A Pesquisa Como Desejo de Vazio.
A Pesquisa Como Desejo de Vazio.
A Pesquisa Como Desejo de Vazio.
Abstract:
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não poderá haver uma reflexão ética sem uma reflexão acerca da
comunidade onde essa ética circula.
A primeira questão que caberia colocar aqui, portanto, é que,
quando falamos da área de estudos de Literatura não falamos de uma
área homogênea porque a cisão constitui a comunidade — toda
comunidade — e a define como uma comunidade enfrentada, uma
comunidade afrontada (como diria Jean-Luc Nancy, affrontée), uma
comunidade confrontada consigo mesma, em dispersão atuante. Não
apenas, em nosso caso, cisão entre Literatura e Linguagem, senão
entre as diversas Literaturas entre si, entre Literatura e Humanidades,
em sentido amplo, e entre leituras pautadas por tradições divergentes,
no interior de um mesmo campo. O confronto pertence
essencialmente à comunidade acadêmica. Trata-se de um impossível:
ver, objetivar-se, examinar-se como um todo homogêneo; mas, ao
mesmo tempo, trata-se também de opor-se, de vir perante nós
mesmos para desafiar-nos e testar-nos enquanto criadores, para
dividir-nos, em nosso ser, com uma separação que, paradoxalmente
é, coincidentemente, a autêntica condição desse ser comum
(NANCY, 2001 a, p. 51). Como pertencer com diferença, eis a
questão.
Como a universalidade não é um pressuposto estático, e não
é mesmo um a priori dado, ela deveria ser entendida, entretanto,
como um processo que nos exige, antes de mais nada, emancipar-nos
da essência, desamarrar-nos de vínculos tradicionais, corriqueiros,
testados. É essa a liberdade de pesquisa, uma liberdade de existência,
mas, em última análise, também de êxtase, se por êxtase entendemos
um ir para além de si mesmo. Daí que o próprio Nancy nos diga que,
nesses casos, a ontologia deve se tornar uma eleuterologia (NANCY,
1988, p. 24), um saber que contém a liberdade, porém, sob leis muito
precisas, leis ético-práticas. Surgem daí as questões específicas.
Cabe, por exemplo, participar de um encontro de pares apenas de
forma ativa, indo expor e retirando-se logo em seguida, sem se
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interessar por aquilo que dizem os outros, nem digo os estudantes,
mas os próprios colegas? Não é apenas uma questão de etiqueta
acadêmica. Há muito mais implicado nesse ato. Há ainda formas
válidas de compartilhamento da experiência, de alguma
universalidade entre nós, para além da mediação quantitativa do
currículo Lattes? Mas, dada a necessidade de leis muito precisas, de
caráter ético-prático, para a existência do comunitário, como adotá-
las ou como acatá-las se o horizonte do comum é cada vez mais
esquivo ou elusivo entre nós?
Mesmo com todas as dificuldades do caso, há algo, porém,
que não deveria ser esquecido: que aquilo que está para ser feito, o
que se pesquisa como ato de per quaere, não se situa nunca no
registro de uma poiesis, como uma obra cujo esquema já estaria
previamente traçado, mas no registro de uma praxis, que, de
relevante, só produz mesmo, retrospectivamente, seu próprio agente
(IDEM, ibidem, p. 38).
É claro que pensarmos a comunidade acadêmica a partir da
emancipação, processo que dissolve os laços tradicionais do sistema,
é algo problemático e inquietante, porque, ao liberar o sujeito de
vínculos comuns, herdados, nossa prática de pesquisa emancipa-nos,
a rigor, consequentemente, de toda determinação e de toda noção de
destinação já dada, sem que, paralelamente, a própria emancipação
forneça a si própria um horizonte cabal de sentido, uma vez que não
há nada que, podendo ser tomado como destino ou como fim do
trabalho, garantisse, de per se, a emancipação. Uma vez emancipado,
o estudioso universitário é como um escravo liberto para quem, à
diferença do escravo do mundo, não existe espaço algum que possa
ser identificado como o espaço específico para o exercício dessa sua
liberdade, a liberdade de pesquisa e criação que ele reivindica
(NANCY, 2001 b, p. 128). E isto por um motivo relativamente
simples. No Ocidente, o espírito científico desenvolveu-se, em
grande parte, graças ao direito romano, esse veículo do princípio
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técnico de governabilidade, com que a verdade se separou da
falsidade. Simpliciter et pure factum ipsum.
