Corpo Escravizado
Corpo Escravizado
Corpo Escravizado
O corpo escravizado fora objeto de diferentes usos por agentes sociais e políticos
diversos, evidenciando os múltiplos olhares acerca do mesmo. Neste trabalho,
apresentamos uma reflexão sobre a questão tendo por base as proposições do médico
francês Jean-Baptiste Alban Imbert e do médico brasileiro David Gomes Jardim, na
primeira metade do século XIX. Objetivamos discorrer sobre suas proposições relativas
ao corpo e doença, repensar o termo raça e o modo como o mesmo era aplicado a partir
das visões médicas, estrangeira e brasileira. Para tanto, utilizaremos o Manual do
Fazendeiro ou Tratado Doméstico sobre as enfermidades dos Negros escrito em 1839
por Imbert, e a tese defendida por Jardim na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
em 1847, intitulada Algumas Considerações sobre a Hygiene dos escravos.
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Política da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro / UERJ.
(CHALHOUB, 2012: 30). Ainda que inicialmente a questão pudesse ser satisfatória, um
problema pretérito ainda se fazia presente, qual fosse, o alto índice de mortalidade
escrava. Fatores diversos causavam o óbito precoce desses trabalhadores tais como,
alimentação inadequada, vestuários, higiene, trabalho à exaustão. Segundo Jacques Le
Goff o corpo tem uma história, diferentes histórias, posto que um mesmo corpo interage
e transita em diferentes espaços. E qual seria a história destes corpos escravizados na
primeira metade do século XIX?
Em se tratando dos escravizados, a preocupação com seus corpos iniciava-se
ainda na África continuando na chegada ao porto até o cotidiano das fazendas. Muitos
morriam ainda em alto mar, outros tantos adoeciam. Para o fim a que se destinavam
deveriam apresentar-se sadios e propícios para o trabalho. A apreensão com as inúmeras
perdas tinha por fundamento o alto índice de mortalidade e moléstias desenvolvidas.
Somente no Rio de Janeiro morreram quase dois mil e oitocentos escravizados entre os
anos de 1840 e 1849 (KARASCH, 2000: 144). Jean-Baptiste Alban Imbert defendia tão
alto número posto que o negro destinado a viver nos trópicos e a suportar seu clima
quente “vê seu corpo submettido a toda sua influencia, e he por isso mais exposto ás
enfermidades (...)” (IMBERT, 1839: 18-19). Na concepção de Imbert a origem do negro
e do clima do antigo território favorecia o desenvolvimento de moléstias, definia assim,
uma das diferenças entre estes e os nascidos no Continente Europeu de clima mais
temperado.
Em pesquisa realizada no município de Vassouras entre os anos 1840 e 1880
contabilizamos 6.722 mortos no livro de Óbitos desta Freguesia. Destes, 3.562 eram
livres, sendo 3.412 nascidos livres (95,78%) e 150 libertos e forros (4,22%). O livro
paroquial de óbitos de escravos teve como registro o quantitativo de 3.1601. Vulneráveis
as condições do clima como indica Imbert, a pouca vestimenta, alimentação inadequada,
pouca higiene, facilmente eram levados ao óbito prematuro. As doenças que acometiam
os escravizados eram variadas, entretanto, as que correspondiam ao grupo das infecto-
parasitárias respondiam pelo maior quantitativo de falecimentos como aponta a tabela 1.
Tabela 1 - Doenças de escravos listadas nos Registros Religiosos e nos Inventários de proprietários.
1
Dados obtidos na pesquisa de Mestrado realizada em Vassouras no Centro de Documentação
Histórica. Foram analisados os livros de óbito de livres/libertos e de escravos.
A tabela acima demonstra questão relevante posto que, nos Registros de Óbito
paroquiais, as doenças infecto-parasitárias foram as mais significativas, todavia, nos
Inventários de proprietários são as Causas Violentas que apresentam número elevado:
quase metade do total dos escravizados arrolados. Provavelmente, muitos cativos
morriam destas, mas nem sempre ocorria o devido registro. Contudo, no caso dos bens
inventariados, tais causas correspondiam à diminuição do patrimônio, tendo em vista a
diminuição do valor da propriedade escrava. Da mesma forma, incidia na redução da
mão de obra na produção do café.
