HUCHET, Stéphane. A História Da Arte, Disciplina Luminosa.
HUCHET, Stéphane. A História Da Arte, Disciplina Luminosa.
HUCHET, Stéphane. A História Da Arte, Disciplina Luminosa.
A HISTÓRIA DA ARTE,
disciplina luminosa
stéphane huchet*
resumo Este artigo apresenta, de maneira sintética, a evolução da história das artes visuais como disciplina do conhecimento
na cultura ocidental. Incipiente no Renascimento italiano, consolidada no século XVIII, a historiografia das imagens e dos
objetos artísticos conheceu um desenvolvimento exponencial de seus horizontes, métodos e interesses no século XIX.
No século XX, vários historiadores dotaram-na de sua autonomia e consistência científicas. Enfatizando antigamente os
patrimônios e as escolas «nacionais», a historiografia da arte se beneficia hoje do diálogo com outras ciências humanas,
fazendo das imagens um objeto de investigação rico e fascinante num âmbito mais globalizado.
*Professor do Departamento de Análise Crítica e História, Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
E-mail: st.huchet@gmail.com
Recebido em 11/08/2014. Aprovado em 12/08/2014.
«H istória da arte» é uma fórmula que remete tanto às obras e imagens que se
sucederam na história da humanidade quanto à disciplina que elabora um
conhecimento baseado na análise descritiva e interpretativa delas. Ela constitui o que se-
ria justo chamar de «historiografia da arte», já que se interessa pelas práticas «estéticas»
das diversas sociedades humanas desde não só os tempos «históricos», mas também os
«pré-históricos». Uma das grandes conquistas da modernidade foi a de entender que o
conceito de «arte», que tem um pedigree epistemológico que remonta às primeiras ela-
borações filosóficas de Platão e Aristóteles (a «techné», a «mimesis», a «poïesis»), podia
ser estendido a culturas e contextos históricos não ocidentais. Com efeito, a produção
de imagens e de objetos «estéticos» está presente em todas as civilizações. Ninguém ou-
saria contestar o direito de os cenários de imagens pintadas nos afrescos rupestres de
Lascaux, de Altamira, da gruta Chauvet ou do Vale do Peruaçu pertencerem à «histó-
ria» da arte. Reparamos, todavia, que, por não datar do período da «história», eles são
estudados mais por arqueólogos ou antropólogos do que por historiadores da arte. A
historiografia da arte é predominantemente uma história de imagens «históricas». As
imagens pré-históricas, cujo sentido histórico é quase impossível de se estabelecer, per-
turbam o historiador que não pode aplicar a elas os recursos de sua disciplina, tendo de
optar por um ponto de vista que leva em conta o próprio enigma da imagem, o que é
considerado um risco. O aporte das épocas «pré-históricas» ou das civilizações extraoci-
dentais contribuiu, contudo, para uma ampliação considerável do conceito de História
1. Leremos também as
reflexões de Hans BELTING
da arte, entendido agora como uma forma de «antropologia do visual»1. Isso significa
sobre a Bild-Anthropologie que o privilégio concedido, desde o Renascimento, à figura individual do artista, à obra-
(antropologia da imagem),
no livro epônimo. München: prima assinada por um criador identificado, teve de ser revisto em virtude da introdução
Wilhelm Fink Verlag, 2001.
