Conceito de Ficção e Metaficção
Conceito de Ficção e Metaficção
Conceito de Ficção e Metaficção
João Pessoa – PB
2013
N754j Nobre, Lucia Fatima Fernandes.
Jogo de Espelhos em Atonement: trajetórias e implicações da
metaficcionalidade no romance e no filme / Lucia Fatima
Fernandes Nobre.- João Pessoa, 2013.
322f.
Orientadora: Genilda Alves de Azerêdo Rodrigues
Tese (Doutorado) – UFPB/CCHL
1. McEwan, Ian, 1948- (Atonement) - crítica e interpretação.
2. Literatura - crítica e interpretação. 3. Literatura e cultura.
4. Metaficção. 5. Paródia. 6. Adaptação fílmica.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Profª. Drª. Genilda Alves de Azerêdo Rodrigues - UFPB
(Orientadora)
__________________________________________________
Profª. Drª. Antonia Marly Moura da Silva – UERN
(Examinadora Externa)
__________________________________________________
Profª. Drª. Alessandra Soares Brandão – UNISUL
(Examinadora Externa)
__________________________________________________
Prof. Dr. Expedito Ferraz Júnior – UFPB
(Examinador Interno)
__________________________________________________
Profª. Drª. Maria Luiza Teixeira Batista – UFPB
(Examinadora Interna)
__________________________________________________
Profª. Drª. Elinês de Albuquerque Vasconcelos de Oliveira– UFPB
(Examinadora Suplente)
João Pessoa – PB
2013
Aos meus pais
(in memoriam)
AGRADECIMENTOS
À Profª. Drª. Genilda Alves de Azêredo Rodrigues por ter me guiado pelas trilhas da
adaptação e pelos labirintos da metaficção – uma jornada fascinante, em companhia
admirável, cuja competência inconteste é fonte de inspiração.
Ao Prof. Dr. Expedito Ferraz, um leitor especial e sensível, pelas instigantes aulas
peircianas e pelos „palpites‟, leia-se, insights extraordinários.
Às Professoras Doutoras Antonia Marli Moura da Silva, Maria Luiza Teixeira Batista,
Alessandra Soares Brandão e Elinês de Albuquerque Vasconcelos de Oliveira pela
leitura cuidadosa e pelas valiosas contribuições.
À minha amiga Andréa Burity Dialectaquiz pela amizade e cumplicidade nesta jornada
de trabalho.
À Antonieta, Deborah, Sarah e Davi Amaral pela amizade e pelo suporte na árdua tarefa
de aquisição bibliográfica e no manejo tecnológico.
Ian McEwan
RESUMO
The investigation of metafictional narratives undoubtedly plays a relevant role for the
comprehension of artistic work fictionality, as it may directly interfere in the theory and
criticism of fiction. The novel Atonement, by Ian McEwan, and its adaptation, by Joe
Wright, are characterized by a metafictional and parodic aesthetics. Having in mind the
premise that metafictional narratives tend to be resistant to film adaptation, due to the
complex articulation between metafiction and enunciation, we aim to investigate how
the metafictionality of Atonement is materialized in the novel and to show how the
transposition of this metafictionality occurs in the process of adaptation. Besides, since
in Atonement the metafictional aesthetics is implicated with an ethics, we also aim to
understand how this relation is approached in both works. To do so, our theoretical
support draws mainly from the studies postulated by Linda Hutcheon, Patricia Waugh,
Robert Stam, and Seymour Chatman. Through a comparative and intertextual analysis,
we conclude that the materialization of the novel metafictionality required expressive
creativity from both the verbal and filmic authors and originated interesting aesthetic,
thematic and cinematic innovation; even though the filmic text is intentionally very
close to the literary text in terms of form and content. As for the debate between ethics
and aesthetics, we observed that McEwan, through his character Briony, argues for an
ethics of alterity to help the individual face the paradox of post-modernity. McEwan‟s
ethically implicated fiction approaches the contingency, the heterogeneity and the
contradictory of the post-modern era, points to a possible way out of the crisis through
an ethics of alterity, but does not impose it as a paradigm.
Título...............................................................................................................
Ficha catalográfica..........................................................................................
Comissão examinadora...................................................................................
Dedicatória..........................................................................................................
Agradecimentos.................................................................................................
Epígrafe.............................................................................................................
Resumo ..............................................................................................................
Abstract............................................................................................................
Resumen...............................................................................................................
Sumário...............................................................................................................
1. Definição de metaficção................................................................................... 20
p. 032
1.1. Considerações terminológicas....................................................................... p. 032
1.2. Definição de metaficção................................................................................ p. 037
1. (Pré)conceitos................................................................................................... p. 070
1.1. Distorção do olhar: depreciação da adaptação............................................... p. 070
1.2. Desvio do olhar: a questão da fidelidade....................................................... p. 076
1. O romance......................................................................................................... p. 120
Referências........................................................................................................... p. 312
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
1
Ian Russell McEwan nasceu em 21 de junho de 1948 em Adershot, Inglaterra – cidade conhecida por
sua ligação com o exército. Passou os primeiros anos de sua vida nos postos militares avançados em
Singapura e na Líbia, onde seu pai, David McEwan, servia à coroa britânica como militar do exército.
Iniciou seus estudos em Woolverstone Hall Suffolk, graduou-se em literatura inglesa pela University of
Sussex em 1970, onde estudou com os escritores Malcolm Bradbury e Angus Wilson, e recebeu o título
de Mestre em Literatura Inglesa em 1971 pela University of East Anglia. Em 1989, McEwan foi
agraciado com o título de Doutor Honorário em Literatura pela University of Sussex.
2
Todas as traduções, inclusive aquelas das passagens extraídas do romance Atonement, são de minha
autoria. Trazemos, com este procedimento, uma contribuição para os estudos literários e cinematográficos
no Brasil, visto que quase a totalidade do aporte teórico-crítico utilizado, seja sobre metaficção ou sobre
adaptação fílmica ou sobre Ian McEwan e sua obra, não possui tradução em língua portuguesa.
Esclarecemos que embora o romance já tenha uma tradução para o português, optamos por trabalhar com
o texto original para não perder as nuanças semânticas que poderiam, porventura, interferir na
interpretação durante as análises. Não há aqui nenhum juízo de valor com relação à tradução existente, há
a compreensão da inevitabilidade de possíveis perdas no processo tradutório.
16
aquele entre o prazer e a labuta que a invenção artística impõe, isto é, o trabalho árduo
para concretizar a criação e o prazer que esta mesma criação confere ao seu criador. Na
citação em questão, este prazer diz respeito à “surpresa” que surge espontaneamente
durante o processo de criação, a qual McEwan chama de “uma pequena serendipidade” 3
(apud ROBERTS, 2010, p. 147). Trata-se das descobertas inventivas que afloram de
súbito em meio à produção da escrita ficcional. Coincidentemente, a exemplo destes
preciosos „achados‟, na citada entrevista, McEwan compartilha a criação das
personagens Mace e Nettle, companheiros de Robbie Turner na jornada para a costa de
Dunkirk em Atonement4, objeto de estudo da presente pesquisa.
Ainda em 1976, McEwan teve seu conto “Jack Flea‟s Birthday Celebration”
divulgado pela BBC e o conto “Solid Geometry” é adaptado para a televisão em 1979.
Em 1980, The Imitation game: Three Plays for Television, dirigido por Richard Eyre e
3
Trata-se aqui de um neologismo oriundo do termo inglês “serendipity”, que significa a capacidade de
fazer, por acaso, descobertas venturosas e inesperadas. Saliente-se que este termo foi cunhado por Horace
Walpole (1717-1797) e refere-se às personagens do conto de fadas The Princes of Serendip, que fizeram
estes tipos de descobertas. É interessante observar que Walpole é o autor de The Castle of Otranto (1764-
5), considerado o primeiro romance gótico em língua inglesa (SAMPSON, 1975, p. 425). Este romance é
parodiado por Jane Austen em Northanger Abbey, que é um importante intertexto paródico de Atonement.
4
O romance Atonement foi traduzido no Brasil por Paulo Henriques Britto sob o título Reparação e
publicado em 2008 pela Companhia das Letras. Sua adaptação fílmica, também objeto de estudo desta
pesquisa, foi traduzida como Desejo e Reparação. Salientamos que manteremos os títulos originais nas
referências, para evitar confusão com as obras.
17
considerado por James Clive “uma peça teatral de rara distinção” (apud ROBERTS,
2010, p. 26), é posto no ar pela BBC e publicado no ano seguinte. Em 1983, a revista
Granta e o Book Marketing Council indicam McEwan como um dos „Best Twenty
Young British Novelists‟ entre escritores como Martin Amis, Salman Rushdie, Pat
Barker, William Boyd, Kazuo Ishiguro e Julian Barnes. Em fevereiro do mesmo ano,
seu oratório sobre a ameaça nuclear Or Shall we Die? é executado pela Orquestra
Filarmônica de Londres, sob a condução do maestro Richard Hickox, e o filme The
Ploughman’s Lunch, com roteiro de sua autoria, recebe o Evening Standard Award
como melhor filme, melhor diretor (Richard Eyre) e melhor roteiro. Em 1984, McEwan
torna-se um membro do Royal Society of Literature. Pela publicação do seu terceiro
romance The Child in Time, ele conquista, em 1987, o Whitbread Book of the Year
Award e, em 1993, o Prix Fémina Etranger, na França.
5
Dados extraídos de ROBERTS, Ryan. (ed.) Conversations with Ian McEwan. Jackson: University Press
of Mississippi, 2010, p. xv-xvi, e atualizados através do site <www.ianmcewan.com>. Acesso em: 16 fev.
2013.
19
6
A ciência heráldica trata da arte ou ciência dos brasões e, geralmente, quando no interior de um brasão
há uma réplica, em tamanho menor, do primeiro brasão, costuma-se chamar de „construção em abismo‟
(METZ, 2007, p. 217, nota de rodapé).
20
esta construção que possibilita todos os jogos de espelho” (2007, p. 217-218). Esta
oportuna metáfora inspirou a escolha do título do presente trabalho, devido ao caráter
das estruturas autorreflexivas – „espelhadas‟ – e ao aspecto lúdico produzido pelo uso
da metaficção, que caracteriza o objeto de estudo da presente investigação. Como um
jogo de espelhos duplica e reduplica imagens, sob ângulos e perspectivas diferentes, a
metaficção semelhantemente reduplica narrativas e imagens, alterando a perspectiva ou
a focalização da obra, a depender do efeito que se quer provocar no leitor/espectador.
Assim como um espelho reflete a imagem de forma invertida, a metaficção inverte os
„pólos‟ do modo de representatividade da ficção, espelhando o que tradicionalmente o
artista buscava esconder: o fazer artístico.
argumentados até aqui, elegemos as palavras de McEwan para a epígrafe desta tese, da
qual se derivam os títulos dos respectivos capítulos. Entretanto, McEwan ressalta a
seriedade do seu jogo, a qual, particularmente, se relaciona com a questão da ética na
ficção. De fato, Atonement fala dos conflitos humanos face às contingências da vida, em
que o ser é vitimado e vitimizador da tragédia humana. E este é um jogo sério.
[v]ale a pena estudar esta forma de ficção, não somente por causa do
seu surgimento contemporâneo, mas também por causa da
compreensão que ela oferece sobre a natureza representacional de toda
ficção e sobre a história literária do romance como gênero. Ao estudar
metaficção, se está, de fato, estudando aquilo que concede ao romance
sua identidade (1984, p. 5).
22
Uma vez que a metaficção evidencia sua teoria, a aprendizagem sobre o fazer
artístico não fica restrita ao crítico e o pesquisador, mas também o leitor e o espectador
são instruídos com esta arte. Parece oportuno, neste momento, traçar um breve percurso
teórico-crítico da metaficção, compondo, desta forma, a travessia histórica que delineia
sua procedência no cenário artístico. Observamos, em primeiro lugar, que não é a
antiguidade, mas a ubiquidade que desperta a curiosidade perquiridora sobre a
metaficção e gesta os estudos metodológicos ao seu respeito. Em segundo lugar,
percebemos que o corpus crítico sobre o assunto é, ainda, notadamente marcado pela
escassez e pela ênfase na obra literária. Na realidade, a maneira insistente e ostensiva
com que se pronuncia a ficção autorreflexiva, produzida a partir dos anos sessenta,
determina os debates epistemológicos, iniciados, nos Estados Unidos, por John Barth
em “The literature of exhaustion” (1967), por Robert Scholes, em The fabulators
(1967), e por Robert Alter, em Partial magic: the novel as a self-conscious genre
(1975) e, na França, frutos do impacto cultural causado pelo nouveau roman7 nas
décadas de cinquenta e sessenta, em que se destacam as obras de Jean Ricardou (1973) e
de Lucien Dällenbach (1977), esse último particularmente sobre um dos tipos de
recursos metaficcionais – a mise en abyme. Aproximadamente nos idos de setenta e
início de oitenta do século passado, além de pequenos ensaios publicados em periódicos
como: Journal of Narrative Techniques, Novel, Critique, Modern Fiction Studies,
Partisan Review, Boundary 2, Tri-Quarterly, New Literary History, Amerikastudien e
Texte, os próprios escritores passam a tecer a defesa de sua arte em livros como
Surfiction: fiction now and tomorrow (1975), este editado por Raymond Federman, em
que um possível corpo teórico pode ser formado a partir dos artigos de escritores como
John Barth, Ronald Sukenick, Philippe Sollers, Italo Calvino, Jean Ricardou, Richard
Kostelanetz, Robert Pynsent, Raymond Federman e outros.
7
Nouveau roman: designação dada à literatura experimental que surgiu na França a partir dos anos
cinquenta, tendo Alain Robbe-Grillet e Jean Ricardou como seus mais influentes teóricos. Rejeitando as
convenções do realismo tradicional, o nouveau roman propõe uma escrita caracterizada por estruturas
autorepresentacionais em mise en abyme, com ênfase no uso de recursos metaficcionais no tratamento
linguístico e diegético. Dentre seus principais escritores destacam-se Maurice Blanchot, Robert Pinget,
Marguerite Duras, Philippe Sollers e Nathalie Sarraute.
23
teoria das funções interpretativas e criativas do ato de leitura” (1980, p. 155). Também,
advogando a favor da metaficção, Patricia Waugh lança, em 1984, Metafiction: the
theory and practice of self-conscious fiction, fundamentada em teorias sócio-culturais e
dos Formalistas Russos, apresentando questões sobre a relação entre (meta)ficção e
realidade e o uso da paródia e de formas populares nas obras metaficcionais, com a
finalidade de demonstrar que “metaficção é uma tendência ou função inerente a todos os
romances” (1984, p. 5, grifo da autora).
universo ficcional. Por esta razão, buscaremos nas próprias obras, que compõem o
corpus da presente pesquisa, respaldo para sua abordagem analítica.
É certo que já existe uma rica literatura sobre adaptação, porém, segundo
Chatman, “[a] natureza teórica da adaptação é raramente abordada”, pois “[o]s críticos
geralmente falham em distinguir entre as inadequações que derivam do próprio meio e
aquelas que derivam das infelicidades artísticas de certos cineastas” (1990, p. 163).
Portanto, há também suficiente espaço para a ampliação e o aprofundamento de um
debate acadêmico acerca da natureza da adaptação, principalmente no momento em que
se acentua a prática do remake, da releitura de obras, da revisão da história e da
convergência entre as artes. Salientamos nomes como André Bazin, George Bluestone,
David Bordwell, Seymour Chatman, Brian McFarlane, Dudley Andrew, James
Naremore, Robert B. Ray, Robert Stam, Deborah Cartmell, Imelda Whelehan e Linda
Hutcheon, dentre outros, que têm contribuído substancialmente para a formação de um
corpo teórico-crítico dos estudos da adaptação.
inicial sobre o romance e a obra Ian McEwan encontra-se em David Malcolm (2002),
Peter Childs (2006), Sebastian Groes (2009) e Ryan Roberts (2010).
8
Entendemos sequência como “um momento facilmente isolável da história contada por um filme: um
sequenciamento de acontecimentos, em vários planos, cujo conjunto é fortemente unitário” (AUMONT e
MARIE, 2007, p. 268).
32
1. Definição de metaficção
9
A título de exemplificação, selecionamos aqui as seguintes obras: JAKOBSON, Roman. “Closing
Statements: Linguistic and Poetics”. In: SEBEOK, T.A. (ed.). Style in Language. New York: 1960;
JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo:
Cultrix, 1974; BENVENISTE, Emile. Problèmes de Linguistique Générale. Paris: Ed. Gallimard, 1967;
KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. L’Enonciation. Paris: Ed. Armand Colin, 1997; LEVINSON,
Stephen C.. Pragmatics. Cambridge: Cambridge University Press, 1983; CAMPOS, Harold.
33
Segundo Robert Stam, “[a] reflexividade existe onde quer que seres humanos,
usuários da linguagem, „conversem sobre conversas‟, i.e. onde quer que eles reflitam
sobre consciência, linguagem, arte e comunicação” (1992, xiii). A linguagem,
evidentemente, desempenha um papel capital tanto nas relações humanas em geral
como nas cognitivas, visto que o pensamento é verbalizado e se realiza por meio da
linguagem. Concluímos, portanto, afirmando que o ato reflexivo participa tanto da
linguagem humana como dos processos cognitivos. Vale salientar que a questão da
linguagem, como elemento estruturador da compreensão humana e elemento construtor
da „realidade‟, torna-se, em termos teóricos, quase uma obsessão no mundo
contemporâneo, sob a influência de pensadores tão diversos, como Ferdinand de
Saussure, Charles S. Peirce, Mikhail Bakhtin, Bertrand Russell, Ludwig Wittgenstein,
Martin Heidegger, Maurice Merleau-Ponty e Jacques Derrida, o que, de certo modo,
vem repercutir na produção de obras metaficcionais no século XX.
Metalingugem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. 4ª Ed.. São Paulo: Perspectiva, 1992;
PIGNATARI, Décio. Semiótica e literatura. São Paulo: Perspectiva, 1974; NÖTH, Winfried. “Self-
Reference in the Media.” Disponível em: <http://www.uni-Kassel.de/iag-
kulturforschung/projrktbeschreibung.pdf>. Acesso em: dez. 2009; McHALE, Brian. Postmodernist
Fiction. London and New York: Routledge, 1987. Reimpressão 2001; METZ, Christian. A Significação
no Cinema. 3ª reimpressão. São Paulo: Perspectiva, 2007.
34
visual criada pela foto da escada no espelho, obra de Chema Madoz (1990), Bernardo
afirma
Por outro lado, a palavra „ficção‟ origina-se do latim „fictiō‟ (criação, escultura,
modelagem), forma derivada de „fictus‟ (formado, esculpido; ensinado; fingido,
mentiroso, hipócrita, enganador), particípio passado de „fingere‟, que significa „tocar‟,
„formar‟, „moldar', que, por sua vez, dá origem à palavra „fiction‟, em francês arcaico; e
„ficcioun‟, em inglês medieval. Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa,
„ficção‟ significa: 1) o ato ou efeito de fingir; fingimento; 2) elaboração, criação
imaginária, fantasiosa ou fantástica; fantasia; 3) grande falácia; mentira, farsa, fraude; 4)
criação artística (literária, cinematográfica, teatral etc.) em que o autor faz uma leitura
particular e geralmente original da realidade; 5) (lit.) caráter imaginativo e criativo de
uma obra literária (narrativa, lírica ou teatral); 5.1) freq. (lit.) prosa literária (freq. conto,
novela, romance) construída a partir de elementos imaginários calcados no real e/ou de
elementos da realidade inseridos em contexto imaginário; ficcionalismo, ficcionismo,
narrativa. A junção do prefixo „meta‟ à palavra „ficção‟ não dilui as conotações já
subjacentes nas suas raízes, pelo contrário, parece ampliar o termo, conferindo-lhe o
sentido de abrangência, que o fenômeno metaficcional exige, bem como apontando para
a complexidade inerente ao mesmo. Portanto, quando se anuncia que metaficção é
ficção sobre ficção, a tautologia criada pela expressão não denota simplicidade ou
35
Em 1970, num ensaio intitulado “Philosophy and the form of fiction”, o escritor
americano William H. Gass, ao comentar sobre a ficção americana dos anos sessenta,
afirma:
10
O adjetivo „elástica‟ foi utilizado por Patricia Waugh para qualificar o termo „metaficção‟ em razão de
sua abrangência (WAUGH, 1984, p. 18).
37
Linda Hutcheon define a metaficção como “ficção sobre ficção – isto é, ficção
que inclui em si mesma um comentário sobre sua própria narrativa e/ou sua identidade
linguística” (1980, p. 1). Patricia Waugh, por sua vez, definiu metaficção como “um
11
A „morte do romance‟ refere-se à discussão em torno da crise de representatividade que anunciava o
declínio do romance como gênero literário diante da emergência da cultura de massa e do surgimento de
uma escrita literária que não se adequava aos padrões do realismo do século XIX. A rigor, a idéia da
possibilidade da morte do romance surgiu em 1925 com a publicação do livro The decline of the novel, de
José Ortega y Gasset; em 1930, Walter Benjamin aponta uma crise da arte do romance em seu ensaio
“Krisis des Romans” e nas décadas de cinquenta e de sessenta, aparecem novas discussões sobre a crise
da representatividade, porém algumas contêm um teor positivo e defensivo, como por exemplo: Roland
Barthes (“A morte do autor”), Ronald Sukenick (The death of the novel), Jacques Ehrmann (“The death of
literature”), dentre outros. Além das causas acima mencionadas, várias outras são consideradas
responsáveis por tal posicionamento, segundo Robert B. Pippin (Response to critics), a morte do romance
estava ligada ao soerguimento do niilismo na Europa; David Foster Wallace (The New York Observer,
October 13, 1997) a atribuiu à mortandade de escritores americanos da geração de pós-guerra; porém,
recentemente, Kathleen Fitzpatrick (The anxiety of obsolescence: The American novel in the age of
television) afirmou que a expressão a „morte do romance‟ é altamente exagerada e que reflete tanto a
ansiedade diante das mudanças no panorama midiático do século XX quanto as mudanças sociais dentro
dos Estados Unidos. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Death_of_the_novel>. Acesso em: 02
mar. 2011.
38
No rastro de uma conceituação mais precisa, advogamos por uma redefinição ou,
talvez, uma revisão conceitual da metaficção, alicerçada nos postulados investigados.
Na realidade, buscar uma revisão conceitual legitima-se quando os conceitos operantes
mostram-se conflitantes, estagnantes ou ineficazes. Uma solução comumente adotada
tem sido o empréstimo da terminologia empregada em outras áreas do conhecimento, às
vezes, aplicando-lhe uma adaptação e, às vezes, atribuindo-lhe um novo significado, à
sombra do verbete existente. Posições cômodas sob o verniz de empréstimo
terminológico inter-áreas não parecem eficazes, nem satisfatórias, no presente contexto
de debate acadêmico, quando a prática artística já se consagrou, não se engessou, e
paradigmas precisam ser estabelecidos para servir de instrumentalização teórica.
Portanto, sem nenhum demérito e nenhuma pretensão de anular as definições já
mencionadas, mas tendo em mente a argumentação exposta, propomos aqui definir a
metaficção como um fenômeno estético, intencionalmente autorreferencial e
autorreflexivo, que orienta o modo de representatividade na arte, inovando a obra
artística com suas manifestações em múltiplas formas e intensidades; não estando,
40
operandi do fazer artístico, exercendo uma profunda influência nos processos de criação
e de interpretação da obra. Em decorrência da visibilidade do fazer artístico na obra
metaficcional, uma questão se sobrepõe às demais: a questão ontológica da ficção. É
exatamente esta questão que abarca complexidades de ordem filosófica, sociológica,
psicológica, ideológica, artística e, até, teológica, referentes aos conceitos de „real‟,
„realidade‟ e „verdade‟; e, por conseguinte, de representatividade da arte. Salientamos,
entretanto, que não há, nesse trabalho, a pretensão de investigarmos estes meandros de
controvérsias epistemológicas, já saturadas por investigações específicas e abalizadas.
