BORGESDandriel 2023 Dissertaofinalizada

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Discursos sobre um povo da fronteira Brasil-Paraguai: A construção da


memória não indígena acerca dos Guaicuru (1795-1860)

Thesis · October 2023


DOI: 10.13140/RG.2.2.33932.08323

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1 author:

Dandriel Henrique Borges


Rio de Janeiro State University
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Ciências Sociais
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Dandriel Henrique da Silva Borges

Discursos sobre um povo da fronteira Brasil-Paraguai: A construção da


memória não indígena acerca dos Guaicuru (1795-1860)

Rio de Janeiro
2023
Dandriel Henrique da Silva Borges

Discursos sobre um povo da fronteira Brasil-Paraguai: A construção da memória não


indígena acerca dos Guaicuru (1795-1860)

Dissertação apresentada, como requisito


parcial para obtenção do título de Mestre, ao
Programa de Pós-Graduação em História, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração: História Política.

Orientadora: Prof.a Dra. Marina Monteiro Machado

Rio de Janeiro
2023
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CCS/A

B732 Borges, Dandriel Henrique da Silva.


Discursos sobre um povo da fronteira Brasil-Paraguai: A construção da
memória não indígena acerca dos Guaicuru (1795-1860) / Dandriel Henrique da
Silva Borges. – 2023.
191 f.

Orientadora: Marina Monteiro Machado.


Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Institu
to de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Índios Guaikurú – Teses. 2. Memória coletiva – Brasil – Teses. 3. Brasil –


História – Teses. 4. Cultura política – Brasil – Teses. I. Machado, Marina Monteiro.
II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas. III. Título.

CDU 572.95(81)

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação, desde que citada a fonte.

___________________________________ _______________
Assinatura Data
Dandriel Henrique da Silva Borges

Discursos sobre um povo da fronteira Brasil-Paraguai: A construção da memória não


indígena acerca dos Guaicuru (1795-1860)

Dissertação apresentada, como requisito


parcial para obtenção do título de Mestre, ao
Programa de Pós-Graduação em História, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração: História Política.

Aprovada em 31 de outubro de 2023.


Banca Examinadora:

__________________________________________
Profa. Dra. Marina Monteiro Machado
Faculdade de Ciências Econômicas - UERJ

__________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Belmonte
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ

__________________________________________
Profa. Dra. Maria Celma Borges
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

Rio de Janeiro
2023
DEDICATÓRIA

Para minha família, cujo apoio foi


fundamental para viabilizar o
nascimento desta dissertação.
AGRADECIMENTOS

O primeiro agradecimento não poderia ser outro que não a minha maravilhosa e super-
humana orientadora, Marina Monteiro Machado. Nos últimos anos, vi, li e ouvi os mais diversos
relatos de relações de orientação tóxicas pelos mundos acadêmicos. Sou, porém, sortudo.
Desconheço uma orientadora mais humana que Marina. Atenciosa, acalentadora, atenciosa e,
acima de tudo, empática. Essa dissertação jamais nasceria sem o apoio da senhora (que não é
senhora).
Aos demais ‘mariners’ pelas trocas e o incentivo coletivo.
Aos pesquisadores que enriqueceram os debates aqui apresentados a partir dos
comentários e perguntas em simpósios temáticos de diferentes eventos acadêmicos: Profª Drª
Marcia Maria Mendes Motta, Profª Drª Carmen Margarida Oliveira Alveal, Profº Drº Marcio
Antônio Both da Silva e Profº Drº Pedro Parga Rodrigues.
Aos meus arguidores, Profª Drª Maria Celma Borges e Profº Drº Alexandre Belmonte
pelas sugestões, críticas, incentivo e pelo auxílio nessa jornada de aprendizagens.
Aos professores pesquisadores de temática indígena, Profº Drº César de Miranda e
Lemos, Profª Drª Alessandra Gonzalez de Carvalho Seixlack e Profª Drª Fernanda Sposito.
Diálogos com esses intelectuais, somados aos com minha orientadora, influenciaram no
amadurecimento da minha escolha de grafia do etnômio Guaicuru.
Aos professores, desde a pré-escola, sem os quais eu não seria nada.
Ao INCT-Proprietas por me acolher e incentivar, inclusive institucionalmente.
Aos meus amigos, por me apoiarem, não importando o quão estranho e, até mesmo,
inconveniente, eu consiga ser.
Aos meus alunos, que mesmo me chamando de chato, os adoro demais.
A todos que acreditaram e me incentivaram durante esses quase três anos.
A minha família, pelo amor, carinhos e suporte neste trajeto complicado, mas rico, a
partir do qual vem se construindo minha vida acadêmica.
Um agradecimento mais que especial a minha mãe, que fez tudo que esteve ao seu
alcance e mais um pouco ainda, para me ajudar ao longo dessa jornada e suas intempéries.
O colono faz a história e sabe que a faz. E porque se refere constantemente à história de
sua metrópole, indica de modo claro que ele é aqui o prolongamento dessa metrópole. A história
que escreve não é, portanto, a história da região por ele saqueada, mas a história de sua nação
no território explorado, violado e esfaimado.
Frantz Fanon
RESUMO

BORGES, Dandriel Henrique da Silva. Discursos sobre um povo da fronteira Brasil-


Paraguai: A construção da memória não indígena acerca dos Guaicuru (1795-1860). 2023.
191 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023.

Os primeiros contatos de portugueses com o que chamaram de sertões do oeste se deram


através de explorações de bandeirantes. Foram estes os primeiros a encontrar, confrontar e
terem seus interesses frustrados pelas resistências de um povo indígena que chamaram de
‘índios cavaleiros’, pelo uso do cavalo em suas investidas. O contato entre lusos e indígenas,
os Mbayá-guaicuru (ou, apenas, Guaicuru), durante boa parte do período colonial, foi marcado
pelos atritos, recorrentemente custosos às forças e aos interesses colonialistas. Durante o século
XIX, um forte pensamento evolucionista histórico foi perpetuado em escritos de intelectuais,
tanto na Europa quanto na América, essa sob influência da primeira. O tal pensamento, embora
herdeiro do Iluminismo do século anterior, não deixou de perpetuar uma moralidade cristã
estabelecida desde muito antes. No Brasil, assim como em outros países da América Latina, o
Oitocentos foi marcado por um projeto político, moldado por interesses de grupos de poder,
que intencionaram a construção de um ideal de nação brasileira, apartado de uma origem
unicamente portuguesa. No processo que tomou forma, diferentes figuras foram ressignificadas
de acordo com esses interesses, a exemplo de povos indígenas. A pesquisa aqui proposta,
buscou compreender a construção dos discursos oficiais acerca dos Guaicuru, um povo
originário da região fronteiriça entre o Brasil e o Paraguai, examinando quais aspectos foram
ressaltados e depreciados, perante a memória coletiva, com ênfase para a cultura política que
se estabeleceu a respeito desse povo por parte de não indígenas, moldada pelos interesses
plurais que tomaram forma no Brasil Oitocentista. As motivações que permearam discursos
sobre esses indígenas, associados à questão de terra e trabalho, também tiveram atenção ímpar
nesse trabalho. Essa dissertação foi embasada por um corpus documental contendo relatórios
de militares, relatos de viagem, obras de estudiosos, debates parlamentares e jornais, datados
desde os primeiros anos após o Tratado de Paz (1791) entre a Coroa portuguesa e os Guaicuru,
e estendendo-se até o período prévio ao início da Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870).

Palavras-chave: Guaicuru. Discurso. Brasil. Memória. Fronteira. Cultura política.


ABSTRACT

BORGES, Dandriel Henrique da Silva. Discourses about a people on the Brazil-Paraguay


boundary: The construction of non-indigenous memory about the Guaicuru (1795-1860).
2023. 191 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023.

The first contact the Portuguese had with what they called the western hinterlands was
through explorations by bandeirantes. They were the first to encounter, confront and have their
interests thwarted by the resistance of an indigenous people they called ‘índios cavaleiros’, due
to their use of horses in their attacks. Contact between the Portuguese and the indigenous
Mbayá-guaicuru (or just Guaicuru) during much of the colonial period was marked by friction,
which was often costly to colonial forces and interests. During the 19th century, a strong
historical evolutionist thought was perpetuated in the writings of intellectuals, both in Europe
and in America, the latter under the influence of the former. This thinking, although heir to the
Enlightenment of the previous century, did not fail to perpetuate a Christian morality
established long before. In Brazil, as in other Latin American countries, the 19th century was
marked by a political project, shaped by the interests of power groups, which sought to build
an ideal of a Brazilian nation, separate from its uniquely Portuguese origins. In the process that
took shape, different figures were re-signified according to these interests, such as indigenous
peoples. The research proposed here sought to understand the construction of official discourses
about the Guaicuru, a people originally from the border region between Brazil and Paraguay,
examining which aspects were emphasized and depreciated in the collective memory that was
established about this people by non-indigenous people, shaped by the plural interests that took
shape in 19th century Brazil. The motivations that permeated discourses about these indigenous
people associated with the issue of land and work also received special attention in this work.
This dissertation was based on a corpus documental containing military reports, travel reports,
works by scholars, parliamentary debates and newspapers, dating from the first years after the
Peace Treaty (1791) between the Portuguese Crown and the Guaicuru, and extending to the
period before the start of the War of the Triple Alliance (1864-1870).

Keywords: Guaicuru. Discourse. Brazil. Memory. Boundary. Political culture.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Carga de Cavalaria Guaicuru, litografia em cores, 1835.......................... 82

Figura 2 – Retrato de Robert Southey, pintura, 1820................................................ 97

Figura 3 – Retrato de Carl Friedrich Philipp von Martius, fotografia, data


desconhecida........................................................................................... 104

Figura 4 – Retrato de Carl Friedrich Philipp von Martius, litografia, ca. 1820.......... 105

Figura 5 – Retrato de Johann Baptist Ritter von Spix, litografia, data


desconhecida........................................................................................... 107

Figura 6 – Retrato de Georg Heinrich von Langsdorff, litografia, 1809................... 111

Figura 7 – Retrato de Johann Moritz Rugendas, fotografia, antes de 1852............... 112

Figura 8 – Autorretrato de Johann Moritz Rugendas, desenho, 1850........................ 116

Figura 9 – Retrato de Antoine Hercule Romuald Florence, fotografia, data


desconhecida........................................................................................... 119

Figura 10 – Retrato de François Louis Nompar de Caumont LaPorte, conde de


Castelnau, desenho, antes de 1847........................................................... 123

Figura 11 – Retrato de Bartolomé Bossi, fotografia, 1883.......................................... 130

Figura 12 – Retrato de Ângelo Moniz da Silva Ferraz, litografia, 1861...................... 141

Figura 13 – Retrato de José Antônio Pimenta Bueno, litografia, entre 1857 e 1863.... 144

Figura 14 – Retrato de Honório Hermeto Carneiro Leão, litografia, ca. 1855............. 149

Figura 15 – Retrato de Honório Hermeto Carneiro Leão, pintura, 1855 ou 1856........ 151
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 11
1 O INÍCIO DA APROXIMAÇÃO ENTRE GUAICURUS E PORTUGUESES:
DE FINS DO SÉCULO XVIII AO INÍCIO DO XIX……………………….......... 22
1.1 Contextualização histórica: guaicurus, portugueses e luso-brasileiros…........… 22
1.2 Os Guaicuru, por Francisco Rodrigues do Prado………………....................... 26
1.3 Os Guaicuru, por Ricardo Franco de Almeida Serra….................................... 46
1.4 Discursos, interesses e seus reflexos…………......................................................... 74
2 OS GUAICURU ATRAVÉS DOS DISCURSOS DE VIAJANTES E
PESQUISADORES................................................................................................... 78
2.1 A construção de uma ‘nação’ brasileira e o papel de indígenas no
Imaginário Oitocentista............................................................................................ 79
2.2 Alexandre Rodrigues Ferreira e a Viagem filosófica pelas capitanias do
Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá....................................................... 89
2.3 Robert Southey e a História do Brasil..................................................................... 96
2.4 Manuel Aires de Casal e a Corografia brasílica…………………………….....…. 101
2.5 Carl Friedrich Philipp von Martius, O Estado do direito entre os
autóctones do Brasil e outros escritos mais……………………………….....…… 104
2.6 Johann Moritz Rugendas e a Viagem Pitoresca Através do Brasil……......……. 109
2.7 Antoine Hercule Romuald Florence [Hercule ou Hércules Florence] e a
Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829……………………....…… 118
2.8 Francis de Laporte de Castelnau e a Expedições às regiões centrais da
América do Sul……………………………………................................................... 123
2.9 Bartolomé Bossi e a Viagem pitoresca pelos rios Paraná, Paraguai, São
Lourenço, Cuiabá e o Arinos……………………………………............................ 129
2.10 Entre interesses, dualismos e disputas sutis: discursos acerca de indígenas
Guaicuru em escritos de viajantes e cronistas…………………………….....…… 134
3 DISCURSOS DO PARLAMENTO DO IMPÉRIO DO BRASIL E DE
PERIÓDICOS ACERCA DOS GUAICURU (1855-1860)..................................... 139
3.1 Conservadores em disputa: interesses pessoais ante união
partidária.................................................................................................................... 139
3.2 Guaicurus cidadãos? Só em alguma medida e desde que obedientes e úteis
ao Império..................……………………………………........................................ 152
3.3 Para além do Parlamento, uma contextualização: o que dizem gazetas da época a
respeito dos Guaicuru……………………………………..........................................157
3.4 O binômio terra e trabalho nos discursos sobre os Guaicuru: violências e
resistências em longa duração……………………………………........................... 162
3.5 Disputas de interesses num cenário de tensionar das relações entre o
Império do Brasil e a República do Paraguai………………………..................... 170
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. 172
REFERÊNCIAS........................................................................................................ 176
11

INTRODUÇÃO

A busca por discursos Oitocentistas de não indígenas sobre os Guaicuru: contextos,


objetivos e estrutura

As relações entre indígenas da etnia Mbayá-guaicuru ou Guaicuru1 e o governo


português, posteriormente, luso-brasileiro e brasileiro, foram moldadas pelas disputas de
interesses sobre o binômio terra e trabalho. O último, trabalho, tendo-se em perspectiva o uso
da mão de obra indígena para garantir vantagens econômicas aos colonizadores e para proteger
e assegurar o controle sobre a terra. Esta não pensada apenas enquanto o substrato que se
encontrava sob as pessoas, mas também como um palco, o espaço de contatos, alianças,
conflitos e, principalmente, uma intencionada propriedade pelos não indígenas2.
Conflitos nos primeiros séculos de contato não raramente culminaram em derrotas
portuguesas. No final do século XVIII, após anos de atritos diante da expansão lusa para o oeste
e as novas investidas paraguaias ao leste, os Guaicuru se encontraram pressionados e aceitaram
um Tratado de Paz, proposto pela Coroa portuguesa. Os interesses indígenas se permearam nas
expectativas de benefícios, como presentes, e na promessa de proteção por Portugal. A partir
de então, mais e mais grupos dessa etnia indígena se deslocaram para a região no entorno de
ocupações portuguesas, promovendo e intensificando o contato dentre esses distintos povos.
É no contexto do pós-1791 que surgem e começam a se propagar os principais discursos
Oitocentistas sobre os Guaicuru. Aqueles que também foram chamados de ‘índios cavaleiros’,
despertaram interesses pelas mais variadas figuras e atores históricos não indígenas: de militares
que tinham por ofício a proteção dos territórios reivindicados pela Coroa portuguesa na
fronteira Oeste da América Portuguesa. Em constante atrito com forças hispânicas; passando
por cronistas que pesquisaram sobre a região da então província do Mato Grosso ou viajantes
que por lá circularam e escolheram deixar suas impressões sobre os Guaicuru, mesmo, por

1
Na escrita deste trabalho optou-se pela escrita do gentílico ‘Mbayá-guaicuru’ ou ‘Guaicuru’, no singular e com
a primeira letra maiúscula, quando abordando a etnia em si. Por vezes, aparecerá no texto ‘mbayá-guaicurus’ ou
‘guaicurus’, neste caso referenciando grupos de indivíduos desta etnia. Tal escolha teve pontual inspiração em
propostas de normatização da escrita de etnômios, datadas da década de 1950, mas pouco utilizadas em plenitude
ao longo das últimas décadas. Além disso, diálogos com diferentes pesquisadores contribuíram para o
amadurecimento dessa decisão. Além da orientadora dessa pesquisa, Profª Drª Marina Monteiro Machado, Profº
Drº César de Miranda e Lemos, Profª Drª Alessandra Gonzalez de Carvalho Seixlack e Profª Drª Fernanda
Sposito.
2
Uma introdução específica de quem foram os indígenas Guaicuru, seu contexto e relações com a então
América Portuguesa foi desenvolvida no subtópico Contextualização histórica: guaicurus, portugueses e luso-
brasileiros, que inicia o primeiro capítulo desta presente dissertação.
12

vezes, nunca os encontrando pessoalmente. Chegando até em discursos registrados de políticos


no Império do Brasil, disputando segundo seus interesses pessoais, tendo por pano de fundo a
província do Mato Grosso, não muito tempo antes do início da Guerra da Tríplice Aliança ou
Guerra do Paraguai (1864-1870).
Como então se desenvolveram e foram motivados os discursos acerca desses indígenas,
habitantes da região limítrofe entre o que viria a ser o Brasil e o Paraguai? De que forma os tais
discursos foram mobilizados em função do projeto político nacional que tomou forma no Brasil,
ao longo do primeiro século após o Tratado de Paz de 1791, entre esses indígenas e a Coroa
portuguesa no século XIX? Quais aspectos foram elencados e idealizados e quais outros foram
silenciados e apagados perante a memória que se construía acerca desses indígenas, a partir dos
discursos de não indígenas? Sem perder do horizonte o contexto histórico, em que o imaginário,
tanto de brasileiros quanto de viajantes estrangeiros, foi tanto influenciado por um
evolucionismo histórico, alimentado pelas premissas do iluminismo, mas que perpetuava
aspectos da moralidade cristã.
A partir dessas provocações, esta pesquisa propõe buscar, através da análise de fontes
que abordam indígenas da etnia Mbayá-guaicuru, datadas entre o final do século XVIII e o
início da segunda metade do XIX. Entender-se-á a construção de discursos oficiais3 sobre esse
povo, tendo em perspectiva o contexto político, histórico e social, que é, primeiro, quando essa
etnia se aproximou do contato com os portugueses – mais tarde luso-brasileiros e brasileiros;
segundo, quando se desenvolveu um projeto político por elites letradas buscando a construção
de uma identidade nacional brasileira. Foram examinados, a partir das influências desse
imaginário nos discursos de fontes escritas, os aspectos associados a esse povo que foram
estimados e elencados e quais outros foram desprezados e silenciados, na memória coletiva que
se estabeleceu e perpetuou a respeito deles.
A começar desses macros interesses, buscou-se entender a construção da memória a
respeito dos Guaicuru, a partir de relatos de viagens, relatórios de militares, recortes de jornais
e outros tipos de documentos; assim como elucidar as associações entre os interesses em terras
ocupadas e/ou relacionadas aos Guaicurus, além de discursos motivados por esses elementos.
O período do final do século XVIII, até por volta de 1850, não é o mais rico no que
tange a variedade de fontes sobre os Guaicuru. Não obstante, quanto mais se avançou nesse
recorte, mais numerosas elas se tornaram. As fontes das primeiras décadas do século XIX são

3
Esse conceito, assim como o de memória coletiva, serão explicados, somados às suas aplicabilidades na
pesquisa aqui proposta, mais adiante, no tópico Discurso, memória, trauma e cultura política: questões teóricas,
que se dá logo na sequência deste.
13

particularmente escassas. Mais do que guiada por uma pura temporalidade linear, essa
dissertação toma corpo através de uma divisão tipológica das fontes por capítulo, as quais, por
sua vez, acabam seguindo uma progressão temporal. Explico: a primeira parte, por meio da
análise de escritos de militares portugueses, aborda a transição do século XVIII para o XIX; o
segundo capítulo, tendo em seu escopo, principalmente, relatos de viagens e/ou crônicas de
estrangeiros, abrange desde o final do XVIII até meados do século XIX; o terceiro e último,
através da análise de periódicos e Anais do Parlamento do Império, aborda o início da segunda
metade do século XIX, o período pré-Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870).
As principais fontes dos últimos anos do século XVIII sobre os mbayá-guaicurus são
dois relatórios de autoria de militares que comandaram o Forte de Nova Coimbra, na região
fronteiriça entre os então domínios espanhóis e portugueses no Centro-Sul da América do Sul.
O primeiro, escrito em 1795 por Francisco Rodrigues de Prado (1758-1804), poucos anos após
o estabelecimento do Tratado de Paz de 1791, entre os indígenas e a Coroa, e a consequente
aproximação entre esses grupos, foi difundido em diferentes periódicos no decorrer do século
XIX. Sua versão mais famosa foi publicada em 1839, nas primeiras páginas do tomo I da
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (R. IHGB). Carregado de um forte teor
crítico moral, esse documento é um dos que mais influenciou os demais escritos no decorrer
desse século. No segundo, escrito em 1803 e publicado na R. IHGB entre 1845 e 1850, Ricardo
Franco de Almeida Serra (1748-1809)4 argumenta contrariamente à possibilidade do
estabelecimento bem-sucedido de uma redução dos Mbayá-guaicuru viventes no entorno do
Forte. Almeida Serra é ainda mais crítico que Prado, no que diz respeito ao ‘caráter’ e ao modo
de vida dos indígenas.
O primeiro capítulo inicia com a ‘Contextualização histórica: guaicurus, portugueses e
luso-brasileiros’, onde tomou forma uma síntese sobre quem foram os indígenas Guaicuru, além
de suas relações com portugueses e, posteriormente, luso-brasileiros. A segunda parte, ‘Os
Guaicuru, por Francisco Rodrigues do Prado’, nasceu a partir da análise de seu História dos
Índios Cavaleiros ou da Nação Guaicuru, escrito em 1795, com sua publicação mais relevante
saindo em 1839, nas primeiras páginas do Tomo I da R. IHGB. A terceira subdivisão do
capítulo, ‘Os Guaicuru, por Ricardo Franco de Almeida Serra’, segue discussões iniciadas no
anterior, focando, porém, no parecer de Serra, onde o militar demonstrou descrença quanto à
possibilidade de se estabelecer uma redução efetiva dos Guaicuru que viviam no entorno do

4
Atual Patrono do quadro de engenheiros do Exército Brasileiro, relembrado pela instituição como um herói,
protagonista na defesa daqueles que eram territórios reivindicados pela Coroa portuguesa.
14

Forte de Coimbra. O documento analisado data de 1803, sendo publicado nas páginas do R.
IHGB entre 1845 e 1850. A quarta parte, ‘Discursos, interesses e seus reflexos’, conclui o
capítulo, dialogando e sintetizando argumentos trabalhados ao longo do trabalho.
O segundo capítulo focou na análise de relatos de viagens e outros escritos de
estrangeiros que abordaram indígenas Guaicuru. Diferentemente das fontes do primeiro
capítulo, que eram integralmente sobre esses povos originários, as estudadas na segunda parte
da dissertação foram mais abrangentes. A partir desse horizonte de análise, não foram
empregadas análises sobre toda a extensão delas, mas apenas das partes cujos autores
escreveram acerca dos Guaicuru. O primeiro subtópico desse capítulo, intitulado ‘A construção
de uma ‘nação’ brasileira e o papel de indígenas no imaginário Oitocentista’, tomou forma
como uma apresentação do projeto de construção nacional do Brasil, além de um debate sobre
o papel dos discursos construídos sobre indígenas pelos não indígenas, principalmente luso-
brasileiros e brasileiros, nos Oitocentos. As partes em sequência se aprofundaram na análise de
um amplo conjunto de viajantes e cronistas que, pela província de Mato Grosso, circularam
e/ou escreveram: Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815), Robert Southey (1774-1868),
Manuel Aires de Casal (1754-1821), Johann Baptist von Spix (1781-1826), Johann Moritz
Rugendas [José Maurício Rugendas] (1802-1858), Antoine Hercule Romuald Florence
[Hércules Florence] (1804-1879), Francis de Laporte de Castelnau (1810-1880) e Bartolomé
Bossi (1819-1890). Foram analisados tantos aspectos da biografia e da cultura política destes
atores históricos quanto os escritos que produziram, onde abordaram os Guaicuru. A última
parte do capítulo, ‘Entre interesses, dualismos e disputas sutis: discursos acerca de indígenas
Guaicuru em escritos de viajantes e cronistas’, sintetiza os debates realizados até então e os
conclui.
As mais ricas fontes a respeito dos guaicurus dentre a década de 1850 e o pré-Guerra do
Paraguai são as publicações em formato de periódicos, especialmente os jornais e os Annaes do
Parlamento Brasileiro, que foram as fontes que compuseram o terceiro capítulo. Os dois
primeiros subtópicos desta última parte da dissertação, ‘Conservadores em disputa: interesses
pessoais ante união partidária’ e ‘Guaicurus cidadãos? Só em alguma medida e desde que
obedientes e úteis ao Império’ apresentam, primeiro um debate, depois um monólogo, onde os
Guaicuru são tratados dentro da temática dos tensionamentos na região limítrofe do Oeste, entre
a província do Mato Grosso e a República do Paraguai. Na terceira parte, ‘Para além do
Parlamento, uma tentativa de contextualização: o que dizem gazetas da época a respeito dos
guaicurus’, teve por foco a análise mais geral de menções sobre os Guaicuru em distintas
15

gazetas do período. A penúltima parte do capítulo, ‘O binômio terra e trabalho nos discursos
sobre os Guaicuru: violências e resistências em longa duração’ elabora uma análise sobre
legislações de terra do Brasil Imperial e suas inspirações coloniais, argumentando sobre a
indissociabilidade do binômio terra e trabalho. Concluíram-se as discussões apresentadas ao
longo do capítulo com ‘Disputas de interesses num cenário de tensionar das relações entre o
Império do Brasil e a república do Paraguai’.

Discurso, memória, trauma e cultura política: questões teóricas

Jacques Julliard, no clássico A Política (1974), apresenta e defende sua perspectiva do


que é a política. Ela não seria um setor segmentado da sociedade, mas um desenvolvimento
plural construído pela soma das infinidades de processos que percorrem as sociedades através
das ações dos seres humanos nelas inseridos. Desse modo, todo acontecimento (não privado5)
é parte estruturante da política. Partindo dessa perspectiva, não há acontecimento que não seja
político. Esta política nasce do público e é parte essencial dele. Como consequência, nessa
perspectiva, o político e o social são indissociáveis.
Agregando a essa discussão, Serge Berstein (1998) apresenta o conceito de cultura
política num texto homônimo ao termo. O historiador francês argumenta que o conceito tal
apresenta ricas potencialidades para os estudos historiográficos, e assim o faz por distintos
motivos. O pesquisador defende, inclusive, que o termo supriria, ao mesmo tempo “uma leitura
comum do passado” e uma “projeção no futuro vivida em conjunto” (BERSTEIN, 1998, p.
351).
A cultura política permitiria a compreensão de que a sociedade é constituída de um
conjunto coerente, dentro do qual todos os elementos estão relacionados entre si, servindo de
mecanismo para a compreensão da identidade de indivíduos segundo a perspectiva daqueles
que construíram as representações cuja análise de seus papéis embasa a cultura política. Assim
sendo, esse conceito embora não necessariamente embase uma análise de como os próprios
indivíduos de um recorte estudado compreendiam suas próprias identidades, auxilia, porém,
nas análises acerca de como eram representados. Em outras palavras: de que forma suas
identidades foram construídas com base na memória perpetuada por outros atores históricos,
demonstrando-se então uma rica potência para se debruçar sobre grupos sociais cujos relatos
diretos de suas vozes foram apagados e/ou silenciados antes da atualidade.

5
Por “privado” aqui entende-se como aquele que apenas o executor tem ciência de sua existência.
16

Os estudos de uma cultura política contribuíram para se “compreender as motivações


que levam o homem a adoptar este ou aquele comportamento político” (BERSTEIN, 1998, p.
359). Aliás, a cultura política de uma dada sociedade não serviria apenas para compreender as
ações das pessoas, mas seria também indissociável aos seres humanos que na dada sociedade
estão inseridos. É, então, capaz de determinar as motivações dos atos políticos, das ações dos
indivíduos que são indissociáveis dela. Para Berstein, grande parte do mérito da utilização e da
análise da cultura política está nela servir de instrumento para compreensão de origens de
comportamentos humanos, ou seja, suas significações e motivações de modo a tornar possível
ao ofício do historiador o estabelecimento da coesão entre: ações humanas estudadas, certa
cultura política de uma realidade social e contextos históricos específicos. Somado a isso,
haveria também a potência de dada cultura política ajudar também na compreensão da coesão
nas ações de grupos humanos, organizados ao redor dela.
Outra riqueza do termo é a pluralidade inerente a si. Pluralidade essa desde a sua raiz,
nascida do diálogo entre a História Cultural e a História Política. O que deve ser destacado é
que para Berstein a cultura política de uma dada sociedade, nunca é una. Não há uma única
cultura política. A questão não é, porém, que o historiador tenha que estudar todas as culturas
políticas de uma sociedade, num dado recorte temporal, para chegar nos resultados de seu
problema. A centralidade é na aceitação do pesquisador de que seus resultados serão sempre
um recorte, uma parte de algo muito maior, nunca o todo. A História a ser escrita com base
nesses ensinamentos, ganha pela compressão da pluralidade, mais do que em pretéritas ilusões
de totalidade, por vezes frequentes na História Política mais tradicional6 (e, outras vezes,
perpetuadas até na historiografia da atualidade).
Buscando ampliar a discussão sobre as potências das análises de História Política,
colocada até agora, e a conexão com outras mais áreas ou campos, mobilizou-se o sociólogo
Pierre Bourdieu, principalmente tomando por base suas discussões construídas no livro A
economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer (2008). Para ele, tanto a fala quanto
todas as demais ações humanas são frutos de séries causais independentes. Afirma ainda que as
disposições são socialmente modeladas, sendo derivadas de um habitus7 linguístico responsável
por influências sobre o que é falado e como assim é feito. Tendo, porém, também em mente, o

6
Para uma análise da crítica da geração dos Annales à História Política mais tradicional e as inovações da Nova
História Política, conferir: JULIARD, 1974, p. 180-196; REMÓND, 2003, p. 13-36; SIRINELLI, 2014, p. 103-
124.
7
Habitus diz respeito a representação de como a cultura de um povo e o contexto histórico no qual se está
inserido moldam o corpo, a mente, logo, as ações dos indivíduos e, por consequência, assim também o fazem
com a realidade social na qual estão inseridos.
17

papel das estruturas sociais da linguística, o “mercado linguístico” (BOURDIEU, 2008, p. 24),
com sistemas de censuras e sanções. O discurso, por exemplo, não cumpriria seu papel pleno
para quem não é capaz de o entender. Isso acontece porque o produto linguístico só se realiza
completamente quanto é tratado enquanto tal, ou seja, decifrado. E mesmo que sejam, a
princípio, entendidas, as interpretações dos receptores podem variar, ou seja, podem ser mais
próximas (ou não) às interpretações dos que produziram tal discurso. Seja como for, há de se
ter consciência que “não existem mais palavras inocentes” (BOURDIEU, 2008, p. 27).
Toda dominação simbólica, ou seja, toda aquela que vai além da dominação meramente
coercitiva, implica em cumplicidade, em maior ou menor medida, por parte dos dominados,
não sendo tal “submissão passiva a uma coerção externa nem livre adesão a valores”
(BOURDIEU, 2008, p. 37). Um traço particular da dominação simbólica está no fato de
pressupor que os que com ela sofrem, escolham atitudes para além da liberdade ou da coerção.
A dominação é construída com base em disposições tanto internas, quanto externas ao ser. A
escolha está destacada para que fique enfatizado que ela é fruto de determinismo social, ou seja,
do habitus no qual o indivíduo está inserido, tendo-se em mente que a construção do habitus se
daria mesmo nas ações tidas como menos significantes e mais comuns. Assim, “o poder de
sugestão exercido através das coisas e das pessoas é a condição de eficácia de todas as espécies
de poder simbólico capazes de se exercerem em seguida sobre um habitus predisposto a senti-
las” (BOURDIEU, 2008, p. 38-39). Essa é uma violência visível, mas silenciosa, ou seja,
violência simbólica.
Bourdieu defende que a língua legítima, por si só, não tem poder para garantir sua
perpetuação em extensão. Ela depende da ação de pessoas. Então, a língua legítima, ou seja, a
língua oficial e normatizada, seria moldada não organicamente, mas sim de modo semiartificial,
através da dominação e da violência simbólica exercidas, principalmente, pelos grupos
dominantes de cada contexto social, histórico e político. Nessa perspectiva, um locutor sem
autoridade, ou seja, sem poder, profere um discurso fracassado, ou, ao menos, incapaz de
cumprir os interesses do tal falante. A eficácia do discurso está atrelada ao seu reconhecimento,
porém, ele não necessariamente depende da compreensão do ouvinte/leitor. Em suma, segundo
Bourdieu, um indivíduo pode compreender a autoridade de um discurso sem entender
exatamente o que ele quer dizer, desde que reconheça a autoridade de quem o profere. A eficácia
do discurso está, então, também associada aos receptores. Assim sendo, algumas construções
discursivas fazem mais sentido em certos espaços, para determinados públicos, que outras.
18

O sociólogo argumenta, inclusive, sobre a potência dessas disputas discursivas para


processos de construção de identidade. Segundo ele, lutas em torno da identidade étnica ou
regional são o mesmo que lutas em torno de propriedades associadas àquela origem, ou seja,
associadas como um lugar de origem. Essa disputa está ligada ao poder de construção de um
imaginário, uma verdade, uma visão de legitimidade, de uma dada realidade social através de
discursos. Discursos legitimados.
Bourdieu não foca apenas nas questões pontuadas no título, como as ‘trocas
linguísticas’, a ‘fala’ e a ‘economia do mercado linguístico’. Ele demonstra como as relações
sociais, as hierarquizações e disputas de poder para dominação, são influenciadas e resultados,
em maior ou menor medida, das construções, normatizações e transgressões linguísticas. Estas,
embora frutos de uma realidade social complexa que afeta todos os indivíduos de um mesmo
contexto histórico, espacial e político e dos quais esses não podem fugir em plenitude, na prática
funcionam apenas pela base construída através do conjunto de ações desses mesmos indivíduos,
os quais, ainda que tanto afetados pela violência simbólica e/ou física na sua realidade, tendem,
em alguma medida, a normalizar o status quo perante o qual foram socializados.
Em pesquisas de História Política, as argumentações de Bourdieu contribuem com a
construção de perspectivas teórico-metodológicas que buscam estruturar trabalhos que visam
compreender as construções discursivas sobre indivíduos, grupos e coletivos. Em diálogo com
o sociólogo, podemos compreender as disputas de poder e o papel da violência simbólica nessas
disputas entre distintos (ou não) grupos sociais. Para Pierre Bourdieu, não só as falas em si são
instrumentos, resultantes e resultados de ações humanas influenciadas pelas realidades sociais
e políticas dos indivíduos de contextos específicos. Segundo ele, mesmo a forma como ocorrem
as tais trocas linguísticas também o são, demonstrando assim as possibilidades das análises de
discursos para estudos historiográficos de História Política.
Antes de se retornar a discussão sobre as potências do discurso, há de ser discutido algo
que muito por ele é influenciado e que também o influencia: a memória. Em A Memória
Coletiva, Maurice Halbwachs (2003) desenvolve o conceito que dá nome a seu livro, o qual
diria respeito a memória compartilhada: por gerações, em grupos de indivíduos, esses
possuidores de algum vínculo, seja ele sanguíneo ou imaginário (religião, nacionalidade,
ideologia, dentre outros). As memórias individuais dos componentes desses conjuntos de
pessoas sofreriam grande influência dos fatores externos, de todo o ambiente à sua volta.
Dizendo de outro modo, a memória individual não se constituiria unicamente a partir de
lembranças pessoais, mas também sofreria significativa influência dessa memória perpetuada
19

em grupos sociais. Assim, as fontes aqui tratadas não foram vistas como casos individuais, mas
associadas entre si de modo a examinar a memória coletiva sobre os Mbayá-guaicuru
perpetuada por não indígenas.
Em diálogo direto com os escritos de Halbwachs, há produções de Michael Pollak,
especialmente seu canônico artigo, Memória, Esquecimento, Silêncio (1989). Nesse trabalho o
pesquisador desenvolve a ideia de disputas de memórias, através de disputas de discursos.
Numa sociedade, num coletivo de indivíduos, existiriam discursos oficiais perpetuados pelas
instituições e forças de poder. Seriam esses as principais fontes para a memória oficial, a
memória institucionalizada, dentro de um dado conjunto de pessoas. Em contrapartida,
existiriam também vozes silenciadas pelos tais discursos oficiais, subterrâneas comparadas
àquelas institucionalizadas que estariam na superfície. Essas vozes dissidentes seriam
responsáveis por perpetuar a memória subterrânea e muitas vezes o fariam através de métodos
que fogem do pleno controle daqueles que contribuem para a manutenção dos discursos oficiais,
como a oralidade. Ambas as memórias, tanto a oficial, institucionalizada, quanto aquela
subterrânea, sobrevivem em mesmos conjuntos humanos.
Essas memórias são elementos de máxima importância na construção dos diferentes
grupos humanos. Delas nasce o ideal de pertencimento, que marca o potencial de um coletivo
resistir às pressões reflexivas externas que acabam por influenciar essas comunidades. É do
reconhecimento de uma identidade, enraizado na memória, que resulta na união de grupos e
lhes significa, como pontuado pela historiadora, Márcia Maria Mendes Motta (2012), em
diálogo com Halbwachs e Pollak. Ainda segundo essa pesquisadora, é papel do historiador,
através da análise crítica das fontes, amparado em teoria, buscar compreender os discursos que
impregnam o corpus documental e, a partir disso, ser capaz mesmo de desconstruir memórias
oficiais, institucionalizadas, consagradas por/em grupos humanos.
Como lembrou Paul Ricoeur em A memória, a história, o esquecimento (2007), o
esquecimento é algo irremediável. A questão basilar é o que a manipulação da memória, através
de, por exemplo, disputas de discursos, escolhe perpetuar em sua seletividade. Isso acontece
tanto pela impossibilidade de alguém se lembrar de tudo, quanto pela intencionalidade de quem
construiu narrativas. De todo modo, persiste, porém, a possibilidade de se reconfigurar
estratégias de esquecimento. Assim, discursos são construídos de modo a omitir informações,
deslocar ênfases ou modificar protagonismos. Sabendo-se que na maioria das vezes, o
perpetuado, deriva da história oficial, há de se tomar certos cuidados. Embora defendida e
perpetuada por instituições de poder, a história oficial, assim como todas as outras
20

possibilidades discursivas, traz intencionalidade, projetos de poder, mais ou menos explícitos,


que são reflexo de culturas políticas.
Voltando às discussões de Pollak (1989), em diferentes momentos históricos, por
diferentes razões e ações humanas, a memória subterrânea emerge em conflitos mais aparentes,
se chocando e sendo capaz de alterar aquela institucionalizada. Uma problemática a se
considerar em estudos históricos diz respeito à ausência de fontes que trouxessem à tona o
discurso subterrâneo e, com ele, uma memória que pudesse ser contraposta à oficial. Pensando
no grupo indígena aqui estudado, suas vozes serão apenas levadas em consideração em
produções sobre eles a partir dos trabalhos de Darcy Ribeiro, publicados no decorrer da segunda
metade do século XX. Por esse motivo, as fontes até o século XIX, que serão analisadas nessa
pesquisa, perpetuam hegemonicamente os discursos oficiais, legitimados e defendidos de
acordo com os interesses de não indígenas.
Outro ponto estudado por Ricoeur (2007) são os traumas e sua indissociabilidade da
identidade coletiva. Aliás, permeariam tanto relações entre a identidade pessoal quanto a
comunitária. Isso acontece por representarem feridas, marcas de difícil apagamento, na
memória coletiva. Traumas afetariam as dinâmicas de poder, ilustrando, por exemplo, perdas
de territórios e populações, elementos que compõem base para as mais variadas sociedades
humanas em suas plurais culturas políticas. Exemplificariam também como se cruzam as
relações entre o coletivo e o individual, com fluidez e interconexões. Há papel e agência quando
discursos ou atitudes contribuem para a rememoração de traumas, violências, vitórias ou
derrotas, e mesmo humilhar aqueles tido como ‘outros’.
As discussões teóricas apresentadas até aqui, em muito condizem com as análises
metodológicas da história, realizadas pelo famoso historiador francês, Jacques Le Goff (2013)
em seu livro História e Memória. Segundo esse pesquisador, a construção da história, ou
melhor, a construção da história através das escritas e narrativas humanas é, necessariamente
parcial. De modo mais ou menos aparente, sempre existem julgamentos. Alguns, porém,
escondem de si mesmos o que os fundamenta. Até por isso é dever do historiador buscar analisar
o contexto no qual as fontes por ele trabalhadas foram constituídas, para assim entender os
julgamentos morais nelas impostos. Só tendo isso em mente um profissional seria capaz de
construir uma boa análise histórica.
Nessa disputa, alguns elementos são sempre centros de disputa. Como exemplo, haveria
a tradição, enquanto indispensável ao ser humano, por ser essencial a constituição de uma
identidade. A partir disso, reforça-se que a memória coletiva é constituída então como um
21

objeto de poder. Afinal, através dela toma forma a luta pela dominação de recordações e de
tradições que são componentes basilares de uma dada cultura política. Da disputa de discursos,
que perpetuam memórias individuais e coletivas, seriam também mais enfatizados ou
esquecidos aspectos de tradição que legitimam ou rejeitam a cultura política.
Se o modo como se escreve é importante, o que se escolheu para ser (ou não) propagado
nas fontes também o é. Não ao acaso, Le Goff (2013) defende que os próprios silenciamentos
perpetuados por fontes teriam um potencial papel de fonte em si:

Falar dos silêncios da historiografia tradicional não basta; penso que é preciso ir mais
longe: questionar a documentação histórica sobre as lacunas, interrogar-se sobre os
esquecimentos, os hiatos, os espaços em branco da história. Devemos fazer o
inventário dos arquivos do silêncio e fazer a história a partir dos documentos e da
ausência de documentos (LE GOFF, 2013, p. 107).

Silenciamento esse que pode ser ilustrado nos discursos aqui estudados. Aconteceu
constantemente em relação às identidades derivadas de culturas políticas distintas dos
narradores. Nesse cenário, o silêncio foi uma das respostas usadas ao que era considerado
aspecto de caráter ou de comportamento que destoavam, primeiramente, dos padrões morais
trazidos pelos europeus cristãos, depois, dos valores elencados para a construção de uma ideia
de nação brasileira ideal, muito influenciada pelos primeiros.
Em síntese, as escolhas teórico metodológicas dessa dissertação contribuem para o
entendimento de que a análise dos discursos pode ser usada como ferramenta para a
compreensão de discursos oficiais e, consequentemente, das memórias que tiveram como base
tais discursos. Entende-se aqui que os discursos analisados, que dão forma às fontes utilizadas,
estão carregados com a cultura política do contexto político, social e cultural no qual seus
autores viviam. A partir dessa base, esse trabalho de pesquisa constituiu-se pela análise das
memórias construídas a respeito de indígenas Mbayá-guaicuru, através dos tais discursos, por
não indígenas, tendo por recorte temporal o período que parte dos últimos anos do século XVIII,
estendendo-se até a década de 1860, antes do eclodir da Guerra da Tríplice Aliança (1864-
1870).
22

1 O INÍCIO DA APROXIMAÇÃO ENTRE GUAICURUS E PORTUGUESES: DE


FINS DO SÉCULO XVIII AO INÍCIO DO XIX

1.1 Contextualização histórica: guaicurus, portugueses e luso-brasileiros

No centro-Sul da América do Sul encontra-se uma vasta extensão territorial, com mais
de 700.000 km, chamada de Chaco ou Gran Chaco. Localizada entre partes de territórios que
atualmente pertencem a Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai, é uma região de topografia
majoritariamente formada por planícies. Embora seja um território de clima, em geral, seco, há
rios e outros afluentes irrigando a região (JOSÉ DA SILVA, 2014). Desde as primeiras
incursões europeias na região, há relatos sobre a ocupação de diferentes grupos indígenas no
Chaco. Dentre os grupos que viveram por essa região, um dos que mais se destacaram foram
os Mbayá-guaicuru ou Guaicuru, que eram lidos como caçadores-coletores nômades, citados
por antigos escritos de autoria europeia (e euro-americana) como indígenas hostis e guerreiros
perigosos, mesmo para estes que se consideravam superiores a eles.
Desde antes do contato com europeus (BESPALEZ, 2015), esses indígenas eram
reconhecidos pelo seu ethos guerreiro pelas demais etnias do entorno, além disso possuíam
diferentes grupos e subgrupos agregados na mesma etnia, tanto por uma similaridade na questão
linguística8como por, mesmo havendo determinadas diferenças culturais, se entenderem
enquanto um mesmo povo (HERBERTS, 1998; JOSÉ DA SILVA, 2014; VANGELISTA,
1993), segundo diferentes autores. Para Giovani José da Silva, dentre as diversas etnias que
viviam no Chaco, os Guaicuru eram “os que mais extensamente se distribuíam” na região. O
historiador ressalta que, embora houvesse diferentes subgrupos Guaicuru, esses “mantinham
certa unidade territorial” (2014, p. 43). Havia, prévio a colonização, um histórico de conflitos
com outros indígenas (HERBERTS, 1998), a exemplo de guaranis, dos quais advém os nomes
“mbayá” e “guaicuru”, que eram termos pejorativos no idioma guarani, através do qual
europeus tomaram conhecimento de sua existência e acabaram perpetuando seu uso
(HERBERTS, 1998, p. 19-21). A tradição historiográfica contemporânea segue utilizando
‘Mbayá-guaicuru’ ou ‘Guaicuru’ para se referir a esse antigo povo, por isso, também optamos
por assim o fazer. Todavia, fica o registro do termo originário pelo qual eles se autonomeariam:
‘Eyiguayegui’9.

8
Atualmente consideradas agregadas na chamada família linguística Guaicuru.
9
Há um único historiador especialista no tema, Astor Weber, que os nomeia em suas publicações de
“eyiguayegui-mbayá-guaicuru” (2007, 2008). O primeiro trabalho publicado encontrado que nomeia esses
indígenas apenas como ‘eyiguayegui’ desde seu título é a recente dissertação em Antropologia Social de
Gabriela Freire (2018).
23

Os conflitos entre Mbayá-guaicuru e outros povos de seu entorno eram motivados pela
captura de recursos e, principalmente, de cativos. Acontece que, possivelmente em decorrência
de um modo de vida nômade com amplos deslocamentos territoriais, o aborto e o infanticídio
eram práticas recorrentes dentre essa etnia. Bebês só seriam gerados pelas mães quando estas
já não fossem tão novas, estando mais próximas do que entenderiam enquanto fim da vida
reprodutiva. Os indivíduos capturados em suas pilhagens, majoritariamente de tenra idade,
eram agregados ao seu modo de vida.
Desde, ao menos, o século XVI, havia uma etnia que possuía uma relação diferenciada
com os Guaicuru. Alguns subgrupos dos chamados Guanás10, agricultores sedentários, teriam
uma particular proximidade com os vizinhos bélicos (BESPALEZ, 2015). Numa relação
construída com base em laços matrimoniais e que alguns autores chamam de uma relação de
“vassalagem” para com Guaicuru (HERBERTS, 1998, p. 34-35; VANGELISTA, 1993, p. 57-
60), sem necessidade de conflitos.
Ao menos desde a época do contato com não indígenas, os Mbayá-guaicuru possuíam
uma sociedade complexa e estratificada, onde era muito valorizada a figura do guerreiro
(VANGELISTA, 1993) e a dos chamados11 ‘capitães’, líderes dos grupos, cujas parceiras
seriam as ‘donas’. Para melhor compreender essas relações é necessário ter em mente que os
Guaicuru “alimentavam uma imagem de superioridade étnica em relação aos demais povos
indígenas”, sendo essa mantida também em relação “aos portugueses e espanhóis”
(FERREIRA, 2009, p. 113).
Uma das principais motivações que ganha destaque entre os Guaicuru, quando
pensamos no Chaco, é a forte resistência à colonização europeia que eles estabeleceram. Tanto
contra os espanhóis, desde o século XVI, como contra os portugueses, posteriormente. Estes
segundos, que começaram a estender suas ambições geográficas para o interior do continente,
de modo mais concreto, apenas a partir do século XVIII. Ainda assim, em tempos anteriores já
haviam enviado expedições àquelas regiões, inclusive bélicas, as quais foram comumente
derrotadas pelos indígenas.
Os Guaicuru tinham importante presença em áreas do Rio Paraguai onde, atualmente,
existe o limite entre o Paraguai e o estado brasileiro do Mato Grosso do Sul12. Há relatos de

10
Atualmente nomeados de Chané.
11
Muito provavelmente esse não é um termo original dos Guaicuru. Deve ter advindo do contato com europeus
e, a partir de então, apropriado por eles.
12
O Mato Grosso do Sul surgiu em 1977, sendo separado do então Mato Grosso, do qual até então compunha a
região Sul.
24

populações mais ao Sul, chamadas por indígenas guaranis, seus já mencionados inimigos, de
‘Guaicuru’ e populações mais ao Norte, chamadas por eles de ‘Mbayá’. Já houve confusão entre
pesquisadores de séculos passados em relação aos nomes, considerando esses grupos de etnias
diferentes, mas conforme previamente indicado, além da similaridade linguística, eles mesmos
se entenderiam enquanto parte de um mesmo povo (VANGELISTA, 1993; HERBERTS, 1998).
No final do século XVII, o grupo do Sul é visto como “desintegrado”, há autores que defendem
algumas possibilidades a respeito, como a migração desses Sulistas para Norte, mas sem provas
definitivas (HERBERTS, 1998, p. 31-32).
Uma das primeiras mudanças que o contato com europeus, ainda no século XVI,
promoveu, foi a inclusão de cavalos no modo de vida Guaicuru. Antes eles estavam distribuídos
geograficamente e tinham relações de dominação com outras etnias. Após a inclusão dos
equinos aumentaram-se as potencialidades de transporte, captura de cativos e controle de
amplas terras, além de novos modos de guerrear, - os quais os tornaram ainda mais temidos
(VANGELISTA, 1993) - foram essenciais para a expansão dos domínios Guaicuru no centro-
Sul da América do Sul. O ápice desse domínio territorial teria ocorrido em meados do século
XVIII (HERBERTS, 1998), quando a maior parte desses indígenas já se encontrava em regiões
ao Norte do Rio Paraguai.
As primeiras povoações da Coroa portuguesa, em terras dos então sertões do Oeste,
sofreram constantes ataques por parte dos Guaicuru. Em resposta, expedições luso-brasileiras
de caráter bélico foram enviadas, mas sem conseguirem resultados efetivos. A presença
portuguesa, na atual região limítrofe entre o Paraguai e o estado brasileiro do Mato Grosso do
Sul, só começou a se consolidar nas últimas décadas do século XVIII, isso em decorrência da
construção de fortificações militares, na época que a região era ainda constantemente palco de
conflitos entre portugueses, espanhóis e indígenas (HERBERTS, 1998).
No decorrer do século XVIII, após o já citado ápice de seus domínios, o controle
territorial por parte dos Guaicuru começa a decair, não mais voltando a ser como antes. Isso
acontece pela soma de três fatores: os regulares conflitos com outras etnias indígenas, somada
a novas incursões punitivas por parte dos espanhóis, de um lado, e, do outro, a crescente
expansão portuguesa motivada por descobertas de metais preciosos nas capitanias centrais
(HERBERTS, 1998; VANGELISTA, 2015; WEBER, 2008).
As últimas décadas do século XVIII foram marcadas por uma iniciativa de aproximação
do governo luso-brasileiro aos Mbayá-guaicuru. Com a melhora das relações entre esses, houve
uma tendência migratória que aproximou territorialmente os indígenas dos portugueses.
25

Diferentes grupos que estavam no lado ocidental do rio Paraguai, em terras do atual Paraguai,
passaram a viver no lado oriental, onde hoje se localiza o estado brasileiro do Mato Grosso do
Sul. A aliança dos colonizadores portugueses com os indígenas teria um papel essencial na
garantia dos interesses fronteiriços da Coroa de Portugal (WEBER, 2008; ROLLER, 2018).
A consequência desse contexto, não tão comum naquele tempo e espaço, gerou uma
aliança formal entre a coroa e os Guaicuru. Em 1791 um grupo de indígenas, incluindo dois
chefes, ‘capitães’ de dois agrupamentos Guaicuru, se encontra com representantes portugueses
para ‘assinar’ o Tratado de Paz. É importante ter em mente o esclarecimento trazido por Astor
Weber (2008), que mesmo com fontes afirmando que se esses chefes teriam assinado o tal
tratado, não foi isso que ocorreu. Esses indígenas não eram letrados, afinal, a escrita não era
comum ao seu modo de vida, o que não quer dizer que eles não tivessem interesses no Tratado,
mas coloca em dúvida o pleno entendimento desses indivíduos sobre a totalidade do que foi
estabelecido. Seja como for, nos anos seguintes, outras lideranças indígenas se encontraram
com portugueses para formalizar a aliança (VANGELISTA, 1993). A partir desse processo,
seguiu ocorrendo a migração citada anteriormente, a partir da qual grupos de Guaicuru
assentaram-se mais próximos das fortificações portuguesas13, então recentes, como o Presídio
Nova Coimbra (ou Forte Coimbra), datado de 1775. É justo nesse contexto de aliança luso-
indígena, com mais contato e trocas culturais e materiais, entre esses distintos grupos de
pessoas, que aumentam também os escritos em língua portuguesa sobre os Mbayá-guaicuru.
Deve-se ter em mente que não podemos cometer o erro de interpretar os indígenas como
seres passivos ou sem ação. A romantização em nada contribui para os estudos que versam
sobre a história de populações indígenas. Do mesmo modo que os portugueses manipularam os
povos indígenas, os Guaicuru também manipularam os europeus e euro-americanos
(FERREIRA, 2009; ROLLER, 2018). Houve jogos de interesses diversos, mesmo dentro das
populações dos grupos ou subgrupos Guaicuru.
Outro ponto a se elencar é que, segundo a tese mais recorrente e perpetuada pela
historiografia contemporânea sobre esses povos, o século XIX foi marcado pelo decréscimo
populacional dos antigos Guaicuru, até quase seu fim. Esse argumento tem como base que, dos
diferentes grupos e subgrupos que já compuseram os povos da família linguística Guaicuru, ao
final do século citado, o único que continuou a aparecer nas fontes foram os kadiwéu
(HERBERTS, 1998; ROLLER, 2018).

13
O que não quer dizer, como será ilustrado ainda nesse capítulo, que também ocorreu o processo inverso, com
indígenas, antes em terras em posse portuguesa, deslocando-se para domínios espanhóis.
26

O decréscimo populacional no século XIX não é um acontecimento exclusivo dos


Guaicuru. Ainda assim, pensando especificamente nesses grupos, distintos autores apontam
algumas questões que devem ter contribuído para isso. Um exemplo pode ser encontrado nos
escritos da historiadora e arqueóloga, Ana Lúcia Herberts (1998), que coloca as mortes
decorrentes da Guerra do Paraguai, em que os Guaicuru foram atores essenciais para a
manutenção dos interesses limítrofes brasileiros, como uma das motivações.
A história do contato entre indígenas Guaicuru e não indígenas ibéricos, nascidos nas
metrópoles ou colônias, foi marcada por representações estigmatizadas, conflitos físicos,
violentos e simbólicos, sublinhados por constantes disputas de interesses entre todas as partes
envolvidas. Embora possuidores de culturas políticas distintas em incontáveis aspectos, tanto
estes indígenas como os não indígenas, compreendiam-se enquanto superiores ao ‘outro’, ou
seja, a todos que fossem julgados diferentes. As fontes analisadas nas próximas páginas desse
capítulo ilustram jogos de poder e disputas de interesses, na constante perspectiva colonialista
do ‘eu’ contra o ‘outro’, reproduzidos em escritos de dois importantes militares da região
limítrofe entre o então Sul da província do Mato Grosso e os domínios espanhóis do Paraguai,
na transição do século XVIII para o XIX.

