Sobre A Religiao Dos Quiocos
Sobre A Religiao Dos Quiocos
Sobre A Religiao Dos Quiocos
DOS QUIOCOS
POR
https://archive.org/details/sobrereligiaodosOOsant
ESTUDOS, ENSAIOS
E
DOCUMENTOS
N.° 96
SOBRE A RELIGIÃO
DOS QUIOCOS
VOLUMES JÁ PUBLICADOS XA COLECÇÃO
DE «ESTUDOS, ENSAIOS E DOCUMENTOS»:
48 — Contribution à connaissance de
la géologie de la province portugaiss
la
de Timor — par Robert Gageonnet et Mareei Lemoine.
49 — O de Angola. Panorama actual da sua cultura, comércio
feijão arma- e
zenamento — por A. T. Constantino.
50 — A grupamento caracterização étnica dos indígenas de Moçambique —
e
por António Rita- Ferreira.
51 — Acerca de uma classificação fitossanitária do armazenamento — por
Amílcar Lopes Cabral.
52 — Minerais de fracção argilosa de solos de Angola. I Curvas de desi-
dratação —
por J. M. Bastos de Macedo, E. P. Cardoso Francc
e J. C. Soveral Dias.
63 — Caracterização das principais unidades pedológicas do «Esboço da caria
dos solos de S. Tomé e Príncipe* — por José Carvalho Cardoso.
54 — Subsídio para o estudo da peripneumonia contagiosa dos bovinos em
Angola —
por António Martins Mendes.
55 — A entomofauna dos produtos armazenados. Corcyra cephalonica (Staint)
(Lepidoptera, Pyralidae) —
por Maria Manuela Carmona.
56 — —
A rte cristã na índia Portuguesa por Carlos de Azevedo.
57 — Mahamba — Tentativa de interpretação artística psicológica de do-
e
cumentos de arte dos Negros Africanos — por António de Oliveira.
68 — Possibilidades de aplicação das espécies ultramarinas nas diversas indús-
trias da madeira — por Luís de Seabra.
59 — Influência dos tratamentos insecticidas no poder germmativo das sémen
trs (o caso particular do trigo) —
por António Henriques Pinto de
Matos.
60 —O comércio mundial de madeiras tropicais africanas — por Manue 1'
Ferreirinha.
61 — O —
ferro em Medicina I parte— por Carlos Trincào et alii.
73 — Contribution theory
to certain non-linear
the of equations differential
— por Rui Pacheco de Figueiredo.
74 — Aspectos do povoamento branco de Angola — por do Amaral. Ilídio
SOBRE A RELIGIÃO
DOS QUIOCOS
por
LISBOA- 1962
SU MÁRIO
INTRODUÇÃO 15
L — RELIGIÃO 19
— Conceito
1.1. 19
— Elementos
1.2. 21
2. — MITOLOGIA 25
3. — SUPERSTIÇÃO 29
4. — MAGIA. ANIMISMO E FEITICISMO 31
4.1.— Magia 31
5. — TOTEMISMO 51
6. — NATURISMO 57
7. — TABUÍSMO 67
8. — MONOTEÍSMO 71
8.1.— Em geral 71
8.2.— Crenças 79
8.3.— Moral 122
8.4.— Culto 136
ESTAMPAS 153
RESUMÊ 155
SUMMARY 156
BIBLIOGRAFIA 157
t
INTRODUÇÃO 0)
1 .2 — Elementos.
— Dogmas.
1.2.1
religiões. A numa
divindade superior, o maior ou menor número de
fé
1. 2.2 — Moral.
Em todas encontramos a lei moral (bonum jaciendum, malum est
2
vitandum) ( ) que, a priori, pelo seu conceito e pelo seu fim e, a poste-
riori, pela experiência, é universal, e que, intrínseca e extrinsecamente,
é imutável.
car-se aos casos correctos, pela consciência, nem a sua aplicação vez
alguma a vem contradizer.
Parece notar-se certa confusão quando, ao falar-se de elementos
da religião, se diz moral, lei moral e lei natural. A lei moral outra coisa
não é que a lei eterna ou regra primária, outra coisa não é que a lei
1.2.3 — Culto.