Hutcheon afirma que “[n]a literatura palavras criam mundos; eles não
necessariamente se opõem, ainda que sejam adequados, a qualquer realidade
extraliterária. É neste exato fato que reside sua validade estética e seu status ontológico”
(1980, p. 102-3, grifo nosso). Ademais, segundo Hutcheon, a validade e, até mesmo, o
status de realidade do romance são determinados pela expectativa do leitor com relação
43
ao gênero e pela sua criação imaginária de um universo ficcional, através dos referentes
linguísticos e não através do conteúdo ou de quaisquer referentes reais (1980, p. 97).
Nesse sentido, é interessante examinar a afirmação de Federman acerca da construção
ficcional.
12
Com a finalidade de promover o esclarecimento necessário à compreensão do assunto, cita-se: “[...] a
representação deve ser entendida em termos dialéticos e não-dicotômicos; o que significa que entre
representante e representado existe uma relação de interdependência ativa, de tal modo que o primeiro
constitui uma entidade mediadora capaz de concretizar uma solução discursiva que, no plano da
expressão artística, se afirme como substituto do segundo que, entretanto, continua ausente; assim, “a
representação ou imagem funciona adequada e eficientemente só quando é confundida com o seu objeto.
A representação é uma entidade cuja eficiente atualidade, paradoxalmente, coincide com o seu colapso.
Quando uma representação funciona como representação, ela não é entendida como representação, mas
como o próprio objeto representado.” (Martínez Bonati, 1980:24)” (REIS, Carlos & LOPES, Ana Cristina
M., 1988, p. 88, grifos do autor).
45
desde que o que é dito possa sempre ser dito de outra maneira
(FEDERMAN, 1981, p. 12).
[...] considera-se que o Autor nutre o livro, quer dizer que existe antes
dele, pensa, sofre, vive por ele; está para a sua obra na mesma relação
de antecedência que um pai para com o filho. Pelo contrário, o
escriptor moderno nasce ao mesmo tempo em que seu texto; não é, de
13
Este debate acerca da percepção do leitor no ato da escrita já se encontra na obra seminal de Wayne
Booth, The rhetoric of fiction (Chicago: University of Chicago Press, 1961). Embora o foco da
argumentação de Booth, esteja no autor e nos recursos retóricos à sua disposição para a elaboração da
escrita novelística, há na obra uma relevante contribuição para a resposta do leitor à obra literária.
48
na sua própria linguagem, com uma crescente conscientização sobre a elaboração dos
insights críticos dentro da ficção e com a tendência a uma abordagem que questiona a
habilidade da linguagem crítica para tratar o texto literário com objetividade e
autoridade. Quanto à ficção, Currie aponta que esta união resulta na clara assimilação da
perspectiva crítica pela narrativa ficcional, na conscientização da artificialidade de suas
construções e no estabelecimento da relação entre linguagem e mundo (1995, p. 2).
Ainda que os fundamentos críticos sejam ficcionalizados no texto metaficcional e cada
obra literária internalize sua própria crítica, de modo geral, tanto a literatura como a
crítica, indubitavelmente, se beneficiam da metaficção, com o aprimoramento do fazer
poético, por um lado; e por outro lado, com o enriquecimento dos postulados críticos.
Uma vez que o romance Atonement e sua adaptação fílmica – objetos da corrente
pesquisa – refletem a ideologia e os discursos pós-modernos, faz-se necessário
investigar o caráter da metaficção inserida no contexto da pós-modernidade. Portanto,
no sentido de focalizar a argumentação particularmente na obra artística da
contemporaneidade, discorreremos, na próxima seção, sobre as principais características
da estética pós-moderna, com base no postulado de Linda Hutcheon em A poetics of
postmodernism: history, theory, fiction (2000a), e, finalmente, trataremos das
modalidades de metaficção pós-moderna que orientam explicitamente o romance
Atonement.
52
3. Metaficção e pós-modernismo
Por meio disto, confesso que tenho estado obcecada pela paródia
durante a maior parte da minha vida profissional. […] Uma vez que o
termo pós-modernismo tornou-se o modo aceito de falar sobre,
primeiramente, a arquitetura e, depois, as outras formas artísticas que
são autorreflexivas e paródicas, minha obsessão manifestou-se (apenas
dissimulada) em vista do mais amplo fenômeno cultural da pós-
modernidade (2000b, p. xi, grifo da autora).
14
Esta versão será utilizada todas as vezes que se citar o prefácio, intitulado “A new introduction, an old
concern”, que não consta da versão traduzida para a língua portuguesa.
53
dois termos instauram neste novo momento. Para tanto, torna-se necessário estudar mais
detalhadamente o pós-modernismo, que tem se infiltrado em tantas áreas da cultura
atual, transitando pela arquitetura, biologia, zoologia, geografia, medicina, história,
filosofia, teologia, política, antropologia, pedagogia, literatura, crítica e teoria estética,
música, dança, cinema, teatro, televisão, vídeo e nas artes visuais em geral.
Com estas palavras, Hutcheon acaba por elaborar uma definição para o pós-
modernismo, embora seja esta mais centrada numa caracterização do que numa
conceituação propriamente dita. Além da natureza contraditória e paradoxal do pós-
modernismo, destacamos nesta citação o uso do recurso paródico para tratar do
confronto entre a estética e os discursos político e histórico próprios do pós-
modernismo (2000a, p. 22). Sabemos que esta natureza contraditória e paradoxal do
pós-modernismo é a expressão de um pensamento cético nutrido no seu âmago,
resultante do desenvolvimento da psicanálise e o surgimento do desconstrutivismo, que
contribuíram para a descrença no sujeito, e de uma filosofia, impregnada pelas doutrinas
existencialistas de Martin Heidegger (1889-1976), que influenciou pensadores
contemporâneos como Foucault, Derrida, Habermas, Baudrillard e outros. No meio
filosófico-científico, a veia ceticista foi alimentada por Werner Karl Heisenberg e seu
54
É importante notar, como afirma Gustavo Bernardo, que “junto com as dúvidas
científicas e as incertezas políticas, retorna com a mesma força a metaficção” (2010, p.
42), fundamentada em bases céticas, já mencionadas via Patricia Waugh, ao observar
que “[n]um sentido, a metaficção apóia-se numa versão do princípio de incerteza de
Heisenberg” (1984, p. 3). Contudo, Waugh argumenta que a questão é mais complexa
na metaficção, “[p]orque enquanto Heisenberg acreditava que se poderia pelo menos
descrever, se não uma imagem da natureza, então uma imagem da relação de alguém
com a natureza, a metaficção mostra a incerteza até deste processo” (1984, p. 3, grifos
da autora). Na realidade, a metaficção explora a impossibilidade de se representar o
mundo como ele realmente é, pois, como bem ressalta Waugh: “[n]a ficção literária, é
de fato possível „representar‟ os discursos do mundo” (1984, p. 3, grifo da autora). Mais
uma vez, no sentido de que toda visão é mediada pela linguagem, o debate move-se em
torno da questão do discurso, ou melhor, discursos, dentro da pluralidade e
fragmentariedade características do pós-modernismo. Ademais, como Waugh assegura
(segundo Hutcheon, arte e vida, por extensão) com o uso e „abuso‟ de discursos
originários da teoria literária, do jornalismo, da história e da ciência, por exemplo; onde
a relação intertextual se dá geralmente através da paródia – “a descontinuidade irônica
que é revelada no âmago da continuidade, a diferença no âmago da semelhança”
(2000a, p. 11) – em notória interrogação acerca da questão da originalidade e da
autenticidade na arte.
15
“Things fall apart; the centre cannot hold; / Mere anarchy is loosed upon the world” [As coisas se
desfazem; o centro não se sustenta; / A mera anarquia está solta no mundo] (In: WILLIAMS, Oscar. Ed.
Immortal poems of the English language. New York: Washington Square Press, 1952, 1977, p. 489.)
57
De acordo com Mark Currie, muitos têm visto a paródia como um modo
intertextual de escrita com notória função crítica (1995, p. 5). Linda Hutcheon entende a
paródia como “uma das formas mais importantes da moderna autorreflexividade” e
como “uma forma de discurso interartístico” (s/d, p. 13), contextualizando seu estudo
sobre paródia nas teorias da intertextualidade (s/d, p. 32). Aliás, no que diz respeito à
relação entre intertextualidade e paródia, convém ressaltar que Gérard Genette adota o
termo „hipertextualidade‟ para denotar a relação entre um dado texto (hipertexto) e um
texto anterior (hipotexto). Este conceito se aplica à paródia, mas os termos
„intertextualidade‟ e „paródia‟ não são permutáveis; portanto, não devem ser
confundidos entre si, simplesmente porque „intertextualidade‟ não traduz o processo
paródico na sua íntegra, como será demonstrado a seguir. Segundo Hutcheon, Genette
foca seu postulado no aspecto formal e estrutural da paródia, mas “rejeita qualquer
definição de transtextualidade que dependa de um leitor (e implicitamente de um autor)”
(s/d, p. 33). Logo, sua abordagem não contempla procedimentos pragmáticos ou
hermenêuticos, que são indispensáveis na questão da paródia, visto que a prática
artística indica novos caminhos e a recepção determina a realização da paródia. Além
disto, de acordo com Hutcheon, Genette restringe a paródia aos modos satíricos ou
lúdicos, os quais ele denigre (s/d, p. 33). Na realidade, no sentido da presença de um
diálogo entre textos, o aspecto intertextual da paródia é indiscutível, mas a prática
autorreflexiva da paródia na metaficção pós-moderna requer outros esclarecimentos.
61
Sabemos que o conceito de paródia tem sido devidamente investigado por vários
teóricos, destacando-se os estudos de Mikhail Bakhtin. Entretanto, devido à necessidade
de se fazer um recorte teórico, optamos pelo estudo de Linda Hutcheon, cuja proposta
alargada mais se adéqua às exigências da metaficcionalidade nas obras a serem
investigadas. Contudo, por uma questão de coerência teórica, faz-se necessário situar
Bakhtin no contexto da teoria adotada neste presente trabalho. Para Bakhtin, “o
formulador da polifonia literária e do dialogismo”, a paródia é “um híbrido diologístico
intencional. Dentro dela, linguagens e estilos iluminam-se activa e mutuamente”
(HUTCHEON, s/d, p. 90-91). Uma definição válida, pois contempla as características
primordiais da paródia: o hibridismo, o dialogismo, a intencionalidade e a
multiplicidade discursiva. Todavia, Hutcheon constata que Bakhtin não fez elogios à
paródia moderna (lembrando que os escritos de Bakhtin datam das duas primeiras
décadas do século XX16), pois ele declarou que “[...] nos tempos modernos, as funções
da paródia são estreitas e improdutivas. A paródia tornou-se doentia, o seu lugar na
literatura moderna é insignificante” (apud HUTCHEON, s/d, p. 91). Sabemos, no
entanto, que a prática paródica intensificou-se notadamente nas duas últimas décadas do
século XX. Porém, um exame no contexto histórico e local de Bakhtin explica sua
reação, visto que “era a literatura contemporânea [da sua época] que os seus coevos
formalistas e marxistas promoviam” (HUTCHEON, s/d, p. 92), por isto Hutcheon
afirma que
16
Por exemplo, o livro Problemas da obra de Dostoiévski, de Bakhtin, que trata dos conceitos de
carnavalização, literatura dialógica, polifonia, paródia, foi escrito em 1928, ou conforme alguns, em 1925.
As críticas de Bakhtin aos formalistas datam de 1928 (LIMA, Luís Costa. Teoria da literatura em suas
fontes. 2ª ed. Vol. I. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A. 1983, p. 253).
64
17
É oportuno ressaltar que, ao tratar da heteroglossia no romance, Bakhtin observa o que chama de
estilização paródica, ou seja, a presença, particularmente no romance cômico, de “um reprocessamento
cômico-paródico de quase todos os níveis de linguagem literária” (p. 301). Bakhtin argumenta que a
estilização paródica de uma linguagem genérica, profissional e de outras strata literárias contrapontua
com a “linguagem comum” (“geralmente a norma comum da linguagem falada e escrita de um
determinado grupo social” (p. 301), contendo o ponto de vista e valores correntes) e com o discurso
autoral, “que incorpora diretamente (sem qualquer refração) intenções semânticas e axiológicas do autor”
(p. 301). Conforme Bakhtin, “a fala do outro é introduzida no discurso do autor (a história) de forma
velada, ou seja, sem quaisquer marcadores formais que geralmente acompanham a fala, seja direta ou
indireta” (p. 303, grifo do autor), como sendo outro enunciado numa linguagem distinta da linguagem do
autor. Semelhante estilização paródica pode ser percebida em Atonement, porém agora inserida num
contexto crítico e irônico e adensado pelo agenciamento da metaficção. Para delimitar nosso foco, não
exporaremos este conceito nas análises aqui apresentadas.
65
[...] imitação com distância crítica irônica, cuja ironia pode beneficiar
e prejudicar ao mesmo tempo. Versões irônicas de
“transcontextualização” e inversão são seus principais operadores
formais, e o âmbito de ethos pragmático vai do ridículo desdenhoso à
homenagem reverencial (s/d, p. 54).
grifos do autor18). Convém lembrar que, neste modo de metaficção, a paródia não é
usada para destruir as convenções literárias do passado, nem para se antagonizar
totalmente com elas, como acontecia com a metaficção praticada nos anos sessenta. O
foco está na reelaboração dos conceitos artísticos e na recriação da arte,
recontextualizada na contemporaneidade. Portanto, em Atonement, há um ethos
respeitoso com relação ao cânone literário, mas não totalmente isento de uma
perspectiva crítica e irônica, evidenciada nos comentários autorais e na própria crítica,
incorporada na narrativa.
18
McEWAN, Ian. Atonement. New York: Anchor Books, 2001. Ao longo do texto, as referências serão
identificadas apenas com o número da página, referente a esta edição. Como mencionado anteriormente,
as traduções das passagens extraídas do romance são nossas.
70
1. (Pré)conceitos
19
Tendo iniciado suas atividades no cinema em 1911, o ator, roteirista e cineasta francês Abel Gance
destacou-se entre os impressionistas franceses nos anos vinte. O movimento de vanguarda impressionista,
mais aceito como Escola Francesa ou La Première Vague, caracteriza-se pela exploração “de proezas
técnico-estilísticas, que abrangem sobreimpressões, deformações ópticas e planos subjetivos”, além da
“importância dada à duração dos planos, ao enquadramento e ao ritmo da montagem” (MARTINS, 2008,
p. 91). Despertando o interesse pelo cinema no meio artístico e literário, o impressionismo fez florescer
uma cultura cinematográfica na França com a criação dos cineclubes, a publicação de periódicos e a
inserção da crítica do cinema na imprensa. O fascínio pela arte cinematográfica e pelo poder da câmera
levou Gance a fazer a seguinte declaração em L’art cinématographique (1927): “é chegado o tempo da
imagem!” (apud STAM, 2006a, p. 51).
71
20
A título de ilustração, seguem-se alguns exemplos de adaptações fílmicas entre artes: a animação O rei
leão (1994), de Roger Allers e Rob Minkoff, é adaptado para o musical da Broadway homônimo (1997);
Mamma mia (1998), musical britânico, escrito por Catherine Johnson, foi transposto para o filme
homônimo (2008), dirigido por Phylida Lloyd; O lago dos cisnes (1877), balé em quatro atos da música
de Tchaikovsky, com libreto de Vladimir Begitchev e Vasily Geltzer, foi adaptado para o filme Black
Swan (2010), de Darren Aronofsky; as canções de Chico Buarque foram adaptadas para a mini-série
televisiva Amor em 4 atos (2011), sob direção de Tande Bressane, Tadeu Jungle e Bruno Barreto; Olhos
nos olhos, canção de Chico Buarque, foi adaptada para o filme homônimo (2011), de Karim Aïnouz; os
quadrinhos Capitão América, lançado pela Marvel Comics em 1941, foram adaptados para o cinema com
o título de Capitão América: o primeiro vingador (2011), de Joe Johnston; a fábula Chapeuzinho
vermelho, de Charles Perrault, foi adaptada para o filme A garota de capa vermelha (2011), de Catherine
Hardwicke; o poema “O corvo”, de Edgar Allan Poe, foi adaptado para o filme homônimo metaficcional
(2012), de James McTeique; a peça Coriolanus, de William Shakespeare, foi adaptada para o filme
homônimo (2012), de Ralph Fiennes; As aventuras de Tintin; o segredo do Licorne (2012) animação, de
Steve Spielberg, foi adaptado dos quadrinhos do cartunista belga Georges Remi, conhecido por Hergé.
21
Ao invés dos termos „culto‟ ou „instruído‟, o termo „conhecedor‟ será adotado ao longo da
investigação, conforme a nomenclatura utilizada por Linda Hutcheon, a qual “sugere esperteza e
inteligência cotidiana, bem como entendimento, e evita algumas associações elitistas dos outros termos
em favor de um tipo de compreensão mais democrática da duplicidade enriquecedora e palimpséstica da
adaptação” (2011, p. 166).
72
(2006b, p. 20). Além disto, Stam assevera que a superioridade erroneamnete atribuída
por alguns se encontra enraizada inconscientemente em preconceitos que se reportam às
relações entre as duas artes, como: a antiguidade, o pensamento dicotômico, a
iconofobia22, a logofilia23, a anti-corporalidade24 e a carga de parasitismo. Além destes
seis pontos brilhantemente elucidados por Robert Stam, Linda Hutcheon ainda
menciona, como responsáveis pela depreciação da adaptação, dois interessantes fatores:
um de cunho histórico e estilístico (“[a] valorização (pós)-romântica da criação original
e do gênio criativo”) e outro relacionado à teoria da recepção (as “expectativas
contrariadas por parte de um fã que deseja fidelidade ao texto adaptado que lhe é
querido” ou “por parte de alguém que ensina literatura e necessita da proximidade com
o texto – e talvez de algum valor de entretenimento – para poder fazê-lo”) (2011, p. 24).
O primeiro fator, mencionado por Hutcheon, orientou uma estética elitista, que
favoreceu a noção de superioridade da literatura, a manutenção de um sistema de
valoração da obra artística e a ênfase no artista como um indivíduo superdotado de
atributos artísticos. Entretanto, o mito da originalidade é questionado no pós-
estruturalismo, a partir do entendimento de que não há texto absolutamente original,
pois os textos são construídos a partir de outros textos, “a arte deriva de outra arte; as
histórias nascem de outras histórias” (HUTCHEON, 2011, p. 22). O segundo fator
apontado por Hutcheon (expectativas contrariadas por parte do espectador), de cunho
hermenêutico-pedagógico, reforça a visão negativa da adaptação pela exigência da
„fidelidade‟ ao texto adaptado, para deleite daquele que reverencia a obra adaptada ou
para fins didáticos no sentido de facilitar a compreensão da obra em estudo, ou ilustrar o
debate sobre a obra ou, ainda, o que é pior, substituir a obra literária pela fílmica no
contexto ensino-aprendizagem.
22
Iconofobia refere-se ao “o preconceito enraizado contra as artes visuais, cujas origens remontam não só
às proibições judaico-islâmico-protestantes dos ícones, mas também à depreciação platônica e
neoplatônica do mundo da [sic] aparências dos fenômenos” (STAM, 2006b, p. 21).
23
Logofilia refere-se à “valorização oposta, típica de culturas enraizadas na “religião do livro”, a qual
Bakhtin chama de “palavra sagrada” dos textos escritos” (STAM, 2006b, p. 21).
24
Anti-corporalidade indica uma aversão à “„incoporação‟ imprópria do texto fílmico, com seus lugares
reais e objetos de cenografia palpáveis; sua carnalidade e choques viscerais ao sistema nervoso” (STAM,
2006b, p. 21).
25
Para uma discussão mais ampla sobre o assunto veja AZERÊDO, Genilda. “Alguns pressupostos
teórico-críticos do fenômeno da adaptação fílmica”. IX ENIL e IX Encontro Nacional de Interação em
73
“presa” e “vítima” do cinema (“um parasita”) (WOOLF, 1950, p. 182, 183). Por
questionar ironicamente a inevitável simplificação da obra literária na transposição de
uma mídia a outra, feita de modo simplista e superficial, este texto de Woolf tem sido
alvo de severas críticas por parte de renomados teóricos (STAM, 2008a, p. 3). No
entanto, quando o texto de Woolf é tomado na sua totalidade, tais críticas revelam-se
equivocadas e injustas, uma vez que Woolf reconhece a potencialidade do cinema e de
sua linguagem específica, como podemos ver em suas palavras: “o cinema tem ao seu
alcance inúmeros símbolos para emoções que até hoje não encontraram expressão”, pois
“enquanto todas as outras artes nasceram nuas, essa, a mais jovem, nasceu plenamente
aparelhada” (WOOLF, 1950, p. 183, 186). Apesar de Woolf adotar uma postura
autoprotetora, como observa Hutcheon (2011, p. 116), sua reivindicação capital neste
ensaio “é que o cinema adapte a literatura de modo criativo, inventivo, autônomo,
fazendo uso consciente de suas potencialidades semióticas” (AZERÊDO, 2010, p. 4).
linguagem verbal e não-verbal: linguagens e cultura. João Pessoa, UFPB, 2010 e OUDITT, Sharon.
“Orlando: coming across the divide”. In: CARTMELL, Deborah & WHELEHAN, Imelda. Adaptations:
from text to screen, screen to text. New York and London: Routledge, 2002, p. 146-156.
26
Dissolve ou dissolução é um recurso de transição empregado para unir tempo ou espaço. “O dissolve
ou dissolução mistura uma cena em outra. Tecnicamente, uma dissolução é uma fade-out [fusão de
encerramento ou final em escurecimento] sobreposto a um fade-in [fusão de abertura ou início em fusão],
para que uma perda em densidade de imagem na primeira cena seja equilibrada com um ganho em
densidade de imagem na segunda” (MASCELLI, 2010. p. 157).
74
sua forma” (2000, p. 5-6). No seu livro Film and fiction: the dynamics of exchange
(1979), Cohen faz uso de passagens de livros de Proust e de Woolf “para demonstrar
como o romance moderno, influenciado pelas técnicas de montagem de Eisenstein,
chama atenção para seus processos de codificação, realizados em estilos que o romance
vitoriano não ousaria” (apud McFARLANE, 1996, p. 5).
além das diferenças semióticas entre as duas mídias, há a questão de que a formação
literária dos colegas os equipou “para reconhecer a sutileza e complexidade do meio
verbal, mas não do meio fílmico” (2010, p. 18).
No entanto, é deste meio acadêmico que tem emergido as investigações mais produtivas
sobre o assunto (BLUESTONE, 1957; CHATMAN, 1978, 1990; BRANIGAN, 1984;
BORDWELL, 1985; ANDREW, 1984; McFARLANE, 1996; NAREMORE, 2000;
STAM, 2004, 2005; CARTMELL e WHELEHAN, 1999, 2002; HUTCHEON, 2006),
buscando libertar a adaptação das amarras da hierarquização da arte e da chamada
„crítica da fidelidade‟ e, principalmente, legitimando o estudo das adaptações em bases
científicas, com a finalidade de elevá-la ao patamar de merecido destaque tanto nos
estudos fílmicos quanto nos estudos narrativos e culturais da atualidade.
semente de verdade” (2000, p. 62). Stam esclarece sua afirmação dizendo que o termo é
a expressão da decepção de quem espera encontrar na tela o que julgou serem as
características fundamentais da obra adaptada. Conforme Stam, a noção de fidelidade se
fortalece com a má qualidade de algumas adaptações, ou a boa qualidade de outras, ou,
ainda, com as „perdas‟ naturais de alguns aspectos encontrados no texto anterior, “mas a
mediocridade de algumas adaptações e a parcial persuasão da “fidelidade” não deveriam
levar-nos a endossar a fidelidade como um princípio metodológico” (2008, p. 20).