1.2 Os Guaicuru, por Francisco Rodrigues do Prado

A fonte aqui analisada é uma das mais importantes dentre o corpo documental que
embasa essa dissertação. Constitui-se enquanto o primeiro texto em português que traz como
tema central os indígenas Guaicuru, tendo sido escrito por um não indígena que com eles
conviveu, sendo resultado dos primeiros anos de aproximação e aliança entre grupos Guaicuru
e portugueses. Além disso, esse documento ilustra um conjunto de informações sobre o grupo
indígena analisado, que foram reproduzidas incontáveis vezes já no século no qual começou a
ser divulgado, os oitocentos. É difícil encontrar textos do século XIX sobre os Guaicuru, que
não propaguem informações e impressões vindas sobre essa etnia. Principalmente após a
divulgação desse documento, logo no primeiro tomo da Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio de Janeiro (RIHGB), publicado em 1839. De todo modo, ao menos uma
outra edição destes escritos chegou a ser publicada anteriormente em outro periódico, no ano
de 181414. História dos Índios Cavaleiros ou da Nação Guaicuru é uma espécie de relatório

14
Tal publicação prévia saiu no jornal mato-grossense O Patriota (PRADO, 1814). Essa primeira transcrição
omite frases e trechos que compõem a versão publicada na RIHGB. Segundo seu biógrafo, o historiador e militar
Raul Silveira de Mello, nas diferentes publicações desse importante documento “se encontram falhas decorrentes
talvez de cochilos de copistas, tais como adulteração de palavras, omissões e trocas de letras, ortografias
27

escrito pelo então comandante do Presídio de Nova Coimbra, Francisco Rodrigues do Prado,
em 179515.
Prado foi, segundo ele mesmo (PRADO, 1908, p. 23), e também na perspectiva de
pesquisadores contemporâneos (MELLO, 1968; CAMPESTRINI, 2006), uma figura que teve
uma proximidade ímpar com os Guaicuru. Não sendo um mero observador afastado que
escrevera sobre os indígenas, tampouco um sujeito que nunca conviveu com eles, como tantos
o fizeram no decorrer dos oitocentos. A maioria desses estudiosos produziu tendo por base, ao
menos parcialmente, o próprio relato construído por Prado.
Antes de começarmos a análise da fonte, busquemos compreender melhor a figura que
a escreveu. Francisco Rodrigues do Prado16 nasceu em 1758, nas terras da então colônia
portuguesa do Brasil, na cidade de São João Del Rei, parte da capitania de Minas Gerais. Sua
ancestralidade não é clara, mas há o incomum fato de seu sobrenome não ter vindo nem de seu
pai, nem de sua mãe17. O historiador e militar Raul Mello (1968), ao cruzar dados, levanta a
possibilidade de isso derivar de algum avô bandeirante. Ancestralidade essa, ainda que não
passível de comprovação, segundo o biógrafo, ajudaria a compreender algumas das atitudes
desafiadoras tomadas por Francisco Rodrigues do Prado ainda jovem18. Aos vinte anos
atravessou centenas de quilômetros de matas de difícil acesso, mudando-se para Vila Bela, à
época, sede da recém-criada capitania de Mato Grosso19. A mudança possivelmente esteve
atrelada ao fato de possuir um irmão que trabalhava ou viria a trabalhar, enquanto minerador

viciadas, provindas de tropeços na leitura do original ou das cópias que serviram para as publicações” (1968, p.
118).
15
Não fica claro, ao longo dos escritos do militar, para quem era direcionada esse seu trabalho. Faria particular
sentido se assim o fosse para o governador e capitão-general da província de Mato Grosso, durante o período de
construção da obra, João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. Essa hipótese é defendida por Mello (1968)
que argumenta que o original perdido, perdido no tempo presente, possivelmente teria sido oferecido a essa
figura. Ainda assim, o mesmo historiador ilustra que seu sucessor, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, do
mesmo modo que solicitou parecer sobre o aldeamento dos Guaicuru a Ricardo Franco de Almeida Serra (que
será analisado no próximo subtópico deste capítulo), então comandante de Coimbra, teria pedido informações
sobre os mesmos indígenas para Prado, já enquanto comandante do Forte de Miranda. Culminando em
Montenegro também ter tido acesso a alguma versão desse documento.
16
Segundo seu biógrafo, o historiador e militar, Raul Silveira de Mello (1968).
17
Seus pais foram Domingos Rodrigues da Silva e Maria Jorge Velha.
18
Raul Silveira de Mello, militar de carreira, general, intencionalmente ou não, constrói um exemplar de
‘história dos grandes homens’ com essa biografia. Há de tomar cuidado com os excessos de enaltecimentos que
ele atrela a figura de Prado. Ainda assim, é factual certas decisões e atitudes de Prado terem sido, no mínimo,
desafiadoras. Para começar, ao atravessar centenas de quilômetros de mata densas e pouco mapeadas ainda com
20 anos. Depois se tornando ainda um militar relevante numa região inconstante da colônia, tendo de lidar,
constantemente, com disputas de interesses luso-brasileiros, espanholas e indígenas. O que não me considero
apto a fazer, e aqui destoo de Mello, é atribuir suas escolhas a sua honra ou índole. Isso só seria capaz de fazer
caso conseguisse ter acesso, no mínimo, a uma autobiografia de Prado, que ainda teria de ser lida criticamente, à
luz do seu tempo e contexto de produção.
19
Estabelecida, oficialmente, pela Coroa portuguesa naquele mesmo ano, 1748.
28

naquela região. Estabelecido na região limítrofe Oeste, diferentemente do irmão, não seguiu na
mineração, mas dispôs-se ao ofício das armas.
Por volta de 1780, já maior de idade, fez devidas provas e juntou-se à Companhia dos
Dragões. Essa corporação tinha um recrutamento seletivo e possuía prestígio a parte devido a
sua função de proteger os capitães-generais da capitania. Tal força de elite, composta por cerca
de 200 homens, compunha a única tropa de linha do então Mato Grosso. Eles guarneciam o
palácio de Vila Bela e protegiam os capitães generais em suas idas e vindas para fora da capital.
Após um conjunto de instruções ao longo de seu primeiro ano de serviço militar, em 1781
recebeu sua primeira graduação: ‘cabo-de-esquadra’. Serviu em sua primeira fortificação
fronteiriça, o Forte do Príncipe da Beira, localizado de modo a assegurar domínio luso-
brasileiro na região do médio-Guaporé20. Em 1784 recebeu nova graduação, agora como ‘porta-
estandarte’. Em 1789 tornou-se ‘furriel de dragões’. Nos anos seguintes sofreu sindicância (da
qual foi inocentado), que culminou no seu deslocamento para a frente Sul. Também realizou
algumas diligências ao Paraguai, julgadas bem-sucedidas pelo governo, que o promoveu a
‘ajudante’. A partir dessa promoção, deixou a Companhia dos Dragões para um posto
remunerado de uma das milícias da capitania. Esse artifício fez com que pudesse passar direto
pelo cargo de ‘alferes’, indo já para um segundo posto de oficialato e, assim, também, se
tornasse comandante do Presídio de Nova Coimbra. Prado exerceu esse cargo de 1792 até 1797.
Ao longo de suas mais de duas décadas de serviço militar, Francisco Rodrigues de Prado
parece ter desfrutado de respeito e prestígio, tanto por parte de sequentes governadores e
capitães-generais, quanto de outros militares relevantes que atuaram na região21.
A versão da História dos Índios Cavaleiros ou da Nação Guaicuru que dá base para
esse trabalho é sua transcrição de 1839, quase meio século após sua escrita. Que é também a
mais popularizada, haja vista a importância da R. IHGB na construção histórica e cultural do
projeto político do Brasil oitocentista e dos ideais de nação, em construção22.
Não há pretensão de se analisar tudo que foi escrito nas fontes selecionadas ao longo
deste capítulo. Os escritos sobre esses indígenas que aqui serão objeto de análise perpetuam
memórias de seus autores não indígenas, de modo a transmitir a cultura política do contexto
histórico no qual essas figuras estavam inseridas. As factualidades não serão desprezadas na

20
Atualmente, marca os limites dos estados do Mato Grosso e Rondônia para com a Bolívia.
21
Como Ricardo Franco de Almeida Serra, autor do parecer que será analisado mais adiante ainda nesse
capítulo.
22
A edição da revista utilizada para extração dos excertos desse capítulo foi a reedição do primeiro tomo,
publicada em 1908 e disponibilizada para acesso gratuito no portal eletrônico do próprio IHGB. O link para
acesso está disponibilizado na lista de fontes, ao final da dissertação.
29

dissertação que toma forma nessas páginas. Mais do que quem eram os Guaicuru em si, o foco
será a compreensão da construção da memória sobre esses indivíduos estabelecida por não
indígenas, a partir da análise de seus discursos. Vamos observar ainda como a cultura política
em que os autores dessas fontes estão inseridos, se transpõe para os escritos por eles
perpetuados. Ainda que as fontes de interesse tratem de uma etnia indígena específica, a análise
delas ensina mais sobre quem as escreveu, do que a respeito dos indivíduos descritos.
Prado já começa seu relato com uma abordagem generalista, como era usual ao se
escrever sobre indígenas naquele período. Tanto ele, quanto o autor da próxima fonte a ser
analisada nesse capítulo, alternam entre a “nação Guaicuru” (1908, p. 21)23 e os diferentes
subgrupos e comunidades separadas que formam esse povo. Essa dualidade é marcante porque,
ao passo que reconhece alguma diversidade dentro dessa população indígena, compreende-se
também a representação de características e valores homogêneos. Ainda que se reconheça a
factualidade dessas divisões, ou seja, de nem todos os Guaicuru viverem juntos, enquanto uma
população una, trata-se o todo como “nação guaicuru”. Isso condiz com a abordagem genérica,
oitocentista, acerca de povos indígenas, de se omitir distinções e focar em identidades, se não
únicas, reduzidas, comprimidas, como já defendido por historiadores e antropólogos há décadas
(ALMEIDA, 2012; CUNHA, 1992a; KODAMA, 2009; dentre outros)
Ainda nesse primeiro parágrafo, volta a aparecer a dualidade, reforçando o
conhecimento de Prado sobre os Guaicuru, ao mesmo tempo que relembrando sua posição
enquanto um homem de sua época. O militar os chama de “errante[s]” (1908, p. 21), em relação
ao seu nomadismo e não estabelecimento de moradias fixas, embora afirme que sempre teriam
vivido na mesma região. De um lado havia o reconhecimento de parte do modo de vida desses
indígenas, algo não fixo, do outro a afirmação de que aquele povo teria “sempre habit[ado] as
margens do rio Paraguai” (1908, p. 21, grifo nosso), algo fixo. Seja como for, em ambos os
casos Prado explicita apenas o que foi capaz de constatar, exemplificando seu pensamento de
homem ilustrado. Se os Guaicuru já tivessem explorado e vivido muito além das margens do
rio Paraguai não haveria como Prado saber. Desde o início do contato dos europeus ibéricos
com aqueles, estes indígenas já se encontravam pelo centro-Sul da América do Sul e mesmo
em seus períodos mais expandidos, às margens do rio, seguiram atraentes a eles. Historicamente
e por todo o mundo, acesso a água doce e corrente é um fator sedutor para os mais variados
povos humanos, e não há nada que faça parecer que os Guaicuru destoaram disso. A princípio,

23
Optou-se por adequar a gramática das citações às normas do português brasileiro em vigência, para facilitação
da compreensão das ideias transmitidas.
30

apenas futuros trabalhos arqueológicos seriam capazes de confirmar ou negar que esses
indígenas ‘sempre’ estiveram circulando por essas margens. Infelizmente, o nomadismo, a falta
de moradias fixas e outros hábitos mais, tornaram seus vestígios materiais pouco duradouros e,
assim, dificultando significativamente a busca por certezas (BESPALEZ, 2015). Pelo menos,
avaliando os estudos desenvolvidos até o momento.
Ao abordar os relatos dos primeiros contatos entre portugueses e os Guaicuru, Prado
classifica os indígenas enquanto “bárbaros” e “selvagens” (1908, p. 22), termos antagônicos à
então preciosa e enaltecida ideia de ‘civilização’. A barbaridade aqui representava o
“desumano, feroz, cruel, inculto”, mais próximo de animais, do que de seres humanos” (SILVA;
BLUTEAU, 1789, p. 263, v. 1). Essa caracterização dos Guaicuru vem no mesmo contexto em
que se abordava que mesmo os bandeirantes, ‘desbravadores’ representantes da ‘civilização’,
temiam e não poucas vezes foram acuados por esses indígenas, sendo a fuga, muitas vezes, a
única resposta frente a esses indivíduos que já montavam seus cavalos e tão bem conheciam os
sertões nos quais viviam (1908, p. 22-23).
Seguindo a mesma linha de ‘temíveis’ e que tanto deram trabalho para forças da Coroa
em séculos anteriores, os Guaicuru também são descritos como seres de capacidade física e
saúde excepcionais:

São os Cavaleiros de uma cor mais escura que a de cobre, e de estatura alta, tanto que
entre eles há homens de seis pés e meio de altura [quase 2 metros], bem-feitos,
envoltos em carnes, capazes de resistir à fome e à sede, e endurecidos ao trabalho de
uma maneira inefável; e são também notáveis pelo costume de arrancarem as
sobrancelhas e as pestanas. Nos gestos de todos respira robustez e um estado perfeito
de saúde (PRADO, 1908, p. 23).

Além disso, teriam digestão “perfeita”, muitos chegariam “à extrema velhice”. Prado
afirma também que “não se sabe entre eles o que seja escorbuto, nem tem lembrança de mortes
repentinas” (1908, p. 23).
Assim como considerava usual a outros “selvagens da América”, possuíam um
“semblante melancólico” (PRADO, 1908, p. 24), ou seja, triste. Tão interessante quanto a
caracterização negativa do semblante de indígenas das Américas é a generalização. Nesse
mesmo parágrafo Prado fala que é usual o semblante coletivo também entre “os Judeus, os
Guebros ou Guaris, chamados nas outras eras de Parcis, e nos Vândalos” (1908, p. 24). Essa
colocação ajuda a compreender e ilustrar a diferenciação entre ‘eu’ e o ‘outro’. Entre os ideais
culturais e políticos do seu povo em dado contexto histórico e outros, distintos, tão comumente
tidos enquanto menos ou não civilizados, com sua humanidade relativizada (FANON, 2008;
31

SOUZA, 2009). Embora influenciado por reflexos do iluminismo, Prado também era fruto do
cristianismo português. Daí também vem, ao menos, parte da influência da ideia da infelicidade
do semblante dos povos originários. A felicidade deve estar associada ao cristianismo, aos
valores ditos civilizados e as demais ‘verdades’ trazidas do Atlântico, mais de dois séculos
antes. Isso é algo naturalizado, que permeia, mais ou menos intrinsecamente, os indivíduos
inseridos naquela cultura política.
Ao abordar as mulheres Guaicuru, Prado se atém a aparência delas. Especificamente de
como não possuíam a beleza e a graça europeia. Ao tratar dos adornos usados por elas, afirma
que “com esses rústicos enfeites mostram que este sexo, ainda no centro da barbaridade brutal,
parece se não pode escusar de ser tributário do luxo e da vaidade” (1908, p. 25). Para além das
caracterizações negativas ao ‘outro’, indígena, aqui temos também a depreciação do feminino.
O militar afirma que, mesmo dentre um povo culturalmente diferente do seu, a figura das
mulheres seguiria atrelada à luxúria e à vaidade, ou seja, ao desejo, a impermanência, a
pretensão e a falta de merecimento (SILVA; BLUTEAU, 1789). Como se o que interpreta
enquanto ‘defeitos’ do feminino estivessem atrelados não a uma cultura ou modo de viver, mas
sim que fossem intrínsecos ao seu sexo. Fruto de um ‘pecado original’, constantemente
reafirmado e desprezado pela fé cristã católica, que tinha muitos devotos, inclusive Prado (1908,
p. 25). Se esses ‘defeitos de caráter’ advinham desde tempos bíblicos, de um impreciso passado,
não é surpresa um cristão devoto interpretar que o mundo a sua volta o perpetuava. Essas
características transcenderiam culturas, idiomas e oceanos, legitimando o discurso cristão
daquele contexto histórico, ilustrando ainda aspectos de uma cultura política que se perpetuava
(e que, em maior ou menor medida, segue no tempo presente).
Ainda sobre as mulheres Guaicuru, Prado afirma que são bem-amadas por seus
maridos24, para os quais “tem um desvelo excessivo” (1908, p. 25) em agradar. Tal
característica delas justificaria os recorrentes abortos que realizavam quando engravidavam
antes do entorno dos 30 anos. Elas temeriam que o futuro bebê causasse incômodo. Não teria
passado pelos pensamentos de Prado, que a criação de infantes talvez não fosse tão compatível
ao modo de vida nômade, guerreiro e dinâmico25, por ele mesmo descrito. Em sequência, o

24
Há de se ter em mente que a concepção ocidental, europeia e cristã de casamento, embora seja transpassada
nos escritos acerca desses indígenas, não existia na prática. Conforme o decorrer deste capítulo ajudará a ilustrar,
os relacionamentos entre os Guaicuru eram marcados por muita fluidez. Não chegavam a ser como relações não-
monogâmicas, ainda assim, havia, por exemplo, a liberdade para se finalizar um ‘casamento’ e começar outro,
sem problemas. E nada impedia que se voltasse a antigos parceiros. Não havia nem sombra de ideia de um
compromisso eterno. Isso só ocorreria após a concepção de uma criança saudável.
25
Pesquisas em populações de povos caçadores-coletores contemporâneos ilustram um cenário de alta taxa de
mortalidade infantil, somada a uma alta mortalidade durante a juventude. Num estudo de revisão sobre
32

militar questiona esses hábitos e afirma crer que levariam ao fim daqueles indígenas.
Pensamento esse que explicita, sobre uma ideia de que os indígenas estariam caminhando para
sua ‘extinção’, que seguiria se popularizando ao longo do século XIX (PARAISO, 2010).
Perante o seu raciocínio a perpetuação daquela etnia dependeria, necessariamente, de
perpetuação consanguínea através das gerações. O que Prado não percebeu, mas descreveu
muito bem, é que grande parte dos novos indivíduos que adentravam, ao longo do tempo, nas
populações Guaicuru, não eram filhos seus, mas sim cativos, de distintas idades, que eram
agregados também no seu modo de vida. A cultura Guaicuru existia e se perpetuava, não
estaticamente, mas através das trocas entre indivíduos e as culturas que os permeavam.
Entre os Guaicuru existiram também indivíduos chamados ‘cudinas’26. Essas pessoas
teriam sexo masculino, porém, segundo Prado, conservavam com exatidão os mesmos
comportamentos que as mulheres de seu povo. Aos olhos do militar seriam então homens
imitando mulheres. Comportamento esse que, segundo os valores cristãos, perpetuados na
concepção de mundo compartilhada pelos portugueses oitocentistas, seria algo, no mínimo,
condenável. Ele chama essas pessoas de meretrizes e pecadores (1908, p. 26-27), as
considerando sujas, desafiantes ao Deus cristão e merecedoras de castigos, só por serem quem
eram (SILVA; BLUTEAU, 1789). As cudinas representaram o ápice dos valores e
características dos Guaicuru que se oporiam à cultura política, cristã e europeia, na qual o
militar estava inserido.
Mais adiante, Prado critica esses indígenas ao afirmar que “os Guaicuru são tão soberbos
que a todos os gentios confinantes tratam com desprezo, e estes de alguma sorte os respeitam”
(1908, p. 30). O militar tinha conhecimento sobre o mito de origem 27 daqueles indígenas, a

expectativa de vida em populações de caçadores-coletores, a arqueóloga Brea McCauley, afirma que “Em
comparação com os Estados Unidos, a mortalidade infantil é mais de 30 vezes maior entre os caçadores-
coletores modernos, e a mortalidade infantil precoce é mais de 100 vezes maior. Mesmo a mortalidade infantil
tardia é cerca de 80 vezes maior entre os caçadores-coletores modernos. Só no final da adolescência é que a
relação começa a se igualar, com uma diferença de mortalidade de mais de dez vezes. Essa diferença continua
diminuindo até atingir os 70 anos, quando a mortalidade entre os caçadores-coletores modernos é apenas três
vezes maior do que entre os indivíduos da mesma idade que vivem nos Estados Unidos” (McCAULEY, 2018, p.
2, tradução nossa). Isso exposto, realidades de expectativa entre essas populações variam conforme etnia,
ambiente, temporalidade e outros fatores mais. Logo, não há expectativa de transpor essa realidade para a dos
Guaicuru no período estudado. Ainda assim, ajuda a começar a compreender certas motivações dos Guaicuru.
26
Sobre as cudinas já pesquisei com mais profundidade e publiquei alguns trabalhos. Conferir: BORGES,
2021a; 2021b; 2023. Há outros escritos, em fases iniciais, que, futuramente, originarão outras publicações.
27
Uma divindade teria criado todos os povos e dividido as terras e riquezas entre esses. Os Guaicuru haviam
então sido esquecidos. O carcará, uma ave de rapina que habita o centro Sul da América do Sul, se apiedou e
criou esses indígenas. Após, foram agraciados com as armas que usavam, como o porrete e a lança. Caberia
então a esse povo guerreiro, e sem terras, conquistar as outras nações, adquirindo cativos e outros bens mais.
Para descrições dessa história, nas fontes aqui analisadas, conferir: PRADO, 1908, p. 28-29; SERRA, 1872, p.
359-360.
33

partir dele havia toda uma autolegitimação para que os Guaicuru pudessem dominar quaisquer
outras populações indígenas. Dominação essa que também era basilar para a perduração da
etnia, haja vista suas práticas abortivas e o papel de outros grupos que forneciam, por exemplo,
cativos e/ou produtos agrícolas aos Guaicuru em troca de boas relações. Essa autolegitimação
que justificaria tais atos seria então, para Prado, fruto de um ideal de soberba, representado pelo
“orgulho, presunção e arrogância” (SILVA; BLUTEAU, 1789, p. 706, v. 2). Um indígena se
considerar superior a outro ‘igual’? Isso era um absurdo perante os valores da cultura política
portuguesa oitocentista vivenciada por Prado. Na perspectiva de mundo na qual o militar estava
inserido, era praticamente impossível compreender que o quê ele criticava tinha paralelos em
sua própria realidade. Afinal, com base em interpretações do ‘mito de origem’ cristão, presente
na bíblia, que muitos dos ditos ‘civilizados’ se julgavam superiores e no direito de subjugar o
‘outro’. Como o próprio Prado ilustra, e já foi citado anteriormente, um ‘outro’, antagônico aos
‘civilizados’, que abrangeria não só indígenas e outros povos originários pelo mundo, mas
também os judeus, por exemplo.
Logo na sequência, Prado descreve como a associação entre portugueses e indígenas da
região limítrofe foi paulatinamente deteriorando as relações interétnicas estabelecidas até então.
Se antes os Guanás dependiam dos Guaicuru para proteção contra outros povos e, claro, para
não serem atacados por estes, a crescente proximidade portuguesa foi abalando as dinâmicas de
poder. Os não indígenas, não somente eram capazes de passar, ao menos, uma ideia de proteção,
como se mostravam mais ‘lucrativos’ economicamente para esses indígenas. Assim, os
portugueses acabavam se mostrando aliados mais interessantes a certos grupos Guaná do que
os Guaicuru eram anteriormente. Por consequência, se o que os Guanás produziam adentrava
cada vez mais a rede comercial portuguesa, os Guaicuru acabavam tendo que renovar suas
dinâmicas para subsistência.
Indígenas foram sujeitos ativos das redes comerciais da colônia portuguesa, mas não
apenas nas regiões limítrofes do Oeste e nem só na colônia de Portugal. Os historiadores
estadunidenses Richard White (1991) e Hal Langfur (2006) em análises, respectivamente, sobre
o processo de colonização inglesa na sua então colônia americana e a portuguesa na província
de Minas Gerais, analisaram e ilustraram as relações entre os múltiplos atores desses contextos,
argumentando favoravelmente em relação ao importante papel de indígenas nessas trocas, que
mesclavam aspectos culturais, econômicos e políticos entre colônia e metrópole.
Para White as regiões limítrofes, marcadas pelo contato entre indígenas e não indígenas,
são caracterizadas pelas mencionadas trocas, essenciais para se romper com perspectivas
34

belicosas tão presentes nos primeiros séculos de colonização. Essas zonas únicas vão crescendo
e se modificando a partir da necessidade de se compreender o outro, de modo a poder moldar
aquela realidade a seu favor. Se engana, porém, quem achar que são os não indígenas os únicos
manipuladores, enquanto os povos originários seriam meros peões. Disputas, manipulações e
buscas pelos próprios interesses moldaram comportamentos de indígenas e não indígenas, ao
menos, por todo o continente americano.
A estratégia comercial descrita em fontes analisadas acima, também tem seus paralelos
no estudo de White sobre a América do Norte. O historiador aponta o comércio, principalmente
de peles, enquanto um fomentador dessas relações entre indígenas e não indígenas. Aliança
com os indígenas e o reconhecimento desses enquanto súditos de uma Coroa representava,
também, a esta qual fosse, a manutenção de interesses espaciais, ou seja, territoriais. Além,
claro, de serem potentes forças a se somarem em investidas contra os interesses de outras
potências estrangeiras.
Langfur compreende essas regiões de contato enquanto fruto de identidades territoriais
mutuamente incompatíveis, mas que nem por isso deixavam de existir simultaneamente, ainda
que marcadas pela violência gerada pelos choques delas. Às autoridades metropolitanas
interessava um projeto misto, que intenciona pacificar esses sertões, ao mesmo tempo que os
tornassem lucrativos à metrópole. Se nos primeiros séculos de colonização era tendência geral
das potências europeias o foco nos litorais, em certo ponto, as aspirações territoriais portuguesas
culminaram nas ‘expansões para dentro’, para o oeste, internamente ao subcontinente sul-
americano.
Os estudos do brasilianista contribuem para a compreensão da importância dos sertões,
com suas constituições dinâmicas e plurais, para a construção de identidades políticas que
tiveram papéis importantes na constituição da futura nação brasileira, com foco especial para
os povos indígenas. Assim como White, Langfur também ressalta a importância de relações
comerciais, em especial da aguardente, pensando num contexto de competições e,
principalmente, cooperações, entre indígenas e/ou não indígenas. Antes tidos enquanto terras
esquecidas ou abandonadas, os sertões eram espaços de trocas culturais únicos.
Seguindo a análise da fonte, ao abordar as armas e modos de guerrear dos Guaicuru,
Prado apresenta aquela que seria a principal definidora da ampla sagacidade desses indígenas:
“a traição, para o que são destríssimos” (1908, p. 31). No decorrer das páginas o militar
estabelece uma espécie de linha do tempo, de 1719 até o presente de sua escrita, 1795,
abordando alianças entre grupos indígenas, além de uma série de conflitos entre os Guaicuru e
35

portugueses, direcionados a monções ou fazendas, por exemplo. Na mesma linha da ideia de


‘traição’, também os atribui características, como serem traiçoeiros e reforça “a sua
barbaridade” (1908, p. 33).
A memória perpetuada por Prado é também repleta de traumas. O militar se reconhecia,
no mínimo, enquanto companheiro de categoria perante os incontáveis militares que
enfrentaram e pereceram enfrentando forças Guaicuru, desde o século XVI até XVIII. Mais do
que isso, muito em decorrência dos imaginários acerca dos sertões do Oeste brasileiro e a
dificuldade de sobrevivência nos mesmos, parecia haver alguma forma de identidade coletiva
entre aqueles que por lá se aventuraram. Senão, ao menos, alguma espécie de reconhecimento
pelos feitos alheios. Explico melhor: explorar aqueles territórios, até então, pouco conhecidos
pelos não indígenas já era um desafio para poucos. Principalmente se comparado a quantidade
de não indígenas que se estabeleciam próximos ao litoral. Os que ousavam seriam
desbravadores, em nome da Coroa portuguesa e da Igreja Católica. A propagação e a
perpetuação de valores associados ao cristianismo e a ideias de civilização são recorrentemente
descritas pelos autores que construíram trabalhos que versavam sobre a fronteira Oeste
brasileira28. A memória deixada por Prado perpetua o trauma de todos que persistiram perante
os desafios de outras forças da natureza, mas que sucumbiram sob jugo dos Guaicuru. E a
‘barbaridade’ se reafirmou constantemente, ao passo que esses indígenas não compartilhassem
ou valorizassem os esforços e sacrifícios feitos por esses não indígenas que vinham, cada vez
mais, invadindo as terras pelas quais estabeleciam seu modo de vida.
Somado aos fatores descritos no parágrafo acima, seguindo certa linha de pensamento
sobre povos indígenas que se estabeleceu, ao menos, desde o século XVIII e ganhou força no
século XIX, perante um contexto de construção de ideais de nação, havia outros mais
incômodos sobre os Guaicuru. Indígenas deveriam ser homogêneos entre si, como se
estivessem destinados a ser mais ‘simples’ que europeus e seus descendentes. Os Guaicuru,
assim como os portugueses, não eram lineares em suas ações, menos ainda, previsíveis. Suas
ações eram guiadas pelos seus interesses, que variavam de acordo com os indivíduos, contextos
e realidades que jamais foram, exatamente, homogêneos. Isso gerava o que foi muitas vezes
interpretado pelos não indígenas como ‘inconstância’. Um dos fatores curiosos a se pesquisar
sobre Guaicuru é perceber certa ‘inconstância’, ou no mínimo, dualidade, dentre muitos dos
que sobre eles escreveram, incluído Prado. Esses indígenas eram julgados enquanto superiores

28
Isso aparece nas principais fontes que analisaremos ao longo deste capítulo (PRADO, 1908; SERRA, 1845,
1872), mas está longe de ser exclusividade delas.
36

a outras etnias por não indígenas e por si mesmos, devido a perspectiva de mundo que possuíam.
Os não indígenas ora enalteceram os Guaicuru, ora os criticaram enfaticamente, por
características ou valorações não necessariamente distintas umas das outras. Percebe-se que
havia pesos diferentes dependendo de quais grupos fossem afetados, positivamente ou
negativamente, pelas ações dos indígenas. Assim como os Guaicuru, os portugueses também
agiam conforme seus próprios interesses, sujeitos de suas próprias ações. Existiram mais
semelhanças entre esses dois grupos do que quaisquer um deles se permitiriam admitir naquela
conjuntura.
Não deve aqui ser ignorado que interpretações negativas sobre a identidade guaicuru
não foram limitadas à extensão do século XIX. Essas representações se perpetuaram mesmo
em análises de importantes intelectuais brasileiros do século XX, como Sérgio Buarque de
Holanda, a exemplo de sua clássica obra de 1945, Monções, onde chega a abordar diretamente
os Guaicuru. No cenário das monções que conectavam comercialmente partes do centro Sul da
então colônia portuguesa na América, segundo o pesquisador, os Guaicuru possuiriam
proeminentes “instintos predatórios” (HOLANDA, 2014, p. 129), além de terem desenvolvido
“ao extremo, o gênio vagabundo, o temperamento agressivo, a vocação invencível para a
rapina” (HOLANDA, 2014, p. 131). Holanda é ainda mais enfático, logo em seguida,
explicitando que tais características seriam intrínsecas a identidades daqueles indígenas, ao
afirmar que “a violência, agressividade, a rapinagem, tornaram-se, assim, virtudes nacionais,
que ele procurou exercer indiscriminadamente contra todos os que se intrometiam em suas
terras” (HOLANDA, 2014, p. 131).
O primeiro grande marco para o início de uma convivência menos belicosa, ainda que
não plenamente livre de violências29, entre os Guaicuru e luso-brasileiros foi o estabelecimento
do Presídio de Nova Coimbra em 1775, somada a uma mudança de postura por parte da
administração colonial, decorrentes do Diretório dos Índios. Este representou um projeto de
realinhamento da administração colonial, que embora parecesse provocar rupturas, em grande
medida deu prosseguimento às ações do processo colonial pretéritas a ele. Seja como for, tinha
por plano central a civilização efetiva dos povos indígenas da então colônia portuguesa na
América, os adequando à cultura política da metrópole (ALMEIDA, 1997).
Desde os primeiros anos após a fundação do forte houve instruções a respeito de se
buscar uma amizade, por meio de presentes materiais direcionados a grupos Guaicuru. No texto

29
A violência física entre esses grupos, Guaicuru e portugueses, se tornou bem mais rara, aparecendo não mais
que em casos pontuais. De toda forma, a violência simbólica, impregnada nos discursos, como essa dissertação
contribui para ilustrar, seguiu, ao menos, ao longo do século XIX.
37

de Prado, ele transcreve uma carta direcionada ao primeiro comandante do presídio, escrita
originalmente pelo então governador e capitão-general Luís de Albuquerque de Melo Pereira e
Cáceres, em que instrui o mesmo para:

não ofender em nada, e antes tratá-los com a possível boa inteligência e amizade, e
tentar, se eles não aborrecem tanto, como até agora faziam, o comércio, trato e
comunicação dos Portugueses, que a barbaridade e tirania dos antigos sertanistas lhes
fizeram detestar: e estabeleço como uma das obrigações principais, em Vm. deve
empregar-se, o procurar por todos os caminhos fazer abraçar aos sobreditos índios o
nosso comércio, que sempre pode haver modo de representar útil e vantajoso,
principalmente distribuindo-lhes de quando em quando alguns pequenos mimos de
resgates, de que, pela relação que remeto inclusa, conhecerá Vm. que faço conduzirá
sua disposição uma certa quantidade. Mas, sem embargo de toda eficácia destas
mesmas ordens, que são uma consequência precisa, útil e providentíssima das que
S.M. me tem dado, verá Vm. sempre que eu não pretendo que se deixe ofender
impunemente; nem tal poderia caber nunca no mesmo direito que a natureza
estabeleceu de repulsar com força a quem nos intenta fazer mal (PEREIRA E
CÁCERES apud PRADO, 1908, p. 37)

Pereira e Cáceres demonstra explicitamente a citada intenção de uma aproximação com


os indígenas que não fosse direcionada por conflitos. Para tal, lançaria mão de um conjunto de
estratégias, em especial presentes materiais, a não realização de atos públicos que pudessem os
ofender e a agregação dos indígenas ao comércio local. Esse último ponto é aqui
particularmente interessante, construiu-se uma ideia de inserção, ou melhor, de ‘civilização’,
através da inclusão desses indígenas nas dinâmicas do comércio colonial. As transações com
indígenas eram parte essencial para a subsistência dos não indígenas que viviam tão afastados
das vilas e cidades mais populosas, próximas ao litoral. De mesmo modo, tinha um benefício
em relação aos espanhóis: afinal, o que era vendido e/ou permutado com portugueses não
poderia o ser com os servos da coroa espanhola, quase sempre seus potenciais inimigos. Essa
nova estratégia derivaria, ainda que indiretamente, de instruções da própria Coroa portuguesa.
Sendo assim, pode-se afirmar que seria, mais ou menos publicamente, uma estratégia de Estado,
ou melhor, de colonização.
Não se pode, porém, ignorar que, embora Pereira e Cárceres comece afirmando sobre
uma intencionalidade de não ofender e evitar novos atritos com os Guaicuru, ele também deixa
explicita, principalmente ao fim da citação, a relação colonial, de hierarquização, entre o ‘eu’,
português e o ‘outro’, indígena. Caberia aos militares daqueles territórios limítrofes,
portugueses, sejam nascidos no reino ou na colônia, não deixarem ter seu poder subjugado por
aqueles indivíduos, interpretados perante sua cultura política, enquanto inferiores. Ainda que
se devesse ter no horizonte de ações o desenvolvimento pacífico dessas relações luso-indígenas,
ofensas cometidas por esses últimos aos primeiros deveriam ser repreendidas com base no
38

‘direito natural’ do colonizador, sobre o colonizado. A boa relação com o ‘outro’, indígena,
estava intrinsecamente conectada à sua disposição para efetivar os interesses coloniais,
especialmente territoriais da Coroa portuguesa e de seus representantes.
Segundo a historiadora Ângela Domingues (2000), a ocupação do território, aqui
pensando, literalmente, nas terras, foi uma prioridade da política colonial portuguesa do pós-
1750, fruto do período pombalino e de suas políticas, como o já mencionado Diretório dos
Índios. Consequência disso, aumentou-se a pressão por parte da Coroa para que seus
representantes do além-mar transformassem indígenas em seus vassalos. Um dos artifícios para
essa empreitada eram medidas civilizacionais e educativas que visavam transformar esses
povos originários em ‘verdadeiros’ vassalos portugueses. Assim, “o índio, para além de um
homem livre, deveria ser, fundamentalmente, um vassalo do soberano português”
(DOMINGUES, 2000, p. 38). Exemplo de medidas que objetivavam esse resultado era o
aldeamento desses indígenas, como o que idealizaram por lideranças portuguesas aos Guaicuru.
Havia a ideia de que assim se garantiria a cristianização e a adequação destes à padrões culturais
cristãos europeus. Desde a criação da capitania do Mato Grosso, em 1748, já foram percebidos
indícios da importância da manutenção de algum grau de convivência entre indígenas e não
indígenas, mas foi anos após, principalmente depois da fundação do Forte de Coimbra, em
1775, que tal projeto começou a tomar forma, materialmente, para com os Guaicuru. Esse
processo legislativo, do qual o Tratado de Paz de 1791 fez parte, intencionaria “formar um
grupo de indivíduos que fizessem a ligação entre as duas sociedades, a colonial e a indígena,
tanto pelo nascimento quanto pela formação” (DOMINGUES, 2000, p. 40).
Assim como no Oeste aqui estudado, no Norte, região que Domingues foca em sua
análise, a “geo-estratégia colonial” (DOMINGUES, 2000, p. 86) também teve como fator
importante a construção e estabelecimento de fortificações. Ainda assim, havia a necessidade
de fortalecer a posição com uma colonização efetiva, ou seja, ocupação de súditos da coroa,
haja vista a presença escassa de luso-brasileiros, principalmente nas zonas periféricas mais
próximas dos territórios espanhóis. Existia no entorno das fortalezas, populações usualmente
pequenas de não indígenas. Assim foi de máxima importância a promoção de indígenas para
súditos e, assim, o assegurar de suas terras à coroa:

Esta era uma das formas que a coroa portuguesa tinha para garantir alguma segurança
aos poucos moradores, controlar o território e as etnias ameríndias e para justificar,
face ao direito que regulava as relações entre as potências europeias, as suas
pretensões: pela pacificação, sedentarização e aculturação dos índios e pela sua
incorporação na colonização luso-brasileira na fronteira (DOMINGUES, 2000, p. 87,
grifos nossos).
39

Desse modo, a atenção dada pela Coroa aos sertões do Oeste na segunda metade do
setecentos, assim como ao Norte das terras que originaram futuramente o Brasil, dá-se pela
reavaliação da importância daquele território, com a valorização do lugar daquela colônia
perante o Império português. Nesse cenário,

Na intenção de reconhecer como português aquele território e de, simultaneamente,


fazer com que este se identificasse como domínio lusitano, a coroa jogava com vários
interesses: pacificar as etnias que o habitavam; defender a integridade territorial face
à cobiça internacional; potenciar os recursos econômicos; controlar forças que,
internamente, desafiassem a autoridade do Estado nacional; estabelecer uma cadeia
hierárquica de poder e informação que administrasse o território em nome do soberano
e que mantivesse as instituições centrais esclarecidas em relação a tudo o que se
passava naquelas regiões marginais do Império (DOMINGUES, 2000, p. 137, grifos
nossos).

A autoridade da coroa sobre o território deveria ser então exercida através da soma de
uma presença efetiva e por referências simbólicas, como língua, cristianização e outros aspectos
da cultura política. Um problema recorrente para o primeiro era a falta de mão de obra
disponível nas regiões limítrofes, especialmente as mais afastadas da costa. Consequência
disso, a dependência do trabalho indígena tornou-se algo intrínseco à organização desses
espaços, seja cultivando terras e fornecendo alimentos para portugueses, seja através da permuta
de outros bens, como no caso dos Guaicuru. Nesse cenário a figura de indígenas nessas regiões
ganhava mais importância:

o acentuar das disputas territoriais e a recuperação do direito de uti possidetis [direito


de propriedade sobre terras àquelas que de fato já ocupavam] atribuíram aos índios
uma importância estratégica nos jogos de interesses europeus. Os ameríndios eram
utilizáveis pelos poderes coloniais na medida em que serviam de suporte à colonização
europeia nas áreas geográficas que eram objeto de conflito (DOMINGUES, 2000, p.
177, grifos nossos).

Seguindo na análise de fontes, outro ponto da carta de Pereira e Cáceres, transcrita por
Prado30, é como os interesses do governador se refletem no modo como descreve os antigos
sertanistas, os associando a “barbaridade e tirania” (1908, p. 37). Se na escrita a respeito dos
Guaicuru busca-se reforçar o zelo, ao se abordar os sertanistas, que foram os primeiros
servidores da Coroa a entrarem em confrontos com os Guaicuru, o discurso é antagônico.
Associar esses não indígenas a barbaridade e a tirania, deslegitimava seus antigos confrontos

30
Ou por algum subordinado seu, como era comum nessa época.
40

com os indígenas, enquanto validava a busca de Pereira e Cáceres, naquele tempo presente, pela
amizade com os Guaicuru. Em outras palavras: temos aqui um excelente exemplo de que os
mesmos artifícios discursivos foram usados por diferentes figuras do governo colonial,
associados a grupos tantas vezes antagônicos, segundo os interesses daquele que sobre eles
escreveu. E claro, indiretamente, pelos de seus superiores, a quem prestava satisfação, nesse
caso, à Coroa portuguesa. Na maioria das fontes que dão corpo a este capítulo, vemos a
violência discursiva e a violência simbólica, direcionada aos Guaicuru, de modo a construir
argumentos favoráveis a indivíduos e interesses portugueses. Pereira e Cáceres, em sua carta,
demonstra como interesses de um locutor (seus e/ou das forças que representa, aqui na figura
da Coroa de Portugal), modificam diretamente a construção destes discursos sobre os indígenas
aqui focados. Isso reflete também como uma dada sociedade, num específico contexto temporal
(afinal, aqui abordamos discursos de homens portugueses influenciados, mais ou menos
diretamente, pelo iluminismo luso), explícita que a cultura política é tão mutável, quiçá, tão
plural quanto são as pessoas inseridas nesses recortes, nas suas infindas disputas de poder e
interesses.
Nos dezesseis anos após a implementação do Forte de Nova Coimbra, ocorreram novos
atritos entre os Guaicuru e portugueses, em especial um notável causo datado do início de
177831, assim como também houve períodos de paz. Até que em 1791 firmou-se um Tratado de
Paz entre dois chefes Guaicuru,

o capitão Emavidi Xané que agora se chama Paulo Joaquim José Ferreira, e o capitão
Queima, que agora é conhecido pelo nome de João Queima de Albuquerque, que é
dos principais dos Guaycurús por sua mãe e dos Payagoás por seu pai, e respeitado
pelos muitos soldados e cativos que tem (PRADO, 1908, p. 40-41)

E representantes da Coroa portuguesa, acordo que foi reestabelecido algumas vezes


mais, nos anos seguintes, com outras lideranças dessa etnia indígena. Devido a importância do
mesmo, Prado chega a transcrever o Termo do Tratado de Paz, assim como uma Carta-patente
reforçando a validade do documento, de autoria de João de Albuquerque de Melo Pereira e

31
Um evento marcante seria quando um grupo Guaicuru demonstrou intenções de amizade e comércio para com
as forças portuguesas estacionadas no Forte de Coimbra. Após soldados saírem das fortificações e se permitirem
vulneráveis, parte dos quais aproveitando graças de mulheres indígenas, teriam sido mortos às dezenas,
totalizando 54 óbitos. Esse episódio é recorrentemente lembrado nos Oitocentos para defender ideias sobre
deslealdade, corrupção moral e/ou inconstância de guaicurus, tanto nas fontes usadas nesse capítulo, como em
outras das posteriores. Para descrições dessa história, nas fontes aqui analisadas, conferir: PRADO, 1908, p. 37-
39; SERRA, 1872, p. 369.
41

Cáceres (?-1796), então governador e capitão-general da província quando assinou a mesma,


em 30 de julho de 1791.
Segue o Termo:

Desejando a nação do gentio Guaycurú ou Cavaleiro, que habita os terrenos que


formam a margem oriental do Paraguai, desde o rio Mondego, antes denominado
Imbotatiú, e mais rios intermediários até a margem boreal do rio Ipané, dar não só
uma evidente prova do seu reconhecimento, gratidão e sensibilidade, pelo bom
tratamento e repetidos benefícios que ultimamente tem recebido dos Portugueses, em
consequência das ordens do Illm. Exm. Sr. General de Mato Grosso e Cuiabá, dadas
e muito recomendadas para o dito fim ao sargento mór engenheiro Joaquim José
Ferreira, comandante do presídio da Nova Coimbra, as quais ordens ele tem
desempenhado com donativos que lhe tem sido determinados por conta da real
fazenda de S. M., também outros seus proporcionados à sua possibilidade; desejando
a mesma nação dar iguais provas do grande respeito e fidelidade que tributam a S. M.
Fidelíssima, e de quanto são os mesmos gentios afeiçoados aos Portugueses,
espontânea e ansiosamente vieram a esta capital de Vila-Bela os capitães João Queima
de Albuquerque e Paulo Joaquim José Ferreira, dois dos principais chefes da dita
numerosa nação, com dezessete súditos e a preta Victoria, crioula portuguesa sua
cativa, que serve de língua: e depois de terem sido recebidos e hospedados com as
maiores e mais sinceras demonstrações de amizade e agasalho, e de serem brindados
com alguns donativos de S. M., e outros do Exm. Sr. Governador e capitão general, e
das outras principais pessoas desta vila, celebraram o seguinte convênio. No dia 1º dia
do mês de agosto de 1791, no palácio da presidência do Exm. Governador e capitão
general, estando presentes, por uma parte o mesmo Exm. Sr. Com os oficiais militares
e mais principais pessoas de Vila-Bela, e pela outra os sobreditos capitães e chefes de
sua nação, João Queima de Albuquerque e Paulo Joaquim José Ferreira, com os
mencionados seus soldados e a crioula Victoria, sua cativa e intérprete, disseram que,
em seus nomes e no de todos os outros chefes da sua nação, seus compatriotas, e mais
descendentes, protestavam e prometiam de hoje para todo sempre, nas mãos do Exm.
Sr. Governador e capitão general João de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres,
manter com os Portugueses a mais íntima paz e amizade, e inviolavelmente guardarem
e tributarem a S. M. Fidelíssima a mais respeitosa fidelidade e obediência; assim e da
mesma forma que lhe tributam todos os seus vassalos. E sendo-lhes perguntado, de
ordem do mesmo Sr. Pelo sargento mór engenheiro Ricardo Franco de Almeida Serra,
se era nascida de sua livre vontade e moto próprio a obediência que prestavam a S. M.
Fidelíssima, como também se queriam ficar sujeitos da mesma augusta soberana e
senhora, ficando amigos, para desta forma gozarem livre e seguramente de todos os
bens, comodidades e privilégios, que pelas leis de S. M. Fidelíssima são concedidos a
todos os Índios, a tudo responderam ambos os referidos capitães uniformemente que
sim: protesto que o mesmo Exm. Sr. General aceitou em nome da mesma soberana e
senhora, de sempre proteger a dita nação, a fim de perpetuar entre eles e os
Portugueses a mais íntima paz e recíproca amizade, concorrendo sempre para tudo se
dirigir à felicidade espiritual e temporal dos mesmos gentios. E para firmeza de todo
o referido é estipulado, eu Joaquim José Cavalcanti de Albuquerque e Lins, secretário
do governo, lavrei, por ordem do mesmo Exm. Sr. Governador e capitão general, o
presente termo. Assinaram S. Ex. e a rogo dos ditos capitães e chefes, o tenente
coronel de infantaria com exercício de ajudante de ordens deste governo, Antonio
Fellipe da Cunha Ponte, e o Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira 32, naturalista,
encarregado da expedição filosófica por S. M. nesta capitania; e a rogo dos mais
Guaycurús o Dr. Provedor da fazenda real e intendente do ouro, Antonio Soares
Calheiros Gomes de Abreu; e de sua intérprete o sargento mór engenheiro Ricardo
Franco de Almeida Serra. E também assinaram os oficiais da câmara, sendo

32
Esse viajante, sua obra, em especial seus escritos sobre os Guaicuru serão analisados no segundo capítulo
desta dissertação.
42

testemunhas presentes deste ato as principais pessoas desta vila capital, que todas
igualmente assinaram: e eu o secretário do governo, Joaquim José Cavalcanti de
Albuquerque Lins, o escrevi. Com o sinal de S. Ex. e de todos os mais circunstantes
(PRADO, 1908, p. 41-42).

E a Carta-patente:

João Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, do conselho de S. M., cavaleiro da


ordem de S. João de Malta, governador e capitão-general das capitanias de Mato
Grosso e Cuiabá, &c. Faço saber aos que esta minha carta patente virem, que tendo a
nação dos Índios Guaycurús ou Cavaleiros solenemente contratado perpétua paz e
amizade com os Portugueses, por um termo judicialmente feito, no qual os chefes João
Queima de Albuquerque e Paulo Joaquim José Ferreira, em nome de sua nação, se
sujeitaram e protestaram uma cega obediência às leis de S. M., para serem de hoje em
diante reconhecidos como vassalos da mesma senhora: mando e ordeno a todos os
magistrados, oficiais de justiça e guerra, comandantes e mais pessoas de todos os
domínios de S. M., os reconheçam, tratem e auxiliem com todas as demonstrações de
amizade. E para firmeza do referido lhe mandei passar a presente carta patente, por
mim assinada e selada com o sinete das minhas armas. Nesta capital de Vila Bela, aos
30 de julho de 1791. – João de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres (PRADO,
1908, p. 42-43).

Nas perspectivas daqueles políticos e militares envolvidos na sua elaboração e


realização, o Tratado de Paz de 1791 representa um marco sem igual na história das relações
entre os Guaicuru e os portugueses. Voltaria a ser referenciado incontáveis vezes, representando
a comprovação de uma ideal de ‘sucesso’ na empreitada colonial lusa, naquela província do
Oeste, distante do centro político da América portuguesa (e, após, do Império). Perante o
discurso oficial que passou a ser propagado a partir da transição do século XVIII para o XIX,
os Guaicuru teriam, livremente, aceitado a ‘superioridade’ não indígena ao concordarem com
o status de vassalos da Coroa. Não se pode, como apontado por Astor Weber (2002; 2008),
deixar de se problematizar, desde a suposta ‘assinatura’ dos chefes indígenas, iletrados, e que
não entendiam o português falado, daí a necessidade de uma intérprete, até a extensão da
compreensão dos Guaicuru sobre o que representava a vassalagem, algo que inexistia nas
culturas políticas ameríndias.
As pistas sinalizam que os Guaicuru compreenderam o Tratado enquanto uma
aproximação com os portugueses e, principalmente, enquanto uma promessa de proteção. O
que faz particular sentido tendo-se em mente contextos de conflitos anteriores com espanhóis,
que custaram muitas vidas indígenas (VANGELISTA, 1993). Na atualidade é impossível
afirmar com certeza a exata leitura que os chefes Guaicuru ou os demais membros de suas
comunidades faziam deste acórdão, mas o conjunto da pesquisa leva a reforçar a constante
reiteração da busca dos mais diversos atores históricos, indígenas ou não indígenas, pelos seus
43

próprios interesses. A proteção, assim como potenciais novas oportunidades de troca e a


expectativa de receberem prometidos novos vindouros presentes, como aqueles com os quais
os chefes voltaram para suas comunidades após a ratificação do Termo 33, foram elementos
essenciais para qualquer compreensão da intencionalidade Guaicuru desse episódio.
O estabelecimento do Tratado, somado, principalmente, com estratégias que o
precederam, como os presentes direcionados aos indígenas, geraram frutos. Os exemplos foram
plurais, como a pacificação nas relações guaicuru-portugueses, uso do apoio desses indígenas
em investidas bélicas de portuguesas, assim como sua inserção no comércio colonial, muito em
decorrência da demanda por novos itens que passaram a depender de não indígenas para
conseguir. Os presentes e a inserção no comércio podem parecer elementos distintos, mas não
o são. Os tais agrados acabaram por gerar novas demandas que só poderiam ser supridas pelo
comércio, essencial para a expansão e manutenção da permanência de não indígenas naquela
região. Além disso, como já colocado anteriormente, a presença luso-brasileira afetou as
dinâmicas das relações e das permutas estabelecidas entre etnias. Esse conjunto de fatores se
soma ao crescimento de investidas hispano-americanas contra os Guaicuru para explicar o que
motivou diferentes subgrupos desses indígenas recorrerem à ‘proteção’ dos fortes e das
promessas portuguesas34.
Domingues propõe que havia tomado forma uma espécie de “ocidentalização” (2000,
p. 66) dos espaços em disputa das regiões limítrofes da então colônia portuguesa da América,
durante esse período. Tal ocidente, não seria pensando numa perspectiva puramente geográfica,
mas de um modo semelhante ao que aqui entende-se, e, portanto, afirmado como a cultura
política sob influência da realidade europeia (ou idealizações da mesma), no contexto da
transição do século XVIII para o XIX. Esse pensamento seria organizado com base em três
linhas, fundamentais ao projeto de presença português em terras americanas. O primeiro seria
“os casamentos mistos entre luso-brasileiros e índias”; o segundo “a educação e o ensino da
língua portuguesa a todas as camadas da população”; o último seria o “desenvolvimento
econômico” (2000, p. 66). Pensando nos Guaicuru, a primeira linha parece ter gerado resultados
efetivos, ainda que apenas pontuais. A segunda, sem aldeamento efetivo duradouro, não tomou

33
Como uniformes e objetos de origem europeia ou apropriada por esta.
34
Essas estratégias não foram exclusivas dos portugueses. Anos após os últimos conflitos, os espanhóis
começaram a fazer as mesmas coisas, com o mesmo objetivo. Aproximar os indígenas representava uma
manutenção de interesses bélicos e, principalmente, territoriais, como veremos ainda neste capítulo e outros
seguintes.
44

forma. A terceira é a de maior importância para compreender o estabelecimento de uma


crescente dependência entre os Guaicuru e portugueses, desde o final do século XVIII.
A pesquisadora, contudo, também aponta problemas associados aos três princípios:

À simplicidade destes princípios enunciados, contrapõe-se a complexidade dos


problemas que lhes estavam implícitos e subjacentes, tais como o da [1º] imposição
de uma autoridade política sobre novas etnias e um novo espaço; [2º] o do
reconhecimento dessa autoridade por parte das etnias, expressado pela lealdade
política e pelo sentimento de identificação com um espaço colonial “artificial” que
lhes era imposto pela potência dominante; [3º] o da legitimidade da posse sobre um
território disputado por outras potências coloniais europeias; [4º] o da perturbação da
ordem social e étnica existente; [5º] o da integração de uma economia periférica no
sistema econômico nacional e europeu; [6º] o de alterações no equilíbrio do
ecossistema (DOMINGUES, 2000, p. 66).

Todas essas preocupações podem ser encontradas também perante os recortes da


dissertação que aqui toma forma. A imposição da autoridade colonial do meio legal, através,
por exemplo, da ‘assinatura’ do Tratado de Paz de 1791, teve muito mais significado para os
portugueses do que para aqueles indígenas. A ideia do comprometimento de um vínculo ad
aeternum em decorrência de um símbolo alocado num documento em papel não tinha, ao menos
em plenitude, a mesma significação para ambas as partes. A legitimidade da posse variava
conforme os interesses do autor do discurso. A definição efetiva, que persiste no tempo presente
daquela região limítrofe, só nasceu ao custo da Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870), ou
melhor: ao custo de incontáveis vidas indígenas, uruguaias, argentinas, paraguaias e brasileiras.
Da integração econômica dos Guaicuru e indígenas que a eles estavam associados, como os
Guanás, acarretou toda a tal ordem social ou ecossistema. Ainda assim, positivamente aos
interesses da Coroa portuguesa. A partir da geração de demanda e enfraquecimento de laços
prévios, surgiu a dependência indígena ao comércio colonial.
E disso, consequências custosas a esses grupos indígenas:

o trabalho regular, os maus tratos, as epidemias, a subnutrição e, para além disso, os


confrontos armados decorrentes da implantação da colonização luso-brasileira,
dizimavam, de forma mais ou menos célebre, os grupos ameríndios que estavam
fisicamente mais próximos dos colonos (DOMINGUES, 2000, p. 187).

