documento 563. Auto com 39f.
359
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 03 (antigo
maço 633-3), documento 75. Traslado do Requerimento encaminhado à Câmara em 14 de agosto de 1822; Cf.
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823; AMRC,
Seção Judiciário. Livro de Notas n. 32 (1822-1825). Procuração concedida pelo capitão Manoel Severino Silva
do Brazil de 8 de julho de 1823, f. 32-33v.
360
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), documento 185-D. Correspondência sem data, com parecer anexo de 18 de
abril de 1823; Cf.: APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13
(antigo 637-4), Série Correspondências (1822-1823), documento 46. Correspondência de 28 de maio de 1823.
Em seu testamento, redigido em 1826, José de Oliveira Rego continuava sem assinar o sobrenome incorporado
no momento de sua prisão. Ver: AMRC. Seção Judiciário. Livro de Registro de Testamentos, n. 2 (1824-1840),
f.83v-86.
361
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 03 (antigo
maço 633-3), documento 75. Traslado do Requerimento encaminhado à Câmara em 14 de agosto de 1822; Cf.
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Câmara de Rio de Contas (1824-1838), maço 1354.
Correspondência de 6 de setembro de 1831.
107
provocam irritação ao contato com a pele, algo similar a uma queimadura. 362 O nome
escolhido, além de remeter à botânica dos sertões de cima, associava-se simbolicamente aos
membros dessa família devido ao aspecto virulento incorporado por eles, pois os Mucunãs,
além de se envolverem nas disputas políticas rio-contenses entre os anos 1822-23, estiveram
também presentes também em diversas manifestações de banditismo social363 ocorridas na
vila e seu termo até o início da década de 1830.364
A questão antroponímica, no que se refere à utilização de elementos sertanejos para
os sobrenomes adotados, adquire um papel relevante para marcar uma diferença e afirmar
uma identidade frente a outras demonstrações de adesão à “Santa Causa do Brasil”. Negar a
origem portuguesa e, mais do que isso, adotar sobrenomes que remetessem a aspectos,
elementos ou localidades do sertão – utilizando-se do seu simbolismo – constituiu-se numa
afirmação de identidade regional. Uma identidade que, associadas a outras de mesmo teor,
apresentou contornos coletivos e converteu-se numa identidade política que também era
brasileira. Em Rio de Contas, os sobrenomes que incorporaram as características sertanejas
foram adotados, principalmente, por aqueles que se posicionaram contra os grupos políticos
acusados de pertencerem ao partido europeu.
Passada a euforia patriótica dos anos 1822-23, Rodrigo de Souza Meira Sertão, José
Antônio Severino Rio de Contas e João Ferreira Mucunã continuaram utilizando sobrenomes
que se associavam ao cotidiano e as experiências da vida sertaneja. Os dois primeiros, em
especial, permaneceram atuantes na vida política como vereadores na Câmara rio-contense,
apoiando, inclusive, as manifestações antilusitanas que ocorreram na vila à época da
362
BARREIROS, André Luís Bacelar Silva. Contribuição ao estudo fitoquímico de Dioclea lasiophylla.
Dissertação (Mestrado em Química). Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2000; THEOPHILO, Rodolpho.
Lyra rústica: scenas da vida sertaneja. Fortaleza: Typografia da A. Editora Limitada, 1913, p. 233.
363
O banditismo, numa perspectiva marxista, é um fenômeno social observado muitas vezes como uma forma de
resistência contra a opressão. Nas últimas décadas, este fenômeno passou por uma revisão historiográfica que,
segundo Célia Nonata da Silva, buscou “reinterpretar a criminalidade latino-americana sob óticas não-marxistas,
em que o banditismo passa a ser analisado como um fenômeno complexo, multivariado, governado por
elementos sócio-políticos, ambientais e culturais”, favorecendo “a ampliação das pesquisas na abordagem das
culturas políticas, principalmente para o historiador e consequentemente permitindo um outro discurso histórico
em que o gestual, os comportamentos, crenças e os valores culturais são determinantes para uma coesão de
grupos, que são também imbricados ao fenômeno político, revelando um sistema social complexo”. SILVA,
Célia Nonata da. Territórios de mando: banditismo em Minas Gerais, século XVIII. Belo Horizonte: Crisálida,
2007, p. 30; sobre o banditismo no sertão baiano, ver: SILVA, Rafael Sancho da. E de mato faria fogo: o
banditismo no Sertão do São Francisco, 1848-1884. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.
364
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Presidência da Província. Registro de correspondência
emitida, maço 1628. Correspondência de 7 de abril de 1829. Cf: SILVA, Ignácio de Accioli de Cerqueira e.