Entretanto, em meio a este universo de teóricos e críticos surge um contraponto
interessante: a visão do artista-adaptador. Para André Bazin, “o cineasta só teria a
ganhar com a fidelidade”, pois
permite compreender que a adaptação envolve outros meios artísticos, além da literatura
e do cinema, podendo ser intermidiática ou não.
engajamento distinto por parte do público e do adaptador” (2011, p. 35). Estes modos de
engajamento (telling, showing27 e interacting) chamados, por Hutcheon, de
„denominadores comuns‟, pois perpassam todos os tipos de mídia, gêneros e obras,
caracterizam-se pelo seu aspecto „imersivo‟, em graus e formas diferentes; isto é, o
público é imerso na história contada, ou na história mostrada, ou interage com a
história, através, primeiramente da imaginação, da percepção visual e auditiva ou de
uma experiência física e „cinestésica‟, respectivamente. Os dois primeiros modos
(contar e mostrar) “são imaginativa, cognitiva e emocionalmente ativos” (2011, p. 48),
enquanto que o terceiro modo (interagir) apresenta, também, um aspecto interativo “de
forma tão imediata e visceral” (2011, p. 35-36) que se distingue dos demais, uma vez
que requer a participação física do usuário, por se tratar das atividades nos ambientes
virtuais (através dos videogames e similares ou de passeios a parques temáticos).
Visto que a presente pesquisa tem seu foco voltado para a literatura e o cinema,
interessa examinar mais detalhadamente os pressupostos de Hutcheon acerca dos modos
de engajamento contar (telling) e mostrar (showing). Segundo Hutcheon,
27
Salientamos que os termos telling (contar) e showing (mostrar) têm, tradicionalmente, sido usados nos
estudos sobre ponto de vista de narrativas literárias, fundamentados nos debates acerca da ficção de
Henry James e da teoria de Percy Lubbock. Para Lubbock, a distinção entre „narrar‟ e „mostrar‟ está
relacionada com a intervenção do narrador na narrativa, ou seja, “[q]uanto mais este intervém, mais ele
conta e menos mostra” (apud LEITE, 1985, p. 14). Porém, Linda Hutcheon utiliza telling e showing, num
sentido mais geral, como “denominadores comuns” a todos os tipos de mídia e aos diversos gêneros; isto
é, como modos de engajamento do leitor/espectador na história, no âmbito da relação entre o receptor e a
história.
85
Pelo menos dois pontos chamam atenção nesta citação. Em primeiro lugar,
constatamos a existência de domínios distintos de realização para contar e mostrar, o
que envolve atividades cognitivas distintas e implica em diferentes caminhos de
construção de imagens, os quais são indicativos da especificidade dos meios. Em
segundo lugar, observamos que o modo de engajamento mostrar envolve uma dimensão
de múltiplos modos de expressão de significados e de formas diferentes de narrar, bem
como uma complexidade de representações visuais e gestuais, enriquecida por recursos
sonoros, possibilitado pelas várias trilhas no caso do cinema. Hutcheon argumenta que
“qualquer livro básico sobre a arte de contar histórias – ou, se for o caso, qualquer livro
avançado sobre narratologia – confirmará, contar uma história não é o mesmo que
mostrá-la” (2011, p. 86). Tudo isto explica a desafiante tarefa da transposição do livro
para a tela ou para o palco. Obviamente, estas questões estão associadas à
especificidade do meio, que requer um olhar investigativo a respeito.
[o] que Griffith quer dizer com “ver” difere, então, em qualidade do
que Conrad quer dizer. E, as mutações eficazes de um tipo de visão
para outro são necessárias não apenas porque o material difere, mas,
também, porque as origens, as convenções e o público diferem (2003,
p. 61-62).
Hutcheon assegura que a adaptação pode ser interpretada como uma obra
autônoma, provando ter sua própria aura, no sentido benjaminiano do termo28. De fato,
Hutcheon reconhece a autonomia da adaptação como uma verdade axiomática
(HUTCHEON, 2011, p. 27). Aliás, a investigação da adaptação sob a ampla perspectiva
do seu processo permite que o conceito de autonomia seja revisitado, pois tal tipo de
exame evidencia o caráter dual da adaptação. Há dois fatores de grande relevância para
a construção da autonomia da adaptação: sua natureza ambivalente e sua demanda por
criatividade. Decerto, examinada na sua amplitude, a ambivalência da adaptação reflete-
se no próprio termo „adaptação‟, que se refere tanto ao produto quanto ao processo. Esta
ambivalência é também evidenciada no âmbito do processo de recepção, pois, como
Hutcheon argumenta, dependendo do tipo de espectador (conhecedor ou não da obra
adaptada), a adaptação pode ser experienciada como uma adaptação ou como outra obra
qualquer, ou melhor, “como objetos estéticos em seu próprio direito” (HUTCHEON,
2011, p. 28). Conforme Hutcheon,
28
No seu famoso ensaio “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”, Walter Benjamin
define „aura‟ como “a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja” (1996, p. 170).
Esta ideia evoca o culto da obra de arte análogo ao culto à imagem nos rituais religiosos. Benjamin
adverte sobre a perda da unicidade da obra de arte com as técnicas de reprodução em série, surgidas no
século XX. Na concepção benjaminiana, a aura indica a presença da obra de arte “no tempo e no espaço,
uma existência única no local onde ocorre” (apud HUTCHEON, 2011, p. 27).
89
como cada adaptação deve manter-se por conta própria, separada dos
prazeres palimpsésticos da experiência duplicada, ela não perde sua
aura benjaminiana. Não se trata de uma cópia num modo de
reprodução qualquer, mecânica ou outra. É uma repetição, porém sem
replicação, unindo o conforto do ritual e do reconhecimento com o
prazer da surpresa e da novidade (2011, p. 229).
entrevista com Truffaut, em que Hitchcock declara “ler a história somente uma vez, e se
eu gostar da ideia básica, esqueço o livro e começo a criar o filme” (NAREMORE,
2000, p. 7). Inclusive, em consonância com esta metodologia praticada entre os
cineastas, Bazin ressalta que “[o]s grandes diretores são a princípio criadores de formas
ou, se se quer, retóricos” (1991, p. 103). Tal demanda pela criatividade na adaptação
pode ser ainda verificada no comentário de Orson Welles: “Se não há nenhuma
novidade para se dizer sobre o romance, por que, afinal, adaptá-lo? (apud STAM, 2000,
p. 63). Esta praxis consagrada entre os cineastas renomados denota, sem dúvida, a
relevância do caráter criativo da adaptação, característica já apontada por Hutcheon no
seu estudo, pois “[o] texto adaptado, portanto, não é algo a ser reproduzido, mas sim um
objeto a ser interpretado e recriado, frequentemente numa nova mídia” (2011, p. 123).
29
Para uma exploração mais aprofundada sobre o assunto, vide HATIM, Basil e MASON, Ian. The
translator as communicator. London e New York: Routledge, 1999; AZENHA JR., João. Tradução
técnica e condicionantes culturais: primeiros passos para um estudo integrado. São Paulo: Humanitas, p.
1999; VEIRA, Else Ribeiro Pires (org.). Teorizando e contextualizando a tradução. Belo Horizonte:
Curso de pós-graduação em estudos linguísticos da faculdade de letras da UFMG, 1996; BARBOSA,
Heloisa Gonçalves. Procedimentos técnicos da tradução. Campinas: Pontes, 2004.
92
Como também observa Robert Ray, é inegável que tanto a literatura quanto o
cinema são “de formato narrativo”, pois “a narrativa não é específica de um único
meio” (RAY, 2000, p. 39). De fato, um ajuste do olhar crítico pode vir através da
abordagem narratológica que “concede centralidade cultural à narrativa em geral”
(STAM, 2006b, p. 24). Na verdade, a narratologia, termo oriundo do estruturalismo
francês, é absorvida pela crítica cinematográfica a partir dos anos setenta. Nesta
perspectiva narratológica, uma significante fortuna teórico-crítica se destaca pela
relevância no contexto de estudos fílmicos, constituída por obras como Story and
discourse: narrative structure in fiction and film (1978) e Coming to terms: the rhetoric
of narrative in fiction and film (1990), ambos de Seymour Chatman, Point of view in the
cinema: a theory of narration and subjectivity in classical film (1984), de Edward
93
Branigan e Narration in the fiction film (1985), de David Bordwell, para exemplificar as
mais clássicas.
recepção, pois este conceito origina-se na premissa de que qualquer obra autoriza uma
infinidade de leituras e interpretações, mas nem todas plausíveis. Obviamente, cabe ao
leitor e espectador o discernimento crítico sobre a coerência e rendimento estético da
interpretação. Em segundo lugar, o conceito de dialogismo intertextual reconhece a
natureza palimpséstica da adaptação, evidenciando possíveis diálogos entre textos e
contextos no campo artístico-cultural, que contribuem para o enriquecimento qualitativo
da arte. A abordagem dialógico-intertextual reveste-se de importância pela possibilidade
de “transcender as contradições insolúveis da „fidelidade‟ e de um modelo diático que
exclui não apenas todos os tipos de textos suplementares mas também a resposta
dialógica do leitor/espectador” (STAM, 2006b, p. 28). Portanto, ao enfatizar a multi-
dimensionalidade do processo de adaptação e sua relação dialógica com os vários
discursos, Stam ultrapassa as fronteiras da mera comparação dicotônica e hierárquica
entre a literatura e o filme.
4. Adaptação e Metaficção
Conforme Stam, o cinema criou uma forma de contar histórias através de uma
organização espaço-temporal especificamente cinemática, que se tornou o fundamento
estético do cinema dominante, basicamente “a reconstituição de um mundo ficcional
caracterizado por coerência interna e pela aparência de continuidade espacial e
temporal” (1981, p. 258). Stam acrescenta que “[a] continuidade ortodoxa implica numa
história linear, uma causalidade plausível e um realismo psicológico” (1981, p. 258). A
ortodoxia cinematográfica estabeleceu normas a serem adotadas como, por exemplo, a
introdução progressiva de novas cenas (partindo da tomada geral para o plano médio e
30
Xavier define “a decupagem como o processo de decomposição do filme (e, portanto, das sequências e
cenas) em planos” (2008, p. 27). É importante lembrar que a decupagem está sempre associada à
montagem no processo de composição do filme. A decupagem clássica utiliza regras para tornar invisível
a montagem (as ligações e as intercalações de planos), de modo que uma aparente continuidade seja
mantida. Acerca destas regras de continuidade da decupagem clássica, Xavier afirma que elas “funcionam
justamente para estabelecer uma combinação de planos de modo que resulte uma sequência fluente de
imagens, tendente a dissolver a „descontinuidade visual elementar‟ numa continuidade espaço-temporal
reconstruída” (2008, p. 32, grifos do autor).
97
Segundo Marcia Ortegosa, “[e]mbora o cinema seja a arte da ilusão, ele recria,
através da ficção, uma aparência de real” (2010, p. 17), ou seja, o cinema cria o que
Christian Metz chamou de “impressão da realidade” (1966), que quer dizer a
similaridade de realidade no filme percebida pelo espectador. Conforme Aumont, “[o]s
filmes narrativo-representativos, mesmo se seu enredo for bem irreal, sempre serão
reconhecidos como particularmente críveis” (2006, p. 165). Simplificando o assunto,
nisto consiste a impressão de realidade no cinema.
31
“Contracampo é uma figura de decupagem que supõe uma alternância com um primeiro plano então
chamado de “campo”. O ponto de vista adotado no contracampo é inverso daquele adotado no plano
precedente, e a figura formada dos dois planos sucessivos é chamada de “campo-contracampo””
(AUMONT e MARIE, 2007, pp. 61-2). O campo-contracampo indica uma interação entre os atores da
cena.
98
relaciona-se com a chamada persistência retiniana (as imagens que chegam à retina não
se apagam imediatamente). Entretanto, sabemos que a persistência retiniana não poderia
atribuir movimento a tais imagens, apenas mesclar umas as outras. Portanto, segundo
Aumont e Marie (2007), a habilidade de ver a continuidade no movimento das imagens
consiste numa propriedade inata da percepção humana ocorrida no cérebro, denominada
efeito phi, onde
32
Como informação adicional, citamos outros exemplos de filmes metaficcionais na época do cinema
mudo: Help! Help! (1912), de Mack Sennett; Mabel’s dramatic career (1913), de Mark Sennett; His New
Job (1914), de Charlie Chaplin; The Cameraman (1928), de Buster Keaton e The man with a Movie
Camera (1929), de Dziga Vertov.
33
Há um fato curioso acerca deste filme, que merece ser relatado aqui, visto que o filme de Porter pode
ser um remake de um filme inglês de 1901, intitulado The countryman’s first sight of the animated
pictures, de Robert Paul, e parte de um material de um „roubo‟ compartilhado entre Paul e Edison. Além
disto, há um aspecto comercial envolvendo a questão, pois Uncle Josh exibe segmentos de filmes de
Edison com o título „The Edison Projecting Kinetoscope‟ e, quando o projetista explica a Josh que este
está vendo um filme, aponta para o projetor, como se faz numa propaganda (STAM, 1992, p. 268).
100
onírico adentra a tela, onde estão os personagens do filme dentro do filme, “Corações e
pérolas”, transformados em sua namorada e seu inimigo (na sua imaginação). Adotando
outra personalidade, o doublé, como o filho de Sherlock Holmes, atua no filme para
proteger sua amada, cuja honra está ameaçada. O final do filme surpreende com Keaton
imitando o personagem sedutor da tela, numa “demonstração, viva, do poder formativo
dos modelos cinematográficos” (STAM, 1981, p. 57). Nesta breve descrição, podemos
observar a ruptura de uma série de normas do modelo clássico de narrar a história no
cinema. O título do filme de Keaton inicialmente traduz o tom irônico, que domina a
narrativa. O conflito entre ficção e realidade é claramente elaborado no enredo, através
da visualização dos recursos metaficcionais, que rompem com o ilusionismo, e através
da exposição do efeito do filme no espectador. Aliás, a questão de espectatorialidade é
antecipadamente tratada no filme, porém de forma lúdica e irônica. Portanto,
exatamente como a literatura, o filme pode revelar sua feitura como artefato, expondo
sua ficcionalidade e perturbando a questão ontológica do cinema. Como observa Robert
Stam,
De fato, o cinema de ficção comercial, em geral, adota uma estética realista, nas
palavras de Stam, “uma estética ilusionista retrógrada”, correspondente à arte
novelística e à dramática realista, que já se mostram cambaleantes no início do século
XX com o surgimento do vanguardismo. Isto explica o fato de a arte cinematográfica ter
se tornado “o catalisador das aspirações miméticas abandonadas pelas demais artes”
(STAM, 1981, p. 24). A verossimilhança do cinema atrai o público maravilhado pela
imagem, análoga à realidade e à fotografia – é o fascínio do “cinema de atrações”34, que
evolui para o cinema narrativo. Além disto, motivos econômicos e políticos contribuem
para manter o cinema preso ao realismo, visto que, por um lado, o cinema torna-se uma
grande e dispendiosa indústria, cujo público precisa ser conquistado e mantido; e, por
outro lado, o cinema é utilizado para a propaganda política da Rússia socialista e da
Alemanha nazista. Inclusive, Stam afirma que “[o] advento do filme sonoro parece
haver levado o cinema a ser mais realista” (1981, p. 73). Como consequência,
Hollywood adotou um estilo semelhante ao estilo da ficção realista ou do teatro
naturalista do século XIX. Portanto, somente na década de cinquenta, cineastas como
Jean-Luc Godard, Michelangelo Antonioni e Alain Resnais começam a explorar
inovações anti-convencionais, que favorecem a prática metaficcional no cinema. Porém,
esta prática encontra resistência entre os primeiros teóricos do cinema que defendiam o
realismo como o modo de expressão essencial da arte cinematográfica. Dentre estes
teóricos, destacam-se André Bazin, como mencionado anteriormente, e Siegfried
Kracauer que, segundo Aumont e Marie, entende que “o cinema, extensão da fotografia,
tem vocação para registrar e revelar a realidade física. Um verdadeiro filme deve,
portanto, nos colocar diante do mundo no qual vivemos, penetrá-lo perante nossos
olhos” (2007, p. 173).
36
William Randolph Hearst (1863-1951) foi um magnata da imprensa nos Estados Unidos no final do
século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Seu império jornalístico compreendia 30 jornais, como
o Washington Times, e 18 revistas, dentre estas a Cosmopolitan, estações de rádio e uma companhia
cinematográfica. Hearst é considerado o criador da chamada „imprensa marrom‟, expressão pejorativa
utilizada para a impressa sensacionalista, que busca a vendagem com divulgação de fatos exagerados e de
veracidade duvidosa, sem compromisso com a ética jornalística. Conforme Howard James, Hearst usou
toda sua influência para impedir o lançamento de Citizen Kane e conseguiu limitar a exibição do filme em
algumas cadeias de cinema, apesar da resistência de Welles e do estúdio RKO. Disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/William_Randolph_Hearst>. Acesso em: 22 set. 2012.
108
37
No verão de 1797, durante a leitura de um livro de viagens do período elizabetano (Purchas his
Pilgrimage (1613), de Samuel Purchas), o poeta inglês Samuel Coleridge adormece sob o efeito do ópio,
que tomava como tratamento de sua debilitada saúde. Ao despertar do sono, Coleridge escreve o poema
Kubla Khan, seguindo um fluxo de „inspiração‟ gerado numa espécie de sonho, que teve enquanto
dormia. A história conta que Kubla Khan foi o fundador da dinastia mongol na China no século XIII. No
poema, Kubla Khan é o governante de um lugar exuberante chamado Xanadu. O poema, com 55 linhas,
traz as características do período romântico inglês com versificação irregular (jambos, versos trocaicos
com três, quatro ou cinco pés), que contrariava a tradicional prosódia. Entretanto, enquanto escrevia o
poema, Coleridge é interrompido e perde para sempre o que, segundo nota registrada por ele numa cópia
manuscrita de Kubla Khan, seria a continuidade de sua obra (ABRAMS et all, 1986, p. 353-355).
Portanto, num certo sentido, „Kubla Khan‟ é uma obra „inacabada‟, embora alguns críticos discordem
dessa possibilidade. Ironicamente, a Xanadu de Kane é uma obra inacabada – uma interessante
intertextualidade construída por Welles.
109
38
Voice-over é “usada para aquela situação onde existe uma descontinuidade entre o espaço da imagem e
o espaço de onde emana a voz, como acontece, por exemplo, na narração de muitos documentários (voz
autoral que fala do estúdio) ou mesmo em filmes de ficção quando a imagem corresponde a um flashback,
ou outra situação, onde a voz de quem fala vem de um espaço que não corresponde ao da cena
imediatamente vista” (XAVIER, (org.), 2008, p. 459, grifo do autor).
110
Além disto, no nível diegético, este artifício utilizado por Hitchcock difere
daquele utilizado por Truffaut, cuja aparição no filme La nuit Américaine (A noite
americana, 1973) instaura uma reduplicada estrutura em abismo. Não somente porque
Truffaut tem um papel a desempenhar na narrativa, mas, principalmente, porque sua
atuação é de um diretor no papel de um diretor dentro do próprio filme que dirige.
Assim, este tipo de procedimento de Truffaut diverge daquele usado por Fellini, em
39
O autorismo defende a pessoa do diretor como o artista criativo e pressupõe a assinatura do estilo do
autor na sua obra. Embora algumas discussões isoladas já indicassem uma preocupação no sentido de dar
ao cineasta o status de autor (Epstein, Griffith e Eisenstein), pode-se dizer que a ideia do autorismo teve
em Alexandre Astruc seu precursor, que preconizou a “fórmula da camera stylo (câmera-caneta), que
valorizava o ato de filmar” (STAM, 2006a, p. 103) – um paralelismo com a caneta do escritor literário. O
autorismo é um movimento do final da década de cinquenta e início dos anos sessenta, cujo principal
apologeta é François Truffaut e cujas ideias foram divulgadas nos Cahiers du cinema, a partir de 1954.
Além de Truffaut, são considerados auteurs os cineastas Jean-Luc Godard, Jean Renoir, Luiz Buñuel,
Fritz Lang, Alfred Hitchcock e Orson Welles, por exemplo. Segundo Stam, “o autorismo foi um
palimpsesto de influências, combinando noções românticas de expressão artística, noções formalistas-
modernistas de descontinuidade e fragmentação estilísticas e uma atração „proto-pós-moderna‟ pelas artes
e gêneros mais „baixos‟” (STAM, 2006a, p. 106). Portanto, o termo auteurism, no sentido usado por
Stam, envolve os aspectos teóricos e críticos, isto é, corresponde tanto à política dos autores como à teoria
do autor, conforme nota do tradutor (MASCARELLO In: STAM, 2006a, p. 102).
111
[d]e fato, pode-se dizer que o espírito livre da comédia muda tenha
vagado pelos subterrâneos e depois ressurgido no desenho animado.
Para aperfeiçoar sua técnica, Chuck Jones estudou os movimentos de
40
Gags são interpolações ou brincadeiras introduzidas por um ator.
113
John Fowles, The French lieutenant’s woman (1966), dirigida por Karel Reisz e com
roteiro do famoso dramaturgo inglês Harold Pinter, por exemplo, adota uma estrutura
metaficcional análoga à estrutura do romance, no sentido de que ambas evidenciam suas
construções narrativas, preservando a metaficcionalidade pertinente a ambos os textos,
através do uso da montagem alternada41. Evidentemente, tais soluções requerem
habilidade, criatividade e muita imaginação, pois
41
Montagem alternada ou montagem imbricada (em inglês, “crosscutting”) – “trata-se de uma montagem
por paralelismo baseada na contemporaneidade estrita de duas (ou várias) ações que se justapõem, as
quais acabam na maioria das vezes por se juntar no final do filme [...]” (MARTIN, 2003, p. 156). Esta
técnica da montagem foi aperfeiçoada por D. W. Griffith. O incomum deste recurso cinematográfico,
nesse caso, reside no fato de que a versão moderna da história não é apenas um fio de uma história maior.
42
Enunciação – “Em linguística, a enunciação é o ato de conversão da língua em discurso” (REIS&
LOPES, 1988, p. 108). Na narratologia, enunciação refere-se ao ato de produção do discurso (a narração,
segundo Genette). Brian Mcfarlane entende por enunciação no cinema, “todo o aparato expressivo que
governa a apresentação – e recepção – da narrativa” (1996, p. 20).
117
[é] mais fácil basear um filme num romance que já está explicitamente
narrado, total ou predominantemente “mostrado” pelo olho de uma
câmera. O maior desafio é apresentado por romances com narradores
tagarelas e prolixos; justamente por isso, estes oferecem
oportunidades para um cinema mais criativo. Ao examinar mesmo
uma simples adaptação imaginativa, podemos aprender alguma coisa
útil sobre as possibilidades expressivas dos dois meios, pelo menos no
presente momento da história do filme (1990, p. 164).
“„And what are you reading, Miss --?‟ […] „It is only
Cecilia, or Camila, or Belinda;‟ or, in short, only some
work in which the greatest powers of the mind are
displayed, in which the most thorough knowledge of
human nature, the happiest delineation of its varieties,
the liveliest effusions of wit and humour are conveyed
to the world in the best chosen language.”
(Jane Austen, Northanger Abbey, p. 36-37)
Não é sem motivo que o romance Atonement (2001) tem recebido a calorosa
aclamação da crítica, importantes premiações e, ainda, tem sido traduzido para muitos
idiomas. Conforme Frank Kermode, Atonement, “tranquilamente o mais refinado”
romance de Ian McEwan, “tem uma estrutura que é apropriadamente desdobrada e
articulada e apta para a condução da chamada „marcha de ação‟, que [Henry] James
descreveu como „a única coisa que realmente, pelo menos para mim, irá produire
L‟OEUVRE‟” (apud CHILDS, 2006, p. 132, grifos do autor). Ainda no mesmo ensaio,
Kermode acrescenta que “ele [McEwan] é tão virtuoso que alguém é tentado a imaginar
que os melhores leitores deste livro [Atonement] poderiam ser Henry James e Ford
Madox Ford” (apud CHILDS, 2006, p. 133). O escritor norte americano John Updike
afirma que o romance Atonement é “belo e majestoso” (apud CHILDS, 2006, p. 129). O
crítico Peter Childs comenta que “[p]ara John Updike, a qualidade da prosa no romance,
sua beleza visivelmente ornada e sua riqueza descritiva podem ser vistas como
propriamente parte da reparação de Briony” (2006, p. 135). Peter Kemp, crítico do The
Sunday Times, aplaude o romance com as seguintes palavras: “Sutil e poderoso,
habilmente abarcando comédia e atrocidade, Atonement é um livro ricamente intricado.