de objetos novos, notadamente obras e imagens flutuando «numa dimensão temporal
2. REBECCHINI, Guido, privada de ancoragens sólidas, não sendo evidentes os signos específicos de sua histori-
«Temporalité de l’œuvre d’art
et anachronisme», in: cidade e de sua unicidade»2. Nessa categoria, podemos incluir, além das imagens «pré-
Perspective. La revue de históricas» ou de civilizações extraocidentais, as imagens medievais, cujos «fazedores»
l’Institut National d’Histoire
de l’Art, 2010/2011 – 3, p.466. não são conhecidos, as imagens anônimas, as reproduções em série de protótipos, as
não pode constituir o único parâmetro da História da arte. A atual abertura de campos
historiográficos em países considerados periféricos pela Europa até uma época recente
reflete a complexificação dos horizontes e dos objetos. Passamos recentemente de um
G8 a um G20 historiográfico: inclui timidamente a Ásia e a África. É assim que, em
2016, o Congresso Internacional de História da Arte, depois de ocorrer em Montréal
(2004), Melbourne (2008), Nüremberg (2012), será realizado em Beijing4. 4. Como reflexo dessa aber-
tura, ver a publicação de
Le Brésil, in: Perspective, La
revue de l’Institut National
da produção (criação artística, criador, artista, meio no qual evolui) ao conjunto dos
destinatários, que podem ser diversos (cliente, comissionário, público receptor em ge-
ral), sem esquecer a função fundamental dos intermediários, das mediações entre a obra
e seu público: os pares do artista, os marchands, os colecionadores, os conservadores,
os curadores, as instituições artísticas (galerias ou museus), os meios de difusão, os
suportes de circulação, os críticos, entre outros. Um exemplo: para compreender bem
a obra Nymphéas (Nenúfares), de Claude Monet, na sua atual situação museológica,
precisamos considerar a pintura e seus entornos – a busca de Monet por uma ex-
perimentação visual, pictórica e espacial e o papel dos parceiros: o ex-presidente da
República francesa durante a Grande Guerra, Georges Clémenceau, amigo íntimo do
pintor; os responsáveis por museus em Paris; os arquitetos que propuseram ao pintor
vários remanejamentos do Pavilhão da Orangerie, no parque das Tuilherias, para satis-
fazer suas demandas etc. Todos colaboraram com Monet para encontrar o lugar mais
adequado para suas pinturas, a fim de garantir as condições de apresentação conside-
radas as mais satisfatórias. A história dos Nymphéas é, portanto, não só da obra, mas
também dos destinatários e dos intermediários, ativos e insistentes. Tudo isso remete
àquilo que se chama hoje «sistema» da arte. Na sua história, a arte sempre foi o motor
e o centro de dísparo e convergência de um sistema social e cultural.
Os fatos precisam ser reinseridos no seu contexto ideal e empírico, espiritual, mo-
ral, social. Essa rede de conexões é algo quase natural na prática historiográfica, mas
a proposta científica de um método que construa de maneira sistemática esse saber
é relativamente recente: data da «iconologia» concebida por Erwin Panofsky entre as
primeiras décadas do século XX e os anos 1930. O método iconológico propõe os ins-
trumentos e níveis de investigação e análise sucetíveis de ser percorridos para se che-
gar a uma síntese final que reconstitui e apresenta ao leitor o sentido global da obra ou
da imagem. Para Chastel, por exemplo, a análise do contexto é fundamental. A obra
de arte é objeto de uma restituição a seu contexto: só se entenderá assim a função das
obras. O contexto é constituído por ideias e crenças, um lugar de surgimento e um
meio profissional. Panoksky produziu um saber historiográfico considerável, e a lei-
tura de suas obras, essencialmente focadas no Renascimento e no pré-Renascimento,
garante altíssimos momentos de inteligência histórica. A «iconologia» foi criticada
por ter idealizado a obra de arte como um documento sobre o contexto e a cultura que
determinaram seu surgimento, como se isso fosse uma negação da dimensão propria-
mente artística e estética da imagem. Na «iconologia», a imagem seria atravessada,
a fim de ser decodificada e sintetizada no discurso sábio e filológico do intérprete.
O texto gerado representaria o estado final de um conhecimento formalizado, supe-
rior à imagem graças à sua capacidade de
propiciar a palavra final de um enigma. O
saber confirmado e comprovado faz par-
te da ambição do historiador da arte que
se inscreve nessa linha de pensamento.