Memórias históricas e políticas da Província da Bahia. Anotações de Braz do Amaral. Bahia: Imprensa Oficial
do Estado, 1925, v.4, p. 343; PINHO, José Wanderley. A Bahia, 1808-1856..., p. 273.
108
abdicação do imperador d. Pedro I (1831),365 o que indica que as tensões entre os brasileiros e
os portugueses natos e seus aliados tiveram longevidade em Rio de Contas.
***
365
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Câmara de Rio de Contas, maço 1354. Correspondência de
25 de abril de 1831 e abaixo-assinado de 16 de maio de 1831.
366
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 19, série
Correspondências, documento 65. Correspondência de 18 de outubro de 1822; Dossiê 27 (antigo 1619), série
Correspondências (1822-1823), documento 255. Correspondência de 13 de fevereiro de 1823.
367
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 29
(Antigo 3792), série Correspondências, documento 68. Correspondência de 14 de maio de 1823.
368
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 29
(Antigo 3792), série Correspondências, documento 69. Correspondência de 14 de maio de 1823.
369
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 17 (antigo 638),
Série Correspondências (1822-1826), documento 127. Correspondência de 29 de abril de 1823. Nomeado
primeiro Almirante da Marinha do Brasil, o escocês Thomas Alexandre Cochrane (1775-1860), 10º conde de
Dundonald e marquês do Maranhão, teve importante papel nas lutas que levaram a expulsão das tropas
portuguesas do Maranhão e da Bahia. Além de ter combatido no Brasil, Lord Cochrane participou das guerras de
independência do Peru e do Chile. Ver: TAVARES, Luís Henrique Dias. Independência do Brasil na Bahia..., p.
186-192.
109
370
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 10 (antigo 637-1),
Série Correspondências (1820-1823), documento 91. Correspondência de 29 de abril de 1823.
371
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 10 (antigo 637-1),
Série Correspondências (1820-1823), documento 90. Correspondência de 26 de junho de 1823.
372
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 10 (antigo 637-1),
Série Correspondências (1820-1823), documento 90. Correspondência de 26 de junho de 1823.
373
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1820-1823), documento 37. Correspondência de 2 de junho de 1823.
374
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1820-1823), documento 28. Correspondência de 4 de julho de 1823.
375
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1820-1823), documento 28-A. Correspondência de 4 de julho de 1823.
110
uma doação no valor de 500$000 (quinhentos mil réis) através da vila de Caetité;376 o segundo
garantiu que encaminharia, por empréstimo, um donativo para “acudir as necessidades do
Exército”, mas não especificou do que era composta tal remessa.377
O tenente-coronel Joaquim Pereira de Castro informou, também por
correspondência, estar adoentado e impossibilitado de andar a cavalo, não sendo possível
comparecer a sede da vila de Rio de Contas no dia marcado. Por esta razão, encarregou seu
filho Manoel Joaquim Pereira de Castro para representá-lo e “contribuir com algum gado,
uma vez que não há dinheiro enquanto não há saída aos algodões” em virtude da paralisação
do comércio da fibra por conta da guerra.378 Em contato com o filho do lusitano, o capitão
José da Rocha Bastos teria ouvido que na subscrição anterior já havia prometido vinte bois em
nome de seu pai e que “de novo fazia a promessa de outros vinte que faria enviar para baixo
[no Recôncavo]” através de seu cunhado. Manoel Joaquim ressaltou, ainda, “que não dava
dinheiro por viver de suas lavouras” e que estava para incorporar-se ao Exército
Pacificador.379
A caminho do Recôncavo, onde também entregaria as 40 cabeças de gado dos
Castros, Rodrigo de Souza Meira Sertão declarou que já havia doado dez cabeças de gado e
100$000 (cem mil réis), possuindo recibos de ambas as doações. Outros que informaram
pessoalmente ao capitão José da Rocha Bastos foram o capitão-mor Francisco da Silva Leite,
que declarou ter doado 40$000 (quarenta mil réis) e cinco cargas de algodão em lã, além de
ter custeado as despesas geradas pelo recrutamento de soldados e pela passagem do batalhão
vindo da província de Minas Gerais que seguiu para Cachoeira e havia passado por Rio de
Contas; o vigário Manoel Dantas Barbosa afirmou ter anteriormente doado 100$000 (cem mil
réis) e que o pouco que lhe restava mal chegava a garantir o sustento dele e de seus criados; o
português Manoel de Souza Fogaça disse que “nada dava porque não tinha dinheiro e só vivia
de sua tropa”.380
Entre as cartas recebidas pelo capitão José da Rocha Bastos e encaminhadas ao
Conselho Interino, observamos diversas justificativas quanto à impossibilidade em realizar
doações. José Antonio Gomes afirmou que, apesar de “ser amante de nossa Santa Causa” e
376
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1820-1823), documento 31. Correspondência de 17 de junho de 1823.