A medicina no início do século XIX utilizava esse mesmo corpo para ampliar
conhecimentos por meio do estudo de enfermidades e principalmente por meio das
necropsias, mencionadas nos Anais do Semanário de Medicina do Rio de Janeiro e nas
teses médicas defendidas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Na visão dos
médicos do Semanário, “O saber he pois essencial, e indispensavel no bom Medico, e
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08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9
Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT
melhor Medico se reputa aquelle que he mais instruído, quer pelo estudo, quer pela
experiência” (SEMANÁRIO, 1831). Experiência construída com a prática garantida a
partir do estudo do corpo doente e do cadáver como no caso de “Felippa Maria do
Nascimento, preta forra de idade de cincoenta annos pouco mais ou menos, de huma
constituição assaz deteriorada a bebidas alcoholisadas”, que estando doente há oito dias
foi levada a presença do Senhor José Antonio de Carvalho cirurgião assistente. Felipa
diagnosticada com “Febre Intermitente Perniciosa Cerebral” falece e o estudo de seu
corpo foi descrito em ricos detalhes pelo médico em questão, registrado em 15 de junho
de 1829 e publicado em 21 de outubro de 1830 (SEMANÁRIO, 1830: 10).
Baptista Albano Imbert. Da mesma forma, foi membro honorário da Sociedade Real de
Medicina de Marseille e membro efetivo das Sociedades Auxiliadoras da Indústria
Nacional, e literatura do Rio de Janeiro e Cirurgião Ajudante Maior da Marinha
Imperial Francesa (IMBERT, 1839: 16).
Pelo que temos dito he facil conceber-se, que homens sem vínculos sociaes
na terra, mal nutridos, mal vestidos, expostos a todas as injurias do ar,
sujeitos a hum trabalho quasi continuo, entregues demasiadamente á
inclinação de prazeres grosseiros, e de licores fortes, não podem conservar
sua saúde. Por isso nota-se que elles não resistem longo tempo; molestias os
assaltão, e hum tratamento, quasi sempre mal entendido, dão cabo de seus
dias (IMBERT, 1839: XXI).
Esse corpo africano ou crioulo, preto ou pardo, escravo ou liberto não era visto
como igual. A sociedade escravista imperial criava, na medida em que a miscigenação
se desenvolvia, diferentes formas de hierarquização. Existiam duas raças: a branca e a
negra segundo Imbert (1839: XVIV), e o olhar da medicina utiliza tal fator para
entender as diferentes moléstias que causavam mortes prematuras. Como apontado na
citação acima, as causas para uma vida tão curta era o “estado da atmosfera”; a má
alimentação, causa de “indigestões, saburras, languidez na assimilação, e todas as
enfermidades da pobreza”; o uso da cachaça que “produz gastro-interites, ou irritações
do tubo digestivo, scirros no estomago” e privação das “poucas faculdades intellectuaes
que possue”; a libertinagem e a preguiça, determinante nas “enfermidades
condemnando os orgãos á inacção” (IMBERT, 1839: XX-XXI). E condição precípua
para este médico no tratamento de qualquer doença era conhecer o corpo.
Indicou tratamentos com plantas locais, ensinou como limpar uma ferida
adequadamente, estancar o sangue em caso de cortes profundos e até mesmo como
produzir corretamente um cataplasma, muito utilizado à época. Tudo isso utilizando
“clareza nos princípios” e “simplicidade nos meios”, afinal não escrevia para seus pares,
mas para homens que cotidianamente cuidavam de fazendas e de um significativo
número de escravizados.
Seu discurso disputava naquelas primeiras décadas do século XIX espaço com
outros atores da arte de curar: curandeiros, boticários, feiticeiros e barbeiros. Diferentes
poderes pleiteavam garantir para si lugar de destaque. Afinal, o poder pode ser
entendido “como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia.
Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado
Algumas causas se encontram como as proferidas por Imbert uma década antes,
sendo elas:
Outro ponto comum entre os médicos era o uso que os negros faziam das
bebidas alcoólicas, um vicio para o doutor Jardim. Para provar sua proposição narra o
seguinte fato:
Para Jardim,
Considerações Finais:
Ensinar fazendeiros tão distantes dos conhecimentos científicos não era tarefa
fácil. Mas, Jean-Baptiste Alban Imbert e David Gomes Jardim demonstraram grande
esforço utilizando uma pedagogia médica para atender as necessidades do momento.
Observadas as peculiaridades dos documentos analisados - Imbert escreve um manual
para fazendeiros, David Jardim uma tese para obter o grau de doutor em medicina - e a
Fontes:
Bibliografia:
FERREIRA, Luiz Otávio. Ciência Médica e Medicina Popular nas páginas dos
Periódicos Científicos (1830-1840). In: Chalhoub, Sidney et al. (org). Artes e Ofícios
de Curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
2003.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 2004.
XAVIER, Regina. Dos males e suas curas: práticas médicas na Campinas oitocentista.
In: Chalhoub, Sidney et al. (org). Artes e Ofícios de Curar no Brasil: capítulos de
história social. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003. p. 342-343.
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