Formam o culto, duma maneira geral, os meios de que o homem
se serve para entrar em contacto com o mundo sobrenatural: oração,
oferta, sacrifício, comunhão... O culto é, portanto, o exercício dos
actos da religião.
ia
1
) «Pia elevação da mente a Deus».
( )
2
«Petição a Deus do que é lícito».
( )
3
Cit. de A. Le Roy, La Religion des Primiiifs. P. 306.
(*) Ibidem.
( )
5
Cit. de A. Le Roy. Ibidem. P. 297.
( )
6
Cit. de A. Le Roy. Ibidem. P. 297.
também dos outros mitos tem sido exagerado pela chamada teoria
da mitologia da Natureza. Para Oliveira Martins, «a mitologia pri-
C
1
) Cit. de A. Le Roy, La Religion des Primitifs, p. 331.
4.1 — Magia.
4.1.1. — Para Sartre (O Imaginário) toda a magia é imaginação
e toda a imaginação é magia. A ser assim, em todas as nossas funções
mentais lá estaria de algum modo a atitude mágica.
Beroso n escreve que a crença mágica constitui «a exteriorização
dum desejo que enche o coração» (
]
).Há neste conceito de magia,
portanto, em relação ao de Sartre, uma menor extensão.
Também não devemos considerar a magia dos Bantos apenas
como «a arte de reduzir ao serviço do indivíduo ou do grupo social,
por certas práticas ocultas e de aspecto mais ou menos religioso, as
forças da Natureza ou de captar as influências do mundo invisível» 2
( ).
1
C ) «O erro geral torna-se lei».
2
( ) A Magia, p. 16.
3
( ) Eduardo dos Santos, Sobre a «Medicina» e Magia dos Quiocos, pp. 139
e 140.
analogia.
Os sofismas sobre os quais se baseiam os processos mágicos são
2
quatro ( ): pars pro totó, juxta hoc ergo propter hoc, post hoc ergo
propter hoc e non causa ut causa. Com rigor, são antes paralogismos.
Post hoc ergo propter hoc e non causa ut causa são, na verdade, aspec-
tos duma só e mesma falácia, na qual se toma como causa uma mera
alma ou um espírito.
( )
2
O
chamado envult amento, tão vulgar entre os povos bantos, pode englo-
bar-se na magia contagiosa. O feiticeiro prepara o vulto, uma imagem que
representa a pessoa a visar, e age pensando que os efeitos produzidos sobre
ela se transmitirão à pessoa representada.
f
!
post hoc ergo propter hoc e non causa ut causa. Frazer procurou sin-
também uma magia dos contrários, essa fórmula tem de abranger não
só a similitude como também a contradição. Base comum destes dois
princípios fundamentais (um próprio da magia contagiosa e outro da
magia simpática) seria a crença na «influência ou simpatia física que
liga a causa ao efeito (*).
qui fait la différence entre un corps qui vit et un corps qui est mort,
quelle est la cause du sommeil, de la vielle, de 1'évanouissement, de
la maladie, de la mort? En second lieu, que sont ces formes humaines
qui apparaissant dans les rêves et dans les visions? Considérant ces
deux groupes de phénomènes, les philosophes sauvages de jadis firent
sans doute leur premier pas en concluant que tout homme a évidem-
ment deux choses qui lui appartiennent — sa vie et son fantôme. L'un
et 1'autre sont manifestement en rapport étroit avec le corps: la vie,
en le rendant capable de sentir, de penser et d'agir; le fantôme, en
étant son image ou son second moi, tout deux, aussi, sont représentés
comme des choses séparables du corps, la vie comme pouvant s'en
aller et laisser le corps insensible ou mort, le fantôme comme appa-
raissant à des gens três éloignés de ce corps. Le second pas... consiste
í
1
) Em The Making of Religion, Londres, 1898.
1
C ) Citação de Arthur Ramos, Introdução à Psicologia Social, p. 300.
