Santos, Irinéia. Nos Domínios de Xangô.
Santos, Irinéia. Nos Domínios de Xangô.
Santos, Irinéia. Nos Domínios de Xangô.
Além da violência física, segundo Rafael, houve roubo de “muitos dos objetos
utilizados pelos filhos de santo nos cultos”, “desviados em função do seu valor econômico,
como pulseiras e braceletes de prata, e anéis de ouro cravejados de pedras semipreciosas”.
Desses, até hoje “não se sabe o paradeiro”. A onda de violência perdurou ainda por dias, na
capital e no interior. O trauma ocasionou, além do fechamento das casas de culto, a dispersão
de babalorixás e ialorixás para outros estados. Teria provocado mudanças significativas nos
rituais, com o surgimento do que seria chamado, posteriormente, por Gonçalves Fernandes e
reutilizado por Ulisses Rafael, de Xangô Rezado Baixo. Um ritual de mesa para os orixás,
sem o uso do tambor, tocando-se apenas com palmas, de modo muito silencioso. O
conhecimento do evento do Quebra e o resgate dessa memória tem para a história das
religiões negras em Alagoas uma importância político-cultural, como também uma
importância psíquico-social para a população negra na cidade. O “ajuste de contas” com o
passado seria ainda essencial para a retomada da valorização do indivíduo negro, de sua
religiosidade e culturalidade em Alagoas.
Em pesquisa de campo nos terreiros da cidade, atualmente, percebia-se que nem todos
tinham conhecimento ou memória do fato. Os mais velhos teriam se calado sobre o evento,
não repassando a história para os mais jovens, inclusive não gostando de mencioná-lo.
Poucos guardariam ainda a memória daqueles que vivenciaram o Quebra. Somente em 2008,
alguns deles foram ouvidos e seus depoimentos registrados. Mãe Celina (Maria Celestrina da
Silva), ialorixá nascida em 1919, frequentava os terreiros desde os 14 anos (1923), foi
iniciada com 37 anos (1956) pelo babalorixá Seu Rubilho e pela ialorixá Dona Capitulina.
Conta que seu pai de santo,
Tinha raiva da história do quebra-quebra, não gostava de ver falar. Dizia que
era um desrespeito, não pediam licença pra entrar, e entrava quebrando tudo,
pisando com os pés, [ele] alcançou isso, não gostava, tinha revolta. (...) De
Tia Marcelina eu não tenho conhecimento, nem de nada dela... A religião dela
era diferente da mãe Capitulina, então a gente não tomava parte de nada, era
guerra de uns saber mais que os outros, ser mais do que outra, combatia muito
contra ela, e a gente [os filhos de santo] ficava quieto. (GIRA DA
TRADIÇÃO, 2008)
Mãe Josefa (Josefa Severiano dos Santos), nascida em 1925, veio do interior do
Estado para Maceió com 13 anos de idade (1938), frequentando os terreiros desde então.
Também foi iniciada por Seu Rubilho. Segundo ela, “pra gente que é da seita, antigamente
era tudo escondidinho de porta fechada”. Ao se lembrar dos antigos contava que,
[um dia] Seu João Trangola a polícia pegou ele. Ele não batia [tambor], ele
tocava nas cabacinhas, e a polícia chegou e levou ele. [mandavam] grite: “eu
sou macumbeiro da Ponta Grossa”, e levava uma lapada. Ia gritando até a
delegacia, com a panela [os assentamentos] na cabeça, aquele sofrimento. (...)
Chico Foguinho, Zé Raimundo, João Trangola, tudo era neguinho, tudo vivia
escondido, tocando só naquela cabacinha. Aqui se sofreu muito. Já do meu
tempo pra cá não foi tão perigoso. Mas antes [saíam] gritando “macumbeiro
safado, macumbeiro sem vergonha”, fizeram até comer a obrigação. Aqui foi
muito rigoroso. Eu ainda alcancei, eu conheci os zeladores, eu ia pros centros
deles, mas tudo era por debaixo do pano, fechava a porta, e olhava de um lado
pra outro, pra ver se não estava [sendo vigiado]... (GIRA DA TRADIÇÃO,
2008)
Viu-se, nos depoimentos de Mãe Celina e Mãe Josefa, que após o Quebra, manteve-se
o culto na cidade mesmo com muitas dificuldades, com alterações das práticas rituais, sob
muita vigilância e repressão. Pai Célio de Iemanjá (Célio Rodrigues dos Santos), nascido em
1962, sobre isso comentou em entrevista,
Nesse período, acaba-se, extingue-se praticamente o culto ao orixá. É
nesse período que minha avó [Maria Garanhuns] chega aqui, em 1930 que o
candomblé está ressurgindo. Porque o candomblé vai ter uma grande
influência do culto ao caboclo, ou seja, para se cultuar o orixá, eles
colocavam a mesa com vários santos da igreja católica, com copos d’água
para qualquer coisa, qualquer dia... E isso perdurou por muito tempo... Eu
digo que ele ressurge em 1923, 1925, ressurge com Dona Balbina de Abalueí,
Dona Lucrécia de Oxum Meji, e outras senhoras do Prado. Ele ressurge mais
ou menos no Prado, e quando ressurge vem outra lambada que é a
interferência de Vargas, acabando também com o candomblé. Então, essas
quebras políticas e culturais vão interferir na parte religiosa e obviamente, na
parte cultural. Como a gente tinha passado de 1912, quase duas décadas,
praticamente, sem ter atividade religiosa, então aquilo se acaba, se apaga,
muita gente ficou decepcionada com o barracão, fechou o candomblé. Não
podia se tocar. Eu lembro que a minha avó dizia que a mãe de santo dela
[Dona Maria Teresa] foi feita dentro da mata, ali onde hoje é o Pinheiro.