377
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1820-1823), documento 29. Correspondência de 17 de junho de 1823.
378
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1820-1823), documento 37. Correspondência de 2 de junho de 1823.
379
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1820-1823), documento 28-A. Correspondência de 4 de julho de 1823.
380
Idem.
111
desejoso em “trabalhar em favor dela”, não poderia contribuir por estar doente, ter perdido
suas cargas de algodão e não poder ir cobrar aqueles que lhe deviam algum dinheiro. 381 O
português Francisco de Vasconcelos Bittencourt (que no início de 1823 havia informado ao
capitão José da Rocha Bastos sobre os boatos a respeito da possibilidade de invasão da vila)
declarou que “a grande falta [...] de dinheiro faz com que presentemente não possa recorrer
com donativo” e, além disso, passava por “grande vexame para sustentar uma família que
tenho de cinquenta e tantas pessoas”, provavelmente se referindo a familiares, agregados e
escravaria.382 Proprietário da fazenda Alagoas, o lusitano declarou que “o negócio de que
vivia” era de sua tropa, que estava parada há mais de um ano “por falta de dinheiro para as
grandes despesas que ela faz, visto a grande carestia de mantimentos” existente na região. 383
Manoel Lopes Oliveira afirmou que não possuía “um só real” e que o pouco que
poderia conseguir não era suficiente para atender as despesas que tinha. Ainda segundo o
mesmo, sua situação financeira ainda se agravava pelo fato ter que esconder-se devido as
ameaças do “facinoroso” Joaquim da Hora e seus aliados, muito provavelmente por sua
associação com o partido europeu de Rio de Contas.384
Outro que indicou impossibilidade em realizar uma doação foi José de Oliveira Rego
(ex-Americano). O lusitano alegou que “quando sai[u] da enxovia aonde [...] [estava] preso,
entaipado [encarcerado] sem culpa”, teria doado “voluntariamente [...] para a caixa militar”
todo o dinheiro que possuía, tendo um recibo que comprovava a doação realizada.385 O
donativo entregue, nesse sentido, foi uma forma de demonstrar aos emissários do Conselho
Interino que a sua prisão havia sido um equívoco, o que provavelmente não os convenceu
inteiramente.
A lista encaminhada pelo Conselho Interino contava também o nome do coronel
Antônio Ribeiro de Magalhães. Como este havia se retirado para o Rio de Janeiro após a
invasão da fazenda Arraial pelo comandante Germano da Silva Pinto para cumprimento do
mandato de sequestro dos seus bens, sua esposa Maria Joaquina da Conceição respondeu ao
capitão José da Rocha Bastos que mesmo após os “infelizes acontecimentos” que tiveram
lugar em sua casa, realizaria a concessão de “algumas cargas de algodão ou do resto do gado”
381
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1820-1823), documento 01. Correspondência de 29 de maio de 1823.
382
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1820-1823), documento 30. Correspondência de 30 de maio de 1823.
383
Idem.
384
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), documento 34. Correspondência de 4 de junho de 1823.
385
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), documento 46. Correspondência de 28 de maio de 1823.
112
que os seus “inimigos” teriam lhe deixado, no intuito de afirmar que seu “marido era, e é, um
verdadeiro amigo da nossa Santa Causa do Brasil”.386 Com tal afirmação, a matriarca
pretendia rebater todas as acusações que recaiam sobre sua família e, também, afirmar para o
Conselho Interino o seu comprometimento com o projeto político daquele órgão deliberativo.
Em comum nas declarações dadas ao capitão José da Rocha Bastos pelos
comerciantes e proprietários de terras de Rio de Contas, seu termo e regiões adjacentes,
figuravam os prejuízos na produção agrícola, principalmente a cotonicultura, por conta da
conjuntura política instalada na Província. Em decorrência dessa circunstância, a crise
econômica agravava-se em virtude do bloqueio dos circuitos de escoamento da produção
algodoeira do alto sertão baiano, que tinham como pólos centrais a vila de Cachoeira e a
capital baiana, localidades estas envolvidas num conflito que se arrastava por meses. A falta
de recursos monetários alegada por estes indivíduos, como bem constatou Argemiro Ribeiro
de Souza Filho,
Cabe ressaltar que o fim do conflito no entorno da capital baiana não significou o
retorno do crescimento econômico da região. Como indicamos no primeiro capítulo, a partir
de 1822 o declínio dos preços do algodão se intensificou ainda mais nos mercados europeus,
afetando produtores, negociantes, comerciantes e tropeiros.388 Um novo boom da produção da
fibra algodoeira somente voltaria acontecer no alto sertão na década de 1860, tendo a vila de
Caetité como grande centro produtor, no momento em que a Guerra Civil dos Estados Unidos
deu novo impulso ao plantio do algodão no Brasil.389
386
APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Dossiê 13 (antigo 637-4),
Série Correspondências (1822-1823), documento 32. Correspondência de 27 de maio de 1823.