Vejamos essa questão. Um duro adversário da hegemonia da
Teoria Crítica na Universidade, o filósofo alemão Peter Sloterdijk,
tem argumentado que a Europa mantém-se em movimento ainda hoje
ao preço de reivindicar, reencenar e transformar o Império que havia
antes dela e, assim sendo, ela é basicamente um teatro de
metamorfoses imperiais que perpassa sucessivamente várias culturas,
muitas das quais declararam, sem pudor, a crença de serem as
escolhidas para reeditarem as idéias romanas de dominação mundial
(SLOTERDIJK, 2002). De modo que se o direito romano sobreviveu
até nós, foi, fundamentalmente, graças à sua aliança com uma noção
imperial de poder, de Igreja — o poder dos clercs, dos intelectuais—
que implicou o afastamento da magia, o combate contra o judaísmo,
em especial contra a mística judaica que, mais tarde, deslocou-se em
relação ao Islã, ou seja, fundamentou-se em torno às controvérsias
ocidentais acerca da fé e do saber. Daí vem, entre outras, a separação
entre corpo e espírito. Pergunto: é ainda possível, por exemplo, o
estudo da imagem — da fotografia, do cinema, que vem ocupando
espaço cada vez mais crescente em nossas faculdades — tão somente
como um dado ecotécnico, dissociado dessa genealogia que lhe é
constituinte?
Na última seleção de solicitações de financiamento para
eventos do Rio de Janeiro, a metade dos pedidos apresentados ao
CNPq, no início de 2011, era da área de clássicas, dado que, ao
menos a mim, causa espanto. Não tenho nada contra as línguas
clássicas. Sou de uma geração que estudou 9 cursos de latim e cinco
de grego, antes de começar a lidar com a filologia germânico-ibérica,
dominante antes do estruturalismo, e herdeira, toda ela da Idade
Média latina, como declarava o livro de Curtius. Mas, pergunto, são
nossas pesquisas de culturas clássicas conscientes dessa herança
comum de direito romano e cristianismo? Pode ainda o Estado
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(através da CAPES, o CNPq, as fundações estaduais) ser solicitado,
sem consequências epistemológicas, como fiador de um índice
etnocêntrico de civilização?
Cabe relembrar, a esse respeito, o que o jurista e psicanalista
francês Pierre Legendre desenvolveu, em 2007, em sua palestra A
cicatriz (La Balafre. À la jeunesse désireuse… Discours à des jeunes
étudiants sur la science et l'ignorance, Paris, Mille et une nuits,
2007), idéias muito pertinentes a esse respeito. Ele adota, por sinal,
uma idéia literária, de Borges, a de “A forma da espada”, mas parte
também da parábola de Stevenson em Dr. Jeckyll e Mr. Hyde e até
mesmo de um escritor japonês como Tanizaki, na História de
Tomoda e Matsunaga. “Le cruzaba la cara una cicatriz rencorosa: un
arco ceniciento y casi perfecto que de un lado ajaba la sien y del otro
el pómulo”— diz, no início, o conto de Borges (BORGES, Jorge
Luis, 1974). A narrativa, mesclada, em inglês, espanhol e português
e organizada como se fosse vista por alguém traído, é na verdade a
história de um traidor: “yo soy los otros”. E a cicatriz é uma mera
marca, uma inscrição cuja sobrevivência “me afrenta”, tal como a
comunidade, segundo Nancy. Tal o uso da metáfora por parte de
Legendre. Nosso presente, a situação cindida da nossa comunidade,
talvez se expliquem então mais cabalmente se levamos em
consideração, junto com ele, que
1
Ver, a esse respeito, AGAMBEN, Giogio – Il sacramento del linguaggio.
Archeologia del juramento. Bari, Laterza, 2008.
14
por la tecno-ciencia-economía: para la
civilización del Management generalizado, el
Estado habría abandonado la zona oscura del
mito (en este caso, del mito genealógico de
proveniencia cristiana) y habría entrado
definitivamente en un universo de transparencia
que lo haría tributario de saberes desprovistos
de religiosidad (saberes correspondientes a la
objetividad gestionaria). Para discernir ahora el
principio estatal en cuanto indicador político-
religioso de la modernidad europea y como
instrumento institucional estratégico del
Occidente expansionista, tendremos que volver
a examinar el concepto de Estado, no desde un
ángulo operativo necesariamente estrecho, sino
en continuidad con las puntualizaciones que
preceden, es decir, como producto derivado de
un libreto fundacional: el judeo-romano-
cristiano (LEGENDRE, 2008, p. 66-67).
