A Trajetória Da Economia Mundial PDF
A Trajetória Da Economia Mundial PDF
A Trajetória Da Economia Mundial PDF
da recuperação do pós-guerra
aos desafios contemporâneos
The trajectory of the world’s economy: from recovery
in the post-war period to contemporary challenges
Resumo Abstract
O presente texto constitui uma tentativa de inter- The present article is an attempt to understand the
pretação dos múltiplos fenômenos que caracteri- multiple phenomena that characterized the post-
zaram o período pós-guerra e as dinâmicas e veto- -war period and the dynamics and forces that have
res que levaram, a partir dos anos 1970, às profun- led, since the 1970s, to the deep transformations
das transformações que todos vivenciamos hoje. that all of us have been undergoing. In the
Na primeira seção, recuperamos os aspectos prin- first section, we address the main aspects that
cipais que demarcaram o advento da modernidade delimited the advent of modernity and the
e a consolidação do sistema-mundo capitalista, consolidation of the capitalist world-system,
com ênfase nas grandes mudanças econômicas do emphasizing the great economic changes at the
final do século XIX e início do século XX, bem co- end of the 19th century and beginning of the 20th
mo nas décadas de crise da primeira metade do sé- century, as well as the decades of crisis in the
culo anterior. Nas quatro seções seguintes, repas- first half of the past century. In the following four
samos criticamente todos os acontecimentos mais sections, the analysis focuses critically on the most
importantes ao longo da trajetória da economia important events throughout the trajectory of the
global, do pós-guerra até a atualidade (início da global economy, from the post-war period to the
segunda década do século XXI). Finalizamos com present (the beginning of the second decade of the
uma tentativa de avaliação da contemporaneida- 21st century). We conclude with an assessment
de, realçando os dilemas que a humanidade tem of contemporaneity, trying to emphasize the
pela frente. dilemmas that humanity will have to face ahead.
Palavras-chave: sistema-mundo moderno; urbani- Keywords: modern world-system; urbanization;
zação; crises de hegemonia; globalização financei- hegemony crisis; financial globalization; productive
ra; reestruturação produtiva. restructuring.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 17, n. 33, pp. 265-296, maio 2015
http://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2015-3312
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mercado de consumo verificada nos países é alimentado pelos demais. Crescimento eco-
centrais do capitalismo não teriam sido possí- nômico, elevação da produtividade, investimen-
veis sem a colocação em prática de um meca- to estatal, incorporação dos trabalhadores aos
nismo político, comandado pelos respectivos frutos do progresso, são todos fatores que o Es-
estados nacionais, pelo qual foi estabelecida tado do Bem Estar Social veio consolidar politi-
uma espécie de pacto social tripartite, englo- camente. Para os assalariados, a redistribuição
bando governo, empresários e trabalhadores. de renda traduziu-se em garantias trabalhistas,
Esse pacto esteve na base da existência do previdência e assistência social, educação e
Welfare State, ou Estado do Bem Estar So- saúde subsidiadas, habitação popular, mobili-
cial, e nele os empresários entravam com os dade e acessibilidade urbanas, equipamentos
empregos, salários em níveis aceitáveis e com públicos de lazer. Essa lógica de ação estatal
repasse – ao menos parcial – dos ganhos de também se verificou em alguns países perifé-
produtividade, e investimentos na elevação da ricos selecionados, como – no caso da América
capacidade produtiva. Os trabalhadores, por Latina – no Brasil, Argentina e México, nessa
sua vez, além de garantirem o cumprimento ordem de importância. Nesses, porém, seu al-
das cláusulas previstas nos seus contratos de cance e significado foram muito mais restritos
trabalho, comprometiam-se a moderar suas que nos países capitalistas industrializados, se-
reivindicações e circunscrevê-las nos estritos ja pela dimensão limitada de seu mercado for-
marcos das economias de mercado. Por fim, o mal de trabalho, seja pelo fato de sua taxa de
governo entrava como avalista dessas condi- exploração da mão de obra ser mais elevada,
ções e, por intermédio de um sistema tributá- tendo em vista sua origem colonial.
rio fortalecido, transformar receitas fiscais em
bens e serviços públicos à classe operária.