2
( ) Citação de Arthur Ramos. Ibidem, p. 302.
Ela é, o mais das vezes, indiferente a isso. Daí o motivo por que se
torna difícil segui-la» (*).
4.3.2. —
Sabemos dizer-se que a teoria do pré-logismo foi revo-
gada pelo próprio Lévy-Bruhl e sabemos que ela já foi rebatida por
etnólogos eminentes como Boas, Von Preuss, Kraeber, Lowie...
Mas parece-nos que pode aceitar-se a teoria como hipótese fecunda de
trabalho.
A mentalidade pré-lógica não tem nada que ver com uma anterio-
ridade da lógica no tempo. E, se o autor diz que a mentalidade dos
primitivos pode mostrar-se «impermeável à experiência e insensível à
contradição num grande número de casos», isso não contradiz a possi-
bilidade de evolução, a possibilidade de aproximação da mentalidade
do homem «branco, adulto e civilizado». Ele mesmo escreve: «A menta-
lidade das sociedades inferiores, ao tempo em que se mostra menos
impermeável à experiência, fica por muito tempo pré-lógica e conserva
a impressão mística sobre a maior parte das representações» 2
( ). Mas
a evolução será não linear simples, ou de elementos, mas de estruturas.
É certo que todos os homens, qualquer que seja a sua cor, têm a
mesma natureza. As potências que caracterizam a vida intelectiva são
a inteligência e a vontade. Mas uma coisa é a inteligência, outra coisa
é o pensamento. A potência (potencialidade) e o acto (actualidade) são
do mesmo género do ente, quer dizer, ou ambos de ordem acidental ou
ambos de ordem substancial. O acto é a existência e a operação, e a
potência da existência é a essência, e a potência da operação é a facul-
dade. Portanto, há uma distinção real entre a essência e a faculdade.
Isto equivale a dizer que a teoria de Lévy-Bruhl não repugna em nada
4.4 — Feiticismo.
Com rigor, não se pode dizer que o ngânji seja o juiz deste povo.
Será melhor considerá-lo o árbitro das lides de direito privado. É pro-
posto por uma das partes, ou por outrem, mas sempre com consenti-
mento do autor e réu. A organização política nativa não se encontra
A sua actividade reduz-se a fazer o temível uanga, que irá matar, causar
a doença ou servirá para proteger o ladrão nos assaltos às cubatas.
Será nganga quem quiser. Aquele que desejar, pode compor os
seus venenos, os seus uanga e fazer mal.
O táhi pouco mais é que o adivinhador das causas das doenças e
da morte. O táhi de prestígio pode, porém, imiscuir-se nas mais variadas
questões sociais e ser elemento útil ou pernicioso, consoante a sua
índole e vontade. No seu ngômbu (um açafate de junco entrançado,
ou, na sua falta, uma bacia vulgar) junta ele um sem-número de objectos
extravagantes que, um por cada vez, consegue fazer afluir ao rebordo
da frente (ulôngu), coisa que lhe servirá de base à sua decisão.
O que na realidade acontece é que o táhi, quando suspeita a con-
sulta, apressa-se logo a obter os informes possíveis sobre o assunto
e. no agitar do seu ngômbu, preocupa-se com levar ao ulôngu aquele
dos tupele cuja interpretação mais se coadune com a natureza dos
informes, com as pretensões do cliente ou a sua própria vontade.
Pode o táhi considerar-se feiticeiro quando toca a sua mbinga, uma
gaita de chifre de kai, e «consegue» fazer parar o fogo que o raio deitou
às cubatas... e quando abana a tchitola para «impedir» a chuva...
O
mbuke, o verdadeiro mbuke, lida apenas com a realidade.
É o médico quioco. Faz itúmbu para as doenças e nas suas funções
reclama a ajuda de Nzâmbi. O autêntico mbuke trabalha à margem da
magia e do feiticismo.
Acontece, as mais das vezes, reunirem-se no mesmo indivíduo as
funções de táhi e de mbuke.