Simetrias e padrões invisíveis salientam sua força emocional e compulsão psicológica”
(2001, p. 46). Tom Shone, crítico do The New York Times Book Review, reconhece
Atonement como “[s]ua mais completa e compassiva obra até o presente” (2002).
Michael Pakenham, crítico do The Baltimore Sun, comenta que Atonement é
1. O romance
Mundial, no seio de uma família de classe média alta e abrange o longo período de
tempo que vai do ano de 1935 até o ano de 1999. A primeira parte, composta por
quatorze capítulos, devidamente numerados e divididos em diversas seções,
compreende o período de um dia quente de verão em 1935. Esta primeira parte introduz
as personagens, o contexto e a história do romance por meio de uma narrativa em
terceira pessoa, cujo tempo se alonga o suficiente para garantir o desenvolvimento e
estabelecimento do conflito, alterando, deste modo, o ritmo da narração 43, visto que a
história compreende a duração de apenas um dia.
43
O termo „narração‟ é usado aqui no sentido dado por Gérard Genette, ou seja, “o ato narrativo produtor
e, por extensão, o conjunto de situação real ou fictícia na qual toma lugar” (s/d, p. 25).
122
inicia com a jornada de Robbie em direção à praia de Bray Dunes em Dunkirk, ao norte
da França, acompanhado pelos cabos Nettle e Mace. Embora tenham patente maior, os
cabos seguem sob a condução de Robbie, que notadamente tem uma formação superior.
Sob a ótica de Robbie, a descrição das atrocidades da guerra é detalhada e vívida, mas
pontuada pela crítica à barbárie humana e ao caos no „fronte‟. A história é intercalada
pela rememoração de Robbie, de onde emanam as informações sobre sua vida na prisão,
seu único encontro com Cecilia na cafeteria, seus sentimentos e percepções. Através
desta narrativa introspectiva, o leitor gradativamente toma conhecimento da ampla
correspondência entre Robbie e Cecilia, por meio da qual eles nutrem seu amor. A
jornada de Robbie à praia de Dunkirk é árdua e marcada pela desordem generalizada da
guerra e pelo estado mental de Robbie, afetado devido à fadiga, ao sofrimento e à
infecção de um ferimento que tem no tórax. A chegada a Dunkirk assinala o fim da
jornada de Robbie e sua morte lenta. Tomado por uma alucinação, Robbie recorda o
passado e lembra o dia em que foi preso e as palavras de Cecilia sussurradas ao seu
ouvido, pelas quais ele vive os últimos cinco anos de sua vida: “Vou esperar por você.
Volte” (p. 340).
44
Discurso, usado aqui no sentido narratológico, encontra-se no plano da expressão dos conteúdos
narrados e estabelece relação de interdependência com a história. Neste sentido, há uma correlação com o
conceito de Benveniste, no qual discurso é o produto de um ato de enunciação (ver REIS & LOPES,
1988, p. 27-29).
126
Ela poderia ter ido para sua mãe naquele momento e aconchegar-se ao
lado dela e fazer para ela um resumo do dia. Se o tivesse feito, não
teria cometido seu crime. Tantas coisas não teriam acontecido, nada
teria acontecido, e a mão suavizante do tempo, teria transformado
aquela noite numa noite simplesmente memorável: a noite em que os
gêmeos fugiram. Isto foi mesmo em trinta e quatro, trinta e cinco ou
trinta e seis? (p. 206-7).
sentido. Se a palavra „crime‟ aponta para uma ação futura, o texto passa a ser uma
rememoração de Briony. Mas, como o texto pode ser rememorado por Briony, se neste
momento ela tem apenas treze anos de idade? Trata-se, assim, de uma prolepse,
propiciada pelo narrador extradiegético, dentro da mente da personagem, e reiterada
pela referência ao tempo da ação (futuro do pretérito), mencionado na citação. Algumas
páginas adiante um, ou mais de um, crime é ou são cometido(s), mas a ambiguidade
discursiva permanece e se acentua à medida que a narrativa se desenvolve. E, a questão
da natureza do crime permanece ambígua e aberta à interpretação do leitor mesmo com
o término do romance.
sofrimento e por uma infecção, que gradativamente se apodera do seu corpo: “Vou
esperar por você. Volte. As palavras não eram insignificantes, mas não o emocionam
mais agora. Era óbvio o bastante – uma pessoa esperando por outra como uma soma
aritmética, e apenas isto, sem emoção” (p. 335). Esta citação é retomada posteriormente,
dentro do processo de rememoração de Robbie:
[...] agora que ele estava tranquilo, é claro que viu como era bom que
ela estivesse esperando. A aritmética que se danasse. Vou esperar por
você era fundamental. Era a razão da sua sobrevivência. Era a maneira
de dizer que ela recusaria todos os outros homens. Somente você.
Volte. [...] Então ela pôs um dedo nas algemas e disse que não estava
envergonhada, que não havia nada de que se envergonhar. Ela segurou
uma ponta da sua lapela e deu uma sacudidela e isto foi quando ela
disse, „Vou esperar por você. Volte‟. Ela quis dizer o que disse” (p.
340).
“Agora ele reduziu seu andamento ao ritmo das botas – caminhava pela terra até chegar
ao mar” (p. 289). Parodiando o estilo poético e a prosódia, a tradição literária é revisada
pela metaficção e o fazer poético é desnudado. Além disto, a literatura mostra-se o meio
de ironizar a história, particularmente, a marcha patética que muitos fizeram para a
morte na Guerra, especificamente, durante a dramática retirada de Dunkirk.
Não havia nada que ela não pudesse descrever: o som suave do passo
de um psicopata se movendo sinuosamente ao longo da alameda,
mantendo-se à margem para abafar sua aproximação. [...] Ela podia
descrever aquele ar delicioso também, a grama exalando o cheiro
suave do gado, a terra esturricada que ainda continha as brasas do
calor do dia e exalava o odor mineral do barro, e a brisa leve trazendo
do lago um sabor de verde e prata (p. 200).
2.1.3. Paratextualidade45
a) A Epígrafe
45
Paratextualidade no sentido dado por Gérard Genette (s/d), ou seja, a relação entre o texto e seu título,
prefácio, posfácio, epígrafe, dedicatória, ilustração e comentários na capa e nas orelhas do livro.
46
Northanger Abbey foi o primeiro romance escrito por Austen, entre 1797 e 1803, batizado com o título
Susan, uma alusão ao longo conto infantil de Maria Edgeworth intitulado Simple Susan (1800), que narra
a história de uma garota de treze anos de idade e o curso do seu árduo rito de passagem para o mundo dos
adultos. Em 1803, o romance Susan foi vendido por £ 10 a Crosby, que nunca o publicou e, em 1809,
Austen mudou o seu título para Northanger Abbey. Comprado de volta em 1816, o romance retornou para
Austen, mas só foi publicado postumamente em 1818, com uma Nota Bibliográfica escrita por Henry
Austen, irmão de Jane Austen. Acerca da qualidade estética do romance, a renomada crítica Marilyn
Butler argumenta: “É tempo de se reconhecer Northanger Abbey pelo que realmente é: uma obra
ambiciosa e inovadora, enigmaticamente intelectual acerca da própria ficção” (2003, p. xvi).
47
Ressaltamos que esta temática foi abordada inicialmente por Genilda Azerêdo em “Words, images and
invention: the power of metalanguage in Austen, McEwan and Joe Wright”. In ARANHA, Solange e
FERNANDES, Giséle. (eds.). Anais do II Congresso Internacional da ABRAPUI. E-book. São José do
Rio Preto, SP, 2009. Vale enfatizar que este texto foi fonte de inspiração para nossa investigação.
134
Além disto, tanto Catherine como Briony têm o duplo papel de leitora-escritora.
Embora não se aplique à profissão da escrita, a heroína de Austen cria histórias
imaginárias e mantém um diário secreto, como o faz Briony. Semelhantemente, Robbie
Turner, como Henry Tilney, possui qualidades de um habilidoso leitor. Ilustra este
aspecto da caracterização de Robbie, o seguinte fragmento que descreve os objetos do
seu quarto: “Do outro lado da bússola estavam suas cópias de Poems, de Auden, e A
Shropshire Lad, de Housman. Na outra extremidade da mesa havia vários livros de
história, tratados de teoria e manuais práticos de paisagismo” (p. 104). Como a heroína
de Burney em Cecilia, Cecilia Tallis precisa enfrentar os costumes e convenções sociais
do seu tempo no âmbito da burguesia inglesa e, também, é capaz de atitudes estoicas.
Segundo Sampson, “Fanny Burney foi a primeira escritora a perceber que os embaraços
comuns da vida de uma garota teriam atributos para serem tomados como tema
principal de um romance” (1975, p. 427).
135
48
„Inglesidade‟ é um neologismo para „Englishness‟, que significa aquilo que é próprio da formação do
povo inglês como nação – seus costumes, cultura, língua, arte, filosofia e ideologia. Em suma, aquilo que
forma a identidade cultural do povo inglês.
136
b) A Nota de Agradecimento
Paratextos desta natureza podem criar uma impressão de veracidade dos fatos
narrados, porque contêm elementos reais (não ficcionais). Assim, a nota de
agradecimento tem um papel crucial na construção da verossimilhança da narrativa, o
que satisfaz os requisitos de uma obra histórica e, diegeticamente, satisfaz a intenção de
autojustificação de Briony. Porém, sendo uma obra metaficcional, o romance Atonement
paradoxalmente mescla realidade com ficção, gerando ambiguidades textuais. Visto que
imbrica o discurso literário com o histórico, esse romance exibe o amálgama de fatos
históricos reais e de acontecimentos ficcionais. É interessante observar que Briony não
apenas consulta o material da biblioteca do museu, ela também contribui com o arquivo
da honrada instituição: “Passei um tempo conversando com o Zelador de Documentos.
Entreguei o maço das cartas que o Sr. Nettle escreveu para mim sobre Dunkirk –
recebidas com muita gratidão. Elas serão guardadas com todas as outras que doei” (p.
463). Ter em mãos os documentos autênticos legitima o relato de Briony como
confiável e „verdadeiro‟. Observamos aqui mais uma refinada ironia, provocada pela
relação entre Briony e McEwan – „escritora‟-escritor, criatura-criador.
Museum e deixar o leitor em terra firma” (apud ROBERTS, p. 152, grifos nossos).
Essas palavras de McEwan revelam tanto sua relação lúdica com o texto, quanto um dos
seus propósitos com a inserção da Nota de Agradecimento: trazer o leitor para a
realidade. A revelação é indiscutivelmente pertinente. Algo se tem por certo: o prazer da
leitura e o deleite da ironia refinada. Entretanto, esta possível sessão inédita de
Atonement foi publicada na íntegra no The Paris Review, edição do verão de 2002,
como parte de uma entrevista a Adam Begley.
Sobre a autora
49
O “ducking stool” foi um instrumento de tortura bastante usado na Europa e em New England para
punir transgressores. Consistia em uma haste, apoiada numa estrutura de madeira, fincada no solo, em
cuja extremidade ficava pendurado um banquinho e na outra extremidade (da haste) prendia-se uma
corda, de modo que o „réu‟, amarrado no banquinho, era mergulhado na água – um processo lento e
angustiante. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/duckingstool>. Acesso em: 30 out. 2012.
Metaforicamente, este título do romance alude ao processo de autopunição, ao qual Briony se submeteu.
140
adiante, questões decisivas sobre a própria realidade” (p. 183). Por isto, ao ler “Sobre a
autora”, a inclinação natural do leitor é receber o texto como real. A lembrança de que
Briony é um ser ficcional causa um impacto desestabilizador no leitor, mas, enfim,
irônico e prazeroso. Aliás, numa reflexão tautológica, ser um ser implica em uma
existência real; materialmente falando, Briony não existe. E, Briony existe, não apenas
na imaginação do escritor, mas agora na imaginação e, quiçá, nos lábios de cada leitor.
50
A Roedean School é uma escola independente com internato feminino para garotas entre 11 a 18 anos
de idade, localizada em Brighton, no distrito de East Sussex, Inglaterra. Roedean School oferece uma
educação de altíssimo nível e está entre as instituições educacionais mais caras da Inglaterra. Fundada em
1885 como Wimbledon House, pelas irmãs Penelope, Millicent e Dorothy Lawrence, a escola tinha o
objetivo de preparar jovens para a ala feminina recém-inaugurada da Universidade de Cambridge (Girton
e Newnham Colleges). Roedean School passou a ocupar os prédios atuais, desenhados pelo arquiteto John
William Simpson, em 1898. Theresa Lawrence, irmã mais nova das fundadoras de Roedean School,
fundou uma escola com o mesmo nome em Johannesburg, Africa do Sul. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Roedean_School>. Acesso em: 30 out. 2012.
51
A Virago é uma editora inglesa fundada em 1973 por Carmen Callil, a princípio com o objetivo de
publicar livros de mulheres escritoras, mas já se incluem na sua lista de publicações obras com temas
femininos de escritores. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Virago>. Acesso em: 30 out. 2012.
52
Jane Austen nasceu em 16 de dezembro de 1775 em Steventon, onde morou até 1801, quando se
mudou com a família para Bath, após a aposentadoria do pai.
141
2.1.4. Intertextualidade
(p. 194), Byron (p. 272); de obras literárias: Clarissa, de Richardson; Hamlet, de
Shakespeare (p. 77), A Shropshire lad, de A. E. Housman (p. 104), The romaunt of the
rose, de Geoffrey Chaucer (p. 107), The dance of death, de Auden (p. 118); Private
lives, de Noël Coward (p. 138), Paradise Lost, John Milton (p. 139), Lady Chatterley’s
lover, de D. H. Lawrence (p. 169); The Waves, de Virginia Woolf, Dusty answer, de
Rosamund Lehmann (p. 404); de personagens: Malvolio (p. 105); Tristan e Isolda, the
Duke Orsino e Olivia, Troilus e Criseyde, Mr Knightley e Emma, Venus e Adonis (p.
261), Cruella De Vil (p. 462); de periódicos: Criterion (p. 104), Daily Sketch (p. 111) e
Horizon (p. 272, 362); e de livro religioso: Book of Common Prayer (p. 13, 418).
A literatura que se dobra sobre si mesma abre espaço para uma espécie de
intertextualidade interna, pois tem os seus intertextos dentro do corpo de sua própria
narrativa. Neste aspecto, a narrativa de Atonement, firmada numa estética metaficcional,
contempla a presença de outros textos de ficção na sua narrativa, como a peça teatral
The trials of Arabella, as cartas de Cecilia a Robbie e a carta do editor a Briony. A
intertextualidade por referência a estes textos ficcionais caracteriza-se pelos múltiplos
desdobramentos. Um exemplo deste tipo em relação à peça teatral pode ser visto no
seguinte fragmento: “Como dizer a eles que Arabella não era uma pessoa sardenta? Sua
pele era clara e seu cabelo era negro e seus pensamentos eram os pensamentos de
Briony” (p. 17). A peça, escrita por Briony, seria encenada para a família com a
participação dos primos do norte, mas Briony pretendia fazer o papel de Arabella, sua
protagonista. Briony tinha planejado sua personagem com suas feições e não lhe
agradava dividir com ninguém, muito menos com Lola, a posição de heroína na peça,
mas teve que ceder em favor do projeto. No início do capítulo três o narrador comenta:
144
Ignorando o rosnar dos cachorros das fazendas, ele achou caminho por
uma vereda até uma elevação gramada para ver os clarões no céu ao
sul. Aquilo era a tempestuosa aproximação do exército alemão. Ele
tocou o bolso superior da capa, onde o poema que ela mandou estava
dobrado dentro da carta dela. No pesadelo da escuridão, / Todos os
53
cães da Europa latem (p. 259, grifos do autor).
53
Por razões hermenêuticas, a tradução dos poemas é literal e sem o devido refinamento poético.
146
junto com o poema. Nos desertos do coração / Deixe a fonte que cura fluir” (p. 310,
grifos do autor). Certamente, a fonte traz recordações do encontro com Cecilia, da
descoberta do desejo e do despertar da paixão. Cura é o que ele precisa para o corpo,
ferido na guerra, e para a alma, ferida pela injustiça. Os elementos antitéticos dos versos
fazem lembrar que a água da fonte é preciosa para resolver a sequidão do coração e
traduz a esperança do novo encontro. Esta temática é repetida na inserção das duas
primeiras linhas do poema de Housman: “Oh, quando estava apaixonado por você /
Então eu era puro e corajoso” (p. 337, grifos do autor). Porém, agora o tema do amor
matiza-se com um tom nostálgico, próprio do processo de rememoração de Robbie na
Parte II de Atonement, que culmina ironicamente na sua morte. A
transcontextualização, como operador formal da paródia, acentua a “repetição com
diferença” (HUTCHEON, s/d, p. 48) nestas citações, porém o ethos é reverencial em
relação à literatura, pois promove o resgate das duas obras, reutilizando-as noutro
contexto, no qual outros significados lhe são acrescentados, reinscrevendo-as
respeitosamente na continuidade histórico-literária, num processo que os formalistas
chamaram de refuncionalização (HUTCHEON, s/d, p. 52).
Ademais, registram-se duas outras citações (escritas) das cartas, que dizem
respeito ao único encontro amoroso entre Cecilia e Robbie – o momento de consumação
da sua paixão – na biblioteca da casa dos Tallis. “A menção „de um canto tranquilo na
biblioteca‟ era um código para o êxtase sexual” (p. 261) e “Quando ela escreveu, „Fui à
biblioteca hoje para tirar o livro de anatomia do qual lhe falei. Encontrei um canto
tranquilo e fingi ler‟, ele sabia que ela estava alimentando as mesmas lembranças que o
consumiam cada noite, debaixo dos finos lençóis da prisão” (p. 261). A densa
correlação entre estas duas citações impõem uma análise comparativa. Ambas contêm
uma citação inserida no próprio texto e a citação enxertada no primeiro texto faz parte
do segundo texto; logo, a primeira citação faz intertexto com o segundo texto (ou vice-
versa) – um desdobramento da intertextualidade. Num movimento de construção e
desconstrução, o código é velado e revelado, trazendo à baila a ambiguidade discursiva.
A palavra „código‟ indica o jogo velado de palavras entre Cecilia e Robbie, que é
revelado ao leitor como o „ato sexual‟ realizado na biblioteca. Porém, devido à
149
com a referência posterior à escritora inglesa: “Ela tinha lido The waves, de Virginia
Woolf, três vezes e achado que uma grande transformação estava operando na própria
natureza humana, e que apenas a ficção, um novo tipo de ficção, podia capturar a
essência desta mudança” (p. 362). Ambos os modos de escrita são comentados sob o
olhar crítico que a distância paródica permite. Aparentemente, pode-se compreender que
Briony faz uma crítica negativa à literatura realista, porém, a inserção da frase “pensava
ela” torna o discurso ambíguo, ou seja, o verbo „pensar‟ pode indicar a ação no nível do
discurso ou o fato de que assim ela pensava no passado, pois agora tem outro
entendimento. Entretanto, a ambiguidade só é percebida com a mudança de focalização,
provocada pelo desdobramento metaficcional da narrativa. Ressaltamos que McEwan se
apropria dos dois tipos de literatura (a realista e a psicológica) na construção da tessitura
do seu romance. Inclusive, o discurso literário mescla elementos e personalidades da
vida real com ficção, o que dá legitimidade e credibilidade à narrativa. Conforme
Hutcheon, “[o] pós-modernismo sinaliza sua dependência pelo uso que faz do cânone,
mas revela sua rebeldia através do abuso irônico que faz do mesmo” (2000a, p. 130,
grifos da autora).
Esta é a visão dos que estavam lá, vivendo os horrores do campo de batalha e
lutando pela sobrevivência – a visão da história vista de baixo 54, que cumpre o papel de
ajudar “a corrigir e a ampliar aquela história política da corrente principal que é ainda o
cânone aceito nos estudos históricos britânicos” (SHARPE, 1992, p. 62). Além disto, a
relação entre a literatura e a história ficcionalizada tem a finalidade de reavaliar o
passado a partir da perspectiva do presente, questionando o conhecimento que se possa
ter deste passado, porém, de modo algum, sob uma forma nostálgica. Esta postura
estética fundamenta-se na noção de que o conhecimento é construído. Atonement,
através da metaficção, parodia a história oficial sem negar sua validade, porém
desmistifica seu discurso e, ao recontextualizar o evento histórico, subverte-o pela
ironia, resultando em implicações ideológicas e hermenêuticas.
54
A expressão „a história vistade baixo‟ refere-se à escrita da história na perspectiva das “experiências
passadas da massa da população” (SHARPE, 1992, p. 41), ou seja, a escrita da história na ótica do
cidadão comum (os governados) e não da „elite‟ (os governantes). O termo surgiu no artigo intitulado
“The history from below”, de Edward P. Thompson, publicado em 7 de abril de 1966 no The Times
Literary Suplement (SHARPE, 1992, p. 40, nota de rodapé). Para aprofundamento deste assunto
sugerimos a leitura de SHARPE, Jim. “A história vista de baixo”. In: BURKE, Peter. (org.) A Escrita da
História: Novas Perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1992. p. 39-62 e WHITE,
Hayden. The Content of the Form. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press. 1987.
152
a) A peça teatral
própria Briony no seu papel de pretensa dramaturga. Aliás, no final do romance, Briony,
como uma escritora na sua maturidade, ironiza os clichês da sua escrita da infância,
citando parte do último verso da peça e tecendo seu comentário: “[P]ois para o poente
navegamos. Uma inversão infeliz” (p. 477).
b) As cartas
editor e uma das cartas de Cecilia a Robbie estão impressas em itálico, aludindo
metaficcionalmente à caligrafia esperada numa correspondência, o que constrói uma
ilusão de realidade e, paradoxalmente, desconstrói esta ilusão, na exposição sutil de sua
ficcionalidade. Além de servir à comunicação entre as personagens, as cartas promovem
o avanço da narrativa central, desenvolvida na Parte I, no decurso das Partes II e III, que
se caracterizam pelo imbricamento com o discurso histórico, referente ao período da II
Guerra Mundial. Portanto, através das cartas, o leitor é informado acerca dos
acontecimentos no „fronte‟ doméstico, uma vez que Robbie encontra-se no campo de
batalha na França (Parte II) e Briony está em treinamento no St. Thomas Hospital em
Londres (Parte III). Ressaltamos como mais um recurso metaficcional visível no texto a
multiplicidade de referências entre estas cartas.
calor! Você me perdoa? Robbie” (p. 109); e a versão erótica denuncia: “Em meus
sonhos, beijo sua buceta, sua buceta úmida. Em meus pensamentos, passo o dia inteiro
fazendo amor com você” (p. 109). Traído pelo próprio desejo, Robbie envelopa a versão
erótica e comete o erro de enviá-la por Briony. E, como informa o narrador, embora
noutro contexto: “Lá se foi – estragara tudo” (p. 109). De fato, a leitura do bilhete,
juntamente com o que Briony pensara ter visto entre Robbie e Cecilia na fonte, foi
suficiente para dar asas a sua imaginação e levá-la a construir a personalidade de um
maníaco sexual. As várias referências ao bilhete mostram sua repercussão no desenrolar
da narrativa, resultando na acusação, condenação e destruição de Robbie.