Essa estratégia política tinha como pano O poderoso bloco socialista
de fundo o propósito de afastar trabalhadores,
suas lideranças e organizações (os sindicatos) Por seu turno, o bloco socialista liderado pela
dos comunistas, pois os socialistas (a social- URSS (o “segundo mundo”) iniciava um vigo-
-democracia) já haviam sido em boa medida roso processo de reconstrução de seus países
neutralizados como força antissistêmica des- devastados pela guerra. A União Soviética, em
de o limiar da II Guerra. E, de fato, as reivin- particular, extrapolou seu projeto de poder
dicações trabalhistas, desde então, e por mais mundial anticapitalista originário da Revolu-
contundentes que se apresentassem, sempre ção de Outubro de 1917, dessa vez não mais
se circunscreveram nesses limites, relegando centrado na sublevação dos povos, mas princi-
o movimento sindical de esquerda nos países palmente no âmbito da competição interestatal
ricos – com poucas exceções – a um papel se- pela hegemonia global. Tal projeto pressupu-
cundário ou mesmo inexistente em termos das nha ingentes esforços de aparelhamento tecno-
relações de poder. lógico e militar, o que, nas bases stalinistas (de
Constitui-se, assim, um poderoso círculo Josef Stalin, mandatário soviético, 1878-1953)
virtuoso em que cada elemento potencializa e do regime, implicava a exacerbação das brutais
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periferia dos países capitalistas europeus de- reforma agrária) e do fortalecimento do merca-
pendentes, como Portugal, Espanha, Itália e do interno (Hobsbawm, 1995).
Grécia – e aqueles não pertencentes ao bloco Na América Latina, a Comissão Econômi-
socialista. Agrupava estados que integraram ca para a América Latina – Cepal, organismo
vastos impérios coloniais, povos subjugados da ONU, incorporou criativamente a teoria da
por séculos de colonialismo e atraso, que concorrência imperfeita e o pensamento de
buscavam, com a vaga da descolonização Keynes, provenientes do colapso do libera-
do pós-guerra e as reformas (e revoluções) lismo, para formular um pensamento original
características do períod o, um rumo autô- sobre a natureza do subdesenvolvimento que
nomo de desenvolvimento econômico e so- assolava nossas nações e propor saídas para
cial. Atualm ente, essa ampla periferia foi sua superação.
renomeada pelos organismos internacionais De acordo com a Cepal – que teve entre
como “países em desenvolvimento”. seus principais expoentes o economista argen-
Ademais, não raras vezes a independên- tino Raul Prebisch (1901-1986) e o brasileiro
cia ou a deposição de regimes títeres do im- Celso Furtado (1920-2004) –, o subdesenvolvi-
perialismo foi resultado também de lutas de mento não era um estágio na longa trajetória
libertação nacionais, lutas armadas conduzidas do desenvolvimento que todos os países teriam
por partidos ou movimentos que tinham o na- que percorrer. O subdesenvolvimento, pelo con-
cionalismo – com conotações mais ou menos trário, era uma condição, a qual só poderia ser
socializantes – como bandeira. O nacionalismo superada rompendo-se com a divisão interna-
como ideário político constituía um amálgama cional do trabalho que delegava a um grupo de
de concepções de poder e sociedade muitas países – o centro capitalista – a produção indus-
vezes contraditório, com programas genéricos, trial, e ao outro grupo, o fornecimento de maté-
mas que significava talvez a única via ideoló- rias-primas agrícolas e minerais. Diferentemen-
gica apta a unir populações tão heterogêneas, te do que preconizava a teoria das vantagens
parte delas escassamente integrada no curso comparativas, semelhante especialização do
da modernidade triunfante. comércio internacional não levava à prosperida-
O nacionalismo incorporado nos discur- de geral, mas sim ao empobrecimento e atraso
sos, objetivos econômicos e na constituição dos de uns (a periferia) e à concentração dos frutos
novos países e governos surgidos no pós-guer- do progresso técnico nos países centrais. Era
ra foi inevitavelmente traduzido em planos am- uma situação crônica que perpetuava a miséria
biciosos de desenvolvimento – também objeto e a dependência da periferia. Mesmo que uma
de disputas acirradas entre Estados Unidos e elevação da produtividade se verificasse nos
URSS visando apoio e financiamento –, cujo países pobres, os ganhos daí oriundos seriam
objetivo era, a um só tempo, recuperar o atraso exportados ao centro do sistema, cuja diversi-
histórico, elevar o padrão de vida de seus povos ficação da estrutura produtiva as tornava aptas
e garantir a autonomia de decisões sobre seus para absorver a demanda de bens de consumo
próprios destinos, por meio da industrialização e de equipamentos provenientes da periferia.