Levaram ela pra ali e fizeram toda a obrigação num dia só. A obrigação de
um mês, pra fazer em um dia... Chegar de madrugada na mata, sair na
boquinha da noite, porque não podia fazer, não podia tocar, não podia nada,
tudo tinha que ser feito lá. Depois foi liberado, apenas de tarde. O candomblé
ficou com essa marca. Inclusive, o Xambá no Recife só toca de tarde. Por
conta das coisas daqui, ficou ainda essa marca. Eles tocam de 4 horas pra 6 e
meia, 7 horas saem de lá pra ir embora. (ENTREVISTA, 2010)
Como parte de um processo histórico mais amplo, poder-se-ia afirmar então que o
Quebra de Xangô em Alagoas, no início do século XX, exemplificaria de modo extremo toda
a sorte de violência, repressão e perseguição, desencadeada durante a República Velha e o
período Vargas aos cultos afro-brasileiros. As religiões afro-brasileiras sofreram
transformações políticas, econômicas e sociais que atingiram a cidade de Maceió no período.
Vale lembrar que essas primeiras décadas foram marcadas por uma série de conflitos entre as
elites políticas locais, que lutavam para manter o poder e o controle do Estado. A expansão e
a urbanização da cidade se iniciaram a partir dos anos 1930, o que também influenciou a
alteração da geografia das periferias da cidade, empurrando a população para os extremos
(“as pontas”) das orlas e cidade alta. O Quebra-Quebra teria sido também responsável pelo
fim de muitos folguedos e manifestações da cultura negra popular na cidade. Na pesquisa de
Ulisses Rafael sempre há referência de folguedos de carnaval e outros que eram preparados
nos terreiros. Cita, por exemplo, os pais de santo João Catirina e Manoel Inglês, ambos
“mestres de maracatu” (RAFAEL, 2004, 35). Em 1974, escrevia Abelardo Duarte que
“desapareceu de vez do carnaval alagoano o maracatu” (DUARTE, 1974, 351). Esse
folguedo teria deixado de existir ainda na primeira metade do século. Somente na primeira
década do século XXI, em 2009, este folguedo voltou a ser produzido em Maceió. Entre
outros grupos, foi criado por Pai Elias de Airá (Everaldo Geraldo de Melo), o Nação
Maracatu Corte de Airá.
O antigo nagô, modificado pelos “anos de silêncio”, recebeu também nos anos 1950 a
influência da Umbanda Branca, vinda do Rio de Janeiro. Além do umbandista Seu Rubilho
que, segundo os informantes, atuava entre Alagoas, Rio de Janeiro e Brasília, teria sido muito
importante a chegada na cidade de Mãe Jurema. Segundo Pai Célio,
(...) É uma ialorixá poderosa, poderosa que eu digo, branca, de nível
social elevado. O esposo dela veio comandar o 20º BC que hoje é o 59º
Batalhão de Infantaria Motorizada do Exército. Ela era feita em Umbanda,
pronta em Umbanda. E ela trouxe a Umbanda pra cá, se estabeleceu num
bairro popular no Vergel do Lago, montou a casa de candomblé dela e o
marido não gostava... Mas o marido faleceu, e ela continuou aqui. E aí o que
acontece? Ela introduziu em Alagoas a Umbanda do Rio de Janeiro. E as
pessoas, tudo o que é novo, quer conhecer. Muita gente entrou na casa dela, e
saiu e misturou na sua casa a Umbanda com o Candomblé, com o Xambá,
então ficou chamado o “xangô traçado” ou “nagô traçado”. Com essa
influência de Mãe Jurema. Ela foi quem trouxe a Pombagira pra cá. (...) Hoje,
por exemplo, você vai num terreiro, às vezes fico até triste, em terreiro de
nagô, na hora de Nanã você ouve cantar pra Preto Velho. Na hora de Odé
você vê cantando pra Caboclo. Misturou e isso é uma influência da Umbanda.
Até em rituais mesmo. O ritual todo do orixá quem faz é o Preto Velho. Isso é
interferência da Umbanda. Quem sou eu pra dizer que está certo ou está
errado? Eu concordo... É a identidade... Vale mencionar isso nessas falas.iii
(B) Fontes
ARQUIVO PÚBLICO DE ALAGOAS (APA)
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE ALAGOAS (IHGAL)
ENTREVISTA com Pai Célio Rodrigues, Casa de Iemanjá, 04/12/2010.