17
estudantes de pós-graduação em Letras? 2 O Estado de São
Paulo tem 41 milhões de habitantes e sua capital, São Paulo, a
sexta cidade do planeta, tem quase a metade disso. Em
compensação, nenhum dos cursos de pós-graduação da USP, o
de Teoria Literária ou o de Literatura Brasileira, que cobririam
a área de atuação do nosso, tem mais de 100 alunos cada.
Mesmo com os relativamente baixos números de conclusão do
programa de Literatura na UFSC, ou talvez por isso mesmo,
sempre me questiono acerca da destinação efetiva desses
jovens pesquisadores maciçamente recrutados. Haverá
instituições para absorvê-los ou seu cotidiano será só
frustração, entregues que estão à mais cruel disputa canibal por
um posto ao sol?
Constata-se, em suma, que essa emancipação da
tradição, como vemos, não facilita, necessariamente, as coisas
porque, embora, graças a Derrida, a Agamben ou a Jean-Luc
Nancy, possamos compreender que a comunidade ficou in-
operante, ela continua presente e determinante a toda hora, em
cada um de nossos atos institucionais.
Jean-Luc Nancy, consciente do paradoxo, foi
substituindo, ao longo do tempo, o primitivo conceito de
comunidade por outros conceitos: ‘ser-junto’, ‘ser-em-comum’,
‘ser-com’. Mas é bom destacar, porém, que esse movimento
enfatiza prioritariamente uma necessidade de saída aos
impasses do moderno e do funcional. O que seria para nós, na
Universidade de massas, ser-com? Sairmos da extaticidade da
pesquisa fundacional, essa que outrora se fazia em
2
Dados da UFSC. Alunos de Doutorado: 100; Mestrado: 77; Teses
defendidas em 2009 = 17; Dissertações defendidas em 2009 = 24.
18
Departamentos, com catedráticos que eram a fonte última de
racionalidade, e auxiliados por aplicados assistentes, que se
subordinavam à palavra do Mestre. Passaríamos agora, no
entanto, a fazer parte de uma comunidade acéfala, a de sermos
pesquisadores de Letras, ora através da fusão dos antigos
Departamentos, ora através da profusão de núcleos, às vezes
tão unipessoais quanto os carros retidos num congestionamento
urbano. Um carro, um cidadão. Um núcleo, um pesquisador.
Em suma, passamos, na atual Universidade, do ex- ao co-,
porém, com uma poderosa ressalva, a de que nada existe com
alguma coisa se ela não existe também e previamente ex nihilo
(NANCY, 2002, p. 99). Por isso, uma das coisas mais difíceis
de afiançar na Universidade hoje em dia é uma ética do ser-em-
comum, uma ética do comunismo, se entendemos por
comunismo um projeto ontológico, uma ontologia da
comunidade, muito mais do que um regime político, uma
ideologia. Faz sentido, por exemplo, financiar um ano de
permanência, obviamente em Paris, para uma pesquisa
hermenêutica sobre, suponhamos, o conto regionalista? Faz
sentido usar a tecnociência contemporânea para ler textos
literários com as mesmas hipóteses ecdóticas historicistas ou
autonomistas da época da guerra? Fazem sentido pesquisas não
exaustivas, que se limitam à bibliografia acessível em livro, no
próprio idioma, isto é, defasadas 20 ou 30 anos do debate
internacional, se é que, porventura, existe o tal debate? Fazem
ainda sentido esquemas x em y? Sendo x um gênero ou uma
corrente de pensamento dada e sendo y um autor ou uma obra
específica. São esquemas que se inclinam muito mais à fábula
do que à ficção. Faz sentido ainda tudo isso?
19
Em La communauté désoeuvrée, ao falar do ser-em-
comum, Nancy diz que ele é o mais difícil de profetizar, de
prever, de planejar. Nós somos pesquisadores. Compartilhamos
sermos pesquisadores. Mas o ser não é alguma coisa que
possuiríamos todos em comum. O sermos pesquisadores não se
diferencia da existência singular de cada um de nós. Sermos
pesquisadores não é, portanto, algo que se possui em comum,
mas algo que somos em comum, porque “o ser é em comum”.
È algo aparentemente trivial, mas, ao mesmo tempo, é algo
ignorado pela comunidade universitária (NANCY, 1990, p.