de base, do fomento agrícola (usualmentepela E qual era a saída para os países dependentes
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1950 e 1960, se multiplicaram, ao longo dos diante das doutrinas de supremacia militar e
1960 e na década seguinte, governos reformis- estratégica vigente e como mais uma peça
tas e esquerdistas que flertavam com ideias perdida no conflito com os soviéticos.
socialistas e estabeleceram, amiúde, relações Na África, após a Revolução de Abril de
de cooperação com a URSS. Esses governos 1974 em Portugal, o processo rápido de desco-
foram pródigosem nacionalizar empresas de lonização que se precipitou transformou todas
propriedade norte-americana ou tentar impor as ex-colônias lusitanas em países independen-
limites à sua atuação. As reformas incluíam – tes autointitulados socialistas, com explícito
ou projetavam – aumento da presença do Es- apoio soviético. Na Etiópia, por sua vez, um
tado na economia e alterações perigosas para governo de inspiração marxista se instalou à
os setores dominantes internos na correlação época, ao mesmo tempo em que muitas outras
de forças, em benefício de interesses popu- nações africanas estabeleciam relações amis-
lares. Para agravar o cenário de hostilidades, tosas com o bloco socialista. Por outro lado,
entre golpes militares de direita patrocinados movimentos guerrilheiros no território africano
pelos Estados Unidos e as reações da esquer- contavam com declarado apoio cubano ou pro-
da, ocorrem a vitória sandinista na Nicarágua fessavam ideais maoístas.
(1979) e a deposição da ditadura Somoza, Na Ásia, a derrota militar no Vietnã (abril
abertamente apoiada pelos americanos. Ha- de 1975) foi catastrófica para os Estados Uni-
via a ameaça do surgimento de uma segunda dos, depois de anos de vultosos recursos in-
Cuba na América Central, tradicional “quintal” vestidos e milhões de homens mobilizados, O
dos norte-americanos. Por último, um aconte- prestígio da superpotência – que se revelou
cimento de grande relevância política na Amé- vulnerável ante um adversário tremendamen-
rica Central, ocorrido à época da revolução te inferior em efetivos e material bélico – des-
nicaraguense – embora não se tratasse de um pencou e provocou na seqüência a queda de
episódio militar –, foram os tratados celebra- regimes pró-americanos no Laos e no Cambo-
dos em 1977 entre o presidente dos Estados ja, que instalaram ali governos pró-soviéticos.