Embora talvez transponha o recorte temporal desta dissertação, há de pontuar que esse
processo abordado na citação anterior ocorreu entre os agrupamentos Guaicuru. Isso desde a
crescente pressão pelas potências ibéricas, sendo muitíssimo agravada pela Guerra da Tríplice
Aliança (1864-1870), onde tiveram papéis importantes. Já ao final do século XIX, segundo
45

diferentes pesquisadores (HERBERTS, 1998; ROLLER, 2018), seriam os kadiwéus o último


subgrupo Guaicuru a resistir. Isso, ao menos, em território brasileiro.
Num estudo sobre as relações entre indígenas e não indígenas em terras da América do
Norte, o historiador Richard White (1991) repensa o conceito de ‘Novo Mundo’, tido por muito
tempo como uma idealização da América às ‘novas terras’, sob perspectiva europeia. Nessa
linha, o ‘Novo Mundo’ seria construído a partir do encontro e das consequentes trocas culturais
entre indígenas e europeus. Assim o tal não era o que foi encontrado nas primeiras viagens
europeias ao Brasil, mas sim um fruto do processo que se deu a partir dos contatos e suas
múltiplas consequências. Marina Machado, em diálogo com White, defende que “o mundo que
existia antes da chegada dos europeus já não existia mais, o Novo Mundo constituía-se a partir
de um processo no qual se verificam de perto conflitos, alianças e negociações” (MACHADO,
2019, p. 250).
O ‘Novo Mundo’ era, ao menos em partes, fruto de discursos sobre as interações
pacíficas ou bélicas entre indígenas e europeus, ou seja, discursos sobre a colonização. Sendo
então, na prática, um processo de construção que foi se consolidando ao longo dos séculos, não
inerte, muito menos linear. White e Machado ajudam a compreender as regiões de limites, essas
especialidades únicas, enquanto elementos longe do estático, se apresentando enquanto
resultados, construtos multiformes que são parte das consequências das trocas culturais que
definem o ‘Novo Mundo’.
Outra intelectual que reflete sobre a construção do ‘Novo Mundo’ foi Laura de Mello e
Souza (2009). A historiadora compreende que o mesmo nasceria a partir do contato do ‘eu’,
com o ‘outro’, este, desconhecido, potencialmente monstruoso e demoníaco. Em diálogo com
Jean Delumeau (2009), apresenta o medo enquanto elemento intrínseco à vivência humana e,
por conseguinte, essencial para compreender diferentes experiências de suas relações, como
nesse caso, o processo de colonização. Partindo dessa perspectiva, o ‘Novo Mundo’ seria, em
si, um espaço limítrofe entre o ‘paraíso’ e as bênçãos esperadas por homens não indígenas
cristãos, que acreditavam ser destinados ao paraíso, e o ‘inferno’, nas figura dos sertões e
demais espaços ou indivíduos tidos enquanto desafios enfrentados nos empreendimentos
ibéricos, especialmente os indígenas, que teriam a barbaridade, a monstruosidade e a construção
demoníaca a eles atrelados enquanto indivíduos que atrapalham os planos divinos da expansão
do cristianismo através da colonização, assim como os demais interesses das coroas Ibéricas,
que seriam representantes de Deus na terra. Se a cultura política e os interesses por ela
propagados pelos não indígenas eram manifestações de planos divinos, indígenas que contra
46

isso lutaram, como os Guaicuru, acabariam sendo, tantas vezes demonizados, tidos como
‘bárbaros’ e ‘pecadores’. Daí também pode ser melhor entendida a raiz de certo medo aos
Guaicuru, que transparecem nas fontes. Quanto mais resistência infligiram aos planos da Coroa
e, por conseguinte, da expansão do cristianismo e da ‘civilização cristã’, mais temerosos e
demonizados esses indivíduos iriam se tornar a partir dos discursos dos não indígenas.
É num passado repleto de conflitos, já findados numa aliança, e em crescentes
negociações e buscas de inclusões na economia colonial, que a relação entre os Guaicuru e
portugueses foi construída e reconstruída na transição do século XVIII para o XIX.
Tanto os escritos de Prado como outros mais que serão vistos, não só ao longo desse
capítulo, mas dessa dissertação, ilustram a construção desse ‘Novo Mundo’, em específico
aquele das regiões limítrofes, dos sertões do Oeste. Marcado pela fluidez, tanto territorial
quanto discursiva, intencionou-se constituir um ‘Novo Mundo’ que legitimasse interesses
derivados de certas culturas políticas. No caso das fontes aqui analisadas, as intencionalidades
e perspectivas da Coroa portuguesa e de seus servidores. Enquanto construto multiforme, esse
‘Novo Mundo’ do Oeste, fluído e pouco definitivo, seguiria plural durante boa parte dos
oitocentos, ilustrado por variações que vão da demonização desses indígenas às afirmações de
amizades e bons tratamentos que ignoravam a cultura política do ‘outro’, aqui sinônimo de
‘inferior’ ou ‘menos humano’. Mais ou menos explícito o discurso colonial se fazia presente,
pois amigos benquistos seriam os Guaicuru ao atenderem os planos da metrópole ou ‘bárbaros’
e ‘demônios’ quando os mesmos agissem por benefício indígena. Disputas de poder não viriam
a cessar no cenário estudado, nem em temporalidades mais próximas do que esse trabalho se
propõe a analisar (BORGES, 2022). Tem-se então, cada vez mais claro, a potência de discursos
sobre os Guaicuru ensinarem mais sobre aqueles que os escreveram, do que sobre os próprios
indígenas.

1.3 Os Guaicuru, por Ricardo Franco de Almeida Serra

Passemos agora à análise da segunda fonte que sustenta o presente trabalho, um parecer
acerca do potencial aldeamento dos indígenas Guaicuru, em especial aqueles viventes nas terras
do entorno do Presídio de Nova Coimbra e do, mais recente, Presídio de Miranda 35. Com base

35
O Presídio de Miranda foi fundado por Francisco Rodrigues do Prado, a mando do governador e capitão-
general da capitania, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, logo após deixar o comando de Nova Coimbra, em
1797 (MELLO, 1968).
47

em interesses econômicos, como a inserção dos indígenas no comércio local, e territoriais, como
o assegurar daquelas terras limítrofes para a Coroa portuguesa, o parecer foi solicitado pelo
então governador e capitão-general da capitania de Mato Grosso, Caetano Pinto de Miranda
Montenegro. O incumbido de escrever o mesmo foi o militar que assumiu o comando do Forte
de Coimbra após Prado, Ricardo Franco de Almeida Serra. O então tenente-coronel redigiu um
extenso parecer no qual apresentou ampla análise do modo de vida dos Guaicuru, argumentando
que não acreditava ser possível aldear aquela etnia. Seu texto foi concluído e enviado ao seu
superior no início do ano de 1803. O intervalo entre este e a fonte anterior é de menos de uma
década, ilustrando que foram ambas produzidas na mesma conjuntura histórica.
O texto de Serra é tão importante quanto o de Prado, e também influenciou o material
posteriormente escrito sobre os Guaicuru, principalmente a partir da segunda metade do século
XIX. Esse contexto histórico comum não é fruto do acaso, uma vez mais, aproximando as
conjecturas de produção desses documentos. O parecer de Serra foi publicado, dividido em duas
partes nas páginas dos tomos de número sete, de 184536, e treze, de 1850, da RIHGB. O
manuscrito transcrito no primeiro tomo estava incompleto, anos mais tarde, ao se tomar ciência
de um exemplar original com o texto integral, publicaram o resto do parecer, justificando-se
assim a divisão material37.
Antes de começar a análise de seus escritos, vamos compreender um pouco mais sobre
esse que, dentre os militares mencionados nesta dissertação, é o mais lembrado no tempo
presente. Ricardo Franco de Almeida Serra é português, tendo nascido, em Lisboa, no ano de
174838. Seu pai teria vivido toda vida enquanto criado de monarcas portugueses. Aos dezoito
anos já se encontrava na Academia Militar enquanto um aspirante a oficial, onde cursou
Infantaria e Engenharia. Ainda em 1766, concluídos aqueles estudos, arregimentou-se numa
unidade militar incerta, antes de trabalhar com suas especializações. No ano seguinte passa a
atuar no Quartel-Mestre-General, exercendo funções na área de engenharia por mais de dez
anos. Após os trabalhos técnicos, já como capitão, voltou a se arregimentar, atuando em
comando de companhias e outros trabalhos mais.

36
Há também, nessa primeira parte, a transcrição da resposta de Montenegro às considerações de Almeida Serra.
37
As edições referenciadas ao longo da análise desse capítulo são o próprio tomo sete, de 1845, somado a
reedição do tomo treze, de 1850, que foi publicada em 1872. Ambas se encontram disponibilizadas para acesso
gratuito no portal eletrônico do próprio IHGB.O link para acesso está disponibilizado na lista de fontes, ao final
da dissertação
38
Segundo seu biógrafo, o historiador e militar, Raul Silveira de Mello (1964). Este, porém, reconhece que
haveria outros pesquisadores que afirmaram, previamente a seu estudo, que Serra teria nascido na cidade de
Porto.
48

A história de Serra com a colônia portuguesa na América começaria a partir de sua


designação para participar de uma comissão para demarcação de limites entre as posses
americanas das potências ibéricas, pertinentes ao Tratado de 1777 ou Tratado de Santo
Ildefonso. Tal designação ilustra também o grande prestígio que o militar vinha acumulando
até aquele momento na sua carreira. Nesse contexto, os trabalhos cartográficos tinham essencial
papel como instrumentos dos interesses das potências ibéricas. Os mapas, ao traçarem limites,
propagavam e perpetuavam discursos sobre posse de terras. Davam uma ideia de materialidade
e barreira, mesmo em regiões limítrofes que se encontravam em constantes disputas e que
tinham uma fluidez inerente, como os sertões do Oeste, naquela época.
Para a execução dos trabalhos, Serra embarcou em Lisboa junto com profissionais
variados, em 8 de janeiro de 1780, chegando em Belém do Pará no dia 26 de fevereiro. Seis
meses se passariam até iniciarem as empreitadas referentes a demarcações e outras demandas,
principalmente, geográficas e cartográficas, em agosto daquele ano. Nas distintas missões,
demandadas pela Coroa e diferentes autoridades coloniais, era recorrente que o militar
executasse a função de comando, explorando e se fazendo reconhecer por diferentes territórios
da então colônia portuguesa. Em 1784, o governador e capitão-general de Mato Grosso, onde
se encontrava, lhe encarregou a função de dirigir os trabalhos do escritório em Vila Bela, então
capital da capitania. Em 1790 se tornaria ‘sargento-mor’, dois anos depois, ‘tenente-coronel’.
Daí:

Em 1797, transfere seus trabalhos de escritório e o centro de suas buscas de


informações geográficas, técnicas e políticas, históricas e militares, para o Forte de
Coimbra. Ali permanece o resto de seus dias [morre em 1809], exceto o intervalo de
20 meses que passou em Vila Bela em objetivo de outros serviços (MELLO, 1964, p.
33-34).

O intervalo diz respeito à segunda vez que o prestigiado militar viria a compor a Junta
de Governo da capitania do Mato Grosso. Além disso, a data de 1797 ilustra seu então recente
posto de comando da fronteira do Rio Paraguai, acumulado com a de comandante do Forte de
Coimbra. Já passado de seus 60 anos, o militar morreu doente, em 1809. Deixou um legado
interpretado como heroico por vários estudiosos, em especial pelo seu papel na defesa dos
interesses da Coroa nas regiões limítrofes permeadas pelo Rio Paraguai. Hoje é Patrono do
corpo de engenheiros militares do Exército do Brasil e tem o seu nome rememorado no hino do
estado do Mato Grosso do Sul.
Voltando ao documento, Serra começa sua escrita reconhecendo que o pedido para a
elaboração de seu parecer já havia sido feito há algum tempo. Discorre que já tinha começado
49

a redigir o mesmo anteriormente, mas, por vezes, vacilava e suspendia o processo, justificando
que isso teria acontecido:

tanto por serem os meus sentimentos, a respeito destes Índios, contrários ao comum e
geral das pessoas, que a mais anos os praticam e entendem o seu idioma, como por
me persuadir, pelo largo espaço de 5 anos em que diariamente os trato, ter reconhecido
neles unicamente uma natural inconstância e afetada condescendência, prestando-se
lisonjeiros a quanto se lhe insinua, mas só na oculta e firme resolução de nada
cumprirem que seja contrário aos seus inveterados usos e presentes interesses; sendo
o seu carácter uma refinada dissimulação e certa desconfiança, ainda dos mesmos
benefícios, que recebem, os quais muitas vezes julgam, ingratos, menos graça que
dívida, consequência dos seus estranhos princípios (SERRA, 1845, p. 204).

O militar deixa claro que tenderia a ver os Guaicuru com lentes mais negativas do que
o senso geral, inclusive em relação a outros que com eles mais conviveram, sublinhando uma
potencial referência a Prado. Serra já explicita seu posicionamento, respeitoso, mas destoante
das políticas que desde o último quarto do século XVIII começaram a abrandar certas
perspectivas sobre os Guaicuru, ainda que de um modo contraditório, enraizado numa cultura
política colonialista. A exemplo da carta do governador e capitão-general Pereira e Cáceres,
analisada no final da sessão anterior, que se por um lado ‘abranda’, pelo outro deixou explícita
a relação de poder entre o ‘eu’, português, superior, e o ‘outro’, indígena, inferior.
Aos Guaicuru são atribuídas duas características que se mostram recorrentes ao longo
dos escritos de Serra: a inconstância e a soberba. Elementos que, mesmo em menor medida, já
se apresentaram nos escritos de Prado. Como exemplo dessas semelhanças nos escritos dos
militares, temos a afirmação da imprevisibilidade das ações desses indígenas em suas relações
com os portugueses, além de se considerarem superiores, perante estes estrangeiros e mesmo
os demais povos indígenas.
As atitudes dos Guaicuru se adaptariam aos seus próprios interesses, a partir dos quais
buscariam se favorecer e evitar o que entendessem enquanto prejudicial a si. Além disso, seriam
dissimulados e não dignos de confiança por não responderem claramente segundo as
expectativas dos interesses dos portugueses, sendo ingratos aos presentes destes (que também
eram recheados de interesses). Teriam estranhos princípios ao priorizarem a si mesmos, assim
como os não indígenas os faziam (só que estes com discursos que buscavam se isentar). As
críticas ilustram perfeitamente, como era de se esperar de um homem português do seu período,
que percebia a si e outros não indígenas, não apenas completamente diferentes daqueles povos
indígenas, mas superior a eles.
50

Logo em seguida, Serra continua a transmitir suas impressões acerca dos Guaicuru,
afirmando que:

O seu sistema político, e aferro aos seus herdados costumes e abusos, a sua vida
errante e libidinosa, as suas poucas leis arbitrárias, ou simples e mútuas convenções,
mas regras fixas com que se regulam entre si tranquilamente por tendência natural e
herdada tradição; o horror tem para o trabalho, que consideram só próprio de escravos
e incompatível com sua inata soberba, supondo-se pela primeira dominante nação de
Índios, contando todas as outras por suas cuticciras[?], não se julgando inferiores aos
mesmos Espanhóis e Portugueses, gabando-se diariamente de que, apesar de sermos
muito bravos, nos souberam amansar: esta ridícula altivez e negação no trabalho, lhes
faz desprezar as fadigas da agricultura, que com efeito não necessitam para viverem
longos anos, robustos e fartos, achando no Rio Paraguai, e nos seus amplíssimo
campos a sua sempre provida dispensa (1845, p. 204-205).

Para Serra a organização política desse povo derivaria de costumes passados adiante, de
geração em geração. Além disso, pontua sobre a vida nômade, ou seja, pouco fixa dos indígenas.
Apresenta uma perspectiva sobre as afetividades internas Guaicuru de modo bem menos
positivo que Prado, ao destacar que esses indígenas teriam uma vida libidinosa, ponto que ele
desenvolve no decorrer do texto. Salienta que haveria poucas leis, as quais seriam arbitrárias, e
as que existiam seriam mais como convenções simples, acordos, mais ou menos tácitos. Nada
como os códigos legais metropolitanos e coloniais. O fato desses indígenas se regularem de
forma naturalizada, herdada a partir de suas tradições, sem necessidades de esquemas de
punição, causou muito estranhamento a Serra. Era um choque com uma perspectiva de
sociedade que funcionava, nesse aspecto, antagônica às que conhecia.
Serra também afirma que os Guaicuru teriam horror a certos trabalhos manuais, que
seriam executados, dentre eles, apenas por cativos. O militar considerava o valor do trabalho
incompatível com a soberba, um ideal de superioridade, que interpretava enquanto natural aos
Guaicuru. Curioso que a ideia de sociedades estratificadas, onde os tidos como ‘superiores’
hierarquicamente, havia sido algo comum em séculos anteriores na própria Europa. Aliás, na
prática, isso não tinha sido plenamente acabado. Também não há relato que deixe a entender
que Serra considerasse a nobreza, como a própria realeza, a qual servia, de modo negativo.
Ainda assim, perante a cultura política na qual estava inserido, era inconcebível, ou, ao menos,
digno de ofensa, os indígenas não quererem fazer algo que os portugueses faziam. Algo que o
próprio muitas vezes já teria feito durante a vida. A ideia dos Guaicuru se considerarem
superiores aos portugueses - nascidos no reino ou na colônia - é absurda e gerava quase uma
repulsa da parte de Serra. E, mais do que isso, esses indígenas ainda afirmariam que teriam
‘amansado’ os espanhóis e portugueses (além de descendentes), com os quais conviviam.
51

Embora Serra jamais fosse admitir, talvez nem mesmo fosse capaz de perceber, a colocação
dos Guaicuru não estava errada. Os europeus e seus descendentes, por séculos, tentaram
subjugar belicamente esses indígenas. Demorou, mas no último quarto do século XVIII a Coroa
portuguesa começou a instigar uma mudança de postura, buscando estabelecer o Tratado de Paz
com os Guaicuru. Mesmo a Coroa espanhola, com a qual esses indígenas tiveram mais
conflitos, ainda em fins do XVIII começou também a adotar essa mesma estratégia.
Em sequência, Serra afirma que:

A suma indiferença com que olham para os mais visíveis sentimentos e princípios da
Religião e da lei natural, que só nos corações destes homens parece se não acha
gravada: a crueldade com que aniquilam a sua mesma raça, incompatível com o
extremoso mimo e amor com que tratam e criam algumas crianças que compram, e
furtam às nações vizinhas, e maiormente nos próprios filhos, que raras vezes deixam
nascer de suas mulheres; a independência e rivalidade com que vivem entre si as
diversas tribos dos Guaicuru que formam o todo desta errante e dispersa nação, unidas
para o seu interesse geral e separadas pelo seu próprio e para sua subsistência: as
chamadas comodidades da vida, ou sejam do fausto, da mesa ou da casa, que
felizmente desconhecendo, não prezam nem buscam, não multiplicando assim as
necessidades do homem, tudo enfim acumula uma confusão de ideias contraditórias,
que, parecendo entre si diametralmente opostas, constituem o sistema, a moral e a
conservação de todo o corpo dos Guaicuru, formidável as mais nações indígenas do
amplíssimo Paraguai, e ainda muitas vezes aos mesmos Portugueses, e Espanhóis,
sobre os quais por dois séculos cometeram repetidas atrocidades, e quais sempre
impunemente (1845, p. 205).

Serra aproxima princípios do cristianismo com o que compreende enquanto uma ‘lei’,
um modo natural e correto de se viver. Sendo os Guaicuru dignos de absurdo, por demonstrarem
indiferença a esses fatores que ele acreditava que deveriam ser naturais a todas as pessoas. Ao
criticar o coração, cerne imaginário do sentimental, o militar desenha indivíduos ruins e/ou
maus por natureza. Em outras palavras: aspectos tidos como negativos por Serra, seriam inatos
a esse povo. Desse modo, mais difíceis de serem superados. Só não impossíveis, pois seu Deus
seria capaz de qualquer coisa. Ilustrando não só sua visão de mundo, centrada no cristianismo
e nos ideais civilizatórios ocidentais, mas também como usou esses fatores para moldar seu
discurso, segundo seus interesses.
Os Guaicuru seriam cruéis devido a, por exemplo, abortarem. Ao mesmo tempo em que
demonstraram imenso afeto às suas crianças, sejam suas descendentes de sangue ou não (como
as permutadas ou tomadas de outros grupos após confrontos). Do não entendimento da cultura
política dessa outra sociedade, Serra começa a compreender as características que era capaz de
enxergar como contraditórias.
Ponto interessante também é quando ele disserta sobre a diversidade de grupos
Guaicuru. Desde o início de seus escritos, assim como Prado, fala-se muito ‘nação guaicuru’ e
52

se abordam esses indígenas de modo como se fossem homogêneos, o que, inclusive, condiz
com a visão não indígena oitocentista sobre povos originários. Tal visão tomava forma já desde
os setecentos. Só que ao mesmo modo que ele enxerga os Guaicuru enquanto uma espécie de
unidade, reconhece a existência de subgrupos dessa etnia e, mais do que isso, consegue perceber
que eles não eram nada homogêneos. Seriam inclusive independentes entre si, por vezes, até
rivais, com muitos atritos em suas relações. O que culminaria em potenciais alianças, ou não,
entre os subgrupos Guaicuru, eram os interesses dos indivíduos neles inseridos. Chamamos a
atenção aqui para o fato de que embora Serra tenha observado tantas contradições no ‘outro’,
não foi capaz de perceber no seu próprio ‘eu’. Não percebendo então que essas atitudes e os
direcionamentos segundo interesses eram comuns também entre os não indígenas. Aliás, entre
quaisquer grupos humanos, salvos raras exceções39.
Em meio a críticas, Serra faz um raro elogio a esse povo por não buscarem excessos de
comodidades, de conforto, no seu modo de vida. Muito motivados pelo estilo de vida nômade,
eles não cairiam no erro da busca pelo que o militar considera “comodidades da vida” (1845,
p.205). Se não buscaram para si, não multiplicaram aspectos que o militar interpretava como
negativos, que aqui não ficam explícitos, mas provavelmente o seriam passíveis de se chocarem
com sua interpretação da bíblia cristã, principalmente contra o pecado capital da preguiça,
intrínseco na crítica à ‘comodidade’ (SOUZA, 2009).
Mais ao final do trecho citado, o militar volta a afirmar que os Guaicuru eram
contraditórios, pois suas ideias seriam ainda confusas e diametralmente opostas entre si. O
sistema moral desses indígenas seria a base dessas contradições, reforçando a ideia dessa
dualidade ser intrínseca e natural aos Guaicuru. Serra ainda declara “repetidas atrocidades”
cometidas pelos indígenas, contra espanhóis e portugueses, das quais teriam saído “sempre
impunemente” (1845, p. 205). Aqui há duas possibilidades que não se anulam: 1ª) Serra
desconsidera as mortes de guaicurus nos conflitos que ocorreram ao longo de séculos; 2ª) Ele
releva o fato da postura, desses próprios europeus, e os descendentes destes, terem também sido
responsáveis por perpetuar as relações bélicas. Afinal, as mudanças de postura naquela região
teriam começado, na prática, não muito mais de 30 anos antes do momento em que Serra
escrevia. Em suma, na perspectiva do militar português, os Guaicuru eram indivíduos,
intrinsecamente, contraditórios e não confiáveis que ainda teriam abusado da benevolência de
servidores de sua Coroa. Sem, porém, compreender que foram esses também que, por séculos,
invadiram os territórios pelos quais os Guaicuru circulavam e exerciam seu modo de vida.

39
Como, quem sabe, alguns grupos originários isolados de interações com outros de fora de sua cultura.
53

O militar prossegue, já finalizando essa espécie de “introdução” de seu parecer:

Eu seria assaz extenso se pretendesse demonstrar, que não são paradoxais as


afirmativas referidas, e desenvolver as combinadas circunstâncias pelas quais se
fariam evidentes. Portanto Illm. e Exm. Sr., não deixando de tocar em alguns fatos
constantes que as verificam, passarei a expor , não quanto me parece necessário para
se aldearem estes Índios ; de tal forma que sejam úteis à agricultura e à mineração,
mas sim às dificuldades, que acho a um estabelecimento fixo e constante, do qual se
possam tirar as utilidades que se esperam, e as quais só o tempo poderá facilitar
quando, pela nossa mais longa comunicação, se adoçar os seus costumes e parte dos
estranhos princípios que se governam, se acaso isso ser possa (1845, p. 205-206).

Serra deixa claro que não considera que fez exatamente o que lhe foi solicitado pelo
então governador e capitão-general da capitania de Mato Grosso, Montenegro. Este havia
solicitado um parecer sobre o aldeamento de indígenas Guaicuru. O militar, na prática,
realmente fez algo diferente e até antagônico. Uma espécie de parecer sobre os motivos pelos
quais não atingiria sucesso um aldeamento dos Guaicuru, ou, em outras palavras, a não
recomendação do estabelecimento deste empreendimento. Não buscou, em seus escritos,
elencar meios ou estratégias para um bem-sucedido processo de redução daqueles indígenas,
mas sim, defendeu a tese de que tal ação não seria factível. Ao menos, não do modo como seu
superior vislumbrava.
No corpo de seu parecer, Serra elencou, extensamente, dificuldades que enxergava para
o estabelecimento de um projeto de aldeamento dos Guaicuru. Ele acredita que, para aqueles
indígenas se tornarem úteis para fins de agricultura e mineração, como a Coroa desejava, seria
preciso aguardar um longo período, isso, caso possível, pois permanecia cético. Durante esse
longo período, o militar acredita que deveria haver foco no trabalho de comunicação entre
portugueses e Guaicuru, objetivando “adoçar seus costumes” (1845, p. 206) e princípios. Em
outras palavras, os tornar menos ‘bárbaros’, os ‘civilizando’, os aproximando então da
perspectiva de mundo, da cultura política na qual Serra estava inserido.
Nas páginas seguintes, o militar aborda a relação dos Guaicuru com grupos indígenas
de outras etnias (1845, p. 206-211). Em relação aos Guanás, com os quais tão próximos viviam,
Serra afirma que seriam um “castigo” na vida destes. Ele também segue argumentando
favoravelmente a ideia de os Guaicuru serem um povo soberbo ao se enxergarem enquanto
superiores aos outros, ponto que continua desenvolvendo no decorrer do parecer.
Ao abordar o hábito da adesão de cativos de outros povos ao meio Guaicuru, Serra
apresenta seu apego à origem sanguínea daqueles indígenas. Ele demonstra compreender a
cultura e as características daquele povo enquanto estáticas. Não percebe que ao adentrar a
54

cultura de outra etnia, o indígena antes externo àquele povo, passa a fazer parte daquele modo
de vida. Ainda que não necessariamente iguais a todos os nascidos de pais Guaicuru, se
tornariam então membros dessa ‘nação’ indígena.
A necessidade de cativos, por parte dos Guaicuru, ocasionaria no guerrear uma demanda
sempre urgente para esses indígenas. Segundo Serra, eles precisavam disso para repor as perdas
humanas dos ataques e para suprir perdas associadas aos abortos. Se não para uma dinâmica de
crescimento populacional, ao menos para manterem os números ou não se reduzirem
drasticamente muito rápido.
Serra fala que na época na qual escrevia, existiriam apenas duzentos “verdadeiros
Guaicuru” (1845, p. 211). O militar invalida, ainda que talvez não conscientemente, processos
de mestiçagem. Os quais, na prática, não podiam ser descartados na história das duas centenas
citadas. Serra, seguia compreendendo os Guaicuru, e mesmo outros indígenas, ainda de modo
estático e homogêneo (perante cada etnia). Não percebe que processos de mestiçagens, como
os que via acontecendo, em maior ou menor medida, tinham acontecido antes, assim como
continuaram depois. Os Guaicuru tinham todas as características favoráveis para essas trocas
constantes. A manutenção do seu modo de vida dependia do agregar de indivíduos de outras
culturas, inclusive não indígenas. Havia cativos ex-escravizados, por exemplo. Isso não havia
começado naquele momento.
Colocando-se uma vez mais contra a factibilidade de um aldeamento, o militar sintetiza:

segue-se, digo, que tudo se opõe a um aldeamento permanente para uma nação errante,
inimiga da agricultura, e que vaidosa despreza as fadigas dela, que olham só dignas
de cativos. Soberba, preguiça e negação, que evidenciam os fatos seguintes (1872, p.
348-349).

Serra, mais uma vez, explicita que não enxerga a possibilidade de aldeamento aos
Guaicuru, reforçando a ideia de que são vaidosos e menosprezam o labor da agricultura. Não
se permitindo sentir o cansaço decorrente do trabalho braçal, não visto como menor pelos lusos,
mas sim pelos Guaicuru que o associavam a seus cativos. Depois ele os associa a três palavras:
“soberba, preguiça e negação” (1872, p. 349), sobre as quais destrincha mais a seguir no texto,
com tópicos específicos para cada.
O final do século XVIII trouxe novos encaminhamentos para velhos problemas
econômicos que iam se acentuando no Império português. A ascensão das luzes na metrópole,
não gerou descrédito ao já antigo mercantilismo, mas o somou a um crescente pensamento
fisiocrático. Nesse cenário, as produções, especialmente a agricultura e a mineração foram
55

compreendidas como solução para esses problemas (POMBO, 2017). Agregar a população de
modo que esses se compreendessem como vassalos da coroa e que produzissem riquezas a
serem agregadas aos meandros das relações imperiais, foram objetivos que partiram da Coroa
e foram repassados pelas diferentes cadeias de comandos de sua então colônia na América. Aos
fisiocratas, cujo pensamento influenciou tanto Serra quanto Prado, o ócio era sempre algo
criticável. A inação representava o empobrecimento e enfraquecimento do Império português,
enquanto o trabalho árduo seria elemento intrínseco e essencial à riqueza, ao crescimento e a
boa moralidade. Às forças metropolitanas nos limites da colônia, cabia buscar sempre o agregar
de pessoas e terras, essas que deveriam ser sempre úteis, ou seja, produzir. Não à toa, o interesse
de figuras que estudaremos ao longo deste capítulo, como os governadores da província de
Mato Grosso, de que os Guaicuru se estabelecessem fixamente nas terras sob domínio da Coroa
e lá produzissem bens agrícolas, agregando tanto a economia colonial como a moralidade desses
indígenas, tantas vezes malquistos pelos não indígenas.
Iniciando o tópico “Soberba” (1872, p. 349- 350), Serra relata sobre propostas feitas por
representantes da coroa portuguesa aos Guaicuru para que estes plantassem e criassem animais.
Os indígenas pareciam até dispostos a isso, desde que lhes fossem mandados cativos para
executar essas ações e que as casas de madeira, para estabelecerem residências fixas, fossem
feitas pelos luso-brasileiros, não por eles mesmos. Também até estariam dispostos a se casarem
com portuguesas, aliás, os próprios indígenas teriam todos dito que as queriam, segundo Serra,
mas não lhes fazia sentido a ideia de um matrimônio ‘até que a morte os separe’. Como escritos
prévios de Prado já delatavam, os relacionamentos Guaicuru eram findados e rearticulados
dentro de suas comunidades sem tabu.
Relata e critica que certos Guaicuru, de ‘sangue-puro’, assim dizendo, reconheceram
em si mesmos características lidas por portugueses enquanto de “nobreza”. Diferente dos
ibéricos que ganhavam os títulos, os Guaicuru já nasceriam com eles, por linhagem. Seria o
caso dos ‘capitães’ e das ‘donas’, chefes dos grupos. Para algum português ser benquisto por
indígenas, só através de presentes. Quando os Guaicuru gostavam então de um não indígena,
diziam que esse era como um Guaicuru. Do contrário, por desagrado a alguém, chamavam de
português e outros termos mais.
O conjunto desses elementos reforçaria a ‘soberba’ e a ‘vaidade’ na perspectiva que
Serra tanto invocou. A ideia de superioridade de um povo que ele mesmo via como ‘bárbaro’ e
‘selvagem’, de se considerarem melhores que ele e outros culturalmente mais próximos dele,
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era um absurdo. Era antagônica à sua percepção de mundo e reforçava a ideia de dificuldade de
aldeamento daquele povo.
Serra (1872, p. 355-357) escreveu também sobre as relações afetivo-sexuais envolvendo
membros de distintas comunidades Guaicuru. Dentre as características que ele bem repara, está
o fato das ações, por ele compreendidas enquanto casamentos, resultarem em deslocamentos.
No caso, os maridos se mudariam para o alojamento das esposas. Outra questão seria a duração
dessas relações. Não perpetuavam o compromisso do casamento cristão de não permitir
separações, ao menos, não sem grandes repercussões. Pelo contrário, as relações seriam,
comumente, curtas e variadas. Havendo alterações de interesses, se finalizaria a relação
presente e outras, com diferentes indivíduos, poderiam ser estabelecidas sem nenhum problema.
E mais, nada proibia que pudessem voltar após esses rompimentos. Nada também impedia que
relações fossem construídas entre membros de diferentes grupos Guaicuru, ainda que distantes
geograficamente, na percepção de Serra, ou mesmo, por vezes, relacionamentos interétnicos,
Guaicuru com Guaná, por exemplo. O militar pontua que essas mudanças derivadas dos
casamentos, somada a sua imprevisível durabilidade e o fato de acontecerem entre membros de
comunidades distantes, seriam mais um elemento, perante o conjunto que descreve, para
dificultar os aldeamentos. Há de se ter em mente também que o estado da aliança com a Coroa
portuguesa não era idêntico entre todas as comunidades Guaicuru. Havia grupos em aliança
com a Coroa espanhola, por exemplo. E esses indígenas não deixavam de se relacionar e se
deslocar para morarem com parceiros de outros grupos, segundo os desejos das Coroas Ibéricas
e de seus representantes. Ainda que isso causasse desconforto aos representantes destas e as
seus interesses, conforme Serra transparece.
Sobre as mulheres Guaicuru, Serra (1872, p. 357-359) afirma que, principalmente as
donas, manteriam, além dos maridos, sempre um ou dois ‘cortejadores’, que poderiam até
dormir com elas. Na visão do militar, os parceiros não demonstravam ciúmes por essas ações.
Das separações podiam surgir novas relações, com algum dos antigos ‘consortes’ enquanto
novo marido. Antigos parceiros poderiam também se repetir. Não havia proibições ou muitas
limitações. Embora não se possa perder de vista que a ideia de ‘matrimônio’, presente nos
escritos de Prado e Serra são comparações anacrônicas, tais autores usam elementos da sua
cultura política para tornar a do ‘outro’ mais compreensível. As uniões desses indígenas não
eram restritivas, limitantes ou geravam obrigações a longo prazo. Embora houvesse
semelhanças com a monogamia enquanto duravam, nada impedia que fossem desfeitas e
refeitas quantas vezes os indivíduos inseridos achassem interessante.
57

Os únicos elementos que pareciam ser capazes de afetar essa relação seriam a gravidez
e o nascimento de crianças. Por um lado, os pais não poderiam ter relações com mulheres
grávidas de bebês seus, com base na crença de que a criança morreria ou ficaria doente para
sempre. Do outro lado, com homens não aparentados, não haveria problema no ato sexual.
Separações poderiam ocorrer durante esse intervalo, entre gestação e parto. Ainda assim, após
o nascimento de uma criança, em perfeita saúde40, a dinâmica parecia mudar, um filho parecia
ser o único elemento que garantiria a inviolabilidade de um ‘casamento guaicuru’, a criança
representaria um acordo, na percepção dos que sobre eles relataram, vitalício, associando seus
pais.
Perante essas variadas dinâmicas relacionais, para Serra seriam os homens guaicuru,
não as mulheres, como Prado defendeu antes, particularmente, seres luxuriosos. Ele afirma isso
por culpá-los pelos rompimentos dessas relações que lia como casamentos. Chega até a afirmar
que homens seriam os culpados pelas mulheres matarem seus filhos, para não terem as
obrigações decorrentes do nascimento e criação deles. Não fica claro, porém, com base em que
afirma isso. Diferentes de outros momentos, aqui Serra não traz nenhuma experiência pessoal
ou algo que ‘legitimasse’ sua ideia. É até curioso, haja vista, que tanto ele quanto Prado, deixam,
múltiplas vezes, claro, a naturalidade desse hábito dentre, ao menos, parte dos subgrupos
Guaicuru. Fica até explícito, em todas as descrições, que o aborto era executado pelas mulheres,
ainda que lhes afligisse dor física e pudesse culminar em esterilização. Não havia muito, dentre
o que é colocado perante a realidade daqueles povos, que justificasse a ideia dos homens terem
mais hábitos julgados ‘luxuriosos’ do que as mulheres41. Seja como for, é afirmado que era
mais comum ser após os 30 anos que as mulheres estariam dispostas a dar prosseguimento a
gravidez e gerarem uma criança. Poderia, em casos específicos, existir uma segunda mulher,
que convivesse no mesmo espaço que o casal possuidor do infante. Serra afirma que essas
seriam “como a mordoma da casa” (1872, p. 357), não podendo gerar seus próprios filhos.
Ilustrando que, mesmo após o estabelecimento de um relacionamento lido como vitalício pelas
fontes, não chegava a adentrar o modelo monogâmico tradicional cristão.
Pouco depois, num movimento semelhante à Prado, escreve sobre um tipo de indivíduo
que existia dentre os Guaicuru:

40
Crianças com deficiências aparentes, usualmente, não eram criadas. Nos relatos fala-se em aborto, mas não é
o ideal para descrever em situações que o bebê chega a nascer. Se for como em outros povos, tanto americanos
como pelo mundo, esses indivíduos seriam abandonados após o parto.
41
Dois elementos, que não se anulam, e que poderiam servir como base dessa ideia seriam: 1º) Envolvimentos
lidos como ‘extraconjugais’ em períodos de deslocamentos para caças ou conflitos; 2º) Relações com cudinas.
58

Tudo quanto o espírito da luxúria sugeriu de libidinoso e depravado a malícia dos


homens praticam estes índios; e por cume de excesso, basta dizer que entre os
Guaicuru e Chamacocos há, ainda que poucos, alguns homens a que estimam e são
estimados a que chamam de cudinhos, os quais lhes servem como de mulheres,
principalmente nas suas longas digressões. Estes cudinhos ou nefandos demônios,
vestem-se e se enfeitam como as mulheres, falam como elas, fazem só os mesmos
trabalhos que elas fazem, trazem jalatas, urinam agachados, tem marido que zelam
muito, e tem constantemente no braços, prezam muito que os homens os namorem, e
uma vez cada mês afetam o ridículo fingimento de se suporem menstruados, não
comendo como as mulheres naquela crise, nem peixe nem carne, mas sim algum fruto
e palmito; indo todos os dias com elas praticam ao rio com uma cuia para se lavarem,
ao suposto tanque da sua jalata (1872, p. 358).

Serra aborda as mesmas pessoas que Prado grafa enquanto “cudinas” (1908, p. 26-27),
só que as nomeia de “cudinhos” (1872, p. 358). Indivíduos que, uma vez mais, partindo de uma
cultura política derivada do imaginário da Europa cristã, binária (bem x mal, certo x errado;
homem x mulher etc), foram lidos enquanto homens, que se fingiriam mulheres e que se
relacionariam com outros homens. Embora nas descrições Serra transpareça que essas pessoas
eram aceitas de modo semelhante as mulheres de seu povo, deixa claro também o absurdo que
enxerga na mera existência das cudinas. Ao longo do texto ele critica hábitos e características
de grupos Guaicuru, mas apenas essas pessoas foram descritas como demônios e praticantes de
pecados inomináveis. Esse é, claramente, o elemento da cultura Guaicuru de maior desprezo
por parte de Serra e também de Prado. As cudinas, mais que quaisquer outros Guaicuru, eram
antagônicas à perspectiva de mundo que os portugueses que as descreveram viam enquanto
corretas e civilizadas. Elas seriam o ápice de um ideal de ‘barbaridade’ e de tudo mais que fosse
negativo. Se outros Guaicuru eram caracterizados negativamente por suas ações e atritos com
outros indígenas e não indígenas, aqui a mera existência das cudinas já motivava todo esse
desgosto.
Ao abordar a espiritualidade Guaicuru, Serra constrói sincretismos constantes, traçando
paralelos entre elementos da fé dos indígenas, com a sua fé cristã (1872, p. 359-362). O militar
demonstra conhecer o mito de origem dos Guaicuru42. Segundo ele, a crença nessa origem não
seria universal em todos os Guaicuru, lhe parecendo mais forte naqueles já nascidos naquela
comunidade, do que nos agregados ao longo da vida.
Serra transparece o sincretismo principalmente ao associar a divindade criadora
Guaicuru ao Deus cristão. Mesmo usando esse tipo de artifício, afirma que os indígenas
seguiram não levando a sério o cristianismo. Não mais do que qualquer outro conto, mito ou
história que pudessem vir a conhecer. O ponto central para a dificuldade de os Guaicuru

42
Vide nota 27.
59

acreditarem naquela outra fé, é a ausência de seu protagonismo em histórias supostamente de


tão grande importância. Não é que os indígenas desprezassem essa fé estrangeira, mas sim que
fossem indiferentes a ela. Serra não compreendia isso, para ele era mais um elemento de soberba
e vaidade por parte dos Guaicuru. Se o militar associava as divindades Guaicuru e cristã,
enquanto uma, não conseguia, em plenitude, fazer o mesmo entre os Guaicuru e os portugueses.
Não compreendia que a sua fé trazia no protagonismo figuras que eram representadas próximas
de si, ou seja, como homens europeus. E aqui, uma vez mais, temos o choque da dualidade entre
o ‘eu’ e o ‘outro’. Onde leio o ‘outro’ a partir da negativa do ‘eu’, sendo o ‘eu’, correto, o
português ‘civilizado’ e o ‘outro’, o oposto, o indígena ‘bárbaro’.
Os Guaicuru também acreditariam na vida após a morte. Enterrariam, inclusive, junto a
seus mortos, cavalos, bens e até cativos, objetivando que esses os acompanhassem após a vida.
O hábito de enterrar cativos, porém, parecia já estar entrando em desuso no período de escrita
de Serra.
Havia cristãos, batizados, viventes entre os cativos Guaicuru. Ainda assim, a maioria
não parecia disposta a voltar ao cristianismo e ao meio dito ‘civilizado’, abandonando os hábitos
e a vivência dentre os Guaicuru. Serra se apropria do caso de ex-escravizados, batizados e se
surpreende com o fato que, esses que tiveram contato com o mundo “civilizado”, não optarem
por voltar para ele. Não percebe que ser cativo Guaicuru era bem menos desgastante que ser
um escravizado em posse de portugueses. E mesmo se voltassem como livres, seriam muito
mais o ‘outro’, do que pareciam ser dentre os indígenas.
Nesse assunto, a grande frustração de Serra é que esses indígenas tinham “claro
discernimento; são talvez os índios mais polidos, espertos e penetrantes de todo o Brasil. Tem
entre si muitos cristãos, como fica dito” (1872, p. 362). Em outras palavras: Os Guaicuru43
teriam acesso ao cristianismo, conseguiriam compreendê-lo, ao menos, em certa medida e,
conscientemente, não prezavam por ele. E mais do que isso, indivíduos podiam até se deixar
batizar e passar a agir como era de se esperar de cristãos da época. Ainda assim, nada os impedia
de voltarem às suas tradições. Se a cultura política na qual Serra estava inserido era permeada
por valores cristãos, por um ideal de superioridade da cultura europeia sobre as outras e por
incontáveis certezas, a dos Guaicuru seguia destoante. O modo de vida Guaicuru, a cultura
política na qual os diferentes grupos estavam inseridos, era antagônico a algo ‘estático’. Isso se
refletia no seu modo de vida nômade, em como construíam seus relacionamentos, na forma

43
Nesse caso ele está falando dos Guanás também. Ainda assim, em relação a essa etnia, deixa claro, em outros
momentos do texto, ser muito mais passível de aldeamento.
60

com a qual agregavam indivíduos de outras culturas na sua e, também, em como lidavam com
a fé, ao menos, aquelas vindas de fora. O caso desses indígenas era tão extremo na opinião do
militar que ele acreditava que apenas a “absoluta vontade de Deus” seria capaz de chamá-los à
“caridade da sua Igreja” (1872, p. 362). Desse modo desacreditava, ao menos em certa medida,
da faculdade da conversão desses indígenas, por mãos humanas. Afinal, só aquele capaz de
feitos do ‘impossível’, o Deus cristão, seria capaz desse poder.
No que parece um relato de exceção, Serra traz a história de uma indígena, nascida de
outra etnia, mas criada dentre os Guaicuru, que em seu leito de morte, teria aceitado o
cristianismo e pedido, “espontaneamente o batismo” (1872, p. 363). Reforçando seus próprios
valores cristãos nesse e em outros momentos, o militar realça sua caridade em fornecer tudo o
que pôde a nova cristã, no seu fim de vida.
Finalizando essa parte de seu parecer, Serra traz ainda mais um relato, sobre filhos de
portugueses, nascidos no reino e na colônia, com mulheres Guaicuru, que foram batizados assim
que nasceram, mas que, teriam logo morrido. O militar conta que fizeram grandes enterros para
eles, mas que mesmo entre os Guaicuru aldeados, poucos se interessaram. A norma teria sido a
indiferença. Desesperançoso sobre a cristianização dos indígenas, Serra fala em até uma dúzia
de mulheres Guaicuru abertas ao batismo, só que motivadas por interesses românticos em
portugueses. Por fim, conjectura que talvez o cenário se modificasse se algum capitão ou dona
se abrisse a possibilidade de conversão.
No tópico seguinte, Serra se propõe a refletir sobre aqueles entre os Guaicuru que seriam
equivalentes a “padres ou curandeiros” (1872, p. 364), os unigenes. Estes seriam indivíduos do
povo Guaicuru responsáveis por processos de cura através de interações com espíritos e a
natureza. O militar já começa os acusando de serem embusteiros, ou seja, impostores,
mentirosos (SILVA; BLUTEAU, 1789). Ele demonstra desprezo principalmente pelos métodos
que observou entre esses indivíduos. Diferentes de outras etnias, não haveria tanto uso de
plantas medicinais. Em sua percepção, os métodos se restringiriam a esfregar e machucar partes
do corpo afetadas e “chupá-la com a maior força, tirando muitas vezes sangue está ventosa
natural” (1872, p. 365). Em outro momento fala também sobre cantos e ilustra o que pode se
assemelhar aos rituais religiosos de possessão, onde a figura ligada ao espiritual, perde, ao
menos parte, da consciência em busca de contato, aconselhamento, resposta e/ou outras coisas
mais, para ancestrais e/ou entidades da natureza. Esse conjunto de ritos e práticas seria de
dificílima compreensão para Serra, que classificou as cerimônias de unigenes enquanto
“filhas[s] do terror pânico” (1872, p. 367).
61

Nas diferentes cerimônias realizadas por unigenes nas comunidades Guaicuru, seria
recorrente a comunicação com um certo espírito, entidade, de nome Nianigugigo. Para Serra
esse ser “equivale segundo certas circunstâncias ao mesmo demônio” (1872, p. 367). Seria
então uma representação do Diabo. O militar é, porém, particularmente certeiro ao reconhecer
que esse potencial paralelo não era pleno, mas dependeria das circunstâncias. Essa entidade
seria responsável por se comunicar pelo unigene em cerimônias que tratavam tanto de conflitos
e do guerrear quanto de assuntos de tempos de paz, como comemorações e/ou festas. Serra
deixa claro, em diferentes momentos de seu escrito, que compreende Nianigugigo como um ser
interpretado pelos Guaicuru como um espírito maligno. A partir disso, uma vez mais, constrói
o sincretismo entre distintas culturas políticas. A questão aqui é que, na prática, não havia nada
que desse a entender que a visão de mundos dos Guaicuru fosse tão binarizada como aquela do
militar. Para caber no seu mundo, na sua cultura política, o elemento derivado do ‘outro’ é
simplificado. Esse é um dos motivos de fontes como essa serem sempre recortes, fragmentos
de algo muito maior. E tantas vezes, como aqui nesta dissertação, é argumentado representarem
mais quem escreve, do que sobre quem escreveram.
Serra defende que a maioria dos Guaicuru, diferente dele, acreditava nos rituais
realizados pelos unigenes. Ainda assim, traz relato de um chefe que teria afirmado para ele sua
descrença nos mesmos. Ele teria atuado enquanto unigene no passado e afirma que esse papel
era bom para conseguir favores de mulheres. O militar fala sobre a inconstância, a não
confiabilidade dos Guaicuru em várias partes do seu texto. Sendo enfático, inclusive, só que ele
mesmo não parece duvidar de diferentes afirmações que recebeu de certos Guaicuru. Não
parecia imaginar que indígenas poderiam também se portar de modo a buscar favores de um
dado comandante militar influente, com o qual tanto conviviam. A intencionalidade por trás
dos discursos era uma via de mão dupla e o sentimento de superioridade gerava a ignorância
disso.
O tópico seguinte aborda a temática do modo de guerrear dos Guaicuru. Para Serra, em
combate, os Guaicuru demonstraram “astúcia e manha, [assim] como pouco de valor” (1872,
p. 370). A afirmação dessa última característica estaria relacionada a sua interpretação de medo
por parte desses indígenas quando lutavam contra espanhóis, em suporte às forças luso-
brasileiras. Os Guaicuru teriam medo da morte, enquanto os ibéricos, não. Para o militar isso
estaria ligado à fé, pois da morte do fiel cristão, resultaria o ‘Céu’, o ‘Paraíso’ perfeito, em
resposta à devoção em vida. Além disso, os Guaicuru apreciariam a guerra apenas em situações
de vantagem, sem se preocuparem com os princípios morais presentes na cultura política que
62

definia a visão e interpretação de mundo de Serra. Para ele então, os Guaicuru nem sentiriam
vergonha das “covardias e atrocidades” (1872, p. 370) que cometeriam.
O militar sintetiza o modo de guerrear feito pelos Guaicuru da seguinte forma: “é
propriamente uma guerra ou ataques de uma banda de atrozes ladrões, que têm só por objeto o
roubo e a perfídia, contendo-os só o medo e interesse para o não fazerem a portugueses e
espanhóis” (1872, p. 370-371). Em suma, os indígenas seriam desleais e covardes. Interpretação
motivada por buscarem os próprios interesses e, em situações desfavoráveis, se recolherem ou
recuarem. Sem se preocuparem com as virtudes cristãs que as forças da Coroa queriam levar e
perpetuar, com distintos graus de esforço, por todas as partes daquela então colônia. Esse
discurso não só menospreza os Guaicuru, que Serra inferioriza constantemente, como,
indiretamente, enaltece o legado dos militares portugueses, com quem ele se reconhece e
solidariza. As próprias terras onde Serra se encontrava naquele momento, para serem
asseguradas à Coroa, custaram (e custariam ainda mais) muitas vidas portuguesas, por ele muito
valorizadas. Em suma, afetado pelos mesmos traumas e influências de Prado, Serra contribui
para a construção de um legado, uma memória sobre militares. Estes como desbravadores que
exploraram os sertões brasileiros, propagando os valores e virtudes cristãs, que em lutas contra
espanhóis e indígenas, acabaram por perecer, em troca de sua devoção em vida, sendo
agraciados com a maior das promessas de sua fé, a vida após a morte perfeita no ‘Paraíso’.
Abordando os cativos, Serra demonstra reconhecer que esses indivíduos não seriam
equivalentes, literalmente, aos ‘homônimos’ na perspectiva portuguesa, ou seja, com
escravizados (1872, p. 371-372). Mais do que isso, parecia não haver grandes distinções entre
os nascidos Guaicuru e os agregados ao longo da vida. O militar inclusive traz exemplos de
capitães e donas que vieram de outras etnias, através de “casamentos” interétnicos ou que são
frutos desse tipo de relacionamento. Não que não houvesse diferença entre cativos, alguém com
privilégios de chefia não executava, na sua comunidade, as mesmas coisas que indivíduos com
outras funções e papéis a cumprir. Ainda assim, avaliando o próprio conjunto do parecer de
Serra, parece que a estratificação social é muito mais marcada para ele (e também por Prado),
do que para os próprios indígenas. O ponto central aqui é que, ainda que cativos não fossem
‘iguais’ aos nascidos, não havia uma ideia de inferioridade. Havia sim papéis diferentes,
funções diversas, a serem cumpridas no funcionamento da sociedade. Sem castigos físicos ou
superioridade moral. Além disso, existia diversidade dentre e entre cada grupo Guaicuru e suas
populações particulares, nascidos ou agregados ao longo da vida.
63

Sobre a língua Guaicuru, Serra reconhece saber pouco sobre, todavia, afirma que
homens e mulheres falariam usando palavras diferentes segundo seu sexo 44. Também defende
que seria uma linguagem inculta. Não fica explícito o porquê do militar a classificar desse
modo, se não por destoar de alguma das que compreenda e/ou por vir de povos indígenas,
essencialmente, não lidos por ele enquanto “cultos”. Serra argumenta que há riqueza nas
comunicações entre os Guaicuru, mas haveria nessas relações entre eles “desconfiança,
dissimulação, cabal segredo” (1872, p. 374). O militar demonstra dualidade na leitura dessa sua
interpretação. De um lado há o aspecto negativo, que fica explícito com os adjetivos que usou,
construindo uma crítica aos Guaicuru; do outro, compreende que isso romperia com certas
crenças prévias suas. Através dessas artimanhas esse povo se afastaria de uma dita ‘primitiva
simplicidade’. Embora siga crítico aos Guaicuru, Serra os reconhece enquanto indígenas mais
abastados e capazes de feitos maiores do que os de outras etnias. Nesse discurso de
reconhecimento dessas capacidades ditas ‘elevadas’ dos Guaicuru, o militar acaba também por
justificar as dificuldades nas antigas forças exploratórias da Coroa, como os sertanistas e outros
militares como ele, em sobrepujar aquele povo em épocas anteriores. Ainda que crítico a esses
indígenas, não seria de bom tom os colocar enquanto fracos ou, mesmo, iguais aos outros povos
que foram mais facilmente derrotados por investidas portuguesas. Isso implicaria na
depreciação de não indígenas, frente aos Guaicuru, o que Serra não transparece em nenhum
momento de seu discurso. Ele sempre tem em mente quem entende enquanto superiores,
‘civilizados’, e quem seriam inferiores, ‘bárbaros’, e assim constrói seus argumentos, segundo
a cultura política na qual estava inserido.
O próximo tópico abordado são as “virtudes e caráter” (1872, p. 375). Serra reconhece
os Guaicuru enquanto um conjunto de pluralidades. Um agrupamento de:

diversas nações inimigas entre si, quando existiam no seu país natalício; mas que
unidos pelo meio da força, formam neste formidável corpo um todo de interesses,
máximas e implacável rivalidade sobre os seus mesmo parentes, o que não admira;
pois nesta associação melhoram de sorte, achando-se membros o composto de uma
nação que os outros temem, pelos estragos que lhe sofrem, que são outros tantos
triunfos quase sempre certos dos seus opressores (1872, p. 375).

Esses indígenas seriam então formados por um conjunto de “nações”, grupos ou


subgrupos, por vezes até inimigas entre si, mas unidas pelo potencial de suas forças combinadas
(1872, p. 375). As potenciais alianças seriam moldadas pelos interesses das diferentes

44
As cudinas falariam tais quais as mulheres, o que reforça a tese de serem aceitas dentre suas comunidades, do
mesmo modo que quaisquer outros indivíduos que a integravam.
64

comunidades Guaicuru. Ainda assim, o militar compreende que haveria mais vantagens que
desvantagens, para os indígenas, nessas uniões. É curioso perceber que, se em outros momentos
Serra trata os Guaicuru continuamente de modo genérico, ao abordar o que considera “virtudes”
e ‘caráter’, pluraliza os mesmos, explicitando a diversidade dentre eles. Isso corrobora com a
construção do argumento que buscava defender, de que os indígenas seriam, duais, inconstantes
e, por isso, pouco confiáveis, ao longo do parecer.
O militar, ainda no início desse tópico, afirma que o caráter dos Guaicuru já estaria
exposto em suas palavras escritas até aquele momento do parecer. Ainda assim, traz uma síntese
da sua interpretação acerca dele. Afirma que “o seu sistema é uma concentrada desconfiança,
incerteza, perfídia, interesse etc” (1872, p. 375). Reforça a questão de serem desleais e pouco
confiáveis, buscando sempre o que fosse mais interessante para eles. O que os limitaria, em
alguma medida, seria o temor pelos empreendimentos ibéricos. Todavia, mesmo após a chegada
desses não indígenas, foram séculos de investidas bélicas contra estes e, mesmo, outros grupos
indígenas, ainda que estes últimos pudessem estar sob proteção desses estrangeiros invasores.
Serra também realiza outras pontuações ao longo desse mesmo tópico. Constrói
comparações entre os Guaicuru e os romanos, partindo da ideia de superioridade sobre outros
povos. Defende que segredos seriam bastante comuns entre aquele povo. Ainda chega a
demonstrar estranhamento por aquela não ser uma sociedade regida por castigos e potenciais
punições, como a sua. Estranha bastante essa, como outras mais, dinâmicas daquela sociedade
destoar das que estava habituada e compreendia enquanto norma. Há um choque de culturas
políticas, diferentes sociedades funcionantes, só que com distintas dinâmicas. Porém, se eu vejo
aquele distinto de mim, o ‘outro’, como inferior, essas diferenças contribuiriam para que ele
estivesse fadado ao fracasso, ao erro e a um ‘fim’. Afinal, só o caminho que Serra perpetuava,
baseado na cultura política europeia e cristã, trazia ‘verdade’ e encaminhava os que viviam
sobre eles à salvação após a temida morte.
O militar afirma que, devido a sua “insaciável avidez” (1872, p. 377) os Guaicuru
disputaram a preferência de amizades com os portugueses, objetivando o ganho de presentes.
Todavia, “a sua soberba e alto conceito em que se consideram os faz desagradecidos e apenas
momentaneamente gratos” (1872, p. 377). Assim, por mais que esses indígenas reconhecessem
o valor do que recebiam, sempre buscavam mais e queriam mais coisas em troca do que
tivessem para oferecer. Esse conjunto de fatores contribuiria para omitirem ou mentirem sobre
seus planos aos portugueses. Serra os classifica como condescendentes e reforça sua
65

imprevisibilidade, deixando claro que não era capaz de ler os sentimentos ou intenções daqueles
indígenas. E continua:

A vaidosa e ridícula soberba com que se consideram uma nação de heróis e de


fidalgos; [...] a desconfiança, filha dos mesmos abusos, corrução moral e atrozes
princípios porque sempre cautelosos se governam; a dissimulação, o embuste a
inconstância; os seus conhecidos e estranhos costumes; tudo junto forma o fundo, o
carácter e as virtudes destes homens (1872, p. 378).

