Greco - DP Inimigo
Greco - DP Inimigo
Greco - DP Inimigo
Luís Greco
Mestre pela Universidade Ludwig Maximilians de Munique, Alemanha; doutorando na
mesma instituição; wissenschaftlicher Mitarbeiter junto à cátedra do Prof. Bernd
Schünemann
1. Considerações introdutórias
Poucos temas provocam tomadas de posição tão decididas e apaixonadas quanto a idéia
do "direito penal do inimigo". Mas, curiosamente, a introdução do conceito por Jakobs
duas décadas atrás ou mal foi notada, ou foi aplaudida como uma "impressionante
1
defesa da liberdade dos cidadãos". Já a retomada do conceito por seu criador em
algumas publicações mais recentes caiu como uma bomba sobre a ciência do direito
2
penal, cujo estrondo só está sendo superado pelas veementes reações que a idéia está
gerando. O objetivo primário do presente estudo é menos a formulação de mais um
posicionamento neste já quase saturado debate, do que contribuir para a sua clareza
analítica. Parece-me que o tal direito penal do inimigo não é algo tão claro e unívoco
quanto geralmente se supõe, sendo necessário realizar algumas precisões para que o
debate possa tornar-se de fato fecundo. Dificilmente pode-se discutir a respeito de algo
que mal se sabe o que é.
Por isso resumirei, primeiramente, as idéias de Jakobs sobre o direito penal do inimigo
(abaixo 2), para depois sintetizar a discussão (alemã e internacional) em seus aspectos
essenciais (abaixo 3). Num terceiro momento procederei ao esclarecimento conceitual
que disse me parecer urgente (4), e apenas então procederei a uma avaliação da idéia
do direito penal do inimigo (5-7). O estudo concluirá pela quase total infecundidade do
conceito, de modo que melhor seria que ele voltasse a seu status prévio de opinião
isolada que habita no máximo notas de rodapé.
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do inimigo. Para Jakobs, é possível caracterizar o direito penal segundo a imagem de
autor da qual ele parte. O direito penal pode ver no autor um cidadão, isto é, alguém
4
que dispõe de uma esfera privada livre do direito penal, na qual o direito só está
autorizado a intervir quando o comportamento do autor representar uma perturbação
5
exterior; ou pode o direito penal enxergar no autor um inimigo, isto é, uma fonte de
perigo para os bens a serem protegidos, alguém que não dispõe de qualquer esfera
privada, mas que pode ser responsabilizado até mesmo por seus mais íntimos
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pensamentos. "O direito penal do inimigo optimiza proteção de bens jurídicos, o direito
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penal cidadão optimiza esferas de liberdade". Ao contrário de uma difundida opinião,
Jakobs não vê no princípio da proteção de bens jurídicos uma idéia liberal, mas o
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responsabiliza pelas cada vez mais freqüentes antecipações da proibição penal.
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Só serão legítimas aquelas criminalizações que respeitem a esfera privada do cidadão.
Apenas um comportamento que perturbe já objetivamente, isto é, externamente, que vá
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além dessa esfera privada do autor, pode vir a ser relevante para o direito penal. Se
for necessário recorrer a dados subjetivos ou internos para chegar à dimensão
perturbadora do comportamento, se o comportamento parecer externamente inofensivo,
só vindo a revelar-se problemático a partir de nosso conhecimento do que pensa ou
deseja o agente, então será o dado subjetivo que na verdade está fundamentando a
punição. Noutras palavras, está-se violando o princípio de que não se podem punir
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pensamentos: cogitationis poenam nemo patitur.
O artigo de 1985 cunha, portanto, o conceito de direito penal do inimigo com propósitos
primariamente críticos: a opinião dominante é atacada por sua atitude
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"despreocupadamente positivista". O direito penal do inimigo "só se mostra legitimável
como um direito penal de emergência, vigendo em caráter excepcional", e deve ser
também visivelmente segregado do direito penal do cidadão, para reduzir o perigo de
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contaminação. Na discussão que se seguiu à conferência, declarou Jakobs mesmo sua
esperança em que o direito constitucional avançasse a ponto de tornar o direito penal do
inimigo impossível, considerando uma tal interpretação da constituição já atualmente
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aceitável, se bem que não como a única que se poderia defender.
Não foram, porém, estas manifestações que acenderam a atual polêmica, e sim os
estudos mais recentes, que parecem relativizar em muito o tom crítico e, segundo a
interpretação que se lhes costuma dar, buscam mesmo uma extensa legitimação do
direito penal do inimigo.
Jakobs repete a antiga exigência de que direito penal do cidadão e do inimigo sejam
visivelmente separados, pois só assim se pode evitar que o direito penal do inimigo
19
penetre no direito penal do cidadão. Mas agora Jakobs sublinha que a distinção serve
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apenas a fins descritivos, e não críticos. Em seu estudo mais extenso, realiza Jakobs
uma incursão à história da filosofia política iluminista, de Hobbes até Kant, apresenta
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diversas fundamentações para um tratamento diferenciado para cidadãos e inimigos, e
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Sobre o chamado direito penal do inimigo
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em seguida formula a sua própria explicação. A seu ver, normas são, em primeira
linha, parâmetros de interpretação, que fazem do mundo da natureza um mundo de
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sentido ou de comunicação. É a norma que faz da causação de uma morte um
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homicídio, é ela que fundamenta a expectativa e a confiança em que tais fatos não
serão cometidos pelos outros, possibilitando, assim, a orientação num mundo complexo,
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e é ela que faz de um sistema psico-físico uma pessoa, que pode ser autor ou vítima
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de um delito. Tais atribuições não ocorrem no plano da natureza, e sim no da
comunicação, não sendo, portanto, falsificáveis em razão de contingências relativas aos
dados naturais ou fáticos - elas vigoram, portanto, também contra a natureza, contra os
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fatos: contrafaticamente.
Mas apesar desta estrita separação entre natureza e sentido, o plano do sentido não é
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tão independente do plano da natureza quanto se poderia à primeira vista imaginar.