Na Parte II do romance, a intensa correspondência trocada entre Robbie e
Cecília – “Cecilia escrevia todas as semanas” (p. 260) – é mais referida do que
transcrita, mas Cecilia ocupa a posição central nesta troca de correspondência, mesmo e,
principalmente porque, a focalização está em Robbie. Talvez como uma metáfora da
censura que Robbie sofreu na prisão, da vasta correspondência entre Robbie e Cecilia,
registra-se a „transcrição‟, não integralmente, de apenas dois textos. Na primeira destas
cartas, em resposta a uma carta de Robbie, Cecilia afirma sua indignação com a
injustiça cometida por sua família e reitera seu apoio irrestrito a Robbie: “Acredito em
você totalmente. Você é meu querido, minha razão de viver. Cee” (p. 169). Apesar de
receber cartas de casa, Cecilia relata sua decisão de manter-se separada da família. “As
cartas chegavam até ela por meio da mãe dele que vendera o bangalô e mudara-se para
outra vila. Era através de Grace que ela deixava sua família saber que estava bem e não
queria ser contatada” (p. 266). A segunda carta, com transcrição mais longa, traz
informações sobre Briony, principalmente, sua decisão de tentar reparar o erro do
passado e a rejeição do seu texto por Cyril Connolly. Ressaltamos que esta é a carta que
traz em anexo o poema de Auden, que Robbie leva no bolso da camisa na sua
caminhada até Dunkirk. Um fator importante concernente às cartas dos amantes é que
elas fazem parte dos arquivos do Imperial War Museum (p. 478), ou melhor, as cartas
reais – evidências documentais – encontram-se lá, porque as ficcionais e as
ficcionalizadas estão na obra de McEwan, espelhando o constante conflito entre ficção e
realidade.
ênfase na troca de correspondência, nesta terceira parte, se justifica pelo contexto das
enfermarias durante o tenso período de guerra, quando as jovens enfermeiras encontram
neste recurso o conforto, o alento e a coragem para enfrentar a visão das atrocidades da
guerra, a rígida disciplina da profissão e a mistura de solidão, terror e exaustão nas suas
clausuras.
Numa das cartas do pai, Briony é informada sobre o casamento de Paul Marshall
e Lola Quincey. Naquele dia, ela fez as contas e concluiu que “Lola tinha vinte,
Marshall teria vinte e nove. Não era uma surpresa; o choque estava na confirmação.
Briony estava mais do que implicada nesta união. Ela a tinha tornado possível” (p. 366).
O contexto é dominado pela ambiguidade. O quê não surpreendia: o casamento de Paul
e Lola ou o fato de já terem idade para o casamento? Se o casamento não era surpresa,
por que Briony já esperava que isto acontecesse? Então, por que o choque? Assim, a
palavra „confirmação‟ não está apontando para o casamento, mas para o estupro, ou
159
melhor, para o falso estupro. O choque, então, pode ser pela certeza de que não houve
estupro ou pela confirmação de que Paul era o culpado do suposto estupro. Se Briony
realmente já suspeitava de Paul, por que acusou Robbie? Assim, o choque pode ser pelo
comprometimento com outro tipo de crime – o crime de calúnia. Porém, considerando
que a ótica é de Briony e o texto de sua „autoria‟, nenhuma argumentação se sustenta e
não se sabe se ela mentiu ou se se confundiu naquela noite de verão de 1935.
55
The Buffs é o apelido dado ao Royal East Kent Regiment devido aos seus casacos militares feitos de
couro de búfalo, quando serviram na Holanda. The Buffs foi o mais antigo regimento de infantaria do
Exército Britânico, cuja história começou em 1572 e durou até 1961. Disponível em: <
http://en.wikipedia.org/wiki/Buffs_(Royal_East_Kent_Regiment)>. Acesso em: 13 nov. 2012.
160
56
Este desenho foi feito pelo Capitão Bryan de Grineau e foi publicado na Illustrated London News em 8
de junho de 1940, conforme orelha do livro Destination Dunkirk, desenhada por John Witherington.
161
hierárquica, talvez como uma necessidade de coerência com a visão histórica dos que
estavam realmente no „fronte‟ – a história vista de baixo.
A crítica e a ironia transpiram por todos os poros deste discurso. Neste contexto,
antitéticos não são somente os adjetivos dados às palavras do coronel – “irritadas, úteis”
– mas são também as reações de Briony; pois é capaz de se deixar absorver pelo
fascínio da informação minuciosa, apesar de ser tratada pelo seu cooperador como
ignorante e presunçosa. Se ele ironiza a ignorância dela, ela ironiza a jactância dele. Por
um lado, o militar é cooperativo, mas intolerante com o desconhecimento de Briony.
Ele expõe a austeridade do militar, mas não consegue esconder seu preconceito com
relação ao sexo feminino. Por outro lado, Briony percebe a irritabilidade do militar e
ironiza a inutilidade de tais informações, chegadas tardiamente, mas reconhece o
“prazer nestas alterações triviais” (p. 464). Ainda, subjaz o discurso, a crítica ao soldado
americano, possivelmente porque chegaram ao fim da guerra e saíram vitoriosos, e a
crítica à mulher-escritora, que se atreve a escrever sobre o que desconhece totalmente.
como nos casos dos encontros de Robbie e Cecilia na fonte e na biblioteca, que serão
posteriormente alvos de análises no presente trabalho, a primeira parte do romance
acaba sendo construída por uma narrativa com múltiplas focalizações. O narrador em
terceira pessoa conduz o desfile das diferentes perspectivas da narrativa, alternando o
foco de uma personagem para outra no desenrolar da história. Assim, o foco em Briony
(capítulos 1, 3, 7, 10, 13 e 14) é alterado para o foco em Cecilia (capítulos 2, 4 e 9), em
Lola e Marshall (capítulo 5), em Emily (capítulos 6 e 12) e em Robbie (capítulos 8 e
11). Salientamos que na segunda parte do romance, o foco está inteiramente em Robbie
e na terceira parte o foco volta-se para Briony. Este método de estruturação da narrativa
de Atonement promove uma sistemática diferenciada de caracterização, filtrada pelas
mentes das próprias personagens, às quais o leitor tem acesso devido à introspecção da
narrativa.
Marshall tinha cabelo pubiano saindo pelos ouvidos” (p. 65). Que pensar da ironia
brotando da boca de Marshall ao declamar Hamlet: “Ser ou não ser” com a
concordância de Lola – “Eis a questão” (p. 77)? Quem seria o culpado, se havia alguém
culpado? Briony viu ou não o culpado? A ambiguidade discursiva não permite uma
única resposta.
Estive pensando no meu último romance, aquele que deveria ter sido
meu primeiro. A versão mais antiga, janeiro de 1940, a mais recente,
março de 1999, e entre elas, meia dúzia de diferentes versões. A
segunda versão, junho de 1947, a terceira... quem quer saber? Meus
cinquenta e nove anos de tarefa terminaram (p. 476).
quem foi visto? Esta passagem, conduzida pela reverberação da expressão: “Eu o vi” (p.
211), assemelha-se a um pequeno „estudo‟ sobre a visão e parece parodiar Hamlet,
numa interessante associação a Paul Marshall, que havia citado o personagem de
Shakespeare (p. 77), porém através da inversão irônica: „Ver ou não ver, eis a questão‟.
De fato, o verbo „ver‟ adquire uma complexidade inigualável neste contexto com
repercussões profundas no enredo do romance. Além disto, a problematização do verbo
„ver‟ proporciona a tensão e o suspense aqui, que são ingredientes sine qua non para a
construção de uma cena de „crime‟. Ainda, observe na citação em questão, a ironia
gerada pelo verbo „preferir‟, pois, na verdade, não se trata aqui de uma questão de
escolha, mas de uma questão de decisão. Também, percebe-se que houve tanto uma
qualificação (viu sabendo), quanto uma complicação do uso do verbo „viu‟ (sabia que
viu), cujo passado se justifica no contexto, em que é relevante a questão da testemunha
ocular.
Porém, de repente, o narrador afirma: “[...] o que ela sabia não era literalmente,
ou não apenas, baseado no visível” (p. 216). Numa comparação entre as duas citações,
percebemos a artimanha na tonalidade dada ao verbo „ver‟ (“Menos como ver, mais
como saber”) e o propósito desta façanha (“deixado para seus interrogadores decidir”).
Aliás, as „pistas‟ são deixadas de tal maneira que os interrogadores (os policiais) não
tivessem que decidir, mas fossem persuadidos a seguir a visão, juntamente com Briony,
concluindo „a favor‟ e/ou „de acordo com‟ a mesma. Observe, ainda, o uso do advérbio
„literalmente‟ na segunda citação acima, o jogo dialético entre „saber‟ e „ver‟ funde-se
no conhecimento prévio acalentado na imaginação, portanto a tese da testemunha ocular
não se sustenta, a visão pode ser imaginada. Esta é, sem dúvida, uma paródia do gênero
policial, que será discutida posteriormente. A exposição da ficcionalidade da obra
obviamente atinge forma e conteúdo, denunciando a indissolubilidade entre estes.
consegue ler nas poucas horas de folga. Ela sabia que alguma coisa grave estava para
acontecer, devidos aos preparativos no hospital e à reação dos mais antigos, mas as
notícias não diziam muito, entretanto ela podia ler nas entrelinhas. O discurso volta-se
sobre si mesmo, expondo-se analiticamente e construindo a dramatização do ato de
leitura pela regência da estética metaficcional.
57
Podemos perceber, nestas palavras, o pensamento de Umberto Eco sobre o leitor modelo, postulado no
livro Lector in fabula: a cooperação interpretativa nos textos (1986).
171
Hutcheon concebe a paródia “como uma relação formal ou estrutural entre dois
textos” (s/d, p. 34). Contudo, ela argumenta, “mesmo que uma definição da paródia
moderna comece por uma análise formal, não pode ficar por aí” (s/d, p. 34). De fato, as
formas paródicas têm implicações estruturais, ideológicas e hermenêuticas. Portanto,
não podemos deixar de examinar tais aspectos na obra aqui analisada, voltando agora
nossa atenção para o jogo de espelhos no nível ideológico. Neste nível de verticalização
encontra-se o âmbito cultural e ideológico da metaficção no romance Atonement, em
que se evidenciam os aspectos do confronto entre ética e estética, aqui abordados em
linhas gerais. Salientamos, entretanto, que o aprofundamento deste debate virá nas
análises apresentadas no Capítulo IV. Concernente à estética, é relevante destacar que a
complexidade de Atonement alicerça-se num processo de hibridização agenciado pela
metaficção. Atonement evoca uma vasta galeria de estilos e modos de narração,
resgatando narrativas de vários matizes: desde os contos de fadas às literaturas
folclórica, autobiográfica, realista, psicológica e histórica, que se estende a um passado
172
58
A expressão regressus in infinitum foi utilizada pelo escritor norte americano John Barth num ensaio
seminal sobre metaficção, intitulado “The literature of exhaustion”, originalmente publicado em Atlantic
Monthly, 220, 2 August, 1967, p. 29-34. A expressão “exhaustion” não tem o sentido negativo que parece
ter; pelo contrário, ela indica o uso paródico da literatura na “tentativa de esgotar as possibilidades
literárias – sem galgar êxito” (HUTCHEON, 1980, p. 20), ou seja, indica a inesgotabilidade da literatura.
Segundo Barth, o efeito metafisicamente perturbador do regressus in infinitum, como “uma imagem da
exaustão”, produzido pela história dentro da história e pelo personagem autor ou leitor dentro da história,
“faz-nos lembrar do aspecto ficcional da nossa existência” (1981, p. 30). O contexto deste debate diz
respeito à famosa alusão de Borges à 602ª noite de As 1001 noites, quando Xerezade é interrompida pelo
rei, no momento em que ia recontar a história do começo. Fantasia ou não de Borges, o certo é que
aquela noite refere-se ao momento em que a narrativa volta-se sobre si mesma através da história dentro
da história, um recurso metaficcional.
173
59
General Viscount Gort tornou-se Chefe do Comando do Exército Britânico (BEF) em setembro de
1937. Foi ele quem percebeu a necessidade de se efetuar a retirada das tropas do solo francês antes de um
possível massacre pelos alemães. Gort insistiu com o plano de retirada, enfrentando toda a sorte de
dificuldades, incluindo descrédito, mensagens falsas e desespero em alguns flancos (BLAXLAND, 1973).
175
Esta não é uma adaptação literária ruim; é uma filmagem bela demais
e uma atuação britânica demais para sustentar uma condenação tão
forte. Atonement é, entretanto, um exemplo quase clássico do quanto
uma transmutação da literatura para o filme pode ser insípida e
redutora. O respeito que Sr. Wright e Sr. Hampton mostram ter pelo
Sr. McEwan é, sem dúvida, gratificante para ele, mas é fatal para seu
próprio projeto (Dez., 7, 2007).
176
A crítica volta-se exatamente contra aquilo que diz respeito ao uso da paródia,
transportado adequadamente para a adaptação. No romance Atonement, assim como no
filme, ambos os discursos literário e histórico são parodiados. Daí por que o melodrama
é revisitado, porém, sendo recontextualizado, sob um olhar crítico e irônico, pois sua
potencialidade catártica é utilizada, mas paradoxalmente desconstruída no contexto
geral da obra. Sob o efeito da paródia e da metaficção, a passagem histórica da Retirada
de Durkirk é desmistificada do conceito de “êxodo heroico”, prevalecente na história
oficial, com a finalidade de se ressaltar a crítica à destruição e a necessidade de uma
nova práxis ética, que aponte para a solução da crise na contemporaneidade. Portanto,
não há retorno nostálgico, há um olhar crítico sobre a estética e a ética. Podemos
afirmar que o crítico não conseguiu entender a veia paródica do romance Atonement,
nem alcançar a transposição da paródia para a adaptação.
Comparemos as imagens:
4.1.3. Espelhamento
Neste sentido, não se pode furtar-se de trazer à tona um breve comentário sobre
o aspecto semiótico na construção desta imagem. Segundo Winfried Nöth,
[s]e a referência é característica dos signos, ela deve ser muito mais da
mídia. Afinal, o conceito de „mídia‟ implica em mediação, e mediação
é um processo de semiose, a ação dos signos. A mídia representa
eventos ou ideias e, assim, media entre os mediadores e seu público,
de modo que a autorreferência, neste processo, parece ser um
paradoxo semiótico, por que como os signos autorreferenciais podem
mediar se eles referem-se a nada, exceto a eles mesmos? (Nöth, 2009,
p. 1, grifo do autor).
61
Convém lembrar que segundo Peirce, o signo contém um Primeiro (representâmen) que se relaciona
com um Segundo (objeto) “de modo a ser capaz de determinar um Terceiro” (1975, p. 115)
(interpretante). Assim, dentro da tríade peirceana, o signo, em relação a si mesmo, pode ser classificado
como quali-signo (campo do possível: caracteriza-se pela qualidade), sin-signo (campo do existente:
caracteriza-se pelo confronto) e legi-signo (campo da norma: caracteriza-se pela generalização). Ainda,
em relação ao seu objeto, o signo classifica-se como ícone (“um signo cuja qualidade significante provém
meramente da sua qualidade” (CP 2.92*), índice (signo que estabelece, com o objeto, relações diádicas de
caráter de causalidade, espacialidade e temporalidade) e símbolo (signo que estabelece, com o objeto,
uma relação arbitrária e depende de convenções sociais). (*Estas são as palavras de Charles Peirce e o
número corresponde à localização das mesmas nos escritos de Peirce; informação extraída de NÖTH,
Winfried. Panorama da Semiótica: de Platão a Peirce. 3ª Ed. São Paulo: Annablume, 2003. p. 59-91).
186
como Ortegosa afirma, “[n]esses jogos de reflexos temos uma alusão ao próprio meio
cinematográfico, que manipula as aparências na construção das imagens fílmicas”
(2010, p. 22).
Outro exemplo de espelhamento deste tipo está numa cena das sequências
iniciais da narrativa de Dunkirk. Robbie e seus companheiros Nettle e Mace caminham
ao longo de um riacho no campo, quando aviões de guerra sobrevoam o local. Num
enquadramento clássico, em que se observa a regra de três terços na horizontalidade,
com a câmera em plano geral e frontal, veem-se os companheiros de jornada, no terço à
esquerda, caminhando à margem do riacho e a imagem dos aviões, cruzando o ar,
refletida na água do riacho, à direita. O posicionamento da câmera dá a ideia de
profundidade de campo 62, simbolizando a longa jornada dos soldados, e a passagem dos
aviões aponta para o perigo iminente e a vulnerabilidade dos homens em campo aberto.
O espelhamento tem uma função relevante na construção do sentido do texto, tornando
visível o que os olhos do espectador não poderiam alcançar da posição em que o
enquadramento o obriga a ficar. A súbita aparição das aeronaves, tornadas visíveis,
aumenta a tensão e o suspense da cena.
62
Profundidade de campo é “uma noção de óptica, expressa em unidades de distância” (AUMONT e
MARIE, 2007, p. 242). A diferença entre as distâncias mínima e máxima da objetiva da câmera determina
a profundidade de campo e produz o efeito de tridimensionalidade da imagem.
189
4.1.4. Congelamento
63
“Backlight, ou contraluz, é uma técnica de iluminação em que a principal fonte de luz incide por trás do
objeto, o qual é, assim, visto em silhueta” (MASCELLI, 2010, p . 269).
193
Além disto, David Bordwell postula que “lacunas ocorrem em filmes não apenas
no nível narrativo em geral – nas elipses da história – mas também no nível estilístico
ou no nível da “aparência exterior” (apud CHATMAN, 1990, p. 162, grifo do autor).
Isto significa que ao exercer a espectatorialidade, o espectador necessariamente
„preenche‟ as lacunas para construir a história, conformada segundo padrões de ordem
pessoal, psicológica, social, ideológica, cultural, dentre outros. A partir de uma
perspectiva hermenêutica, pode-se dizer que o espectador já possui os papéis de
colaborador e crítico, exercidos na „leitura‟ dos filmes a que assiste. Entretanto, de
acordo com Stam, os textos autorreflexivos “[d]esempenham sua própria hermenêutica
e alertam seu público contra as armadilhas da leitura e da interpretação” (1981, p. 70).
Portanto, quando se trata de filmes metaficcionais, além das atribuições prontamente
esperadas do espectador, este é ainda conduzido a refletir sobre a natureza da arte
cinematográfica. Como na literatura, a metaficcionalidade fílmica implica na alteração
do papel do espectador, uma vez que há o distanciamento necessário à conscientização
do processo e, simultaneamente, há o envolvimento exigido pela co-participação na
construção do sentido do texto fílmico (produto).
4.1.5. Superenquadramento
apresentado à objetiva, que assim irá aparecer na tela” (MARTIN, 2003, p. 35). Ao
processo de inserção do quadro dentro do quadro, Jacques Aumont denomina de
superenquadramento ou reenquadramento (apud ORTEGOSA, 2010, p. 95). Portanto, o
superenquadramento é elaborado por imagens emolduradas dentro do quadro, que
podem ser pinturas, janelas, espelhos, fotos, ou qualquer outra imagem que receba uma
moldura no seu entorno. Saliente-se que um fotograma, emoldurado e congelado, pode
formar um superenquadramento. O uso metaficcional deste recurso estabelece um jogo
de duplicidades dentro da narrativa, evidenciando a fragmentação da estrutura fílmica,
como no fazer cinematográfico.
64
Desenquadramento – refere-se à ausência de paralelismo, que significa observância às linhas
horizontais do campo em relação ao quadro que serve de moldura para a imagem (JULLIER e MARIE,
2007, p. 28).
196
65
O two-shot é uma tomada em plano médio em que dois atores ficam frente a frente e dialogam,
geralmente de perfil para a câmera; mas um two-shot pode ter variações, podendo ser, por exemplo,
inclinado ou tomado em profundidade (MASCELLI, 2010, p. 35-36).
201
66
Os narratólogos André Gaudreault e François Jost argumentam que o termo „focalização‟, postulado
por Gérard Genette, torna-se problemático quando aplicado ao cinema, “porque o filme sonoro pode
mostrar o que o personagem vê e dizer o que ele está pensando”. Portanto, estes teóricos cunham o termo
„ocularização‟ para caracterizar “a relação entre o que a câmara mostra e o que o personagem deve ver”
(2009, p. 167- 168, grifos dos autores), distinguindo entre ponto de vista visual e ponto de vista cognitivo.
203
67
Raccord é “um tipo de montagem na qual as mudanças de planos são, tanto quanto possível, apagadas
como tais, de maneira que o espectador possa concentrar toda sua atenção na continuidade da narrativa
visual” (AUMONT e MARIE, 2007, p. 251). O faux raccord indica uma ligadura falsa, ou melhor, uma
ligadura que exibe a mudança do plano.
205
A tela escura também provoca uma transição abrupta de uma tomada para outra,
interrompendo o fluxo das imagens. Um exemplo deste tipo de recurso de transição
ocorre entre as duas versões da cena da biblioteca, fragmentando-as propositadamente
para que se tenha a dupla ocularização do mesmo enredo, o que acentua o contraste do
olhar sobre o acontecimento. Neste caso, a tela escura é o elemento divisor, mas,
paradoxalmente, é o elemento que pode unir a comparação entre as duas versões. Outro
exemplo do uso da tela escura encontra-se na abertura da sequência do paciente francês.
Na imagem inicial da sequência do paciente francês, uma luminária é apagada e entra a
tela escura. Esta técnica, adequadamente utilizada neste contexto para manter a
aproximação com a atmosfera do texto inspirador, também secciona os planos, mas
passa a impressão de que a tela escura é uma consequência natural do ato do apagar a
luz, o que é coerente com o realismo, abordado na sequência. E, no final do filme, a
transição para a sequência da entrevista de Briony no estúdio se dá por uma tela escura,
que é dramatizada dentro do contexto fílmico, ao adquirir um significado temporal
expressivo, pois concentra a lacuna de cinquenta e cinco anos na vida de Briony. A tela
escura ocasiona uma ruptura momentânea no encadeamento das imagens, visibiliando a
pausa no discurso fílmico.
206
também porque este mesmo som pode se unir à música, o que realmente acontece ainda
no início do filme. A sincronização da pista de ruídos com a pista da música se dá
através do uso da máquina de escrever como um instrumento musical, o que é, de fato,
uma transgressão à norma 68. Aliás, a dramatização do som já subverte o caráter
ontológico da música, que “em si mesma não é representacional” (STAM, 1992, p.
264), mas o cinema confere-lhe poderes miméticos.
68
O uso da máquina de escrever não é comum em orquestras. O músico norte-americano Leroy Anderson
(1908-1975) introduziu a máquina de escrever na orquestra de Boston para a execução da sua composição
musical, intitulada de The typewriter, em 1950.
208
Turnbull. Ele era o homem mais perigoso da terra”. Esta frase faz a transição da cena
anterior com esta cena, em análise, através da sobreposição do canal sonoro no canal
visual, gerando um contraponto ideológico, pois a mensagem aponta para a pessoa de
Robbie, desconstruindo o seu caráter; mas, de modo ambíguo, também se refere à
personagem da história de Briony. Enfim, a imagem diz uma coisa e o som diz outra.
Convém ressaltar que, sob o impacto da cena da fonte, Briony sente-se impulsionada a
escrever e estas são as palavras da nova história que ela está criando, sentada na grama
do bosque (cena anterior).
É interessante observar que o nome dado por Briony à sua personagem
assemelha-se ao nome de Robbie Turner, pois tem as mesmas letras iniciais e o
sobrenome tem as quatro primeiras letras do sobrenome de Robbie, acrescido da palavra
„bull‟, que significa „touro‟ e simboliza virilidade, fecundidade e violência. Aliás,
considerada como uma expressão, „turn bull‟ significa „transformar-se em touro‟.