O militar segue em seus escritos reafirmando a soberba, desconfiança, corrupção moral,


princípios por demais cautelosos, inconstância, além de costumes que considera estranhos,
perante o povo que analisa. Seria o conjunto dessa leitura sobre aquele povo, estranho perante
sua compreensão de mundo, que culminaria no tal problemático e/ou defeituoso caráter dos
Guaicuru. Grave, num ponto, que, como já colocado, fazia Serra duvidar das possibilidades de
efetiva catequização desses indígenas. Só a direta vontade do Deus cristão poderia os adequar
às expectativas relativas a cultura política na qual Serra estava inserido.
Mesmo com todas essas críticas prévias, o militar afirma que não haveria muito para
que ele e/ou outros servidores da Coroa portuguesa se queixarem da convivência com esses
indígenas, fora alguns casos de potencial fraude. Ao menos, desde antes daquele tempo, no qual
Serra escrevia e, na prática, a partir do Tratado de Paz entre os indígenas e representantes da
Coroa portuguesa e reforçado nos anos seguintes. Não descarta que, talvez, indígenas ou
portugueses, pontualmente, possam ter sofrido alguma forma de ofensa, que desconhecessem.
Afirma que podem, porém, terem existido poucas queixas por parte de guaicurus contra
portugueses buscando alguma forma de punição. Isso, acredita, também estaria associado a
esses indígenas não apreciarem muito a ideia de castigos, os quais, se existiam, não eram
recorrentes entre sua sociedade, que demonstrava funcionar, independentemente deles.
Embora raras, parece que parte dos desagrados dos Guaicuru contra não indígenas, dizia
respeito a relações com suas parceiras. Para Serra, todas as mulheres Guaicuru, mesmo donas,
já teriam mantido relações sexuais com portugueses, em busca de agrados. Os parceiros delas,
no geral, não pareciam ver problemas nisso. Ainda assim, por sua “natural vaidade, só se
queixam ordinariamente quando julgam a sua soberba desatendida” (1872, p. 380). Em outras
palavras: quando os não indígenas que mantiveram relações com suas parceiras não
oferecessem alguma forma de pagamento pelo ato. Em relação a aceitação desses atos sexuais
por parte dos ‘maridos’, o militar afirma uma espécie de omissão, indiferença e/ou negação em
relação ao fato. Quando recebiam algo em troca, os homens diziam que era presente por terem
“amansado os portugueses” (1872, p. 380), não por um suposto ato sexual. É pontual perceber
66

que, embora esses indígenas não tivessem apego a um modelo de relação monogâmico cristão,
preferiam negar a possibilidade de suas mulheres se envolverem com indivíduos tido por eles
enquanto inferiores, no caso, não indígenas. Embora potencialmente teriam agido de forma
semelhante com qualquer outro que não fosse um Guaicuru. Assim como nos discursos de
portugueses estes se mantinham superiores, o oposto também era verdadeiro. As culturas
políticas portuguesa e Guaicuru poderiam ser chocantemente destoantes em alguns aspectos,
mas indivíduos que as compunham seguiram demonstrando mais semelhanças do que seriam
capazes de perceber, muito menos admitir. Jogos de interesses, tentativas de manipulação e a
noção de superioridade não pareciam ser exclusividade de nenhum dos atores desse contexto.
O último tópico antes de suas conclusões, é o mais longo dos escritos por Serra,
intitulado com algo que ele acredita que os Guaicuru não possuíam: “estabilidade” (1872, p.
381). Ilustrando sua concepção, já começa afirmando que:

A estabilidade dos Guaicuru é quanta se pode esperar de uma natural e sempre


invariável inconstância: sendo só o interesse, a necessidade e o temor, quem os
conserva na nossa amizade, e ainda na espanhola, e os obriga a uma forçada
condescendência, tendo toda a arte para se fazerem importantes a estas duas nações,
circunstâncias que me parece devo desenvolver (1872, p. 381).

Na prática, o militar não acreditava que havia estabilidade, por si só, nas relações com
os Guaicuru. Algo próximo, porém, talvez tenha existido, partindo de dois elementos: 1º)
Presentes dados aos indígenas, que nunca ficariam satisfeitos e sempre queriam mais; 2º)
Somado ao primeiro, havia certo temor, ainda que variável, em relação aos espanhóis e hispano-
americanos. Estes possuíam um lastro maior de atritos com os indígenas, inclusive recentes à
escrita de Serra, que teriam culminado em muitas mortes Guaicuru, ainda lembradas,
vividamente, por parte de grupos indígenas.
O militar, avaliando os conflitos entre Guaicuru e forças da Coroa espanhola, defende
que o modo de combate destes indígenas seria “atroz, manhoso e seguro”, gerando muitos
estragos em empreendimentos hispano-americanos (1872, p. 382). Segundo Serra, isso
aconteceria mesmo após um dito tratado de paz com aquela nação, datado de 1774. Os danos
teriam sido tais que motivaram forças espanholas a buscar auxílios de luso-brasileiros contra os
indígenas. O militar não dá nenhum indício de que esse auxílio tenha sido efetivado.
Voltando a desenvolver ideias prévias, Serra reforça o ano de 1791 como um marco de
virada, pacificação, nas relações entre os Guaicuru e os portugueses, quando houve o
estabelecimento do, já citado, Tratado de Paz. Ele então lista algumas motivações, não
excludentes entre si, que geraram uma situação favorável ao seu estabelecimento: 1º) Os
67

Guaicuru temiam as aproximações de empreendimentos hispano-americanos, que vinham os


pressionando em múltiplas frentes; 2º) O aumento dos domínios territoriais de ambas as
potências ibéricas. Por contrapartida, a crescente diminuição dos territórios dominados pelos
indígenas; 3º) O crescente comércio e a dependência de bens de não indígenas, que só poderiam
ser conseguidos através do primeiro. Para Serra, essas relações seriam bem menos atribuladas
com os portugueses. Havia ainda, também, o maior temor ou, quiçá, trauma, em relação aos
espanhóis.
Os principais fatores, para o tal contexto favorável, estariam permeados por elementos,
como interesse, necessidade, temor e segurança. Serra escreve que “estes interesses, a
necessidade, o temor e a sua própria segurança foram as causas principais, porque estes ladinos
índios buscassem a amizade portuguesa, e nela um asilo para futuros acontecimentos” (1872,
p. 383).
O militar argumenta que após o Tratado de 1791, no decorrer da última década do século
XVIII, as forças da Coroa espanhola muito expandiram suas fazendas e demais
empreendimentos na região limítrofe onde se encontravam os Guaicuru. Em reação, os
indígenas passaram a atacar mais e mais esses novos empreendimentos que cada vez mais
adentravam os territórios por onde circulavam. Segundo Serra, havia informações de que, ao
longo desses anos, guaicurus teriam roubado 20.000 cavalos que estavam em propriedades de
espanhóis. Em resposta às suas investidas, em 1796, a Coroa espanhola ordenou o
estabelecimento de um agrupamento, uma espécie de bandeira, que teria matado centenas de
Guaicuru45. No ano seguinte houve algo semelhante, buscando fazer com que os Guaicuru
recuassem ainda mais. Como resultado desses conflitos, grupos desses indígenas iam se
aproximando e convivendo cada vez mais próximos ou já nos mesmos locais que forças da
Coroa portuguesa estavam estabelecidas. Nesse sentido os fortes portugueses foram essenciais
para conter os avanços espanhóis e passarem alguma ideia de segurança para os Guaicuru. Serra
enaltece o papel português no “acolhimento amigável e útil” para com os Guaicuru acuados. O
militar omite que assim foi feito por interesses, comportamento ou característica que ele tanto
criticou quando associado aos Guaicuru (1872, p. 384). Agir segundo os próprios interesses só
era um problema quando esses se opusessem aos da Coroa portuguesa. A manipulação do

45
Na fonte aparece “dez a trezentos” (SERRA, 1872, p. 383). O transcritor afirma que, ainda que não fizesse
sentido, era isso que estava escrito no original. Argumenta que poderiam significar 1300 ou de 200 a 300. Ainda
assim, são só hipóteses. Como todas compreenderam duas centenas ou mais de mortes, optei por escrever do
modo que aparece no corpo da dissertação.
68

discurso só lhe era um problema, quando se chocava então contra as intencionalidades que
buscava, mais ou menos diretamente, propagar.
Serra narra que já na virada do século XVIII para o XIX houve uma mudança de
estratégias, em relação ao contato com os Guaicuru, por parte dos agentes da Coroa espanhola.
De modo semelhante aos que portugueses vinham fazendo a não tanto tempo a mais,
começaram a também buscar uma aproximação com os indígenas. A partir dessas
movimentações, grupos Guaicuru começaram a aceitar presentes vindos de espanhóis. Somado
a isso, para o incômodo de Serra, teriam passado também a dar ouvido a supostas mentiras
acerca dos portugueses, propagadas pelos primeiros. O militar tinha bastante consciência de
que os Guaicuru não eram estúpidos, ainda que muitos estivessem dispostos a se aliar com
aqueles que tinham causado muitas mortes dentre sua etnia, não muitos anos antes. Aliás, Serra
crê numa espécie de oposto, os afirmando enquanto “espertíssimos”, além de:

interesseiros e maliciosos, não lembrados dos danos e mortes que experimentaram dos
espanhóis, e igualmente esquecidos, revoltosos e ingratos aos nossos benefícios e
amparo, romperam inconstantes nos fins de 1800, e princípio do seguintes ano todas
as medidas e cautelas tomadas, para a sua conservação e tranquilidade desta fronteira,
indo oculta e publicamente a Bourbon, S. Carlos e Villa Real, dando crédito a quanto
os espanhóis lhe diziam contra nós, e cedendo por último às suas sugestões, só a eles
engrandecem, e só os portugueses lhes eram suspeitosos, os portugueses com quem
vivem há doze anos na mais íntima amizade, de quem não tem recebido agravo algum,
de quem tiram cada ano por um cálculo médio de 16 até 20 mil cruzados (1872, p.
384).

Aqui fica explícita uma disputa de poder e interesses envolvendo todos os atores citados,
tanto indígenas quanto não indígenas. Serra transparece, continuamente, a ideia de ingratidão
dos Guaicuru para com os portugueses. Evidencia também a ideia de uma expectativa de
construção de uma relação de privilégio ad aeternum para com esses indígenas. Parte da crítica
do militar está, mais ou menos conscientemente, nesses indivíduos basearem suas vidas no
tempo em que as estavam vivendo. Adaptável e fluida, como o funcionamento literal de suas
sociedades, perceptível até pelo nomadismo. Segundo argumenta Serra, mesmo subgrupos
Guaicuru que sofreram muito com investidas espanholas, cederam facilmente as oportunidades
que lhes interessaram.
Em 1802 teriam acontecidos novos atritos entre forças da Coroa espanhola e grupos
Guaicuru, que geraram (re)aproximações desses com forças portuguesas. Quando esses
indivíduos se deslocavam para as proximidades do Forte de Coimbra, seus capitães iam visitar
Serra, enquanto comandante do mesmo. Ele sempre os questionava se suas comunidades
estariam de visita ou se pretendiam se estabelecer permanentemente. Deixando claro, porém,
69

que de todo modo seriam bem recebidos. Só que em caso de mudança permanente receberiam
mais presentes e poderiam contar com a proteção das forças da Coroa portuguesa. Avaliando
isso, era recorrente que sempre afirmassem a ideia de permanência. Só que isso teria culminado,
múltiplas vezes, em indígenas que se apropriaram de presentes e foram embora daquelas terras
logo depois. O militar usa esses exemplos para reforçar seu recorrente argumento neste parecer,
em defesa dos Guaicuru serem essencialmente inconstantes. A inconstância de não se
adequarem aos interesses ou serem previsíveis aos planos destes que se achavam tão superiores
a eles. Superioridade nascida não do entendimento, mas ausência deste, da ignorância sobre/ao
‘outro’.
O último parágrafo do tópico ‘estabilidade’ reflete bem as conclusões de Serra enquanto
alguém bastante frustrado com as experiências passadas que relatou nas páginas anteriores:

Finalmente todos são guaicuru, todos têm os mesmos sentimentos, princípios e


dissimulação; todos desagradecidos não confessam benefícios, nem gostam a doçura
da mútua gratidão, tendo os seus costumes e máximas, manifesta incompatibilidade
com toda a esperança que se possa formar sobre esta nação, para que sendo úteis a si,
abraçando principalmente o cristianismo, o sejam da mesma forma para o Estado
(1872, p. 388).

Em suma, os Guaicuru só abraçaram aquilo que lhes fosse útil ou interessante e só


enquanto assim o fosse. Não havendo então garantias da manutenção a longo prazo. Nesse
momento de crítica mais enfática, Serra também volta a homogeneizar esses indígenas. Assim
se reforça a ideia de que seus ‘problemas’ não seriam de uns ou outros indivíduos, mas
intrínsecos a toda etnia. Estando neles deste modo, mal havia possibilidade de superação.
Exceto, claro, a intervenção direta da maior agência da cultura política de Serra, o Deus cristão.
Logo após, no tópico “conclusão”, ele ainda buscaria legitimar ainda mais seu
argumento, dizendo que se basearia na visão de outros que vieram antes de si, mas sem os
nomear (1872, p. 388-389). Ainda assim, demonstra acreditar que outros foram mais
esperançosos que ele, até mesmo na questão do aldeamento. Podendo ser essa uma referência
a Prado. De fato, este tem uma visão, ainda que cheia de críticas e julgamentos, bem menos
pessimista que a de seu sucessor no comando do Forte de Coimbra.
Já quase finalizando o parecer, Serra traz ainda um novo tópico, intitulado “conservação
e utilidade” (1872, p. 389). Trazendo uma abordagem um tanto diferente das partes anteriores
do parecer, aqui Serra transparece pragmatismo, deixando mais de lado julgamentos morais
sobre os indígenas. É aqui que aparece a análise mais técnica e onde se explicita os interesses
da Coroa portuguesa, frente ao cenário de disputas políticas entre potências ibéricas e grupos
70

indígenas. Assim, ele reconhece a “prudente e sagaz conduta” (1872, p. 390) dos Guaicuru ao
tentarem manter relações, tanto com portugueses, quanto com espanhóis. Principalmente tendo
em vista o contexto cada vez mais acuado e limitante que esses grupos de interesses impunham
sobre esses indígenas. A essa busca pelo equilíbrio entre as potências não indígenas por parte
dos Guaicuru, Serra lê enquanto “procedimentos a que tanto podemos chamar de inconstância
natural, como precisa prudência” (1872, p. 391). Inconstantes segundo os interesses que ele
representava, prudentes segundo os seus próprios, aqui ilustrados pela manutenção de suas
existências num cenário exponencialmente desafiador.
No decorrer deste último tópico, Serra começa a deixar ainda mais claro a importância
da aliança com os Guaicuru, perante a manutenção dos interesses territoriais da Coroa
portuguesa e, em contrapartida, a contenção dos espanhóis, seguindo então uma estratégia, fruto
de um projeto de consolidação territorial, que tomava forma por diferentes regiões limítrofes
do colônia entre esses dois impérios (DOMINGUES, 2000). A própria presença desses
indígenas regularia o potencial de expansão dos empreendimentos espanhóis. Além disso, eles
também seriam essenciais na manutenção dos presídios e dos povoamentos do entorno. Aqui
pensando tanto no capital humano de existência e crescimento desses agrupamentos humanos,
quanto uma crescente inserção dos Guaicuru no comércio colonial, seguindo uma tendência
que crescia desde o pós-1750, no contexto do Período Pombalino e do Diretório dos Índios
(ALMEIDA, 1997; MACHADO; POMBO, 2023).
Fator curioso que Serra elenca são as vendas de cavalos, pelos Guaicuru, aos
portugueses. Equinos estes, essenciais naquela realidade de dificultosos deslocamentos e
demandas logísticas variadas. Só que esses cavalos eram, em relevante medida, frutos de
pilhagens dos indígenas contra fazendas espanholas. Em outras palavras, os cavalos usados,
mesmos por forças militares da Coroa portuguesa, vinham, indiretamente, de posses da Coroa
espanhola. Assim também, incentivando, ainda que não assumidamente, novas investidas dos
Guaicuru contra as citadas fazendas. Nesse cenário fica perceptível, cada vez mais, que uma
ação de enfraquecimento de uma das potências ibéricas da região culmina, necessariamente, no
fortalecimento da outra, seja mais ou menos diretamente.
Ainda que discorde da viabilidade de aldear aqueles indígenas, Serra declara que
compreende ser de suma importância a manutenção de boas relações entre a Coroa portuguesa
e eles. Os Guaicuru, a partir dos conhecimentos que possuíam, compartilhados por Prado, eram
essenciais para a manutenção de interesses fronteiriços territoriais e ao não fortalecimento de
forças da Coroa espanhola:
71

Estas são as principais utilidades, que nos resultam da paz, e amizade com os Guaicuru
ainda independente do seu aldeamento e perfeita redução: utilidades que julgo
devemos conservar com empenho e custo; tanto para bem e tranquilidade desta
fronteira, como para não engrossar perdendo o poder, a força, e número dos nossos
vizinhos, sempre rivais, sempre suspeitosos e inimigos ocultos, utilidade que só com
a menor despesa podemos conseguir; visto ser o interesse quem cria unicamente estes
índios, o empenho com que os espanhóis os convidam e querem separar da nossa
amizade, e chamá-los só a sua utilidade e despesa, que ainda me ligam a algumas
reflexões (1872, p. 393).

Há ainda um último tópico do parecer, uma espécie de pós-escrito, intitulado “apêndice”


(1872, p. 393). Nele, Serra argumenta que portugueses conseguem manter a amizade com os
Guaicuru devido aos interesses deles, somado a segurança que poderiam proporcionar, além da
desconfiança que ainda existiria para com espanhóis. Os indígenas que viviam perto de Coimbra
e dos povoamentos do entorno teriam vindo de terras que, naquele momento, estavam sob o
domínio da Coroa espanhola. O militar também argumenta que essas terras perdidas seriam
mais produtivas e úteis ao modo de vida dos Guaicuru. Ele relata sua postura de autorizar chefes
Guaicuru que, porventura, resolvessem deixar as proximidades controladas por portugueses, se
mudando para terras do entorno de fortes espanhóis. Afirma que assim faria, para não
precisarem tomar tais atitudes de modo oculto, como relatou previamente.
Ao fim, explicita que sem os auxílios financeiros da Coroa, acredita que os Guaicuru
passariam todos para o lado espanhol. Defende então a manutenção do orçamento que acredita
justo e necessário para o cumprimento de suas funções naquele contexto. Finaliza o parecer, o
datando no segundo dia de fevereiro de 1803.
Há ainda a resposta ao parecer, uma carta escrita pelo então governador e capitão-
general da capitania de Mato Grosso, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, que esteve no
poder do final de 1796 até meados daquele mesmo ano, 1803. Embora explicite que da
solicitação ao envio do parecer, tenham se passado quase três anos, Montenegro inicia já sua
resposta demonstrando ter gostado do material que recebeu. Ainda que discorde do
posicionamento de Serra em relação a possibilidade de aldeamento dos Guaicuru, o governador
afirma reconhecer “sementes de civilização" entre aquele povo, as quais poderiam, “se bem
cultivadas”, dar “frutos” (MONTENEGRO, 1845, p. 214). Não discorda da dificuldade de um
processo de aldeamento, mas busca argumentar a favor dessa possibilidade. Logo nesse início
de sua resposta, já começa a se ilustrar uma abordagem que corrobora com os interesses da
própria Coroa portuguesa. Ele não destoa de Serra, quanto às dificuldades, mas sim quanto a
possibilidade de aldear. Em outras palavras: Discorda da potência da efetividade de estratégias
72

portuguesas para que indígenas Guaicuru adentrassem ao modo de vida dos mesmos e lhes
servissem enquanto instrumentos de manutenção de interesses.
Montenegro (1845, p. 214) aponta que parte das dificuldades em ‘civilizar’ os Guaicuru
estaria na manutenção dos ensinamentos de costumes entre as gerações daquele povo. Por esse
modo seriam propagados aspectos, como a inércia quanto ao trabalho, a imoralidade e os
costumes julgados negativos, além de um dito apreço por bebidas alcoólicas. Para o governador,
a superação dessas características passaria pela convivência dos Guaicuru dentre os não
indígenas, que seriam exemplos dos valores ‘civilizados’, ou seja, baseados em perspectivas de
cultura europeia cristã. Esse ponto se torna particularmente interessante, haja vista que há
plurais pesquisas já constituídas ilustrando o quão essas populações não indígenas dessa e de
outras regiões fronteiriças destoavam desses padrões morais idealizados (CORRÊA, L., 1999;
CORRÊA, V., 2000; DOMINGUES, 2000). Outra parte das dificuldades derivaria da
incapacidade dos indivíduos escolhidos para cargos de Curas e Diretores dos Índios. Inclusive
apontando em relação a estes a causa de uma dita pouco efetividade do último. Em síntese,
haveria, na perspectiva de Montenegro, dois grandes obstáculos para o aldeamento: 1º) As
relações destes indígenas, afastados do meio ‘civilizado’, propagada e incentivada dentre eles.
Ou seja, a manutenção da cultura Guaicuru; 2º) Falta de aptidão dos não indígenas escolhidos
para ‘civilizar’ esses indígenas. Esses homens não estariam dispostos ou seriam capazes de um
trabalho árduo. Após esses apontamentos, o governador sinaliza que a administração dos
indígenas deveria acontecer, efetivamente, num sistema tal qual a tutelagem de órfãos. Haja
vista que, segundo o que acreditava, os indígenas seriam essencialmente e eternamente menos
capazes que os não indígenas e, assim, dependeriam de cuidado e tutela constante por parte
destes. Na prática, o discurso de Montenegro carregava muito mais os interesses da Coroa
portuguesa naquele contexto, do que o de Serra (ou mesmo de Prado). O governador transmitia
uma estratégia que seguia tomando forma, inclusive já há algumas décadas, em outras partes da
colônia, como no Norte (DOMINGUES, 2000).
Seguindo o raciocínio já exposto, Montenegro argumenta não exatamente pela criação
de aldeamento regulares, reduções habitadas por indígenas e clérigos. Defende uma mistura de
culturas. De modo semelhante ao que citou anteriormente, com indígenas vivendo em povoados
com famílias não indígenas que fossem capazes de ensinar a cultura portugueses para aqueles.
Ignorando parte dos relatos trazidos no parecer, mas seguindo concepções regulares do seu
contexto, acredita que as trocas culturais aconteceriam apenas de um lado para o outro. Uma
cultura política sobreporia a outra, sem muita margem para a criação de uma realidade
73

intermediária. E a que se realçaria, naturalmente, seria a dos ditos ‘civilizados’, ou seja, aquela
na qual estava inserido.
O governador e capitão-general sugere diretamente possibilidades de sincretismo
religioso, tais quais Serra construiu ao longo do parecer. Além disso, um futuro responsável
pelo aldeamento deveria externar, particularmente, duas características em seu trabalho:
prudência e o zelo. Devendo possuir uma abordagem cuidadosa, que estivesse em constante
manutenção para que não houvesse desvios perante a moralidade cristã (SILVA; BLUTEAU,
1789).
Outro fator que teria atrapalhado planos pretéritos de ‘civilizar’ os Guaicuru derivariam
da falta de desejo e ambição por parte desses indígenas. Só que esse ponto estaria em plena
mudança devido ao crescente desejo, afinal, “tudo querem, e de tudo necessitam”
(MONTENEGRO, 1845, p. 216). O governador explicita sua expectativa de que os Guaicuru
ficassem dependentes dos portugueses, dando a entender que isto estaria tomando forma e
exemplifica afirmando que certos presentes passaram a sinalizar status entre lideranças
indígenas. Um fator complicador, claro, eram os interesses, antagônicos, por parte das forças
da Coroa espanhola. Somado a isso, reconhecia também, assim como Serra e Prado, que os
próprios Guaicuru tinham consciência dessas disputas de interesses e jogavam com isso a seu
próprio favor.
Em seu parágrafo de conclusão, Montenegro argumenta que não haveria nada de
especial nos Guaicuru que tornasse seu aldeamento essencialmente mais difícil que o de outros
povos. Aliás, suas necessidades factíveis, ou seja, frutos de desejos que os portugueses podiam
suprir, eram ainda mais presentes que as de outros povos que já se encontravam em reduções.
A grande dificuldade que ainda enfrentavam era esse povo viver entre as forças de duas
potências ibéricas que se sabotavam constantemente em infindas disputas de interesses. O
governador finaliza assinando sua carta, passados quase exatos dois meses depois da data
sinalizada na conclusão do parecer.
Temos na prática, ilustrado por todos os discursos analisados até agora que,
principalmente a partir da segunda metade do século XVIII, aconteceu uma disputa entre os
limites de dois países europeus, Portugal e Espanha, ainda que no além-mar. Era então
“intenção dos poderes coloniais utilizar as noções indígenas na construção da fronteira
nacional” (DOMINGUES, 2000, p. 223). Só que para a infelicidade das autoridades das Coroa
ibéricas, as regiões limítrofes entre suas colônias eram caracterizadas por sua fluidez e
permeabilidade:
74

Quando consideramos a permeabilidade das fronteiras coloniais da Amazônia na


segunda metade do século XVIII há que, por um lado, ter em conta, como já o
afirmámos, a existência de relações de parentesco e comércio, bem como alianças
entre grupos étnicos de ambos os lados da fronteira. As etnias que tinham sido
divididas pelas fronteiras coloniais circulavam livremente para visitar os seus
parentes e os seus amigos; os índios do lado espanhol da fronteira casavam com
ameríndias do lado luso-brasileiro do território; os principais aliavam-se entre si e, por
vezes, persuadiam os amigos a transferirem as suas povoações, ganhando o país
colonial que oferecia condições mais vantajosas ou que tinha uma maior quantidade
de presentes para oferecer; índios desertores e suas famílias procuravam a proteção
das autoridades e tentavam fixar-se em povoações já constituídas do outro lado da
fronteira (2000, p. 232, grifos nossos).

As pesquisas de Domingues a levam “a concluir que a mão de obra ameríndia era


indispensável à organização social, política e econômica das capitanias do Pará e Maranhão”
(2000, p. 185). O trabalho aqui realizado leva a crer que isso foi uma realidade não só da
fronteira Norte, mas também da Oeste, na então capitania do Mato Grosso. Aliás, seguindo a
própria linha iniciada pela historiadora, isso tenderia a ser uma realidade do todo das regiões
limítrofes entre as colônias americanas dos impérios ibéricos. Nesse cenário as forças não
indígenas dependiam de indígenas para tarefas vitais para sua funcionalidade. Os militares
analisados ao longo deste capítulo (PRADO, 1908; SERRA, 1845;1872) ilustram dependências
que vão desde produção de alimentos, até para os cavalos, necessários em seus deslocamentos.
Não se pode também perder de perspectiva que seguia influente o Diretório dos Índios,
segundo o qual, a civilização era indissociável ao trabalho e, somando-se aos ideais fisiocratas,
aos indígenas, como os Guaicuru, caberia se tornarem mão de obra útil à agricultura
(MACHADO; POMBO, 2023). Não à toa as fontes trabalhadas demonstram interesses de
administradores coloniais em tornar os Guaicurus adeptos ao trabalho agrícola. Do mesmo
modo que os discursos analisados associam constantemente o baixo interesse desses indígenas
em relação a essas atividades e à sua desumanização, justificada pela ‘barbárie’, ou seja, por
possuírem em seu modo de vida características opostas a cultura política que é intrínseca aos
não indígenas que construíram as fontes aqui trabalhadas. Uma vez mais demonstrava-se como
os discursos foram mais um dos campos de disputas entre as metrópoles ibéricas, em sua busca
de consolidação e poder através do indissociável binômio terra e trabalho.

1.4 Discursos, interesses e seus reflexos

O trabalho desenvolvido até aqui apresenta o cenário dos sertões do Oeste brasileiro, o
qual tinha paralelos nas demais regiões americanas limítrofes entre domínios afirmados das
75

potências ibéricas. Nesse contexto, o crescente interesse pelo aldeamento dos Guaicuru é
reflexo de motivações plurais. Havia a necessidade de contar, direta ou indiretamente, com o
trabalho indígena para o suprimento de bens e serviços essenciais à sobrevivência das forças da
Coroa portuguesa naquelas regiões tão instáveis politicamente. Isso pela falta de mão de obra
não indígena disponível. Os indígenas seguiam sendo os “senhores do sertão” (DOMINGUES,
2000, p. 238), e deles dependia, em maior ou menor medida, a sobrevivência dos que vinham
de fora. O trabalho desses indivíduos os inseriu nas dinâmicas do comércio colonial. Tal fato
gerava um ganho duplo por parte da Coroa portuguesa: Primeiramente, agregou esses
indivíduos numa dinâmica que era esperada por parte de verdadeiros vassalos portugueses;
segundo, gerou dependência por bens não indígenas e abalou as dinâmicas étnicas existentes
entre os diferentes grupos de variadas etnias.
Fator de importância ímpar era o processo de ‘expansão para dentro’, intencionado pelo
Império português. Buscava-se então assegurar o máximo de terras para a então colônia
portuguesa, nas regiões em que se chocavam com domínios da Coroa espanhola. Para isso usou-
se artifícios que defendiam o direito de propriedade em relação à terra a partir de sua efetiva
ocupação. Os Guaicuru, além de outros grupos indígenas mais pelo Brasil, ganhavam
importância enquanto potenciais mantenedores da integridade territorial segundo os interesses
portugueses. Aqui a ideia de uma vassalagem efetiva era de suma importância. Os Guaicuru
não tenderam a demonstrar lealdade aos interesses da Coroa portuguesa tanto quanto os
representantes dessa gostariam. O comércio e as dinâmicas citadas no parágrafo anterior então
exemplificam uma estratégia essencial nessa busca: a criação de dependência.
Foi a fluidez uma das principais, se não a mais importante, característica daquelas
regiões limítrofes entre forças portuguesas, espanholas e indígenas. Irritante aos que vieram do
além-mar e tanto brigavam para estabelecer linhas imaginárias. De outro modo, pouco palpáveis
para aqueles que lá estavam antes e circulavam, por gerações, através das demarcações daqueles
estrangeiros que lhes eram tão estranhos. Seja como for, no recorte temporal analisado até esse
momento, esse foi um incômodo que os não indígenas não conseguiram solucionar. Em certa
medida, essa fluidez territorial só acabaria décadas depois, quando muito dessa cultura já tivesse
sido assassinada. A morte de muitos, o fim da maioria dos grupos Guaicuru, gerou a necessidade
de adaptações, como será visto no decorrer da dissertação.
Curioso talvez reparar que a fluidez não estava só nas terras em que pisavam. Ela ia para
além da materialidade. Demonstrava-se também, por exemplo, nas disputas de poder e nos,
tantas vezes inconstantes, interesses de seus atores. Só que se engana quem acreditar
76

acriticamente nas fontes portuguesas, de modo a interpretar que isso seria característica apenas
dos Guaicuru. A dualidade nas abordagens está perpetuada nesses discursos presentes nos
escritos, onde os indígenas são, ora homogêneos e genéricos, ora plurais entre si. De certa forma
era como se essas existências se chocassem com a essência da cultura política daqueles
portugueses. Os Guaicuru eram taxados como ‘bárbaros’, ‘selvagens’, não civilizados, mas
realizaram feitos que os tais ‘civilizados’ julgavam impressionantes. Da dualidade, ainda que
talvez não intencionalmente, se reconhecia que esses indivíduos, vistos como inferiores, na
verdade eram tão complexos quanto esses que sobre eles relataram.
Nas fontes também se ilustrou um trauma vivido pelos não indígenas, em relação aos
que pereceram perante os Guaicuru. No imaginário dos militares os portugueses foram
representados como bravos e corajosos homens que enfrentaram múltiplas dificuldades inatas
àquele ambiente inóspito que lhes eram os sertões do Oeste. O trauma se acentuara então pelas
mortes desses heróis civilizados do passado, muitos destes que inspiraram os militares
contemporâneos ao contexto de criação das fontes aqui analisadas. Da identificação com esses
antigos soldados perpetuou-se, em maior ou menor medida, o antagonismo aos seus algozes e,
por conseguinte, responsáveis por um atraso da propagação de sua cultura política sobre aquela
região.
Essencial para a compreensão desse trauma era sua associação à inconstância. Falam
muito nela, mas sem realçar medos implícitos. Medo não só derivado de danos físicos diretos
que os Guaicuru poderiam causar, mas também da dificuldade na manutenção das relações a
longo prazo. Da ausência de contratos e votos ad aeternum. Medo derivado do contato com
uma cultura política distinta da sua. O temor veio primeiro do desconhecido, após, do
incompreendido e do diferente.
A dita inconstância de um povo que deveria ser simples, mas que assim não era, e isso
ficava mais evidente a partir do maior convívio entre forças portuguesas com aqueles indígenas.
Sendo que, segundo a perspectiva de mundo desses estrangeiros, eles deveriam ser mais simples
ao não atingirem o patamar de ‘civilizados’. Que fique claro: a inconstância, estava mais no
choque com a visão simplificadora e tantas vezes homogeneizadora acerca dos indígenas, do
que neles próprios. Afinal, os próprios portugueses afirmaram que sabiam que os Guaicuru,
simplesmente, sempre buscavam seus interesses. Eram tão complexos, ou tão simples, quanto
portugueses, espanhóis, ou seja, quanto aos não indígenas.
Um último, mas não menos importante ponto: Embora seja Serra (1845; 1872) o mais
crítico aos Guaicuru, tanto ele quanto Prado (1908), em diferentes medidas, tendem a atribuir
77

aspectos negativos enquanto inatos àquele povo. Isso fica evidente quanto Prado aborda as
mulheres Guaicuru. Ainda assim, em seu caso não é possível afirmar o grau de suas críticas ao
feminino no geral. Tomou forma então uma crítica dupla que mesclava duas identidades que
associava a aspectos negativos, o sexo feminino e a racialidade indígena. Serra já é bem mais
enfático. Para esse militar, a considerada corrupção moral dos Guaicuru estaria no coração dos
indivíduos daquela etnia. A inconstância e outros ditos defeitos, então, comporiam parte da
natureza do ser feminino, podendo ser agravados com base em sexo ou, por exemplo, no caso
das cudinas. Estas, cuja mera existência aos olhos dos não indígenas, representava o maior dos
pecados e maior ofensa ao Deus cristão. Demoníacas, representantes de um pecado inominável,
mesmo em discursos já tão carregados de julgamentos, foram as cudinas o ápice do
antagonismo à cultura política portuguesa cristã daquela época, apenas por viverem.
78

2 OS GUAICURU ATRAVÉS DOS DISCURSOS DE VIAJANTES E


PESQUISADORES

No capítulo anterior houve, como vimos, a análise de discursos de militares portugueses,


nascidos na metrópole ou na colônia, que conviveram diretamente com os Guaicuru e sobre
estes escreveram com o objetivo de enviar informações para seus superiores. Agora passaremos
a análise de outro conjunto de escritos, muda-se o tipo e a autoria dos documentos analisados,
além de diversificar seus contextos de produção. Serão analisados dois tipos de fontes, que não
só muito convergem, como não necessariamente se excluem: 1º) Relatos de viagem, produzidos
na maioria por estrangeiros, que passaram (ou não) pelo território da então província do Mato
Grosso e que sobre os Guaicuru escreveram, tendo por base mais recorrente relatos sobre estes
indígenas que tiveram contato, ao longo de seus trajetos ou pesquisas, embora alguns tenham
tido formas pontuais de contato com estes grupos. 2º) Escritos de homens que pesquisaram,
leram e escreveram sobre o então Brasil, ainda que sem estarem fisicamente no território ou, ao
menos, dentro dos limites da província de Mato Grosso.
Há de se destacar que, em ambos os tipos de fontes, a maioria de seus autores nunca
teve contato direto com os Guaicuru. Suas impressões sobre indígenas e aqueles espaços
vinham de impressões e relatos, advindos de livros, jornais e/ou de diálogos com os habitantes
locais.
Finalizando essas primeiras considerações, diferente também dos relatórios de militares
analisados no capítulo prévio, os autores dessas produções objetivaram algum grau de
circulação de seus trabalhos, seja em círculo de corte ou para públicos letrados, no geral. As
contextualizações temporais serão construídas ao longo do capítulo, ainda assim, o corpo
documental deste abrange dos últimos anos do século XVIII ao pré-Guerra da Tríplice Aliança
(1864-1870).
Os autores que terão escritos analisados nas próximas páginas são: Alexandre Rodrigues
Ferreira (1756-1815), Robert Southey (1774-1868), Manuel Aires de Casal (1754-1821),
Johann Baptist von Spix (1781-1826), Johann Moritz Rugendas [José Maurício Rugendas]
(1802-1858), Antoine Hercule Romuald Florence [Hércules Florence] (1804-1879), Francis de
Laporte de Castelnau (1810-1880) e Bartolomé Bossi (1819-1890). Obras de outros indivíduos,
como Luís d’Alincourt (1787-1839/1841) e Carl Friedrich Gustav Seidler (?-?), além do
clássico escrito por Martius junto com Johann Baptist von Spix (1781-1826), “Viagem ao
Brasil”, também chegaram a ser consultados, mas pela ausência de maior espaço aos discursos
79

sobre os Guaicuru nelas, serão omitidas na construção deste capítulo 46. A exceção de Southey
e Casal que foram estudiosos que escreveram sobre o Sul de Mato Grosso, sem lá viverem por
algum período, todos os demais analisados são, dentre outras coisas, viajantes que estiveram
naquela província, durante o recorte temporal já exposto.
A análise dessas fontes, porém, será precedida por uma breve apresentação abordando
o projeto de construção do Brasil enquanto nação. Será debatido ainda o papel dos discursos
construídos sobre indígenas por não indígenas, principalmente luso-brasileiros e brasileiros, nos
Oitocentos. O texto logo em sequência tomou forma a partir de um debate bibliográfico.

2.1 A construção de uma ‘nação’ brasileira e o papel de indígenas no imaginário


Oitocentista

Ainda nas primeiras décadas do século XIX, almejando-se uma legitimação de um


passado próprio pós-independência, começa a tomar forma o que se constituiria num período
de busca da construção de uma memória coletiva sobre uma história nacional fabricada. Deste
movimento em si deriva um processo de afirmação de uma origem brasileira apartada da antiga
potência colonial. Por mais que houvesse um movimento de rompimento com Portugal, essa
nascente identidade nacional não abandona toda a herança da colonização europeia, carregando
em si as influências da experiência vivida até então (GUIMARÃES, 1988; KODAMA, 2007).
É ainda nesse cenário que tem início uma renovação do modo como eram representados
diferentes grupos dos vastos territórios da antiga colônia, incluindo os povos indígenas. Essas
representações tomaram forma nos discursos das elites brasileiras, que objetivavam a
construção de uma memória coletiva favorável aos seus interesses. Nesse sentido, Maria Regina
Celestino de Almeida afirma que:

Após a Independência, o novo Estado imperial brasileiro viu-se diante do desafio de


criar a nação e o povo brasileiro, até então, inexistentes. Era necessário criar no país
uma unidade territorial, política e ideológica, gerando uma memória coletiva que
unificasse as populações em torno de uma única identidade. A pluralidade étnica e
cultural tão valorizada em nossos dias não tinha lugar nessa época, e a ideologia do
novo Estado brasileiro baseava-se nos valores europeus de modernização, progresso
e superioridade do homem branco. Aos políticos e intelectuais do Brasil cabia
homogeneizar populações extremamente diversas do ponto de vista étnico e cultural,
unificando-as em torno de identidades e histórias comuns (2012, p. 27, grifo nosso).

46
O segundo volume de Viagem ao Brasil, de Martius e Spix (2017) chegará a ser usado momentaneamente,
apenas para contribuir para a análise da obra O Estado do Direito entre os Autóctones do Brasil de Martius
(1982).
80

Havia a crença na inevitabilidade de um suposto progresso e, com ele, o fim dos


indígenas (CUNHA, 1992b). Mas, não qualquer ‘progresso’, sendo pretendido aquele que
perpetuaria os valores das tradições europeias. Somado a isso, existiam pensamentos
contraditórios moldando essa visão que tomava forma a respeito dos povos originários, como
defende Maria Hilda Paraiso:

Os valores e as crenças na necessidade e importância da civilização faziam-se


presentes em sentimentos contraditórios: o horror e a compaixão em relação ao estado
e às situações vividas pelos grupos indígenas que conheciam. Ao mesmo tempo em
que questionavam a legislação colonial e condenavam as violências de toda a sorte
praticadas contra os autóctones, a crença na inevitabilidade do progresso fazia com
que fosse considerado essencial ressocializar os indígenas consoantes os padrões
europeus. De acordo com essa perspectiva, as sociedades silvícolas, como tal, estavam
destinadas ao desaparecimento, fosse pela extinção física ou pela destruição das suas
formas tradicionais de organização social (2010, p. 6, grifo nosso).

Teorias racistas e discriminatórias eram hegemônicas nos discursos de intelectuais e


políticos dos oitocentos. A construção de um ideal de nação, dentre as elites letradas, trazia em
seu âmago a forte marca da exclusão. Assim, para constituir a identidade nacional, precisava-
se também estabelecer quem estava fora dela, quem seria o ‘outro’. Se à nação brasileira cabia
representar a ideia de civilização no ‘Novo Mundo’, àqueles tidos como menos ou não
civilizados caberia o papel antagônico à identidade idealizada. Nesse grupo, por sua vez, se
enquadrariam os negros – escravizados ou não – e os indígenas. Não os das representações
romantizadas discursivas, mas sim os viventes por aquelas vastas terras (ALMEIDA, 2012;
GUIMARÃES, 1988).
Somado a esse crescente interesse por povos indígenas, começam a se popularizar
também entre essas elites letradas, publicações com descrições de paisagem e da geografia
brasileira. A então chamada ‘História Natural’ crescia associada aos estudos sobre indígenas,
agora, agregados dentro dessa ‘História do Brasil’ que se almejava construir a partir de uma
memória coletiva moldada pelos discursos oficiais. Buscava-se então “lançar luzes sobre um
tempo remoto, onde esta terra estaria fixada de par com as antigas civilizações do mundo”
(KODAMA, 2007, p. 167). Aos indígenas caberia um duplo papel como “objetos” desses
estudos, “como elemento da paisagem natural brasileira – o que o recorta no espaço – e como
parte da história dos povos antigos – o que o recorta no tempo” (KODAMA, 2007, p. 167).
Assim, povos originários, que em séculos anteriores, eram vistos apenas através das relações
de conflitos e alianças, no século XIX passam também a ser enxergados enquanto fontes para
a história em construção (KODAMA, 2010).
81

Em relação às imagens produzidas sobre os indígenas, há um rompimento em relação


as idealizações da época da colônia. No decorrer do século XIX, afloram discursos que buscam
representar um indígena idealizado que ilustraria uma origem mítica nacional. É nesse contexto
conturbado que se coloca também a questão da humanidade dos indígenas. Oficialmente
perpetuava-se um discurso no qual se acreditava na humanidade desses povos, ainda que
raramente equiparada àquela atribuída aos europeus por eles e seus descendentes. De toda
forma, na prática, a ideia de um caráter “bárbaro” ou “bestial” seguia sendo propagada
(CUNHA, 1992b, p. 134). Ideais de civilização e progresso não comportavam os modos de vida
originários, os quais eram “vistos como negativos e obstáculos ao progresso” (ALMEIDA,
2012, p. 30). As particularidades étnicas eram enxergadas enquanto etapas a serem superadas,
num processo de homogeneização cultural. A variabilidade idiomática dos povos indígenas era
malquista, interpretada não só como um obstáculo para a unificação nacional, mas propriamente
como uma evidência da decadência dessas comunidades (KODAMA, 2007, 2010; PARAISO,
2010). A invisibilização dos indígenas reais, decorrente desse projeto político, se firmou não
apenas na experiência do Império brasileiro, mas também pelas diferentes repúblicas latino-
americanas do entorno, recorrentemente “derivada dos ideais de igualdade e de cidadania que
não comportavam identidades particulares étnicas, indígenas” (KODAMA, 2010, p. 258).
É nesse contexto que é pintada a representação iconográfica mais popular dentre as que
se propõem a retratar indígenas Guaicuru:
82

Figura 1 – Carga de Cavalaria Guaicuru, litografia em cores, 183547.

Fonte: DEBRET, 1835.

Carga de cavalaria guaicuru é talvez uma das mais populares pinturas de Jean-Baptiste
Debret (1768-1848), dentre aquelas nas quais o artista buscou retratar povos indígenas. Sua
publicação é datada de 1834, no então primeiro volume da Voyage Pittoresque et Historique
au Brésil, que posteriormente foi traduzida e publicada sobre o nome de Viagem Pitoresca e
Histórica ao Brasil. A data específica da realização dessa pintura é incerta. Ainda assim, como
a maioria das pinturas que retratam cenas ligadas ao Brasil, provavelmente se deu quando o
pintor ainda estava em território nacional, longe da França, logo, entre 1816 e 1831.
Ainda que se saiba que Debret viajou por diferentes cidades brasileiras em busca de
inspirações para suas pinturas, é improvável que ele tenha chegado a assistir uma cena tal qual
a que se encontra na imagem acima. O que aqui nos interessa são os elementos destacados pelo
artista na representação que constrói: os Guaicuru são pintados enquanto indivíduos de grande
porte, com músculos volumosos e bastante realçados. Até a musculatura dos cavalos está
aparente, somado aos seus olhos esbugalhados e as bocas abertas como se bufassem. Os animais
demonstram fazer bastante esforço para correr com esses grandes, fortes e visivelmente
Figura SEQ Figura \* ARABIC 1: Pintura Carga de cavalaria guaicuru, de Jean-Baptiste
habilidosos guerreiros, que seguem em postura firme
Debret, 1834 e centrada. Temos aqui a retratação bélica,

47
Do original Charge de cavalerie Gouaycourous.
83

talvez até épica, de uma cena que demonstra claramente os aspectos que tanto eram valorizados
no imaginário que tomou forma no decorrer do século XIX. Essa pintura representa a força e a
habilidade desses ‘índios cavaleiros’, os quais, por séculos, fizeram frente às investidas
portuguesas. É esse o indígena que se pretendia consagrar, para ser lembrado e propagado no
imaginário daquelas camadas sociais que tivessem acesso às artes. E é também ele que teria
espaço na memória coletiva de uma dada história brasileira que contribuiu com base nos
interesses das elites daquele presente.
Embora esses discursos de romantização e mitificação sobre povos indígenas já
existissem desde o início dos oitocentos, é apenas em meados desse século que começa a tomar
forma uma espécie de projeto político propriamente dito, dentro do qual o imaginário sobre
indígenas teria um lugar específico (KODAMA, 2007). Após a ascensão de Dom Pedro II
(1825-1891) ao trono em 1840 e o findar das revoltas regenciais no decorrer da década seguinte,
o Brasil entra num período de certa estabilidade, considerado por José Murilo de Carvalho
(2008) o período de consolidação do Império. Havia uma ideia de paz e, a partir dela, a garantia
da ‘civilização’ através da manutenção de um monarca de sangue europeu, contrastando “em
meio a confusa situação latino-americana” (SCHWARCZ, 1997, p. 126), com as recentes
repúblicas do entorno. Nesse cenário de consolidação de um projeto monárquico, com a
fundação de um novo ideal de nação, a criação de memória tinha função estratégica. Assim, em
1838 é fundado aquela que seria uma das principais instituições responsáveis pela consolidação
e a propagação das ideias que definiriam esse projeto político de nação, o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB). Segundo Manoel Luiz Salgado Guimarães:

É no bojo do processo de consolidação do Estado Nacional que se viabiliza um projeto


de pensar a história brasileira de forma sistematizada. A criação, em 1838, do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) vem apontar em direção à materialização
deste empreendimento, que mantém profundas relações com a proposta ideológica em
curso. Uma vez implantado o Estado Nacional, impunha-se como tarefa o
delineamento de um perfil para a “Nação brasileira”, capaz de lhe garantir uma
identidade própria no conjunto mais amplo das “Nações”, de acordo com os novos
princípios organizadores da vida social do século XIX (1988, p. 6).

O IHGB então sistematiza a produção historiográfica que contribui para as delimitações


da nova nação brasileira, objetivando ‘fundar’ a história do Brasil e para isso se aproveitava da
exaltação de figuras heroicas, símbolos nacionais idealizados. Assim, moldando o perfil
idealizado para essa nova ‘Nação brasileira’, de acordo com os ‘novos’ princípios
organizadores da vida social, visando uma homogeneização da visão do Brasil perpetuada
dentre as elites locais (GUIMARÃES, 1988; SCHWARCZ, 1997). Nesse cenário:
84

A leitura da história empreendida pelo IHGB está, assim, marcada por um duplo
projeto: dar conta de uma gênese da Nação brasileira, inserindo-a, contudo, numa
tradição de civilização e progresso, ideias tão caras ao iluminismo. A Nação, cujo
retrato o instituto se propõe traçar, deve, portanto, surgir como o desdobramento nos
trópicos, de uma civilização branca e europeia (GUIMARÃES, 1988, p. 8, grifo
nosso).

Cabia ao IHGB o papel de servir de local privilegiado para se produzir sobre esse Brasil.
Função essa, legitimada pela elite letrada, o que acarreta uma “progressiva difusão e
homogeneização do projeto nacional no seio deste grupo social” (GUIMARÃES, 1988, p. 12).
Nos primeiros anos do Instituto houve certo foco em reunir fontes sobre o passado
‘obscuro’ da história indígena, fontes essas para servirem ao projeto de uma nova escrita da
história, a exemplo desse processo encontram-se as publicações dos escritos de Prado e Almeida
Serra, vistos no capítulo anterior. Não à toa, o maior espaço da R. IHGB direcionou-se a
publicação de fontes e trabalhos que abordaram temáticas indígenas (GUIMARÃES, 1988;
KODAMA, 2010)
Com o projeto de construção de uma nação brasileira, os indígenas ocupam um espaço
de fundadores dessa história. Só que não eram esses os indígenas reais, que se estabeleciam
pelas vastas extensões daqueles territórios, mas sim indígenas romantizados, que assim como
já colocado, acreditavam-se estarem, se não extintos, em vias desse fim. A imagem do indígena
era moldada em favor de interesses da elite, enquanto ignora ou demoniza os reais (ALMEIDA,
2012; VANGELISTA, 2015).
Entre as décadas de 1840 e 1860 a produção etnográfica do IHGB pouco se interessou
pela diversidade étnica dos povos originários, contribuindo para propagar a homogeneização
da figura do indígena. A etnografia publicada e difundida pelo Instituto esperava que os povos
indígenas se extinguissem, haja vista que compreendiam a assimilação desses indivíduos pela
sociedade ‘civilizada’ enquanto algo certo. Havia um entendimento que esses povos se
misturariam com as massas não indígena e ‘deixariam’ de ser indígenas. A própria inclusão de
povos originários, sejam eles mais integrados ou mesmo tidos enquanto ‘bárbaros’, nos
discursos sobre história brasileira acabava por estimular a ideia de decadência civilizatória,
contribuindo também para o fortalecimento do imaginário de homogeneização da diversidade
étnica, presente, ainda que em menor medida, como visto anteriormente, desde as primeiras
décadas dos oitocentos (KODAMA, 2010).
Nesses meados do século XIX, com a mencionada estabilização do poder central da
monarquia, os esforços do IHGB passam a se concentrar na escrita de uma história brasileira
85

“enquanto palco de atuação de um Estado iluminado, esclarecido e civilizador” (GUIMARÃES,


1988, p. 10). E ainda, “como traços marcantes desta história nacional em construção, teremos
o papel do Estado Nacional como o eixo central a partir do qual se lê a história do Brasil,
produzida por círculos restritos da elite letrada imperial” (GUIMARÃES, 1988, p. 9). A
produção etnográfica nas páginas da RIHGB trazia uma concepção herdada das influências
ilustradas, a partir da qual se entendia a história enquanto “um processo linear e marcado pela
noção de progresso” (GUIMARÃES, 1988, p. 11). Nesse cenário cabia aos pesquisadores e
estudiosos buscar “recuperar a cadeia civilizadora, demonstrando a inevitabilidade da presença
branca como forma de assegurar a plena civilização” (GUIMARÃES, 1988, p. 11).
A abordagem feita em relação à história tinha o forte sentido político de legitimar os
interesses de grupos do presente. Nesse cenário, o IHGB se constitui numa espécie de “centro
autorizado”, pelas próprias elites, para a produção de um discurso sobre o Brasil
(GUIMARÃES, 1988, p. 14). A história nacional servia como uma forma de unificar,
perpetuando um conjunto específico de interpretações e articulações em relação ao passado e,
assim, abrindo as possibilidades de atuação em relação, não só ao presente, mas também ao
futuro.
É também na segunda metade do oitocentos que se chega a um ápice do evolucionismo
histórico, cujas raízes já se estabeleciam desde o início do século, com os povos indígenas vistos
como “fósseis vivos” de um passado longínquo. Essas sociedades, ditas “primitivas”, eram
vistas como se estivessem numa eterna infância, paradas no tempo, e por isso não teriam história
(CUNHA, 1992a, p. 11). Uma das principais representações desse discurso ao longo dos
Oitocentos foi uma frase de síntese de autoria de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878),
que afirmou que “de tais povos na infância não há história: há só etnografia” (1978, p. 30).
Até o bem avançar do século XIX o lugar privilegiado da produção historiográfica no
Brasil persistiu fortemente marcado pelo elitismo, vinculado a uma tradição iluminista. Essa
tendência teve um papel decisivo nas visões e interpretações de mundo propagadas por essa
historiografia. A ilustração que tanto influenciou o IHGB foi, principalmente, a portuguesa,
caracterizada por seu teor católico e conservador. Essa indução se encontraria presente
principalmente nas primeiras décadas da história do Instituto (GUIMARÃES, 1988). O
catolicismo em si, também tinha seu papel. Sendo interpretado como necessário para a
manutenção da paz e da ordem, essenciais para a viabilização de uma unidade nacional. Com
destaque para a cristianização dos indígenas, a qual serviria como uma promoção desse projeto
de nação, objetivando, primeiramente, que eles “aceitassem a Deus” e, com isso a “civilização”
86

e, como consequência, aceitassem também a dominação por parte de não indígenas (PARAISO,
2010, p. 8).
A política indígena oitocentista, assim como toda aquela prévia ou posterior até 1988,
foi essencialmente assimilacionista. A construção de missões e presídios, como o Forte de
Coimbra e tantos outros, eram um caminho para o aldeamento dos povos originários, que
facilitaria esse processo de assimilação. Ao longo do século XIX, as diferentes ações em relação
a esses povos visavam sempre a ocupação das terras originárias e “a transformação de seus
habitantes em cidadãos e eficientes trabalhadores para servir ao novo Estado” (ALMEIDA,
2012, p. 25). Eram constantes os interesses em submeter as diferentes ‘nações’ indígenas ao
Império do Brasil, de modo que fossem então ordenadas e controladas por esse, numa espécie
de expansão para dentro, buscando uma consolidação e segurança interna. O possível status de
algum grau de cidadania estava atrelado a fazer com que os indígenas na condição de
‘selvageria’, assim se tornassem aptos ao trabalho e às atividades interpretadas enquanto
produtivas, por parte das forças imperiais. Discursos de miscigenação e consequente
‘desaparecimento’ dos indígenas aconteciam enquanto justificativa para extinção de aldeias e
apropriação de territórios originários, para que esses se tornassem ‘produtivos’. Em outras
palavras, que pudessem ser usados, principalmente, para a agricultura ou pecuária por não
indígenas e assim fossem integrados ao comércio nacional (ALMEIDA, 2012; KODAMA,
2010; PARAISO, 2010).
Enquanto as vias políticas defendiam esse assimilacionismo, o que já acontecia desde o
início da colonização, mas que o período pombalino instituiu legalmente, vias mais ideológicas
propagavam o indígena como “símbolo nacional” (ALMEIDA, 2012, p. 27-28), como tanto
aconteciam em publicações do IHGB. O projeto político de construção da nação, com base em
idealizações romantizadas, rompeu com os muros das elites intelectualizadas e chegou a ganhar
mesmo as classes médias urbanas, que consumiam essas ideias a partir de literatura, pinturas,
peças, poemas, etc. Os autores da primeira fase da literatura romântica brasileira, chamados
indianistas, por exemplo, contribuíram para a romantização dos indígenas em si, através da
valorização de “índios heroicos” (KODAMA, 2010, p. 257). Esses indivíduos idealizados eram
vistos contrapostos a povos interpretados ainda como ‘bárbaros’. A valorização da literatura
nacional veio junto com a “eleição” da figura do indígena romantizado, como um símbolo
patriótico (KODAMA, 2007, p. 157).
Até meados do século XIX, ainda havia poucos conhecimentos precisos sobre as
fronteiras brasileiras. E existia então a necessidade de integração dessas áreas, pois controlar as
87

populações fronteiriças significava garantir o poder do “Estado Nacional” sobre essas regiões
(GUIMARÃES, 1988, p. 21-23). A ocupação de algumas regiões, como a da crescente que
tomava forma no centro-Oeste, contava com poucos não indígenas, logo, havia a necessidade
de estabelecerem relações entre esses e povos indígenas. Diferentes povos originários teriam
papéis essenciais nas trocas comerciais internas naquela região, desde o início dos oitocentos.
Trocas essas que tornar-se-iam ainda mais importantes com a constante chegada de mais não
indígenas naquela região com o passar das décadas. Os Guaicuru, especificamente, teriam
papéis importantes, na época da Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870), perante a manutenção
das fronteiras do Império (CORRADINI, 2007; KODAMA, 2007; VANGELISTA, 2015).
O conhecimento sobre a história adquiriu o papel de garantir e legitimar decisões
políticas, tendo grande peso nas delimitações de limites territoriais, além de propriamente na
identidade nacional em construção. Na segunda metade do século XIX há uma preocupação
generalizada do Estado em obter o máximo possível de dados sobre aldeamentos. Dessa época,
datam muitos documentos que insistem na decadência e na diminuição de diferentes populações
indígenas. Isso seria justificado pela já citada política assimilacionista, processo que, não
raramente, culminou no apagamento dessas identidades originárias, por parte das autoridades e
outros não indígenas locais que almejavam seus territórios (ALMEIDA, 2012; GUIMARÃES,
1988).
Ao longo desse século, como afirma Lilia Schwarcz, a mitificação do indígena como
“bom selvagem tropical”, permitiu “à jovem nação fazer as pazes com um passado honroso,
anúncio de um futuro promissor. Se dissensões existiam, o projeto oficial tratava de apaga-las”
(1997, p. 149). Ainda assim, mesmo com um cenário bastante desfavorável aos povos
originários, eles não perderam suas identidades. A homogeneização das populações originárias
iria atingir seu sucesso apenas perante os discursos oficiais perpetuados institucionalmente pelo
Brasil. Como defende Maria Regina Celestino de Almeida, esse processo “foi vitorioso apenas
no nível das ideias, pois vários grupos considerados extintos continuavam, de fato, existindo”
(2012, p. 27),
A então efervescente nação brasileira que começou a tomar forma enquanto projeto na
década após a criação do IHGB seria marcada por uma tentativa de construção, divulgação e
manutenção de uma identidade brasileira geral, universal e homogênea. Esta, intencionavam,
moldada através da miscigenação que resultaria não numa mistura de costumes e culturas
variadas, mas sim num apagamento do ‘outro’, através de uma dita superioridade, maior grau
88

de ‘civilização’, não apenas não indígena, mas branca, europeia e cristã católica (KODAMA,
2009; SPOSITO, 2012).
Mesmo com todo esse contexto desfavorável, não só os indígenas sobreviveram e
mantiveram suas identidades enquanto tais, como também persistiram as memórias e as culturas
perpetuadas entre eles, corroborando com o discurso de Pollack, que afirmava que memórias
subterrâneas poderiam sobreviver ao mesmo tempo que as oficiais. Perpetuada, pela oralidade,
essas memórias não foram destruídas pela imposição de um discurso oficial. A memória oficial
fez seus estragos, causou apagamentos, mas a memória subterrânea persistiu, esperando seu
momento de vir à tona, mesmo em escritos acadêmicos, servindo de contraposição e conflito
para com saberes estabelecidos por não indígenas dos oitocentos e outros séculos anteriores.
Marcado pelas estruturas de hierarquização sociais, o discurso se constitui enquanto,
essencialmente, um espaço de disputas e conflitos, não raramente violentos. Da arrogância e da
prepotência dos grupos de poder, crentes na própria ilusão de um domínio absoluto do discurso
oficial, que as raízes das vozes subterrâneas e subalternizadas crescem e se propagam. Estas
talvez nunca percebidas por aqueles no topo das hierarquias sociais de uma dada cultura política
pretérita (ainda que parcialmente presente). Ainda assim, como bem estabelecido, tanto na
historiografia quanto em outros ramos do conhecimento, por pesquisadores como Bourdieu
(2008), Le Goff (2013) e outros, o silêncio e as omissões no passado, são uma rica fonte aos
estudos no presente.
Por fim, antes de começar a análise de fontes que se darão a partir do próximo tópico,
há de se explicitar o papel do tipo de documentos que serão vistos: as crônicas ou relatos de
viajantes sobre o Brasil, no processo de construção de uma identidade nacional brasileira. Essa
identidade, ainda não formada, vinha sendo produzida no campo dos discursos e das ideias que
estes transmitiam, tanto pelo que seus autores escolhiam lembrar, enfatizar e enaltecer, quanto
por suas omissões e silêncios, mais ou menos intencionais, mas necessariamente sobre
influência na cultura política na qual estavam inseridos. Estes foram raros nos primeiros
séculos, principalmente quando os escritos dispunham sobre territórios distantes do litoral,
como era o caso do Mato Grosso. Neste caso e no de outras províncias centrais, os registros
seguiam menos populares que aqueles sobre o litoral, em especial sobre a capital, o Rio de
Janeiro, sede do Império e da maior parte da elite nacional efervescente. De toda forma, num
cenário geral do Império, mesmo com outras produções distintas em português, os discursos de
viajantes estrangeiros de diferentes nacionalidades assumiram um papel ímpar na construção
dos discursos que faziam parte da construção de um Brasil e daqueles que lá habitavam. Tais
89

relatos, ainda que por vezes constituídos de descrições apressadas e olhares pouco atentos,
foram essenciais na criação de “um vocabulário sobre o Brasil e seus habitantes, a partir do
olhar do outro, e não do olhar daquele que aqui vivia” (PRADO, 2014, p. 43).
Essa literatura foi essencial para a construção de um imaginário sobre o Brasil, não
apenas na Europa, mas também muito influenciaram e foram fruto de atenção das elites locais,
formadas intelectualmente no ‘Velho Mundo’, que eram protagonistas no citado processo de
formação de uma nação que lhes atendesse. Além disso, evidente, os constantes tons sobre a
natureza maravilhosa, populações ditas ‘exóticas’ e outros pontos mais contribuíram para que
os discursos dessas obras não se limitassem apenas aos olhos, ouvidos e aos círculos que se
viam enquanto ‘superiores’ naquela diversificada e pouco definida sociedade brasileira. Ainda
que, em certa medida, mais centrados na elite letrada, os relatos de viagem e outras crônicas
sobre o Brasil tiveram uma inequívoca importância perante a construção de um imaginário
nacional ao longo dos Oitocentos (FRANÇA, 2012; LIMA, 2010).