Por ex., se homicídios fossem cometidos repetidamente, em algum momento estaria
afetada a confiança na vigência da proibição do homicídio. E o mesmo vale para a
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personalidade do autor. Pessoa, em Jakobs, é um termo técnico, que designa o
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portador de um papel, isto é, aquele em cujo comportamento conforme à norma se
confia e se pode confiar. "Um indivíduo que não se deixa coagir a viver num estado de
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civilidade, não pode receber as bençãos do conceito de pessoa". Inimigos são "a rigor
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não-pessoas", lidar com eles não passa de "neutralizar uma fonte de perigo, como um
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animal selvagem". Características do direito penal do inimigo são uma extensa
antecipação das proibições penais, sem a respectiva redução da pena cominada, e a
restrição das garantias processuais do estado de direito, tal qual é o caso principalmente
nos âmbitos da delinqüência sexual e econômica, do terrorismo e da chamada legislação
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de combate à criminalidade. Na mais recente manifestação, são mencionados como
ulteriores exemplos do direito penal do inimigo alguns pressupostos da prisão
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preventiva, as medidas de segurança, a custódia de segurança e as prisões de
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Guantánamo.
Mas não se pode esquecer que há passagens que podem ser entendidas como críticas.
Primeiro deixa Jakobs expressamente em aberto a pergunta quanto a se o direito penal
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do inimigo é conceitualmente direito. Em segundo lugar, o direito vigente ainda é
criticado em momentos isolados: a punição do acordo para praticar um crime segundo o
direito alemão (§ 30 StGB) é recusada, porque aqui se trata de direito penal do inimigo,
utilizado no lugar errado, pois aqueles que se comprometem uns com os outros a
praticar um fato criminoso não são necessariamente pessoas perigosas e
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desmerecedoras de confiança. Críticas similares são dirigidas ao tipo de associação
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criminosa ou terrorista (§§ 129, 129a). Não vejo, porém, outros exemplos de uma tal
utilização crítica do par conceitual direito penal do cidadão e do inimigo nos trabalhos
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Sobre o chamado direito penal do inimigo
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mais recentes.
3. A controvérsia na literatura
Até a virada do milênio, permaneceu o direito penal do inimigo uma figura quase que
ignorada. Ou se utilizava o conceito para descrever criticamente tendências da moderna
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legislação penal, ou se cuidava mais de problemas dogmáticos específicos. Houve
também uma tentativa isolada de formular condições de legitimidade de um inevitável
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direito penal do inimigo, tentativa essa que não atraiu atenção alguma.
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Ao que parece, os debates orais logo após a palestra nem foram tão calorosos, mas
não foi necessário esperar muito até que outros autores clamassem seu direito de
participar na discussão. Formularam-se os mais diversos argumentos, quase todos
apresentando, porém, um traço comum: uma postura crítica, para não dizer
escandalizada. Questionaram-se primeiramente as duas premissas empíricas da
argumentação de Jakobs, a saber, que o direito penal do cidadão só poderia ser salvo se
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dele fosse separado o direito penal do inimigo, e que inexistiria qualquer alternativa ao
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direito penal do inimigo. Perguntou-se, ademais, se a diagnose em si crítica do direito
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penal do inimigo não acabaria, de alguma maneira, por legitimá-lo. Outros tentaram
valer-se da categoria para criticar determinados fenômenos, como os agentes infiltrados,
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a custódia de segurança, a europeização do direito penal ou o direito penal
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internacional. Mas o alvo principal das críticas foi o suposto direito do estado de
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recusar a seres humanos o status de pessoa: o conceito do direito penal do inimigo
significaria uma volta a idéias nacional-socialistas a respeito da exclusão de
determinados grupos, apresentando uma problemática semelhança a certas concepções
de Mezger ou ao pensamento com base nas categorias amigo/inimigo, de Carl Schmitt;
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a concepção mal seria constitucionalmente aceitável, ou mostrar-se-ia de todo
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inapropriada para um estado de direito; ela justificaria sistemas totalitários atuais ou
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futuros; ele representaria a pior forma de terrorismo, o terrorismo estatal; ela
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configuraria um inadmissível direito penal de autor. Contra quase todos os outros
aspectos do conceito formularam-se adicionais objeções: o direito penal teria que
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permanecer estranho a quaisquer idéias bélicas; a idéia do direito penal do inimigo
seria demasiado imprecisa e de todo inadequada ao sutil trabalho dogmático e
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político-criminal de que necessita o direito penal moderno; a rigor, o direito penal do
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inimigo sequer seria conceitualmente direito penal ou direito; a idéia decorreria de
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raciocínios circulares; tratar indivíduos como inimigos não seria funcional para
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reestabilizar a norma violada em sua vigência; o problema do controle dos inimigos
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Sobre o chamado direito penal do inimigo
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não poderia ser resolvido pelo direito penal, mas sim por outros ramos do direito.
Ofereceram-se também várias diagnoses: o direito penal do inimigo seria conseqüência
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de um excessivo eficientismo, mas apesar disso ineficaz; ele decorreria do
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funcionalismo de Luhmann, para qual apenas interessa a manutenção do sistema, ou
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de uma combinação entre o direito penal simbólico e o direito penal punitivista; ou ele
representaria nada mais do que a estrutura geral dos discursos jurídico-penais
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autoritários.
Já vimos as idéias de Jakobs e as reações que elas provocaram, de modo que o normal
seria agora expor a própria opinião. Mas é exatamente isso que não deve aqui ocorrer: a
tese central deste estudo é que a discussão atualmente em curso padece de uma
fundamental falta de clareza conceitual. E o primeiro que se tem de fazer é corrigir este
erro, somente então se podendo ensaiar um posicionamento em face das verdadeiras
questões.
É primeiramente possível ver no conceito de "direito penal do inimigo" nada mais do que
um instrumento analítico para descrever com mais exatidão o direito positivo. Algumas
normas de nosso ordenamento jurídico seriam então caracterizadas como direito penal
do inimigo, o que não significaria serem elas boas ou ruins por causa disso. Uma tal
utilização seria própria de um conceito descritivo de direito penal do inimigo.
Em segundo lugar, pode-se utilizar o termo "direito penal do inimigo" para fazer mais do
que meramente caracterizar determinados dispositivos. Ao considerar uma certa regra
de direito penal do inimigo, pode-se estar almejando estigmatizá-la como especialmente
anti-liberal e contrária ao estado de direito, apontando, assim, para a necessidade de
sua reforma. Essa segunda possibilidade de emprego da palavra direito penal do inimigo
será aqui chamada de crítico-denunciadora.