Chastel pensava logicamente que se toda obra representa um ponto de cruzamento
de séries de determinações, fazendo sistema nela, isso serve como alerta para o fato
de todo objeto artístico sofrer dois tipos de evolução: a degradação e a mudança das
abordagens a seu respeito. A possibilidade de erro exigia que o historiador fizesse um
trabalho de reparo das deformações (as da forma e as da interpretação) que foram
se acumulando sobre o objeto estudado. Para historiadores recentes, como o francês
Georges Didi-Huberman, que inaugurou sua trajetória como crítico da historiografia
tradicional, a iconologia tradicional negaria a realidade própria da imagem e o que ela
tende a «dizer» com base no seu próprio «não saber». Para ele, a imagem nunca deve
ser tomada pelo que não é: apenas um documento visual que falaria de um contexto
cultural mais abrangente.
A história da História da arte ensina que já existiram, antes de Panofsky, modelos
críticos e historiográficos diferentes. A maioria deles se situa no domínio germânico
(austríaco e alemão). Isso legitima aqueles que datam o nascimento da historiografia
da segunda metade do século XVIII. Com a História da arte da Antiguidade, publicada
por Winckelmann (1717-1768) em Dresden, em 1764, teria surgido uma disciplina mais
bem sistematizada. Considero que o trabalho de legitimação da arte antiga (grega) como
paradigma do Belo, como cânone formal e critério artístico, gerou sobretudo uma Dou-
trina, a doutrina «neoclássica» da criação artística. A seu respeito, o historiador Edouard
Pommier afirma que
arte nasce da tomada de consciência do abismo que separa a nossa sociedade do contexto
social da Atenas antiga […]. A história da arte se impõe como uma nova categoria no dia
9. POMMIER, Édouard, em que a historicidade da beleza ideal é reconhecida9.
«Winckelmann: l’art entre
la norme et l’histoire», in: A Doutrina winckelmanniana do gosto e da arte é histórica, isto é, historicamente
Histoire et théories de l’art.
De Winckelmann à Panofsky, situada. Constitui um capítulo na longa série de «releituras» do modelo artístico e cul-
Revue Germanique
tural «clássico», que transcende amplamente o momento-Winckelmann: o historiador
Internationale, n. 2, Paris:
PUF, 1994, p.23. italiano Salvatore Settis mostrou como a revalorização do «clássico» é um fenômeno
peia jamais escrita»15 (Handbuch der Geschichte der Malerei) datada de 1837, de autoria 15. Ibid., p.303.
22. MURPHY, Howard, defende uma História da arte cujo biologismo fundamental (a arte com seus ciclos de
«Meaningful Form. The vida e morte, à imagem da «evolução dos indivíduos»24) legitima um aprofundamento
Changing Boundaries
between Anthropology metapsicológico do «mundo visível»25. Trata-se de penetrar na evolução da «imagina-
and Art History», in: The
Challenge of the Object. 33rd
ção formal», tal como se reflete no mundo das imagens e nas produções plásticas. A
Congress of the International sucessão dos estilos reflete uma «racionalidade psicológica»26. Toda obra de arte gera
Committee. Congress Proce-
edings – Part 4, Nürnberg: sua fisionomia (forma exterior) porque ideias agem nela. Exteriorizadas, essas ideias
Verlag des Germanisches
são «figuradas» segundo «um dispositivo interior com sua lei imanente»27. Para com-
Nationalmuseums, 2013,
p. 1501. preender uma obra de arte, é preciso, afirma Wölfflin num pleito «pro domo» (1920),
que se conheça «a forma geral da visão de uma época»28. As obras de arte mostram 23. WÖLFFLIN, Heinrich,
Réflexions sur l’histoire de l’art,
como se vê e se percebe. Para ele, como para Riegl, não existe percepção universal dos (1940), Paris: Flammarion,
fenômenos, mas percepções relativas às condições epistemo-críticas e metapsicológicas col. «Champs», 1997, p. 27
(«Introdução»)
dos povos e das culturas. Em 1933, voltando seu olhar para seus Princípios fundamen-
24.Ibid., p. 35 («Sobre a
tais publicados em 1915, Wölfflin afirma que sua História da arte procura entender evolução da forma»)
como «os objetos tomam forma na representação interior». Em estudos mais antigos, 25. Ibid.