Unidos à época, Jimmy Carter, e o presiden- Mesmo com a reaproximação da China com os
te do Panamá, Omar Torrijos, de devolução Estados Unidos a partir do encontro de Nixon
do Canal do Panamá e da região limítrofe de e Mao em 1972, a situação, do ponto de vis-
Bilbao à plena soberania panamenha. Essa ta dos interesses americanos na Ásia, era mais
região estratégica do istmo centro-americano que preocupante, ante o momentâneo avanço
constituiu, ao longo de um século, propriedade das posições soviéticas.
extraterritorial norte-americana em pleno es- Por fim, em se tratando da convulsiva
paço panamenho, de típico caráter neocolonial zona do Oriente Médio, o contexto não era
(assim como a Base de Guantánamo até hoje o mais favorável. Muito ao contrário. O sistemá-
é em território cubano). A retomada do Canal tico apoio norte-americano a Israel havia lhe
pelo Panamá, concluída em 1999, foi interpre- granjeado uma contumaz antipatia no seio das
tada pelos conservadores dos Estados Unidos populações árabes, refletida em grande parte
como mais uma derrota americana, inaceitável de seus governos. Hostil à causa palestina, os
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Fim dos acordos de Bretton Woods: A crise que conduziu ao fim do regime mone-
liquidez internacional descontrolada tário de Bretton Woods resulta da combina-
ção de dois fatores. Em primeiro lugar, o forte
Com o choque do petróleo em 1973, rompe- aumento da circulação de dólares devido aos
-se o precário equilíbrio que ainda sustentava sucessivos déficits do balanço de pagamen-
o ciclo virtuoso do pós-guerra. Inaugura-se um tos dos Estados Unidos. Em segundo lugar,
período de fortes restrições macroeconômicas o crescimento exponencial do mercado de
no núcleo industrializado do capitalismo. Os eurodólares (alimentado pelos petrodólares)
estados veem sua receita cair drasticamente, a partir da segunda metade da década ante-
a inflação se acelera, declina subitamente o rior, que leva à pressão da demanda global
nível de atividade. O desemprego aumenta as por ouro e ao aumento desordenado da liqui-
prestações sociais do Estado e os gastos com dez internacionalfora do controle do Federal
assistência e previdência pública. Isto é, ao Reserve– FED, o Banco Central americano. Es-
mesmo tempo em que se reduz a arrecadação, ses dois acontecimentos criaram um excedente
aumentam as despesas governamentais. Sem de dólares incompatível com o ouro disponi-
esquecer que a corrida armamentista continua bilizado como lastro para o dólar. Reflexo das
va demandando enormes somas de recursos enormes dificuldades estruturais dos Estados
públicos. A crise fiscal do Estado vai, doravante, Unidos para conduzir sua liderança nos marcos
minar a equação keynesiana que sustentou o até então fixados, o presidente Richard Nixon
crescimento do pós-guerra, alavancado pelo (1913-1994), em agosto de 1971, aboliu unila-
dispêndio público, e embasar as críticas neoli- teralmente o acordo de conversibilidade do dó-
berais à atuação do Estado na economia. lar em ouro. As moedas, a partir daí, passaram
As fases de contração do nível de ativi- a flutuar livremente, acrescentando um novo
dade usualmente provocam excesso de liqui- fator de instabilidade a uma conjuntura cheia
dez. O capital tem mais dificuldade em encon- de incertezas (Silver e Arrighi, 2014).
trar oportunidades lucrativas para investir seus Surge, então, um novo padrão monetá-
excedentes. Nos anos 1970, esse fenômeno, rio, que vai configurar as relações financeiras
oriundo da queda do produto interno das na- globais pelas décadas seguintes: o padrão dó-
ções industrializadas, foi significativamen- lar flexível. Ele demarca o início da chamada
te potencializado pelo excesso de recursos financeirização da economia global, ou seja, a
carreados para os países produtores de petró- volta, sob novos contornos, da grande finança
leo – na maioria países árabes –, gerandouma ao centro do poder, numa espécie de revanche
extraordinária liquidez proveniente da circula- contra aqueles que lutaram contra a liberdade
ção internacional dos chamados petrodólares. dos capitais na era pós-guerra (Chesnais, 2005;
No contexto de desvalorização do dólar, Furtado, 1999).