387
SOUZA FILHO, Argemiro Ribeiro de. A Guerra da Independência da Bahia..., p. 132.
388
NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja..., p. 192-193.
389
NORMANO, J. F. Evolução Econômica do Brasil..., p. 49.
113
Porventura o sistema das leis criminais faz alguma diferença entre o verdadeiro
homicida e o mandante? Não são eles considerados réus do mesmo crime,
responsáveis pela mesma satisfação e pela mesma pena? E quando o primeiro
tenha a qualidade de juiz, que temor da justiça poderá ter o segundo? Nenhum,
certamente. (grifos nossos).392
390
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Câmara de Rio de Contas, maço 1354. Abaixo-assinado 16
de maio de 1831.
391
Representação dos habitantes da vila do Rio de Contas ao Conselho Interino. In: MELLO MORAES,
Alexandre José de. História do Brasil-Reino..., p. 33.
392
Idem.
393
Ex officio, é uma expressão latina que significa “por dever do ofício”, “pela força da lei”. No jargão jurídico,
ex officio refere-se ao ato oficial que se realiza sem provocação das partes, sendo executado pelo juiz em razão
das prerrogativas do cargo ocupado. Ver: LUZ, Valdemar P. da. Dicionário jurídico. Barueri: Manole, 2014, p.
38.
114
[...] Juízo Superior da Ouvidoria Geral do crime desta cidade de Salvador da Bahia
de Todos os Santos [...] a querela que do suplicante [Antonio Rocha de Bastos] e de
outros deu Manoel Justiniano de Moura [e Albuquerque] no Juízo de Fora daquela
vila, [...] pela morte acontecida na noite do dia 1º de novembro próximo passado à
394
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823. Um
Auto de Querela era uma peça jurídica, redigida por um escrivão em juizado competente, com as assinaturas do
juiz e do querelante (queixoso). Sobre a estrutura e os procedimentos que eram adotados para a constituição dos
autos de querela de acordo à tipificação do crime, ver: XIMENES, Expedito Eloisio. Os clíticos nos Autos de
Querella do século XIX, no Ceará: edição filológica e análise lingüística. Dissertação (Mestrado em Linguistica).
Universidade Federal do Ceará. 2004, p. 28-30.
395
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
396
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823. Uma
ação avocatória é um ato jurídico no qual um tribunal superior chama para a sua jurisdição ações em andamento
perante juízos ou tribunais inferiores. Tal procedimento já havia sido estabelecido desde o primeiro regimento
dado ao Ouvidor Geral do Crime, em 1628. Ver: FARHAT, Saïd. Dicionário parlamentar e político: o processo
político e legislativo no Brasil. São Paulo: Fundação Petrópolis / Melhoramentos, 1996, p. 6; TENÓRIO, Igor. O
“certiorari” americano e a avocatória no STF. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 61 jan./ mar.
1979, p. 183-188.
115
A carta avocatória foi recebida pelo juízo de fora da vila de Rio de Contas em 23 de
setembro de 1823. Nela, constava que o sargento-mor Antonio Rocha de Bastos havia se
declarado à Ouvidoria Geral do Crime inocente das acusações que lhe imputaram “pessoas
suas inimigas”, tendo buscado “tratar do seu livramento neste mesmo juízo [da capital] por ser
o competente” para julgar as acusações sofridas.398
De posse do documento enviado pela Ouvidoria Geral do Crime, o juiz de fora
Joaquim José Ribeiro de Magalhães buscou dar celeridade ao envio dos autos da querela, do
sumário de testemunhas e da devassa que apurou a morte de José Honório de Moura e
Albuquerque. Em 1º de outubro de 1823, o magistrado autorizou o envio da “própria devassa
da morte feita em José Honório [...] para o Juízo Superior da Ouvidora Geral do Crime sem
dependência do traslado e [por] [...] não haver nela réus alguns [indiciados]”.399
Além dos laços familiares, os interesses do juiz de fora Joaquim José Ribeiro de
Magalhães estavam enraizados com os grupos que detinham o poder político em Rio de
Contas, mesmo após os reveses experimentados desde fins de 1822 na disputa contra aqueles
que incorporaram a identidade política brasileira. A celeridade para o envio da documentação
solicitada sem a realização do traslado é uma evidência que não pode ser descartada.