datando dos últimos anos do século XIX, Wölfflin elaborou uma nomenclatura de cate- 26.Ibid., p. 33 («Princípios
fundamentais»).
gorias suscetíveis de enquadrar e estruturar uma análise da arte conforme polaridades
27. Ibid., p. 35-36.
formais dualistas. Seus estudos sobre o Renascimento e o Barroco o levaram a propor
28. Ibid., p. 44 («Pro Domo»)
famosos pares da «representação figural na sua forma mais geral»29: linear (plástico)/ 29. Ibid., p.48 («Princípios
pictural; apresentação por planos paralelos/apresentação em profundidade; forma fe- fundamentais da história da
arte. Uma revisão (1933)»)
chada/forma aberta (tectônica – atectônica); unidade múltipla/unidade simples; clare-
za absoluta/clareza relativa. Décadas depois de tê-las inventado, Wölfflin reitera sua
crença no poder estrutural desses pares. Ele afirma que «a progressão incluída nesses
cinco pares é uma progressão racional. Sua sucessão
não é reversível»30. «A evolução das formas de visão» 30. Ibid., p. 51.
XIX, que a história da arte é a história do progresso na exatidão da visão, que vem a ser a
pintura de uma natureza sempre mais verdadeira, é bem a questão da percepção de que
ele trata. A pergunta do historiador – a mesma de Riegl e Wölfflin – é: como vemos, o
que vemos? A ampla investigação de Gombrich sobre a economia simbólica própria ao
ilusionismo artístico, que vigora entre o Renascimento e o século XIX, é uma maneira
de fazer a história sistematizada da visão artística. Uma história que analisa como os
31.GOMBRICH, Ernst Hans, artistas viam os corpos, os objetos e as aparências; em uma palavra: a natureza31.
Arte e ilusão. Um estudo da
psicologia da representação Com outro historiador, Aby Warburg (1866-1929), a História da arte não é uma his-
pictórica, (1960), São Paulo: tória dos estilos como reflexos do espírito ou reflexos de uma «vontade de arte», mas a
Martins Fontes, (4a ed.),
2007 história das escolhas de consolidação ou de reelaboração de formas de pathos, de formas
arte uma disciplina com fortes analogias com certos processos modernos de constru-
ção artística da imagem. Warburg criou, desde o início do século em Hamburgo, uma
riquíssima biblioteca. Tornou-se um grande centro de pesquisa e formação, com acervo
único. Gerenciada por Fritz Saxl, consolidada nos anos 1920, foi o viveiro da «iconolo-
gia» sábia que os herdeiros levarão para o futuro (Saxl, Panofksy, entre outros). Transfe-
rida em 1933 para Londres, constitui hoje o famoso «Instituto Warburg». Atualmente,
Warburg é objeto de uma releitura e reinterpretação com grande êxito no mundo dos
historiadores e dos artistas. É o caso do historiador Carlos Guinzburg, que, há tempo,
problematiza, baseado em Warburg, a relação complexa entre história e morfologia, o
patrimônio de formas sobreviventes constituindo a morfologia anacrônica das famosas
fórmulas expressivas de emoção (pathosformeln), portadoras de uma energia icônica e
psíquica. Certas imagens as «ressuscitam», atribuindo-lhes assim uma nova força dialé-
tica e temporal.36 Georges Didi-Huberman, pesquisador da imagem dialética, é também 36. GUINZBURG, Carlos,
Peur révérence terreur (Medo
em parte responsável pelo retorno de Warburg na atual cena crítica37. reverência terror), Dijon:
Didi-Huberman é o herdeiro de uma tradição francesa na qual, há pelo menos les presses du réel, 2013.