201). A pesquisa, em muitas das nossas Instituições, em nossa
tradição acadêmica mesmo, é uma variável de ajuste, é o que
sobra das aulas, das orientações, do funcionalismo. Mas, ao
mesmo tempo, todos nós somos pesquisadores, para além de
produtividades ou competências, dedicações ou habilidades. O
sistema tende a universalizar, e consequentemente a
homogeneizar, nunca a singularizar. Ignora o omnes et
singulatim. Faz pouco caso do um-por-um.
Nesse sentido, diria que o diagnóstico de nossa situação
cai, sem dúvida, na esfera da “biopolítica”. Nossa vida,
enquanto forma-de-vida, fundamenta-se na zoé, na vida mais
essencial possível, mas esta já se tornou irreversivelmente
techné. A política — a política de ascensão funcional, a política
de bolsas, a política científica — nada mais é então do que a
autogestão da ecotécnica. Uma forma de autonomia que já não
dispõe das formas tradicionais da política, mas se cumpre por
“força-de-lei”. Jacques Derrida, analisando o conceito de
“força-de-lei”, diz que esse conceito nos remete à letra, porque
20
no hay derecho que no implique en él mismo, a
priori, en la estructura analítica de su
concepto, la posibilidad de ser ‘enforced’,
aplicado por la fuerza. Kant lo recuerda desde
la Introducción a la doctrina del derecho (…).
Hay ciertamente leyes que no se aplican, pero
no hay ley sin aplicabilidad, y no hay
aplicabilidad, o enforceability de la ley, sin
fuerza, sea ésta directa o no, física o simbólica,
exterior o interior, brutal o sutilmente
discursiva –o incluso hermenéutica-, coercitiva
o regulativa, etc. ¿Cómo distinguir entre, de una
parte, esta fuerza de la ley, esta ‘fuerza de ley’
como se dice tanto en francés como en inglés,
creo, y de otra, la violencia que se juzga
siempre injusta? ¿Qué diferencia existe entre,
de una parte, la fuerza que puede ser justa, en
todo caso legítima (no solamente el instrumento
al servicio del derecho, sino el ejercicio y el
cumplimiento mismos, la esencia del derecho)
y, de otra parte, la violencia que se juzga
siempre injusta? ¿Qué es una fuerza justa o una
fuerza no violenta?
3
“Grito, luego soy. Pero si nadie se vuelve dejo instantáneamente de ser; mi
grito no ha sido escuchado. Pues grito con el fin de comunicarme. Entonces,
cada vez doy más alaridos y si todavía nadie se da vuelta, terminaré por
callarme. ¿Me resignaría a no comunicarme? A la larga sí, pues será
23
além de um grito 4. Através, posteriormente, de Alexander
Kojève, essa peculiar compreensão das relações de objeto
encontraria uma conceituação superior na teoria do objeto a de
Jacques Lacan, com a qual o psicanalista, aluno por sinal de
Kojève, tentava materializar os três registros do inconsciente e
aludir assim à esfera do Real, algo que a cultura quer sempre
resolver, dissolver, definitivamente, no plano simbólico,
mesmo quando o Real esteja muito longe disto, porque é de sua
natureza ser impossível de não se escrever. O objeto a é o
esquema do desejo, um paradigma, e o que é um esquema, um
paradigma, senão uma forma informe, e em última instância,
uma forma vazia?
É conhecido o interesse de Clarice Lispector pela obra
de Paul Klee, cujo Angelus Novus estimulara as teses
benjaminanas sobre a história. Em 1964, 1967, 1972, Clarice
aborda a obra do artista alemão 5. Antes disso, porém, um
24
sofisticado escritor nascido na Argentina, mas com boa parte
de sua produção desenvolvida na Itália, onde traduziu à língua
do país escritores como Shakespeare e Beckett, tramando
sólida relação intelectual também com o que havia de mais
experimental na cena italiana dos anos 60-70, gente já
reconhecida como Pasolini, ou ainda emergente, como Giorgio
Agamben, também resgataria, em Klee, o estímulo para pensar
o trabalho artístico e teórico da capo. Em 1958, com efeito,
Juan Rodolfo Wilcock escreve:
25
empleo de los medios formales: en toda cosa,
aun en los colores, hay que evitar cualquier
rastro de vaguedad. Eso es por lo tanto lo que
suele llamarse el colorido falso de la pintura
moderna”.
En otro párrafo observa: “Presuntuoso es el
artista que no sigue su camino hasta el final.