Mesmo com tamanha pressa, o magistrado somente emitiu o despacho em 28 de
outubro de 1823 para que os autos da querela, o sumário das testemunhas e a devassa fossem
encaminhados à capital da Província. Não conseguimos identificar na documentação analisada
o porquê de tal atraso. Uma semana antes, no dia 21, Maria Carlota de Moura e Albuquerque
havia sido notificada em relação ao recebimento do ato avocatório emitido pela Ouvidoria
Geral do Crime. Seus irmãos, Martiniano e Manoel Justiniano, não foram notificados;
informações imprecisas davam conta que ambos estavam na vila de Cachoeira, mas depois se
revelou “ser público” que os dois se achavam em Salvador.400
Estariam os irmãos Moura e Albuquerque numa articulação para que a querela em
curso em Rio de Contas não fosse interrompida? Ou a viagem ao Recôncavo e a capital
baiana teria como objetivo restabelecer vínculos comerciais com os negociantes da capital,
após a retirada das tropas que eram comandadas por Madeira de Melo? As fontes,
infelizmente, não nos revelam a finalidade da viagem empreendida. Mas uma coisa é fato: a
397
AMRC. Seção Judiciário. Autos da Devassa (Processo Mata-Maroto e outros). Caixa 2, maço 01, 1823.
398
Idem.
399
Idem.
400
Idem.
116
[...] na luta de nossa independência política, quando aclamávamos unidos com estes
portugueses a regência do príncipe, que dentre os brasileiros hoje já desaparecem,
fomos atraiçoados por estes peitos endurecidos que logo logo abusando da nossa boa
fé derramaram o sangue de nosso mais amado compatriota [José Honório de Moura
e Albuquerque]. O sangue brasileiro por vezes correu, os melhores patriotas foram
cavilosamente [ardilosamente] perseguidos. E qual foi o resultado? Buscamos o
auxílio do governo do Recôncavo, e que teve só por fim dispersá-los; e depois,
pouco a pouco, vieram chegando para o mesmo lugar de suas atrocidades e ficaram
impunes. Oh, Deus!”.401
401
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Câmara de Rio de Contas, maço 1354. Abaixo-assinado de
16 de maio de 1831.
402
Em 1828, o juiz de fora Manoel Messias de Leão informou, em carta encaminhada à Presidência da
Província, sobre as ações de um grupo de “malfeitores” que no arraial de Furnas “demoliram a casa do ajudante
[de milícias] Ambrosio José de Abreu, quebraram a machado as portas, janelas, catres, e tudo quanto se achava
dentro da casa: no dia 20 do presente [mês de janeiro] arrombaram a casa do João Nunes de Souza, roubaram
dinheiro e tudo quanto acharam; Nesse mesmo dia atacaram a Manoel Francisco Monção que para se ver livre
deles, lhes deu quarenta e tantos mil reis. Sendo de notar que todos estes atacados são brasileiros de origem
portuguesa”. APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Juízes de Rio de Contas (1827-1859). Maço 2483.
Correspondência de 23 de janeiro de 1828.
117
***
Algumas pessoas que tiveram relevância nos episódios analisados nesta dissertação
não foram mais localizadas na documentação consultada, seja por não participarem mais tão
ativamente da vida política e social da vila de Rio de Contas ou, então, por não deixarem os
vestígios perceptíveis ao historiador que pretende, a partir de suas experiências de vida, trazê-
los de volta enquanto agentes históricos. Um deles é o sargento-mor Antônio Rocha de
Bastos. Sua atuação política desaparece das fontes primárias utilizadas neste estudo. Fontes
secundárias indicam que ele foi um dos primeiros moradores do vale do Paramirim.403 Seu
irmão, o capitão José da Rocha Bastos, continuou participando, de forma pouco ativa, da vida
política rio-contense como vereador da Câmara.404
Outro que nos escapa é o padre Antônio Firmino Severino da Silva. Após os eventos
de 1822-23, poucos foram os vestígios de sua trajetória localizados. Em 31 de agosto de 1823,
foi preso na vila de Caetité por ter desacatado o sargento-mor Francisco de Souza Lima com
uma “faca de ponta”, pois estava aparentemente embriagado. No entanto, foi solto logo em
seguida pelo sargento-mor, em razão do “sossego público” e para evitar “maior motim”,
diante da presença dos “sequazes” do clérigo na vila.405 Como nos relatos anteriores,
observamos, mais uma vez, o quanto este sacerdote católico tinha uma vida desregrada nos
primeiros anos da década de 1820.