Portanto, aqui o narrador cria uma associação da personagem de Briony e, por analogia
de Robbie, à atividade sexual com violência; em outras palavras, ao estupro. Tendo em
vista o contexto geral da obra, este conceito antecipa os acontecimentos futuros – o
crime e a acusação feita a Robbie – e, assim, propicia as condições para fazer o
espectador entender que Robbie é o culpado. Desta forma, o canal sonoro é dramatizado
no filme, pois veicula a criação da história, porém o faz contrapontuando o canal visual,
o que constrói a metaficcionalidade do texto ao denunciar a feitura fílmica.
Ressaltamos, sobremodo, que se trata aqui de mais uma extraordinária invenção do
roteirista e do diretor, pois este texto escrito não tem correspondência no romance.
Semelhantemente, na abertura da primeira versão da sequência da biblioteca, a
câmera, num ângulo frontal e parcialmente a plongée69, mostra Robbie, tocando a
campainha da casa e o canal sonoro transmite a voz de Lola, pronunciando as palavras:
“maníaco sexual”. Mais uma vez, a mensagem se contrapõe à imagem, “ao explorar o
som com a finalidade de desconstruir mais do que reforçar a imagem” (STAM, 1992, p.
261). A expressão de Lola era, na realidade, a resposta para a pergunta de Briony (“Qual
é a pior palavra que você pode imaginar?”). É importante lembrar que Briony acabara
de contar à prima sua versão e percepção da cena da fonte. O canal sonoro, dramatizado
no filme, é utilizado como ligadura entre as duas cenas, fazendo conflituar imagem e
69
A plongée – expressão referente à angulação da câmara que significa „filmagem de cima para baixo‟ e
acrescenta uma significação psicológica à cena (MARTIN, 2003, p. 41).
210
4.2.5. Paratextualidade
70
O narrador cinemático é o „agente‟ responsável pela narrativa fílmica ou a instância de transmissão de
“uma ampla e complexa variedade de recursos comunicativos” (CHATMAN, 1990, p. 134) através do
duplo canal de mediação fílmica: o visual e o sonoro.
211
O trabalho é identificar, antes de tudo, o que faz deste livro uma obra
de arte, e então preservar isso. E é comum que sejam coisas que não
estão no diálogo. Costumam serem [sic] atmosferas ou... que certas
descrições no livro são cruciais para achar um equivalente.
A última seção que apresenta o filme comentado pelo diretor é pontuada por
várias revelações, e vem satisfazer a curiosidade do espectador do DVD, que tem o
interesse de conhecer os bastidores da produção do filme. Um comentário interessante
que diz respeito à função dos paratextos é feito por Stam, quando afirma que “[e]stes
materiais paratextuais inevitavelmente reformulam nossa compreensão do próprio
texto” (2008a, p. 28). Indubitavelmente, os paratextos de um filme podem explicar o
processo de produção da obra fílmica, incidindo na recepção do filme, ao oferecer
material crítico e teórico sobre sua feitura. Portanto, há um aspecto didático na
paratextualidade, que se assemelha ao didatismo encontrado em obras metaficcionais.
71
Destaca-se na notória popularidade alcançada pelo escritor inglês Charles Dickens (1812-1870) sua
extraordinária habilidade para criar personagens. Muitos dos vívidos seres da sua vasta galeria de
personagens se tornaram inesquecíveis, como David Copperfield, Oliver Twist, Mr Pickwick, Nicholas
Nickleby, Barnaby Rudge, e alguns se tornaram tipos, como Uncle Scrooge de Christmas Carol, que
inspirou a criação do Tio Patinhas, de Walter Disney. George Sampson afirma que “[c]ada figura que o
dedo criativo de Dickens tocou vivificou, do cocheiro de Mr Pickwick ao rude cocheiro de Mr Wegg”.
Quanto ao comentário de que Dickens criou caricaturas, e não personagens, Sampson argumenta: “A
caricatura é um excesso artístico da caracterização” (1975, p. 622). Samuel Richardson (1689-1751), por
sua vez, conquistou o público europeu com Pamela e, principalmente, com Clarissa, cuja protagonista,
elaborada sob os princípios morais da época, exibe sua „alma‟ diante da tragicidade humana.
217
[u]m amor à ordem também dava forma aos princípios de justiça, com
a morte e o casamento como os principais motores da engrenagem:
aquela destinada exclusivamente aos de moral duvidosa, este como
uma recompensa guardada até a última página (p. 9).
homenagem ao seu irmão Leon, que retornava à casa dos Tallis (sua família) naquela
ocasião, e tinha o propósito de
quando a peça é finalmente encenada pelos descendentes do seu primo Pierrot e de seu
irmão Leon.
Contudo, não apenas Briony, mas também o romance de McEwan encontra-se sub judis,
pois, instigado pela metaficção, o leitor é igualmente impelido a emitir um julgamento
sobre Atonement; além, obviamente, daquele oriundo do escrutínio da crítica. Logo, há a
possibilidade de um quinto julgamento, e este, de teor extradiegético.
Em relação ao cenário desta história, vale ressaltar que Ian McEwan não é o
único escritor contemporâneo a incluir uma casa de campo do seu consagrado romance.
Seguindo a mesma tradição, os escritores Kazuo Ishiguro (The Remains of the Day,
1989), Sarah Waters (The Little Stranger, 2009) e Alan Hollinghurst (The Stranger's
Child, 2011) também o fizeram. Segundo Blake Morrison, os romancistas
contemporâneos são atraídos pelas casas de campo devido “ao espaço que eles dispõem
para juntar um grupo de personagens diversificados – serviçais e patrões – debaixo do
mesmo teto, de modo que se assista a como as tensões se desenvolvem, os casos de
amor começam e as catástrofes se desenrolam” (The guardian, junho, 2011).
Fundamentado na antologia intitulada A Country House Companion, de Mark Girouard,
Morrison ainda argumenta que
72
Nikolaus Pevsner (1902-1983) foi historiador da arte e pioneiro da história do design, conhecido pela
série de 46 volumes intitulada The Buildings of England (1951-74), considerada um dos grandes arquivos
do século XX sobre arte. Pevsner também foi responsável pela criação e edição da famosa série Pelican
History of Art (1953–). Alemão de nascimento, ele naturalizou-se inglês em 1946. Disponível em: <
http://pt.wikipedia.org/wiki/Nikolaus_Pevsner >. Acesso em: 10 out. 2012.
224
explorando-o nas suas incursões por locais solitários, onde pode dar asas a sua
imaginação. Para Briony, a casa é o „lugar mágico‟, que a inspira a escrever suas
histórias. Como Briony, a casa pulsa com vida, respira fantasia e desperta para o amor.
Também, como Briony, a casa se transforma e envelhece.
As breves palavras sobre a casa nesta passagem da abertura do romance não são
suficientes para traduzir todos estes detalhes, mas, com o desenvolvimento da narrativa,
a relevância da relação entre a casa e a personagem-escritora é acentuada. Porém, as
transformações sofridas pela casa tornam-se visíveis somente no final do romance,
quando do retorno de Briony ao seu lar da infância para a celebração do seu
septuagésimo sétimo aniversário, durante o qual The Trials of Arabella é finalmente
encenada. No final do romance, a casa dos Tallis é convertida num hotel, Tilney‟s
Hotel, perdendo todo o seu encanto e mistério, pois seu pátio e jardins foram
transformados num estacionamento, o parque de carvalhos é agora um campo de golfe,
o lago e as ruínas do templo é um gramado com bancos de madeira e latas de lixo.
73
Lembremos que, conforme Friedman, na onisciência seletiva múltipla “a história vem diretamente das
mentes das personagens”, com as marcas das impressões e percepções que acontecimentos e „pessoas‟
deixam nessas personagens. Todo o material que compõe a história é “transmitido ao leitor apenas através
da mente de alguém presente”; portanto, os pensamentos, percepções e sentimentos são filtrados pelas
225
mentes das personagens, enquanto que o narrador onisciente neutro “resume-os e explica-os depois de
terem ocorrido” (1967, p. 127-128). Em Atonement, estas categorias são problematizadas pela ingerência
da metaficção, como veremos posteriormente.
226
que fazem parte da vida de um escritor, são tratados autorreflexivamente neste início do
romance.
Seymour Chatman afirma que os melhores cineastas geralmente optam por soluções
visuais (1990, p. 163). E esta é exatamente a opção adotada na transposição da
passagem literária de abertura do romance para a adaptação de Atonement, certamente
exigida pela densidade metaficcional do romance que, como visto anteriormente, tem a
ação interrompida pelos incessantes comentários do narrador literário.
Consequentemente, fez-se necessária a adição de várias sequências e a alteração de foco
da peça teatral para a casa dos Tallis – um elemento mais visual do que a exposição
autorreflexiva do fazer ficcional. Além disto, o canal sonoro torna-se uma instância
narrativa equivalente às intrusões autorais do narrador literário, de modo que os ruídos e
a música são instrumentalizados para a construção da metaficcionalidade do filme.
A imagem inicial do filme é uma tela escura, com fundo neutro, onde surgem
lentamente os pré-créditos (o símbolo e o nome do estúdio), marcados pela ausência de
trilha sonora. Ouvimos, então, o som da inserção de uma folha de papel no rolo de uma
máquina de escrever e, em seguida, o título do filme é datilografado na tela, também
com fundo neutro, letra após letra. A imagem da palavra, sendo formada na tela, já
denota um recurso metaficcional, pois aponta autorreflexivamente para o ato da escrita.
Aliás, há um desdobramento do processo construtivo, exibindo simultaneamente a
construção da imagem verbal e da imagem visual. A passagem para o próximo plano se
dá por um corte. Então, surge a imagem de uma fachada de uma casa inglesa, em close
up, com enquadramento frontal e, lemos, na pista da legenda, a informação: “Inglaterra,
1935”. Com um movimento da câmera para trás, percebemos que não estamos diante de
uma casa, mas dentro dela, precisamente, num quarto onde uma menina datilografa
sentada na poltrona de uma escrivaninha.
74
Travelling off refere-se ao deslocamento da câmera para trás, distanciando do objeto focal, “no qual
permanecem constantes o ângulo entre o eixo ótico e a trajetória do deslocamento” (MARTIN, 2003, p.
47).
228
parede, coberta por um papel com grandes estampas floridas, onde se encontra a lareira;
uma janela, que se situa na lateral esquerda da cama, tem cortinas de tecido translúcido.
Ao lado da janela, está uma escrivaninha, onde Briony, sentada numa poltrona, coberta
por um tecido de cor clara, datilografa.
Em seguida, a câmera se aproxima por trás da menina, corta, e circula pelo lado
direito, faz um close up dos seus olhos, e, em contracampo, com leve angulação
descendente, foca o teclado da máquina e sobe, mostrando o papel do rolo da máquina,
onde está sendo datilografada a palavra „fim‟. A palavra „fim‟ é utilizada para compor o
jogo metaficcional e o sentido da mensagem, que associa Briony à autoria de
Atonement, palavra datilografada na abertura do filme. Há aqui um desdobramento
semântico do lúdico, visto que o espectador é, por um lado, conduzido a perceber que
Briony está datilografando as últimas linhas de Atonement; e, por outro lado, ao
descobrir que Briony finalizava The Trials of Arabella, o espectador conclui que se
enganou, quando na verdade Briony também escreve um romance, cujo título é
Atonement, no filme. Porém, esta descoberta só ocorrerá no final do filme. De fato, a
construção narrativa joga com uma confusão entre o real e o imaginário. Na sequência
em questão, a ocularização (usando a terminologia de Gaudreault e Jost) sugere que a
atenção de Briony está voltada para a escrita, que seu olhar é atraído pelos mistérios da
imaginação, onde sua paixão por segredos é satisfeita. Esta ocularização é usada como
um recurso metaficcional e, também, indica a escolha focal da narrativa, filtrada por
Briony.
Na continuação do filme, Briony retira o papel do rolo e o junta aos demais que
se encontram sobre a escrivaninha, fecha a capa, onde lemos The Trials of Arabella, por
Briony Tallis. Esta cena é mostrada com a câmera em leve verticalização sobre a
personagem, que se encontra fora do plano, de modo que é revelado o que Briony
datilografa e o jogo metaficcional é elaborado. Em seguida, Briony levanta-se e começa
a caminhar em direção à saída do quarto. Neste momento, entra uma música cadenciada
que se harmoniza perfeitamente com o som da máquina de escrever e com a cadência
dos passos da menina, percorrendo os corredores do andar superior da casa. O som
continuado da máquina de escrever, com a visível ausência da pessoa que datilografa
causa, a princípio, estranheza ao espectador mais sensível. Porém, a sobreposição das
duas pistas acomoda a percepção do espectador pela unidade sonora que cria. Como
“fator de intensificação e aprofundamento da sensibilidade” (MARTIN, 2003, p. 120), a
música tem um ritmo cadenciado semelhante ao de uma marcha militar, que se sintoniza
com os passos e com a postura de Briony enquanto caminha, seguida pela câmera.
231
Numa transição por corte, a câmera, agora situada num canto do mezanino, em
transversalidade com a personagem, abre a objetiva para que se veja o interior do hall
da casa. Este é todo em madeira escura, talvez mogno, parcialmente iluminado por um
facho de luz natural que vem do alto, possivelmente de uma clarabóia no teto. A
iluminação indireta e precária do hall cria uma atmosfera de mistério e de tom gótico,
que lembra a exploração ambiental praticada pela tradição da literatura gótica inglesa,
cuja origem encontra-se no século XVIII. A trajetória de Briony do seu quarto até a
cozinha é formada por várias sequências, com transições em cortes, e apresenta uma
característica peculiar: uma das curtas sequências parece se repetir, gerando um efeito
de estranhamento na narrativa, pois o espectador perde, por alguns segundos, a
sequencialidade narrativa devido à confusão mental, causada pela aparente duplicação
metaficcional da narração. A câmera ora segue Briony, ora posiciona-se à sua frente,
brincando com a percepção do espectador.
Na cena da cozinha, Briony anuncia haver terminado sua peça teatral e indaga
sobre sua mãe. É interessante observar que o timbre de voz de Briony, forte e
imperativo, denota determinação, domínio e poder. A câmera mostra em plano geral o
espaço de trabalhos da cozinha, onde duas cozinheiras encontram-se atarefadas com a
232
A câmera segue Briony que se destina à sala de visita onde a mãe se encontra.
Porém, ao se dirigir à sala de visita, Briony encontra Robbie Turner sob o portal que dá
para o pátio da casa. Desta feita, a câmera é posicionada intencionalmente à frente de
Briony, que interrompe sua caminhada, ao perceber algo do lado de fora da casa. Neste
momento, a música, que havia sido retomada com a caminhada de Briony, diminui
lentamente, até ser interrompida por completo com a entrada do curto diálogo entre
Briony e Robbie. A primeira impressão que temos é que Briony foi atraída pela pessoa
de Robbie. Esta impressão é alusiva à „real‟ atração oculta que Briony, como menina no
seu rito de iniciação, nutre por Robbie. Este fato é explicitamente confirmado ao
espectador mais tarde no filme, quando a própria Briony conversa com uma colega na
enfermaria do St. Thomas Hospital em Londres.
Após uma transição em corte, a câmera move-se lentamente para frente, como
que buscando o enquadramento da imagem, desnudando metaficcionalmente a presença
de um aparato técnico. Então, vemos Briony de um lado do portal, que dá para uma
pequena escadaria e o pátio, e Robbie encostado à parede interna do portal, calçando as
botas de trabalho. A tomada desta cena é feita de dentro para fora, com Briony
recostada no umbral do arco de pedra, à esquerda, e Robbie em pé, à direita, de modo
que se tem a visão de um terraço e de um belo jardim que se estende ao horizonte. Esta
imagem tem enquadramento frontal, centralizado, o que provoca um efeito estético
233
Outro corte e, desta vez, a câmera segue Briony até a porta da sala de visita,
acompanhada pela música e pelo som da máquina de escrever. Briony fecha a porta e
ocorre uma sobreposição da trilha sonora com a imagem da cena seguinte. Então, a
trilha sonora é abruptamente interrompida com um fechamento do compasso musical,
coincidindo com a entrada do pronunciamento da mãe de Briony acerca da peça. Este
recurso chama atenção para as palavras de Emily Tallis, produzindo um efeito de
suspense. Nesta última sequência, os poucos segundos de silêncio, causados pela
ausência dos recursos sonoros, acentuam a atmosfera de expectativa que paira no ar
durante a cena. Este tom de suspense coincide com o sentimento de Briony, expresso
pela brilhante atuação da atriz, ao fingir esconder sua expectativa até que a mãe
expresse total aprovação à sua obra artística.
3. Cena da fonte
É esta visão que irá inspirar Robbie a escrever a versão erótica do bilhete
enviado a Cecilia. De modo interessante, a história de amor de Robbie e Cecilia surge
„tempestuosamente‟ debaixo dos olhos de Tritão75. Conforme Commelin, “[o]s poetas
atribuem a Tritão um outro ofício além de arauto de Netuno: o de acalmar as ondas e
fazer cessar as tempestades” (s/d, p. 115). Ironicamente, é Robbie quem encosta a palma
da mão sobre a água da fonte “como que para acalmá-la” (p. 39), desconstruindo a
função poética atribuída a Tritão. Aliás, o Tritão da fonte dos Tallis dá já sinais claros
de decadência, observados na seguinte descrição:
75
Conforme a mitologia, “Tritão, filho de Netuno e de Anfitrite, era um semideus marinho; a parte
superior do seu corpo até os rins figurava um homem nadando, a parte inferior era de um peixe de longa
cauda. Era o arauto do deus do mar, a quem precedia sempre, anunciando a sua chegada ao som de uma
concha recurva; algumas vezes é trazido à superfície das águas, outras vezes aparece em um carro puxado
por cavalos azuis” (COMMELIN, P. Nova mitologia grega e romana. Tradução de Thomaz Lopes. Rio
de Janeiro: Edições de ouro, s/d, p. 115).
237
existência de um vaso quebrado, o que pode contribuir para confundir a menina, na sua
interpretação da cena. Para impulsionar o mistério no enredo, Connolly sugere que a
jovem mergulhe na fonte e assim acontece em Atonement. Talvez, atentando para a
sugestão de se utilizar um modo mais econômico de escrita, a versão do personagem
masculino é suprimida. A versão da menina na janela é transferida para um segundo
momento e a disputa pelo vaso nesta segunda versão é omitida, o que favorece a
fantasia da menina (Briony) contra o homem (Robbie) em Atonement; pois
desconhecendo a existência do vaso, a menina (Briony) fica livre para imaginar a
motivação dos gestos e das ações do personagem masculino (Robbie). Conolly, ainda,
questiona a ineficiência no desenvolvimento da cena da fonte, trazendo as seguintes
reflexões:
[...] do lado paterno, antes de seu bisavô abrir sua humilde loja de
ferragens, os ancestrais estavam irreparavelmente afundados num
pântano de trabalhadores rurais, com mudanças de sobrenomes
suspeitas e confusas entre os homens e casamentos informais jamais
registrados nas paróquias rurais (p. 26).
elevação de Robbie” (p. 194). Sua frase costumeira sobre este assunto é clara: “„[n]ada
de bom virá daí‟” (p. 194).
O mesmo esnobismo pode ser visto em Leon. Ao comentar com Cecilia que
havia convidado Robbie para o jantar, Leon desfere sua zombaria: “„Você acha que ele
não pode segurar uma faca e um garfo‟” (p. 67). Afinal, a etiqueta à mesa não é
esperada daqueles de classe operária. Numa das cartas a Robbie, ao explicar sobre sua
decisão de se separar definitivamente da família, Cecilia escreve: “[a]gora que me
separei deles, estou começando a entender o esnobismo que estava por trás da estupidez
deles‟ (p. 267). Na verdade, o esnobismo esconde a hipocrisia, com a qual Emily é
conivente, pois finge aceitar as mentiras do marido infiel, para manter o status quo:
Nesse caso, o fingimento passa a ser uma forma de camuflar a crise matrimonial,
em prol da manutenção de uma situação conveniente. Emily representa o segmento
burguês da sociedade, que, embora esteja em franca decadência, faz uso de armas, como
a mentira e a hipocrisia, para sustentar sua aparência social e conservar-se no poder.
Agravando a crise familiar, há a questão do divórcio da irmã mais nova de Emily e seu
escandaloso romance com um homem da rádio, resultando no envio das crianças para a
casa dos Tallis, como “refugiados de uma verdadeira guerra civil familiar” (p. 9).
Além de carregarem o opróbrio de serem filhos de pais divorciados, esta condição de
„penetras‟ no círculo familiar dos Tallis os coloca em posição inferior. Por isto, os
primos do norte “agora, como convidados na sua [de Briony] casa, acreditavam que lhe
deviam um favor. O que era pior ainda, Lola deixava claro que também ela estava
agindo por obrigação” (p. 15).
em plena efusão hormonal dos seus quinze anos, demonstra sensualidade nos pequenos
detalhes da sua postura e aparência: “[s]uas sandálias revelavam uma tornozeleira e as
unhas pintadas de vermelho” (p. 13) e “[v]estia uma calça de flanela pregueada à altura
dos quadris e que se alargava no tornozelo e uma suéter de cashmere de manga curta”(p.
42). No primeiro encontro com Paul Marshall, Lola examina-lhe o rosto e percebe que
“[e]ra um rosto cruel, mas seus modos eram agradáveis, e isto era um combinação
atraente” (p. 74-5) e, finalmente, sem um suporte familiar adequado, Lola entrega-se aos
seus impulsos “como a adulta que no íntimo acreditava ser” (p. 42), pratica sexo „ilícito‟
com Paul Marshall, considerando-se que houve sexo consentido e não estupro, e
silencia diante da acusação injusta feita por Briony contra Robbie, tornando-se cúmplice
dos crimes de Marshall. De modo interessante, esta Lola é uma referência intertextual
com Lolita, de Vladimir Nobokov.
76
A primeira publicação de Lady Chatterley’s Lover foi em julho de 1928 em Florença, Itália por Orioli.
Porque seu romance foi considerado obsceno e pornográfico na Inglaterra, Lawrence encontrou
dificuldades com as editoras e ele mesmo custeou esta edição italiana. No entanto, muitas cópias piratas
do romance surgiram na Europa e nos Estados Unidos e, somente em 1960, a edição inglesa da Penguin
Books foi publicada, após uma batalha judicial contra os editores. Diante desta informação, podemos
compreender por que a cópia comprada por Robbie tinha que ser clandestina.
246
felicidade do casal. Mas aquele canto da biblioteca, o único lugar onde Cecília comanda
seu próprio destino, alimenta o desejo de Robbie e dá-lhe uma razão para viver em meio
à tragédia que se abate sobre sua vida.
“[t]alvez ele estivesse interessado em Lola. Estava com dezesseis anos e certamente não
era mais um menino” (p. 61). O fato é que parece que Cecilia acredita que Danny
poderia ter atacado Lola; pois, numa carta a Robbie, ela comenta: “Quando Hardman
decidiu acobertar Danny, ninguém da minha família quis que a polícia o interrogasse
com as perguntas óbvias. A polícia tinha você para processar” (p. 267).
Por ocasião de uma entrevista de Ian McEwan a Adam Begley, datada de 2002,
o assunto volta-se para a questão do ponto de vista de Briony nos primeiros capítulos de
Atonement, “quando ela é ainda uma menina precoce com uma comichão para escrever
e um gosto perigoso pelo melodrama” (apud ROBERTS, 2010, p. 93). Ao ser
perguntado sobre a possibilidade de tratar-se do retorno ao tema a visão de “mundo da
perspectiva de uma criança”, Ian McEwan afirma:
249
Parece ser uma imersão muito mais profunda. Não querendo chocar as
pessoas ou admitir que o grotesco permita uma liberdade muito maior
em termos psicológicos. É sempre um problema fazer ficção como se
fora de crianças – o ponto de vista restrito pode tornar-se sufocante.
Minha intenção era retratar a mente de uma criança enquanto extraía
os recursos da linguagem complexa de um adulto – como James fez
em What Maisie knew. Não queria as limitações de um vocabulário
como o de crianças. Joyce faz assim nas páginas de abertura de A
portrait of the artist as a young man. Todos nós tentamos imitar isto.