Existe, porém, uma terceira maneira de trabalhar com o conceito "direito penal do
inimigo", que é a de formular uma teoria de seus pressupostos de legitimidade e afirmar
que estes estariam predominantemente satisfeitos na realidade. Em outras palavras:
esse terceiro caminho declararia o direito penal do inimigo algo legítimo. Chamar um
dispositivo de direito penal do inimigo não implicaria qualquer condenação, mas apenas
uma indicação de que o dispositivo tem de ser legitimado com base em pressupostos
diversos daqueles que valem para os dispositivos tradicionais do direito penal do
cidadão. Neste último caso, ter-se-ia um conceito legitimador-afirmativo do direito penal
do inimigo.
Agora torna-se quase natural formular duas perguntas. A primeira: de qual conceito de
direito penal do inimigo parte o criador do termo? A segunda: a qual conceito de direito
penal do inimigo referem-se os diversos participantes da discussão?
Ou seja, há muito a favor da tese de que as meras descrições de Jakobs na verdade não
se limitam a descrever, e de que o conceito de direito penal do inimigo é utilizado
predominantemente de modo legitimador-afirmativo. Em face disso, não podemos nos
espantar com o fato de que Jakobs seja na maioria das vezes assim entendido e, por
isso, duramente criticado. Suas declarações de que nada mais faz do que descrever têm
algo do lavar as mãos de Pilatos, que também acreditava apenas verificar qual a vontade
do povo. De qualquer modo, parece-me recomendável renunciar à pretensão de
interpretar univocamente o ponto de vista de Jakobs, e isso por duas razões. A primeira,
mais fraca, é a certeza de que, em razão da ambigüidade acima apontada, seria
necessário um esforço enorme para chegar à interpretação correta - se é que ela existe.
Mas como estamos lidando com um autor vivo, estaria compreendido primariamente em
sua esfera de competência (para utilizarmos um conceito jakobsiano), e não na nossa,
expor com clareza as suas idéias. Como diz Jakobs acertadamente: "nem tudo incumbe
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a todos". Mas a razão decisiva para que se evite um enfoque exclusivo no conceito
legitimador-afirmativo do direito penal do inimigo é o estreitamento de horizontes que
isso acarretaria. Afinal, parece bem possível que o conceito apresente outras
possibilidades de utilização que o tornem de alguma maneira útil. E só se poderá saber
ser este o caso, se analisarmos com cuidado também essas outras possibilidades.
É hora de nos voltarmos para a avaliação do "direito penal do inimigo" como conceito
legitimador, crítico ou meramente descritivo. Pouco importa, assim, de que maneria o
criador vê a sua criatura, e tampouco como ela é vista pelos participantes da discussão.
Ela pode ser vista de três maneiras, ela é empregada em diferentes momentos para três
diversas finalidades, e agora interessa-nos distingui-las com clareza uma das outras e
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Sobre o chamado direito penal do inimigo
Não seria errôneo objetar que o que acabo de dizer não passa de uma recusa ingênua e
pouco diferenciada, pois seria necessário fundamentar melhor o que é e o que não é
"autoritário". É disso que agora nos ocuparemos. A rigor, o conceito
legitimador-afirmativo de direito penal do inimigo é insustentável por duas razões, a
primeira de índole epistemológica, a segunda de índole pragmática. A estas duas razões
poder-se-ia adicionar uma terceira - na verdade, um feixe delas - de caráter mais
retórico, que, por um lado, não tem a meu ver importância tão decisiva, mas, por outro,
pode ser útil para convencer os que não estiverem dispostos a acatar a teoria de limites
ao direito penal da qual parto.
existem e que devem existir no direito penal. Assim, p. ex., a criação de barreiras
psíquicas à prática geral de condutas indesejadas é chamada de prevenção geral
negativa ou intimidação. E diante de fenômenos mais problemáticos, como a
inocuização/incapacitação ou as medidas de segurança, parece mais aconselhável
trabalhar não com o conceito bélico de inimigo, mas sim com outras categorias. Ou seja,
mesmo onde se trata de controlar perigos oriundos de um determinado agente, não é
necessário recorrer ao conceito do direito penal do inimigo; e se tentarmos utilizá-lo,
veremos nossas dificuldades aumentadas pelas obscuridades oriundas não apenas dos
próprios problemas, mas principalmente da palavra direito penal do inimigo, que parece
apta a legitimar quase que automaticamente qualquer intervenção estatal imaginável.
102
A terceira razão - como acima disse - tem caráter mais retórico. A rigor, ela me parece
estar de todo contida na primeira razão, que chamei de epistemológica. Como não posso
contar com uma aceitação geral das premissas quase metafísicas da posição
epistemológica aqui rapidamente esboçada, acrescento considerações que podem ter e
já vêm tendo bastante relevância na discussão. É bem questionável se o conceito de
inimigo é compatível com a imagem de ser humano da qual parte nosso ordenamento
103
jurídico. Pode-se apontar para a história autoritária de concepções fundadas na
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distinção entre amigo/inimigo. A estigmatização de grupos inteiros de seres humanos
como "diferentes", a segregação entre "nós" e "eles" a que estas idéias levam - nada
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disso promove a necessária atitude de tolerância e humanidade. As incertezas em que
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estão envolvidas as prognoses de periculosidade são de todo ignoradas pela idéia do
direito penal do inimigo, que tampouco leva em conta a possibilidade de que tais
prognoses atuem seletivamente e produzam criminalidade que depois dizem combater.
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Muitos outros argumentos formulados pelos participantes da discussão podem ainda
aqui ser mencionados: por ex., pontos de contato com o nacional-socialismo, referências
às várias lesões a direitos humanos praticadas atualmente pelo estado, ou a possíveis
sistemas totalitários, presentes ou futuros. Poder-se-ia traçar mais alguns paralelos que
ainda não parecem ter sido vistos, p. ex., apontando para as semelhanças entre a idéia
do direito penal do inimigo e as considerações do civilista Karl Larenz sobre a
personalidade enquanto "conceito concreto", que se aplicaria ao "companheiro do povo"
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(Volksgenosse), e não a "estranhos" (Fremde), ou lembrando a idéia do estado duplo,
cunhada criticamente por Ernst Fraenkel para caracterizar o sistema nacional-socialista:
neste funcionaria, de um lado, uma ordem segundo os princípios do estado de direito,
que se ocuparia dos problemas que interessam às classes dominantes, enquanto dos
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inimigos cuidaria uma ordem estatal diversa e sem qualquer restrição.