Em 1831, após a abdicação do imperador d. Pedro I, o padre Firmino marcou
presença nas ações antilusitanas ocorridas em Rio de Contas. Apesar de bastante combativo
nos anos de 1822-23, o padre não teve participação relevante nas manifestações que se deram
ao fim do Primeiro Reinado. Sua assinatura foi localizada em dois abaixo-assinados que
foram encaminhados para a Câmara de Rio de Contas, nos quais os requerentes solicitaram
uma postura enérgica em relação aos portugueses que viviam na região. 406 Neste mesmo ano,
403
JAMBEIRO, Marusia de Brito. Engenhos de rapadura: racionalidade do tradicional numa sociedade em
desenvolvimento. São Paulo: IEB/USP, 1973, p. 83; IBGE. Enciclopédia dos municípios brasileiros. Rio de
Janeiro: IBGE, 1958, vol. XXI, p. 98.
404
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Câmara de Rio de Contas (1824-1838), maço 1354.
Correspondência de 28 de agosto de 1829.
405
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Presidência da Província. Capitães-mores, maço 3792.
Correspondência de 14 de setembro de 1823. A presença do padre Firmino em Caetité pode ser justificada pelo
fato de sua irmã Ângela Maria Severino da Silva residir naquela vila. Viúva do português Félix José Antunes
Teixeira, Ângela Maria se tornaria avó do coronel Deocleciano Pires Teixeira, pai do intelectual baiano Anísio
Teixeira. Ver: AGUIAR, Lielva Azevedo. “Agora um pouco de política sertaneja”: a trajetória da família
Teixeira no alto sertão da Bahia (Caetité, 1885-1924). Dissertação (Mestrado em História). Universidade do
Estado da Bahia. 2011, Santo Antônio de Jesus, p. 160.
406
AMRC. Seção Câmara Municipal. Caixa 6, maço 2. s/d; APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial.
Câmara de Rio de Contas, maço 1354. Abaixo-assinado de 16 de maio de 1831.
118
participou, também, da eleição para promotor da vila, mas recebeu ínfima votação: dos
sessenta e nove eleitores, somente dois indicaram o seu nome.407
A postura do padre Firmino é similar, em muitos aspectos, as de alguns clérigos que
viveram na capitania de Minas Gerais no século XVIII e que “apresentavam certa tendência a
serem assimilados pelo mundo das infrações” em atos de revolta, contravenção e violência,
entregando-se aos mais variados vícios.408 No entanto, é importante ressaltar, este sacerdote
não deve ser observado como alguém à margem da sociedade, pois em vários momentos
pleiteiou, através de manifestações políticas, sua inserção nas esferas de poder da vila de Rio
de Contas. A sua atuação o transformou num agente político (e histórico) na luta pela
desobstrução das barreiras que impediam sua ascensão social e de seus aliados brasileiros,
mesmo que, de imediato, não tenham alcançado o objetivo desejado.
Alguns, como os irmãos Martiniano e Manoel Justiniano de Moura e Albuquerque,
tiveram suas trajetórias pontuadas por eventos que permitem perscrutar a vida dos segmentos
abastados do sertão baiano. Ambos tiveram intensa participação nas ações ocorridas em Rio
de Contas entre os anos de 1831-32. Por conta de sua postura controversa, Manoel Justiniano,
que naquele momento ocupava interinamente a presidência da Câmara rio-contense, foi preso
sob a acusação de favorecer as agressões e assassinatos de seus inimigos políticos. A prisão
de Manoel Justiniano e de seus aliados foi executada por juízes de paz dos distritos que
compunham o termo da vila, tendo o aval do então presidente da Província Honorato José de
Barros Paim.409 Tais episódios, ainda pouco estudados, necessitam de maior aprofundamento
na historiografia.410
Na década de 1840, Martiniano e Manoel Justiniano de Moura e Albuquerque
participaram de um conflito com outras duas famílias sertanejas: os Castros e os Canguçús.
Os embates alcançaram seu ápice quando Leolino Pinheiro Canguçú envolveu-se com Pórcia
Carolina da Silva Castro, tia do poeta Castro Alves. As famílias envolvidas formaram grupos
armados durante a disputa, que contou com certa repercussão nos jornais de Salvador, como
O Guaycuru. Num dos episódios, os irmãos Moura e Albuquerque foram atacados em suas
407
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Câmara de Rio de Contas, maço 1354. Cópia da Ata da 4ª
Sessão Ordinária da Câmara de Rio de Contas realizada em 14 de março de 1831.
408
SOUZA, Laura de Mello e Souza. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de
Janeiro: Graal, 1986, p. 174-5.
409
AMRC. Seção Judiciária. Caixa 2, maço 1. Cópia da portaria ao capitão ajudante Germano José da Silva
Pinto. Correspondência de 22 de março de 1832.