De qualquer modo, as designações de táhi e mbuke referem-se
apenas à magia branca, e nganga sempre à magia negra. Por outras
palavras: táhi e mbuke são feiticeiros bons; o nganga é o feiticeiro mau.
O nganga é, Não negamos
nas sociedades quiocas, temido e odiado.
que ele seja o terror dos maus e desempenhe também uma função de
prevenção de crimes. Mas é também o temor dos bons e o uanga é a
ceiros quiocos.
C
1
) Citação de A. Le Roy, La Religion des Primitifs, p. 110.
2
( ) Este autor abandonou o totemismo em 1910 quando publicou Totemism
and Exogamy.
( )
3
Citação de Arthur Ramos, O Negro Brasileiro, p. 249.
4
( ) Citação de A. Le Roy, Ibidem, p. 110.
x
( ) «Tu nganje».
2
( ) Citação de Adolphe E. Jensen, Mythes et Cultes chez les Peuples
Primitifs, p. 253.
Uma coisa é certa: este povo tatua-se hoje mais que em tempos antigos.
E isto é de algum modo sinal de que o faz por enfeite. Demais, nem
todos os nativos se tatuam. É frequente encontrar quiocos sem qualquer
tatuagem. Os mais tímidos evitam a tatuagem por incisão.
Há entre este povo, como entre outros bantos, uma instituição que,
vista por um europeu, não deixa de ser pitoresca: o tabo da sogra.
Um homem não pode trocar um olhar que seja com a sogra. Se ela
vai a passar, o genro tem de parar e voltar a cara para o lado. Acon-
tece, por vezes, surgir um litígio em que entram genro e sogra. Serão
capazes de permanecer tempo infindo, lado a lado, na resolução da
querela, sem se olharem, sem se tocarem. E, quando há violação destas
normas por parte do genro, o sogro, normalmente, ou a sogra, por vezes,
não se fazem esperar a reclamar a indemnização, relativamente avul-
tada. A categoria social da sogra determina o montante da indemni-
zação.
( )
]
Norte — Ku-sângu (para onde seguem os rios); Sul — Kú-tu (de onde
vêm os rios). •
tchipinda, kaua nhi kachítu (caçador, cão e caça) ou somente muta (cão),
a estrela de alva, por mutúmbu (ou tchimbalasese), as Plêiades, por
kimguluia...
Nenhum dos astros é adorado e parece que o Sol e a Lua são
personificados, como se deduz do ideograma chamado Kalunga{-) e
do mito que lhe anda ligado, de lendas e respostas que nos deram
muitos nativos. Várias destas foram acompanhadas da razão seguinte:
quando as mulheres entram na nzuo riá muiangai*), eufemismo cora
que querem significar a menstruação, a Lua não aparece, sinal de que
deve também ter-se recolhido...
( )
6
Luinza — época das chuvas.
( )
7
Luchoho — cacimbo.
(
8
) Ngulúngu — Tragelaphus scriptus.
( )
9
Mpúlu-gnu — Connochaetes taurinus.
homens.
A relativa fertilidade e a vastidão dos terrenos em culturas itine-
5
( ) Jacaré.
Maianga — Mahamba do caçador.
7
( ) Lumbúndu — bala.
8
( ) Luálu — prato de junco.
mafika (
]
(
2
) Uta uá kuasa — arco.
3
( ) Muata-muári
mulher, que pode — primeira não ser a primeira no
tempo, mas aquela que, pela sua conduta, mereça tal tratamento.
( )
4
Namuári —
o mesmo que muata-muári.
( )
5
Pemba caulino branco. —
( )
6
Mukúndu caulino vermelho. —
(
7
) Tchingúvu — tambor tetragona! alongado de uma só abertura.
ciativa de fazer com capim, junco e argila uma estatueta que dá seme-
lhança com o muângi das florestas: um gigante dum só olho, dum
só braço e duas pernas ágeis como o vento. Maneja este génio uma
moca que duma só pancada abate o mais valente bicho. Mau grado
esta acção benfazeja, emborca o maruvo de quantas cabaças encontra
dependuradas nas palmeiras lukele e karima e come quantos favos
encontra. É, mais simplesmente, um inveterado beberrão e um incorri-
gível glutão, que pode, em recompensa, ajudar de outra maneira o
caçador.