Notemos que a questão do
meio século, a História da arte não se desvincula da elaboração epistemológica de suas «estilo» volta com força na
reflexão de Guinzburg, mas
metodologias. Compensou assim seu atraso, devendo muito à dinâmica «pós-estrutu- totalmente renovada.
ralista» que constituiu, nos anos 1960, um remanejamento radical do conhecimento
37. DIDI-HUBERMAN,
na área das ciências humanas e sociais. A História da arte francesa nasceu como ciên- Georges, A imagem sobre-
cia do patrimônio, no século XIX. As políticas públicas de mapeamento arqueológico vivente. História da arte e
tempo dos fanstamas segundo
da arquitetura antiga e medieval, anteriores às politicas de restauração, surgiram com Aby Warburg, (2000), Rio de
Janeiro: Contraponto, 2013.
força a partir da Monarquia de Julho. Os responsáveis pelos «Monumentos franceses»
tiveram um papel fundamental, constituindo um material de trabalho considerável
(Mérimée, Viollet-le-Duc). Entretanto, no que diz respeito ao alcance epistemológico e
crítico da disciplina, a França do século XIX não tem historiadores da arte suscetíveis
de sustentar a comparação com os colegas germânicos, embora existam traços genéri-
cos compartilhados. Como lembra Herbert Dilly, desde o ano de 1873, os Congressos
Internacionais de História da Arte dedicaram-se a questões como «autenticar as obras
de arte […], situá-las na cronologia geral, fundamentando-se na história dos estilos, e 38. DILLY, Heinrich, «Heinri-
ch Wölfflin: histoire de l’art et
elaborar as regras de inventário das peças de museu […]»38. Não é o conjunto dos his- germanistique entre 1910 et
1925», in: Histoire et théories
toriadores aqui evocados que teriam escolhido escrever como Élie Faure (1873-1937),
de l’art. De Winckelmann à
por exemplo, no início do século XX. No prefácio do ano 1921 a uma nova edição do Panofsky, op. cit., p.113.
primeiro volume de sua História da arte (L’Art ancien), Faure culpa Winckelmann por
ter inaugurado «uma duradoura confusão entre História da arte e arqueologia» (isto
39.FAURE, Élie, Histoire de é, «a literatura e a gramática»)39. Faure escreve uma «sinfonia» metafísica, ontológica,
l’art. L’art antique. Prefácio
à edição de 1921, Livre de de grande fôlego humanista, que procura dar ênfase ao que as obras mais famosas da
Poche, p.32 (História Antiga. história testemunham da sensibilidade, da paixão e da espiritualidade humanas. A
História Medieval. História
Moderna. São Paulo: obra, a imagem constituem o grande «poema plástico concebido pela humanidade»40,
Martins Fontes)
a revelação, ao mesmo tempo histórica e eterna, do ser. Sua História da arte constitui