410
Tais eventos são brevemente abordados em: SOUZA FILHO, Argemiro Ribeiro de. A Guerra da
Independência da Bahia..., p. 203-209; Cf. FRUTUOSO, Moisés Amado. Circulação de impressos e
antilusitanismo em Rio de Contas, Bahia (1822-1831). In: RIBEIRO, Gladys Sabina; GONÇALVES, Monique
de Siqueira; FERREIRA, Tânia Maria T. Bessone C.; MOMESSO, Beatriz. A cultura escrita e a circulação de
ideias no oitocentos (no prelo).
119
respectivas fazendas por Leolino Canguçú em 15 de abril de 1846, sendo Manoel Justiniano
gravemente ferido e Martiniano assassinado na frente de familiares. 411 No decorrer do século
XIX, seus descendentes continuaram a ter proeminência política na região, dos quais podemos
destacar: José Egídio de Moura e Albuquerque, barão de Santo Antônio da Barra; Joaquim
Augusto de Moura e Albuquerque, barão de Vila Velha; Marcolino Moura e Albuquerque,
combatente na Guerra do Paraguai, deputado provincial durante o Império e deputado federal
por sucessivos mandatos no início da República.412
O tenente-coronel Joaquim Pereira de Castro, ex-presidente da junta rio-contense,
aliou-se aos brasileiros após a suspensão das atividades da junta, ocorrida em 15 de
novembro de 1822. A proximidade com seu filho, Manoel Joaquim Pereira de Castro (que
mantinha estreitas relações com José Honório de Moura e Albuquerque e em vários
momentos dos episódios de 1822-23 esteve ao lado dos brasileiros) pode ter sido crucial para
o estabelecimento desta aliança.413
Durante as comoções ocorridas em Rio de Contas em 1823, o tenente-coronel
Joaquim Pereira de Castro permaneceu em fazendas de sua propriedade localizadas no termo
de Caetité. No entanto, retornou para Rio de Contas em 25 de maio de 1824, abandonando
“habitação, família [e] bens” em razão de portugueses residentes em Caetité terem contratado
um criminoso para matá-lo pela quantia de 50$000 (cinquenta mil-réis); por alguma razão, o
contratado desistiu do crime e denunciou os mandantes, fazendo com que o velho patriarca
buscasse abrigo na sede da vila.414
A incorporação da identidade política brasileira pelo rico proprietário de terras
provavelmente causou a cisão com os seus antigos patrícios da vila vizinha, que resolveram,
provavelmente por conta disso, por fim a sua vida.415 Não se sabe se o tenente-coronel
411
SANTOS FILHO, Lycurgo. Uma comunidade rural ...; CALMON, Pedro. História de Castro Alves. São
Paulo: J. Olympio, 1947; LEITE, Risério. Famílias sertanejas...; SOUZA, Luiza Campos de. Conflito de família
e banditismo rural na primeira metade do século XIX: Cangussús e “peitos-largos” contra os Castros e Mouras
nos sertões da Bahia. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Bahia. Salvador. 2014.
412
SANTOS FILHO, Lycurgo. Uma comunidade rural..., p. 163; LEITE, Risério. Famílias sertanejas..., p. 54,
nota 14; Cf. NASCIMENTO, Jaime Oliveira do. Marcolino de Moura. In: ABREU, Alzira Alves de; et al.
(Coords.). Dicionário da Elite Republicana (1889-1930). Rio de Janeiro: CPDOC, 2013.
413
Manoel Joaquim Pereira de Castro serviu de fiador no empréstimo concedido a José Honório de Moura e
Albuquerque pelo Cofre do Juízo de Órfãos. Cf. AMRC. Seção Judiciário. Livro de Notas n. 31. Escritura
lavrada em 31 de outubro de 1822, f. 398.
414
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Militares. Capitães-mores. Maço 3793. Correspondência de
28 de maio de 1824. Sobre as comoções políticas ocorridas em 1824 na vila de Caetité, ver SOUZA FILHO,
Argemiro Ribeiro de. A Guerra da Independência da Bahia..., p. 168-171.
415
Em meados de 1824, o “sossego público” estava ameaçado na vila de Caetité. O então presidente da Província
da Bahia, Francisco Vicente Vianna, informou ao ouvidor da comarca de Jacobina que “alguns portugueses
revoltosos, [...] auxiliados por facinorosos, perseguem, maltratam e espancam os cidadãos pacíficos” de Caetité.