Ele mantém você dentro do universo sensório e linguístico de um
menininho, e é um fragmento mágico que ilumina – e, então se vai,
exatamente como a própria infância. Joyce move-se, a linguagem
expande-se. Meu caminho por este problema foi fazer de Briony
minha „autora‟ e permitir que ela descrevesse o eu da sua infância de
dentro para fora, mas na linguagem de uma romancista madura (apud
ROBERTS, 2010, p. 93-94).
classifica-se como um narrador extradiegético, pois conta a história da qual não faz
parte (GENETTE, s/d, p. 247). A voz desta instância narrativa onisciente, em algumas
partes, com onisciência seletiva múltipla, como já argumentamos, é perceptível na
enunciação e construída pelo uso dos verbos no futuro do pretérito, que indicam
conjecturas, suposições e probabilidades. O distanciamento espaço-temporal, desta voz
que narra, possibilita a fluidez do imaginário e a logicidade do enunciado, que
naturalmente avança no tempo (“Seis décadas depois ”), como acontece nos processos
mentais, sem comprometer a recepção da mensagem, nem se configurar visivelmente
como “grotesco” (apud ROBERTS, 2010, p. 94), usando a adjetivo empregado por
McEwan. Este narrador em terceira pessoa orquestra a narrativa, delegando voz às
personagens, para que a consciência do outro se torne visível na narração: “Precisava
apenas mostrar mentes separadas, tão vivas quanto a dela, pelejando com a ideia de que
outras mentes eram igualmente vivas” (p. 51). Contudo, a voz deste narrador
extradiegético também se faz „ouvir‟, no fragmento citado, como a instância narrativa
madura, que detém o conhecimento abalizado de literatura sobre a questão do
maniqueísmo e da moralidade na ficção, bem como a percepção clarividente sobre a
importância da alteridade no relacionamento humano.
do leitor torna-se imensamente difícil e litigante, à medida que ele separa os vários fios
narrativos” (1980, p. 49). Evidentemente, a decodificação das obras metaficcionais é
complexa e exige mais aptidão e conhecimento do leitor, assunto já debatido nesta
pesquisa.
77
“A câmera é dita subjetiva quando ela assume o ponto de vista de uma das personagens, observando os
acontecimentos de sua posição, e, digamos com os seus olhos” (XAVIER, 2008, p. 34).
78
No plano médio os “atores são filmados acima dos joelhos ou logo abaixo da cintura” (MASCELLI,
2010, p. 35).
79
Corte seco é “a passagem de um plano a outro por uma simples colagem, sem que o raccord seja
marcado por um efeito de ritmo ou por uma trucagem” (AUMONT e MARIE, 2007, p. 66). Trucagem é
“toda manipulação na produção de um filme que acaba mostrando na tela alguma coisa que não existiu na
realidade” (AUMONT e MARIE, 2007, p. 293).
254
80
Conforme Laura Mulvey, o conceito de escopofilia foi originalmente apresentado por Freud na obra
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, “como um dos instintos componentes da sexualidade, que
existem como pulsões, independentemente das zonas erógenas. Nesse ponto ele associou a escopofilia
com o ato de tornar as outras pessoas como objetos, sujeitando-as a um olhar fixo, curioso e controlador”
(2008, p. 440-441).
255
do diretor, cuja relevância se justifica pelo papel de Grace na narrativa e sua associação
a Cecilia, particularmente após a prisão de Robbie. Cecilia atravessa a cozinha, passa ao
lado da câmera, que se move para filmar Cecilia de costas e captura o momento em que
Cecilia toca levemente, com a mão esquerda, no umbral da porta da cozinha. O canal
sonoro faz a transição entre os quadros e ouve-se a voz dos gêmeos, pedindo a Cecilia
para ir nadar. Então, a câmera mostra, em plano geral, o hall, com enquadramento em
diagonal em relação ao centro do objeto focal. Trata-se de um ambiente localizado no
centro da casa, cujas paredes são forradas por madeira no tom marrom escuro. O hall é
circulado por colunas de madeira que sustentam o mezanino. A iluminação indireta,
possivelmente oriunda de uma claraboia, cai sobre uma mesa redonda, que fica no
centro do hall. Os gêmeos, já vestidos com roupas de banho, estão correndo ao redor da
mesa, quando Cecilia entra no ambiente, dando-lhes permissão para irem à piscina, com
a recomendação para não nadarem na parte funda. Cecilia atravessa o hall, seguida de
perto pelos gêmeos, muito ativos, que, entusiasmados, saem de cena. A câmera fixa
acompanha os passos de Cecilia, que entra num pequeno corredor e vira à esquerda,
adentrando noutro ambiente, que é a sala de estar.
visão geral do ambiente, de modo que podemos observar que a sala é circulada por
janelas, que dão para o pátio. A câmera, em diagonal, exibe quando Cecilia senta-se no
sofá, olha para fora, pela janela lateral, e tira uma sandália, que cai sobre o assoalho,
provocando um barulho. Então, um close up do rosto de Cecilia mostra sua inquietação,
enquanto ela tira a outra sandália e olha novamente para fora. Após um corte, vemos,
emoldurada pela janela, uma imagem do pátio, com Robbie sentado, de costas, na
escadaria; ao fundo, encontra-se o gramado verde com árvores esparsas ao longe. O
emolduramento fragmenta a textura fílmica, traçando a representação de um fotograma.
Contudo, neste caso, a impressão de profundidade não suprime a bidimensionalidade da
imagem, mas traduz a abertura para outras dimensões: a dimensão espaço-temporal e a
dimensão subjetiva do olhar de Cecilia. Em seguida, a câmera faz outro close do rosto
de Cecilia ainda olhando de lado, quando ouvimos o som da outra sandália caindo, e
Cecilia levanta-se do sofá.
iniciam uma conversa, focados pela câmera, em posição frontal, que se move
lentamente para frente.
O próximo plano geral é feito em direção oposta, da fonte para a casa, e exibe os
detalhes da figura do Tritão, no canto direito do quadro, e Robbie e Cecilia em meio à
vastidão do cenário, com a imponência da casa ao fundo e do bosque ao lado da casa.
Esta tomada adquire um valor dramático, pois é feita exatamente quando o conflito de
classes aflora na conversa entre Robbie e Cecilia. Robbie sente-se no dever de restituir
ao pai de Cecilia o dinheiro gasto com sua educação. Esta intenção anunciada por
Robbie acaba por expor o abismo econômico entre os dois. Segundo Marcel Martin,
“[r]eduzindo o homem a uma silhueta minúscula, o plano geral o reintegra no mundo,
faz com que as coisas o devorem, „objetiva-o‟; daí uma tonalidade psicológica bastante
pessimista, uma ambiência moral um tanto negativa [...]” (2003, p. 38, grifos do autor).
Na imagem em tela, o cenário grandioso parece esmagar as figuras diminutas de Robbie
e de Cecilia, tornando-os apenas „objetos‟ de um contexto. Esta questão reporta-se à
„coisificação‟ do humano na sociedade capitalista, intensamente estratificada, onde o
capital tem mais valor do que o ser. É, portanto, muito significativo que este cenário
seja constituído pela casa de campo, símbolo da burguesia, representada em Atonement
pela família Tallis, que frustra os planos de ascensão social de Robbie, o separa de
259
profundamente relevante neste contexto narrativo, visto que está associado à linguagem
do desejo. De fato, o momento epifânico desta sequência acontece quando Cecilia
emerge da fonte e Robbie mostra-se extasiado com a visão sensual causada pela
transparência da roupa de Cecília no corpo molhado. Observamos, aqui, a relação entre
o olhar e o desejo, que estimula a pulsão escópica do espectador e o faz cúmplice de
Robbie e de Cecilia.
filme Le quai des brumes (Cais das sombras), de 1938, dirigido por Marcel Carné 81 –
um dos expoentes do realismo poético, principal corrente estética do realismo do
cinema francês nas décadas de 30 e 40. Com roteiro escrito pelo poeta Jacques Prévert,
Cais das sombras, premiado em 1939 com o importante Prix Louis-Delluc, é uma
adaptação do romance homônimo, de Pierre Mac Orlan (1882-1970), publicado em
1927. O filme Cais das sombras narra a história de um desertor do exército francês
durante a Segunda Guerra Mundial, que viaja de carona para a cidade portuária de Le
Havre numa noite de denso nevoeiro, esperando de alguma forma recomeçar sua vida.
Jean, estrelado por Jean Gabin, com a ajuda de um bêbado, encontra abrigo e comida
num bar da periferia da cidade, onde vem conhecer uma bela jovem de dezessete anos
chamada Nelly, papel desempenhado por Michèle Morgan. Nelly vive com o padrinho,
Zabel, que é proprietário de uma loja na cidade e nutre uma paixão não correspondida
pela afilhada. Logo nos primeiros momentos, Jean protege Nelly das investidas do
gangster Lucien, que procura por Maurice – ex-namorado de Nelly. O pouco tempo que
passam juntos é suficiente para Jean e Nelly se apaixonarem e Jean tem que enfrentar
Zabel quando é chantageado por ele. Então, Nelly descobre que Zabel, movido pelo
ciúme, havida assassinado Maurice e usa essa informação para impedir que Zabel
denuncie à polícia que Jean é desertor. Embora apaixonado, Jean planeja deixar Nelly,
partindo de navio para a Venezuela. Porém, no último momento, resolve libertar a
amada das mãos de Zabel, volta à loja e é assassinado covardemente por Lucien com
um tiro pelas costas.
Deste mundo sombrio e trágico, Joe Wright extrai a sequência mais lírica, vivida
pelas personagens Jean e Nelly, para construir uma estrutura em abismo em Atonement.
Seguindo a orientação estética metaficcional adotada no romance de McEwan, Wright
desdobra a narrativa cinematográfica pela inserção da sequência do beijo de Cais das
sombras na adaptação fílmica de Atonement. A sequência, a ser investigada, retrata o
episódio histórico da retirada de Dunkirk em maio de 1940, durante a Segunda Guerra
Mundial. Precisamente em 24 de maio de 1940, as tropas aliadas encontravam-se na
costa da Normandia, ao norte da França, encurraladas pelo exército alemão,
81
Marcel Carné (1909-1996) foi responsável pela escola do realismo poético na idade de ouro do cinema
francês com melodramas policiais de cunho trágico e pessimista. Neste período, em colaboração com o
poeta Jacques Prévert, realizou grandes obras, como Cais das sombras, Trágico amanhecer e O
boulevard do crime (considerado o mais longo filme francês). Foi assistente de câmera, crítico, diretor de
filmes publicitários e assistente de Clair e Feyder. Alcançou profunda admiração da crítica entre 1937 e
1946 – anos do apogeu da sua carreira artística, depois veio o declínio.
262
82
Dados extraídos de LORD, Walter. The miracle of Dunkirk. Hertfordshire: Wordsworth Editions
Limited, 1998.
263
Além do tratamento dado à metaficção, esta passagem foi selecionada por tratar
do importante debate sobre a relação entre ficção e realidade, particularmente, no que se
refere ao diálogo entre o discurso literário e o histórico. Como o uso de fontes históricas
dentro da literatura tem implicações de ordem ética e ideológica, analisaremos este
recorte literário em comparação com um fragmento do romance No time for romance,
de Lucilla Andrews, declaradamente a fonte inspiradora para McEwan.
267
Embora haja uma concordância com relação à idade das enfermeiras e dos
pacientes dos dois romances, o paciente de Briony é francês, o que abre a possibilidade
de existir um desvio na conversação, devido às limitações linguísticas de Briony. Seu
francês escolar leva-a a traduzir „nurse‟ como „sister‟ e, embora esta seja uma palavra
inglesa (a palavra francesa para irmã é „soeur‟), Luc entende o significado da frase,
mencionada no meio da conversa entre os dois, provavelmente devido ao sotaque inglês
de Briony: “Claro, você é a garota que tem sotaque inglês” (p. 395). Esta é uma solução
inteligente de McEwan para manter a coerência textual.
O aspecto mais interessante do diálogo entre Briony e Luc é a forma como ele
evolui para culminar numa declaração de amor. A princípio, Briony não entende o
estado delirante de Luc e insiste em corrigi-lo cada vez que ele afirma algo que não
condiz com a realidade dela. Por exemplo: Luc pensa estar em Paris, Briony assegura a
ele que ele está em Londres; Luc pensa ter se encontrado com ela na Páscoa em Millau,
Briony informa nunca ter estado em Millau. O diálogo prossegue com Luc falando
sobre sua família e Briony procurando retificar suas afirmações, até que ele pede para
ela afrouxar um pouco as ataduras. Aqui as narrativas de Andrews e McEwan se
aproximam outra vez, pois John, paciente de Andrews, e Luc fazem o mesmo pedido.
Acontece que ambas as enfermeiras cometem o mesmo erro e ficam horrorizadas com
os ferimentos que veem. A reação de Briony baseia-se na reação de Andrews, porém a
descrição do ferimento em McEwan é detalhada e perturbadora – mais um elemento
criativo do escritor. Conforme Alden, “[e]ste é o momento em que Briony colide com a
272
Antes que eu percebesse o que ele estava para fazer, com um esforço
tremendo ele atirou-se da cintura para cima, para o alto e em minha
direção. Tive que soltar minha mão com um puxão à medida que pulei
e agarrei-o em meus braços para evitar que ele caísse da cama. Ele era
tão pesado que para manter o equilíbrio, sentei-me instintivamente na
sua cama. Ele reclinou sua cabeça sobre meu ombro e suspirou. Pensei
que ele estava inconsciente e fiquei aliviada por ele, mas
extremamente amedrontada para deitá-lo de volta, no caso de que as
toalhas viessem a cair e eu tivesse de ver seus ferimentos novamente.
[...] Subitamente, a enfermeira-chefe apareceu ao meu lado. Não disse
nada sobre eu ter sentado na cama, mas gentilmente desemborcou a
cabeça dele do meu ombro. „Pobre rapaz, ponha-o de volta,
enfermeira‟ (ANDREWS, 2007, p. 127-128).
274
Comparemos com:
exame em Atonement “aponta para as questões que McEwan quer enfatizar, como por
exemplo: „a insanidade coletiva da guerra‟ (p. 353) ou o despojamento da identidade
pessoal que a guerra inflige naqueles que nela se envolvem” (2009, p. 59). De fato,
através da metaficção, Atonement parodia a história oficial, desmistificando o conceito
de „êxodo heroico‟ conferido à Retirada de Durkirk, ao expor a destruição e a
carnificina, praticadas na guerra e testemunhadas nas enfermarias do Hospital St.
Thomas – temas já tratados aqui. Em Atonement, a história encontra-se,
indubitavelmente, à serviço da literatura, pois a exposição da violência no romance tem
o propósito de trazer à baila o debate entre ética e estética, conforme será argumentado
no final desta análise. De acordo com Alden,
83
Informação extraída de ANDREWS, Lucilla. No Time for Romance. London: Corgi Books, 2007.
278
A tela escura que segue o apagar da luminária tem a ambígua função de unir o
plano antecedente ao subsequente, mas causa a impressão de ser a imagem de um
ambiente no escuro, provocado pelo ato de apagar as luzes, dando assim uma
continuidade à narrativa fílmica. Após um corte seco, vemos a enfermeira Briony
caminhar por entre os leitos de uma ampla enfermaria, onde dormem os pacientes. A
câmera, em plano médio e num enquadramento frontal, mostra outra enfermaria ao
fundo do quadro, aparentemente melhor iluminada, onde outra enfermeira encontra-se
em pé, junto aos leitos dos pacientes. Briony volta-se para atender a enfermeira-chefe,
que vem em sua direção. Numa tomada em two-shot, a câmera exibe a enfermeira-chefe
confirmando com Briony sua habilidade com a língua francesa e dando ordens para que
esta preste assistência ao paciente do leito treze. Em seguida, a enfermeira-chefe retira-
se para e enfermaria anexa. A câmera desloca-se num travelling lateral, acompanhando
a lenta caminhada de Briony ao longo da enfermaria, repleta de leitos, dispostos um
após outro, no fundo do quadro, e em filas duplas no centro do ambiente, de onde se
ouve o som abafado do ronco de alguns pacientes adormecidos. Briony completa o
percurso, voltando-se para a direita, e caminha um pouco em direção à câmera, agora
fixa. Em seguida, Briony volta seu rosto para a esquerda e dirige-se ao leito treze, à sua
esquerda. A câmera move-se lateralmente, exibindo a cortina vermelha, que separa o
leito treze dos demais leitos, e mostra Briony entreabrindo a cortina para adentrar o
recinto.
Pelas palavras da historiadora fica claro que a narrativa de Andrews tem sua
contribuição na construção do texto fílmico. Seu conhecimento da obra de Andrews e
sua participação como consultora histórica durante a produção fílmica atestam a
significante presença desta intertextualidade. Entretanto, convém esclarecer que apesar
da influência da obra de Andrews no filme, a adaptação baseia-se diretamente no
romance de Ian McEwan. Curiosamente, é em No time for Romance, no exato parágrafo
que segue a descrição da morte do paciente nos braços da enfermeira Andrews, que se
encontra a palavra „cortina‟ e referência à cor vermelha.
Tudo que via através da cortina do choque era uma terrível floresta de
mortos, árvores brancas desfolhadas com o repulsivo fruto carmesim e
amarelo, e tentáculos vermelhos, longos e finos pendiam dos
escabrosos túmulos de cor cinza que exalavam mal com o cheiro
salubre do sangue fresco (ANDREWS, 2007, p. 128).
84
Armas alemãs de grande poder destruidor, usadas nos bombardeios aéreos durante a II Guerra Mundial.
As V1s eram as bombas aéreas, cujo nome oficial era Vergeltungswaffe Eins (em inglês, Revenge Weapon
Number 1, traduzindo: Arma de Vingança Número 1) e os V2s eram os foguetes explosivos (um tipo de
míssel), com o nome oficial de Vergeltungswaffe Two (em inglês, Revenge Weapon Number 2,
traduzindo: Arma de Vingança Número 2). As V1s receberam o apelido de „doodlebugs‟ (besouros que
fazem zumbidos) ou „doodles‟ ou, ainda, „buzzbombs‟, pelo barulho aterrorizador que faziam. Dados
extraídos de LORD, Walter. The miracle of Dunkirk. Hertfordshire: Wordsworth Editions Limited, 1998.
281
vermelha no filme. A rigor, a cor vermelha não seria a mais adequada para um ambiente
hospitalar, pois não transmite a tranquilidade que se necessita neste ambiente; pelo
contrário, sabemos que esta cor estimula a retina e ativa os sentidos. Porém, o vermelho
está relacionado à paixão e ao amor, elementos fundamentais na criação da tonalidade
romântica dada à passagem literária. Portanto, a cortina é utilizada para criar a
atmosfera romântica e dramática que se pretende construir na transposição do romance
para o filme. Ademais, a cortina traz o isolamento necessário à criação de um ambiente
íntimo, semelhante a um quarto para o encontro do casal.
Visto que a passagem literária a ser adaptada consiste muito mais de diálogos do
que de narração, a necessidade de condensação dos diálogos no processo de adaptação
fez-se premente, o que certamente influiu na escolha dos recursos técnicos utilizados.
Para satisfazer a especificidade do meio, adotou-se, neste caso, o uso intenso da
decupagem-montagem, através dos cortes, e dos close ups na transposição do romance
para o filme. A montagem “tem, a princípio, uma função narrativa: a mudança de plano,
282
correspondendo a uma mudança de ponto de vista, tem por objetivo guiar o espectador,
permitir-lhe seguir a narrativa facilmente [...]” (AUMONT e MARIE, 2007, p. 196).
Deste modo, a metaficcionalidade do romance é transposta para o filme, pois assim
como a passagem literária, em questão, é uma paródia da escrita melodramática
praticada no passado, a sequência fílmica parodia o fazer cinematográfico da tradição
do cinema. Com a escolha pela decupagem clássica, evidenciada nesta sequência, a
narrativa fílmica paradoxalmente se desdobra por dentro, no sentido de que o texto
fílmico reflete os padrões tradicionais usados na elaboração do texto fílmico dos
primórdios do cinema narrativo, resgatando a memória do passado cinematográfico
numa reverência a teóricos como Lev Kulechov, Vsevolod Pudovkin e Béla Balázs. No
seu ensaio “A decupagem clássica”, Ismail Xavier afirma que
Como lemos acima, a prática comum de filmagem de diálogos faz uso deste
procedimento que é, de fato, a “combinação entre câmera subjetiva e o shot/reaction-
shot85” (XAVIER, 2008, p. 35). Embora, na adaptação em análise, exista o interesse de
colocar o espectador dentro do espaço fílmico, este efeito é elaborado a partir da
composição entre a montagem e os close ups, por razões óbvias de logicidade e
verossimilhança. Devido ao seu estado delirante, Luc não vê exatamente o que o
espectador vê, portanto não pode haver identificação entre o ponto de vista de Luc e do
espectador, o que impossibilita o uso verossímil do campo-contracampo. Entretanto,
faz-se necessário que o espectador veja bem alguns detalhes, para compreender
claramente o que se quer mostrar: uma cena romântica, apesar do ambiente inusitado e
da situação surreal. Para isto, o espectador é aproximado pelo uso dos close ups.
Os close ups também são aqui usados com a finalidade de enfatizar detalhes
relevantes à narrativa, que contribuem para a criação da tonalidade romântica. Um
85
“O shot/reaction-shot corresponde à situação em que o novo plano explicita o efeito (em geral
psicológico) dos acontecimentos mostrados anteriormente no comportamento de alguma personagem;
algo de significativo acontece na evolução dos acontecimentos e segue-se um primeiro plano do herói
explicitando dramaticamente a sua reação. E também corresponde ao esquema invertido, que concretiza
uma combinação de grande eficiência: num plano, o herói observa atentamente e, no plano seguinte, a
câmera assume o seu ponto de vista, mostrando aquilo que ele vê, do modo como ele vê. Neste último
caso, temos a típica combinação das duas técnicas – shot/reaction-shot e câmera subjetiva” (XAVIER,
2008, p. 34).
284
exemplo significativo do uso do close up diz respeito aos movimentos das mãos de
Briony: primeiramente, segurando a mão de Luc; em segundo lugar, removendo e
recolocando as ataduras na cabeça de Luc; em terceiro lugar, afagando a mão de Luc e,
finalmente, agarrando com força a mão dele. Ressaltamos que cada ação acima descrita
assinala um momento significativo na evolução do enredo: a chegada de Briony, a
revelação da gravidade do caso, a expressão de afeto e o momento da morte de Luc,
respectivamente. Outro exemplo importante é o destaque para a troca de olhares entre as
personagens, que somente um close poderia claramente evidenciar. Como um efetivo
recurso narrativo, o close up é também utilizado nesta sequência para exibir as reações
de Briony e de Luc no desenvolvimento do diálogo e impactar o espectador com a
dramaticidade imagética, transportando este para dentro da cena. A aproximação do
espectador contribui para gerar o pathos construído intencionalmente pela atmosfera
melodramática da narrativa.
Sem dúvida, o elemento central desta sequência é o diálogo, pois nele concentra-
se o confronto entre devaneio e realidade. De fato, diferentemente do romance, no
filme, a linha divisória entre fantasia e realidade é diluída na conversa entre Briony e
Luc desde o início. Este efeito é causado pela condensação do diálogo, que omite a
resistência de Briony, presente no romance, para mergulhar nas alucinações de Luc. No
filme, o jogo entre fantasia e realidade parte da compreensão equivocada de Briony de
que Luc realmente conhece Cecilia e Robbie. Daí por que Briony começa a responder as
perguntas de Luc naturalmente, isto é, sem questionar ou insistir com Luc acerca da
285
realidade, como acontece no romance. Porém, tanto no romance como no filme, quando
Briony vê o ferimento de Luc, muda de atitude e passa a participar conscientemente do
delírio dele, a ponto de confessar que o ama. De modo interessante, no filme, todo o
diálogo é falado em francês, o que corrobora a impressão de „realidade‟ exigida pela
construção ilusionista; enquanto que no romance, apenas as primeiras palavras de Luc
são em francês, o que sugere ao leitor que o diálogo é conduzido em francês, porém é
registrado em inglês; afinal, fantasia e realidade estão sob questionamento nesse
contexto. No filme, durante todo o diálogo, em alguns momentos a câmera move-se
para a lateral esquerda da cama para mostrar as expressões faciais de Luc ou, em
superclose, o ferimento na sua cabeça, de modo que o espectador possa acompanhar o
desenrolar do enredo. Ainda, é importante sublinhar que a ocularização em Briony, leva
o espectador a se identificar com ela, o que favorece a construção do pathos e ressalta as
transformações em Briony.