40. Ibid., p. 29.
uma das contribuições mais estilosas à religião especulativa da arte que caracteriza a
concepção idealista que predominou na filosofia da arte desde os Românticos. Síntese
da espiritualidade artística, de todas as artes, em todos os tempos e todas as civilizações,
sua História pode ser lida como uma meditação quase religiosa. Contemporâneo de
Faure, Émile Mâle (1862-1954) inaugura o estudo científico da iconografia cristã entre
1898 e 1922, com estudos sobre a «arte religiosa» da Idade Média. Ele traz para a mo-
dernidade do século XX o legado dos medievalistas do século anterior, mostrando-se
atento às questões do contexto mental e cultural da arte, como Panofksy o faz pouco
depois. Outro historiador de renome, que teve grande êxito nos Estados Unidos, pou-
co antes de sua morte, é Henri Focillon (1881-1943), conhecido como o autor de uma
meditação intitulada A vida das formas: meditação de um historiador sobre o espaço,
a matéria, o espírito e o tempo. Se a historiografia da arte alemã se mostrou muito
produtiva na criação de potentes modelos metodológicos, nomenclaturas operacionais
e conceitos estruturantes, a francesa apresenta historiadores formulando frequente-
mente uma estética por meio de sua reflexão teórica. Podemos afirmar que Focillon
encarna uma sensibilidade fenomenológica refinada, que caracterizou a reflexão sobre
a arte durante muito tempo, seja ela historiográfica, crítica, literária, filosófica ou an-
tropológica. Quando afirma, ainda no plano da generalidade, que «a obra de arte é uma
41. FOCILLON, Henri, Vie des tentativa rumo ao único, que ela se afirma […] como um absoluto e, ao mesmo tempo,
formes, (1943), Paris: PUF,
col. Quadrige, 1984, pertence a um sistema de relações complexas»41, ele alude à necessidade de investir
p. 1 (A vida das formas, segui-
do de Elogio da mão, Lisboa:
em todos os campos do conhecimento, para comprendê-la. Sobre a Eternidade, diz ele,
Edições 70) «ela mergulha na mobilidade do tempo»42 (história). Pode-se criticar essa vertente me-
42. Ibid. tafísica, mas ela mostra que a percepção formal pode disparar luzes surpreendentes.
Hoje
É contra essa sensibilidade ontologizante que gerações posteriores reagem, por
meio dos paradigmas e das aparelhagens científicas da linguística, da semiologia e 43. Remeto a meu pequeno
ensaio: «O prefácio, instância
da psicanálise.43 A partir dos anos 1960, a relativa perda em dimensão filológica é re- estratégica: alguns exemplos
na historiografia francesa
equilibrada por um «aperto» epistemológico considerável. Enquanto isso, um Robert
da arte», in: Anais do XXVIo
Klein, um André Chastel e outros continuam fazendo uma ótima História da arte Colóquio do Comitê Bra-
sileiro de História da Arte,
iconológica. Louis Marin (1931-1992) e Hubert Damisch (1928-) são dois mestres da (RIBEIRO, Marília Andrés;
BRANCO RIBEIRO, Maria
história da arte semiológica. Eles analisam os sistemas de representação com muita
Izabel, orgs.), Belo Horizon-
força demonstrativa e rigor crítico. Para citar apenas dois livros entre os inúmeros te: C/Arte, 2007, p .190-196.
Encontramos nesses Anais
que os dois publicaram a partir dos anos 1970, mencionarei Détruire la peinture, de outro artigo que apresenta
Marin (1977) e A origem da perspectiva, de Damisch (1987), uma síntese crítica e his- e discute os mesmos histo-
riadores: KERN, Mária Lúcia
tórica na qual o autor lida com saberes mais re- Bastos, «História da arte e a
construção do conhecimen-
centes e se equipara ao Panofsky de A perspectiva to», p. 68-78. Os Colóquios
como forma simbólica (1927). Esses dois livros que o Comitê (CBHA) orga-
niza todo ano apresentam a
representam verdadeiras somas críticas da síntese das principais linhas
de pesquisa em História da
reflexão sobre a representação, sobre a ima-
arte no Brasil.
gem, sua organização semiológica e icônica,
44. Sobre a constelação
os paradigmas que atravessam a tradição e se Benjamin, Warburg, Didi-
Huberman, ler: PUGLIESE,
renovam nela, os saberes complexos que toda
Vera, «O anacronismo como
análise de imagem exige quando ela põe em jogo modelo do tempo complexo
da espessura da imagem»,
saberes como a filosofia, a ciência, a psicanálise etc. in: Palíndromo. Teoria e
Georges Didi-Huberman é um historiador pós-Damisch. Seus livros, que começaram a História da arte, n. 6, 2011,
p. 13-51
ser traduzidos no Brasil, articulam um denso saber para produzir o que propôs chamar
45. O autor deste artigo
de «antropologia do visual». É uma posição de caráter neo-warburguiano, embora, no redigiu o prefácio, intitulado
início de sua trajetória, Didi-Huberman não se apoiasse no Warburg, que ele ainda «Passos e caminhos de uma
teoria da arte», ao livro O
não tinha integrado ao seu pantheon. Antropologia assumida, que não representa mais que vemos, o que nos olha,
São Paulo, ed. 34, 1998 [Ce
um risco, mas uma chance para a História da arte. As imagens artísticas, observadas e
que nous voyons, ce qui nous
analisadas com grande atenção crítica, revelam processos que seu conhecimento apro- regarde, Paris: Minuit, 1992].