Dificilmente. O problema do conceito descritivo do direito penal do inimigo é que ele mal
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parece possível. Afinal, a palavra "inimigo" é tão carregada valorativamente, que
parece muito difícil empregá-la apenas para descrever. A mera utilização da palavra já
parece criar automaticamente divisões e polarizações, que ameaçam envolver até
mesmo aquele que supostamente descreve em sua irresistível dinâmica. De modo quase
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Sobre o chamado direito penal do inimigo
que natural vê-se aquele que acaba de utilizá-la forçado ou a legitimar a atribuição da
qualidade de inimigo, ou a denunciá-la criticamente. Por isso não podemos estar
surpresos com o fato de que Jakobs, apesar de repetir que está apenas descrevendo, na
verdade seja entendido por quase todos como alguém que esteja já legitimando.
Poder-se-ia objetar que estou conferindo à palavra "inimigo" um caráter quase mágico
que ela, na verdade, não possui. Não seria claramente possível usar esta palavra sem
tomar posição em favor de quaisquer das partes conflitantes? No dia-a-dia, dizemos que
gato e rato são inimigos naturais; na história, fala-se em geral de inimizades entre
pessoas e nações; e "quem é inimigo de quem" é um dos principais assuntos da adorável
prática da fofoca. Devo admitir que, em tais contextos, é fácil assumir o papel de
terceiro distante e imparcial. Ao conversar sobre Tom e Jerry, não se está
automaticamente ao lado de Tom ou de Jerry, e tampouco toma-se partido quando se
fala dos conflitos étnicos na Iugoslávia ou dos dois professores que não se
cumprimentam, apesar de se verem diariamente. Mas uma tal atitude distanciada é
especialmente difícil ao se lidar com o direito penal, e isso por duas razões.
Primeiramente, lidamos com o direito penal não na qualidade de terceiros
desinteressados, mas na de penalistas, isto é, ou de dogmáticos do direito penal ou de
filósofos do direito penal. O penalista dogmático vai extrair de sua interpretação do
direito positivo diretrizes para como o juiz deve decidir, e o penalista filósofo vai discutir
em especial sobre a pergunta a respeito de em que condições a pena se mostra legítima.
As duas atividades jurídicas pressupõem, assim, no mínimo uma tomada de posição
tácita em face do ordenamento jurídico-penal, que, no caso do dogmático, será
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necessariamente afirmativa, enquanto no caso do filósofo pode também ser crítica (se
112
ele for um abolicionista). Mas nenhum penalista consegue limitar-se a descrever, e se
ele tentar extrair de algum conceito descritivo uma diretriz para decisões judiciais ou
uma fundamentação para a legitimidade da pena, já abandonou ele o plano da descrição
e passou para o da valoração - deslocamento esse imposto pela própria lógica (pois de
descrições não é possível deduzir valorações), ocorra ele de modo manifesto ou oculto.
Mas há uma adicional razão contra o uso descritivo do conceito de direito penal do
inimigo na ciência do direito penal. Chamemo-la de razão pragmática, porque ela se
refere a algo que corresponde amplamente àquilo que designamos com esse nome no
apartado anterior: o conceito descritivo de direito penal do inimigo parece ou
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Sobre o chamado direito penal do inimigo
dispensável ou analiticamente pouco preciso. Não está claro qual a relação entre o novo
conceito de direito penal do inimigo e a conhecida idéia de direito penal de autor, nem
tampouco se ainda há espaço para o primeiro depois do reconhecimento desta na
discussão jurídico-penal. E quando a tarefa é analisar com cuidado setores problemáticos
como, por ex., as medidas de segurança, o conceito de direito penal do inimigo pouco
nos avança além do que já se obtinha com conceitos como "incapacitação",
"periculosidade", "criminoso habitual" etc. O critério metodológico conhecido como a
"navalha de Ockham" desaconselharia a que se introduzissem despreocupadamente
novos conceitos, sem que ao menos houvesse uma possibilidade de que eles se
mostrassem úteis de alguma forma. De qualquer forma, o ônus argumentativo cabe a
quem introduz o novo conceito, de modo que temos o direito de permanecer céticos a
seu respeito.
É claro que este terceiro conceito de direito penal parece ser o mais atraente; afinal,
uma aguda autocrítica faz-se necessária em vários setores, e não apenas na dogmática
da tentativa. Na ciência jurídico-penal, é ainda por demais sensível a tendência de, ao
fim, dar de qualquer modo razão ao legislador ou à jurisprudência. Poder-se-ia, por ex.,
levar adiante as poucas, mas cada vez mais freqüentes críticas que se formulam ao
indefinível bem jurídico da saúde pública no direito penal de tóxicos, perguntando para
que outras finalidades não declaradas a criminalização do consumo de tóxicos serve. É
de suspeitar-se que aqui o que interessa primariamente é a tabuização de formas de
vida que fogem dos padrões a que se apega a maioria, noutras palavras, que se está
instrumentalizando ilegitimamente o direito penal para finalidades moralistas - suspeita
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Sobre o chamado direito penal do inimigo
essa que é fortalecida pelo fato de que 2/3 dos cursos empregados pela persecução
penal de tóxicos na Alemanha se dirigem contra pequenos consumidores ou traficantes.
122
E as ainda bem raras críticas à transação penal, pela evidente violação aos princípios
123
do estado de direito que ela compreende, poderiam muito bem ser complementadas
pela pergunta quanto às finalidades não confessadas a que elas de qualquer modo
servem. Talvez se descubra muito de não tão agradável, como p. ex. aquilo que disse
um juiz da Baviera num seminário de direito penal na Universidade Ludwig Maximilians,
de Munique: uma vez que, no dia-a-dia da justiça, quase inexistem absolvições, o juiz
tampouco tem de se preocupar com a possibilidade de que o acusado seja de fato
inocente.
Estes exemplos, que seguramente não poderão contar com uma aceitação geral, por
motivos de espaço tampouco poderão ser fundamentados tal como a rigor seria
necessário. Peço ao leitor que me perdoe essa aparente leviandade, alegando que meu
intuito com estes exemplos foi elucidar a possibilidade de dirigir críticas agudas a certos
institutos do direito penal. Esta possibilidade só ficaria de todo clara se as críticas
tivessem como objeto teorias majoritariamente aceitas: afinal, uma teoria que ninguém
defende não precisa ser tão severamente denunciada.
Dois aspectos ficam, assim, claros. Primeiro, o conceito de direito penal do inimigo pode
ser utilizado no sentido de denunciar criticamente certos institutos do direito penal.
Segundo, uma severa autocrítica é algo de que a ciência do direito penal urgentemente
necessita. O exato teor da pergunta que temos diante de nós é, portanto, o seguinte:
necessitamos do conceito crítico de direito penal do inimigo para a necessária autocrítica
do direito penal? Penso que não.