Elegidos en cambio son aquellos artistas que
penetran en la región secreta donde la fuerza
primitiva nutre toda evolución. Allí, donde la
central de energía del tiempo y del espacio
enteros – llámese cerebro o corazón de la
creación – activa todas las funciones, allí, ¿cuál
es el artista que no anhelaría morar? En el seno
de la naturaleza, en el manantial de la creación,
donde se esconde la llave secreta de todo. Pero
no cualquiera puede entrar. Cada uno debería
seguir el camino que le señala el impulso de su
propio corazón. Así, en su época, los
impresionistas – nuestros contrarios de ayer –
tenían un perfecto derecho de demorarse dentro
del matorral revuelto de la visión cotidiana.
Pero nuestro corazón estremecido nos impulsa
más abajo aún, nos impulsa a descender hasta el
manantial del todo. Lo que surge de ese
manantial, llámese como uno quiera, sueño,
idea o fantasía, debe ser considerado seriamente
sólo si se une con los medios creativos
adecuados para formar una obra de arte. En ese
caso las curiosidades se vuelven realidades,
realidades de arte que contribuyen a elevar la
vida por encima de su mediocridad. Porque no
solamente agregan, en cierta medida, más
espíritu a lo visto, sino que además vuelven
visibles las visiones secretas.
Iluminatoria es su exposición de los motivos
que impulsan al artista moderno a lo que a
veces se llama una “deformación arbitraria” de
las formas naturales: “Ante todo, él no otorga
una importantica tan intensa a la forma natural,
como se la otorgan los críticos realistas, porque
26
para él esas formas finales no constituyen la
materia real del proceso de la creación natural.
Porque atribuye más valor a los poderes que
intervienen en la formación, que a las formas
finales en sí. Él es, quizá involuntariamente, un
filósofo, y si no piensa como los optimistas que
éste es el mejor de los mundos posibles, no lo
considera tan malo que sea inadecuado para
servir de modelo, sin embargo dice: “Bajo su
forma presente, no es el único mundo posible”.
Así contempla con ojo penetrante las formas
acabadas que la naturaleza le coloca delante.
Cuanto más hondo llega su mirada, tanto más
fácilmente puede extenderse ésta del presente al
pasado, tanto más profundamente se siente
impresionado por la imagen esencial y única de
la creación, como Génesis, más bien que por la
imagen de la naturaleza, el producto acabado.
Entonces se permite pensar que el proceso de la
creación difícilmente puede considerarse
completo hoy día, y vislumbra el acto de la
creación del mundo, extendiéndose del pasado
al porvenir. ¡Génesis eterno! Y va más allá
todavía. Dice, pensando en la vida que lo rodea:
este mundo, en alguna época, tuvo otro aspecto,
y en el porvenir volverá a tener otro distinto.
Entonces, dirigiendo el vuelo al infinito, piensa:
es muy probable que, en otras estrellas, la
creación haya producido un resultado
completamente distinto. Esta movilidad del
pensamiento en el proceso de la creación
natural es muy buen ejercicio para la labor
creadora. Posee el poder de mover
fundamentalmente al artista, y como el artista
es de por sí movible, se puede confiar en que
mantendrá la libertad de desarrollo de sus
propios métodos creativos. En consecuencia,
hay que perdonarlo cuando considera el estado
presente de las apariencias externas, dentro de
su propio mundo particular, como algo
accidentalmente fijo en el tiempo y el espacio.
27
Y como algo totalmente inadecuado, en
comparación con su visión penetrante y su
intensa profundidad de sentimiento”
(WILCOCK, 30 mar. 1958).
30
invisibilidade do visível. Em outras palavras, mais do que
elemento de fusão e unidade, o sublime contemporâneo
estrutura-se a partir de um nominalismo radical que postula a
indecidibilidade entre ser e sentido. Ora, nessa linha de análise,
a própria definição de nosso objeto de reflexão, entendido
como pulverização ou disseminação do sentido, deveria ser
associada aquilo que Bataille observa, após ter assistido à
conferência de Guido Calógero sobre a angústia e a vida moral:
32
O desejo que toda pesquisa mobiliza enquanto per
quaere é sempre desejo do Outro, desejo de desejar.