Apresenta ao leitor brasileiro
fundado da filosofia (notadamente de Walter Benjamin44) o legitimam a chamar de o teor e a significação do
«dialéticos». As primeiras ideias e argumentações de Didi-Huberman, disseminadas livro no campo da historio-
grafia francesa da arte, desde
em vários livros que se sucederam a um ritmo quase anual 45, encontraram em War- Marin e Damisch.
arte resulta de uma «leitura» que torna as imagens da arte legíveis e sábias, atribuindo
ao «ver» sua pretensa verdade. Assim entendida, ela consagra os valores que ela legiti-
ma a priori. Por meio de uma argumentação rigorosa, Didi-Huberman mostra como,
de Vasari a Hegel, a História da arte consiste na busca dos signos que, no sensível da
imagem, constrõem um sentido «esquematizado» e «sintetizado» pelo discurso cientí-
fico. É essa síntese do «ver» e do «saber» que Didi-Huberman critica. Sua Historiografia
consiste em abrir, nas imagens, o desconhecido e o «invisível» que elas abrigam. Mas,
se ele transmuta também esse «não saber» em texto, sua pesquisa começa sempre com
o confronto com o acontecimento-imagem. É nesse sentido que a epistemologia didi-
hubermaniana, cujo êxito internacional se confirma há anos, envolve disciplinas do
pensamento que antes não costumavam alimentar a História da arte de maneira tão
determinante. Tal historiografia, que também é uma teoria e uma filosofia da imagem,
segue um caminho que condiz com as fortes mudanças que seu material de trabalho
conheceu no decorrer das últimas décadas do século XX: a arte, as artes visuais e outras.
As inquietações de Didi-Huberman e a trilha sólida que elas traçam criam uma História
da arte que sabe se renovar e que, frente às revoluções estéticas, concebe-se com inten-
sidade crítica. Um texto novo corresponde a uma textura artística nova. É isso que legiti-
ma e torna tão potente esse olhar novo, alimentado por problematizações críticas sem-
pre conceituadas. A arte na sua história é considerada um grande complexo de imagens.
Resumiremos o espírito dessa História da arte com as palavras do mestre Damisch. Nas
primeiras páginas de sua Origem da perspectiva – livro que revista e investiga um potente
paradigma histórico das artes e do conhecimento – Damisch recomenda uma disciplina
que não pretenderia fornecer a última palavra a propósito de tudo, que não saberia ser pra-
ticada enquanto tal, senão sob a condição expressa de que o termo que dá seu nome a essa
disciplina [a arte] fosse problematizado por ela e não passasse por natural, e que a questão
dos diferentes usos aos quais [o nome de “arte”] se presta, como a de sua significação últi-
ma, ficasse constantemente presente no horizonte da pesquisa, como também aquela que
constitui seu recíproco: se existe história, do que é a história? Com essa consequência que
a história nunca é melhor, senão lá onde ela se mede com objetos que escapam por parte
49. DAMISCH, Hubert, às suas presas e que impõem de modular novamente seu conceito.49
L’origine de la perspective,
(1987), Paris: Flammarion, A necessidade da autocrítica e autoavaliação foi formulada por Chastel quando,
col. «Champs», 1994, p .14.
frente às extensões sempre maiores da História da arte, ele aconselhava que se fizesse
uma análise de suas origens. Podemos considerar que sua aparente «disseminação»
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