O clímax acontece com a morte de Luc, cuja descrição no filme difere tanto
daquela do romance Atonement, quanto daquela no relato de Andrews em No time for
romance. Nos romances, Luc morre nos braços das enfermeiras, mas no filme, Luc
inclina a cabeça e para de respirar. Ressaltamos, entretanto, que o efeito, no filme, não é
menos dramático do que parece, a diferença encontra-se primordialmente na
especificidade do meio. Portanto, na adaptação da presente cena, não há necessidade de
enfatizar a dramaticidade já existente na imagem visual. O melodramático, construído
através da linguagem cinematográfica (mise en scène, iluminação, som), é claramente
perceptível ao espectador. Transferir, como descrita no romance, a convulsão do
paciente no momento em que morre para a imagem visual seria fazer um uso
exacerbado do melodramático, o que daria a impressão do ridículo; talvez, aproximando
do burlesco. Consequentemente, o efeito seria diametralmente oposto ao intento
pretendido na obra inspiradora e totalmente dissonante com a própria adaptação.
Briony ainda encontra-se aterrorizada com o que acaba de vê, quando ouve a
voz da enfermeira-chefe, ordenando-a a levantar-se e lavar o rosto. Após uma transição
por corte, há uma tomada em plano geral da enfermaria, desta vez, exibindo o ambiente
em profundidade, onde vemos ao fundo, do lado direito, Briony abrir a cortina, sair,
voltar-se para a esquerda e caminhar lentamente em direção à câmera imóvel. É
importante observar que a profundidade de campo é outro método de dramatização
bastante utilizado no cinema clássico (XAVIER, 2008, p. 31), que resulta aqui na
286
conjunção espaço-temporal, típica do cinema. Entra, neste momento, uma música suave
e lenta, seguindo a cadência dos passos de Briony. Esta música, num leve crescendo,
acompanha Briony até o final da sequência. Ainda, nesta cena, a imagem diminuta de
Briony sugere sua pequenez diante da intensidade emocional, causada pelo que acaba de
experienciar. Mais um corte e a câmera em plano geral, agora a plongée, exibe Briony
prosseguindo sua pausada caminhada por entre as camas da enfermaria, sempre olhando
para frente, numa atitude de contemplação. Então, Briony vira à direita e depois à
esquerda, dirigindo-se para a enfermaria anexa. Além da densidade dramática, a
angulação da câmera alonga a distância do objeto focal, o que implica no tempo de
percepção, pois o espectador é levado a pensar que Briony percorre um longo caminho
por muito tempo. Neste sentido, é interessante lembrar que, ao concluir seu estudo sobre
tempo no cinema, Martin afirma que “a intuição da duração depende da maneira como o
espectador é afetado pela tonalidade dramática da ação [...]” (2003, p. 62).
Além disto, a opção pelo plano longo nesta sequência é relevante, visto que
traduz a intensidade dramática referente à transformação de Briony e simboliza sua
trajetória à maturidade. O valor psicológico, atribuído ao uso deste tipo de plano nesta
cena final, relaciona-se com a expressividade da montagem, obviamente exigida pela
narrativa, cuja lentidão simboliza o choque psicológico sofrido pela personagem e
suscitado no espectador através da tensão mental, criada tanto pela diegese, quanto pela
plasticidade imagética. Trata-se aqui de uma identificação perceptiva entre o espectador
e a personagem, característica básica da arte cinematográfica. Conforme Martin,
forense” (p. 477). Briony ainda confessa que “[é] somente nesta última versão que meu
casal apaixonado termina bem, em pé e lado a lado numa calçada do sul de Londres,
enquanto eu vou embora” (p. 478). O passo a passo da „confissão‟ de Briony constrói a
narrativa até o final do romance, paradoxalmente desconstruindo sua tessitura, num jogo
de espelhos de natureza ambígua e irônica.
Mas agora não posso mais achar que meu propósito seria alcançado
se, por exemplo, eu tentasse persuadir meu leitor, por meios diretos ou
indiretos, de que Robbie Turner morreu de septicemia em Bray Dunes
no dia primeiro de junho de 1940, ou que Cecilia foi morta em
setembro do mesmo ano pela bomba que destruiu a estação de metrô
de Balham. Que eu não os vi naquele ano. Que minha caminhada por
Londres terminou na igreja em Clapham Common e que a covarde
Briony voltou mancando para o hospital, incapaz de encarar sua irmã,
desolada pela morte recente do seu amado. Que as cartas que os
amantes escreveram estão no arquivo do War Museum (p. 478).
para além de seu alcance crítico numa tentativa de abarcar toda ficção” (HUTCHEON,
1980, p. 37). Ironicamente, a cruel „verdade‟, exposta por Briony nas versões do seu
romance, também não passa de um construto ficcional. Aliás, eis mais uma paradoxo
criado pela metaficção: o „real‟ na ficção é produto do imaginário. Paradoxalmente, o
modelo realista é desmistificado pela metaficção, através do rompimento do contrato de
ilusão entre autor e leitor, mas não é abolido; é reelaborado neste contexto cético, que
ainda mantém a representatividade na arte. Como mencionado anteriormente, a
metaficção não esconde ser representacional; pelo contrário, a obra metaficcional
explora seu status como representação e indica que o modo de representatividade da
obra é uma questão de escolha do artista. Ressaltamos, no entanto, que a relação entre o
representante e o representado precisa ser concebida em termos dialógicos e não
dicotômicos, como tradicionalmente se compreendia, assunto já tratado no capítulo I
deste trabalho.
A questão ontológica é aprofundada por meio das conjecturas de Briony acerca
da publicação de sua obra: “Quando eu morrer e os Marshalls estiverem mortos, e o
romance for finalmente publicado, nós só existiremos como invenções minhas” (p.
478). Neste debate, um aspecto metafísico se delineia: a ficção supera a existência do
seu criador, o que, sem dúvida, é uma verdade. Ademais, Briony reconhece que “será
uma personagem tão fictícia quanto os amantes [...]” (p. 478). Convém lembrar que aqui
a narrativa é espelhada e, portanto, o jogo entre „o ser‟ e „o não ser‟ cria uma sofisticada
ironia, no que diz respeito aos papéis de autor e de personagem, que são mutáveis e,
paradoxalmente, cumulativos em Atonement. Segundo Salvatore D‟Onofrio, “[a]
literatura de ficção supera a antítese do ser e do não ser, do real e do imaginário: a
personagem é, porque foi criada por seu autor, e, ao mesmo tempo, não é, porque nunca
existiu no plano histórico” (1999, p. 20-21, grifos do autor). Na obra metaficcional, esta
questão torna-se mais complexa devido ao desdobramento de narrativas, que permite a
multiplicidade de papéis numa relação dialógica.
referencial, visto que o leitor faz referência ao seu conhecimento linguístico durante a
leitura; e, num segundo momento, os referentes da obra gradativamente acumulam-se na
mente do leitor, levando-o a construir um universo ficcional – um heterocosmo (1980,
p. 88). De fato, o escritor e o leitor compartilham do processo de criação do
heterocosmo através das palavras. Como um artefato autônomo e autossuficiente, o
heterocosmo é governado por regras próprias que ditam a lógica ou motivação de suas
partes e o leitor capta estes códigos no ato de leitura. Neste sentido, é interessante
examinar o seguinte comentário de Briony:
A ironia presente nesta citação evidencia uma crítica às possíveis censuras feitas
à escrita e, também, acentua o debate ontológico sobre ficção, voltando-se para o papel
do escritor. Decerto, o papel do escritor transparece ao longo do discurso de Briony,
abordando a óbvia relação com o leitor através do texto, como observado nesta
argumentação. Sabemos que o escritor metaficcionista adota uma postura claramente
política, definida pela descentralização da sua autoridade, na medida em que
compartilha explicitamente o seu fazer artístico, permite ao leitor a „coprodução‟ da
obra e delega poderes autorais às personagens das suas obras, as quais ele orquestra
aparentemente à distância. Conforme Hutcheon, “[n]a metaficção de hoje, o artista
reaparece, não como um criador Romântico e ao estilo de um deus, mas como o
fabricante legalizado de um produto social que tem o potencial de participar da
293
mudança social através de seu leitor” (1984, p. xv-xvi). Este engajamento político-social
é perceptível em Atonement no diálogo entre a moralidade e a literatura, discutido ao
longo do romance, particularmente atrelado à temática da auto-justificação de Briony.
86
Extraído da Bíblia de Estudo Pentecostal, Edição de 1995, p. 209.
294
própria vida, o resgate pela humanidade. O ser humano não nasce justificado, mas ele é
livre para escolher a prática da justiça ou não. Teologicamente, a expiação é uma tarefa
impossível para o ser humano, pois o injusto não pode justificar-se a si mesmo. Logo, a
autojustificação não tem base na doutrina cristã. Diante da autoridade maior (Deus,
como o Justo Juiz), o injusto precisa de um justificador, que, por ser justo, pode pagar o
resgate e o livrar da sentença de condenação, que lhe pesa pela injustiça praticada.
Consequentemente, a expiação traz a absolvição da injustiça ou transgressão, a
reparação ou reconciliação com Deus, com o outro e consigo mesmo, libertando o ser da
culpa. Como pode ser observado, o tema da justificação está intrinsecamente ligado ao
tema da expiação. À luz destas informações, as palavras de Briony serão examinadas:
aponta para uma possibilidade de saída da crise, uma vez que sua finalidade aberta
contempla a contingência, a heterogeneidade e o contraditório na pós-modernidade.
centralizada na tela, com a finalidade de se fazer a escolha da imagem, que irá compor a
sequência. Os procedimentos de construção da continuidade da sequência ocorrem
através da repetição dos fragmentos, com retorno em alta velocidade, a remoção das
falhas imagéticas, exibidas nas imagens fragmentadas, e os cortes, entremeando as
possíveis unidades narrativas.
sobre a bancada. Após um corte, vemos um close do rosto de Briony, detalhando sua
expressão facial séria e pensativa, que denota fadiga, ansiedade e, talvez, angústia,
demonstradas pela forma como ela fecha e abre os olhos e pelo longo e profundo
suspiro.
Agora, a câmera mostra o plano geral de um estúdio, onde três painéis de uma
pintura abstrata, em tons amarelos com fundo preto, dividem o fotograma
equidistantemente, um em cada canto e um no meio do quadro, por trás de uma mesinha
de centro, onde estão dois copos com água. Em enquadramento frontal, vemos o
entrevistador sentado à esquerda do quadro e Briony sentada à direita. A iluminação
com backlights provoca um efeito cor de rosa no fundo do cenário e permite visualizar
os bastidores do estúdio, com um armário, provavelmente de um quadro elétrico, à
esquerda por trás do entrevistador; e, à direta por trás de Briony, uma escada, que
possivelmente conduz a uma plataforma superior, tendo ao fundo outro ambiente com
vários equipamentos eletrônicos encostados a um grande janelão, com esquadrias
quadrangulares, que tematizam metaficcionalmente o quadro a quadro da composição
fílmica. O diálogo, composto particularmente pelas longas falas de Briony e sete
intervenções do entrevistador se desenvolve a partir deste momento. Destacamos nesta
sequência a mise en scène da conceituada atriz Vanessa Redgrave no papel de Briony.
Sua postura, expressão facial, maneio de cabeça e entonação da voz completam a densa
dramaticidade, exigida pela diegese. Sabemos que pensamentos e sentimentos
problematizam a transposição da página à tela, geralmente resolvidas através da voice-
over ou por inferência, feita pelo espectador. Neste caso, o espectador tem a seu favor a
extraordinária atuação da atriz.
o objetivo de centrar a atenção do espectador em Briony, enquanto ela revela que vem
escrevendo e reescrevendo este romance ao longo de sua vida e confirma que se trata de
um romance inteiramente autobiográfico.
– Por muito tempo, decidi contar somente a verdade. Sem rimas, nem
embelezamentos. E acho que... Leu o livro, entende por quê. Recebi
informações de primeira mão de todos os acontecimentos que não
presenciei, o estado da prisão, a evacuação de Dunkirk, tudo. Mas a
repercussão de toda essa honestidade foi um tanto cruel. Não
conseguia imaginar, por mais nem um minuto, qual seria o propósito
disto.
– Disso o quê? Desculpe. Da honestidade?
– Da honestidade? Ou da realidade!
Então, minha irmã e Robbie nunca conseguiram ter a vida que tanto
sonharam e mereciam. E a qual, desde então, eu... A vida que, desde
então, eu os impedi de ter. Mas que esperança ou satisfação o leitor
pode ter com um final desses? Por isso, no livro, eu quis dar a Robbie
e Cecilia o que eles não tiveram em vida. Quero pensar que esta não é
uma demonstração de fraqueza ou fuga e sim um ato final de bondade.
Eu os proporcionei felicidade.
Briony expõe o cerne do seu conflito interior, mas traz à luz a discussão acerca
do diálogo com o leitor e o papel do escritor. Tratando-se de um filme, o processo de
303
percebe-se a relação conflitante entre moralidade e literatura: “Quero pensar que esta
não é uma demonstração de fraqueza ou fuga e sim um ato final de bondade. Eu os
proporcionei felicidade”. Devido ao contexto cético, implícito no discurso fílmico pela
temática abordada a partir do título, a prática da ética cristã é posta sob litígio. O fator
crucial neste debate é o descrédito no potencial de narrativas universais para fazer frente
à heterogeneidade e ao contraditório da pós-modernidade. Portanto, o “ato final de
bondade” de Briony é a expressão irônica da prática ética cristã, mas paradoxalmente,
reflete uma prática ética, ainda que realizada no imaginário, na ficção. Portanto, a
tensão é provisoriamente resolvida através de uma ética resultante alicerçada na
experiência com o outro, semelhante àquela vivenciada por Briony nas enfermarias do
Hospital, cuja epifania é vista no encontro com Luc Cornet – a ética da alteridade.
Enfim, a beleza da última imagem certamente fica na mente do espectador, como o
efeito de um final feliz; porém, esse final é um simulacro de uma vida exitosa, pois é
impossível de se realizar no mundo real, mas paradoxalmente possível na ficção, como
testemunham os olhos perplexos do espectador na última cena de Atonement.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao expor a obra artística como artefato da criação humana, tornando visível sua
construtividade, a metaficção desvela primordialmente o status ontológico da ficção.
Porém, as especulações do „ser ficcional‟ instauram uma série de paradoxos, que
envolvem os conceitos de „real‟, „realidade‟ e „verdade‟ na ficção. Entender estes
paradoxos nos possibilitou discorrer sobre o conflito entre ficção e realidade, abordado
no romance Atonement e na sua adaptação fílmica. A inserção dos objetos de pesquisa
em um contexto pós-moderno levou-nos a investigar as principais características da
estética do pós-modernismo, tendo como aporte o postulado de Hutcheon em A poetics
of postmodernism: history, theory, fiction (2000a). A estética satisfaz as reivindicações
da heterogeneidade, fragmentariedade e interinidade do pós-moderno, possibilitando o
conhecimento de outras formas de sensibilidade, porém, a poética pós-moderna não
propõe qualquer paradigma narrativo, pois se fundamenta na incredulidade em sistemas
universalizantes. Percebemos que o potencial combinatório do fenômeno metaficcional
pode produzir várias modalidades sob seu regime estético. Robert Stam aponta três
modalidades de reflexividade, cuja utilização “mais retórica do que científica” (1992, p.
xvii) deriva dos impulsos lúdico, agressivo e didático, dependendo da intencionalidade
do artista. É possível observar, em Atonement, mais precisamente, uma combinação da
modalidade lúdica com a modalidade agressiva, pois os jogos estruturais e linguísticos,
instrumentalizados por uma forma paródica na metaficção, entram em confronto com
parâmetros literários, sociais, culturais e religiosos.
investigação, buscamos respaldo nas próprias obras e observamos que categorias como
a intertextualidade e paratextualidade passaram a fazer parte do instrumental
metodológico utilizado para a elaboração da metaficcionalidade do romance.
Sistematizamos a metaficcionalidade das obras estudadas agrupando-a em dois
conjuntos de desdobramentos, que denominamos de jogo de espelhos linguístico-
estilístico e jogo de espelhos estrutural-diegético, no romance; e jogo de espelhos
imagético-simbólico e em jogo de espelhos estrutural-diegético, no filme. Em cada
conjunto, elaboramos cinco categorias metaficcionais, que se mostraram recorrentes ao
longo da narrativa. A configuração da metaficcionalidade entre o romance e o filme
revelou uma interessante simetria formal e temática, que entendemos ser uma
consequência da aproximação intencional entre as duas obras. Inclusive, percebemos
que Joe Wright rende um tributo à obra de Ian McEwan.
REFERÊNCIAS
ABRAMS, M. H. (ed). The Norton anthology of English literature. 5th ed.. New York:
W.W. Norton & Company, 1986.
ALDEN, Natasha. “Words of war, war of words: Atonement and the question of
plagiarism”. In: GROES, Sebastian. (ed.). Ian McEwan. London: Continuum, 2009, p.
57-69.
AUMOUNT, Jacques & MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. 3ª ed.
Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Papirus Editora, 2007.
__________, Genilda. Jane Austen on the screen: a study of irony in Emma. João
Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2009.
BAKHTIN, Mikhail. “Discourse in the novel”. In: HOLQUIST, Michael. (ed.). The
dialogical imagination: four essays. Translated by Caryll Emerson and Michael
Holquist. Austin: University of Texas Press, 1987, p. 259-422.
___________, Roland. “From work to text”. In: HARARI, Josué V. (ed.). Textual
strategies: perspectives in post-structuralist criticism. London: Methuen & Co. Ltd.,
1979, p. 73-81.
BAZIN, André. O cinema: ensaios. Tradução de Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo:
Brasiliense, 1991.
BLUESTONE, George. Novels into film. Baltimore and London: The Johns Hopkins
University Press, 2003.
CHATMAN, Seymour. Coming to terms: the rhetoric of narrative in fiction and film.
Ithaca and London: Cornell University Press, 1990.
CHILDS, Peter. (ed.). The fiction of Ian McEwan: a reader’s guide to essential
criticism. New York: Palgrave MacMillan, 2006.
COMMELIN, P.. Nova mitologia grega e romana. Tradução de Thomaz Lopes. Rio de
Janeiro: Editora Tecnoprint Ltda, s/d.
CIRLOT, J. E.. A dictionary of symbols. Translated by Jack Sage. London and Henley:
Routledge & Kegan Paul, 1978.
CURRIE, Mark. (ed.). Metafiction. London and New York: Longman Group Limited,
1995.
FRENCH, Philip. Forgive me, I have sinned. The Observer, London, 9 Sep. 2007.
GASS, William H.. Fiction and the figures of life. Boston: Nonpareil Books, 1989.
GROES, Sebastian. (ed.). Ian McEwan: contemporary critical perspectives. London &
New York: Continuum International Publishing Group, 2009.
HATIM, Basil & MASON, Ian. The translator as communicator. London e New York:
Routledge, 1999.
IZQUIERDO, Iván. “Precisamos esquecer para viver”. Lola, São Paulo, fev, 2012, p.
78.
JAKOBSON, Roman. “Closing statements: linguistic and poetics”. In: SEBEOK, T.A..
(ed.). Style in language. New York: 1960.
KELLAWAY, Kate. At home with his worries. London, The Observer, 16 Sept., 2001.
KEMP, Peter. Atonement by Ian McEwan. London, The Sunday Times, 16 Sept., 2001.
316
LANDESMAN, Cosmo. Atonement - The Sunday Times Review. London, The Sunday
Times, 9 Sept., 2007.
LEITE, Lígia. O foco narrativo. São Paulo: Editora Ática S.A., 1985.
LIMA, Luís Costa. Teoria da literatura em suas fontes. 2ª ed. Vol. I. Rio de Janeiro:
Livraria Francisco Alves Editora S.A. 1983.
LYNN, David. “A conversation with Ian McEwan”. In: ROBERTS, Ryan. (ed.).
Conversations with Ian Mc Ewan. Jackson: University Press of Mississippi, 2010, p.
143-155.
McHALE, Brian. Postmodernist fiction. London and New York: Routledge, 1987.
Reimpressão 2001.
MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”. In: XAVIER, Ismail. (org.). A
experiência do cinema. 4ª ed.. São Paulo: Edições Graal Ltda., 2008, p. 440-441.
317
NAREMORE, James. Film adaptation. (ed.). New Brunswick, New Jersey: Rutgers
University Press, 2000.
NOAKES, Jonathan. In: ROBERTS, Ryan. (ed.). Conversations with Ian Mc Ewan.
Jackson: University Press of Mississippi, 2010.
ORTEGOSA, Marcia. Cinema noir: espelho e fotografia. São Paulo: Annablume, 2010.
OUDITT, Sharon. “Orlando: coming across the divide” In: CARTMELL, Deborah &
WHELEHAN, Imelda. (eds.). Adaptations: from text to screen, screen to text. New
York and London: Routledge, 2002, p. 146-156.
RAY, Robert B.. “The field of „literature and film‟” In: NAREMORE, James. (ed.).
Film adaptation. New Brunswick: Rutgers University Press, 2000, p. 38-53.
REIS, C. & LOPES, A. C.. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988.
RIZZO, Ségio. “O filme dentro do filme”. In: MURANO, Edgard (ed.). Revista Língua
Especial: Cinema & Linguagem, São Paulo, Editora Segmento, outubro 2011, p. 31-34.
ROBERTS, Ryan. (ed.). Conversations with Ian Mc Ewan. Jackson: University Press of
Mississippi, 2010.
SCOTT, A. O.. Lies, guilt, stiff upper lips. The New York Times, New York, 7 Dec.,
2007.
SCHOLES, Robert. “Metafiction”. In: CURRIE, Mark. (ed.). Metafiction. London and
New York: Longman Group Limited, 1995, p. 22-29.
318
____________, Robert. The fabulators. New York: Oxford University Press, 1967.
SHARPE, Jim. “A história vista de baixo”. In: BURKE, Peter. (org.). A escrita da
história: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP,
1992, p. 39-62.
__________, Robert. Literature through film: realism, magic, and the art of adaptation.
Massachussetts, USA: Blackwell Publishing, 2008b.
__________ Reflexivity in film and literature: from Don Quixote to Jean-Luc Godard.
New York: Columbia University Press, 1992.
STAM, Robert & RAENGO, Alessandra. (eds.). Literature and film: a guide to the
theory and practice of film adaptation. Massachusetts: Blackwell Publishing Ltd,
2008a.
SHONE, Tom. White lies. The New York Times Book Review, New York, 10 Mar.,
2002.
WHELEHAN, Imelda. Adaptations: from text to screen, screen to text. New York and
London: Routledge, 2002, p. 146-156.
WHITE, Hayden. The content of the form. Baltimore and London: The Johns Hopkins
University Press. 1990.
WOOLF, Virginia. “The cinema”. In: The captain’s death bed and other essays. New
York and London: Harcourt Brace Jovanovich, 1950.
YEATS, W. B. “The second coming”. In: WILLIAMS, Oscar. Ed. Immortal poems of
the English language. New York: Washington Square Press, 1977, p. 489.
SITES VISITADOS
FILMOGRAFIA PRINCIPAL
FILMOGRAFIA SECUNDÁRIA
The red shoes (Os sapatinhos vermelhos), 1948, de Michael Powell e Emeric
Pressburger.
West side story (Amor, sublime amor), 1961, de Robert Wise e Jerome Robbins.