Uma prova em favor do que se está dizendo é o fato de que o estudo que Jakobs
escreveu em 1985, no qual o conceito de direito penal do inimigo é utilizado várias vezes
de modo crítico, mal foi levado em conta. Para ficarmos com a dogmática da tentativa: a
crítica à opinião dominante, que fora denunciada como direito penal do inimigo,
125
permaneceu amplamente ignorada. Apenas cerca de 15 anos depois escutam-se
126
vozes que exigem uma similar limitação à punibilidade da tentativa inidônea. Estas
novas manifestações fundamentam-se agora não mais no conceito difamatório do direito
penal do inimigo, mas noutros fundamentos. E por isso não pode surpreender que a
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opinião dominante aceite o desafio e dê início a uma discussão fecunda e sóbria.
Também nos dois exemplos de crítica denunciadora que acima apresentei - o
questionamento dos fins ocultos do direito penal de tóxicos e da transação penal - não é
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Sobre o chamado direito penal do inimigo
De qualquer modo, pode-se responder que, em alguns casos, a única reação adequada é
uma difamação apaixonada e decidida. Pense-se no enjaulamento de prisioneiros de
guerra pelos EUA em Guantánamo; na guerra agressiva movida contra o Iraque,
violadora de todos os pressupostos de direito internacional; na pena de morte, ainda
existente em muitos países; nas prisões preventivas intermináveis e nos prolongamentos
de prazos prescricionais a que são submetidos suspeitos de envolvimento com crimes da
ditadura militar, na Argentina, e que foram recentemente legitimadas mesmo pela corte
128
constitucional; na tortura de presos e de suspeitos pela polícia até mesmo em países
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de primeiro mundo, como a Alemanha; nos esquadrões da morte, ativos em muitas
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cidades latino-americanas. De fato: diante de tais fenômenos, não é possível exagerar
nas críticas. Aqui, a única atitude correta é a de decidida e intransigente recusa. Mas
para manifestar uma tal atitude, não se precisa do conceito de direito penal do inimigo.
É necessário apenas explicitar que tais fenômenos desrespeitam os mais básicos e
fundamentais limites a qualquer exercício legítimo do poder estatal. O conceito de direito
penal do inimigo seria, na melhor das hipóteses, um conceito intermediário dispensável,
uma etiqueta, que aponta para o desrespeito aos limites invioláveis acima mencionados,
este, sim, decisivo. Chamar, num segundo momento, este desrespeito de direito penal
do inimigo não implica de maneira alguma num ganho de precisão analítica ou de
potência crítica.
8. Conclusão
Com isso chegamos ao resultado de que o conceito de direito penal do inimigo não pode
pretender um lugar na ciência do direito penal. Ele não serve nem para justificar um
determinado dispositivo, nem para descrevê-lo, nem para criticá-lo. Como conceito
legitimador-afirmativo, ele é nocivo; como conceito descritivo, inimaginável; como
conceito crítico, na melhor das hipóteses desnecessário.
14. A teoria ou sequer mencionada nos atuais manuais e comentários (por ex., SK-
Rudolphi, vor § 22/11 e ss., § 22/24 e ss.) ou é recusada com parcas palavras (por ex.,
Jescheck/Weigend, Lehrbuch des Strafrechts, 5.ª ed., Berlin, 1996, p. 530).
25. Jakobs, Strafrecht, Allgemeiner Teil, 2. Aufl., Berlin / New York, 1993, § 1/4; cf.
ademais Luhmann, Rechtssoziologie, 3.ª ed., Opladen, 1987, p. 43, para o qual normas
nada mais são que expectativas de comportamento estabilizadas contrafaticamente.
26. Cf. Jakobs, ZStW 107 (1995), p. 848: "A 'destruição de uma vida humana' é, em si,
nada mais que simples natureza; apenas uma norma, fundamentada no que quer que
seja, faz do sistema psico-físico 'ser humano' um ser humano, que não pode ser morto
sem fundamento"; além disso, p. 859.
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Sobre o chamado direito penal do inimigo
27. Cf. Jakobs, Schuld und Prävention, Tübingen, 1976, p. 10; Strafrecht..., § 1/6.
30. Sobre o conceito de papel, cf. Jakobs, Tätervorstellung und objektive Zurechnung,
in: Dornseifer u. a. (ed.), Gedächtnisschrift für Armin Kaufmann, Köln, 1989, p. 271 e
ss. (p. 286); Handlungsbegriff..., p. 39; ZStW 107 (1995), p. 859; La imputación
objetiva en derecho penal, trad. Cancio Meliá, Madrid, 1996, p. 97; Personalidad..., p.
73. Observe-se que, nos escritos mais recentes, há um progressivo afastamento de um
conceito sociológico, fundado em posições sociais, em favor de um conceito jurídico,
referido a direitos e obrigações.
36. Jakobs, Staatliche Strafe..., p. 42. Esta medida de segurança que em alemão se
chama Sicherungsverwahrung é prevista no § 66 do StGB, consistindo numa privação de
liberdade imposta a pessoas consideradas perigosas que pode ser aplicada inclusive
depois do cumprimento de pena privativa de liberdade.
46. Inicialmente já nas discussões orais após a primeira conferência, cf. Ambos, Bericht
über die Diskussion zum Thema "Das Selbstverständnis der Strafrechtswissenschaft
gegenüber den Herausforderungen ihrer Zeit", in: Eser et ali, Strafrechtwissenschaft...,
p. 101 e ss. (p. 106); mais detalhadamente Jakobs, Staatliche Strafe..., p. 46.
47. O fato de que o direito penal internacional seja considerado direito penal do inimigo
(cf. Jakobs, Staatliche Strafe..., p. 47 e s.), não pode de modo algum ser univocamente
visto como uma crítica.
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Sobre o chamado direito penal do inimigo
48. Muitos falam até de uma aceitação geral na doutrina, cf. LorenzSchulz, ZStW 112
(2000), p. 653 e ss. (659); Schünemann, GA 2001, p. 211; cf. ademais a nota de
rodapé 1.
