Inventário Poético - Hilda Hilst PDF
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Para Deleuze, escrever não é impor uma forma a uma Teu duro trote.
matéria vivida, mas, ao contrário, esse ato está do lado É assim, cavalinha
do inacabamento. E o devir assinala essa transmutação,
num processo infinito, trâmite gerador de um devir- Que me virás buscar?
mulher, devir-animal ou vegetal, devir-molécula, e até
Ou porque te pensei
um devir-imperceptível. “Devir não é atingir uma forma
(identificação, imitação, mimese), mas encontrar a zona Severa e silenciosa
de indiscernibilidade ou de indiferenciação [...] O devir
Virás criança
está sempre ‘entre’ e no ‘meio’”14. Segundo o filósofo,
não há um processo mimético, transfusão representativa Num estilhaço de louças?
entre os meios, pois não se imita um animal ou uma
planta, mas este trabalho origina-se de “linhas de fuga”, Amante
na medida em que, no processo da escrita, animal, planta Porque te desprezei?
e homem são, de forma intercambiada e concomitante,
adulterados pela palavra poética. “É, antes, um encontro Ou com ares de rei
entre dois reinos, um curto-circuito, uma captura de Porque te fiz rainha?16
código onde cada um se desterritorializa”15.
Pode-se pensar na progressão desse trânsito de
disfarces duplos: prisão/ liberdade, repulsa/ desejo,
saber/ conhecer, homem/ animal, homem/ planta como
13 Ibidem, 97.
43
14 Gilles Deleuze, Crítica e clínica, p.11
15 Gilles Deleuze; Claire Parner, Diálogos, p. 36. 16 Hilda Hilst, Op. Cit., p. 41.
facetas imbricadas que culminam com a desfiguração 1960 e, possivelmente, alguns resíduos desse trabalho
mortuária: adquiriram outros matizes e significações sob o viés da
poesia.
Funda, no mais profundo osso.
A retirada de rótulos estanques, presente na obra, é um
Fina, na tua medula operador teórico para se ler a poesia hilstiana, porque
temas são desvirtuados, subvertidos de seus valores
No teu centro-ovo. Rasa, poça d’água oriundos do senso comum e postos em devir, a exemplo
Tina. Longa, pele de cobra, casca. da morte multifacetada e transitória. Em uma de suas
crônicas publicadas no Correio Popular de Campinas, a
Clara numas verticais, num vazado de sol autora sintetiza seu conceito metapoético associado à
Da tua pupila. Paciente, colada às pontes máscara:
Ao longo da obra, notam-se algumas propriedades Para Octavio Paz, tudo que se explicita por meio de
referentes à música, desde objetos musicais como: palavras e linguagem necessita de um credenciamento
bandolim, alegoria para o labor metapoético; “feixe no mundo, pois “a primeira coisa que o homem faz diante
de flautas”, que representa um dos nomes da Morte e de uma realidade desconhecida é nomeá-la, batizá-la.
o toque de cornetim propagado pela inominável, até Aquilo que ignoramos é o inominado”24. Alfredo Bosi
o uso de metáforas-conceito, “semente de som”, que especifica o discurso do escritor mexicano ao designar
reforçam o teor minimizado da morte. ao poeta a tarefa de atribuir nomes às coisas: “O poeta é
o doador de sentido”25. Segundo a concepção do crítico,
Dentre as formas de expressão lírica, a ode – do grego o poder poético de nomear aplica-se como forma de
oidê, que significa canto – constituiu-se como verso a resistência aos discursos hegemônicos, às ideologias
ser cantado e acompanhado por instrumento musical, e dominantes que tendem a silenciá-lo num cenário de
apresentava-se como subgênero que comportava uma produção capitalista. Dessa maneira, a maquinária
diversidade métrica. Dessa maneira, não possuía forma poética simboliza o espaço da reinvenção da língua,
fixa. Era também concebida enquanto celebração, lugar de renomeação. É a esse exercício da possibilidade
exultação e, por isso, expressava com grandiloquência de inversão do signo, de (re)batizar o inominado, que a
um determinado tema. palavra hilstiana se refere:
46
24 Octavio Paz, O arco e a lira, p. 37.
23 Hilda Hilst, Op. Cit., p.45. 25 Alfredo Bosi, O ser e o tempo da poesia, p. 163.
Fulva “máscara tripla”, presente nos versos “Máscara tripla/
Persigo tua cara e carne”27. Pretende-se, por meio
Feixe de flautas
dessa leitura, especular como as duas facetas fixas (do
Calha feminino e do animal) são somadas a uma terceira que,
supostamente, representaria as sombras da voz poética
Candeia
representadas pela indagação sobre sua própria morte,
Palma, por que não? ofício metapoético. Ademais, o três também ratifica o
número de partes do livro.