Sempre que dá com um caçador chama-o para junto de si. Man-
da-o sentar e tocar a moca. Pede-lhe tabaco, que fuma, sôfrego, no
seu cachimbo. Por fim, deita as mãos à sua própria cabeleira e arranca
uma madeixa, que põe no fornilho do pêchi para o caçador. Este,
ainda não refeito do susto, fuma e torna-se então um soberbo caçador.
—
É uma hamba em tudo semelhante à que atrás se des-
Kuanza.
creveu com o mesmo nome, com o fim de servir agora para a pesca.
Acreditam em animais lendários, como são o kese, existente nos
rios, que parte as varas das canoas e come as pessoas, o tchífi (ou
mukiritchí), parecido com o jacaré 3
( ), que tem o seu habitat nos
grandes rios e suga o sangue das pessoas que apanha.
(*) Mukôndu —
Myonax sanguineus.
2
C ) Muehe —
Hymenocardia acida Taul.
O
3
) O jacaré, segundo parece, mata as pessoas por asfixia e só depois de
os cadáveres entrarem em decomposição os come.
mitivos.
7.2. —A vida dos Quiocos está cheia de tabos, tabos que dizem
respeito à moral, tabos supersticiosos, parasitas da moral e tabos de
mera conveniência. Por curiosidade, indicam se alguns.
1
C ) M ase mia — larvas comestíveis.
O Kafundeje— neo-menstruada.
3
( ) Mukúndu — caulino vermelho.
(*) Mukanda — da puberdade.
rito
5
í ) Napasa — mulher que deu à luz gémeos.
1
C ) De lebibus, n, 8.
x
( ) Citação de Wilhelm Koppers, O Homem Primitivo e a sua Visão do
Mundo, p. 13.
!
( ) Citação do Prof. António da Silva Rego, Curso de Missionologia,
p. 105.
toda a força está Deus, Espírito e Criador. É Ele quem tem a força,
o poder por si mesmo. É Ele quem dá a existência, a subsistência e o
desenvolvimento às outras forças.»
Depois d'Ele vêm as outras forças criadas, em cujo topo está o
homem. «O homem é a força suprema, a mais poderosa entre os outros
seres criados. Ele domina os animais, as plantas e os minerais. Estes
seres inferiores, por predestinação divina, não existem senão para a
vital do proprietário que age, porque se sabe que ela adere ao ser da
coisa possuída ou utilizada por ele»; pela lei da imitação, «a palavra
e o gesto do homem vivo são considerados, mais que outra qualquer
manifestação, como a expressão formal da sua influência vital».
0) Citação da revista Portugal em Africa, ano iv, n.° 24, Novembro, 1947.
2
( ) A. Le Roy, La Religion des Primitifs, pp. 173 a 177.
das forças, tal como foi exposta, haveria logicamente de levar a uma
religião com o carácter necessário de absorver as actividades dos
indivíduos para Deus.
A teoria de Tempels exigia, parece-nos, uma hierarquização das
forças para evitar uma conclusão panteísta do mundo e da vida, con-
clusão que seria a mais avessa à religião dos nativos. E não bastava
a hierarquia das forças. Era preciso que uma força inferior não exercesse
por si mesma uma acção vital sobre uma força superior. E insiste-se
!
( ) Citação de Arthur Ramos, Introdução à Psicologia Social, p. 324.
8.2 — Crenças.
%2.l. — Deus.
Flausino Torres admira-se de que se afirme a existência duma
religião entre os primitivos e se tenha levado a «política religiosa» até
ao ponto defalar em «vestígios de monoteísmo» —
como se exprime (*).
Pois nós vamos mais longe: afirmamos a existência dum autêntico
monoteísmo entre os Quiocos.
Para este povo, Nzâmbi é o Criador, Senhor Supremo, princípio
do Bem e todo Poderoso.
Múltiplas vezes perguntámos a vários nativos quem criou Deus.