50. Hirsch, no mesmo local, pp. 921, 922; Lampe, idem, 923; Tiedemann, idem, p. 924.
52. Pelo que vejo, a única manifestação crítica veio de Callies, idem, p. 921.
53. Hassemer, Das Schicksal der Bürgerrechte im "effizienten" Strafrecht, in: StV 1990,
p. 328 e ss. (p. 329); P.-A. Albrecht, Das Strafrecht auf dem Weg vom liberalen
Rechtsstaat zum sozialen Interventionstaat, in: KritV 1998, 182 e ss. (p. 202); Frehsee,
Die Strafe auf dem Prüfstand. Verunsicherungen des Strafrechts angesichts
gesellschaftlicher Modernisierungsprozesse, StV 1996, p. 222 e ss. (p. 227).
56. Jakobs, Derecho penal ciudadano y derecho penal del enemigo, in: Jakobs/Cancio
Meliá, Derecho penal del enemigo, Madrid, 2003, p. 19 e ss. Este estudo corresponde ao
segundo trabalho citado à nota 19.
57. Síntese em Ambos, Bericht..., p. 101 e ss. (p. 103 e ss.) e Nuzinger/Sauer,
Tagunsbericht: Die deutsche Strafrechtswissenschaft vor der Jahrtausendwende, in: JZ
2000, p. 407 e ss. (p. 407).
58. Schulz, ZStW 112 (2000), p. 662; Kunz, "Gefährliche" Rechtsbrecher und ihre
Sanktionierung, in: Festschrift für Eser, München, 2005, p. 1375 e ss. (p. 1389);
Prittwitz, Derecho penal del enemigo: análisis crítico o programa del derecho penal?, in:
Mir Puig/Corcoy Bidasolo (Hrsg.), La política criminal em Europa, Madrid, 2003, p. 107 e
ss. (p. 119).
59. Schünemann, GA 2001, 212; Prittwitz, Derecho penal del enemigo..., p. 118.
60. Puppe, em Nuzinger/Sauer, JZ 2000, p. 407; Schulz, ZStW 112 (2000), p. 663 s.
63. Prittwitz, Nachgeholte Prolegomena zu einem künftigen Corpus Juris Criminalis für
Europa, in: ZStW 113 (2001), p. 774 e ss. (p. 795); contra, Lüderssen, Europäisierung
des Strafrechts und gubernative Rechtssetzung, GA 2003, p. 71 e ss. (p. 79).
64. Daniel Pastor, El derecho penal del enemigo en el espejo del poder punitivo
internacional, 2004 (no prelo), texto à nota de rodapé 47 e ss. Este artigo, bem como os
demais trabalhos inéditos que abaixo menciono, serão citados não a partir do número de
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página, mas sim do número da nota de rodapé a que corresponde o trecho a que me
refiro.
65. Schünemann, GA 2001, p. 211 e ss.; Muñoz Conde, El derecho penal del enemigo,
México D. F., 2003, p. 28; Velásquez Velásquez, El funcionalismo jakobsiano: una
perspectiva latinoamericana, 2004 (palestra inédita), texto à nota de rodapé 83 e ss.
67. Ambos, Der allgemeine Teil des Völkerstrafrechts, 2.ª edição, Berlin, 2004 (1.ª
edição 2002), p. 62; Demetrio Crespo, Del "derecho penal liberal" al "derecho penal del
enemigo", Nueva Doctrina Penal, Buenos Aires, 2004/A, p. 47 e ss. (p. 50); Pastor,
Derecho penal del enemigo..., texto à nota de rodapé 111.
68. Ambos, Der allgemeine Teil..., p. 62; Prittwitz, Derecho penal del enemigo..., p. 119.
70. Cancio Meliá, "Derecho" penal del enemigo? p. in: Jakobs/Cancio Meliá, Derecho
penal del enemigo..., p. 57 e ss. (p. 94, p. 100 e ss); Hefendehl, La criminalidad
organizada como fundamento de un derecho penal de enemigo o de autor, in: Derecho
penal y criminología 75 (2004), Colômbia, p. 57 e ss. (p. 64); Demetrio Crespo, Del
derecho penal liberal..., p. 50.
71. Prittwitz, Krieg als Strafe - Strafrecht als Krieg, in: Festschrift für Lüderssen, 2002,
p. 499 e ss. (p. 513); diversamente, H. Schneider, Bellum Justum gegen den Feind im
Inneren?, ZStW 113 (2001), p. 499 e ss., pp. 504, 506, 515, que quer valer-se da teoria
escolástica da guerra justa no lugar do direito penal do inimigo, por ele considerado uma
concepção belicista.
73. Cancio Meliá, "Derecho penal del enemigo..., p. 99; Pastor, Derecho penal del
enemigo..., texto à nota de rodapé 111.
76. Pastor Derecho penal del enemigo..., texto à nota 112 e ss.; Kunz, Gefährliche
Rechtsbrecher..., p. 1392.
78. Portilla Contreras, Fundamentos teóricos del derecho penal y procesal-penal del
enemigo, in: Jueces para la democracia 49 (2004), p. 43 e ss.
81. Silva Sánchez La expansión del derecho penal, 2.ª edição, Madrid, 2001, pp. 164,
166.
83. A ela dedica-se em especial Prittwitz, Derecho penal del enemigo..., p. 110 e ss.
84. Comumente interpreta-se Jakobs como sendo crítico em 1985, mas afirmativo nas
manifestações mais recentes: assim, por ex., Prittwitz, ZStW 113 (2001), p. 795;
Derecho penal del enemigo..., pp. 108 e 111, onde é dito de modo bastante plástico: "...
se Jakobs declarou em sua palestra de 1985 guerra ao ilegítimo direito penal do inimigo,
em 1999 a declaração de guerra se dirigiu mais aos inimigos da sociedade"; H.
Schneider, ZStW 113 (2001), p. 504; Schünemann, GA 2001, p. 211. Mais de acordo
com o ponto de vista aqui proposto, Aponte, Krieg..., p. 136: a primeira manifestação
seria, de fato, crítica, mas as atuais ambíguas.
85. Ressaltei noutra sede esta ambigüidade como o defeito fundamental da abordagem
Jakobsiana: Greco, Cumplicidade através de ações neutras, Rio de Janeiro, 2004, p. 39.
Ela também é relevada, no que se refere ao conceito de direito penal do inimigo,
acertadamente por Aponte, Krieg..., p. 131, p. 134.
86. Referindo-se ao conceito de direito penal do inimigo, cf. acima, nota 24;
genericamente ou referido a outras questões, por ex., Jakobs, Über die Behandlung von
Wollensfehlern und von Wissensfehlern, in: ZStW 101 (1989), p. 516 e ss. (p. 536):
trata-se apenas de "uma nova interpretação do direito penal, tal como ele existe"; Das
Schuldprinzip, Opladen, 1993, p. 30; ZStW 107 (1995), p. 848, nota 10, e p. 855.