flutuação do valor das moedas e aumento da No entanto, a revanche da grande finan-
especulação com ativos, a manutenção da pa- ça não parava aí. Com liquidez de sobra, os re-
ridade cambial, que era a base da estabilidade cursos excedentes buscaram praças financeiras
financeira do pós-guerra, ficou insustentável. alternativas onde operar, que lhes garantissem
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para a inovação e a produtividade haviam sido conhecido, marcada pela luta de classes e, ao
eliminados pela centralização burocrático-au- longo da quase totalidade do século XX, pelo
toritária, criando imensos desníveis setoriais, conflito ideológico entre duas visões de mundo
por erros de planificação e vícios de execução. antagônicas (Anderson, 1992).
O insatisfatório atendimento das demandas e Adentra-se no período dominado por
a má qualidade (somado à escassez) dos pro- ideias e práticas neoliberais. Embora seja um
dutos alimentaram um regime de duplicida- termo cunhado pelos seus críticos e não pelos
de – a ficçãodos números e dos discursos e a adeptos dessas concepções, a doutrina neo-
realidade– e de mentiras oficializadas. O fim de liberal é usualmente associada à defesa do
uma era afigurava-se irreversível. Contudo, não livre mercado e ao combate ao intervencionis-
se esperava que a retirada estratégica fosse tão mo estatal. Nesse sentido, constitui tanto uma
desmoralizante, nem que os descomunais es- reação aos postulados marxistas de política
forços de mais de meio século viessem a ser re- econômica, quanto às concepções keynesianas
duzidos a pó. Chegava ao fim uma experiência (Pipitone, 2003).
original que, ao longo de mais de meio século, A aplicação do receituário neoliberal,
transformou completamente todos os aspectos promovido pelo núcleo dos países ricos en-
da vida de uma sociedade, independentemen- cabeçados pelos Estados Unidos e endossa-
te de seus vícios de origem e de execução. Foi do pelo Banco Mundial e o FMI, produziu um
um esforço sem paralelo histórico, nos seus efeito perverso sobre o mercado de trabalho,
objetivos, meios utilizados e sofrimentos cau- ao destruir milhões de postos de trabalho as-
sados. O desarmamento unilateral da URSS na salariado e substituí-los pelo trabalho precário,
década de 1980, o fracasso da perestroika e da terceirizado, gerando um saldo líquido de au-
glasnost,a autodissolução do Partido Comunis- mento do desemprego e do subemprego. Seu
ta e da própria União Soviética, bem como do viés político conservador também ficou eviden-
conjunto do bloco socialista a ela associado ex- ciado pelo ataque às conquistas históricas dos
pressaram, ao fim e ao cabo, a falência de um trabalhadores, privatizando serviços públicos,
modelo de transição pós-capitalista. flexibilizando direitos trabalhistas, pulverizan-
Desse modo, as mudanças ocorridas na do o movimento sindical e revertendo avanços
economia também acarretaram radicais reali- consolidados pelo Estado do bem-estar social.
nhamentos geopolíticos no planeta. O colapso Os ajustes ortodoxos, de inspiração neo-
do bloco socialista liderado pela URSS, que se liberal, monetarista, foram aplicados em mui-
consumaria até o final da década de 1980 (a tos países do mundo, em especial na América
queda do Muro de Berlim ocorreu em 9 de no- Latina e nos países pós-socialistas da Europa
vembro de 1989), aliado ao desmantelamento oriental. Tais políticas visaram garantir as con-
das economias do terceiro mundo, assoladas dições de operação do mercado livre para os
pela crise da dívida, levou certos analistas a fluxos de capital, principalmente externo, e
decretar o triunfo definitivo das economias de propiciar os meios de pagamento aos credo-
mercado e decretar o “fim da história”, pelo res da dívida externa, por meio de políticas
menos da maneira como até então a tínhamos contracionistas de forte restrição aos gastos
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e crise fiscal dos estados, saltam à vista os complexo entrelaçado um mundo globalizado,
problemas de ineficiência de muitos serviços cuja sociedade experimenta novas tecnologias
públicos, corrupção e burocratismo. Mas tudo de produção e de vida, diferentes perspectivas,
isso não implica, no horizonte previsível e nos novas formas de desigualdade, que se juntam
marcos do regime capitalista, a supressão, ou às antigas e as reconfiguram. O espaço geográ-
sequer a superação, dessas instituições vitais a fico é palco dessas intensas mudanças. Nele se
gestão do sistema. desenrolam os fenômenos da reestruturação
A moeda forte, as políticas industriais e produtiva que reagrupa recursos e população
tecnológicas e os mecanismos financeiros es- (Massey, 2005). A urbanização já concentra
tratégicos são resultado da ação do respectivo mais da metade da humanidade e dita o rumo
Estado nacional, e não de sua omissão ou defi- e o ritmo dos hábitos e esperanças dos povos.