Obtivemos sempre a mesma resposta: «Nzâmbi muene uaringile» («Deus
criou-se a si mesmo»). «Uaringile atu ésue nhi iuma iêsuen («Criou
todas as pessoas e todas as coisas») — dizem a cada passo.
Sobre a sua natureza, limitam-se a dizer: «ku mésu jétu kanda
tumona kama» («não o vemos com os olhos»); «kutua-mu-ningikine
nhi kári nhi mujimba ni káchi mujimba» («não sabemos se tem ou não
corpo»). E um deles disse-nos um dia: «Nhi kári nhi mujimba ápua
akuka, ésue aze atangirile átu. Nzâmbi káchi nhi mujimba ngué uá
iêtue; káchi ápua akuka. Nzâmbi kanápu ngué fúnjh («Se tivesse corpo,
seria muito velho, como todas as pessoas que duram bastante. Nzâmbi
não tem corpo como nós; seria muito velho. Nzâmbi é como o vento»).
«Nzâmbi muílu árh —
«Deus está no Céu». Criou o mundo e os
homens e entregou o seu governo aos espíritos, ideia que está na base
das mahamba religiosas, as quais, por viciação e abuso, levaram às
8.2.2 — Criação.
Colhemos vários mitos relativos à criação:
Segundo o mais vulgar, Nzâmbi criou Têmbu (mulher) e Tumba
Kalunga (homem). Certo dia, este cobiçou a mulher mas ela sentiu
0) «Não comas este paur> —-expressão que significava: «.Não possuas esta
mulher».
2
C ) Anjo da guarda de Nzâmbi — como nos traduziram alguns nativos.
será tua, que saltaste por sobre o meu «kapikápi» quando devias tê-lo
retirado com jeito».
b) Acabada a criação, foi o Sol ter com Deus para lhe prestar as
suas homenagens. Kalunga lhe deu um galo para o jantar e lhe pediu
que voltasse no dia seguinte. Manhã muito cedo, cantou o galo, o
mesmo que Kalunga dera ao Sol. Este voltou junto de Deus, o qual
disse: «Ouvi cantar o galo que te dei ontem. Podes ir, mas todos os dias
vais aparecer aqui». E o Sol foi-se embora, e todos os dias aparece.
A seguir, foi a Lua render as suas homenagens. Recebe também
um galo e a recomendação de aparecer no dia imediato. À maneira do
que acontecera com o Sol, o galo cantara cedo e a Lua fora ter com
Kalunga. Este disse-lhe então: «Tu recebeste ontem um galo de pre-
1
C ) Kalunga é uma designação menos frequente de Deus. É também o termo
de lepra, por ser ela uma terrível doença que consideram mandada por Deus;
é uma designação de grandeza, de infinito. Assim, Kalunga-luíji significa mar
(luíji — -rio). Isto se pode ver no seguinte provérbio: «Tchahuma nguárí —
mukôndu; tchakuaha («oNzâmbi — kalunga» que afugenta a perdiz é o mu-
kôndu (Myonax sanguineus), o que Deus dá é infinito»).
2
f ) Posição no ideograma.
sente mas não o comeste. Pois bem. Daqui em diante vens ver-me todos
os dias». E assim acontece...
É agora a vez do homem. À semelhança do que fizera com o Sol
e a Lua, Deus lhe deu um galo e o mandou voltar no dia seguinte.
Cheio de fome, cansado de uma fatigante viagem, o homem matou o
galo e começou logo de o comer. No dia marcado, já sol alto, levan-
tou-se e foi ter com Kalunga. Este lhe perguntou pelo galo: «Comi-o.
Estava cheio de fome» — respondeu o homem. «Está bem» — disse
Kalunga. — «O galo era teu podias fazer dele o que quisesses. Mas o
e
Sol e a Lua vieram visitar-me também, receberam cada qual um galo
e não o mataram como tu. Toma conta: já que o mataste, morrerás
também, e à hora da morte virás apresentar-te a mim».