2.2 Alexandre Rodrigues Ferreira e a Viagem filosófica pelas capitanias do Grão-Pará,


Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá

Com o objetivo de estabilizar o território conquistado, a coroa de Portugal proibiu a


circulação de missões científicas estrangeiras pelas terras que considerava suas, durante boa
parte do período colonial. Essa dinâmica só começaria a mudar apenas no decorrer do século
XVIII e no início do XIX, no processo que se iniciaria a partir de medidas decorrentes da vinda
da família real para o Brasil e da ‘Abertura dos Portos’ (COSTA, 2014). Ao longo da proibição,
embora tenham existido exceções48, as forças metropolitanas se tornaram mais cuidadosas,
tomando medidas rigorosas para atender seus próprios interesses, como a necessidade de que
as missões estrangeiras viessem em conjunto com os representantes dessas nações amigas. Por
muito tempo as regiões do Norte, Sul e, principalmente, Oeste, da colônia permaneceram de
dificílimo acesso aos olhos de curiosos estrangeiros, que centravam suas visitas às regiões
sudeste e nordeste, centros da colonização. Temia-se literatura sobre o território brasileiro, pois
havia a ideia de que ela pudesse ajudar aos interesses de outras potências concorrentes à
Portugal. Um bom exemplo sobre esse aspecto é a obra Cultura e Opulência do Brasil por suas
Drogas e Minas de André João Antonil (1649-1716) que teve, por ordem régia, seus exemplares

48
Houve exceções, como as expedições do francês, Charles-Marie de La Condamine (1701-1774) e dos
naturalistas bávaros, Johann Baptist Ritter Von Spix e Carl Friedrich Philipp Von Martius (FARIAS, 2008). A
destes será tratada mais adiante ainda nesse capítulo.
90

recolhidos e destruídos49, logo após sua publicação em 1711 e também foram proibidas as
tipografias de imprensa na colônia50.
Havia, porém, uma dualidade: ao mesmo tempo que o governo queria fechar suas
fronteiras, tanto físicas quanto ‘mentais’, com estrangeiros, a própria Coroa portuguesa
reconhecia a importância e a crescente necessidade de melhor conhecer a realidade de sua mais
importante colônia (BRANDÃO, 2008; DOMINGUES, 2021; FARIAS, 2008; GALVÃO,
MOREIRA NETO, 2008). Nesse mesmo contexto, já no último quarto do século XVIII o
governo português promoveu suas próprias expedições de caráter científico, objetivando não
apenas, mas somado, a demarcação dos limites de sua tão importante colônia. Potencialmente
a mais famosa dessas missões foi a do viajante Alexandre Rodrigues Ferreira, sobre a qual nos
debruçaremos a seguir.
Ferreira nasceu em 27 de abril de 1756 na Bahia e morreu em 2 de abril de 1815 em
Lisboa. Por consequência, sua cultura política é resultado do Século das Luzes, apoiada na
Ilustração, principalmente portuguesa, marcada pela dita razão, ainda que sem abandonar, em
plenitude, princípios morais cristãos, além da ideia do desenvolvimento de um bem comum
associado ao bem público. Assim sendo, o desenvolvimento dessa racionalidade das luzes
estava também associado à modernização do Estado (BRANDÃO, 2008; DOMINGUES,
2021). Pensando sobre as relações da metrópole com a colônia brasileira, o principal nome
associado a esse processo foi, o já citado, Marquês de Pombal com suas reformas que se
iniciaram no segundo quarto do século XVIII, oficialmente terminando logo antes da virada do
século, mas que seguiram gerando desdobramentos até o Oitocentos. Esse período foi marcado
por um aumento da importância da educação e das ciências, enquanto instrumentos para
progressos, até então, idealizados. Isso gerou uma efervescência intelectual, principalmente
perante as camadas mais abastadas da sociedade portuguesa, tanto da metrópole quanto da
colônia (POMBO, 2015).
O período pombalino e o crescimento da ilustração portuguesa coincidem também com
a diminuição de riquezas advindas da colônia do Brasil. As reformas, sobre as quais se
afirmavam ideias de modernidade, constituíram um endurecimento da administração da
metrópole sobre a colônia. Somado a isso, havia a busca por novas fontes de riqueza nessas
terras e, para isso, a exploração interna e busca para se conhecer melhor as terras dominadas,
esta considerada uma ação importante. Assim, quando Alexandre Ferreira viajou pelo Brasil,

49
Tendo se salvado ao menos um exemplar.
50
Há um debate mais complexo e aprofundado sobre a destruição da obra de Antonil, que aqui não será
debruçado. Sobre este, conferir: DINIZ SILVA, 2007.
91

uma considerável parte do interesse da Coroa portuguesa se encontrava na constituição de uma


espécie de ‘inventário’, um levantamento de novas possibilidades de fontes de riqueza, de
exploração metropolitana sobre a colônia (BRANDÃO, 2008; GALVÃO, MOREIRA NETO,
2008; NIZZA DA SILVA, 2014). Conhecer as suas terras, integrar aquela pluralidade numa
colônia única e explorá-la de modo a render o máximo possível para as forças de Portugal. Eram
esses os principais objetivos, diretos ou indiretos, que os financiadores do reino tiveram, não
apenas com a missão de Ferreira, mas também com outras posteriores, em maior ou menor
medida.
Como era comum para aqueles nascidos na colônia com melhores condições
financeiras, Ferreira desenvolveu seus estudos em Portugal. Lá teve contato com distintos
intelectuais, como o italiano, Domenico Agostino Vandelli (1735-1816)51, que foi seu professor
na Universidade de Coimbra e que viria a lhe indicar para cumprir uma missão técnica e
científica, idealizada pela coroa portuguesa, com fins de explorar a região do Norte do Brasil.
Embora tenha sido sugerido para a viagem quando tinha apenas 22 anos Alexandre Ferreira só
iria viajar anos mais tarde, chegando ao Brasil já com 27 anos, em novembro de 1783. Estaria
de volta em Portugal nove anos mais tarde, em janeiro de 1792, já com 36 anos. Ao grande
público, fora dos círculos das elites metropolitanas e coloniais para os quais seus escritos foram
direcionados, a obra de Ferreira, já organizada e sistematizada, só chegaria quase dois séculos
depois, com o nome de Viagem filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato
Grosso e Cuiabá52. Ainda assim, previamente, parte de seus trabalhos, inclusive alguns dos
capítulos do citado livro foram publicados nas páginas da Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Há de se pontuar que parte de seus materiais foram confiscados e levados
para França, no contexto das invasões francesas, tanto pelo cientista e viajante Étienne Geoffroy
Saint-Hilaire (1772-1844), que os usaria em seus próprios trabalhos, quanto pelo general Jean-
Andoche Junot (1771-1813), que remeteu o que recolheu para o Museu de Paris (BRANDÃO,
2008; DOMINGUES, 2021).
Alexandre Rodrigues Ferreira esteve em distintas partes da província de Mato Grosso
entre 1789 e 1791, junto com seus companheiros, um jardineiro botânico, Agostinho Joaquim
do Cabo (?-1789) e dois desenhistas, também descritos como ‘riscadores’, José Joaquim Freire
(1760-1847) e Joaquim José Codina (?-1791). Há um capítulo de seus escritos destinado a trazer

51
Sobre Vandelli, conferir: MOTTA, 2012, p. 40-56.
52
A edição usada para consultas neste trabalho é a mais moderna, publicada em 2008 pela Editora Valer,
reunindo não apenas os estudos de Alexandre Ferreira sobre antropologia, um clássico estudo prévio sobre o
viajante e sua obra, de Adelino Brandão, publicado originalmente no formato de livro em 1999.
92

informações sobre os indígenas Guaicuru, elaborado e endereçado para o então governador e


capitão-general João de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, datado de 5 de maio de 1791.
Em relação ao que foi apresentado no capítulo anterior, essa assinatura data de antes de
Francisco Rodrigues do Prado se tornar comandante do Presídio de Nova Coimbra 53. Data
também de menos de três meses antes da assinatura do Tratado de Paz entre portugueses e
guaicurus, que ocorreu em 30 de julho de 1791. Somado a isso, Ferreira transparece ter tido
diálogo direto com um dos chefes da etnia, responsável pela oficialização do citado acórdão
(COSTA, 2001).
Voltando às atenções para os escritos de Ferreira, o autor já começa enaltecendo a figura
de Joaquim José Ferreira, então comandante do Forte de Coimbra, afirmado suposto sucesso
no estabelecimento de uma redução com onze indígenas Guaicuru. É interessante perceber que
tal reflexão destoa das percepções diretas dos comandantes do Forte de 1792 até 1803, ou seja,
tanto Prado, quanto Serra, analisados no primeiro capítulo dessa dissertação. Ainda assim, ao
comemorar uma redução de tão poucos indígenas, Ferreira muito possivelmente o está fazendo
em favor do então comandante Joaquim Ferreira, que teria lhe ajudado nos contatos com os
indígenas que viriam a dar as informações que queria e/ou sinaliza um otimismo peculiar do
viajante frente a um crescimento exponencial de tal redução, que não aconteceria nas décadas
seguintes, ao menos da forma idealizada. Claro que essas duas opções não necessariamente se
anulam.
Alexandre Ferreira então descreve um encontro, certo jantar no Forte de Coimbra, no
qual teria participado aquele guaicuru que se afirmaria chefe de todos os indígenas de sua etnia,
Caimá ou João Queima de Albuquerque, por vezes chamado apenas de Queima. O viajante
elogia seus modos à mesa, assim como o fato de não estar nu, mas pontua a presente cautela de
Joaquim Ferreira para com os visitantes, assim como a crença desses indígenas serem
dissimulados, ainda que de uma maneira mais “refinada” (FERREIRA, 2008, p. 230) que
muitos outros.
É interessante pontuar a descrição da cautela do comandante do Forte em escritos
direcionados ao governador da província, haja visto que isso era uma qualidade que atenderia
aos interesses e recomendações deste. A confiança na figura de Queima acontecia com base em
dois fatores de interesses, direto ou indiretos, da Coroa e de seu projeto civilizador: 1º) Àqueles
corpos indígenas presentes, na figura de sua comitiva e, principalmente, do próprio Queima,
performarem ações esperadas, normalizadas, definidas como civilizadas com base nos padrões

53
Cargo que ocuparia, conforme visto no capítulo anterior, de 1792 até 1797.
93

da cultura política portuguesa, cristã e europeia. Em outras palavras, ao visto como ‘outro’,
‘bárbaro’ mimetizar, tentar incorporar características do ‘eu’, ‘civilizado’, ainda que isso seja
rotineiramente descrito de modo caricaturado e interpretado ainda enquanto inferior por estes
últimos. Sem que se abalassem as estruturas de poder, o projeto colonial, ao ‘outro’ sempre
caberia a inferioridade, a ser subalterno ao ‘eu’, ‘civilizado’, ‘padrão’, ‘superior’ e ‘normal’;
2º) Ao apoio, mais ou menos intencional e/ou direto, daquela figura no projeto colonial de
redução e civilização dos Guaicuru, além de, por conseguinte, assegurar a posse de seus corpos
e terras à Coroa portuguesa. Apoio esse, provavelmente baseado nos interesses daquele
indígena e seu grupo, somado com uma tentativa de mediar as relações com os portugueses de
uma maneira que lhe fosse menos custosa e trouxesse mais benefícios naquele momento, desde
itens materiais até um respeito considerável ao receber aquela comitiva indígena. Vale pontuar
que Alexandre Ferreira sinaliza que Queimá chegara “tão assustado que nem podia falar” (2008,
p. 231), transmitindo ao governador Pereira e Cáceres. Entendia assim que a reconhecida
liderança Guaicuru não só respeitaria, como até temeria, aquela representação do poderio
português, na figura do Forte, seu comandante e os soldados presentes. Há de se pensar também
que, do mesmo modo que o trauma dos conflitos luso-guaicurus seguisse entre os ibéricos,
estaria também presente, em alguma medida, entre os Guaicuru.
Seguindo em seus escritos, Alexandre Ferreira aborda as relações afetivas, ditas
matrimoniais, fiéis e zelosas, entre os Guaicuru. Nesse ponto traz uma crítica bem específica e
recheada de floreios:

Aquelas mesmas operações naturais, que sem um recíproco pejo e grande incômodo
dos sentidos se não podem fazer companhia; e que por essa razão entre nós cada um
trata de as recatar, quanto pode eles as fazem na presença um do outro e o mais é, que
sem de parte a parte se mostrar o menor sinal de ressentimento. Triste condição dos
homens que, como diz um filósofo, são Animais de costume e quanti quanti sunt,
educationi debentur (FERREIRA, 2008, p. 232, itálico do original).

Numa referência a um dos filósofos que inspiraram os ilustrados portugueses,


provavelmente, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Ferreira traça uma comparação entre os
indígenas e animais, por esses indivíduos não terem vergonha ou nenhuma forma de
ressentimento em manterem relações sexuais em público. Partindo disso, os indígenas, aqui
especialmente os Guaicuru, são ditos enquanto possuidores de comportamentos animalescos
que só adquiriram alguma espécie de ‘valor’ a partir de uma ‘educação’, sinonímia a absorção,
preservação e propagação da ‘civilização’. Em outras palavras, adequando-se aos padrões da
cultura política europeia. Esse contexto de finais do século XVIII, é extremamente marcado por
94

uma ilustração que busca a racionalização, ainda que sem romper com as raízes cristãs,
coloniais.
Ferreira também explicita desconforto no que tange padrões de unidades de medidas e
descrições físicas dos Guaicuru. Primeiramente afirma que “nenhum tinha de altura menos de
8 palmos e ½”, cerca de 2 metros de altura, só que Queima teria “setenta polegadas”, ou seja,
cerca de 1,78 metros de altura, segundo ele, um “dos mais altos tapuias que até agora já tenha
visto” (2008, p. 233). Essas imprecisões entre unidades de medida como o palmo e a polegada,
somada a medições de vista, nem sempre próximas dos indivíduos, podem ter contribuído para
o imaginário do físico avantajado e da altura acima dos padrões europeus e de outros indígenas,
tal como retratado na gravura de Debret, anteriormente apresentada. Queima, em seguida, ainda
especifica que os Guaicuru teriam corpos robustos, com “peitos largos e fornidos, o ventre
plano, o dorso e os braços musculosos” (FERREIRA, 2008, p. 234).
Em certo momento o viajante traz relatos sobre uma afetividade Guaicuru um tanto
quanto destoante do que escrevera em páginas anteriores, talvez sinalizando que o texto, como
um todo, não foi escrito num mesmo momento, apresentando algo original frente todas as
demais fontes analisadas ao longo desse trabalho. Primeiro, afirma que os homens Guaicuru
teriam três ou quatro esposas, depois que as mães teriam dois ou, até mesmo, três filhos. Esse
trecho contribui para a ideia de que o contato direto de Alexandre Ferreira com indígenas
Guaicuru se limitou a algo pontual com a comitiva liderada por Queima, dificultada por
questões linguísticas, ainda que com auxílio de uma intérprete negra, trazida pelos indígenas.
Assim, parte considerável do que escreve sobre esses indígenas provavelmente teve por base o
diálogo com outros portugueses do forte ou mesmo outros ibéricos que conheceu, somado
também a algum relato documental impresso sobre determinado episódio envolvendo esses
indígenas, que o explorador pode ter tido contato em arquivos de um local pelo qual viveu,
ainda que momentaneamente, durante sua viagem e/ou seus estudos. Ao recorrer às falas de
outrem Alexandre Ferreira acaba também por acessar os discursos destes, lapidados segundo
sua cultura política e interesses pessoais. Aos propagá-los, ainda que não em totalidade, o
viajante não apenas contribuiu para a perpetuação desses interesses de terceiros, como se mostra
diretamente influenciado por eles. A distância do ‘outro’ Guaicuru, contribuiu para uma
aproximação com os discursos daqueles que via como semelhantes, como o ‘eu’. Na
disseminação de um discurso tende-se a ser mais crítico ao ‘outro’ e menos ao ‘eu’, devido a
aproximação que o autor idealiza existir, afinal, raros (e potencialmente sancionados) são
aqueles que rompem, da forma que for, com sua cultura política.
95

Já se encaminhando para fins de seus escritos específicos sobre os Guaicuru, Ferreira


traz uma reflexão com marcadas críticas a própria cultural política colonial na qual estava
inserido:

De entre todos os seus bens, os que eles mais apreciam são os seus escravos, as suas
armas e os seus cavalos. Sabe-se, pelo que deles transpira sobre a sua conduta com os
escravos, que estes são humanamente tratados por seus senhores. Nós os chamamos
de bárbaros, porém eles nesta parte não desonram tanto a Humanidade, como as mais
polidas nações da Europa, que sem embargo de terem a razão exercida pela filosofia
iluminada pela revelação, em se estabelecendo na América parece, que de propósito
cogitam os meios de fazer mais pesado o jugo da escravidão dos negros. Porém o certo
é que menos interessados os senhores, tanto mais humanos são e mais indulgentes
com os escravos. Nenhuma coisa há tão rara, como ver contentes o interesse e a
avareza. Os Guaicuru não têm; e consequentemente não tratam de enriquecer-se à
proporção do trabalho alheio. Tratam-nos indulgentemente, comem com eles; e cada
senhor se contenta de como tal o reconhece o seu escravo. Eis aqui a mais dura pensão
que eles têm o cativeiro; que as odiosas distinções que fazem as nossas Constituições
Políticas, são felizmente desconhecidas de semelhantes qualidades de senhores
(FERREIRA, 2008, p. 236-237, itálicos do original).

Nesse rico excerto, enquanto critica a escravização de pessoas, enaltece os Guaicuru.


Numa fala que reconhece pressupostos discutidos pela ilustração, Ferreira corrobora numa
reflexão que questiona a escravidão em si54, especialmente a atlântica, perpetrada pelas “mais
polidas nações europeias” em suas colônias americanas. As metrópoles da Europa além de
manterem esse processo e ignorarem a “razão” trazida pelas luzes, buscariam mesmo fortalecer
e tornar ainda mais “pesado o jugo” (2008, p. 236-237) da escravização sobre os escravizados
africanos. O viajante trazia consigo perspectivas marcadamente ilustradas, perante as quais a
escravização não só era intrinsecamente injusta, mas era negativa, tanto para o escravizado
quanto para o senhor. Nesse cenário, o processo de escravização não só romperia com qualquer
possibilidade de virtude do homem, como traria ao senhor tudo que a isso é antagônico. Ferreira
se constrói enquanto um claro exemplo de alguém que tem em suas bases intelectuais a
educação portuguesa pós-reformas ilustradas (CARVALHO, 2007; BOTO, 2010).
Para o viajante o elevado grau de humanidade, de potenciais virtuosidades de uma
pessoa, e clemência, está associado ao quão “menos interessados os senhores” o são do
crescente jugo dos escravizados, pois “nenhuma coisa há tão rara, como ver contentes o
interesse e a avareza” (2008, p. 237). Ferreira apresenta uma ideia de vício, corrupção moral,
enquanto presente nos senhores europeus, essencialmente antagônica à virtude ilustrada. Só

54
Esse, porém, não é um discurso universal entre pensadores inspirados na Revolução Francesa. Há de se
lembrar que tal processo histórico não extinguiu a escravização nas colônias francesas, como o Haiti, e que o
indivíduo escravizado continuou com status de propriedade, preservada e protegida.
96

que, para ele, isso seria uma característica dos senhores europeus, não dos “senhores” Guaicuru.
Estes não buscariam enriquecer com o trabalho alheio, não sendo avarentos, tratando seus
cativos com clemência e com uma igualdade muito maior do que os senhores europeus tratavam
seus escravizados. O viajante termina esse trecho então agradecendo pelos “senhores” Guaicuru
não conhecerem as “qualidades de senhores” europeus (2008, p. 237). Perspectivas ilustradas
semelhantes, que defendiam uma revisão da escravização, somada a romantização do trabalho
indígena, enquanto um melhor caminho para o futuro Brasil, foram perpetuadas por importantes
figuras dos círculos de poder político daquele contexto, como o próprio José Bonifácio de
Andrada e Silva (1763-1838), por vezes chamado de patriarca da vindoura independência
(POMBO; MACHADO, 2019).
Ferreira, como os demais homens de seu tempo, compreende como necessário um
processo de civilização dos Guaicuru, ou seja, de uma adequação destes a cultura política cristã
e europeia. O viajante foi fruto de seu próprio tempo e das experiências que o moldaram, neste
sentido não destoa de qualquer outro indivíduo daquele contexto. Ainda assim, mais do que a
maioria dos que sobre esses indígenas escrevem, enfatiza que não idealiza que estes
absorvessem a plenitude da cultura política de seu contexto como o era em seu presente. Ferreira
pareceu preferir para os Guaicuru algo mais próximo de uma cultura política ilustrada que não
havia sido atingida nem mesmo pela metrópole.

2.3 Robert Southey e a História do Brasil

Robert Southey nasceu em 1774 na cidade de Bristol e morreu em Keswick em 1843,


ambas na Inglaterra. Seu pai possuiu uma loja, porém, morrendo quando seu filho ainda era
jovem, o estabelecimento passou para um tio do jovem, o reverendo Herbert Hill. No comércio,
Southey exerceu diferentes trabalhos ao longo desse início de sua vida. Chegou a estudar para
se tornar um ministro protestante, porém, aos 13 anos mudou para uma escola leiga, da qual
seria expulso por participar de um jornal que satirizava funcionários daquela instituição.
Tempos depois iria estudar na Universidade de Oxford. A juventude de Southey coincidiu e
recebeu diretas influências da efervescência da sociedade francesa, tanto dos anos precedentes
à Revolução Francesa quanto desta propriamente. Já em sua época sonhava com repúblicas
idealizadas, frente à manutenção do Antigo Regime (BANDECCHI, 2010; VARELLA, 2015).
97

Figura 2 – Retrato de Robert Southey, pintura, 1820.

Fonte: NASH, 2020.

A convite de seu tio, Herbert Hill, pastor anglicano e capelão da comunidade inglesa
em Lisboa, Southey visitou Portugal pela primeira vez em dezembro de 1795. Sua estadia
duraria até julho de 1796, também nessa época compôs sua primeira obra em prosa, que viria a
ser publicada no ano seguinte. Nesta viagem o inglês teve contato com a ampla coleção de seu
tio composta por obras literárias e documentos, despertando o interesse do jovem Southey em
construir uma História de Portugal, não efetivada.
Cinco anos mais tarde o inglês voltaria para Portugal onde já começaria a delinear uma
ideia inicial de sua História do Brasil. O apoio do tio foi essencial nesse amplo
empreendimento, compartilhou com o sobrinho diversos livros, manuscritos e outros materiais
que teria recolhido ao longo de quase 25 anos. Southey embora tenha tido um conjunto de outras
ideias de diferentes abrangências e proporções começou a focar na História do Brasil já em fins
de 1806, lançado o primeiro volume, desta que seria uma trilogia, em 1810. Os outros dois
volumes seriam publicados em 1817 e 1819, se propondo por abranger, desde o início do
98

contato entre portugueses e indígenas, até a chegada da família real portuguesa, em 1808
(BANDECCHI, 2010; RAMOS, 2013; VARELLA, 2015).
Robert Southey nunca viajaria à então colônia de Portugal. Seus escritos então são frutos
de seus estudos com base em obras e manuscritos com as quais teve contato, principalmente,
através dos diálogos com a coleção do seu tio, Herbert Hill. Sua obra História do Brasil, em
seu tempo, não teve o sucesso editorial que o autor, provavelmente, idealizou. Até aquele
período não havia outro estudo tão amplo sobre a história do que viria a ser o Brasil, através da
análise de documentos e de crítica aos mesmos. Além de História do Brasil, Southey escreveu
uma extensa bibliografia de outras obras que iriam da História à poesia (BANDECCHI, 2010;
RAMOS, 2013)55.
A primeira edição brasileira da obra História do Brasil foi publicada em 1862, dividida
em 6 volumes, pela Livraria Garnier. Quase cem anos depois, entre 1948 e 1954 a Livraria
Progresso Editora, reeditou a obra seguindo os mesmos parâmetros e disposição da anterior.
Dez anos mais tarde, em 1965 surge uma nova edição, também seguindo os moldes das
anteriores, agora publicada pela Editora Obelisco (BANDECCHI, 2010). Para fins deste
trabalho, buscou-se apoio na edição mais recentemente publicada no Brasil, que data de 2010
pela Editora do Senado Federal.
Entrando propriamente nos escritos de Southey, em sua História do Brasil, os indígenas
Guaicuru aparecem nos três volumes da obra, de modo que ambos serão objetos desta análise.
Nos dois primeiros tomos os Guaicuru aparecem raramente, sendo no terceiro onde o inglês
mais se detém acerca desses indígenas. Haja visto isso, os dois primeiros serão analisados em
conjunto e o último, à parte.
Como homem de seu tempo, Southey utiliza os termos ‘selvagens’ e ‘bárbaros’ para se
referir aos Guaicuru e, mesmo, a outros povos indígenas. Em grande medida traz uma
abordagem mais antiquária, com o máximo de factualidades que encontrou em seus estudos.
Apresenta uma escrita que, ainda que não critique todos os seus referenciais, busca construir o
que, em sua compreensão, seria o mais próximo possível da realidade do passado da então
colônia brasileira, produzindo uma leitura positivista do passado. No primeiro volume, se de
um lado Southey enfatiza o caráter “bárbaro” das ações abortivas daqueles indígenas, por outro
lado elogia o tratamento “notável” dado às mulheres de outros povos que “lhes caíam nas mãos,
[pois] nem as retinham prisioneiras, nem as ofendiam de modo algum” (2010a, p. 132). Há a

55
Robert Southey vem se constituindo enquanto um autor e historiador bastante estudado na atualidade,
principalmente em língua inglesa, mas também em português.
99

sempre presente valorização ou desvalorização do ‘outro’ tomando por referência a cultura


política do ‘eu’, ainda que de forma menos enfatizada que outras fontes aqui analisadas.
Partindo dos interesses desse trabalho, o segundo volume nada traz de original em relação ao
primeiro.
No terceiro e último volume da trilogia, Southey culpa os “muitos vícios” (2010b, p.
1495) dos Guaicuru por estes recorrerem ao batismo apenas no que julga enquanto situações
extremas. Justifica a ineficiente cristianização desses indígenas culpando aos próprios, através
de fatores que lhes seriam intrínsecos, ‘vícios morais’, ou seja, ‘vícios da alma’, questões como
o que já demonstrou interpretar como ‘barbaridade’ e ‘selvageria’. A ideia, como a de outros
que escreveram sobre os Guaicuru, centrava-se na premissa destes serem pouco confiáveis e
“traiçoeiros” (2010b, p. 1697) aparece no texto de Southey, e, como percebe-se pelas análises
das fontes tem demonstrado ser um padrão. Mais uma vez, associando essa dada característica
ao já citado episódio onde indígenas Guaicuru teriam convencido soldados portugueses do
Forte de Coimbra a deixarem seus postos, distraindo-os com suas mulheres para, em seguida,
matar a maioria, depois fugirem. Tudo ocorre em 1778, pouco mais de uma década antes do
Tratado de Paz de 1791. Southey parece apenas reproduzir e perpetuar a ideia que encontra nas
fontes que utiliza, estas que sempre ignoraram as plurais investidas lusas contra esses indígenas,
ainda que tantas malsucedidas, até não tanto tempo antes do tão lembrado episódio.
Pensando nas relações matrimoniais e familiares, Southey enumera uma mistura de
comportamentos que considera positivos e/ou negativos dentre os Guaicuru: “Duráveis e fortes
são os seus enlaces matrimoniais, voltando os pais terna afeição à sua prole, quando os nefandos
costumes da nação a deixa vir à luz” (2010b, p. 1702). Se tem um aspecto da vida desses
indígenas que foi passado truncadamente, gerando diferentes descrições, não necessariamente
contraditórias, foram as descrições dos ‘matrimônios’, ou melhor, o que os portugueses
compreendiam como tal vínculo, dentre os Guaicuru. Seja como for, propagando aspectos de
uma cultura política cristã, seja católica como a portuguesa, ou protestante como a de Southey,
é benquisto um modelo de relação que seja associado ao contrato monogâmico eterno do
casamento bíblico. Em recorrente oposição quando se escreveu sobre os Guaicuru, aparecia
comumente a crítica às mencionadas práticas abortivas. Embora tão usuais, este texto de
Southey é particular ao chamar estas de ‘nefando costume’, ou seja, um pecado inominável e
naturalizado naquela cultura, descrição esta que costuma ser atrelada a existência das cudinas,
não aos abortos.
100

Não que o inglês se furtasse de fazer referências às cudinas, e as faz logo depois, as
chamando de “abominação, que de uma das mais antigas corrupções do culto pagão traz talvez
a origem” (2010b, p. 1706). Nesses escritos de Southey, as cudinas seriam como monstros,
potencialmente comuns no ‘Novo Mundo’, que teria sua possível raiz em ‘corrupções morais’,
‘da alma’, propagadas por religiões não cristãs. Ainda que baseado numa análise limitada pelo
contexto e a cultura política do inglês, este último ponto de sua análise, essa particular
conjectura, demonstra alguma base em pesquisas do tempo presente. As religiosidades de
diferentes povos originários de todo o continente americano, geralmente, mesmo que não
necessariamente enaltecessem indivíduos com padrões de gênero e/ou sexualidade destoantes
das limitações binárias cristãs, ‘homem x mulher’, ‘pênis x vulva’, não tinha por hábito
inferiorizar ou punir estes. Percebe-se em geral que eram, no mínimo, respeitados tal como os
demais indivíduos de uma dada etnia. Variações de respeito, importância e/ou estratificação,
tendiam a estar associadas a papéis sociais e/ou genealogia, o que podia ou não estar ligado às
relações identitárias e sexuais dos indivíduos daquele povo. De toda forma, sem formas de
repressão, julgamento e violência a pessoas de seu próprio povo, só por serem quem o eram, tal
qual começaria após o contato e a imposição da cultura política europeia cristã (BORGES,
2021a; 2021b).
Como já colocado anteriormente e diferente de outras fontes a serem analisadas ainda
nesse capítulo, Southey não apenas reproduziu o que encontrou nas fontes, mas trouxe ao texto
suas próprias opiniões e impressões sobre o que relatava. Não se intenciona aqui cair na
armadilha interpretativa de que é possível se escrever sem juízos de valores, numa perspectiva
positivista. Ainda assim, ficou visível que o inglês se propôs a criticar suas fontes mais
criticamente do que era comum na época que escreveu56.
Os escritos desse pesquisador inglês apresentam um conjunto de informações repetidas,
baseadas apenas nas fontes com as quais se detinha para construir cada parte de sua obra. Isso
gera, por exemplo, descrições que nem sempre estão alinhadas ou que fazem sentido. De toda
forma, é digno de nota o esforço de Robert Southey, principalmente se for avaliado, por
exemplo, que ele não teve acesso às fontes portuguesas da Torre do Tombo, tal qual Francisco
Adolfo de Varnhagen (1816-1878) viria a ter futuramente e que usaria em sua obra homônima
a de Southey, posterior e muito mais conhecida.

56
Southey, por exemplo, foi capaz de reconhecer que os Guaicuru eram úteis aos interesses portugueses, tanto
por diminuir o número de outras etnias indígenas com as quais guerrearam, quanto por limitar o seu próprio,
através de abortos (SOUHTEY, 2010b).
101

2.4 Manuel Aires de Casal e a Corografia brasílica

Sobre a vida do padre Manuel Aires de Casal há muitos mistérios, lacunas e poucas
informações concretas. Isso levaria o renomado intelectual Caio Prado Júnior a afirmar que
“quase tudo a respeito de sua vida são conjecturas e fatos duvidosos” (1955, p. 52). Essa
perspectiva segue mantida em trabalhos mais recentes que versam sobre Casal (FERNANDES,
et al, 2013), ainda que estes sejam consideravelmente raros. De toda forma, a partir dos dados
que Prado Júnior (1955) conseguiu compilar, Casal nasceu em Pedrogan, Portugal, já se
encontrando em terras da América Portuguesa desde, pelo menos, 1796, época em que atuou
como capelão da Misericórdia do Rio de Janeiro.
A mais famosa obra do padre português é a Corografia Brazilica, ou Relação Historico-
Geografica do Reino do Brazil composta e dedicada a Sua Magestade Fidelissima por hum
Presbítero Secular do Gram Priorado do Crato com Licença e Privilégio Real, a qual foi
publicada originalmente pela Impressão Régia em 1817. Embora o texto já estivesse pronto
desde, pelo menos, o início do ano anterior, ocorreram demoras e falhas na produção daquela
edição (PRADO JÚNIOR, 1955). Houve ao menos duas edições posteriores, a primeira pelo
Instituto Nacional do Livro, datada de 1945, e a seguinte em parceria entre a Editora da
Universidade de São Paulo e a Editora Itatiaia, de 197657 (FERNANDES, et al, 2013).
Casal voltaria para sua pátria natal, Portugal, apenas em 1821, junto com o então rei, D.
João VI. O padre faleceu não muito depois, deixando incompletos planos de uma futura
reedição da Corografia Brasílica, que nunca foi publicada, se é que tenha sido concluída. Aliás,
esta não foi sua única obra literária, haja vista que parece ter se dedicado a trabalhos desse tipo
ao longo da vida, tanto com livros próprios quanto com reproduções de manuscritos de outros
autores. Esse padrão parece ter influenciado bastante o estilo literário de Casal, que tendia a ter
uma escrita autoral baseada na reprodução das informações que teve contato em fontes diversas.
Na Corografia Brasílica Casal abordou as mais variadas províncias da então colônia na
América Portuguesa. Buscou construir uma corografia que abrangesse essa ao máximo, tal qual
não existia até então. Há, porém, de se ficar aqui explícito que Casal não foi um viajante, como
a maioria dos autores das fontes analisadas neste capítulo, mas sim um estudioso, tal qual
Southey. Sua preocupação e sua intenção não eram análises com críticas e interpretações
próprias, mas sim uma reunião de registros do que entendia como factualidades corográficas

57
A versão utilizada de referência neste trabalho apresenta os dois volumes digitados num único arquivo, sendo
um fac-símile da primeira edição da obra, de 1817.
102

(PRADO JÚNIOR, 1955). Essa expectativa de intencionar romper com juízos de valores era
resultado de sua perspectiva, marcadamente influenciada pela ilusão positivista que aspira uma
neutralidade discursiva que é inalcançável ao ser humano. Todo discurso, tanto em seus focos
quanto em suas omissões, é fruto de contextos que moldam a cultura política na qual seu autor
está inserido.
Os Guaicuru aparecem nos escritos quando o padre português se debruça sobre a então
província do Mato Grosso. Casal atribui aos Guaicuru uma pluralidade interessante de
características, os apontando como “ferozes e audazes” ([s.d.], p. 77), além de poderosos, mas
não deixando de recorrentemente os adjetivar como “bárbaros” e/ou hostis. Há, como já visto
em outras fontes, uma construção discursiva que reconhece um poder inerente a esse povo, mas
busca sempre lembrar ao seu leitor que esses indivíduos são o ‘outro’, inferior ao ‘eu’, o não
indígena ‘civilizado’, público das palavras de Casal.
Destoando de outras fontes, o padre descreve a estatura dos Guaicuru enquanto
“mediana”, embora enalteça a saúde deles, seguindo as linhas de tantos outros. E numa
afirmação particularmente incomum, diz que os Guaicuru “são maus cavaleiros: só sabem
correr”, sem justificar, fora talvez, não muito após enaltecer as condições físicas daquele povo,
dizer que todos teriam pernas tortas, por andar muito a cavalo ([s.d.], p. 77). É, no mínimo,
curioso que Casal não descrevesse os Guaicuru como uma estatura elevada, tal qual outros
pesquisadores ou viajantes, e não seguindo referências comuns a esses, como Prado e Serra. A
leitura dos escritos do padre revela que a base das informações advém dos textos militares já
citados, direta ou indiretamente. Trata-se de mais um cronista que desenvolve seus estudos
tomando por base as fontes produzidas por Prado e/ou Serra. Algo como uma exímia junção de
infindas informações, feito sem igual na época, mas sem olhar crítico ou um retrabalhado que
fizesse o todo discorrer como algo uno. Casal apresenta uma verdadeira ‘colcha de retalhos’ o
que não diminui o seu esforço e a inovação proposta em realizar sua Corografia Brasílica, mas
reforça a posição de intelectuais que já apontaram colocações semelhantes anteriormente
(PRADO JÚNIOR, 1955).
Casal ainda afirma, como era comum, que os Guaicuru eram “soberbos” e que tratavam
os outros com “desprezo” ([s.d.], p. 130), ou seja, que numa perspectiva do ‘eu’ contra o ‘outro’,
para os Guaicuru eram os não-Guaicuru, indígenas ou não, ‘outro’, logo inferior. Claro, porém,
que a cultura política europeia e cristã, potencialmente reforçada por sua formação em teologia
e filosofia, tornava particularmente improvável que conjecturar perspectivas de mundo e de
identidades que destoassem das suas, sem que as condenasse. Isso fica mais pontualmente
103

marcado nas críticas que faz, primeiro, aos unigenes que descreve como “pretendidos
adivinhadores, e supersticiosos charlatães” ([s.d.], p. 130) ao utilizar métodos que lhes soam
“bárbaros” e, segundo, às práticas abortivas:

Nada há entre os Guaicuru tão notável como a desumanidade, que as mães praticam
com o feto logo que se sentem grávidas, não o deixando vir ao mundo, enquanto não
passam de trinta anos de idade. As que concebem depois desta idade, e têm feliz parto,
criam os filhos. A razão desta atrocidade é unicamente para se livrarem dos incômodos
anexos à criação! ([s.d.], p. 131)

Não que Casal tivesse atribuído muita ‘humanidade’ aos Guaicuru antes, de toda forma,
é essa última prática a qual o padre português considera mais repleta de pecados, tais quais
listados e propagados, profissionalmente, por ele e outros eclesiásticos desde muitos séculos
antes dele. Não deve-se, porém, ignorar que o aborto é um tema polêmico na sociedade judaico-
cristã até a atualidade, se constituindo como uma pauta que poucas figuras de poder conseguem
se manifestar, sem que lhes cause desgaste público. Seria, no mínimo, estranho se um sacerdote
na segunda metade do século XVIII não criticasse e condenasse esse ato. É notável, porém, que
o padre reconheça alguma motivação para tal prática, afinal, criar um bebê numa sociedade
nômade e belicosa, num contexto de pressões entre outros povos indígenas e, principalmente,
duas potências europeias deveria ser um particular e limitando desafio, a partir do qual entre as
mulheres Guaicuru havia o direito de escolher não o fazer, ao menos até certa idade. As
pressões, dogmas e punições da cultura política de Casal se chocavam veementemente com
certa liberdade de escolha ou pressão social própria, naturais à cultura política do ‘outro’
Guaicuru.
A análise dos escritos de Manuel Aires de Casal sobre os Guaicuru não traz novas
informações sobre as perspectivas do próprio autor, para além das conjecturas incertas que
outros pesquisadores já apresentaram com maestria, o mais reconhecido certamente foi Prado
Júnior (1955). Este estudo apenas corrobora e reforça a tese de que Casal fora, essencialmente,
um compilador de informações escritas por outros antes dele, nem sempre plenamente
concordantes, o que por vezes gera um discurso confuso. De toda forma, é pontualmente
interessante que o padre emita opiniões que destoem de outras fontes aqui analisadas. Não fica
explícito, porém, se isso parte de leituras cruzadas que se chocam, algum erro ou interpretação
própria, baseada em algo não explicitado no texto. O autor deixa transparecer em seus escritos
menos de si, do que outros analisados nesse capítulo.
104

2.5 Carl Friedrich Philipp von Martius, O Estado do direito entre os autóctones do
Brasil e outros escritos mais

Figura 3 – Retrato de Carl Friedrich Philipp von Martius, fotografia, data desconhecida.

Fonte: HANFSTAENGLS, [s.d.].

Nascido e falecido na região da Baviera, parte da atual Alemanha, Carl Friedrich Philipp
von Martius (1794-1868) é, certamente, um dos mais famosos viajantes estrangeiros que passou
pelo, já independente, Império do Brasil, e sobre estas terras escreveu. Advindo de uma
realidade social abastada, em 1810 começa o ensino superior, cursando medicina e,
posteriormente, botânica, chegando a integrar o Instituto dos Alunos da Academia de Ciências
de Munique. Ainda na mesma instituição, começaria no serviço público em 1816 (AUGUSTIN,
2009).
Em parceria com seu colega também bávaro, Johann Baptist Ritter von Spix (1781-
1826), embarcou numa missão científica, vinculada à Áustria, pelo Brasil. Partiram os viajantes
ao Império Sul-americano no ano de 1817, enquanto parte da comitiva da arquiduquesa Maria
105

Leopoldina de Hasburgo, noiva de D. Pedro de Alcântara, o D. Pedro I do Brasil e D. Pedro IV


em Portugal. O objetivo inicial da viagem era a pesquisa da fauna e flora brasileira,
intencionando a composição do acervo do Museu de História Natural de Munique. Para além
desses interesses preliminares, foi marcada a curiosidade e os escritos posteriores de Martius
sobre línguas e costumes de diferentes povos originários brasileiros (MELLO, 2018). A estadia
precisou ser encurtada e os viajantes voltaram para seu país já em 1820, devido ao adoecimento
de Spix. Estiveram no Brasil pouco após se tornar Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves
uma conjuntura bem específica, e voltaram para sua terra natal pouco antes da independência,
em 1822.

Figura 4 – Retrato de Carl Friedrich Philipp von Martius, litografia, ca. 1820.

Fonte: KUNIKE, ca. 1820.


106

O primeiro e mais conhecido trabalho escrito, resultado dessa viagem, foram os três
volumes de Viagem ao Brasil. cujas primeiras edições datam, respectivamente, de 1823, 1828
e 1831. Há de se pontuar que Spix não conseguiria concluir sua participação, nem colher certos
frutos de seu trabalho, pois faleceu em 1826, antes mesmo da publicação do segundo tomo.
Essa obra se apresenta, segundo os próprios autores, como uma viagem literária, o que “indica
que seu relato é, ao mesmo tempo, um relato e literatura, história e narrativa, fato e ficção e
metafísico” (AUGUSTIN, 2009). Não é que Martius e Spix se propusessem a escrever literatura
fantástica ou ignorassem o que compreendessem como fatos e/ou verdades. O marco central
aqui é seu rompimento contra perspectivas positivistas, tão presentes entre os letrados dos
Oitocentos, ao reconhecer o papel daquele que escreve, do autor, na construção de um discurso
e nas escolhas de seus objetos. Seus escritos eram conscientemente um discurso, os bávaros não
tiveram o intuito de construir um amontoado de factualidades.
Ao longo dos três volumes da Viagem ao Brasil, Spix e Martius não se debruçaram ou
teceram profundas análises sobre os Guaicuru. Isso não foi sem propósito, afinal nunca
estiveram pela região central do Brasil, não chegaram nem perto de onde viviam esses
indígenas. O que escreveram sobre esse povo foi feito a partir do cruzamento de outros estudos,
os quais referenciam, como os escritos de Casal e Serra, já analisados. No caso deste último,
através de versões de seus escritos publicados a partir de meados de julho de 1813 no jornal O
Patriota58 (MARTIUS, SPIX, 2017), que publicou também escritos de Prado no ano seguinte,
mas como este não foi citado, os viajantes não devem ter tido contato com ele ou o descartaram.
Em maior medida, os não tão presentes escritos de Spix e Martius sobre esse povo acabaram
sendo reproduções, sem grandes análises críticas ou valorações. Até por esse motivo, não será
aqui analisada, mais profundamente, a abordagem que fizeram sobre os Guaicuru. Ainda assim,
dando pistas das perspectivas mantidas por Martius em escritos posteriores, segue válido
algumas considerações sobre o que os viajantes deixaram sobre indígenas no geral. Eles
construíram um discurso marcadamente dual “sobre o índio como selvagem natural, puro e
habitante do paraíso e outro que o vê em termos de civilização” (AUGUSTIN, 2009, p. 174).
Isso ajuda a dar pistas de futuras colocações mais enfáticas e explícitas que Martius daria sobre
o “destino” dos povos originários brasileiros. Ainda que isso não fique esclarecido com escritos

58
O Patriota foi um periódico publicado entre 1813 e 1814 pela Imprensa Régia, instalada na cidade do Rio de
Janeiro, poucos anos antes. Foi o primeiro periódico nas terras do futuro Brasil que publicaria artigos mais
densos, com análises sobre temas variados. Embora tão curto período de difusão, contou com 18 números. Seus
escritos contribuem para a compreensão “de um conjunto de temas e questões que constituíram as Luzes
imperiais no Brasil” (KURY, 2007, p. 90).
107

isolados sobre guaicurus, os viajantes, no geral, construíram o indígena brasileiro a partir da


perspectiva de figura romântica, captando os citados aspectos mais literários que históricos.
Contrabalanceando isso, havia presente a questão do “civilizar” desses povos. Isto limitaria as
possibilidades futuras desses indivíduos para Spix e Martius, com base na cultura política na
qual estavam envoltos. Neste aspecto, perpetuado ainda na atualidade, compreendiam
mudanças culturais enquanto perda de identidade. O que, como já dito, Martius trabalhará
melhor, anos depois.

Figura 5 – Retrato de Johann Baptist Ritter von Spix, litografia, data desconhecida.

Fonte: RHOMBERG, [s.d].

Um ano após a publicação do terceiro volume de Viagem ao Brasil, já em 183259,


Martius publica a primeira edição de O Estado do Direito entre os Autóctones do Brasil. Pouco
aqui há de muito diferente de escritos prévios, mas é interessante certas descrições pontuais.

59
Encontrei referências desta ter sido originalmente, tanto em 1832 (SILVA, 2013) quanto seis anos depois, em
1838 (CANCELA, 2009). Optou-se por seguir o trabalho mais recente e exaustivo.
108

Martius, ao abordar costumes de certos “povos mais civilizados” (1982, p. 52), e em outros
momentos mais também, deixa a entender que, em certa medida, os Guaicuru estavam “acima”
de outros indígenas, com base no julgamento da cultura política europeia e cristã. O viajante
bávaro não é o primeiro a isso escrever, mas dado que reproduz as informações com as quais
teve contato, demonstra sua concordância e, por consequência, influência dessas na sua
mentalidade. Havendo uma específica e pontual ressalva a superioridade desses indígenas: as
cudinas60, por ele classificadas como “homens, assim deformados”, frutos de uma “enraizada
corrupção moral dos índios” (1982, p. 31-32).
Para Martius os Guaicuru são um povo poderoso, digno de enaltecimento, ainda que
ponderado. De toda forma, nem esse distinto povo conseguiria fugir dos pecados de suas almas
‘deformadas’, fruto de uma corrupção moral, intrínseca à sua essência “bárbara”. Então
indígenas, distintos ou não, mais ou menos ‘civilizados’ ou ‘bárbaros’, compartilhariam uma
natureza, algo enraizado desde sua alma, algo que os tornaria sempre o “outro”, não importando
o quão mais se aproximasse do ‘eu’ europeu e cristão que julgava e discursava sobre todas as
coisas. Aos pecadores que não reconhecem seus atos ‘ruins’ e que deles não buscam o perdão
do Deus cristão, não poderia haver boas expectativas em seu horizonte. Não à toa, já no fim
desse seu escrito, afirma, numa de suas mais famosas sentenças, que “não há dúvida: o
americano está prestes a desaparecer. Outros povos viverão quando aqueles infelizes do Novo
Mundo já dormirem o sono eterno” (1982, 70).
Anos depois, Martius participaria de um concurso, promulgado pelo IHGB, que buscava
monografias que propusessem formas de se compreender e estudar a história do então recente
Brasil. Tratava-se de um efervescente processo pela construção de uma identidade nacional,
que unisse aquele amplo território de limites ainda em disputa. Neste contexto, o bávaro propõe
um texto resposta Como se deve escrever a História do Brasil, datado do início de 1843 e
publicado nas páginas da Revista do IHGB em 1945, onde afirmava que:

O sangue português, em um poderoso rio deverá absorver os pequenos confluentes


das raças índia e etiópica [negros]. Na classe baixa tem lugar está mescla, e como em
todos os países se formam as classes superiores dos elementos das inferiores, e por
meio delas se vivificam e fortalecem, assim se prepara atualmente na última classe da
população brasileira essa mescla de raças, que daí a séculos influirá poderosamente
sobre as classes elevadas, e lhes comunicará aquela atividade histórica para a qual o
Império do Brasil é chamado (MARTIUS, 1982, p. 88).

60
A grafia usada é exatamente essa, logo, para além de ter tido acesso aos escritos de Serra, que grava essas
pessoas como ‘cudinhos’, também leu Prado, que escreve ‘cudina’, ou alguém que nele se baseou. Não é
explícito, porém, se este contato tenha sido desde a época da escrita do primeiro volume da Viagem ao Brasil,
onde referenciou apenas Serra, ou se foi posterior.
109

Nessa época a questão indígena, ou melhor, o discurso sobre ela, se tornou difícil de ser
dissociada de um discurso maior, de origem, de fundação identitária de uma nação brasileira
(GUIMARÃES, 1988). Que fique claro, porém, que quanto mais esse cresceu e se tornou
importante sendo propagado por distintos intelectuais, mais se constituiu um discurso sobre os
indígenas que os não indígenas gostariam de ter enquanto ‘fundadores’ do Brasil, ao lado dos
europeus, estes nunca invasores, mas apenas ‘civilizadores’, que trariam a ‘luz’ e a ‘verdade’,
logo, a ‘salvação’ do cristianismo.
A monografia de Martius sobre como se escrever uma dada História do Brasil, anos
depois, seria sobrepujada pelo trabalho de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878). Ainda
assim, a tese de que os povos indígenas estariam destinados a se degenerar até seu extermínio,
decorrente de miscigenação e de ideias que associavam mudanças às ‘perdas’ culturais e
identitárias, refletiram durante todo o decorrer do XIX e, mesmo no Tempo Presente, ainda
encontra ecos em certos espaços da sociedade brasileira.