nhamento político. Essa participação urbana no total da população
Assim, a estabilidade na economia mun- mundial deve alcançar 70% ou mais em 2050,
dial só pode ser conquistada e mantida por com um incremento de 3,5 bilhões de pessoas
meio do concurso decisivo dos estados na- em 2010 para 6,2 bilhões em 2050. Quase a
cionais, não só pela capacidade de regulação totalidade desse crescimento vai ocorrer em
macroeconômica e do conflito social, mas prin- megalópoles de países em desenvolvimento.
cipalmente por garantir legitimidade aos pro- Cidades nos países desenvolvidos adicionarão
cessos de gestão supra e subnacionais. É preci- apenas 160 milhões de pessoas à sua popu-
samente na articulação das diferentes escalas lação nesse período, enquanto as cidades dos
territoriais, entre o local e o global, que reside países menos desenvolvidos deverão absorver
a possibilidade de governança internacional na cerca de 2,6 bilhões de habitantes, duplicando
direção do interesse coletivo, que tem na ins- assim sua população urbana de 2,6 bilhões em
tância pública nacional, com a devida esfera 2010 (UNFPA, 2010).
de autonomia, o elo decisivo. Nesse contradi- A metrópole da atualidade pode ser de-
tório mosaico, o Estado nacional não perdeu finida como o entrecruzamento do espaço de
relevância, mas hoje ele compartilha seu poder lugares e do espaço de fluxos, o núcleo territo-
com outros atores. A construção institucional rial a partir do qual as redes de conexões físi-
desse complexo mundializado segue sendo cas e virtuais são produzidas e coordenadas. A
um desafio em aberto, e os conflitos, derivados cidade industrial-fordista se caracterizava pela
desse impasse, se multiplicam em todas as la- separação de usos, bem delimitados em ter-
titudes e longitudes do planeta (Chang, 2003; mos de sua função residencial (de luxo, classe
Brenner, 2004). média e popular), industrial, comercial, lazer e
Como vimos, os anos 1980 inaugura- de serviços. O eixo era a indústria: a circulação,
ram um conjunto de mudanças de grande as moradias, os corredores de abastecimento
repercussão na existência social. Alterações e distribuição, tudo girava em torno desse nú-
conjunturais, respostas momentâneas à crise, cleo estruturador do espaço urbano. Imperava
provocaram e se mesclaram a transformações o planejamento modernista, com seu traçado
estruturais, de maior fôlego, resultando desse de grandes vias retas de traçado ortogonal ou
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cidadesde muros, bairros degradados, privati- de interesses que se forma em torno dos inves-
zação do espaço público, áreas de valorização timentos imobiliários (financistas, incorporado-
que concentram edifícios de última geração, la- res, políticos, empresários da construção) alar-
zer conspícuo, ostentação de riqueza; em suma, gam seu poder de classe e ditam os rumos do
cidades que perdem rapidamente a capacidade crescimento urbano. Ao mesmo tempo, o artifi-
da vida em comum, da interação em paz e har- cialismo da demanda inchada e da especulação
monia social. com os preços provoca crises de superacumula-
Nesse sentido, pode-se afirmar que a alta ção, endividamento e um espectro de inadim-
rentabilidade dos projetos imobiliários consti- plências atrás de si. O capitalismo rentista co-
tui forte atrativo para inversões financeiras e bra seu preço. A crise do subprime nos Estados
investimentos estrangeiros diretos. As cidades Unidos, iniciada em 2007, é a mais recente e
competem entre si por esse tipo de inversão. A grave dessas manifestações de irracionalismo
diminuição do papel do Estado e do interesse dos mercados, conduzidas em benefício da plu-
público eleva a critério central – quando não tocracia dirigente.