Ainda segundo o futuro barão do Rio de Contas, a “tranquilidade pública” da vila estava ameaça por conta de
alguns portugueses “cabalistas” que eram representados no Rio de Janeiro pelo coronel Antônio Ribeiro de
120
retornou para sua fazenda no termo de Caetité; tudo indica que tenha ficado em Vila Velha,
onde faleceu com cerca de 80 anos no dia 5 de setembro de 1825.416
A trajetória do tenente-coronel Joaquim Pereira de Castro mostra o quanto as
identidades políticas eram fluídas durante os primeiros momentos do processo de construção
do Estado e da nação no Brasil. Sua mudança de posicionamento, longe de ser uma exceção
entre aqueles que vivenciaram a incerteza de dias em que o “fazer” político era marcado por
práticas de violência nos sertões de cima, reflete a transitoriedade das soluções políticas e
adesão aos projetos que pretendiam garantir a unidade territorial e a manutenção da
escravidão no nascente Império brasileiro.
Magalhães. Cf. APEB. Arquivo Colonial e Provincial. Correspondências expedidas para o Governo Imperial.
Maço 1621. Correspondência de 5 de agosto de 1824; maço 675. Correspondência de 8 de abril de 1825.
416
AMRC. Seção Judiciário. Série Inventários. ID Joaquim Pereira de Castro. (1825-1830). Estante 02, caixa 56,
maço 108, documento 542. Auto com 76f.
121
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ânimos das camadas populares de Rio de Contas, ganhou novos contornos ao se associar às
propostas de emancipação política da vila a partir do desmembramento de vastos territórios da
província da Bahia. A nossa análise apontou que tais ações estiveram vinculadas aos anseios
de ampliação do poder regional por parte dos portugueses natos e seus aliados. Nesse sentido,
relacionava-se com a complexidade do processo de desagregação do Império luso-brasileiro,
período este marcado por uma multiplicidade de tendências, projetos e interesses.
Além da análise do antilusitanismo e a forma como foram (re)elaboradas as
identidades políticas na vila de Rio de Contas, foi identificado também os projetos políticos
encabeçados por brasileiros e portugueses natos e seus aliados. Ao delinear os projetos dos
grupos envolvidos nas disputas pelos postos de mando e comando da vila, pretendíamos
abordar como tais ideias, apesar dos particularismos das proposições, buscavam inserir-se no
projeto imperial dos Bragança. Assim, as expectativas dos grupos políticos locais que
acompanhavam o desenrolar dos acontecimentos na Província e na Corte eram pela validação
dos seus projetos políticos junto ao Conselho Interino de Governo (no caso dos brasileiros),
ou, até mesmo, pelo então príncipe regente d. Pedro (no caso dos portugueses natos e seus
aliados).
Uma questão que se fez presente durante a pesquisa foi a importância da imprensa
periódica. No decorrer dos acontecimentos, as notícias dos eventos em curso no Rio de
Janeiro, em Salvador e no Recôncavo baiano chegavam a Rio de Contas, principalmente,
através dos jornais. Essas publicações contribuíram para mobilizar a população da vila a
apoiar o príncipe regente d. Pedro, tendo resultado na constituição da junta rio-contense.
Dessa forma, a circulação de impressos teve papel fundamental durante o processo de ruptura
política entre Brasil e Portugal.
Enquanto novo espaço político, a imprensa contribuiu para a (re)elaboração das
identidades coletivas, sendo utilizada como instrumento doutrinário e propagandístico. Ao
arregimentar indivíduos por meio das ideias, os jornais influenciaram na transformação do
vocabulário político e fizeram com que os periódicos se tornassem uma ferramenta de
mobilização social no pós-Independência nas mais distantes localidades que tiveram acesso
aos seus conteúdos.
O discurso dos brasileiros, da forma que havia sido elaborado, apontava para uma
suposta homogeneidade entre aqueles que partilhavam da identidade política brasileira. Esta
aparente homogeneidade buscava promover a ideia de existência de uma suposta
horizontalidade social (o que não correspondia à realidade) entre os que gravitavam em torno
do chamado partido brasileiro.
123
REFERÊNCIAS
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APÊNDICE A
a
Participação nos grupos políticos em disputa em Rio de Contas (1822-1823)
a
Os espaços em branco indicam que não foi possível identificar nas fontes o posicionamento dos agentes políticos estudados nos períodos em questão.
b
Nesta coluna foram indicados aqueles que apoiaram a constituição da Junta Temporária de Governo de Rio de Contas ou que demonstraram, nos dias subseqüentes à sua instalação,
tácito apoio às suas ações. Em meados de setembro de 1822, alguns desses indivíduos se voltaram contra os posicionamentos da junta rio-contense, incorporando a identidade política
brasileira e acusando os membros do órgão deliberativo local de fazerem parte do partido europeu, como discriminado nas colunas seguintes. Além disso, observou-se também que
algumas pessoas, no decorrer do processo político, deixaram o chamado partido brasileiro e voltaram a apoiar o grupo que detinha o poder político em Rio de Contas.