2.6 Johann Moritz Rugendas e a Viagem Pitoresca Através do Brasil

Antes do aprofundar na figura central desse subtópico, há de se apresentar um contexto


no qual esteve inserido, ao menos, por algum tempo. Essa história se inicia com o barão russo
Georg Heinrich von Langsdorff ou Grigory Ivanovitch Langsdorff (1774-1852), nascido numa
família nobre, entrou na Universidade Gottingen, onde cursou medicina e, após trabalhar na
área, executou outras funções, chegando a prestar serviços diretos à realeza. Para além do labor
médico, se interessou e estudou sobre uma infinidade de outros saberes, conheceu figuras
proeminentes e relembradas no presente, como o botânico e naturalista francês, Augustin
François César Prouvençal de Saint-Hilaire (1779-1853). Chegou também a ser eleito como
correspondente da Academia de Ciências da Rússia em 1803 (KOMISSAROV, 1988). Sua
primeira vinda a então colônia portuguesa na América data desse mesmo ano. Na época, estava
compondo a primeira viagem russa de circunavegação do mundo, tendo à frente o capitão Adam
Johann von Krusenstern (1770-1846) e o embaixador Nikolas P. Resanopff (?-?). Havia, nessa
viagem, expectativas do czar Alexandre I (1777-1825, governou de 1801 até sua morte) no
estabelecimento de primeiras relações mercantis oficiais com o Japão. Já experiente em viagens,
além de letrado, em 1813, Langsdorff foi nomeado para o cargo de cônsul plenipotenciário da
Rússia no Brasil. Pouco tempo depois já possuía a aprovação do czar para que organizasse a
110

primeira expedição russa pelo interior daquele futuro país. Esta começaria apenas em 1821 (um
ano após o regresso de Martius para a Europa), no Brasil, enquanto Reino Unido com Portugal
e Algarves, e terminaria em 1829, com o Brasil já um país oficialmente independente. Esta,
comumente chamada de Expedição Langsdorff (1821-1829), foi possuidora de um conjunto de
precondições favoráveis:

Sem ter restrições políticas de viajar (conhecia pessoalmente José Bonifácio), com
amplos poderes de ação que lhe foram conferidos pelo czar, e sem problemas
financeiros, Langsdorff organizou a expedição mais bem equipada de todas as
organizadas até então pelos viajantes europeus no Brasil (FREITAG-ROUANET,
2013, p. 73).

Para além do cônsul russo, dentre outros membros de sua expedição, podem ser citados:
o botânico, Ludwig Riedel (1790-1861), o astrônomo e cartógrafo, Nester Rubtsov (1799-
1874), os zoólogos Edouard Ménétriès (1802-1861) e Christian Friedrich Hasse (1771-1831),
os artistas, Aimé-Adrien Taunay (1803-1827), Johann Moritz Rugendas, por vezes
aportuguesado como José Maurício Rugendas (1802-1858) e Antoine Hercule Romuald
Florence, comumente chamado de Hércules ou Hercule Florence (1804-1879). Embora os
diários deixados pelo próprio Langsdorff não agreguem diretamente aos interesses desta
pesquisa, o mesmo não pode ser dito sobre os registros de autoria de Rugendas e Florence61.
Num dos estudos mais recentes sobre a Expedição de Langsdorff, Barbara Freitag-
Rouanet (2013), num diálogo com a historiografia prévia sobre o tema, divide a viagem em três
partes: a primeira parte datou de 1821 a 1823, se iniciou no Rio de Janeiro e num trajeto todo
por terra, chegou até Minas Gerais; a segunda, em 1824, foi do Rio de Janeiro até São Paulo,
contou com percursos tanto por terra, quanto pela água e teve caráter ‘preparatório’ para a
última e mais extensa parte da expedição; por fim, a terceira parte datou de 1826 a 1829, partiu
de São Paulo, passando por Mato Grosso e chegou até o Amazonas, e se caracterizou por um
percurso inteiramente fluvial.
Os primeiros anos da expedição foram marcadamente limitados devido a entraves
diplomáticos surgidos entre a Rússia e o Brasil no pós-independência. A partir de 1824 as
relações entre os dois países são retomadas, e contando agora também com algum apoio do
próprio Imperador brasileiro D. Pedro I, a expedição tem início em maio desse mesmo ano.

61
O primeiro será abordado nesta parte da dissertação, enquanto o próximo virá no próximo subtópico deste
capítulo.
111

Ainda assim, essa demora e as restrições iniciais, geraram reclamações e insatisfação por parte
dos membros da expedição (ROCA, 2010).

Figura 6 – Retrato de Georg Heinrich von Langsdorff, litografia, 1809.

Fonte: BOJANUS, 1809.

A ‘Expedição de Langsdorff’ é famosa ainda por um conjunto de conflitos, intempéries


e, até mesmo, mortes que a rodearam, mesmo após seu fim62. Logo na primeira parte da viagem
já ficaram marcadas dificuldades relacionais entre membros do grupo. O mais sério se deu em
Minas, envolvendo Langsdorff e Rugendas, resultando no desligamento do segundo, figura esta
que será agora mais detidamente analisada.

62
Para além dos crescentes problemas de saúde mental de Langsdorff que o impediram de voltar a trabalhar
após a volta à Rússia, outro exemplo seria o caso de Guenrikh Guenrikhovitch Manizier (1889-1917) que quase
100 anos após Langsdorff iniciar sua expedição, realizou uma nova viagem por aquela inspirada e com outras
semelhanças de percursos e interesses. Este regressou à sua pátria mãe, Rússia, em 1916, onde começou a
estudar seus materiais, se voluntariou no exército e morreu no ano seguinte, de tifo, no contexto da Primeira
Guerra Mundial. Além disso, até o presente, parte do material associado a expedição de Langsdorff segue ainda
sem gerar frutos amplos e sistematizados, tal qual poderiam. Essas pesquisas seguiram sendo associadas a
intempéries na vida de seus entusiastas, gerando frutos historicamente perdidos ou deixados de lado, que ainda
estão longe de se tornarem fontes de potenciais esgotados (FREITAG-ROUANET, 2013; XSPRINTSIN, 1967).
112

Johann Moritz Rugendas nasceu em 1802 na Baviera, parte da atual Alemanha e faleceu
em 1858, em outro distrito do mesmo país. Nascido numa família muito associada à arte, área
na qual estudou, tanto dentro na Alemanha quanto na Itália, tendo contato com artistas,
políticos, cientistas e outras figuras influentes de seu tempo. Viajou não apenas pelo Brasil,
vivenciando também períodos na Argentina, Bolívia, Chile, Haiti, México, Peru e Uruguai e
produziu uma das mais ricas obras da época, no que tange a variedade temática de suas
representações. Suas passagens durante o século XIX entrelaçam-se com crescentes climas
políticos independentistas e rompimentos com vínculos coloniais, sendo testemunha de eventos
históricos, como a coroação de D. Pedro I como Imperador do Brasil (ROCA, 2010).

Figura 7 – Retrato de Johann Moritz Rugendas, fotografia, antes de 1852.

Fonte: HANFSTAENGLS, [antes de 1852].

Em 1821 o barão Langsdorff visitaria a Academia de Ciências de Baviera,


intencionando encontrar com os então recém-chegados do Brasil, Martius e Spix. Oportunidade
na qual o cônsul e Rugendas se conheceram e o primeiro fez o convite, formalizado em contrato,
para integrar o conjunto dos viajantes de sua expedição. Segundo o documento assinado, o
artista teria a obrigação de fornecer a Langsdorff todo o material que produzisse, preservando
113

apenas o direito a cópias, que só poderiam ser publicizadas após integrarem os relatos oficiais
do barão. Seus originais seriam, portanto, propriedade do governo russo (FREITAG-
ROUANET, 2013; ROCA, 2010).
Como já apresentado anteriormente, Rugendas participou apenas na primeira parte da
expedição, até o momento de sua demissão, no início de novembro de 1824. A situação do
desentendimento não parece ter sido simples: por um lado, Langsdorff ia crescentemente dando
sinais de adoecimento mental, tanto que, antes do fim da expedição, passaria o comando desta
para Rubtsov. Por outro lado, Rugendas enfrentou seu chefe, duvidando de sua contabilidade e
seus encaminhamentos financeiros, chegando a mexer em documentos e anotações de
Langsdorff sem autorização. Na realidade, o que possivelmente aconteceu, foi um atraso nos
envios de dinheiro por parte de autoridades russas, regulados posteriormente. De toda forma, a
tensão gerou a carta de demissão por parte do cônsul e outra, de resposta, por parte de Rugendas,
ambas com tons ofensivos e, em certa medida, debochadas63 (FREITAG-ROUANET, 2013;
MOURA, 1984). Não se pode descartar ainda um crescente sentimento de insatisfação geral
entre os membros da equipe, fruto dos próprios fatores ambientais dos locais por onde a
expedição passou: condições de tempo pouco amigáveis e, por vezes, extremas, rios com fortes
correntezas, doenças desconhecidas ou pouco compreendidas, insetos e outros desconfortos
mais.
Após a demissão, Rugendas seguiu viajando, separado da equipe anterior, chegando ao
Rio de Janeiro em 182564. O grande fato, porém, é que, com ele seguiu também parte de seus
desenhos e pinturas65, os quais, por contrato, pertenciam a Langsdorff e ao Estado russo66.
Voltando para a Europa, o artista se estabeleceu em Paris, na França, onde, encorajado por
Friedrich Wilhelm Heinrich Alexander von Humboldt ou, apenas, Alexander von Humboldt
(1769-1859), se articulou e apressou a composição e a publicação resultada de sua estadia no

63
Para acessar o conteúdo das cartas citadas cf. FREITAG-ROUANET, 2013, p. 188-190.
64
Seu percurso é incerto. Há hipótese de que teria ido de Minas Gerais para o Mato Grosso, Espírito Santo e
Bahia, porém isso é contestado com base na ampla distância de percurso, num curto período de tempo, passando
por trajetos difíceis e também por não coincidir com os desenhos que o artista produziu (FREITAG-ROUANET,
2013)
65
Outra parte de seus trabalhos já havia sido remetida para a Rússia por Langsdorff em suas remessas periódicas
(FERRI, 1979).
66
Inclusive havia temor por parte de Rugendas em relação a medidas legais do Estado russo. E este foi
justificado, pois Langsdorff sinalizou para que autoridades daquele Império tomassem medidas caso o artista
publicasse material derivado de sua participação na expedição. Há, inclusive, pesquisadores que levantaram a
hipótese de que a saída de Rugendas da viagem teria sido intencional, para focar em seu próprio trabalho
individual e que o seu destino na Europa ter sido a França e não a Alemanha, enquanto uma tentativa de fugir de
intempéries legais por parte de interesses do governo russo (FREITAG-ROUANET, 2013; ROCA, 2010).
114

Brasil. Contando com Victor Aimé Huber (1800- 1869)67 para a produção textual, em 1835 é
publicada a versão original da Viagem pitoresca através do Brasil. Nesse intervalo de uma
década, Rugendas teria treinado novas técnicas e estilos de pintura e faria novas viagens, chegou
ao México em 1831, onde ficou por três anos para depois viajar por outros países da América
do Sul, até o Chile, onde morou por onze anos. Apenas na década de 1840 viria a fazer um novo
percurso, quando passou uma vez mais pelo Brasil para depois, retornar a Europa, em 1847.
Diferente de outros viajantes que passaram pelo Brasil, o trabalho de Rugendas foi
ignorado, omitido ou esquecido por um longo período, dentro do então Império e posterior
República. Até em compilados publicados na RIHGB entre fins do século XIX e as primeiras
décadas do XX, não houve qualquer menção. Apenas no centenário do IHGB, quando novos
interesses por representações do Brasil ganharam espaço, além da conjuntura pós-Revolução
de 1930, novas publicações de viajantes e outros intelectuais que escreveram o Brasil foram
revisitadas, e finalmente a obra de Rugendas ressurgiu. A primeira edição da obra traduzida
para o português foi publicada entre 1937 e 1939 em edições da Revista da Semana: Publicação
de arte, literatura e modas, com tradução de Octávio Tavares. Ainda assim, a tradução que se
tornaria mais popular seria a realizada por Sérgio Milliet, a qual foi publicada pela primeira vez
por intermédio da Livraria Martins Fontes em 1940. Sucessivas edições e reimpressões desta
versão seriam publicadas em 1940, 1941, 1949, 1954, 1967 e 1976. Em 1971 também foi
publicada pela editora Melhoramentos e pela editora A Casa do Livro. Em 1972 saiu numa
edição conjunta entre a Livraria Martins Editora e a Editora da Universidade de São Paulo. Em
1979 foi publicada uma vez mais, numa parceria entre a Editora Itatiaia e a Editora da
Universidade de São Paulo, reeditada em 1989, 1990 e 1995. Além destas, a editora Círculo do
Livro publicou uma edição do livro, sem data, e a Editora Itatiaia publicou também uma obra
com o nome O Brasil de Rugendas, trazendo apenas as ilustrações deste, sem o texto original
(ROCA, 2010). Para fins desta dissertação, será trabalhada a edição de 1979 publicada pela
Editora Itatiaia e a Editora da Universidade de São Paulo.
Antes de uma análise debruçada sobre os escritos há de ser apresentado certo debate
historiográfico acerca da autoralidade da Viagem pitoresca através do Brasil. De acordo com
um levantamento feito pelos pesquisadores Pablo Diener e Maria Fátima Costa, que foi
resumido por Andrea Roca da seguinte forma:

67
Huber era amigo de infância de Rugendas e versado no campo da escrita. Ambos chegaram até a compartilhar
a mesma casa (ROCA, 2010).
115

Diener e Costa [Rugendas e o Brasil. Editora Capivara: São Paulo, 2002]


desenvolvem um certo itinerário acerca da atribuição da autoria textual de Viagem
Pitoresca a Victor-Aimé Huber (1800-1869), publicista amigo de Rugendas que
compartilhou, com ele, a casa do Bairro Latino em Paris, quando o artista se mudou
para aquela cidade, acompanhando a publicação do álbum. Segundo Diener e Costa,
uma biografia sobre Huber, publicada em 1872, colocava este como autor do texto do
álbum, e esse dado foi reproduzido mais tarde em um dicionário biográfico alemão de
grande divulgação (Allgemeine Deutsche Biographie, 1875-1910 [1889]). A partir de
então, ter-se-ia difundido essa versão, sendo adotada pela própria biógrafa alemã de
Rugendas, Gertrud Richert [Johann Moritz Rugendas. Ein Deutscher Maler des XIX
Jahrhunder. Berlin: Rembrandt, 1959]. Não obstante, apesar de ter utilizado os dados
apontados por Richert, Carneiro [Rugendas no Brasil. São Paulo: Livraria Kosmos
Editora, 1979] coloca a autoria do texto de Viagem Pitoresca em Rugendas; Massarani
[Rugendas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado S/A – IMESP, 1982.] atribui uma
autoria conjunta, embora colocando maior ênfase na participação de Huber. Para
Belluzzo [O Brasil dos Viajantes. São Paulo: Metalivros, 1994, p. 77, v. 3]68 e Siriuba
Stickel [Uma pequena biblioteca particular. Subsídios para o Estudo da Iconografia
no Brasil. São Paulo: EdUSP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004, p. 513],
o texto foi escrito por Huber, embora a partir das cartas enviadas para ele por
Rugendas. Por sua vez, o historiador Robert Slenes [As provações de um Abraão
africano: a nascente nação brasileira na Viagem alegórica de J.M. Rugendas. In:
Revista da História da Arte e Arqueologia. IFHC, Unicamp, nº 2, 1995-96, p. 271-294
e Overdrawn from Life: Abolitionist Argument and Ethnographic Authority in the
Brazilian “Artistic Travels” of J. M. Rugendas, 1827-35. In: Portuguese Studies, v.22,
n.1. 2006, p. 55-80] sugere que o artista teria feito revisões sobre o texto de Huber
antes da publicação: argumentando que o projeto intelectual do texto é exatamente o
mesmo que aquele das gravuras, Slenes acaba colocando a autoria em Rugendas (veja-
se especialmente [As provações de um Abraão africano: a nascente nação brasileira
na Viagem alegórica de J.M. Rugendas. In: Revista da História da Arte e Arqueologia.
IFHC, Unicamp, nº 2, 1995-96, p. 275-280]). Apesar de, ainda, não termos certeza
absoluta acerca da autoria do texto de Viagem Pitoresca, adotaremos não obstante a
posição tomada por Diener e Costa [Rugendas e o Brasil. Editora Capivara: São Paulo,
2002, p. 100], quando sustentam que o fato de que Rugendas tenha assumido como
“próprias” as ideias manifestadas no seu álbum, é suficiente, então, para afirmar que
o conteúdo de Viagem Pitoresca consegue expressá-las (ROCA, 2010, p. 100-101).

Seguindo a linha de Diener e Costa, perpetuada por Roca, aqui se reconhece que a
autoria exata do texto publicado sobre o nome de Rugendas segue incerta. De toda forma, uma
vez que o artista tenha aprovado aquele texto como seu, logo concordou que aquele conjunto
de escritos representaria seu trabalho e legado, algo que ele, definitivamente valorizava e
aspirava, compreende-se então que o discurso presente na Viagem pitoresca através do Brasil
é uma expressão de Rugendas, tal como ele autorizou e, portanto, será analisado como tal.
Ao longo do texto o artista pouco abordou os Guaicuru. Afirma, porém, que “sua
civilização parece mais avançada” (1979, p. 176) que a de outros indígenas brasileiros.
Rugendas diz ter usado por fonte Wilhelm Ludwig von Eschwege (1777-1855), que, por sua
vez, teria se baseado em um comandante do Forte de Nova Coimbra (Prado ou Serra,

68
Esta referência é incerta, pois no corpo do texto a pesquisadora escreve “Belluzzo” (2000:77, v. 3), só que nas
referências finais só há menção a esta obra de 1994. Como a exceção desta referência, todas as demais
mencionando Belluzzo referenciar a esta da década de 1990, optou-se por colocá-la nessa citação.
116

provavelmente) e como já se percebe, seguiu-se um rastro de escritos derivados de textos


previamente produzidos. De toda forma, a ‘civilização’ mais marcada do que a de outros povos
indígenas, para o artista, estaria justificada por descrições sobre os Guaicuru, como a sua fonte,
contando os enfrentamentos destes à portugueses. Mais do que, por exemplo, aspectos
religiosos, a dita maior ‘civilização’ desses indígenas parece estar associada enquanto algo que
compense as perdas dos portugueses em conflitos contra os indígenas. Nessa perspectiva, um
povo ‘civilizado’, formado por europeus cristãos, não poderia ter tido tantos problemas contra
um povo ‘comum’, tão ‘bárbaro’ quanto outros, afinal, isso inferiorizaria os colonizadores. Se
estes perderam distintos conflitos, teria de ser, conforme outros homens de seu tempo e de
semelhante cultura política pensaram, e Rugendas perpetuou o discurso, assumindo a visão de
uma superioridade Guaicuru frente a outros povos indígenas.

Figura 8 – Autorretrato de Johann Moritz Rugendas, desenho, 1850.

Fonte: RUGENDAS, 1850.

Para ajudar a compreender esse pensamento é interessante compreender como


Rugendas interpretava a situação dos indígenas do então Império do Brasil. Baseando-se em
relatos de Jean de Léry (1536-1613) e Hans Staden (1525-1576), interpretava que, num passado
117

que precedia sua realidade, os povos originários do Brasil “estavam num estágio de civilização
mais elevado” (1979, p. 104). Para ele, então,

A fraqueza dos habitantes primitivos e as forças sempre crescentes dos invasores, por
um lado, e, por outro, os progressos da civilização entre os próprios colonos, a
suavização dos costumes, e algumas medidas sábias e benevolentes do governo,
fizeram cessar esse estado de violência e pouco a pouco conduziram o índio à sua
posição atual (RUGENDAS, 1979, p. 108).

Assim, percebia o processo da colonização marcado pelas disputas de força, além da


perpetuação da violência enquanto marca das forças da metrópole. Ao mesmo tempo que os
indígenas se enfraqueceram, também se tornaram mais ‘primitivos’, menos “civilizados”. Ao
partir disso, o que Rugendas e outros mais que compartilhavam sua cultura política viam
enquanto um estado de ‘degradação’ dos povos originários, para ele era culpa dos próprios
colonizadores, os portugueses. O artista acredita que estes haviam negligenciado sua obrigação
de ‘civilizar’ os indígenas. Ao deixarem de fazer isso, acabaram causando um processo reverso,
com a diminuição do estado de ‘civilização’ que se encontravam no início do contato com não
indígenas. Os portugueses teriam investido pouco esforço para o estabelecimento e efetividade
de reduções, Rugendas não ignora leis e regulamentos sobre isso, mas afirma que teriam sido
pouco aplicados e sem resultados efetivos. O artista também segue a perspectiva ilustrada, já
explicada aqui anteriormente, idealizando uma colonização menos violenta do que de fato
houve. Persiste também a influência de Rousseau, presente desde a virada do século XVIII para
o XIX, especialmente com os letrados que estudaram em Coimbra após as reformas ilustradas
na universidade, a exemplo de Alexandre Ferreira e outros.
Rugendas aborda igualmente aqueles indivíduos que chama de “cudinhos” (1979, p.
176), mas diferente dos demais, não lhes faz grandes valorações. Apenas as descreve como
“uma espécie de homens [...] que se fingem em tudo de mulheres” (1979, p. 176), embora soe
pejorativo com um olhar atual, naquele contexto o artista estava apenas afirmando que eram
indivíduos de sexo masculino, que performavam tais quais as mulheres de seu meio. Rugendas
ressoava o que era comum de se encontrar nas fontes daquela conjuntura. A ausência de
valorações que demonizassem essas pessoas, é curioso e reforça um caráter da racionalidade
das luzes (BRANDÃO, 2008; DOMINGUES, 2021), ao mesmo tempo que talvez destoe o
artista bávaro de outros mais próximos da ilustração portuguesa, cuja religiosidade seguia
marcada. Ainda que Rugendas, com base em sua cultura política, compreendesse a identidade
‘cudinho’ ou ‘cudina’ como um ‘fingimento’, uma espécie de teatro ou tentativa de enganar,
perante a dicotomia ‘masculino’ e ‘feminino’, não chegava a tratar esses indivíduos como
118

demônios ou pecadores inomináveis. Embora não visse os indígenas como iguais aos não
indígenas, seguindo, mais uma vez, a coerência com a cultura política na qual estava inserido,
culpou, recorrentemente, ao menos parte do que enxergou enquanto ‘problemas’ destes, às
estratégias de colonização portuguesa. Afinal, essas não seguiram os princípios da ilustração
que Rugendas acreditava serem os melhores e ideais para se atingir um objetivo, esse sim
partilhado com portugueses: ‘civilizar’ os indígenas. Perpetuava-se então a ideia do ‘eu’ sobre
‘outro’, onde o primeiro deveria agir para tornar o segundo igual a ele, pois tinha a ‘verdade’,
o caminho ‘certo’, que deveria ser seguido por todos.

2.7 Antoine Hercule Romuald Florence [Hercule ou Hércules Florence] e a Viagem


fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829

Antoine Hercule Romuald Florence, também chamado de Hércules ou Hercule Florence


nasceu em Nice, na França, em 1804 e morreu em Campinas, São Paulo, em 1879. Era filho de
Arnaud Florence (1749-1807), um médico militar que também lecionou desenho na Academia
de Belas Artes de Toulouse, e de Augustine de Vegnalys (1768-1857). Após a morte do seu
pai, sua família se mudou para Ventimiglia, na Itália e, por fim, para Mônaco onde, mais de dez
anos depois, estaria trabalhando com desenho e caligrafia, realizando serviços para grupos de
interesse locais. Florence tende a ser descrito como um curioso pelas artes e ciências, tendo um
interesse por aventuras despertado pela leitura do clássico Robinson Crusoé, de Daniel Defoe
(1660-1731). Ainda jovem, com suporte de sua mãe, teria tentado começar a trabalhar em
navios, para explorar, estudar e conhecer o mundo. Embora sua tentativa inicial não o tenha
rendido um emprego, em 1822 volta para Nice e se alista na Marinha Real Francesa e começa
a servir embarcado. No ano seguinte começa a atuar no mesmo navio que o traria ao Brasil,
onde aportou no Rio de Janeiro em 1824. Pela então capital do Império do Brasil, Florence
começou trabalhando numa loja de roupas e, após, numa livraria e tipografia cujo dono viria a
fundar o Jornal do Comércio, até ter acesso a um anúncio que Langsdorff colocou num
periódico, buscando um novo desenhista para acompanhar sua expedição, após a demissão de
Rugendas. Foi escolhido pelo barão russo, que viu com bons olhos suas aptidões ao desenho,
somado a conhecimentos cartográficos, o francês seguiria em sua viagem, de 1825 a 1829
119

(BERTELS, et al, 1988; FREITAG-ROUANET, 2013; MOURA, 1984; PEREIRA, 2016;


WANDERLEY, 2018)69.

Figura 9 – Retrato de Antoine Hercule Romuald Florence, fotografia, data desconhecida.

Fonte: ANTOINE..., [s.d.].

Florence elaborou diferentes versões acerca de seus diários de campo. Segundo


levantamento de Komissarov (1994), feito a partir de pesquisas e diálogos com descendentes
do viajante francês, há um diário de campo, produzido entre 1825 e 1829, que se encontra no

69
Além de desenhista e naturalista, Florence anos depois da expedição, já em 1833, foi inventor de um dos
primeiros métodos de fotografia da história e, por consequência, foi também um dos primeiros fotógrafos do
mundo. A ele é atribuído o registro fotográfico, que é um dos mais antigos, se não o mais antigo, de todo
continente americano (WANDERLEY, 2015, 2018).
120

arquivo do neto de Florence, Cyrillo Hercules Florence, em São Paulo, ainda inédito. Uma
variante deste documento, datada entre 1829 e 1830, segue perdida. A segunda variante, datada
do mesmo período da anterior, está armazenada no arquivo da Academia de Ciências da Rússia
em Moscou e também segue inédita. Haveria ainda uma terceira variante, francesa, datada entre
1848 e 1859, armazenada nos arquivos do trineto de Florence, Arnaldo Machado Florence, em
Campinas-SP, que chegou a ser publicada em seu idioma original, em 1907. Por fim, há uma
quarta, última e mais conhecida variante, datada entre 1855 e 1859, publicada originalmente
em português, entre 1875 e 1878.
Aparentemente não houve interesse por parte do próprio Hercule Florence em compilar
seus escritos derivados da Expedição de Langsdorff em uma única e ampla obra “oficial”. O
manuscrito da última versão citada, escrito em francês, contém a descrição da morte prematura
do também desenhista da expedição, Aimé-Adrien Taunay (1803-1827)70, foi entregue ao irmão
deste, Félix Emile Taunay (1795-1881), e ficou perdida até 1875, quando foi encontrada pelo
neto de Aimé-Adrien, Alfredo Maria Adriano d’Escragnolle Taunay (1843-1899), mais
conhecido como Visconde de Taunay.
O Visconde de Taunay pediu autorização ao próprio Florence para traduzir e publicar o
texto na Revista do IHGB com o nome de Esboço da viagem feita pelo Sr. de Langsdorff no
interior do Brasil, desde setembro de 1825 até março de 1829. Uma reedição parcial desse texto
foi publicada pela Revista do Museu Paulista em 1928. Sobre a forma de um livro nomeado
Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 e 1829, foram publicadas duas edições, pela
Editora Melhoramentos, em 1942 e 1948. Outra sairia pela Editora Cultrix em 1977. Ainda no
mesmo ano foi publicada uma tradução realizada por um bisneto de Florence, Francisco Álvares
Machado e Vasconcelos Florence, Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas Pelas Províncias
Brasileiras de São Paulo, Mato Grosso e Grão Pará (1825-1829). A versão mais atual dessa
versão dos diários de Hercule Florence, traduzidos pelo Visconde de Taunay, foi publicada pela
Editora do Senado em 2007, mantendo o nome de Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de
1825 e 1829, edição sobre a qual debruça-se a partir de agora (FREITAG-ROUANET, 2013;
MOURA, 1984; TAUNAY, 2007).
Florence cresceu e foi moldado culturalmente numa França logo após a Revolução
Francesa, com a ascensão de horizontes de possibilidades para transgredir as hierarquias sociais.
Inspirado pela literatura de sua juventude, para o francês seu futuro deveria estar associado às
aventuras e as novas descobertas. Florence chegou ao Brasil e escreveu a maior parte de seus

70
Aimé-Adrien Taunay morreu afogado ao tentar atravessar a cavalo o rio Guaporé.
121

escritos no contexto pós-independência, uma monarquia sob comando de Dom Pedro I,


Imperador de um Brasil independente, que enfrentava proeminentes forças regionais, em busca
da manutenção de seus poderes locais, naquele contexto em construção. Nesses seus anos
iniciais de Brasil, onde constituiria ampla família e morreria décadas depois, Florence não
transpareceu tão evidentemente as influências do contexto local. Este se apresentaria de modo
mais usual a partir das informações que o viajante absorveu a partir do contato com habitantes
das localidades que viajou ou com as documentações disponíveis naqueles espaços.
Nos escritos sobre os Guaicuru, Florence dá pistas de um contexto dual nas relações
entre essa etnia indígena e não indígenas portugueses e luso-brasileiros. Constrói-se a ideia de
um “rompimento de hostilidades” entre esses grupos, informação a qual já teria tido contato
previamente. Não menos importante, seria a ideia de que o fim desses conflitos foi “precedido
de traições” (2007, p. 82) por parte dos Guaicuru. Nessa passagem, a distância e a percepção
de tempo (ou a falta dela) constituem-se enquanto algo marcante: Fazia mais de três décadas
desde o Tratado de Paz de 1791. Um pouco menos que isso, se for considerado esse enquanto
um processo que foi reforçado ao longo da última década do século XVIII, com diferentes
lideranças Guaicuru. Conflitos eram antigos, ainda que recorrentemente relembrados, como o
já abordado caso associado a uma ‘traição’ desses indígenas, quando um grupo dessa etnia
atraiu soldados do Forte de Nova Coimbra para fora da proteção da fortificação para os atacar,
causando dezenas de baixas de portugueses numa realidade temporal e espacial de marcante
fragilidade de forças lusas. Esse episódio ocorreu ainda no final da década de 177071, ou seja,
cerca de meio século antes da época da terceira e última parte da Expedição de Langsdorff.
Como visto até o momento, há que se compreender esse episódio em particular como
um verdadeiro divisor de águas. O ocorrido gerou uma memória traumática que foi sendo
perpetuada por distintos não indígenas que escreveram sobre os Guaicuru, desde a época do
episódio até, ao menos, o decorrer do século XIX. A memória oral a que viajantes como
Florence tiveram acesso parece não ter perdurado um discurso sobre o causo, tal qual aquele
presente em referências das Câmaras das vilas, municípios e da província em si, ou mesmo dos
relatos de militares como Prado e Serra. Mesmo se a oralidade não fosse suficiente, há indícios
da circulação de versões de escritos dos citados militares em jornais, como O Patriota, desde a
década de 1810. A soma desses fatores transformou o episódio de 1778 num trauma
recorrentemente lembrado, ainda que muitas vezes sem clareza plena, influenciando o
imaginário sobre os Guaicuru, reforçando a ideia de serem ‘desleais’ e/ou ‘traidores’, mas

71
Vide nota 31.
122

também enfatizando sua capacidade de causar danos às forças portuguesas. Assim, tomou forma
entre os não indígenas uma espécie de trauma coletivo intrínseco ao imaginário dos Guaicuru.
Indígenas que podiam ser admirados por alguns pontos ou rechaçados por outros, sendo
recorrentemente temidos, mesmo por aqueles que nunca os viram. A simples ideia da presença
deles já era capaz de gerar uma atmosfera de insegurança, ameaça e perigo para indivíduos que
se percebiam superiores a eles.
Esse trauma coletivo gerou frutos diretos em Florence, que chegou a afirmar que:

De todos os selvagens que habitam as margens do Paraguai, são os Guaicuru os mais


numerosos. Ouvi até dizer que têm 4.000 homens com armas. Tornam-se temidos pela
deslealdade com que procedem, rompendo subitamente, no meio da paz e durante a
troca de sentimentos que parecem cordiais, relações amigáveis sem outro motivo, que
não o amor à pilhagem, o que decerto não executam sem sangue nem muitas vítimas.
Estão, com efeito, os anais de Mato Grosso cheios das traições desses infiéis (2007,
p. 83, grifos nossos).

Logo em seguida, o viajante francês desenvolve um argumento sobre o histórico de


pilhagem de guaicurus contra europeus e conclui por admitir que não sabia se essas ações
continuariam ou se, efetivamente, já haviam cessado. O trauma das décadas anteriores afetava
diretamente àquele presente; no discurso de Florence sobre os Guaicuru, passado e presente se
confundiam. É como se o trauma e a atmosfera de medo decorrente rompessem com a esperada
tentativa de uma racionalização inspirada em potenciais princípios iluministas. Florence acaba
reforçando ainda mais esse raciocínio quando mais adiante no texto, ao falar de outras etnias
indígenas, com as quais esteve pessoalmente, afirma que eles não compartilhariam da
“expressão traiçoeira e má dos Guaicuru” (2007, p. 101). Explicita que a idealização moldada
pelo temor que transgrediu a temporalidade influenciava diretamente até a concepção da
imagem, da representação física que o viajante tinha dos Guaicuru, os quais não chegou a
conhecer pessoalmente.
Florence pontua que teve contato e/ou, ao menos, sabia da existência de informações
sobre conflitos e incursões entre estes indígenas e portugueses: “estão [...] os anais de Mato
Grosso cheios das traições desses infiéis” (2007, p.83). Somado a isso, é certo que ele também
teve contato com compartilhamentos de memórias coletivas, através de habitantes, fontes orais,
pela então província de Mato Grosso. É curioso pensar que em seus raciocínios sobre os
Guaicuru, as fontes escritas parecem ter assumido um papel secundário, de modo a embasar e
legitimar a atmosfera temerosa e desconfiada que a oralidade lhe imbuíra. Isso contribuiu para
a compreensão do papel e da influência dos discursos orais sobre os Guaicuru, mesmo havendo
123

fontes escritas preservadas. Isso afetaria tanto portugueses e brasileiros, quanto mesmo os
estrangeiros. Para os limites desse texto, a maior riqueza dos relatos de Florence é o
detalhamento feito que evidencia a persistência de trauma em relação aos Guaicuru,
alimentando uma atmosfera de medo. Perspectiva preservada pelo viajante mesmo após novas
versões ou reescritas dessas suas memórias da Expedição de Langsdorff.

2.8 Francis de Laporte de Castelnau e as Expedições às regiões centrais da América


do Sul

Figura 10 – Retrato de François Louis Nompar de Caumont LaPorte, conde de Castelnau,


desenho, antes de 1847.

Fonte: M. LE..., [antes de 1847].


124

François Louis Nompar de Caumont LaPorte, também chamado de François Laporte,


Francis de Laporte de Castelnau ou Francis de Castelnau, conde de Castelnau, nasceu em
Londres, na Inglaterra, em 181072 e faleceu em 1880, em Melbourne, na Austrália. Era filho da
elite francesa, sua mãe Louise-Joséphine de Caumont (1769-?), refugiada na Inglaterra (pós-
Revolução Francesa), se envolveu com o então príncipe, futuro rei da Grã-Bretanha e Irlanda73,
George IV74 (1762-1830), na época casado com sua prima, Carolina de Brunsvique (1768-
1821), mais tarde rainha consorte75. Filho ilegítimo, as relações de Castelnau com a nobreza
europeia, especialmente inglesa e francesa, ao longo de sua vida, lhe renderam contatos com
naturalistas famosos, como Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853)76, vindo a ser um dos
fundadores da Sociedade Entomológica Francesa (COSTA, 2014; PORRO, 2013).
Castelnau ficou conhecido como explorador e naturalista, seu primeiro destino de
viagens foram as regiões da América do Norte, pelas quais passou entre 1837 e 1841. Dessa
expedição resultaram, ao menos, dois livros: Histoire naturelle des animaux articulés, datado
de 1840 e Essai sur le sistème silurien de l’Amérique septentrionale, de 1843. Regressado à
França, onde morava, foi incentivado pela coroa local, contando inclusive com apoio financeiro,
a organizar uma expedição à América do Sul. Nessa época, o Brasil se encontrava em voga pela
Europa e era do interesse da elite francesa a expansão de suas influências mercadológicas,
políticas e religiosas na região. Dentre 1843 e 1847 Castelnau viajou pelo Brasil, Bolívia e Chile
(do Rio de Janeiro para Lima e de Lima para o Pará), estudou e recolheu informações sobre
distintos tópicos, como a geologia, fauna, flora, clima e as ‘raças’ das pessoas daqueles espaços.
O inglês de berço e nobre francês, passou a analisar e compreender da melhor forma que lhe
fosse possível o ‘Novo Mundo’, que seguia despertando a curiosidade e os interesses de
múltiplas metrópoles europeias. Dentre os principais nomes que o acompanharam nessa
expedição estão o visconde e engenheiro de minas, Eugène d’Osery (1818-1846), o zoólogo e
preparador de História Natural do Museu de Paris, Émile E. Deville (1824-1853) e Hugh A.

72
Há diferentes propostas para o ano de nascimento de Castelnau. A que aparece mais recorrentemente nos
trabalhos consultados é 1810, há, no entanto, menções aos anos de 1802 e 1812.
73
Castelnau era então primo bastardo da futura rainha Vitória do Reino Unido (1819-1901).
74
Aportuguesado, recorrentemente, como Jorge IV.
75
Esse casamento parece ter sido motivado por pressões da parte do pai de Jorge, porém ambos viveram a maior
parte do mesmo separados, cada um possuindo seus próprios amantes. Castelnau se encaixaria então como um
dos filhos ilegítimos, de importantes membros da nobreza francesa.
76
Também nomeado como Augustin François César Prouvençal de Saint-Hilaire.
125

Weddell (1819-1877), médico e botânico (MORAES; COSTA, 2016; PRADO, 2014; COSTA,
2014; PORRO, 2013; SILVA et al, 2014)77.
Regressou mais uma vez à França, em 1848, já com planos para que fossem publicados
os textos derivados dessa última expedição. Foi nomeado cônsul francês em Salvador, onde se
estabeleceria. Da expedição à América do Sul, Castelnau publicou uma ampla obra em seis
volumes escritos em francês, lançados entre 1850 e 1851 em Paris, na qual o Brasil é tratado
apenas em parte dos tomos78. Mais tarde foram lançados ainda outros volumes contendo
quadros descritivos, pranchas e mapas de materiais coletados, observações e/ou ilustrações. Em
1862 o viajante regressou à França e, posteriormente, foi enviado para serviços diplomáticos
em países do Oriente, faleceu em Melbourne, na Austrália, em 1880 (PRADO, 2014; PORRO,
2013).
Um século após o original em francês, a Companhia Editora Nacional publicou, dentro
da série Brasiliana, uma tradução da parte dos escritos de Castelnau sobre o Brasil. Esta versão,
porém, ignora a introdução da obra original, assim como parte dos escritos sobre a região
amazônica e do material linguístico levantado. É possível que o ocorrido se deva por estes
estarem contidos no quinto volume da obra original, separados da maior parte dos escritos sobre
o Brasil. Já no ano de 2013 foi publicado um artigo que finalmente apresenta esse conteúdo da
obra original traduzido para o português (PORRO, 2013). São nos recortes que abordam a
região do então Mato Grosso, onde aparecem as menções aos Guaicuru, disponíveis na tradução
incompleta posteriormente reimpressa por outras editoras, como a Itatiaia em parceira com a
Editora da Universidade de São Paulo, versão na qual se apoia a presente análise.
Castelnau era um homem de seu tempo, cresceu, estudou e se desenvolveu no século
das luzes. O viajante apresenta traços de uma cultura política marcada pelo iluminismo, tendo
em seu horizonte a intencionalidade de uma racionalidade. Somado a isso havia a compreensão
de uma ligação intrínseca entre o ser humano e a natureza, demonstrando também a influência
de escritos de Charles-Louis de Secondat, mais popularmente conhecido como Montesquieu
(1689-1755), em sua compreensão do ‘Novo Mundo’, a exemplo da ideia de que a temperatura
de um local afetava os potenciais e demais características de um ser humano que lá vivesse.
Ainda assim, sem se chocar com os anteriores, mas confluindo com estes, havia também traços

77
Deveria, como de praxe, haver também um desenhista na expedição, mas este desistiu à véspera da viagem.
Os registros visuais ficaram a cargo dos demais membros da empreitada, em especial, Wedell e o próprio
Castelnau.
78
Encontrei referências tanto afirmando que o Brasil seria tratado apenas nos dois primeiros volumes e em parte
do terceiro (PORRO, 2013) quanto que não seriam apenas nestes, mas todos os quatro primeiros tomos
(CAMPOS, 2012).
126

de romantismo, reconhecendo a importância de características psicológicas e históricas nos


indivíduos de seu tempo (PRADO, 2014). Como resultado, esse homem em seus processos
plurais, apresenta a mesma dualidade de compreensão de mundo, de leitura da cultura política
alheia, que a maioria dos demais viajantes que passaram pelas terras do então Império do Brasil.
Assim como seus contemporâneos, lê a realidade a partir de dicotomias como ‘bem’ e ‘mal’,
‘escuridão’ ou ‘barbárie’ e as ‘luzes’; ‘civilizado’ e ‘selvagem’, o ‘Novo Mundo’ e o ‘Velho
Mundo’.
Ao pensarmos no contexto vivido por Castelnau em comparação com os demais
viajantes e pesquisadores que tiveram seus escritos analisados nesse capítulo, há de se pontuar
uma considerável passagem de tempo da Expedição de Langsdorff e a viagem pelo Brasil do
inglês de berço francês. A última expedição começou quinze anos após o fim da empreitada
encabeçada pelo barão russo. Havia um novo cenário, vivia-se o início do Segundo Reinado,
com o jovem Dom Pedro II. As publicações de seus escritos em francês, no início da década de
1850 foram lidas por intelectuais relevantes naquele processo de construção em andamento,
marcadamente, temos os membros do IHGB, com pouco mais de uma década de existência, se
consolidando e contando com apoio direto do Imperador.
Embora bem recebidos pelo público europeu, os escritos de Castelnau sobre as partes
centrais do então Império sofreram pareceres negativos de diferentes atores sociais do Império
do Brasil. Houve críticas, como de militares daquelas mesmas regiões, atritando com o
nomeações de cursos d’água, que o inglês de berço e nobre francês acreditava estar
‘descobrindo’, mas que outros defendiam que outros já tivessem o feito antes e escrito sobre.
Além disso, Castelnau escreveu sobre riscos e perigos de se navegar num rio entre as então
províncias do Pará e de Goiás, afetando potenciais empreendimentos na região. A partir disso
surgiram críticas à interpretação do viajante sobre o Brasil central, região na qual descreveu
perigos e decadências.
De certa forma, parte dos escritos de Castelnau atrapalha projetos de integração
econômica da região. E, como visto anteriormente, estes já apresentavam dificuldades, a
exemplo da logística, por si só. Somado a isso também havia críticas publicizadas de membros
do IHGB em relação à construção nacional do Brasil a partir do discurso deste viajante. Com
singularidades aos incômodos de atores regionais, houve acusações de que Castelnau inventaria
fatos, apresentaria pretensas descobertas, que na realidade já eram conhecidas. É tido como
foco de injúrias, contradições e mentiras sobre o Brasil. As acusações afirmaram que o viajante
teria cometido equívocos, tanto históricos quanto geográficos, em seus escritos. Nesse mesmo
127

contexto já havia crescentes interesses do IHGB em constituir sua própria expedição pelo
Brasil, buscando romper com viajantes que considerava de má-fé, tal qual Castelnau. Suas
críticas ao Brasil central e o apontamento do que interpretou como processos de decadência
desagradou os grupos sociais da elite imperial que compunham o IHGB, dificultando planos
que idealizavam oportunizar que nacionais viajassem para estas regiões e que estes mesmos as
descrevessem (CAMPOS, 2012; PRADO, 2014).
Recortando os escritos de Castelnau sobre os Guaicuru, não há tanto material a ser
analisado, sendo pouco inovador. Como era de praxe entre os homens de seu tempo, se referiu
a esses (e outros mais) indígenas múltiplas vezes como “selvagens” (2000, p. 366, 371, 372,
375, 407)79. Transpareceu ainda, de modo muito mais sutil que Florence, algum temor em
relação aos Guaicuru, o qual parece ter desenvolvido a partir das advertências e outros diálogos
que estabeleceu com não indígenas na região do então Mato Grosso. Na verdade, fica explícito
que esse receio era compartilhado por homens de ambos os lados do rio Paraguai. Voltando de
uma tentativa, malsucedida, de obter autorização para adentrar o país com nome homônimo ao
curso d’água, Castelnau narrou o medo de dois soldados que faziam a sua escolta:

A cada momento davam sinal de alerta e em cada moita de capim do Chaco, parecia-
lhes ver um guaicuru pronto para o ataque. A perfeita tranquilidade dos nossos índios
Guanás, que dormiam profundamente, formava singular contraste, aliás bem pouco
lisonjeiro para a raça branca (CASTELNAU, 2000, p. 386).

O decorrer dos escritos de Castelnau sobre a região central do então Império do Brasil
ilustra um cenário em que, nesse então já quase meados do século XIX, quando realizava sua
expedição, persistia pelos entornos do Chaco e do Pantanal, sem respeitar limites imaginários
estabelecidos por não indígenas, o temor ao indígena Guaicuru. Essa atmosfera de tensão era
mantida por distintos e, por vezes, rivais atores geopolíticos, como paraguaios e brasileiros.
Absorvida pelos viajantes como Castelnau, Florence e outros que vieram antes e depois, cujas
obras influenciaram em diferentes medidas as visões internas ou externas sobre aquela nação
em processo de construção.
Comentando sobre seu retorno a uma aldeia do subgrupo Guaicuru, nomeado de
Kadiwéu, Castelnau afirmou em momentos anteriores de seus escritos, serem esses mais
bárbaros que outros subgrupos, apresentando o seu momento mais crítico em relação a esses

79
Ponto curioso é que Castelnau pontua um particular e marcante estado de “selvageria” por parte do subgrupo
Guaicuru nomeado de Kadiwéu, também grafados como Kadiwéus. Como já apresentado no início do primeiro
capítulo, seriam estes o único subgrupo Kadiwéu que teria sobrevivido e se perpetuado ao longo do século XIX,
resistindo até ao tempo presente.
128

indígenas. Eles pareciam estar desenvolvendo cada vez mais um comportamento sedentário,
resultado da dependência em relação às trocas comerciais com brasileiros, no tocante aos quais
apresentavam algum grau de sujeição. O propulsor fundamental para esse processo, era a
“paixão pela aguardente” (2000, p. 407), bebida de elevado teor alcoólico, destilada a partir da
cana-de-açúcar ou outros vegetais. Castelnau defende que esta derivaria de uma “funesta
inclinação” (2000, p. 407) dos Guaicuru, ou seja, um ímpeto, à agonia e a morte, que resultaria
não apenas na mudança de seu estilo de vida, como também venda de elementos que eram
essenciais a sua vida nômade, como armas e cavalos.
O viajante afirma ainda que “só os ministros da religião são capazes de civilizar os
povos selvagens sem recorrer ao engodo ilusório da desmoralização” (2000, p. 407). Essa curta
afirmação é bastante rica e sinaliza, por exemplo, a perpetuação de uma crença vista desde Serra
e mesmo antes deste, de que seria necessária intervenção divina, segundo Serra, e/ou de seus
agentes no plano terreno; segundo Castelnau, para uma idealizada conversão e civilização dos
Guaicuru aos moldes da cultura política dos colonizadores europeus. A curta citação dá pistas
de que Castelnau compreendia aquela situação como um processo de civilização malfeito. Em
outras palavras, um processo de imposição da cultura política cristã europeia, que teve que
recorrer ao vício no álcool, algo tão criticado por sua moralidade, para que parecesse
‘funcionar’.
É interessante perceber que o processo de civilização tão idealizado pelos portugueses,
espanhóis e outros colonizadores mais, intencionava um resultado tal qual idealizaram em seus
discursos. Estes, na prática, instrumentos violentos, ferramentas que serviram a finalidade de
propagar, impositivamente, a cultura política sobre a qual estava qualquer outra que destoasse.
Os ibéricos assim como os demais colonizadores, queriam indivíduos que perpetuariam a
cultura política cristã presente em seus discursos, muito mais do que aquela atingida por suas
ações, repleta de vícios e outras coisas mais que afirmavam malquistas. Não queriam que o
indígena se tornasse o não indígena da realidade, mas sim os dos discursos, algo que nem estes
mesmos conseguiram, embora jamais admitissem. Implicitamente há, por consequência, uma
crítica não tão explícita à colonização portuguesa e, mais ou menos diretamente, à nascente
nação brasileira.
Um último ponto das pontuações de Castelnau que se conecta com escritos de outros
viajantes e pesquisadores anteriores, é a inserção dos Guaicuru na economia, seja colonial ou
imperial. Se em fins do século XVIII e início do XIX isso ainda era um processo em fase inicial,
aparentemente, ao longo dos Oitocentos foi se tornando mais efetivo e intrínseco em
129

comunidades indígenas da região80. Curioso pensar também que, seguindo a perspectiva de que
a maioria dos subgrupos Guaicuru se extinguira ao longo dos séculos XIX81, foram justamente
os kadiwéu, descritos por Castelnau, ora enquanto marcadamente ‘selvagens’, ora enquanto
bebuns desmoralizados, aqueles que se perpetuaram após aquele século e o mesmo até o
presente. Se os demais subgrupos se integraram com outras etnias e pararam de se afirmar como
os Guaicuru ou as mortes decorrentes de atritos com fazendeiros e a Guerra da Tríplice Aliança
(1864-1870) foram os responsáveis pela descontinuidade dos demais subgrupos Guaicuru,
ainda não é claro. Espera-se que futuras pesquisas contribuam para o melhor esclarecimento
dessas incertezas.
Antes de encerrar esse subtópico, há de se esclarecer que existem pesquisas prévias que
apontam toques de romantismo em sua escrita, principalmente ao abordar a natureza brasileira
(PRADO, 2014). Nesses momentos o ‘maravilhoso’ se sobrepuja à uma escrita bem menos
‘apaixonada’. Essa escrita romântica, definitivamente, não se estendeu aos escritos sobre os
Guaicuru. De fato, a página onde escreve sobre a questão do vício em aguardente parece
sinalizar um antagonismo a esse romantismo, ainda que pontual. O viajante tinha uma
perspectiva dual na sua interpretação sobre o Brasil: por um lado se via maravilhado por
elementos da paisagem natural brasileira, do outro, via com maus olhos os diferentes elementos
e realidades em si, numa espécie de projeto de colonização malfeito e decadente. Elemento este
que ajuda a compreender ao menos parte das críticas que recebeu de diferentes elites intelectuais
do Brasil associadas ao IHGB e aos seus projetos de integralização nacional e fundação de uma
nação. Não é demais lembrar que o IHGB pretendia romper com o projeto colonial, mas apenas
naquilo que lhes fosse interessante.

2.9 Bartolomé Bossi e a Viagem pitoresca pelos rios Paraná, Paraguai, São Lourenço,
Cuiabá e o Arinos

Nascido em Génova em 1819, antes da unificação italiana, Bartolomé Bossi e sua


família se mudaram para a cidade argentina de Buenos Aires em 1835, quando Bossi tinha
dezesseis anos. Segundo Kátia Hartmann (2011), a motivação dessa partida não é explícita, mas
possivelmente estava associada a instabilidade política na região, somada a uma precária saúde
pública e riscos de doenças. Em 1836, Bossi completou seus estudos náuticos que havia iniciado

80
“Indígenas” e não apenas “Guaicurus”, pois era comum a convivência de diferentes etnias nesses mesmos
espaços.
81
Sobre esse assunto ver o primeiro capítulo, em especial o primeiro subtópico.
130

no ano anterior na Universidade de Buenos Aires. Após, serviu na marinha do Uruguai até 1841.
No ano seguinte, com vinte e dois anos, o genovês estabeleceu uma associação com um
compatriota de nome Camuriano e fundaram a Companhia de Navegação Rioplatense. A
Companhia possuía embarcações próprias e prestava serviços de transporte de pessoas e
mercadorias entre o Império do Brasil e as Repúblicas da Argentina e Uruguai. Como se pode
perceber, ainda que tenha nascido na Europa, boa parte do desenvolvimento de Bossi se deu
por terras da América do Sul. Pela região ele estabeleceu vínculos comerciais produtivos.
Empresário bem-sucedido aumentou ainda mais suas ligações na região ao se casar com
Carolina Cáceres, proveniente da elite de Buenos Aires. Entre viagens e estadias momentâneas
no estrangeiro, Bossi partiu da América do Sul definitivamente apenas em 1885, falecendo em
1890 em Nice, na França (HARTMANN, 2011).

Figura 11 – Retrato de Bartolomé Bossi, fotografia, 1883.

Fonte: C. B..., 1883.


131

Vinte anos se passaram, do estabelecimento da companhia de navegação para a


constituição da expedição do genovês pelo Brasil, a qual durou apenas alguns meses, tendo
Bossi zarpando de Montevidéu com destino a então província do Mato Grosso. A empreitada
durou de março a setembro de 1862. O objetivo era colher informações sobre a fauna, a flora e
as diferentes populações daqueles espaços, tendo em seu horizonte os potenciais laços
comerciais das terras do Brasil central e seus interesses. Visava investir, tanto para navegação
comercial e transporte local quanto para, por exemplo, intermediar a chegada de imigrantes
europeus nesse território (HARTMANN, 2011).
Para arcar com os custos da empreitada Bossi despendeu de seus próprios recursos
financeiros, mas também houve apoio da elite mato-grossense. Em relatório datado de 1863 o
então presidente da província de Mato Grosso, Herculano Ferreira Penna (1800-1867),
menciona sua confiança em relação à expedição, assim como seus potencial agregador à
província e ao Império, expressando seu apoio a mesma, sem, no entanto, deixar explícito se a
patrocinou financeiramente diretamente ou não (PENNA, 1863). De toda forma, o Presidente
da província forneceu mais de uma dezena de soldados para acompanhar a expedição que
contava ainda com cerca de quarenta voluntários, e que passou a percorrer propriamente os
territórios pretendidos em junho de 1862.
Bossi dedica sua obra ao político e empresário, Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de
Mauá (1813-1889), faz ainda acenos a figuras ilustres da região, como Penna, evidenciando seu
interesse em agradar as mesmas e corrobora para que pesquisas sobre esse viajante defendam
que houve patrocínio de forças do Império à sua expedição (HARTMANN, 2011). As
motivações voltadas a aproximação com políticos importantes somam-se aos interesses de
incentivos migratórios de europeus para a região, os quais também eram compartilhados por,
ao menos, parte da elite regional. Tanto para os seus interesses comerciais quanto para os grupos
de poder e mesmo os potenciais imigrantes, num discurso que enaltece as potencialidades de
Mato Grosso agregador.
Após a expedição, Bossi deslocou-se para a cidade de Paris, na França e já em 1863
publicou o relato da expedição em espanhol, como título original de Viage Pintoresco por los
rios Paraná, Paraguay, Sn Lorenzo, Cuyabá y El Arino tributário Del grande Amazonas con
La descripcion de La Provincia de Mato Grosso bajo su aspecto físico, geográfico,
mineralojico e sus producciones naturales. A preferência pela língua de origem hispânica,
frente ao idioma materno, reflete seu particular interesse em atrair imigrantes espanhóis e
franceses (HARTMANN, 2011). Sua estadia na Europa tinha por objetivo chegar diretamente
132

em seu público-alvo, mas, o início da Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) no ano seguinte
atrapalhou diretamente seus planos.
A obra só foi publicada em português de forma integral em 2008 pela Editora do Senado
Federal, sobre o nome de Viagem pitoresca pelos rios Paraná, Paraguai, São Lourenço, Cuiabá
e o Arinos, esta que é a versão aqui referenciada para citações. Há de ser mencionado, porém,
que houve publicações de traduções para o português de parte dos escritos em diferentes
periódicos, de mais de uma província do Brasil, ainda na década de 186082.
Bossi não dá nenhuma pista de ter tido um encontro pessoalmente com os Guaicuru,
logo seus escritos parecem tomar por base diálogos com moradores e outros indivíduos que
encontrou durante sua viagem e/ou na pesquisa e preparação para ela. O genovês não se ateve
tanto sobre os Guaicuru, mas nem por isso deixou de abordar aquela famosa etnia indígena. Há
certa dualidade em sua descrição sobre esses indígenas: num momento inicial os descreve como
membros de uma “tribo muito guerreira e audaz”, mas que ainda assim seriam “bárbaros”
(BOSSI, 2008, p. 39). Nessa parte o genovês narrou um atrito entre indígenas e não indígenas
e, após as citadas adjetivações, enaltece um específico indígena Guaicuru, inominado, que teria
tido um comportamento diferenciado, abrandando seus companheiros, que decidiram então não
só pela piedade, como também por guiar aqueles não indígenas antes em risco. Nesse rápido
discurso que parece inspirar-se no romantismo das histórias sobre indígenas brasileiros daquele
contexto, Bossi apresenta a dualidade dentro daquela etnia como algo que ilustrava um
potencial positivo, ‘civilizacional’ de rompimento da tal ‘barbaridade’ tão recorrentemente
associada aos Guaicuru desde o início da colonização ibérica pelo Chaco Sul-americano. Se em
viajantes anteriores fica evidente o temor a perpetuação de traumas, aqui os interesses pessoais
comerciais do genovês contribuíram para uma narrativa que afastou “problemáticas”, focando
nas belezas, potencialidades e esperanças sobre a província de Mato Grosso.
Os elogios a autoridades locais e ao governo Imperial também se fazem presente, o que
leva a pesquisa em construção a corroborar com trabalhos prévios, na perspectiva de que Bossi
pretendia agradá-la (HARTMANN, 2011). Acrescenta-se que esse aceno se dava inclusive na
abordagem com que essas trabalharam suas relações com os indígenas locais. Destoando
particularmente do viajante analisado anteriormente, Castelnau, Bossi afirma: “O governo

82
Um curioso exemplo seria o do Diário do Rio de Janeiro, que publicou trechos nas suas edições de números
24 a 28, em 1865. Há uma introdução colocada antes do início do primeiro excerto, onde são traçadas
comparações entre a província do Mato Grosso e o continente africano, buscando realçar e comparar à um
caráter de exotismo e pouco conhecimento sobre aqueles distintos territórios. Ocorre também uma crítica ao
governo pela falta de informações popularizadas sobre a província do Brasil central. De toda forma, a escrita é
um tanto confusa e, no geral, marcadamente floreada (DIÁRIO..., 1865, n. 24).
133

brasileiro sempre pronto a recompensar as ações generosas, prodigou suas cortesias aos índios
e os cumulou de presentes, concedendo a honrosa patente de capitão ao iniciador daquela
louvável ação a que deviam a vida seus súditos” (BOSSI, 2009, p. 39).
Algo semelhante com distintas fontes já analisadas, inclusive as datadas desde o final
do século XVIII, é o enaltecimento da saúde dos Guaicuru. Mantém-se a linha de afirmar que
os Guaicuru teriam uma boa estatura e formação muscular forte, que doenças seriam raras
naquele povo, assim como deformidades físicas. O contexto e os explícitos interesses de Bossi
talvez tenham trazido essas descrições pensando também num potencial desses indígenas
enquanto mão de obra para novos empreendimentos na região. Castelnau já colocara, duas
décadas antes, que grupos Guaicuru estavam cada vez mais sedentarizados e dependentes de
uma integração a economia Imperial, somado a isso, pesquisas abordando a transição do século
XIX para o XX reforçariam essa perspectiva, colocando os Guaicuru, em especial seu subgrupo
Kadiwéu, enquanto, ao menos em certa medida, integrados à economia regional. Que fique
claro, porém, que essa aproximação em nenhuma medida significa a ausência de ‘novos’ atritos
entre indígenas e não indígenas (BORGES, 2022).
Corroborando com Castelnau, Bossi aponta o apreciar dos Guaicuru por bebidas
alcoólicas, mas, diferente do predecessor não classifica esse gosto como algo ruim. O que não
quer dizer que não houve outras críticas aos Guaicuru, pois essas existiram. Se nas primeiras
descrições que fez sobre esses indígenas foi menos crítico que a maioria dos que antes
escreveram ao longo daquele século, isso teria por exceção a parte em que descreve o “caráter”
dos membros daquela etnia: “No caráter destes índios predomina a soberba, olham com o mais
alto desprezo as demais tribos; professam um ódio visceral aos paraguaios e são muito
partidários dos brasileiros” (BOSSI, 2008, p. 42). O genovês, seguindo a linha de tantos outros
antes dele, aponta o orgulho étnico dos Guaicuru, porém, se no passado já foi realçado que este
brio culminou nesses indígenas se considerarem superiores, tanto a outros indígenas, quanto
aos não indígenas, aqui o foco ficou na projeção de uma superioridade em relação aos primeiros.
O “ódio” dos Guaicuru aos não indígenas não estaria mais voltado a todos os ibéricos, mas
apenas aos espanhóis. Dentre os brasileiros os Guaicuru eram “muito partidários” (BOSSI,
2008, p. 42). Nesse ponto se reforça tanto a aproximação desses indígenas aos brasileiros e o
distanciamento em relação aos paraguaios cujo atrito voltava a efervescer83, quanto o potencial
desses indígenas aos interesses brasileiros na região, parte desses alinhados aos do próprio
empresário que escrevia essas passagens.