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO. IPHAN/Secretaria Municipal de Cultura, Maceió, 2008.
PROJETO RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS EM NOTÍCIA: levantamento e catalogação de
fontes sobre Candomblé e Umbanda na imprensa maceioense, 1960-2000. Proex-UFAL, NEAB,
2010-2011.
SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA, Portaria Nº 106 – 67.9.17 de 22 de setembro de
1967. ARQUIVO PÚBLICO DE ALAGOAS, Fundo Luiz Sávio de Almeida, caixa 01, Religiões
Afro-Brasileiras em Alagoas. Xerox do original.
i
Os autores clássicos Gonçalves Fernandes, João Ribeiro, Alfredo Brandão, Arthur Ramos, Théo
Brandão, Manuel Diégues Junior, Abelardo Duarte, a partir dos anos 1930, produziram diferentes análises sobre
a presença do negro em Alagoas, seu folclore e religiosidade. Há, no entanto, uma descontinuidade entre os
trabalhos e pouca atenção para análises mais aprofundadas; boa parte desta bibliografia dedica-se a
levantamentos etnográficos, ensaios e tentativas de classificação a partir de modelos exteriores, estabelecidos
pelos estudiosos da “Escola Nina Rodrigues”. A produção do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, via
sua Revista, também pode ser incluído na listagem. Datando de fins do XIX e existindo até hoje, poucos artigos
foram apresentados sobre a temática negro-indígena em Alagoas, aparecendo mais fortemente a partir dos 1950,
com a publicação da pesquisa de Abelardo Duarte, então Secretário Perpétuo do Instituto. É recorrente, no
entanto, nessa historiografia oficial, referências, coletâneas de documentos e narrativas sobre o Quilombo dos
Palmares. De fato, a “Guerra de Palmares” (1695), junto à “Expulsão dos Holandeses” (1654) e a “Emancipação
Política em 1817”, na historiografia oficial das elites alagoanas, foram postos como fatos (marcos históricos)
comemorativos da fundação de uma especificidade e identidade local.
ii
A Liga dos Republicanos Combatentes foi fundada, segundo Rafael, em fins de 1911 e início de 1912
e comandada por Manoel Luiz da Paz, negro, ex-combatente da Guerra de Canudos. Ali havia perdido uma
perna. Seu objetivo teria sido o de “fornecer suporte físico à campanha de estilo persecutório contra o
Governador Euclides Malta”. Na sua sede, no número 311 da Rua do Sopapo, no bairro da Levada, também se
realizavam o “ensaio do tradicional Clube dos Morcegos, presença cativa nos carnavais de Maceió daqueles
primeiros anos do século passado”. Dela também teriam participado rapazes funcionários do comércio e praças
do Batalhão de Polícia do Estado, que tinham deserdado por falta de pagamento dos soldos. Ficou conhecido
entre eles o brado “Rasga”, ao se rasgar a camisa da farda demonstrando a deserção; posteriormente, foi trocado
por “Quebra”.
iii
Entrevista com Pai Célio de Iemanjá, Maceió, Casa de Iemanjá, 04/12/2010. No Jornal de Alagoas, no
ano de 1948, têm-se informações sobre a atuação na cidade de João Lyra do Nascimento, vulgo “Prof. Uoca
Rajá”. Este teria fundado em 01 de setembro de 1947 o Centro Espírita 1ª Tenda de Umbanda, no bairro do
Jaraguá. Ficou conhecido por ter sido acusado de influenciar o suicídio da adolescente Luzinete Ferreira dos
Santos. Nas notícias dizia que em sua casa funcionava o “gabinete indiano de ocultismo e alta magia”.
Publicaram-se, como parte do processo contra João Lira, os estatutos de seu centro. Ref. Jornal de Alagoas –
Maceió, 26 de outubro de 1948, p. 1. Macumba em Pajuçara e Poço até altas horas da madrugada.
iv
No Fundo de Luiz Sávio de Almeida do APA há parte da documentação original da Federação
Zeladora dos Cultos em Geral do Estado de Alagoas, e alguns documentos de outras federações que surgiram na
época, como a Federação Espírita dos Cultos Umbandistas no Estado de Alagoas (21/11/1978) cujo presidente
era Lourival Morais de Oliveira, a Federação dos Candomblés e Umbandista Brasileiro do Estado de Alagoas
(22/10/1986) de Alda Ribeiro (surgida de um racha da Federação dos Cultos) e a Confederação Nacional dos
Cultos Afro Brasileiro de Alagoas, sem identificação de data e presidência. Nos jornais há notícia ainda da
Congregação de Candomblé e Umbanda do Estado de Alagoas (26/04/1980), presidida pelo babalorixá Anedito
Fernandes dos Santos (um dos coroados “Príncipes do Candomblé no Brasil”). Hoje se mantém funcionando as
duas primeiras Federações fundadas e mais outras duas: Federação Umbandista dos Cultos Áfricos de Alagoas e
a Federação Umbandista Cavaleiro do Espaço de Alagoas (em Chã do Pilar).