Te recriar nuns arco-íris
Da alma, nuns possíveis
Cristiane Grando (2003), ao estudar o processo criativo
de Da morte. Odes mínimas sob a ótica da crítica
Construir teu nome genética, afirmou que os poemas e aquarelas iniciais
não compõem o projeto pioneiro, primeira edição,
E cantar teus nomes perecíveis
que previa cinquenta poemas. Para a pesquisadora,
Palha é errôneo ler a obra constituída por quatro partes e,
consequentemente, composta por cinquenta e seis
Corça
poemas. Já para Fátima Gazzaoui (2003), a parte
Nula somatória de poesia e aquarelas é integrante, pois a
abertura sugere o formato de prelúdio, “como ensaio,
Praia um modo de afinar os instrumentos antes de iniciar
Por que não?26 efetivamente a peça e, com isso, se permite englobar
variações e incertezas; um momento dedicado ao
A ode é um esboço do que será decantado ao longo das preparo, no qual o sujeito se predispõe psiquicamente à
três partes seguintes. Os verbos “batizar”, “nomear”, execução da obra”28. Opta-se por ler essa estrutura aqui
“chamar”, “recriar”, “construir”, “cantar” apontam para como suplemento.
a mutabilidade conceitual do tema a ser tratado e, por As Odes mínimas foram escritas para se comemorar os
estarem no infinitivo, acentuam os objetivos do projeto cinquenta anos de Hilda Hilst. O rigor para cumprir com o
poético. O estágio efêmero e desfigurado do conceito de planejamento de escrever cinquenta poemas encontra-
morte é encontrado em “Cantar teus nomes perecíveis”. se num dos escritos de sua agenda – arquivada no Fundo
As duas listas desarraigadas dos nomes da Morte Hilda Hilst do Centro de Documentação Alexandre
assinalam componentes lexicais descontínuos dentro de Eulálio – que revela a urgência, o compromisso e o labor
cada conjunto. As máscaras mortuárias, figurinos mais compulsório da poeta em finalizar sua produção: “Não
recorrentes em devir de vegetal (“palma”), devir animal consigo escrever meus poemas sobre a morte. Só tenho
(“corça”) e devir feminino (“insana”, “fulva”, “nula”) 31. Faltam 19” (Agenda Imprimo, 12 janeiro 1979) e
antecipam os inúmeros nomes que a Morte assumirá ao “terminei meus 50 poemas no dia 18 de abril” (Agenda
longo das odes. Imprimo, 21 de abril 1979). Esse duplo referencial
É válido notar que a ode I possui o número três formatado,
que pode ser comparado ao conceito mortuário 47
27 Hilda Hilst, Da morte. Odes mínimas, p. 51.
28 Fátima Ghazzaoui, O passo a carne e a posse: uma leitura de Da morte.
Odes mínimas, p. 5.
26 Hilda Hilst, Op. Cit., p.25.
construído (idade e número de textos) aparece cavalinha, Nula, Palavra viva, Pequenina, Poesia, Praia,
inferencialmente na ode VIII: Prisma, Púrpura, Riso, Rosto de ninguém, Sonido, Sorte,
Tempo, Torpe, Túrgida-mínima, Unguento, Velhíssima-
[...] Pequenina, Ventura. Esses termos coletados compõem
um dicionário onomástico com verbetes provisórios para
Linhos, cal tua cara a morte, configurados enquanto máscaras mutantes
Lenta tua casa assumidas ao longo dos poemas.
Tal poema permite resgatar questões iniciais deste Por influência dessa atopia, o suplemento inicial das
ensaio no que se refere à familiaridade da morte, Odes mínimas – não numerado e não nomeado –
representação do duplo. Com intuito de atualizar, ver de desobedece a taxonomia regente e classificatória das
outro ângulo esse enfoque, faz-se necessário considerar outras partes porque – conforme ressaltou Fátima
as palavras de Simone Rufinoni: “A morte encontra-se Ghazzaoui – o tema da morte nessa seção ainda não
dessublimada por um lado, devido à familiaridade, e se enuncia denotativamente. Dessa forma, a parte
ressublimada por outro, devido ao medo que desponta preliminar funciona como catálogo, microbestiário
do fracassado contato, do blefe da relação de amizade poético ou, talvez ainda, serve de pranchas para uma
com aquele que é inimigo por excelência”31. antienciclopédia ilustrada da morte.
Há, segundo Rufinoni, travestimentos figurativos e O inclassificável é também suscitado em uma das
conceituais da Morte caracterizados respectivamente perguntas delegadas à Morte: “Como te emoldurar?”33.
Interrogativa que aponta para a necessidade pictórica
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30 Hilda Hilst, Da morte. Odes mínimas, p. 53. 32 Maria Esther Maciel, Poéticas do inclassificável, p. 158.
31 Simone Rossinetti Rufinone, Lírica da morte, p. 85. 33 Hilda Hilst, Da morte. Odes mínimas, p. 33.
do conceito, materialização mortuária. O que possibilita
esboçar, de forma metonímica, figurações que
convergem para um conceito geral da obra, ainda que
perecível. Ao se considerar a comunicação entre sujeito
poético e o devir-animal mortuário, o aspecto transitório
das máscaras e as constantes indagações acerca do
tema, a ode IV de “Tempo-Morte” e a ilustração sugerem
uma rica metáfora:
GHAZZAOUI, Fátima. O passo, a carne e a posse: ensaio sobre STAIGER, Emil. “Estilo lírico: a recordação”. In: Conceitos
Da morte. Odes mínimas, de Hilda Hilst. Dissertação (mestrado) fundamentais da poética. 3.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
– Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da 1997.
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.