exclusivo – da viabilidade das aplicações imo- As metrópoles globais materializam os
biliárias de capital a mais-valia (valorização) atributos da economia contemporânea, e sin-
fundiária, o verdadeiro parâmetro urbanístico tetizam suas contradições. Isso porque, se os
na construção do espaço urbano da atualidade. desdobramentos dos atuais avanços tecnológi-
Ademais, os capitalistas estão sempre cos viabilizam a descentralização da produção
produzindo excedentes financeiros, os quais industrial, eles reforçam, ao mesmo tempo,
necessitam, por força da competição, encon- a necessidade de integração dessa rede de
trar saídas para sua absorção na forma de in- unidades produtivas espacialmente dispersas
vestimentos lucrativos. O problema é que essa e, com ela, os requerimentos de uma coorde-
expansão ocorre em ritmo composto, a uma nação centralizada dessa rede. Da crescente
taxa aproximada de 3% ao ano. Então se trata complexidade dessa tarefa de dirigir unidades
de encontrar aplicação rentável para massas produtivas localizadas em diferentes contextos
crescentes de recursos, levando investidores a sociais e institucionais, em países com níveis
exercitar de forma frenética seus poderes de de desenvolvimento e contextos históricos tão
“destruição criativa” no sentido de sempre ala- desiguais, decorre a necessidade de subcontra-
vancar novas oportunidades de investimento tar os serviços legais, contábeis, administra-
(Harvey, 2011). tivos, mercadológicos, de gestão de pessoas,
Isso envolve necessariamente os espa- entre outros, os quais, até então, estavam di-
ços geográficos e, nesses, a urbanização ocupa retamente integrados à própria estrutura cor-
lugar proeminente. Novos espaços e relações porativa. Tais firmas de serviços produtivos e
espaciais são produzidos para dar vazão aos financeiros são mais tecnicamente exigidas
imperativos da acumulação de capital. Grandes quanto mais as empresas contratantes estejam
projetos de requalificação urbana e megaeven- submetidas a pressões competitivas em mer-
tos esportivos e culturais servem a esses pro- cados globais, o que requer decisões rápidas
pósitos. Os proprietários do solo e a coalizão e precisas em contextos voláteis. Para esses
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positivos ocorreram, em se tratando de saúde, que gira no mercado financeiro ultrapassa dez
educação e acesso da população a inovações vezes o valor da produção global em bens e
tecnológicas. A massificação do consumo de serviços. É preciso ressaltar também que os es-
computadores e de aparelhos de telecomunica- tados nacionais, embora sofrendo graves per-
ção abriu possibilidades inéditas de democrati- turbações na sua organização e funcionamen-
zação da informação. O controle da informação to, constituem peças estratégicas na produção
desencadeia disputas de poder típicos da nova das condições que tornam possível a globaliza-
era. O Estado é chamado a intervir também ção econômica e financeira. É principalmente
nesse campo, como único instrumento capaz no interior da máquina estatal que se gestam
de arbitrar interesses profundamente divergen- os mecanismos monetários, cambiais, comer-
tes, e incorporar, ao menos de forma parcial, ciais, fiscais e jurídicos que conectam o mun-
demandas coletivas. do, por meio das políticas de desregulação dos
Por seu turno, o mesmo Estado, submeti- mercados, privatização, livre trânsito de capi-
do à desqualificação neoliberal, demonstrou ser tais e remoção de barreiras comerciais, as quais
imprescindível à sobrevivência do sistema eco- fazem da economia mundial contemporânea
nômico-financeiro na sua configuração atual.