83
Ponto a ser melhor desenvolvido no terceiro capítulo desta dissertação.
134

Por fim, sem ignorar o trauma regional perpetuado décadas antes de seu tempo, Bossi
também menciona sobre o episódio de atrito entre portugueses e guaicurus que aconteceu no
entorno do Forte de Coimbra no final da década de 1770. Enfatizou, porém, que após ele, não
teriam existido novos conflitos entre portugueses, luso-brasileiros e brasileiros e grupos daquela
etnia84.
Bartolomé Bossi ora se aproxima, ora destoa de outros viajantes prévios a ele, e isso
não aconteceu apenas por estar num contexto histórico separado algumas décadas daqueles. Há
de ser pontuado que, embora europeu, Bossi passou a maior parte da vida na América do Sul,
em especial na Argentina. Destoando de súditos de monarcas do ‘Velho Mundo’, o genovês era
um empresário de sucesso que buscava a expansão de seus negócios. Seus interesses, tanto de
potencial desenvolvimento econômico do Brasil central, quanto de incentivar isso a partir da
imigração europeia se alinhavam a interesses e planos que ganhavam força, tanto na
mentalidade de elites locais como na de outros espaços do Império também. Seu público-alvo
também era bem direcionado, queria agradar tanto essa elite brasileira, em especial do Mato
Grosso e ou que sobre aquela região tivesse interesse quanto potenciais imigrantes que seriam
atraídos por seus discursos. Nesse contexto, os Guaicuru são descritos de forma mais branda do
em outras obras prévias e se realça sua parceria e integração ao nascente Brasil.

2.10 Entre interesses, dualismos e disputas sutis: discursos acerca de indígenas


Guaicuru em escritos de viajantes e cronistas

É desafiador refletir sobre a pluralidade dos escritos analisados ao longo deste capítulo.
Portugueses, bávaros, franceses, ingleses e até um genovês, alimentaram a efervescente
curiosidade dos europeus não apenas num ‘Novo Mundo’ litorâneo, mas também nas tão pouco
lembradas terras do Brasil central. O recorte temporal deste capítulo acaba por ser o mais longo
dessa dissertação: Ferreira começa a expedição em 1783 e Bossi publica seu livro, aqui
analisado, em 1863. Nesses 80 anos atravessaram-se as últimas décadas do Brasil enquanto
colônia portuguesa, passando por capital do Império português e ainda pelo status de reino
unido à Portugal e Algarves, para, em 1822, assumir o lugar de país independente. Interesses

84
O que não era verdade, embora Bossi não necessariamente soubesse disso. De toda forma, corroborou com os
interesses perpetuados no seu discurso. Vale mencionar que outros conflitos seriam, por muito tempo, bem
diferentes dos confrontos bélicos de séculos anteriores. Em especial, após a Guerra da Tríplice Aliança (1864-
1870) começam a se tornar mais presentes conflitos por terras da região. Esse movimento seguiria no século XX,
com conflitos, esses sim, inclusive violentos entre fazendeiros (e forças do Estado em favor destes) e guaicurus.
No atual século essas desavenças seguem presentes (BORGES, 2022).
135

coloniais do século XVIII não apresentaram tantos choques, muitas vezes é possível reconhecer
até mesmo continuidade em relação ao projeto de formação nacional brasileira perpetrado pela
elite intelectual, fortemente vinculada ao IHGB, que tomou forma em meados do século XIX.
Muito ricas, plurais e ainda passíveis de um sem-número de possibilidades de pesquisas
e interpretações, buscou-se no presente texto foco sobre os recortes dos discursos de não
indígenas a respeito dos Guaicuru. Agora, seguir-se-ão, individualmente, sínteses sobre parte
das percepções a respeito de cada um dos autores dos escritos analisados ao longo deste capítulo
para apresentar-se um conjunto de argumentos gerais, que relacionem todo este corpo
documental.
Alexandre Rodrigues Ferreira apresenta um otimismo único em relação ao sucesso de
uma redução de indígenas Guaicuru, no entorno do Forte de Coimbra. Há elogios ao trabalho
exercido pelo então comandante do Presídio, Joaquim José Ferreira, talvez por ter bem recebido
o viajante e ter-lhe proporcionado alguns auxílios, além de mediar o contato com a comitiva
Guaicuru. De toda forma, Ferreira constrói um discurso que agrada à Coroa portuguesa. O mais
polêmico que escreveria sobre os Guaicuru seria o enaltecimento dos indígenas, e a crítica aos
não indígenas a respeito da escravização. O português seguia a linha de outros ilustrados antes
e depois de si, conforme será apresentado.
Robert Southey traz um elogio particular ao tratamento que os Guaicuru davam às
mulheres por eles capturadas em suas investidas e pilhagens, mas não deixa de trazer clássicas
críticas também, como a de caracterizar esses indígenas enquanto traiçoeiros. Se em Ferreira
houve um atípico otimismo em relação ao sucesso do processo de civilização dos Guaicuru,
Southey já segue o padrão mais recorrente dentre os escritos da época: a descrença. Constrói
seu argumento sobre essa perspectiva culpabilizando os próprios indígenas e os ditos ‘vícios
morais’ que estariam intrínsecos à sua cultura política ‘selvagem’.
Manuel Aires de Casal apresenta-se como já estabelecido historiograficamente, num
compilador de informações escritas, as quais teve acesso para produzir sua própria obra. Traz
uma raríssima descrição desses indígenas enquanto indivíduos de estatura mediana, rompendo
com as descrições de enaltecimento de seu elevado e poderoso porte físico. O padre perpetuou
as mais comuns críticas aos Guaicuru: ‘soberbos’, indivíduos orgulhosos que se consideravam
superiores aos outros indígenas e não indígenas.
Carl Friedrich Philipp von Martius não inova na descrição dos Guaicuru, mantendo as
comuns descrições físicas e críticas. Inclusive, citando como fonte, nomes aqui já mencionados
anteriormente. Sua maior contribuição aos discursos sobre os Guaicuru é o mesmo que aos
136

indígenas no geral: a difusão da ideia de que os indígenas estariam caminhando para um ‘fim’,
uma ‘extinção’. Para Martius o processo de formação de uma memória nacional brasileira
deveria levar em conta a raiz daquele povo, o que para ele era interpretado como a miscigenação
de brancos (europeus), negros (africanos e seus descendentes) e indígenas. Tendo em
perspectiva de que seria o fator europeu dessa mistura que se sobreporia, dado o que
interpretava como uma superioridade natural e intrínseca a esses indivíduos que se apresentam
como ‘civilizados’.
Johann Moritz Rugendas segue a linha de descrever os Guaicuru como superiores aos
demais povos indígenas e traz uma das menções à ‘cudinas’ ou ‘cudinhos’ menos críticas dentre
as fontes analisadas. O mais interessante é sua crítica à colonização portuguesa, o qual
possivelmente ajuda a explicar o fato de seu trabalho ter sido negligenciado pela
intelectualidade brasileira por muito tempo.
A maior contribuição de Antoine Hercule Romuald Florence a esta dissertação está na
reprodução que constrói de uma atmosfera de medo em relação aos Guaicuru. Esta
aparentemente muito influenciada pelos relatos orais que teve na região do então Mato Grosso,
teria dois pontuais resultados na sua escrita: primeiramente o reforço da descrição dos Guaicuru
como ‘traiçoeiros’ e pouco confiáveis, com uma espécie de ‘maldade’ que ficaria explícita
desde sua fisionomia; Em segundo lugar, passado e presente se confundindo no que tangia
aqueles indígenas, sobrepondo o temor que absorveu pela oralidade aos escritos, circunscritos
temporalmente, que teve potencial contato em sua viagem.
Francis de Laporte de Castelnau apresenta críticas não tão explícitas à colonização, tanto
a portuguesa, quanto ao processo ‘civilizacional’ brasileiro. Ainda assim, consegue gerar
incômodos tantos nas elites regionais das províncias do Brasil central quanto da intelectualidade
associada ao IHGB. Isso contribuiu para que sua obra fosse discutida e publicizada. Ponto
interessante também é que Castelnau acaba ilustrando um cenário com uma crescente inserção
dos Guaicuru na economia regional, o que demonstraria algum resultado de projetos que
vinham desde o século anterior naqueles espaços.
Os escritos do último viajante analisado, Bartolomé Bossi, evidenciam seus interesses
econômicos de modo pouco sutil. O viajante realiza acenos diretos, não só à elite local, mas
também ao Barão de Mauá. Não é surpreendente descrever um belo cenário na região, com
muitas potencialidades. Isso afeta também sua perspectiva sobre os Guaicuru, que acaba sendo
consideravelmente positiva.
137

A partir da análise do todo desse conjunto de documentos, dá-se margem também para
algumas interpretações gerais:
1º) Desde o século XVI já havia um consenso sobre a necessidade de se civilizar todos
os grupos indígenas e os Guaicuru não foram exceção. Somado a isso, além de Ferreira e, talvez,
Bossi, todos os demais viajantes, militares e cronistas vistos até agora nesta dissertação
interpretam que o processo civilizacional, primeiro português, após luso-brasileiro e brasileiro,
não foi efetivo ou, ao menos, não funcionou da forma idealizada. Existem, porém, diferentes
interpretações sobre a “culpa” disso, se seria dos indígenas e de sua intrínseca “corrupção
moral”, argumento propagado desde Serra, ou se a problemática estaria na colonização local,
como trouxeram, mais ou menos explicitamente, Rugendas e Castelnau;
2º) As críticas aos Guaicuru são universais, nem que se limitassem aos adjetivos de
‘bárbaros’ e/ou ‘selvagens’, como era de se esperar dos não indígenas dos Oitocentistas sob
influência da cultura política europeia da época. As críticas mais específicas aos Guaicuru iriam
por dois caminhos que não se opõe, necessariamente, mas regularmente se somam:
Primeiramente, serem considerados ‘soberbos’, ‘orgulhosos’, por se considerarem superiores a
outros indígenas e, mesmo, aos não indígenas; segundo, sua associação a ideia de ‘traiçoeiros’,
pouco confiáveis e guiados apenas pelos próprios interesses. Ainda assim, as críticas mais
contundentes eram, ora aos abortos, ora às cudinas. Sendo que quando estas eram mencionadas,
à exceção de Rugendas, a elas cabia a ideia de pecado ‘nefando’.
3º) Numa associação direta ao ponto anterior, há o marcado dualismo ao se referir aos
Guaicuru. Esta ora são descritos como, no mínimo, indivíduos poderosos, recorrentemente
‘superiores’ aos demais povos originários, ora são ‘bárbaros’, ‘selvagens’ não civilizados. O
ponto central aqui é que isso se constrói como uma dualidade, não uma contradição. Ambos os
aspectos estão presentes nas mesmas construções discursivas.
4º) A influência de aspectos da ilustração se demonstra presente, senão em todos, ao
menos na maioria dos não indígenas analisados neste capítulo. Elementos como a busca, por
exemplo, por uma descrição mais ‘iluminada’, com menos valorações sobre características de
um povo, como o Guaicuru, se faz presente. Ainda assim, apresenta diferentes pesos e medidas
para os distintos não indígenas aqui analisados. Exemplos comuns são as fortes críticas as ditas
características dos Guaicuru que mais se chocariam com o elemento religioso da cultura política
europeia cristã, que também foi importada para o Brasil em construção: aqui voltadas,
principalmente, aos abortos e às ‘cudinas’.
138

5º) Tantas vezes referenciado ao longo deste capítulo, definitivamente o episódio de


177885, quando indígenas Guaicuru convencem soldados do Forte de Coimbra a se exporem
vulneravelmente, os matando e roubando se constituiu enquanto um trauma na memória
coletiva a respeito dos Guaicuru. Isso aconteceu por ele ter sido o último grande episódio de
violência entre guaicurus e não indígenas, até a época das fontes aqui analisadas86.
Um último ponto que vale menção, ainda que não consolidado pelas fontes vistas, mas
que, em especial as últimas analisadas trazem, são ‘pistas’ de um sucesso no projeto,
inicialmente, colonial, depois imperial, do agregar dos Guaicuru à economia da região, logo,
mais ou menos diretamente, à economia do Brasil como um todo. O crescente sedentarismo e
os potenciais de mão de obra num espaço que seguia com falta desta, são indissociáveis aos
interesses presentes em discursos de não indígenas no pré-Guerra da Tríplice Aliança, como
será visto no capítulo a seguir. Há de enfatizar que o agregar à economia colonial, aos olhos
dos grupos de poder daquele contexto imperial transcendia o mero interesse financeiro, era um
projeto de poder, uma dominação em curso. Séculos de tentativas de sobrepujar belicamente os
Guaicuru não deram frutos. Coube aqueles que se apresentaram enquanto ‘superiores’ se
adaptarem e tentarem estratégias diferentes, como a criação de dependência e o agregar
econômico, aqui um binômio. De toda forma, todos esses processos se deram num amplo
projeto de poder com raízes colonialistas que afetaram todos os povos originários de territórios
colonizados. A dominação nunca foi plenamente efetivada, embora tenha resultado em um
etnocídio sem precedentes na América. Infelizmente, mesmo na atualidade, novas e velhas
estratégias de dominação e imposição da cultura política enraizada em ideias de “civilização”
seguem em andamento.

85
Vide nota 31.
86
E, provavelmente, assim persistiu sendo até, ao menos, a maior parte do século XIX. Não apenas pelo
envolvimento de indígenas Guaicuru na Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870), mas pelos próprios conflitos de
terras no pós-guerra entre aqueles e fazendeiros brasileiros, por disputas de terras (BORGES, 2022).
139

3 DISCURSOS DO PARLAMENTO DO IMPÉRIO DO BRASIL E DE


PERIÓDICOS ACERCA DOS GUAICURU (1855-1860)

Seguindo a proposta de analisar os discursos produzidos sobre os indígenas Guaicuru


por grupos e indivíduos não indígenas, passa-se, no presente capítulo, a analisar
especificamente senadores e deputados do Parlamento Brasileiro. Para a proposta, foram
recortadas duas sessões nas quais se propuseram tratar de assuntos referentes às relações
fronteiriças entre o Império do Brasil, mais especificamente a então província do Mato Grosso
e a República do Paraguai. A partir desse estudo, buscou-se compreender de que forma esses
discursos foram moldados e quais tipos de interesses contribuíram para isto. Assim como
apreender, se havia consensos partidários gerais ou se os interesses de cada congressista se
realçaram. Nessa perspectiva, mesmo omissões e ‘apoios’ tiveram a potência de enriquecer essa
análise.
A partir do que foi pontuado acima, constituiu-se também um subtópico, mais sucinto,
no qual abordaram-se fontes sobre guaicurus em distintas gazetas do período analisado e,
mesmo, de um pouco antes. Essa ação pretende contribuir para a construção de uma percepção
mais geral em relação aos discursos de não indígenas sobre os Mbayá-guaicuru em seu contexto
de produção em si. Potenciais apropriações, omissões e a própria raridade de fontes foram
postas em perspectivas, comparadas com os discursos parlamentares, para possibilitar a
verificação de similaridades ou divergências, buscando o enriquecimento desta pesquisa.

3.1 Conservadores em disputa: interesses pessoais ante união partidária

A primeira fonte que nos interessa é a descrição dos debates acontecidos na sessão de
25 de julho de 1855 do Parlamento Brasileiro. Mais especificamente, as discussões a respeito
de “negócios do Paraguai” transcritas nos Annaes do Parlamento Brasileiro, n. 1, daquele
mesmo ano (ANNAES..., 1855, p. 284-287). Tudo começa quando, o então senador do Império,
Ângelo Moniz da Silva Ferraz (1812-1867), membro do Partido Conservador, recorrentemente
presente nos debates parlamentares da época87, propôs um requerimento para a discussão de um
tema que entendia como urgente, “o estado de tranquilidade e paz pública da província de Mato
Grosso que confina com o Paraguai” (ANNAES..., 1855, p. 284). Segundo o senador, notícias

87
Em diferentes navegações pela Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, nesse e em outros números dos
Anais do Parlamento do mesmo período, percebi, facilmente, que se encontram recorrências do “Sr. Ferraz” nos
debates travados.
140

desagradáveis corriam a respeito desse tema, ainda que, até aquele momento, sem grande
publicidade. Só que uma gazeta da corte88 teria sido responsável por divulgar esse assunto, logo,
tais informações estariam entrando em domínio público. A partir desse argumento inicial,
provoca a Câmara para colher esclarecimento sobre o estado que se encontravam as ditas
fronteiras brasileiras e as relações nacionais com a República do Paraguai89. Desde o início das
falas de Ferraz, fica registrado o grande apoio a ele direcionado por pares da Câmara. A
transcrição dessa sessão é recheada pela palavra “apoiados”, entre parênteses, após boa parte
de suas falas (ANNAES..., 1855, p. 284-287).
Antes de entrar no conteúdo no discurso decorrente do requerimento de urgência
proposto, que foi aprovado pelos demais deputados com o objetivo de justificar suas
motivações, Ferraz busca assumir o lugar de imparcialidade. Afirma que negócios, como o que
se propõe a tratar, não são de um partido específico, logo, não estava ele então de nenhum
‘lado’, que não aquele que seria o do Parlamento como um todo. Essa colocação por si só já é
bem interessante, constituindo indiretamente uma advertência de que um ‘lado’ vai ser tomado,
tendo em vista a construção discursiva ‘defensiva’. É importante relembrar que, tanto Ferraz
quanto o então Gabinete Ministerial, são, nessa época, associados ao Partido Conservador, logo,
como será visto adiante, se apresentou uma disputa de discursos entre os grupos conservadores.
A análise contribui para ilustrar um cenário político para além da binaridade de conservadores
versus liberais, mostrando que, mais que ideologias políticas consolidadas, houve prevalência
de disputas de interesses.
O senador narrou situações de tensões e de disputas territoriais da província brasileira
do Mato Grosso que excederam a questão do Paraguai, embora esta, afirmou, fosse a mais tensa.
Ferraz comentou também sobre pedidos de auxílio por parte de Augusto Leverger (1802-1880),
então Presidente da Província, direcionamentos de tropas, armamentos, navios e recursos para
aquela província, embora, em contrapartida, admitiu certo desleixo do Parlamento no
andamento da situação da fronteira Oeste brasileira. A partir disso buscou reforçar que, mesmo
reconhecendo a distância da província mato-grossense para o Rio de Janeiro, onde ocorriam as
sessões da Câmara, havia possibilidades materiais para esta comunicação acontecer

88
Ele não chega a especificar qual seria. Embora tenha encontrado uma gazeta que divulgou a notícia que ele
menciona (ver nota 94), esta data do dia seguinte ao da proposição de Ferraz. Assim sendo, ou outro jornal
divulgou antes, ou Ferraz “se enganou” e se adiantou em relação a uma notícia que ainda seria publicizada.
89
O Paraguai se tornou independente 11 anos antes do Brasil, em 1811, e desde aquela época já constituiu uma
república. No período do debate aqui analisado se encontrava no poder daquele país, Carlos Antonio López
(1792-1862), que assumiu em 1840 e se manteve até 1862, quando morreu e foi sucedido por seu filho,
Francisco Solano López (1827-1870).
141

periodicamente, concluindo que considerava o então estado fruto da omissão da casa legislativa
onde se encontrava.

Figura 12 – Retrato de Ângelo Moniz da Silva Ferraz, litografia, 1861.

Fonte: SISSON, 1861.

Após isso, Ferraz entrou no tema mais caro ao recorte escolhido para o desenvolvimento
desta dissertação: os discursos sobre os indígenas Mbayá-guaicuru, aqui nomeados na grafia
mais recorrente da época: “guaycurús”. Segundo o senador, “parte da população da província
de Mato Grosso, e digo parte da população de Mato Grosso, porque essa nação de guaicurus
habita uma parte do nosso território, está debaixo da nossa proteção, o está há longos anos”
(ANNAES…, 1855, p. 285).
Ele inclusive referencia essa informação tomando como base uma resenha de memória,
proferida no Parlamento não muito tempo antes pelo então senador José Antônio Pimenta
142

Bueno (1803-1878), também membro do Partido Conservador. A tal memória, resenhada em


sessão, teria sido publicada originalmente na gazeta paraguaia de nome Semanario90.
Antes de prosseguir em Ferraz, será empreendido um esforço para melhor compreender
Pimenta Bueno e seus discursos a respeito dos Guaicuru, tendo em vista que teria sido, ao menos
parte, o referencial do primeiro. Na edição de número 118, de 18 de agosto de 1855, do
referenciado periódico paraguaio, Semanario de Avisos Y Conocimientos Utiles, houve a
transcrição de um discurso de Pimenta Bueno, registrando-se que o texto foi retirado de outro
jornal, o Correio Mercantil, datado de 2 de julho do mesmo ano. Nesta edição de número 181
do Correio Mercantil, gazeta carioca, encontra-se a transcrição em português, tomada como
original. Segundo o primeiro parágrafo, tanto do texto português quanto da tradução 91, o
discurso teria sido proferido no Parlamento Brasileiro no último dia 26, anterior aquela
publicação, ou seja, 26 de junho de 1855. Na leitura das discussões retratadas nos Annaes do
Parlamento, referentes a esse dia, não se encontra o original do senador. Tendo em vista que o
que mais agrega aos objetivos desta dissertação é a construção do discurso a respeito dos
Guaicuru, mais do que um ou outro fato específico referente sobre o tal povo, defende-se que o
trecho desse texto onde Pimenta Bueno aborda estes indígenas seja suficiente para compreender
seus entendimentos sobre o papel deles, e um eventual posicionamento a respeito de suas
existências e papéis na história que se desenhava naquele contexto. A transcrição referida é, ao
menos, um discurso emitido no mesmo ano e de mesmo assunto que o que interessou Ferraz
(se não for o exato a que se refere). Nos próximos parágrafos ficará mais claro os prováveis
elementos de inspiração entre os colegas de profissão.
Pimenta Bueno, também Encarregado de Negócios (semelhante a um Embaixador) do
Império na República do Paraguai, argumentou favoravelmente aos interesses de seu país no
que tangia disputas territoriais entre essas duas potências regionais limítrofes. Uma de suas
alegações se deu a partir da defesa de possessões territoriais da região de contato enquanto, por
direito, brasileiras devido a ocupação efetiva de territórios, uti possidetis, por parte de indígenas
Guaicuru. Segundo o senador, os generais de Mato Grosso (que também são os Presidentes da
província) teriam o hábito de mandar guarnições de guaicurus fazerem rondas no terreno ao

90
Como Ferraz toma como referência o discurso proferido por Pimenta Bueno no Parlamento baseado nas
resenhas das tais “memórias” publicadas por ele no Semanario, não as “memórias” em si, o que nos interessa,
mais adiante, será o discurso de Pimenta Bueno, não esse texto prévio. Ainda assim, a mérito de agregar, creio
que encontrei esse, sobre o título de Apuntes para una memoria sobre límites del Brasil en la parte que respecta
á los Rios Pepirí-guasú, San Antonio, Iguasú, Paraná, Igurey, u sus contravertientes que corren al Rio
Paraguay, publicado na edição de número 99 do Semanario de Avisos Y Conocimientos Utiles (Cf. PIMENTA
BUENO, 1855, p. 7-12).
91
O texto está em espanhol no periódico paraguaio.
143

entorno no Rio Apa92. O próprio Semanario paraguaio relataria essas rondas, argumentando
que representariam “má vontade brasileira” (CORREIO MERCANTIL, 1855, n. 181, p. 1).
Pimenta Bueno, referenciando a Corografia Brasilica93, sobre os Guaicuru, os descreve
enquanto

a valente e numerosa nação Guaycurú, que já de antes frequentava exclusivamente


nossas relações, pois que é inimiga do Paraguai, em 1791 incorporou-se
definitivamente à nossa província de Mato Grosso, jurando sua obediência, e
recebendo seus chefes os postos de capitães de Índios. Esse ato está impresso em nossa
Corografia. Os Guaycurús até hoje têm sido súditos fiéis do Brasil, falam nossa língua,
e são nossos soldados quando deles precisamos (CORREIO MERCANTIL, 1855, n.
181, p. 1).

Pimenta Bueno busca então associar o direito às terras nas quais os Guaicuru viviam e
circulavam à ocupação, uti possidetis, do Império brasileiro. Para reforçar seu argumento, usa
de afirmações que não eram de nenhuma forma consenso entre não indígenas que escreveram
sobre esses indígenas ao longo do século XIX. O político os descreve enquanto submissos aos
interesses do Império, “súditos fiéis ao Brasil”, falantes de português (CORREIO
MERCANTIL, 1855, n. 181, p. 1). Esse discurso reforça a ideia de ‘vitória’ de brasileiros em
relação aos paraguaios, uma vez que teriam sido capazes de levar a ‘civilização’ aos guaicuru.
Afinal, espanhóis já tinham tentado ‘civilizar’ grupos desse povo indígena desde o século XVI,
sem nunca atingirem plenamente seus objetivos. Pimenta Bueno afirma explicitamente que os
Guaicuru eram inimigos dos espanhóis, uma interpretação entendida como correta pela
historiografia contemporânea desde os primeiros trabalhos publicados a respeito desse povo
(HERBERTS, 1998). E, claro, corrobora com os interesses discursivos que construiu, cujas
raízes advinham desde a colônia, crescendo exponencialmente a partir de meados do século
XVIII, como já abordado.
As ideias que o senador elenca podem ser interpretadas como uma síntese de sua
percepção a respeito dos Guaicuru ou, ao menos, sobre o que se propaga publicamente a
respeito desses grupos, derivam das expressões “valentes”, “obedientes” e “fiéis” (CORREIO
MERCANTIL, 1855, n. 181, p. 1). “Valentes” guerreiros que auxiliavam os interesses militares

92
Região explicitamente colocada nas fontes como uma das principais zonas de disputa entre Brasil e Paraguai,
nesta época já tendo ocorrido confrontos, ainda que bem limitados e localizados, comparados a guerra que
começaria apenas em 1864. Após o fim do citado conflito, o Brasil conseguiu assegurar seus interesses e com
eles a posse da região ao norte do rio Apa.
93
Corografia Brazilica ou Relação historico-geografica do Reino do Brazil, de 1817, foi a primeira corografia
impressa da história do Brasil, tendo por autor o padre Manuel Aires de Casal (1754-1821). Para um maior
aprofundamento sobre a mesma e seu autor, conferir o subtópico Manuel Aires de Casal e a Corografia brasílica
do segundo capítulo desta dissertação.
144

do Império brasileiro, em relação ao qual seriam “obedientes” e “fiéis”. Pimenta Bueno


representa os Mbayá-guaicuru de modo positivo, em consonância com os interesses que
defendia, territoriais e econômicos, elementos cada vez menos indissociáveis no decorrer dos
Oitocentos. Os discursos sobre os Guaicuru, assim como em partes anteriores desta dissertação,
variavam conforme mudavam os interesses dos atores que explanam tais discursos.

Figura 13 – Retrato de José Antônio Pimenta Bueno, litografia, entre 1857 e 1863.

Fonte: SISSON, [entre 1857 e 1863].

Deve-se elencar ainda que o senador aponta que algumas regiões ao norte do rio Apa,
onde ele reconhece que os Guaicuru não habitavam, seriam inóspitos por serem pântanos, já
no interior de certas localidades do entorno, além de indígenas, haveria também habitantes (não
indígenas) de uma cidade próxima, Miranda reforça, assim, que os espaços daquela região nas
quais guaicurus não se encontrariam, não teriam sequer potencial de habitação e que, para além
dos indígenas, haveria ainda uma minoria de não indígenas brasileiros nos entornos do espaço
em disputa.
145

Retoma-se, a partir daqui a análise do discurso de Ferraz. Após o senador referenciar


Pimenta Bueno, volta a falar sobre a notícia que o preocupava: o auxílio de 600 guaicurus às
tropas comandadas por Leverger94. Admitindo, porém, que antes desse encontro, segundo
informações, houve conflitos entre uma dessas forças com tropas paraguaias “na qual correu
sangue paraguaio e talvez sangue brasileiro” (ANNAES..., 1855, p. 285).
Os indígenas, segundo o senador, encontrarem com as tropas de Leverger e teriam
entrado em batalha com forças do país limítrofe, este último parece ter sido o que mais sofreu
com baixas. Reforçando a ideia de uma vitória indígena sobre os inimigos paraguaios. Ferraz,
em todo seu discurso, considera os Guaicurus súditos leais do Império, como estabelecido no
Tratado de Paz de 179195 e pela argumentação prévia de Pimenta Bueno. A partir disto, o
senador aponta que “a atitude da nossa força naquele lugar [...] nos deve muito impressionar”
(ANNAES..., 1855, p. 285).
Embora defenda a boa atuação das tropas nacionais em Mato Grosso, Ferraz reconhece
que aquela Câmara não deveria ficar serena. Isto em decorrência da falta de materiais de guerra
disponíveis na região, trazendo críticas inclusive ao atual Ministério (Conselho de Ministros ou
Gabinete Imperial), o qual interpretaria como inerte em relação a situação nessa fronteira. Além
disso, reforça a necessidade de esclarecimentos de medidas capazes de garantir a segurança do
país, principalmente levando em conta o que trouxe no início de seu discurso, ou seja, de que
tais notícias estavam para se publicizar. E, também de modo semelhante ao início de sua fala,
defende que não estaria objetivando fazer oposição ao Ministério, mas apenas garantir a
tranquilidade dos interessados no assunto. Apenas depois de toda essa fala formaliza o
requerimento através de um conjunto de questões, as quais, estavam bastante explícitas desde
o início de sua fala pública:

Requeiro que se peçam ao governo as seguintes informações: 1º Qual a situação de


nossas forças na fronteira do Paraguai? 2 Houve algum conflito entre as nossas e as

94
Conforme mencionado na nota 88, não foi encontrada a notícia comentada por Ferraz em nenhum jornal de 25
de julho de 1855, mas apenas num datado do dia seguinte. Na edição de número 783 do O Grito Nacional, lê-se:
“Como era de esperar, o presidente da província de Mato Grosso achava-se na fronteira com toda a força de
linha, em execução às ordens do governo imperial. 600 índios Cadiuéus, da valente tribo Guaicuru, voluntários
se ofereceram para unidos as forças do Império tomarem parte na luta contra os Paraguaios, no caso de se
baterem. No trajeto, os Cadiuéus encontrando suas partidas paraguaias as destroçaram, matando-lhes um dos
chefes e vários soldados, e tomando-lhes toda a cavalhada” (O GRITO…,1855, p. 3).
95
Tratado estabelecido entre lideranças Guaicuru e a então Coroa portuguesa. Inicialmente teria sido “assinado”
contando com a presença de apenas dois ditos chefes desse povo e que em anos seguintes teria sido ratificado por
lideranças desta etnia (VANGELISTA, 1993). Sobre problemáticas envolvendo o entendimento desse acordo por
parte dos Guaicuru cf. WEBER, 2008. Para uma análise detida deste tratado, conferir o primeiro capítulo desta
dissertação.
146

forças do Paraguai, ou entre estas e alguma parte da população indígena da província


de Mato Grosso? (ANNAES..., 1855, p. 285)

A partir disso, Honório Hermeto Carneiro Leão (1801-1856), o Marquês do Paraná e


então Presidente do Conselho de Ministros, que também era membro do Partido Conservador,
transparece certo atrito na relação entre os dois políticos, antes de argumentar sobre os assuntos
provocados. Ao introduzir sua resposta chama Ferraz de “nobre senador” (ANNAES..., 1855,
p. 285), sendo então interrompido pelo mesmo, que agradece, num tom de deboche, seguido
por risos no parlamento96. Há, desde já, um sinal, não apenas de atritos, mas até de algum grau
de desafeição
O Marquês inicia sua argumentação de modo defensivo, afirmando que tal requerimento
buscava nada mais que “embaraçar a política do governo” (ANNAES..., 1855, p. 285), pois
explicações relativas ao solicitado não caberiam às competências da Câmara. Só então começa
a abordar os Guaicuru. Defende que houve uma partida de tropas de indígenas desta etnia que
adentraram o território paraguaio e ali enfrentaram forças daquele país. Não menciona baixas,
de nenhum dos atores envolvidos, e enfatiza o caráter nômade dos Guaicuru. Segundo o
Marquês, houve um conflito, porém, sem envolver “forças propriamente ditas do Império, mas
sim um conflito com esse grupo de guaicurus”, o qual não considera súditos do Brasil, mas sim
um conjunto de “hordas bárbaras” (ANNAES..., 1855, p. 286). Leão apela então para a
afirmação de que estaria ocorrendo uma espécie de disputa de discursos, algo como uma ‘fake
news’ Oitocentista. Suas informações seriam embasadas numa comunicação oficial recebida de
Leverger no mês anterior, ou seja, junho de 1855,

porém recentemente semelhante notícia pelo Paraná, engrossou, tomou proporções


mais avultadas, e tem-se procurado dar-lhe um maior alcance, pintando-se o conflito
com cores muito mais carregadas do que as que na realidade parece ter, segundo a
comunicação a que acabo de referir-me (ANNAES..., 1855, p. 286).

Conclui dizendo que julgava suficientes os recursos já assegurados para Mato Grosso.
Seu discurso faz sentido de acordo com seus interesses, enquanto Presidente do Conselho de
Ministros, dizer algo diferente significaria admitir um erro de governo e ter ainda que conseguir
recursos para auxiliar a província à Oeste.
A partir desse ponto, Ferraz começa a responder e inicia uma discussão que foi
praticamente uma briga, só que floreada por belos pronomes de tratamento. Este defende que

96
Não fica, porém, explícito se a risadaria se deu apenas por parte deste senador ou de colegas da Câmara, mas
analisando o modo como essas observações foram colocadas no corpo do texto, acredita-se na segunda opção.
147

os Guaicuru não são bárbaros com base em dois argumentos: 1º) manterem povoações ao redor
de fortes brasileiros; 2º) comercializarem com o Império. Se o papel do controle dos grupos
indígenas foi essencial para garantir terras para o Estado, o adentrar destes no comércio com
não indígenas era um projeto do Império cujas raízes estendiam-se desde a Colônia. A categoria
de ‘cidadão’ que buscava-se construir pelas forças institucionais estava atrelada à produção de
riquezas para o Estado brasileiro (DOMINGUES, 2000). A partir disso, o Marquês do Paraná
começa a afirmar que estes indígenas referidos pelo colega não seriam os da etnia Guaicuru.
Ferraz, reforçando seu posicionamento, retruca admitindo que, mesmo estabelecidos em terras
brasileiras, aqueles indígenas circularam pelo Chaco97, mantendo, ao menos em parte, um
comportamento nômade.
A acalorada discussão continua, com o Marquês querendo estabelecer e discriminar,
segundo suas perspectivas, quem era, e quem não era Guaicuru; Ferraz, citando episódios
históricos em que o Império contou com auxílio destes indígenas em conflitos com o Paraguai;
o Marquês então duvida de seus conhecimentos de História; mais escárnio da parte de Ferraz,
acompanhado de risadas pela Câmara; em certo momento da quase briga, Ferraz afirma que
faltam providências do Marquês do Paraná para agregar os Guaicuru ainda não sedentarizados,
plenamente ao Império, que retruca falando que o colega senador não teria mandado os
missionários que pediu que fossem enviados para “civilizar” indígenas daquela região. Passado
esse caos, Ferraz opta por retirar seu requerimento.
Findado esse debate, antes de prosseguir para o próximo ponto de pauta da Câmara, o
Marquês resolve pedir a palavra e começa um reduzido discurso que reforça suas perspectivas,
antagônicas às de Ferraz. Referenciando Félix de Azara (1746-1821)98, traz a ideia de que os
Guaicuru estariam já extintos. Afirma também que “os brasileiros sempre deram esta
denominação [Guaicuru] a todos os índios cavaleiros, quaisquer que fossem as nações a que
pertencessem” (ANNAES..., 1855, p. 286). Segundo Leão, esses indígenas seriam habitantes
do Chaco, que de tempos em tempos entrariam em territórios brasileiros. Trazendo então uma
crítica a república paraguaia, por querer responsabilizar o Império pelos ataques desse povo e
continua

O que é certo é que tais índios são, não direi só semi-bárbaros, mas bárbaros; e que é
um ito difícil exercer jurisdição sobre eles, porque, como disse, são hordas nômades,
viajam pelas margens do Paraguai, habitando só o nosso território no tempo das

97
Chaco ou Gran Chaco é uma vasta extensão territorial localizada no centro-Sul da América do Sul. Para uma
melhor contextualização, conferir o início do primeiro capítulo desta dissertação.
98
Espanhol, Azara trabalhou e produziu em diferentes áreas, que vão desde o militarismo, até o naturalismo.
148

vazantes, sem que tenham habitações fixas. Convém que não se confunda estes índios
com aqueles que residem no forte de Miranda, em Albuquerque, e com outros
aldeados, sobre os quais exercemos jurisdição, e que são súditos do império. Estes
índios Guaicuru muito podem ser considerados como nossos aliados [...] inimigos do
Paraguai; mas como não têm uma habitação fixa e nem civilização alguma, o império
não pode exercer a respeito deles a soberania que exerce a respeito dos outros a que
me referi, e que pertencem a outras nações. São conhecidos por diferentes nomes, e
em geral não se lhes dá na província de Mato Grosso o nome de guaicuru; este nome,
repito, compete aos índios cavaleiros. Como inimigos dos espanhóis, os Guaicuru de
algum modo são considerados aliados do império; contudo, isto não obsta a que eles
muitas vezes tenham atacado canoas brasileiras e tenha cometido também hostilidades
contra nós. Assim, pois, o que o nobre deputado pretendia acautelar não é necessário
(ANNAES..., 1855, p. 286-287).

Por fim, o Marquês do Paraná retoma a reclamação de falta de missionários, criticando


indiretamente Ferraz uma vez mais. Aponta, de modo aparentemente contraditório com o que
afirmou até aquele momento, que de suas “palavras não se pode inferir que se porventura
tivéssemos de entrar em estipulações com o Paraguai não cobríssemos com a nossa proteção a
esses índios, embora bárbaros” (ANNAES..., 1855, p. 287).
O imaginário construído por ele a respeito dos Guaicuru é bastante curioso. O Marquês
acusa os Guaicuru de atacarem forças brasileiras, o que não está completamente errado, mas
sim desconexos com o momento vivido, já que esses conflitos aconteceram entre os séculos
XVI e XVIII. Desde o Tratado de Paz, firmado em 1791, até aquele momento os atritos bélicos
tendo por uma das partes guaicurus, tiveram como inimigos, ora paraguaios, ora outros povos
indígenas, por vezes os dois juntos99. Não é impossível que tenha ocorrido algum pontual
conflito entre guaicurus e brasileiros naquele intervalo de tempo, mas algo assim não seria
suficiente para classificar esse tipo de ação enquanto comum naquele contexto, nem mesmo em
várias décadas antes do tempo que o debate parlamentar ocorreu.
O Marquês transparece uma aparente dificuldade em compreender que havia diferentes
grupos (ou subgrupos) que compunham a ‘nação guaicuru’. Que os homens do século XIX
tendiam a homogeneizar povos indígenas, já foi muito bem estabelecido pela historiografia
(ALMEIDA, 2012; KODAMA, 2009; PARAISO, 2010; SPOSITO, 2021). Desde o primeiro e
um dos mais populares relatos lusófonos dedicados a narrar hábitos, vida e características dos
Guaicuru, ou seja, os escritos de Prado, datados de 1795, está descrita a existência de diferentes
grupos que formariam essa ‘nação’.

99
Os Guaicuru voltaram a ter mais efetivamente atritos com brasileiros não indígenas apenas após a Guerra da
Tríplice Aliança (1864-1870), devido a invasões e disputas com fazendeiros pela propriedade de terras
(BORGES, 2022).
149

Figura 14 – Retrato de Honório Hermeto Carneiro Leão, litografia, ca. 1855.

Fonte: SISSON, ca. 1855.

Se num primeiro momento tal escrito teve circulação limitada, como exposto no
primeiro capítulo desta dissertação, desde 1814 esta obra e suas ideias já se encontrariam
circulado em jornais da então Colônia (PRADO, 1814, p. 14-33), sendo traduzida e publicada
no exterior (CORREIO OFFICIAL, 1839, p. 555). Sua versão mais famosa foi publicada no
primeiro volume da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro (PRADO,
1839, p. 25-57). Infere-se que, ou o Marquês do Paraná foi um homem particularmente
ignorante sobre o assunto que tratou nesse debate, ou, mais certamente, elaborou um discurso
que favoreceu seus interesses e o de seu Ministério. Assim, construiu uma cisão discursiva da
identidade guaicuru.
De um lado havia os que teriam os que se sedentarizaram deixado de serem nômades,
logo, nem mais seriam indivíduos da etnia Guaicuru, perpetuando a comum ideia da época, de
que identidade seria algo que se ‘perdesse’ através da miscigenação; do outro estariam os
verdadeiros Guaicuru, por ele chamados de “hordas bárbaras”, independentes de ordenações
150

brasileiras (ANNAES..., 1855, p. 285-287). Seriam estes últimos os verdadeiros responsáveis


pelos ataques às forças paraguaias. Uma outra interpretação possível de suas falas nesse aspecto
é a ideia de que simplesmente não havia guaicurus próximos dos Fortes, e que a nomeação de
povos do entorno com esse nome era nada mais que erros. Só que essa interpretação em si
pressupõe que o Marquês do Paraná simplesmente descartasse intencionalmente o Tratado de
1791. Essa segunda interpretação não pode ser comprovada, porque Leão nem chega a
mencionar esse aparato jurídico em suas falas, configurando uma omissão. Seja como for, a
partir de qualquer uma dessas perspectivas fica clara a fuga de responsabilidade por parte do
Gabinete do Império, no que diz respeito a quaisquer indígenas nomeados ou associados aos
Guaicuru. Se por um lado o Império se beneficiou desse povo, causando problemas para a
república paraguaia, por outro lado não queria arcar com responsabilidades (estabelecidas desde
o citado Tratado) de represálias e, consequentemente, de ter de proteger aqueles indígenas.
A menção a respeito de quaisquer indígenas ‘cavaleiros’ serem chamados de Guaicuru
não é uma mentira.: ‘Guaicuru’ surgiu enquanto um termo pejorativo dado pelos guaranis, etnia
inimiga, a esse povo100. Os portugueses se apropriaram desse termo, passaram a referenciar
todo um conjunto de indígenas nômades e de ethos guerreiro, que segundo diferentes estudos
contemporâneos, realmente se entenderiam como um mesmo grupo (HERBERTS, 1998; JOSÉ
DA SILVA, 2014; VANGELISTA, 1993). A maior parte deles efetivamente aderiram ao
cavalo, tendo em vista os benefícios para o seu modo de vida, seja no ampliar das circulações,
seja em novas dinâmicas de combate. Essa descredibilização defendida pelo Marquês do Paraná
não é nada além da fuga de responsabilidade já analisada no parágrafo anterior.
O último trecho da citação finaliza de modo explícito o posicionamento do Presidente
do Conselho Imperial, se colocando idôneo perante as acusações de omissões por parte de
Ferraz. Mesmo depois de tudo que defendeu, o Marquês argumenta que o que disse não era
uma afirmação de que, em caso de tensões com o Paraguai, o governo não estenderia a proteção
do Império aos Guaicuru. Constrói um discurso reconhecendo os Guaicuru como dignos de
auxílios do Estado, como resultado de mera boa vontade do Gabinete, não uma obrigação. Tal
proteção dependeria então da benevolência (ou não) dos Ministros no poder.

100
O vocabulário originário seria “eyiguayegui”. Ainda as publicações historiográficas sobre esse povo seguem
uma tendência de os referenciar como “mbayá-guaicurus” ou apenas “guaicurus”, com ora o “i” e/ou o “c” sendo
substituídos, respectivamente, pelo “y” e o “k”. A escolha do vocabulário para esse artigo buscou também seguir
o perpetuado pelos pesquisadores da área. Vide discussão apresentada no subtópico Contextualização histórica:
guaicurus, portugueses e luso-brasileiros, parte do primeiro capítulo desta dissertação.
151

Figura 15 – Retrato de Honório Hermeto Carneiro Leão, pintura, 1855 ou 1856.

Fonte: BAUCH, [1855 ou 1856].

Reforçaram-se as discordâncias e provocações entre membros do mesmo partido, ou


seja, entre conservadores. Segundo Jeffrey Needle (2009) o que levou Dom Pedro II a realocar
os conservadores ao poder no final da década anterior foi a estabilidade destes quando
comparados aos liberais. Essa suposta ‘estabilidade’, no entanto, não era tão plena, muito menos
universal a todos os temas da política imperial, provavelmente mais direcionada àqueles que
mais confluíram com os interesses do Imperador. Christian Lynch (2017), por sua vez, defende
que o conservadorismo que teria prevalecido no Brasil até a década de 1860 teria um viés
estadista, havendo um ideário de busca pela consolidação do Estado. Esse posicionamento fica
claro nas figuras de Ferraz e de Pimenta Bueno, mas destoa das falas do Marquês do Paraná.
Não que esse último, necessariamente, destoasse da perspectiva estadista como um todo, mas
sim daquela trazida por Ferraz que era crítica a sua gestão. Entre os ideais ou a manutenção de
seus interesses, a escolha tendeu ao segundo. Outra possibilidade de interpretação, que aqui não
será aprofundada seria buscar estender a ideia do ‘conservadorismo caleidoscópico’, de Lynch,
152

compreender que existiram conservadorismos, no plural, para além dos conservadores de


diferentes períodos, trazendo para os de mesmo tempo, ainda que em diferentes medidas.
Contribuindo para o enriquecer do debate analisado, Francisco Iglésias, em seus escritos
no quinto volume da obra renomada, dirigida por Sérgio Buarque de Holanda, História Geral
da Civilização Brasileira, pontua o antagonismo dos dois políticos conservadores que
discutiram na sessão de 25 de julho de 1855. Abordando Ferraz, defende que este ficou
conhecido “sobretudo pela decisiva atuação que teve no combate ao Marquês de Paraná”
(IGLÉSIAS, 2004, p. 95). Mais do que, por exemplo, uma questão ideológica de antagonismo
entre partidos, os discursos a respeito dos Guaicuru foram construídos com base nos interesses
desses senadores, o que, ao menos por vezes, gerou disputas dentro de um, teoricamente,
mesmo campo de organização política.

3.2 Guaicurus cidadãos? Só em alguma medida e desde que obedientes e úteis ao


Império

Passaremos agora a análise de uma transcrição do discurso proferido na sessão de 23 de


julho de 1860 do Parlamento Brasileiro. Mais especificamente, as discussões a respeito do
“Orçamento dos negócios estrangeiros” transcritas nos Annaes do Parlamento Brasileiro, nº 2,
daquele mesmo ano (1860, p. 251-254). Enquanto o Presidente da Câmara fazia uma consulta
aos colegas presentes na sessão, um indivíduo nomeado “Srº Peixoto de Azevedo” pediu a
palavra. Em sua fala é colocada sua atuação como militar, assim como funções que
desempenhou em regiões de limite entre a então região Sul da província de Mato Grosso e a
República do Paraguai. Este homem se apresenta como um representante especificamente da
província de Mato Grosso.
A despeito de suas autoapresentações, seu nome não foi encontrado na lista de
senadores, nem de deputados do Império, mas acredita-se que possuía algum cargo eletivo de
nível nacional, pois a busca por seu sobrenome através da Hemeroteca Digital Brasileira nos
Annaes do Parlamento Brasileiro resulta em dezenas de menções referentes às sessões de anos
de 1857, 1859 e 1860. Encontrou-se, porém, referências a um tenente coronel, Antonio Peixoto
de Azevedo, que teria sido vitorioso na disputa pelo cargo de deputado, justo pela citada
província, em 1861, pelo Partido Progressista, segundo um jornal cuiabano de nome A Imprensa
de Cuyabá (1861, p. 2). Somado a isso, anos antes, em 1856, ainda como major, ele foi também
candidato para o mesmo cargo (CORREIO MERCANTIL, 1856, p. 1). Embora a fonte da
153

informação anterior não confirme sua eleição, há jornais da época em que seu nome é
mencionado em listas de chegadas no porto da capital (CORREIO MERCANTIL, 1857, n. 110,
p. 1), por vezes o especificando como representante de sua província, Mato Grosso, na
“Assembleia Geral” (JORNAL DO COMMERCIO, 1860, p. 1).
Estas questões somadas à citada presença dele em sessões dos anos seguintes, contribui
para que se conclua que realmente foi eleito, ainda que não tenha sido possível confirmar a qual
partido estava filiado no momento do discurso que aqui nos interessa. Como dito antes, na
disputa eleitoral do ano seguinte, ele estava associado ao Partido Progressista, não se pode,
porém, asseverar que Peixoto de Azevedo já estivesse filiado a ele no ano anterior,
principalmente por esse ainda recente partido ter sua formação associada a dissidentes, tanto do
Partido Liberal quanto do Conservador (CARVALHO, 2008). Nada impede que ele, na
legislatura anterior, tenha sido filiado a qualquer um destes dois partidos. Seja como for, nas
eleições de 1861, ainda que tenha alçado à vitória (segundo o mencionado jornal cuiabano),
teria ocorrido um conjunto de confusões e possível abuso de poder por parte de um juiz de paz
(associado ao Partido Regressista). Tal intercorrência não contribui para um melhor
esclarecimento se o citado militar conseguiu assumir o cargo, mas colabora para o entendimento
que não, devido a Peixoto de Azevedo ter entrado com uma representação contra os resultados
dessas eleições (JORNAL DO COMMERCIO, 1861, p. 8), a qual não se sabe se teve algum
resultado efetivo101. Fato é que ele morreu anos após, enquanto lutava na Guerra da Tríplice
Aliança (1864-1870). Além disso, postumamente foi reconhecido ao ponto de, o então Coronel
Comandante da Guarda Nacional e Vice-Presidente da Província de Mato Grosso, autorizar
oficialmente, em forma de lei, como homenagem por parte Parlamento Provincial local, o
translado de seus restos mortais para o Cemitério da Piedade, em Cuiabá (COLLECÇÃO...,
1868, p. 31-32)102.