87. Assim o jargão mais recente, de índole ainda mais normativista, cf. Jakobs, ZStW
107 (1995), p. 845.
90. Por "falácia naturalista" entende-se o erro lógico oriundo de ignorar a impossibilidade
de extrair conclusões normativas (dever ser) de premissas descritivas (ser). Por ex.,
diz-se: "todo homem é infiel; logo, devo ser infiel". A premissa limita-se a verificar um
estado de coisas, tais como elas são (a geral infidelidade masculina); a conclusão,
porém, formula diretrizes a respeito de como as coisas deveriam ser (como eu devo me
comportar). A rigor, uma tal argumentação apresenta uma premissa escondida, de
índole normativa, que possibilitará que a conclusão seja formulada em linguagem
normativa. No nosso exemplo, essa premissa seria "eu devo me comportar como todo
homem se comporta". Bem se vê que aqui está o ponto mais vulnerável do silogismo,
pois não é de modo algum evidente que tal dever exista. Mas, num argumento que
comete a falácia naturalista, essa duvidosa premissa normativa acaba sendo ocultada e,
com isso, subtraída à crítica, uma vez que não consta explicitamente da dedução. Afinal,
esta falaciosamente finge partir apenas de premissas descritivas. (Sobre a falácia
naturalista, já clássico, Hare, The language of morals, Oxford, 1952 [reimpr. 2001], p.
27 e ss.) Da mesma forma, parece-me que em Jakobs tudo depende da premissa
normativa oculta de que a "identidade normativa da sociedade deve ser mantida", a qual
é, no mínimo, bastante questionável.
91. Cf. Jakobs, Strafrecht..., § 20/22, onde se diz que o que importa é se a convicção do
autor contrária ao ordenamento jurídico "pode ser explicada contornando o autor, sem
dano para a ordem jurídica".
94. Jakobs, Regressverbot beim Erfolgsdelikt, in: ZStW 89 (1977), p. 1 e ss. (p. 30).
95. Também Ferrajoli, Diritto e ragione, 5.ª ed., Roma, 1998, fala numa epistemologia
do direito penal do estado de direito (p. 5 e ss.), mas sua teoria apresentar traços
positivistas e convencionalistas, enquanto a de que aqui se parte é fortemente tributária
do pensamento kantiano, sem, contudo, acatar a teoria da retribuição, tal qual é o caso
entre a maioria dos autores que hoje se inspiram nas idéias de Kant. Uma exposição
mais extensa das premissas de que aqui se parte não é possível nesta sede. Faço
remissão à minha tese de doutorado ainda não concluída sobre "Lebendiges und Totes in
Feuerbachs Straftheorie" (O vivo e o morto na teoria da pena de Feuerbach), parte C II
e III.
96. Cf. Kant, Kritik der reinen Vernunft, 2.ª edição, editada por Raymund Schmidt,
Hamburg, 1990 (orig. 1787) B 3 e B 4; Höffe, Immanuel Kant, 5.ª edição, München,
2000, p. 54; Naucke, Rechtsphilosophische Grundbegriffe, 4.ª. edição, Neuwied/Kriftel,
2000, p. 71; Notizen zur relativen Verbindlichkeit des Strafrechts, in: Festschrift für E. A.
Wolff, Berlin etc., 1998, 361 e ss. (364 e ss.).
97. Apenas para esclarecer as diferenças fundamentais (para mais detalhes, remeto
outra vez à minha inacabada tese de doutorado, cf. nota 95) entre a concepção de que
aqui se parte e a de outros autores de inspiração kantiana, seja dito que, aqui, aquilo
que é categórico, inviolável, apriorístico, numa palavra, absoluto, é considerado apenas
limite, mas não fundamento de uma pena legítima. Isso significa que, por um lado, nem
toda punição que respeite estes limites já será legítima, enquanto, por outro, nenhuma
punição que não os respeite o será. A rigor, está-se aqui tomando a idéia de Roxin,
segundo a qual se deve renunciar à concepção "bilateral" do princípio da culpabilidade
(como limite e fundamento) em favor de uma "unilateralidade" (como mero limite) (cf.,
com essa terminologia, Roxin, Zur Problematik des Schuldstrafrechts, ZStW 96 [1984],
p. 641 e ss. [p. 654]), generalizando-a, ao levá-la a outras garantias que não apenas a
culpabilidade, e fortalecendo-a, ao fundar estas garantias em considerações originadas
na razão pura, não empírica. Por isso a opinião de que aqui se parte escapará à teoria da
retribuição, típica entre kantianos (para uma crítica da teoria da retribuição cf.
especialmente Roxin, Sinn und Grenzen staatlicher Strafe, in: Strafrechtliche
Grundlagenprobleme, 1973, p. 1 e ss. [p. 3 e ss.]; = Sentido e limites da pena estatal,
trad. Natscheradetz, 2.ª edição, Lisboa, 1993, p. 15 e ss. [17 e ss.]).
98. Kant, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (Edição Könemann), Köln, 1995, p. 24.
103. Sobre a imagem de ser humano de que parte a Lei Fundamental alemã, que em
muito coincide com a nossa Constituição Federal (LGL\1988\3), cf. Enders, Die
Menschenwürde in der Verfassungsordnung, 1997, p. 17 e ss., p. 45 e ss.; sobre a
imagem de ser humano no direito em geral, ArthurKaufmann, Das Menschenbild im
Recht, in: Festschrift für Schüler-Springorum, 1993, 415 e ss. (421).
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104. Carl Schmitt, Der Begriff des Politischen, 1933, p. 7; sobre os traços autoritários
destas idéias, Rüthers, Carl Schmitt im Dritten Reich, 2.ª edição, 1990, pp. 78, 110,
133, 136 (onde se pergunta: "Não terá o pensamento com base na dicotomia
amigo/inimigo de qualquer modo um instrumento que também incluía o possível
homicídio dos judeus declarados "inimigos"?); referindo-se especificamente ao direito
penal do inimigo, cf. acima, nota 66.
106. Cf. a respeito de tais problemas em geral, Bock, Prävention und Empirie - Über das
Verhältnis von Strafzwecken und Erfahrungswissen, in: JuS 1994, p. 89 e ss. (p. 94,
nota 31); Schöch, Kriminologische Grenzen der Entlassungsprognose, in: H.-J. Albrecht
etc. (ed.), Festschrift für Kaiser, Berlin, 1998, p. 1239 e ss. (p. 1248 e ss.).