Reinterpretado como valor de uso do impossível, o valor desse
percurso é o de um desejo elevado ao segundo grau. Consiste
no poder de um objeto manter ativo—potente, ou seja, em
movimento—o desejo de desejar. Desmaterializa-se, assim, o
paradigma da lei positiva, uma vez que se mostra sua constante
inutilidade que, paradoxalmente, é constitutiva do próprio
valor. Ora, se a in-utilidade é um traço do valor, isto quer dizer
que o simples fato de existirem leis e valores é um elemento
primordial. Em outras palavras, o elemento inconsciente não
seriam aquelas forças ou motivos ocultos de um evento, mas o
fato de que o sujeito não quer saber que a lei não tem
fundamentação objetiva. A lei é pós-fundacional.
Mas não era outra a definição de objeto a, o objeto
causa do desejo, elaborada por Lacan, que é um conceito de
fontes remotamente literárias. Com efeito, Lacan toma o
conceito de objeto a da antifilosofia dadaísta de Tristan Tzara,
uma filosofia dos objetos (TZARA, maio 1920, p. 22-3), mas
aproveita-se também dos objetos surrealistas de Salvador Dali,
eles mesmos objetos psico-atmosféricos-anamórficos, como os
chama o artista catalão. Mais perto de nós e, ainda, na esteira
de Lacan, Gérard Wajcman, querendo isolar o objeto do século
XX, propôs, entre outros, o quadrado de Malevich, porque ele
ilustraria exemplarmente a estratégia do esvaziamento. Com
efeito, assim como Freud, ao analisar o Moisés, nos fala de
uma estratégia da pintura, que age per via de porre, e outra da
escultura, que se ativa per via de levare, Wajcman vê, no
quadrado, um esvaziamento do olhar. Concluímos, a partir de
sua análise, que a forma é uma simples aparência, a arte visual
33
é cega (a literatura, gaga), o quadrado é uma obliteração e o
zero não é uma abstenção, mas uma rasura (WAJCMAN,
2001). Ora, à luz deste debate, caberia ponderar que a literatura
contemporânea também não se apreende pela mímesis da
História ou pela definição da forma e, retomando o argumento
de Jacques Lacan, poderíamos até dizer que a literatura,
limitada à mimese, não passa de um trompe l’oeil, porque
sempre nos apresentará a pátina de um véu cobrindo algo
situado para além do que se pode ver.
Sabemos, todavia, que ler, entretanto, é sempre ler mais
além, justamente porque o gozo, não sendo acessível nem
finito, e sendo, por definição, impossível, nos impede esgotar o
todo do objeto. E isto permite o afastamento, o corte, a cisão da
rede simbólica atual, enquanto instância combinada de
capitalismo disseminado e tecno-ciência difusa que, enquanto
política, decreta a inviabilidade do impossível e,
contrariamente, encontramo-nos perante a emergência do
político, que consiste no corte que, praticado na rede fusional
disseminada, permite o questionamento acerca do lugar que o
sujeito ocupa e opera no discurso. É no discurso, cercado o
tempo todo pelo Real, que se encontra o impossível de dizer;
daí que todo ato de dizer o impossível, todo ato poético, todo
ato político, seja, basicamente, um ato consciente de procurar
uma emancipação incompleta e inacabada, por definição, em
busca de uma causa que não pode estar presente, como
fundamento último da ação (a sentença), e que também não
dispõe de garantias de sucesso em sua prática. É esse o objeto
produzido pelo per quaere.
Em seu texto póstumo, Um sopro de vida (Pulsações),
Clarice Lispector recolhe uma série de conceitos
34
experimentados (para Clarice a vanguarda não é invenção,
fruto de experimentos mas saber de experiência, donde,
traduziríamos, não exprime a voz da linguagem, como para os
concretos, mas manifesta a linguagem da voz, simultaneamente
perseguida por Foucault que — não esqueçamos — cunha seu
conceito de biopolítica, aqui no Brasil, entre o Rio e a Bahia) e,
nesse sentido, a busca do Real, como objeto causa do desejo,
confunde-se com a própria busca do vazio.
O texto em questão (que não é romance) não encena um
fragmento de ação comunicativa entre o Autor e Ângela Pralini
— a mensageira cristalizada do comunitário. São, no entanto,
dois solilóquios que, na verdade, exibem os aspectos
simultâneos de um mesmo sujeito atravessado pelo poder e a
linguagem. São falas fragmentárias e como tais traduzem
tempos justapostos, mas não sucessivos. O Autor, por exemplo,
admite que
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Talvez possamos isolar nessa definição de Clarice
Lispector uma ferramenta poderosa de análise do per quare, da
pesquisa, entre nós. Ela cria o vazio. Mas um vazio de tipo
muito especial. “Jamais un exil individuel, jamais un desert
personnel”—dizia Deleuze.
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