um mecanismo de concentração de renda, de
O poder público tem atuado decisivamente em privilégios à classe de rentistas e de criação de
socorro de grandes instituições financeiras nas espaços para a absorção lucrativa dos capitais
graves crises que assolam a economia global excedentes. Ao contrário de perderem poder,
desde as últimas décadas do século passado, setores do Estado nacional assumem novas
atenuando o efeito da inadimplência que atin- prerrogativas à custa da diminuição do espa-
ge países inteiros, como no caso de nações da ço que políticas mais tradicionais ocupavam
zona do euro. A contrapelo do receituário neo na balança política: é o caso da hipertrofia dos
liberal, o auxílio de último recurso do poder Ministérios da Fazenda e dos Bancos Centrais
público conduziu, no final da primeira década na estrutura dos governos, cuja relevância de-
desse século, a uma relativa recuperação – não cisória chega a ultrapassar o próprio peso dos
explicitamente admitida – do papel do Estado poderes legitimados pelo voto popular, como a
na economia, leia-se, como tábua de salvação presidência da república e o parlamento.
de poderosas instituições envolvidas no bilio- Tendências aparentemente paradoxais
nário jogo especulativo. Isso sem contar que desafiam a compreensão. Por um lado, a geo-
as mais expressivas economias do leste asiáti- grafia da desigualdade do capitalismo agrava
co – a começar pela China – jamais seguiram as iniquidades intra e inter-regionais, margina-
os dogmas do livre mercado, e o Estado, ali, lizando povos e nações dos supostos benefícios
sempreexerceu papel de relevo na condução da globalização. A intensa onda migratória de
da economia e na direção dos investimentos. países pobres de todos os continentes em di-
No fundo das recentes crises, encontra- reção à Europa ocidental, aos Estados Unidos
-se o fato de a órbita financeira especulativa se e ao Canadá, provoca pressões populacionais
descolar completamente da órbita real, a eco- de difícil assimilação nos grandes centros ur-
nomia produtiva. A massa volátil de recursos banos desses países, fomentando movimentos
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impulso pelo ganho rápido tem sido socialmen- tarefas mais importantes que desafiam o futuro
te gerido. Uma das consequências dramáticas humano seja recuperar o sentido do público, a
do consumo perdulário das riquezas naturais é esfera coletiva da existência, o que impõe re-
sentida pela deterioração rápida das condições formar o Estado, dotando-o de transparência,
de reprodução da vida na Terra. A mudança cli- mecanismos de gestão participativa e descen-
mática no planeta é decorrência de um padrão tralizada e do reforço dos instrumentos de re-
de crescimento econômico baseado na queima gulação da economia e do mercado. Para tanto,
de combustíveis fósseis e na deflorestação. Se a democratização e o criativo uso do espaço
na atual conformação esse padrão revela-se digital afiguram-se imprescindível. O rumo que
insustentável, mais ainda o é se generalizado os acontecimentos tomarão, a despeito de im-
para a totalidade dos países, pelo efeito que previsíveis, dependerá da energia dos grupos
provoca sobre a camada de ozônio e o con- de pressão sociais, do poder de influência dos
sequente aquecimento global. Por mais que a interesses permanentes da humanidade sobre
economia contemporânea alargue o consumo a ganância dos detentores da riqueza privada.
do espaço eletrônico, as pessoas têm uma Acima de tudo, na perspectiva da radical reor-
existência física e respondem a estímulos ma- ganização do espaço humano vital, cabe en-
teriais, que precisam ser satisfeitos por bens e carar corajosamente a questão fundamental:
serviços concretos. Em suma, talvez uma das avanços científicos para quê? E, para quem?
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