107. Tal era a conhecida tese do chamado labeling approach, cf. fundamental Howard S.
Becker, Outsiders. Studies in the sociology of deviance, Glencoe, 1973 (orig. 1963), p.
9; bem mais radical, Sack, Selektion und Selektionsmechanismen, in: Kaiser etc. (ed.),
Kleines Kriminologisches Wörterbuch, 3.ª edição, Heidelberg, 1993, p. 462 e ss. (p.
468).
108. Larenz, Rechtsperson und subjektives Recht, in: Larenz (ed.), Grundfragen der
neuen Rechtswissenschaft, Berlin, 1935, p. 225 e ss. (p. 244). A respeito,
detalhadamente, Rüthers, Die unbegrenzte Auslegung, 5.ª edição, Heidelberg, 1997, em
especial p. 329 e ss.
109. Fraenkel, Der Doppelstaat, 2.ª edição, Hamburg, 2001, pp. 49, 119, 142.
110. Também Muñoz Conde, Derecho penal del enemigo..., p. 29, recusa o conceito
descritivo, mas não por sua impossibilidade, e sim porque limitar-se a descrever seria
própria de uma compreensão tecnocrática da ciência jurídico-penal, que faz do jurista
um mero "notário". "Tal corresponde a descrever o funcionamento de uma cadeira
elétrica, sem se manifestar a favor ou contra a pena de morte".
111. Ainda que essa atitude de aprovação seja dirigida não a cada dispositivo
individualmente, mas apenas à generalidade destes dispositivos. Sobre o problema da
responsabilidade do dogmático, especialmente delicado no caso de sistemas autoritários,
Gimbernat, Hat die Strafrechtsdogmatik eine Zukunft?, ZStW 82 (1970), p. 379 e ss.
(408 e ss.).
112. O contra-senso seria o dogmático querer adotar uma atitude abolicionista, que é
desmentida cada vez em que ele declara que a solução de determinado caso é a
condenação.
113. Cf. os estudos em Bilsky et ali (eds.), Fear of Crime and Criminal Victimization .
Stuttgart, 1993; ademais Gabriel, Furcht und Strafe, Baden Baden, 1998, p. 62 e ss.;
Hassemer/Reemtsma, Verbrechensopfer, München, 2002, p. 109.
115. Cf. Felson, Crime and everyday life, 2.ª edição, Thousand Oaks etc., 1998, p. 10,
que chama esse fenômeno de "not-me fallacy".
116. Clássicos aqui Taylor/Walton/Young, The new criminology, London, 1973, p. 33;
ainda sobre a tensa relação entre criminologia e direito penal, de modo mais moderado,
mas ainda assim crítico, P.-A. Albrecht, Kriminologie, 2.ª edição, München, 2002, p. 93 e
ss.; Kunz, Kriminologie, 3.ª edição, Bern etc., 2001, § 3/15.
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117. Cf. por ex. Kaiser, Kriminalpolitik ohne kriminologische Grundlage?, in: Stree et ali
(ed.), Gedächtnisschrift für Schröder, München, 1978, p. 481 e ss. (p. 489 e ss.).
118. Cf. com mais referências Jescheck/Weigend, Lehrbuch..., p. 514 e ss., e Eser, in:
Schönke/Schröder, Strafgesetzbuch, 26.ª edição, München, 2001, Vorbem § 22/22.
119. A teoria da impressão diz que o fundamento de punição da tentativa é que esta já
gera uma impressão negativa entre os cidadãos, perturbando a vigência do ordenamento
jurídico, e esta impressão tem de ser neutralizada por meio da pena (cf. os autores
citados à nota anterior). Com isso, justifica-se também a punição de tentativas
inidôneas, também chamados crimes impossíveis, salvo nos casos em que o fato seja
animado por uma vontade supersticiosa (a chamada tentativa supersticiosa). Exemplo:
atirar num cadáver com vontade de matá-lo já seria punível, enquanto fazer um
despacho para que a sogra morra ficaria isento de pena, porque apenas na primeira
hipótese teríamos um fato apto a perturbar o sentimento geral de segurança dos
cidadãos.
120. Por ex., Michael Köhler, Strafrecht, Allgemeiner Teil, Berlin etc., 1997, p. 456 e ss.;
Bottke, Untauglicher Versuch und freiwilliger Rücktritt, in: Roxin / Widmaier, 50 Jahre
BGH-FS..., p. 135 e ss. (que, em face ao princípio da proteção de bens jurídicos, exige
convincemente a isenção de pena de todas as tentativas inidôneas, pp. 139, 151, 153,
158); Hirsch, Untauglicher Versuch und Tatstrafrecht, in: Schünemann et ali (eds.),
Festschrift für Roxin, Berlin/New York, 2001, p. 711 e ss. (que não quer punir tentativas
ex ante não perigosas, p. 720 e ss.). Também a proposta de Roxin, no sentido de
determinar o fundamento de punição da tentativa não mais de modo unitário, mas sim
diferenciadamente para a tentativa idônea e inidônea ( Roxin, Strafrecht, vol. II..., §
29/11), leva ao final das contas a que se problematize a punibilidade da tentativa
inidônea (§ 29/17). Mas Roxin acredita poder ainda assim fundamentá-la (§ 29/18 e
ss.).
124. Cf. o livro de Ingo Müller, Furchtbare Juristen ("Juristas terríveis"), München, 1989.
127. P. ex., Herzberg, Zur Strafbarkeit des untauglichen Versuchs, in: GA 2001, p. 257 e
ss.
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129. Que inclusive encontrou defensores, por ex. Brugger, Vom unbedingten Verbot der
Folter zum bedingten Recht auf Folter?, in: JZ 2000, p. 165 e ss. (p. 168 e ss.); contra,
com razão, Neuhaus, Die Aussageerpressung zur Rettung des Entführten: strafbar!, in:
GA 2004, p. 521 e ss. (p. 533 e s.); Saliger, Absolutes im Strafprozess? Über das
Folterverbot, seine Verletzung und die Folgen seiner Verletzung, in: ZStW 116 (2004), p.
35 e ss. (p. 48).
130. Para mais exemplos, Muñoz Conde, Derecho penal del enemigo..., p. 10 e ss., 19 e
ss. e Aponte, Krieg..., p. 196 e ss.
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