101
Infelizmente há um significativo hiato entre as edições dos Annaes do Parlamento Brasileiro do início da
década de 1860 presentes na Hemeroteca Digital. À exceção de duas das edições de 1861, as edições desde o
final de 1860 até o decorrer de 1863 não estão disponíveis no acervo.
102
Vale mencionar ainda que houve um tenente de milícias também chamado de Antonio Peixoto de Azevedo,
que realizou uma missão de reconhecimento em 1819. Derivado disso, um dos rios que percorreu recebeu seu
nome e, posteriormente, uma das cidades cortadas por esse corpo d’água também foi nomeada em sua
homenagem, Peixoto Azevedo, nome que é mantido até a atualidade. No Arquivo do Mato Grosso do Sul (em
partes digitalizado e disponível online) foram encontrados requerimentos de um “Antonio Peixoto de Azevedo”
à presidência da província, na figura de João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres (?-1796). Acredita-se
que este seja o mesmo militar da expedição, ainda que essas cartas datem ainda das duas últimas décadas do
século XVIII. Por fim, é possível que a repetição do nome inteiro sinalize o parentesco entre esse indivíduo e o
que fez o discurso analisado neste subtópico. Encontrou-se também referência a um “Antonio Peixoto de
Azevedo”, falecido em 1855, que fora irmão de Manoel Peixoto de Azevedo e tio de Manoel Honorato de
Azevedo (CORREIO MERCANTIL, 1855, n. 8, p. 3). nada leva a crer que este seja o mesmo homem dos
eventos de 1819, podendo talvez ser um parente intermediário entre aquele e o que pronunciou o discurso aqui
154

Apresentada a biografia deste militar e político mato-grossense, na análise desenvolvida


o foco caberá às suas falas na sessão de 23 de julho do Parlamento do Império brasileiro. Como
já disposto, havia entrado em pauta a temática do “orçamento dos negócios estrangeiros”, ponto
que não pareceu ter gerado nenhuma forma de comoção, debate ou grande interesse dentre os
presentes, o que incomodou Peixoto de Azevedo. Segundo o mato-grossense, o silêncio de seus
colegas era um problema, uma forma de omissão, como se estes supuseram que as relações com
os países limítrofes estavam ‘às mil maravilhas’. Relembra aos colegas que não só os negócios
na região do Rio da Prata103 não estariam correndo bem como, no ano seguinte, 1861, o Brasil
teria “de ventilar com a República do Paraguai a questão de limites entre essa república e a
província que tenho a honra de representar”, o Mato Grosso (ANNAES...,1860, p. 251).
Ao trazer uma perspectiva e argumentos semelhantes aos mencionados por parte de
Pimenta Bueno que, por sua vez, inspirou Ferraz, Peixoto Azevedo também buscou defender o
direito de posse do Império sobre a região ao norte do rio Apa, que estava sob contestação da
República do Paraguai, que a reclamava como sua. Peixoto Azevedo passou a narrar uma
discordância entre um representante do Brasil e outro do Paraguai numa tentativa de
conciliação. Nesse caso, nem o argumento paraguaio, nem o brasileiro desconsideravam a
aliança entre os Guaicuru e o Brasil, o que o primeiro discordava era da ocupação efetiva por
parte destes indígenas na região do rio Apa. O representante da república vizinha teria
defendido que os indígenas apenas fariam incursões na região e que seriam esses os mesmos
que habitavam no entorno de Miranda, responsabilizando, assim, o Império por conflitos que
tinham por uma das partes os Guaicuru. Numa perspectiva a parte das apresentadas até agora,
Peixoto de Azevedo, com base em seus conhecimentos de épocas que exerceu o comando de
tropas em pontos daquela região limítrofe, primeiro afirmou que nenhum indígena partiu do
entorno de Miranda. Os ataques teriam advindo de guaicurus que, segundo ele, seriam
habitantes daquela própria região, ao norte do rio Apa. Parece que esse político acreditava não
haver indígenas desse povo no entorno de Miranda, mas apenas nas proximidades da região de
conflito.
Peixoto de Azevedo, porém, não omite as relações entre os Guaicuru e o Brasil,
afirmando que “esses índios se acham desde muito tempo subordinados ao Brasil, e prestam

analisado de 1860 ou apenas uma coincidência. De toda forma, o fato do Antonio Peixoto de Azevedo cujo
discurso é apresentado, ter dado seu exato mesmo nome a um dos seus filhos (ANNAES..., 1868, p. 194), reforça
crença nisso ser um hábito familiar (do tipo que dificulta o ofício do historiador). Sabe-se, contudo, tomando por
base esse mesmo discurso aqui analisado que o homônimo pai do ator histórico aqui analisado, morreu em 1825.
103
Diferentes países da região tinham interesses na região, os quais se conflitavam com os do Império, como
Argentina, Uruguai e Paraguai.
155

obediência às autoridades brasileiras” (ANNAES..., 1860, p. 252). Cita o exemplo de uma


situação que afirmou ter vivenciado, onde teria ordenado a uma liderança guaicuru que
cessassem as investidas de seu grupo à fortes paraguaios, devido ao risco de isto afetar
negociações que aconteciam, sendo acatado. Segundo o deputado, “isto prova que os Guaicuru
obedecem às autoridades brasileiras, prova também que eles habitam esse território, e nos dão
o direito de posse que o governo paraguaio pretende contestar-nos” (ANNAES..., 1860, p. 252).
No decorrer da construção de seu argumento cita ainda outro exemplo de “obediência”, num
episódio em que acreditou se encontrar sobre potencial iminência de ataque de forças
paraguaias, quase sem forças não indígenas para a sua proteção, pediu auxílio a uma
liderança104, recebendo 400 guerreiros em seu auxílio. Peixoto de Azevedo ainda reforça: “Ora,
se com tanta prontidão correram ao meu reclamo e apresentaram-me os homens que eu pedia,
como duvidar-se da obediência desses índios ao Império do Brasil?” (ANNAES..., 1860, p.
252).
Embora parte dos argumentos deste político destoe de outros analisados previamente, é
enriquecedor se atentar a perpetuação da admissão e ênfase da existência da relação dos
Guaicuru com o Império brasileiro, desde que associada ao direito de posse das terras que eram
reivindicadas pelo Brasil. Mesmo o nomadismo, mais restrito que nos séculos anteriores, se em
alguns momentos é um problema (como no debate de 1855), em outros foi usado como
argumento para a manutenção dos interesses imperiais em regiões de limites. Esse é até um
ponto que poderia soar contraditório frente à parte da historiografia que se tem a respeito de
indígenas, em perspectivas gerais, no Império. Se, por um lado, a ideia de guaicurus aldeados
estavelmente pudesse contribuir para a ideia de ‘sucesso’ no processo ‘civilizacional’, primeiro
português, depois luso-brasileiro e, por fim, brasileiro (como Pimenta Bueno deu a entender),
por outro, o nomadismo, ‘bárbaro’ segundo o Marquês do Paraná, aqui não era mais um
problema desde que assegurasse outros interesses do Império: a manutenção da unidade
territorial e a consolidação de seus interesses limítrofes. Perante isso, a questão ‘civilização’
versus ‘barbárie’ ficava em segundo plano.
No decorrer de seu discurso o senador segue argumentando favorável aos interesses
brasileiros em relação às regiões em disputa com o Paraguai; faz críticas diretas ao presidente
da província por omissão e falta de investimentos justo nas áreas mais tensas105; aponta o

104
Não fica explícito se é a mesma mencionada por ele anteriormente, haja visto que não a nomeia.
105
Essas críticas ao presidente de sua província parecem ter contribuído aos atritos, já mencionados, ocorridos
em sua (possível) eleição para o mandato seguinte.
156

heroísmo de vinte e cinco soldados cuiabanos que resistiram por horas contra mais de oitenta
paraguaios (onde foi bastante apoiado pelos colegas parlamentares); em alguns trechos chega a
defender que a própria república do Paraguai não reconheceria o norte do Apa como seu, devido
a não ocupar militarmente esta região e em vários momentos defende o argumento que deveria
ser esse rio o melhor ponto para o estabelecimento de uma fronteira oficial e não ao norte, como
queriam os paraguaios.
Peixoto de Azevedo só abordou uma vez mais os Guaicuru em seu discurso. Buscando
argumentar favoravelmente em relação ao reconhecimento desses indígenas como ‘obedientes’
às forças oficiais do Brasil, por parte do Paraguai. O político dá um exemplo, datado de 1825,
mesma época da Expedição de Langsdorff. Segundo ele, seu pai foi traído pela promessa de um
comandante paraguaio, ao tentar passar por um forte em seu domínio, pois sua passagem foi
condicionada a que estivesse junto de um chefe Guaicuru com o qual os paraguaios tiveram
conflito prévio, sob promessa de manutenção da vida dele. Esta última parte não foi cumprida.
Ao chegar no forte, o indígena foi mutilado e o pai de Peixoto de Azevedo desrespeitado,
morreu no mesmo ano, de acordo com o filho, por desgosto dessa traição. Após essa
explanação, completa seus argumentos favoráveis em relação à posse das terras em disputa,
chegando a, inclusive, incluir os Guaicuru dentro da categoria de indígenas ‘amansados’:

Ora, se o comandante desse forte entendesse que esses índios obedeciam às


autoridades paraguaias, certamente não pediria a meu pai que fosse à aldeia trazer o
cacique para fazer as pazes com a nação paraguaia. Este fato deu-se porque o
comandante paraguaio sabia que meu pai, além da qualidade de Brasileiro, era oficial,
era oficial da segunda linha, e exercia influência real sobre todas as tribos mansas da
província de Mato Grosso. Estas poucas palavras, Sr. Presidente, serviram para
mostrar o direito que eu suponho que assiste ao Brasil sobre o território questionado
(ANNAES..., 1860, p. 253).

Peixoto de Azevedo defendeu a paz, mas, sem ceder de nenhum território, no que foi
muitíssimo apoiado por seus colegas. Um ponto a se considerar, tendo em perspectiva o
conjunto de fontes que foram analisadas, seria o status dos Guaicuru em relação ao Brasil. É
reconhecido que qualquer defesa de que indígenas fossem considerados cidadãos brasileiros
esteve longe de ser um consenso ao longo do Império. A questão central era até a quem se
deveria estender a concepção de cidadania. Não houve, por exemplo, muitas discordâncias
sobre as elites aristocráticas se beneficiarem desse status106. A problemática é que, sejam os
indígenas brasileiros ou escravizados trazidos de diferentes regiões, reinos e países de África,

106
À exceção dos liberais exaltados (BASILE, 2001).
157

ou mesmo outros grupos periféricos, mesmo entre os liberais não houve consenso sobre a
concessão de alguma forma ou grau de cidadania (NEVES, 2019).
As análises presentes nesse capítulo, portanto, contribuem para essas discussões na
medida em que demonstram que até mesmo a categoria de ‘súdito’ se apresentou de forma
fluida nos discursos de políticos acerca dos Guaicuru. A partir disso, a relação desses indígenas
com o Império era reinterpretada, conforme os interesses daquele que construía um dado
discurso. A existência – ou não – de algum fragmento de cidadania associado aos Guaicuru
esteve presente em discursos, principalmente, quando associada a posse de territórios nos quais
eles viviam e/ou circulavam, uti possidetis, através da construção de argumentos em benefício
da manutenção dos interesses limítrofes territoriais e para a unidade da nação brasileira que se
construía ao longo daquele século.

3.3 Para além do Parlamento, uma tentativa de contextualização: o que dizem gazetas
da época a respeito dos Guaicuru

Buscou-se menções aos Guaicuru, usando diferentes grafias107, uma vez mais através da
base de dados da Hemeroteca Digital Brasileira108, com dois objetivos: 1º) contextualizar os
discursos acerca desses indígenas, para além das fontes parlamentares que protagonizaram as
análises deste capítulo; 2º) contrapor as fontes, seja para reforçar ou trazer outras perspectivas
em relação às analisadas previamente. Tendo em perspectiva a raridade de resultados sobre o
povo indígena, nesse subtópico, somando-se ao interesse em aqui elaborar uma
contextualização, retrocedeu-se alguns anos em relação a publicação das primeiras fontes
analisadas neste capítulo. Para essa análise levou-se em consideração fontes datadas de toda
década, ou seja, de 1851 a 1860. A imensa maioria dos resultados desse período – mais de 90%,
levam a menções sobre um jornal baiano de nome O Guaycurú, por vezes nomeado sem o
artigo, apenas como Guaycurú, que circulou de 1844 até 1860, famoso e polêmico durante todo
seu tempo de circulação devido ao forte caráter republicado. Outra parte dos resultados leva,
por vezes, a menções a nomes ou assinaturas de seção contendo alguma grafia de ‘Guaicuru’.
A primeira fonte data de 1852, em que, logo nas primeiras páginas da gazeta carioca O
Grito Nacional, se reproduzia um texto originalmente publicado pelo Apóstolo da Cachoeira
que aparenta já ter sido divulgado em outros periódicos previamente. Sob o título de “Minha

107
“Guaicuru”; “guaycurú”; “uaicuru”; “uaycuru”.
108
Os períodos temporais das buscas foram 1850-1859 e 1860-1869.
158

pátria”, descrita também como uma “Poesia oferecida a todos os liberais”, tomou forma uma
crítica a diferentes questões sociais, como a escravidão, além das oligarquias e aristocracias
nacionais, incluindo apontamentos específicos direcionados ao senado e aos ministros do
Império, chamados de “abutres”, “inconsequentes”, “sinistros”, “inimigos do progresso” além
de outras mais considerações pejorativas. Após isso, toma forma neste texto a aclamação por
uma Constituinte, entendida como único instrumento capaz de trazer “liberdade” e “união”,
para assim o “Brasil ser nação” (O GRITO..., 1852, p. 4). Na última parte da dita poesia, buscou-
se conclamar à liberdade, enaltecendo a democracia e criticando a monarquia. Foram também
exaltadas gazetas de caráter liberal, sendo as passagens que mais interessam nesta análise as
que fazem referência ao jornal O Guaycurú, mencionado no parágrafo anterior. Num trecho se
lê: “D’ousados índios guerreiros/Tens em frente um Guaycurú/Terror de vis traiçoeiros!” (O
GRITO..., 1852, p. 4). Foi construída uma associação única, fazendo tanto referência ao jornal
baiano quanto ao grupo indígena. A intencionalidade do autor estava em invocar a ideia do
indígena guerreiro valente, de modo complementar a de temível aos ‘traiçoeiros’.
Desenvolvendo essa perspectiva os Guaicuru foram associados tanto aos portugueses que
muitas vezes os enfrentaram e fracassaram no período colonial, como a monarquia e as elites
do Brasil imperial, grupos interpretados por liberais como herdeiros dos colonizadores.
Outro jornal, também carioca, que no mesmo ano da fonte anterior também mencionou
os Guaicuru foi o Marmota na Corte, uma gazeta de “modas e variedades”. Há uma fábula
intitulada O guaicuru e a jararaca, na qual a segunda, após ser salva pelo indígena, tenta matar
o primeiro trazendo a ideia de que “nesta terra paga-se o bem com o mal” (MARMOTA…,
1852, p. 5-6). Construiu-se aqui uma representação pouco usual de um guaicuru enquanto bobo
e inocente. O nome do povo indígena é usado apenas pela ‘fama’, sendo apropriado nada mais
que uma idealização de indígena genérico. O redator usou ‘guaicuru’, mas poderia ter usado
qualquer outro etnônimo, o objetivo desta fábula era emanar humor.
A fonte seguinte, publicada na gazeta O Grito Nacional em 1855, é a notícia que o
senador Ferraz referencia em seu discurso, apesar de não ser possível afirmar com certeza se
esta é a exata reprodução da notícia que ele menciona em sessão, havendo a possibilidade de
alguma outra gazeta também ter divulgado o texto no dia exato de sua fala109. Não existe muito
para acrescentar aqui, além do que já está presente no discurso do senador. Há de ser pontuado,
porém, a ênfase em uma “valentia” dos Guaicuru, que teriam se “voluntariado e oferecido” para
unir forças com o Império, contra forças paraguaias (O GRITO..., 1855, p. 3). Segundo o relato,

109
Como descrito nas notas 88 e 94.
159

antes mesmo de se juntar ao grupo não indígenas, os Guaicuru acabaram se encontrando com
forças do Paraguai, as quais enfrentaram. O jornal não menciona baixas Guaicuru, mas enfatiza
óbitos entre tropas da república, inclusive de, ao menos, um ‘chefe’, além da perda de seus
cavalos. Enquanto força antagônica à República do Paraguai, este um vizinho malquisto pelo
Império, tem-se mais uma vez o reforço da ideia do Guaicuru em perspectivas positivas,
enquanto valentes guerreiros, aliados dos interesses da nação “una” que estava em processo de
consolidação.
Numa edição de agosto de 1857 do jornal Correio Mercantil, na seção intitulada
Folhetim, foi publicada uma espécie de crônica chamada Boletim Marítimo, tendo por subtítulo
o recorte geográfico que trata, a então província de Mato Grosso, e sendo, no fim, assinada por
“E. de Sena”. Não foi possível descobrir quem era exatamente por trás da assinatura, mas seus
interesses são pontuados ao longo de todos os seus escritos. Sena defende a importância do
Mato Grosso enquanto um tema atual naquele presente, e alvo central dos pensamentos de
muitos. Repete críticas semelhantes às de outras figuras da mesma época, a respeito de omissões
em relação a província fronteiriça. Ainda assim, acredita que já naquele ano de 1857 o cenário
se encontraria em mudança. Abordando tradições e o passado da província, tratou de um
“Antonio Peixoto de Azevedo”, mas não o mesmo que proferiu o discurso que analisamos na
parte anterior deste artigo (CORREIO MERCANTIL, 1857, n. 218, p. 1). O indivíduo por ele
referenciado foi o pai – e homônimo – do parlamentar, cujo discurso foi analisado previamente.
De modo mais amplo, ocorre a descrição da história que o político contou em sessão do
Parlamento. Para conseguir passagem por territórios dominados por paraguaios, Peixoto de
Azevedo (pai) deveria viajar em conjunto com um chefe guaicuru que tinha certo histórico de
conflitos com os mesmos, sob promessa de que não o matariam. O indígena, porém, foi morto
e, pouco tempo depois, Peixoto de Azevedo (pai) também morre. Seguindo mais detidamente
o cerne desta dissertação, o que interessa é o modo como são abordados os Guaicuru. Sem
muito inovar, o primeiro adjetivo a que o povo é associado é a valentia. Seguindo no texto, após
apresentar os subgrupos que comporiam o povo Guaicuru, trazendo uma perspectiva bastante
negativa sobre estes, Sena afirma que “todas elas por índole e temperamento são vagabundas,
intrépidas e maliciosas” (CORREIO MERCANTIL, 1857, n. 218, p. 1). Após as críticas, volta
a abordar o chefe indígena que foi assassinado em 1825, nomeado aqui de Bequedauana e,
numa demonstração de certa contradição, o descreve com admiração, dizendo que ele teria sido
“tranquilo em sua consciência, poderoso por sua força e escudado em sua grandeza”, além de
“digno”, “bravo”, “belo” e possuidor de uma “natureza leal e cândida”. Reforçando ainda mais
160

a construção da aparente contradição, afirma que o falecido chefe teria se tornado “mártir de
sua raça de heróis” (CORREIO MERCANTIL, 1857, n. 218, p. 1).
As abordagens conflitantes de Sena encontram semelhanças entre outros plurais escritos
do Oitocentos. As ofensas proferidas por ele ilustram a crença de que os indígenas teriam uma
índole corrompida, enquanto os elogios e o bom tratamento aos guaicurus, na maior parte de
sua crônica, fazem sentido a partir do entendimento que enaltecer Bequedauana representava o
desprezo àqueles que o mataram. É pouco provável que Sena, seja ele quem fosse, admirasse
os Guaicuru, mas seus escritos dão pistas para a interpretação de que desprezava os paraguaios
mais do que sentia desgosto pelos indígenas. Enquanto um claro defensor dos interesses da
província do Mato Grosso, que busca trazer à luz com sua crônica, segue o caminho de outros
antes e depois de si110, com discursos positivos a respeito dos ‘inimigos dos meus inimigos’, ou
seja, inimigos dos paraguaios, que tanto tensionavam com a província do Oeste.
A quinta fonte é derivada do mesmo periódico da anterior, datando do ano seguinte
(CORREIO MERCANTIL, 1858, p. 2). É a transcrição de uma correspondência recebida da
província de Mato Grosso, mais especificamente de Cuiabá, datada de 4 de agosto daquele ano.
Esta começa com um incentivo para que novos ditos cidadãos, ou seja, não indígenas de
ascendência europeia, migrassem para povoar aquela região, incentivados pela notícia de uma
nova jazida de ouro descoberta na região. Em certo momento, aponta “correrias” promovidas
por indígenas chamados por alguns de coroados e por outros de caiapós, comparados com
“pragas” que assolavam os fazendeiros da região. Embora o inominado autor acreditasse na
importância da resolução deste problema, foi bastante crítico às soluções que considerou
repressivas, como as bandeiras, defendendo a catequese, mesmo que realizada por leigos, como
num exemplo que constrói para ilustrar seu argumento. É ao exemplificar de povos indígenas
que muito necessitavam de conversão que são mencionados os Guaicuru, ainda que de modo
pontual. Cita-se que há apenas um subgrupo desse povo que, naquela época, se encontraria
aldeado. Não há valorações, nem positivas, nem negativas, ao menos em relação aos indígenas
que são foco neste estudo.
Data de 1859 a última fonte localizada para essa década. Nas páginas do Jornal do
Commercio foi publicada uma denúncia contra dois indígenas, por alguém não especificado,
alegando pretensos fatos que teriam acontecido entre agosto e setembro de 1858 (JORNAL DO
COMMERCIO, 1859, p. 2). Tomou forma uma acusação contra um guaicuru e um terena, que
teriam viajado com um não indígena e, logo após, voltado sem ele, mas com parte de seus bens.

110
Inclusive chega a referenciar Pimenta Bueno em parte mais inicial de seus escritos.
161

Segundo o autor inominado, apenas o apelo popular teria feito o subdelegado da região os
convocar para interrogatório, onde afirmaram que simplesmente tinham fugido de seu então
“patrão”, sem admitir nenhum assassinato. Tempo depois, rondas por parte de forças do Forte
da região encontraram os restos do tal não indígena, o que foi avisado ao subdelegado que,
segundo a perspectiva de quem narrou esses escritos, seguiu omisso. De acordo com essa
pessoa, o comandante militar responsável teria avisado ao governo da província, mas sem que
isso tivesse culminado em algum resultado que o delator considerasse satisfatório, que esperava
o indiciamento criminal dos dois indígenas. Esta reclamação publicada ilustra a “omissão” das
autoridades locais em relação à potencial ação dos indígenas, que está possivelmente associada
a certos grupos de poder, que buscavam evitar arrumar novos atritos com povos que pudessem
os ajudar em conflitos com a república vizinha, com a qual as tensões seguiam aumentando.
Analisadas as fontes aqui dispostas, é interessante perceber as menções positivas aos
Guaicuru quando esses eram colocados em antagonismo à República do Paraguai. Mesmo em
menções de autores que demonstram não prezar muito por eles, aconteceu um enaltecer dos
indígenas frente aqueles com os quais as tensões do Império só cresceram no decorrer dessa
década. O que também corrobora com os discursos que tomaram forma no parlamento.
Em relação à primeira das fontes analisada nesse subtópico, há de ser feita uma ressalva.
Embora nela se tenha enaltecido os Guaicuru e sua coragem, eles não foram colocados
antagônicos ao Paraguai, mas sim à monarquia e as elites imperiais, vistas pelos liberais que a
escreveram como instituições herdeiras de um passado colonial de atraso. Parece que tanto para
liberais quanto para conservadores, os Guaicuru, por vezes, foram apropriados como exemplos
de coragem e valentia contra os ‘inimigos’. O que mudava era quem seriam esses estes a serem
combatidos, a monarquia e as elites imperiais ou a República do Paraguai. Principalmente sobre
liberais, a análise de fontes aqui realizada não permite propriamente uma conclusão. Futuras
pesquisas, com mais fontes que dialoguem sobre esse objeto específico, terão de ser analisadas
para assegurar que a abordagem aqui encontrada não seja uma exceção. Embora, ao menos
avaliando o que foi disposto nesse texto, este não parece ser uma exceção e elenca-se dois
argumentos para essa interpretação: 1º) pela tal poesia liberal ter sido publicada em distintas
gazetas liberais; 2º) em decorrência da apropriação da valentia guaicuru fazer sentido aos
argumentos liberais antimonarquistas. Afinal, se por um lado esses indígenas fossem inimigos
dos paraguaios e espanhóis antes destes, também muito enfrentaram forças portuguesas e luso-
brasileiras, ao menos até poucas décadas antes de 1791, quando o já mencionado Tratado de
162

Paz tomou forma. Nada impede, por exemplo, que liberais também fizessem apropriações
semelhantes a de parte dos conservadores.
Por fim, reconhecem-se as limitações da ferramenta de busca da Hemeroteca Digital
Brasileira. As fontes trazidas podem não ser as únicas menções sobre guaicurus em jornais de
toda uma década. Ainda assim, ilustram um cenário, tanto com concordâncias em relação aos
discursos analisados do Parlamento quanto apontam outras, até certo ponto, semelhantes
apropriações dos indígenas em discursos liberais. Se, no caso específico de liberais, esses
discursos foram regra ou algo pontual, apenas pesquisas vindouras poderão assegurar.

3.4 O binômio terra e trabalho nos discursos sobre os Guaicuru: violências e


resistências em longa duração

Após meados do século XVIII a valorização do indígena na condição de vassalo assume


maior importância, devido ao contexto de maiores disputas territoriais entre as potências
ibéricas no Novo Mundo. Os limites territoriais ambicionados, tanto por Portugal quanto pela
Espanha, foram motivações para conflitos durante todo o período colonial, o que perdurou
mesmo após os processos de independências. É no contexto de crescentes atritos limítrofes da
América do Sul Setecentista que surge o Diretório dos Índios, também chamado de Diretório
Pombalino, devido ao seu principal articulador, Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-
1782), o então Marquês de Pombal. Embora promulgado em 1757, o Diretório é baseado num
conjunto de leis e alvarás, datados de 1755 (ALMEIDA, 2015; DOMINGUES, 2000;
MACHADO, 2021).
A política pombalina trouxe como marca a busca do fortalecimento do poder do rei, e
do poder central, numa estratégia de reforço ao absolutismo e, por consequência, objetivando o
maior controle sobre a colônia por parte da metrópole. Neste sentido, Marina Machado defende
que o Diretório representou uma “mudança ideológica” no tratamento político português
perante os povos originários dos territórios que reivindicavam como seus na América. Isso
aconteceria pela Coroa passar a centralizar em si a responsabilidade sobre a temática indígena,
em detrimento dos jesuítas, figuras de fundamental importância na empreitada colonizadora até
aquele momento. A pesquisadora defende que “na perspectiva iluminista de Pombal, os
religiosos estavam assumindo o controle espiritual, político e econômico sobre aldeamentos e
seus indivíduos” (MACHADO, 2021, p. 109). Não houve, porém, o fim de uma tutela desses
163

indivíduos, apenas uma modificação no formato dessa, como será melhor explicado nos
próximos parágrafos.
O Diretório trazia ainda como síntese de muitas práticas já existentes, enquanto fontes,
outras leis, como a Lei da Liberdade dos Índios (1755) e a Lei dos Casamentos (1755), a
primeira proibindo a escravização de indígenas sobre quaisquer circunstâncias e a segunda
incentivando os casamentos entre indígenas e não indígenas, ou seja, a mestiçagem. A lei das
liberdades, por exemplo, representava o caráter iluminista da política pombalina e criava um
“povo”, formado por vassalos do rei, capazes de ocupar territórios reivindicados pela Coroa,
pois “a preocupação básica era ocupar o território” (ALMEIDA, 2015, p. 178). O objetivo deste
conjunto legislativo era alinhado: exterminar costumes, ou melhor, a própria cultura originária
e, ao mesmo tempo, findar discriminações contra os indígenas. Esperava-se que assim os
indígenas se tornassem vassalos tais quais não indígenas, sem distinções.
O Diretório mantinha a dualidade entre ‘mansos’ e ‘selvagens’, perpetuada desde o
Regulamento das Missões de 1686. A maior inovação política pombalina no que tange os povos
indígenas foi assumir a perspectiva assimilacionista, que se deu, principalmente, através de
políticas de incentivo aos casamentos entre indígenas e não indígenas e contrárias à
discriminação dos povos originários. Sobre isso, Maria Regina Celestino sintetiza:

As grandes inovações aparecem nas propostas para extirpar os costumes indígenas das
aldeias, no forte incentivo à miscigenação e à presença de brancos em seu interior,
bem como no fim da discriminação legal contra os índios, na medida em que os livrava
das limitações impostas pelos estatutos de limpeza do sangue. A ideia de civilização
passava a preponderar sobre a de catequese (ALMEIDA, 2015, p. 180, grifo nosso).

Para efetivar esses interesses reforçou-se uma política que tomou forma na América
Portuguesa desde o século XVII, os acordos com lideranças indígenas, especialmente aquelas
das regiões mais afastadas do contato com os não indígenas, recorrentemente chamadas de
‘sertões’. Intencionou-se o reconhecimento destas lideranças e, após de seus grupos, enquanto
súditos do rei. Além disso, como já pontuado, eram reforçadas políticas de estímulo à
convivência e a casamentos, logo, de miscigenação entre indígenas e não indígenas. A
‘civilização’ prevaleceu à ‘catequese’ à medida que a Coroa assume o foco político na ocupação
e no assegurar dos territórios, frente às idealizações de mera conversão religiosa dos indígenas.
Mais que fiéis à religião cristã católica, objetivaram-se mais súditos ao rei.
Na prática, a proposta de combate às discriminações não funcionou tanto. Perpetuaram-
se diferenças e distinções, tanto entre indígenas, mesmo aldeados, quanto entre indígenas e não
indígenas. Pode-se dizer que o Diretório chegou mesmo a contribuir para a hierarquização entre
164

indígenas, através da manutenção e, em certa forma, incentivo às desigualdades (ALMEIDA,


2015).
Como já colocado ao longo dos parágrafos anteriores, a política dual de dividir os
indígenas entre ‘mansos’ e ‘selvagens’ ou ‘bárbaros’ não só foi mantida, mas também reforçada
e consolidada pela política pombalina. Ainda assim, a aplicabilidade do Diretório foi variada
dentre as diferentes espacialidades e grupos indígenas. A recorrente distinção foi
particularmente pouco aplicável nas regiões limítrofes. Nesses espaços houve uma maior
circulação por parte dos indígenas entre estes distintos estados de interpretação sobre suas
culturas políticas. Nessa perspectiva, Celestino de Almeida defende que a oposição ‘bárbaros’
e ‘civilizados’ foi mais discursiva, pensando nos discursos oficiais, mais que na prática:

Assim, a propaganda oposição rígida entre barbárie e civilização, tão útil à política
indigenista, desde os primórdios da colonização, apresentava-se muito mais nas
legislações e nos discursos de autoridades, intelectuais, viajantes e dos próprios líderes
indígenas do que na realidade cotidiana dos sertões, por onde circulavam e se
mesclavam os mais variados agentes coloniais (índios e não índios) (ALMEIDA,
2015, p. 197).

Em suma, o Diretório dos Índios foi, antes de qualquer outra coisa, uma ferramenta para
a colonização territorial da América portuguesa, que usava de diferentes estratégias, com plurais
aplicabilidades em distintas espacialidades. Esta legislação seria revogada em 1798, ainda
assim manteria sua influência ao longo do século XIX111.
Só em julho de 1845, no contexto imperial, foi promulgado o Regulamento das Missões,
após um longo hiato legislativo sobre a temática indígena, 1798-1845112. Esse novo instrumento
representou, em grande medida, uma continuidade do Diretório dos Índios, nas formas de
organização e no sistema de aldeamentos. Só que trouxe também uma reforma administrativa
destes espaços, criando novos cargos para não indígenas dentro e fora dos espaços das reduções
(MACHADO, 2006).
Cinco anos depois, em 1850, ocorre a promulgação da Lei de Terras e, em 1854, um
Regulamento que complementava a primeira. Esse conjunto legal ordenou a criação de uma
Repartição Geral das Terras Públicas. Caberia a este órgão dirigir a mediação de questões de
terras; dividir e descrever terras devolutas113; promover conservação de terras; propor ao

111
Como, inclusive, já previamente analisado no primeiro capítulo desta dissertação.
112
Esse período de hiato seguiu muito influenciado pelo Diretório dos Índios, mesmo que este já tivesse sido
revogado.
113
“Terras devolutas” são aquelas em poder do Estado (PETRONE, 1975).
165

governo imperial quais terras devolutas seriam reservadas à colonização indígena, fundação de
povoações ou vendidas; fiscalizar esta distribuição de terras devolutas; promover a colonização
nacional e estrangeira; registrar as terras possuídas e, por último, propor ao governo fórmulas
de revalidação de títulos e legitimação das terras possuídas (MOTTA, 1998).
Foi só a partir da Lei de Terras que houve a busca pela regularização da estrutura
fundiária do país, discriminando os domínios públicos e privados. Os chamados Registros
Paroquiais de Terra114 se tornaram obrigatórios para todos os possuidores de terras. Houve,
porém, dificuldades para colocar em prática esse projeto, em grande parte motivadas pelas
situações de litígios de terra (associados aos limites imprecisos territoriais), somada à ocupação
de terras devolutas. Ainda assim, certo otimismo sobre o potencial da Lei de Terras seguiu, ao
menos, pela década de 1850, muito associado às demandas e idealizações sobre a promoção de
colonização de uma população laboriosa, não só formada por imigrantes. Já em 1855, relatórios
provinciais traziam, por diferentes razões, denúncias sobre o fracasso da regularização do
projeto fundiário do Brasil. A legislação era vista com certa desconfiança e dificuldade de
compreensão dos possuidores de terras, resultando em poucas propriedades legalmente
registradas (MOTTA, 1998).
Nesta perspectiva, o Relatório da Repartição Geral das Terras Públicas, de 1855,
apontava a existência de diferentes extensões de terras devolutas em distintas províncias do
Brasil, mas reconhecia também as crescentes invasões. Somado a isso, segundo Márcia Motta:

As dificuldades para discriminar as terras públicas das privadas, através do registro


das terras possuídas, e os esforços no sentido de receber informações sobre terrenos
reconhecidamente devolutos cresciam cada vez mais, imprimindo a marca do fracasso
na política de regularização então proposta pela Lei de 1850 (MOTTA, 1998, p. 163).

Relatórios oficiais da década de 1870 reforçam ainda mais a ideia de fracasso e


acrescentam que a Lei de Terras não serviu nem para impedir a invasão de terras públicas, o
que seguia quase que sem estorvo àqueles que assim o faziam. No final dessa década já estava
esgotado quase qualquer otimismo acerca das possibilidades desta lei. Ainda segundo Motta
(1998), o reconhecimento da legitimidade de um registro de terras legalizado, na prática, estava
intrinsecamente associado às relações sociais estabelecidas pelos atores interessados. Mais do
que a pura legislação, o domínio sobre um determinado conjunto de terras tomava forma a partir

114
Livros de registros de posse de terras mantidos pelos “vigários de cada paróquia que deveriam lançá-los
textualmente em livros abertos para este fim, os quais, findos os prazos estipulados, seriam enviados para o
diretor geral de terras públicas da respectiva província” (GARCIA, 2011, p. 65).
166

da legitimação deste pelos indivíduos daquele contexto espacial e temporal. Daí parte da raiz
de muitos conflitos de terras perpetuados até a atualidade.
Antes do prosseguimento num debate sobre o Império brasileiro, constitui-se um
parêntese, a mérito de comparação deste com a realidade vizinha sul-americana, de diferentes
colônias (posteriormente, repúblicas) de colonização espanhola. Não há consenso entre os
historiadores que se debruçaram sobre a América Hispânica, perante o respeito das forças
coloniais em consideração a relação entre terras e a posse destas por indígenas. Independentes
das plurais teorias, não indígenas também tenderam a se privilegiar nos jogos de poder e dos
diversos instrumentos sociais, legais, políticos, econômicos e culturais usados pelos grupos de
poder. Nesta discussão, Tamar Herzog (2013) concorda que houve, ao menos, certo
reconhecimento de direitos originários por parte de colonialistas nos estudos para a América
Hispânica. A historiadora argumenta que essa particular consideração pelos direitos originários
na América Hispânica gerou uma grande reorganização, e ainda que houvesse certo respeito
aos direitos de indígenas, esses direitos deveriam fazer sentido aos padrões e reconhecimentos
espanhóis. A partir disso, direitos prévios à colonização deixaram de existir, mas deram espaço
para outros, fruto desse processo de troca entre as culturas políticas do colonizador e do
colonizado. Direitos ancestrais deram lugar à direitos coloniais, o que gerou, inclusive, muitas
realocações espaciais, em relação aos territórios ocupados antes do início da colonização.
O processo de tornar algo mais próximo da cultura política europeia cristã europeia não
significou o pleno abandono do que era ser indígena. Estes indivíduos foram menos vistos como
‘tábulas rasas’, do que em outros casos de colonização. Ainda assim, buscou-se algum grau de
controle sobre as idealizações de continuidade do passado pré-colonial. A cristianização, neste
contexto, não buscou necessariamente anular a identidade indígena. Civilizar não significava
deixar de ser indígena. Segundo os discursos oficiais das forças de poder espanholas,
posteriormente, hispano-americanas, indígenas eram vassalos do rei, logo, detentores de
direitos coloniais, dentre estes, o direito à terra e a proteção. Na teoria, porém, recebiam essas
terras por serem vassalos, não por serem seus habitantes originários:

Ao final desse processo, os nativos passaram a ser, em vez de portadores de direitos


ancestrais, detentores de novos e radicalmente diferentes tipos de direitos. Eles
receberam terras não porque eram possuidores ou proprietários antes da chegada dos
espanhóis, mas porque eram vassalos que precisavam de proteção (HERZOG, 2013,
p. 318, tradução nossa).

Na América Hispânica houve um maior reconhecimento de direitos de povos


originários, inclusive à terra, ainda que, não raramente, estes tenham sido obrigados a se
167

deslocar e residir em espacialidades distintas de seus territórios natais (HERZOG, 2013).


Enquanto o processo civilizacional de Portugal assumiu uma postura de absorção, assimilação
e idealizou um agregar dos povos indígenas à sua vassalagem através da miscigenação, para a
Espanha a “civilização” não dependia da anulação de uma identidade indígena, ainda que essa
tivesse de se adequar aos interesses metropolitanos. Em ambos os casos, ressalta-se o
protagonismo originário que soube utilizar das ferramentas, inclusive legais, fornecidas pelas
próprias potências ibéricas. Somado a isso, em atritos sobre terras por toda América também se
tendeu na prática a privilegiar não indígenas.
Dando prosseguimento à discussão sobre a questão de terras e as relações destas com
povos indígenas, no Brasil, há de ser relembrado sobre os chamados ‘sertões’. Estes eram uma
espécie de fronteira115, uma zona de contato, fluída e móvel, entre o temor e as aventuras a
serem enfrentadas, exploradas e vencidas. Por vezes tidos como lugares quase míticos,
mesclando repulsa e admiração, espaços de ‘desordem’, que necessitavam ser ‘civilizados’,
porque representavam um obstáculo para o progresso da cultura política europeia (AMADO,
1995; MACHADO, 2021). Desde o período colonial o cenário político e econômico estimulava
a expansão da sociedade colonial em direção aos territórios habitados por indígenas,
especialmente os tais ‘sertões’, representando a “fronteira simbólica e social” do projeto
colonial português (MALHEIROS, 2008, p. 137).
Durante o processo colonial todo o conjunto de relações entre indígenas e não indígenas
foi intrinsecamente conectado à catequização, a qual compunha parte indissociável do discurso
oficial luso (e europeu católico, no geral). Servindo também de justificativa para as ações da
coroa sobre os povos originários, principalmente nos dois primeiros séculos da colonização. O
discurso de ‘salvar’ o indígena tinha em sua centralidade o processo de conversão ao
cristianismo católico, somado à idealização da ‘civilização’. Em outras palavras: a imposição
da cultura política europeia e cristã sobre aquelas plurais realidades originárias. Houve aqueles
contra a violência física dos processos de conquista, mas a ideia da ‘civilização’, tal qual a
imposição da sua cultura política enquanto verdade, doutrinação e compulsão sobre o outro, foi
geral. Assim como, em diferentes graus e formas, as resistências, ou mesmo, ‘indiferenças’ de
povos indígenas a essas verdades externas (MALHEIROS, 2008; MELLO, 1986; VAINFAS,
2022).

115
“Fronteira”, segundo a historiadora Marina Machado (2021), não diz apenas respeito de espaço físico, mas
também sobre a cultura e a humanidade presente nestes contextos. A fronteira teria então por característica os
encontros e a mobilidade, tanto física quanto cultural.
168

As regiões de contato entre colonos e colonizados foram constituídas através da


violência das forças diretas da metrópole, ainda que comumente rarefeitas, além de outros
atores alinhados e legitimados por essa, como missionários cristãos de diferentes denominações
religiosas. Esse conjunto de atores, essas forças de uma ordem cultural europeia e cristã, têm
um particular papel na construção de uma moralidade para o estabelecimento da submissão e a
inibição de formas de rompimento da ordem. Necessitavam, seja através de violências bélicas
ou submissões sutis, construir bases para o desenvolvimento e manutenção de uma
superioridade do ‘eu’, europeu cristão, ‘civilizado’, sobre o ‘outro’, indígena, ‘selvagem’
(FANON, 1968). Nesse cenário se desenharam os presentes e as buscas por uma dita ‘amizade’
de portugueses para com os Guaicuru. Tomou então forma, como já apresentado neste e nos
capítulos prévios, um processo de colonização, dominação, e imposição da submissão muito
baseado na criação de uma dependência econômica desses indígenas por parte daqueles que
intencionavam suas terras, seu apoio bélico e mão de obra. O que também corrobora com outras
pesquisas sobre distintas espacialidades pelo Brasil e cuja temporalidade se estende entre os
séculos XVIII e XIX116, demonstrando uma realidade longe de ser algo isolado e pontual, nem
apenas restrito à fronteira Oeste, ainda que esta apresente uma pluralidade de especificidades.
Tanto as ‘fronteiras’ quanto os ‘sertões’ constituíram-se enquanto construtos discursivos, estes
sempre marcados pelos interesses daqueles que os proferiram ou escreveram.
O crescente interesse pelos territórios originários na passagem do século XVIII para o
XIX foi, porém, indissociável ao mutual aumento da demanda pela mão de obra de indígenas,
especialmente nas regiões de “sertões”, mais afastadas da centralidade, primeiro colonial,
depois imperial, onde a mão de obra escravizada africana foi escassa e não tanto atraiu
imigrantes como no litoral. Ao invadir e dominar os territórios, necessitava-se que estes fossem
utilizados de forma a potencializar o máximo de lucro possível e não havia disponível mão de
obra tão próxima, mais barata e conhecedora daquelas espacialidades que os próprios indígenas.
O caminho para a civilização, seguindo as intencionalidades dos grupos de interesse e poder,
tanto da Colônia quanto do Império, passava necessariamente pelo trabalho e pela apropriação
de terras indígenas117. É através desse amplo processo de imposição de uma cultura política,
com o interesse sobre terras e a mão de obra para maximizar lucros e viabilizar os interesses,

116
A exemplo de: DOMINGUES, 2000; MACHADO, 2021; MALHEIROS, 2008; dentre outros.
117
Para um debate sobre a relação do binômio terra e trabalho nos discursos de não indígenas sobre indígenas
Guaicuru, da transição do século XIX até o início do XX, dialogando com trabalhos de intelectuais como
Manuela Carneiro da Cunha (1992b) e outras pesquisadoras citadas nesse subtópico, conferir: BORGES, 2022.
169

originalmente, de não indígenas, que se construiu uma indissociabilidade do binômio terra e


trabalho no contexto aqui estudado.
O projeto de consolidação territorial das regiões limítrofes ao Oeste, distantes do litoral
e dos centros políticos e econômicos litorâneos, que datava desde o período colonial ganharia
uma nova força quando se soma ao projeto de construção de uma identidade nacional brasileira
a partir dos Oitocentos, especialmente após a criação do IHGB. Era o ‘civilizar’ dos povos
originários desse espaço, que garantia as terras nas quais habitavam como propriedade do seu
soberano, sua mão de obra para o agregar daqueles espaços à economia primeiro colonial,
depois imperial e, assim, garantir uma unidade territorial, ainda que extremamente diversa. Um
Brasil ‘uno’ territorialmente foi tanto um instrumento discursivo, quanto resultado de um
projeto de identidade nacional nunca ‘pura’, mas sempre misturada. Esta mestiçagem aqui vista
não pela pluralidade de trocas e novas potencialidades de cultura política, mas sim num viés
homogeneizador de supremacia de um ‘eu’ não apenas não indígena, mas europeu, branco,
cristão católico e que representasse esses valores no modo como performava essa identidade,
tanto na vida pública quanto mesmo na intimidade (como na sua sexualidade), acima do ‘outro’,
que demonstrasse destoar da forma que fosse do ‘eu’ invasor.
Há também diversos trabalhos publicados sobre a formação das regiões limítrofes mato-
grossenses, inclusive tendo por recorte sua região Sul, no atual Mato Grosso do Sul, explorando
e argumentando sobre este ter tido sua espacialidade construída num processo marcado por
conflitos, violências e traumas. Como exemplo dessas pesquisas, podem ser citados os livros
derivados de teses ou dissertações de historiadores, como Lúcia Salsa Corrêa (1999), Valmir
Batista Corrêa (2000) e Cláudio Alves de Vasconcelos (1999)118. A partir desses desbravadores
trabalhos, compreende-se que a sociedade não indígena mato-grossense teve sua formação
marcada pelas relações de violências, somadas à dificuldade de fixação, motivada por uma
natureza desfavorável e contatos hostis com indígenas, a exemplo dos próprios Guaicuru.
Segundo Valmir Corrêa (2000), a raiz dessa violência se encontra na exploração da Coroa
durante o período colonial, que intencionou escrutinar e controlar muito os primeiros colonos
mineiros119, atividade que cresceu na região após a descoberta de ouro, nos Setecentos
(VANGELISTA, 2015).

118
Esses pesquisadores possuem amplo currículo de publicações, porém, optou-se por elencar a obra de cada um
que aqui mais agregasse. Todos também são professores titulares de universidades federais do Mato Grosso do
Sul, aposentados ou ainda em atividade.
119
Como o irmão de Francisco Rodrigues do Prado, visto no primeiro capítulo desta dissertação.
170

Para além da riqueza escoada para a metrópole, outra considerável parcela foi
direcionada para comerciantes locais, muitos portugueses ou descendentes diretos destes, os
mesmos que se constituíram enquanto grupos de poder regional, controlando a política local.
Indivíduos que enfrentaram resistências e reações de confronto por parte de grupos menos
favorecidos ao longo do século XIX. Rebeliões regionais não findaram as desigualdades
marcantes locais, mas geraram períodos com oscilações de quais grupos estavam no poder. Em
outras palavras, lideranças se foram, mas a estrutura econômica e política seguiu mantendo as
marcas da desigualdade e de violências, em diferentes formas. As marcas de violências e de
resistências permaneceram, ao menos, até as primeiras décadas do século XX, nas regiões
limítrofes, enquanto uma derivação da herança colonial (CORRÊA, 1999; CORRÊA, 2000;
VASCONCELOS, 1999). No que tange às relações entre indígenas e não indígenas, porém, o
processo de construção dual entre as violências e as resistências, historicamente marcado pela
questão de terras e trabalho, nunca chegou a ser superado constituindo-se como um processo
de longa duração.

3.5 Disputas de interesses num cenário de tensionar das relações entre o Império do
Brasil e a República do Paraguai

Esse capítulo direcionou-se a uma compreensão através da qual houve sobreposições de


interesses entre políticos frente a posturas mais estáveis dentro de um mesmo partido. Se não
em outros diferentes pontos, ao menos nos que foram abordados na análise de fontes realizada.
Assim, por um lado, se o Partido Conservador era ainda, neste início de segunda metade dos
Oitocentos, visto enquanto mais forte e estável que seus opositores liberais, por outro, as cisões
internas estavam presentes. Não necessariamente por questões ideológicas, mas sim pelos
interesses e jogos de poder dentre suas proeminentes lideranças parlamentares.
Frente a esses jogos de poder através de disputas de discursos, categorias como a
‘cidadania’ também se tornaram consideravelmente instáveis. Se estudos prévios já
demonstraram que o status de cidadão era ora atrelado as elites aristocráticas, ora nem a elas,
aos indivíduos interpretados por estes grupos de poder como ‘civilizados’, esse status variou
mais ainda. Isso não é surpreendente, tendo-se em perspectiva que esses grupos socialmente
menosprezados, como os indígenas, negros e mulheres, não tinham a voz perante os discursos
oficiais. A esses indivíduos quase nunca, durante o século estudado, ou anteriores, foi atrelado
um status de cidadão equivalente ao dos homens não indígenas e não negros que tivessem
171

distinta riqueza econômica. Somada a essa desigualdade naturalizada, a consideração de algum


grau de cidadania, ainda que apenas de ‘súditos obedientes’, indivíduos submissos, necessitados
de potencial proteção ou tutela, algo muito fluido nos discursos Oitocentistas.
Na maioria dos episódios em que aos Guaicuru foi atrelado algum grau de cidadania,
esta esteve sempre associada aos territórios por eles ocupados, de posse reivindicada pelo Brasil
e marcados pela relação conflituosa contra a República do Paraguai, que tanto já vinha gerando
incômodos ao Império naqueles anos pré-Guerra. O que não impediu discursos antagônicos por
parte daqueles que viam esses indígenas, ou melhor, os discursos construídos sobre esses povos
como potencial fontes de problemas aos seus interesses ou de seus grupos. Nesse caso, não só
o status dos Guaicuru dentro do Império se mostrava incerto, como a sua identidade variou ao
entender de terceiros. Mesmo projetos estruturais, como a manutenção do território nacional,
através da garantia de posse de terras, principalmente nas regiões limítrofes, podiam ficar em
segundo plano nas disputas de discursos do Parlamento. A questão era quem conseguia
consolidar seus discursos enquanto oficiais e assim construir sua própria ‘vitória’, ou, ao menos,
assim tentar.
As fontes analisadas neste capítulo ilustram parte de um processo maior, através do qual
ocorreu um aumento de menções a respeito dos Guaicuru entre políticos e as elites (categorias
não dissociáveis), mesmo para além das forças regionais do então Mato Grosso, conforme as
tensões com a República do Paraguai cresciam. Uma tendência a omissão por parte de
lideranças da capital, no que tangia províncias mais periféricas, parece ter contribuído para
imbróglios que o Império passou principalmente nos primeiros anos da Guerra da Tríplice
Aliança (1864-1870).
172

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito do que se compreende a partir da pesquisa apresentada, não é fruto único da


fronteira Oeste, mas ocorreu também em outras regiões limítrofes do Brasil. Com isso, aquele
contexto regional, embora possuísse particularidades, foi resultado de um projeto maior de
colonização português. Ou melhor: do choque entre este e o equivalente espanhol. O crescente
interesse pelo aldeamento dos Guaicuru se inseriu também num contexto macro, geral à colônia
e, depois, ao Império. O que mudou a partir de finais dos Setecentos, neste caso, foram as
estratégias institucionalizadas. Pelas diversas regiões limítrofes do futuro Brasil, forças locais
foram instruídas pela Coroa portuguesa e começaram a buscar presentear e fortalecer seus laços
de apoio com as etnias indígenas desses espaços, o que incluiu os Guaicuru. Essa foi uma
estratégia dual que buscou integrar os indígenas ao comércio colonial e, mais tarde, imperial,
além de usar a força de trabalho destes direcionada aos interesses não indígenas. Os indígenas
foram interpretados como atores muito importantes para a integralidade territorial idealizada,
perante o projeto de construção de nação no qual o IHGB e seus associados tiveram um papel
essencial. Este processo foi uma herança colonial, reforçada ao longo do Império, com destaque
do papel institucional da citada entidade.
A região do então Sul da província do Mato Grosso foi constantemente associada, pelos
não indígenas, à ideia de fluidez como característica basilar, tanto daquele território quanto dos
indivíduos que lá viveram. Essa idealização contribuiu significativamente para o recorrente
rótulo de ‘inconstantes’, associado aos Guaicuru. Marcada por perspectivas limitantes, a
descrita inconstância, assim como outros pontos mais, se constituiu enquanto resultado de um
choque entre a cultura política dos não indígenas e a dos Mbayá-guaicuru. O sedentarismo e as
delimitações espaciais restritas, os cercamentos, a propriedade estática, por mais naturais que
fossem aos europeus, não eram elementos inseridos na cultura política daqueles indígenas.
Nada do que foi analisado ao longo deste trabalho, porém, leva a discordância quanto a
perspectiva já estabelecida na historiografia sobre essa região enquanto um espaço de
constantes violências. Se antes da chegada dos ibéricos pelo Chaco já havia conflitos entre
diferentes etnias indígenas, após sua chegada esses atritos bélicos se expandiram e se
complexificaram, agora, com mais atores, primeiro os espanhóis e, posteriormente, os
portugueses. Confrontos entre grupos Guaicuru e forças lusas ocorreram desde a época das
primeiras expedições de bandeirantes, no que, para estes, era um amplo, desconhecido e
misterioso sertão. Desde essa época, essa etnia passou a ser reconhecida e abordada
173

temerosamente pelos não indígenas portugueses, afinal, essas expedições foram reprimidas
pelos indígenas lá viventes. Conflitos plurais existiram até o início do último quarto do século
XVIII e o último embate que gerou mortes foi o mais relembrado nas fontes ao longo do século
seguinte. Somado a isso, também está o fato do período anterior ao deste episódio, datado de
1778, ter sido marcado pela pontual ausência de atritos bélicos com os Guaicuru. De toda forma,
mesmo com a idealização e romantização de indígenas, característica central do projeto de
construção de nação que tomou forma ao longo dos Oitocentos e que não excluiu esta etnia, o
episódio de 1778, que teria acabado com mais de 50 portugueses mortos, se constituiu enquanto
um trauma central na memória coletiva não indígena acerca dos Mbayá-guaicuru.
O projeto de um Brasil enraizado, ao menos em partes, em indígenas idealizados,
resultou em abordagens que elencaram aspectos positivos sobre os Guaicuru. Sem dúvida, o
afastamento de Portugal, ainda que mais teórico do que prático, contribuiu para novas
perspectivas sobre esses indígenas que tanto resistiram às estratégias bélicas lusas. Ainda assim,
aspectos negativos, descritos pejorativamente, sempre se fizeram presentes nos discursos de
não indígenas, conforme era de se esperar dos homens daquele passado, porém, o foco desse
desconforto variou. Somado ao relembrado trauma, a existência das ‘cudinas’ constituiu-se
enquanto o ápice de antagonismo em relação à cultura política não indígena.
Pode-se afirmar então que, ao longo do século XIX, tomou forma nos discursos de não
indígenas sobre os Guaicuru um dualismo sobre a abordagem discursiva em relação a estes.
Começou-se a haver a descrição desses indígenas como poderosos e superiores a outros povos
originários. Ponto central aqui é que isso foi algo dual, não contraditório: em um mesmo
discurso os Guaicuru eram tanto poderosos, superiores a outras etnias, porém ‘bárbaros’ e
‘selvagens’. Reconheceu-se assim a potência daquele povo dinâmico que tanto resistiu aos
portugueses, porém, sem deixar de sempre ser pontuado que eram o ‘outro’, na relação com os
não indígenas. Logo, intrinsecamente inferiores ao padrão civilizacional português e cristão que
se apresentava enquanto superior, como um bastião da verdade e modo correto de se viver e
interpretar o mundo a sua volta.
Reforçando a lógica de busca e manutenção dos interesses de atores históricos, nos
discursos do Senado imperial as disputas pessoais sobrepujaram interesses partidários. Mesmo
quando estes eram interpretados pelo Imperador como fortes e estáveis, atritos internos não
deixaram de existir. Interesses pessoais sobrepujaram projetos políticos e assim o status de
alguma forma de cidadania associado àqueles indígenas demonstrou-se fluido, inconstante,
característica tão usada por mais de um século para criticar os Guaicuru. Embora não
174

plenamente oficial até 1988, a associação desses indígenas a alguma forma de cidadania se deu
apenas quando havia interesse no uso de seus corpos e força produtiva, além das terras pelas
quais viveram e circularam.
Coube aos Guaicuru, dando base ao comércio colonial português, um papel essencial na
viabilização da efetivação da ocupação lusa no sul da província do Mato Grosso. Somado a
isso, a estratégia de presentes foi frutífera, gerando também o Tratado de Paz de 1791, reforçado
com diferentes lideranças Guaicuru ao longo da última década do século XVIII. Esse plano foi
assertivo ao gerar uma crescente dependência desses indígenas a itens comerciais não indígenas
a que aqueles não tiveram contato antes dos ibéricos. Passando por distintos regimes políticos,
ao longo dos Oitocentos as relações entre não indígenas e os portugueses, luso-brasileiros e
brasileiros, persistiram. Perante os discursos analisados ao longo dessa dissertação, aos
Guaicuru coube assegurar aquelas terras à posse daqueles invasores, disponibilizando seus
corpos e ações aos interesses e a manutenção da cultura política europeia e cristã deles120. A
imposição da cultura política dos invasores sobre os Guaicuru foi um projeto de raízes coloniais,
perpetuado no Império e, até a atualidade, não superado em sua totalidade. Assim, não foi
surpresa o quanto afetou a memória coletiva sobre esses indivíduos, cuja fluidez discursiva foi
guiada pelos interesses de não indígenas.
Não se ignora aqui a potência de resistência Guaicuru, mas, de fato, suas populações
diminuíram radicalmente ao longo dos Oitocentos. Embora as motivações deste movimento
sejam hipóteses, o papel ativo desses indígenas na Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) foi
um fator basilar nesse processo. Ao final do século XIX persistiram apenas um subgrupo dos
Guaicuru, os Kadiwéu. Sua existência na atualidade contribuiu para que, com o nascer de novas
perspectivas antropológicas e históricas na segunda metade do século XX, acadêmicos
ajudassem a trazer mais protagonismo aos discursos indígenas dentro das pesquisas sobre esses
grupos, neste caso se destacando o papel do antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997). Embora
não seja esse o recorte étnico ou temporal desta dissertação, defende-se aqui o potencial

120
Embora não esteja no recorte desta dissertação, há de se mencionar, com base em outro trabalho prévio
(BORGES, 2022), que a perspectiva dos Guaicuru enquanto ‘guardiões’ dos sertões do oeste à posse imperial
persistiu até a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870). Após esse conflito, com aqueles territórios antes
disputados, já assegurados ao Brasil, aqueles indígenas começaram a ser crescentemente interpretados como um
problema. Os não indígenas, em especial os latifundiários, forças de poder regional daquele passado (e da
atualidade), almejaram aquelas terras para suas produções agropecuárias. Aos indígenas fragilizados pela guerra
e outras situações diversas, coube se adaptar às demandas, especialmente de mão de obra dos fazendeiros. Uma
vez mais, não se anula aqui as plurais resistências dos indígenas. De toda forma, as forças institucionais do
Estado brasileiro se voltaram contra eles e a favor dos não indígenas, o que não foi superado e persiste no Mato
Grosso do Sul da atualidade. Se não houvesse resistência indígena, não mais existiriam indivíduos que
defendessem e reforçassem sua identidade Kadiwéu, mesmo após séculos de investidas sobre múltiplas frentes e
estratégias daqueles que invadiram suas terras séculos atrás.
175

elucidativo de novas pesquisas que ainda hão de serem propostas. Outro ponto analisado de
modo pontual nesta dissertação, mas que merece um aprofundamento, alinhado aos debates
contemporâneos dos estudos de gênero, são as existências e os discursos sobre as ‘cudinas’121.

121
Sobre este último tema publiquei um estudo inicial intitulado Considerações preliminares sobre as cudinas,
travestilidades indígenas mbayá-guaicuru (BORGES, 2023). Há esboços também de futuras novas produções
textuais aprofundando o debate sobre as ‘cudinas’, incluindo os discursos perpetuados pelos Kadiwéu. Ainda
assim, esperam-se também novas pesquisas, de áreas plurais, que dialoguem com essas ricas temáticas.
176

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