Sobre estes mitos muito poderia agora dizer-se. Mas limitamo-nos
a afirmar que o primeiro missionário a pisar as terras de Capaia, onde
colhemos o grosso dos dados que apresentamos, o começou a fazer há
uns dez anos apenas. Não pôde o seu dinamismo, a sua boa vontade,
o zelo apostólico, por falta de tempo e de meios e pela renitência do
nativo, conseguir, lá, mais que umas poucas de catequeses que, com
mais auxílio de Deus que dos homens, se têm mantido na região do
lago Carumbo, junto da ponte do Chicapa e na sede do Posto. A Missão
com sede em Henrique de Carvalho, tem a seu cargo uma área desme-
suradamente extensa para dois ou três missionários... Também por
esta razão a missionação pouco se tem feito sentir na área do Posto de
Capaia, que chefiámos durante perto de quatro anos e onde colhemos
os melhores informes sobre a religião dos Quiocos. Muitos dos seus
habitantes nem sequer viram ainda o missionário.
8.2.3 — Homem.
8.2.3.1 — Natureza.
Tem-se defendido muito que os nativos distinguem três elemen-
tos na essencialidade do homem: o corpo, a alma e a sombra. Para
vida»)...
8.2.3.2. — Destino.
Crêem que os bons vão para o Céu, onde está Nzúmbi. que as
almas dos maus vão para Satanhe ( 2 ), ou entrarão no corpo de certos
animais ou se tornarão espíritos errantes pela Terra.
1
f ) Plural de tchipúpu. Vide p. 115.
2
( ) Também denominado Satana, Diábulus. Interessante a latinização das
expressões.
8.2.3.3. — Nome.
O nome (njina) é a identificação com algo da pessoa ou com a
tudo quanto esse rito transmite aos indígenas. Só depois dele é que
os homens poderão participar na vida política, religiosa e social da
1
f ) Espírito.
2 Plural de tchipúpu.
C )
0) Circuncisão.
Oh mama iámi( x )
É, é
Puó ambatchia iaia
Muatchímbu ( 2 )
Káchi mirímu ( )
3
1
C ) «Oh minha mãe*.
2
C ) «Meu irmão Muachimbo casou com uma mulher*.
C )
3
«Não tem serviço*.
4
C ) O casamento é virilocal. Só entre primos, nalguns casos, é possível
o casamento seja uxorilocal. [Já vimos empregada a palavra matrilocal para signi-
ficar que, no matrimónio, é o marido que vai para a aldeia da mulher. A expres-
Nguanguângua 0)
Kasemene ( 2 )
Mukuza meza ka-mú-ria(')
Nguanguângua
lá mi nhi tchâmi tchaua ( ) !
O Nome de mulher.
(
2
) Deu à luz.
f ) «Veio uma raposa e comeu-lho (filho)».
(*) «O meu (filho) está (subtendido úrf) no meu fim».
5
( ) Responsabilidade civil.
(') Fidalgo.
7
( ) Crime.
(ívisire cum crepito vel sine crepito)), ninguém pode rir-se sob pena
de choruda multa. Se um velho soba dá uma queda, os seus rapazes
terão de, no local, fazer um montículo de pequenos troncos (
!
).
Quando alguém ali passar, deitará por sobre os paus umas folhas
colhidas perto ou arrastará com o pé, para o montículo, uma porção
de terra. Se o não fizer, virá a ter dores nas pernas...
C
1
) Tchisôngu tchá makânu.
(
2
) Corno de antílope. Enfeite a prender uma madeixa de cabelo, muito
cobiçado noutros tempos.
( )
3
Chapéu antigo que se vendia no comércio.
4
( ) Cesto de junco para transporte de mandioca.
(
5
) Casa circular, de paredes baixas e cobertura cónica, apoiada num
pontalete ao centro e localizada mais ou menos a meio da sanzala. É o clube
dos homens adultos.
Ainda que, sob qualquer dos seus aspectos, tenham de ser con-
denadas, a escravatura e a escravidão, entre os nativos, raras vezes
tomam, contudo, aquele cunho de degradação da pessoa humana ao
nível de res. Quase nunca, em África, elas tomaram aquele carácter
que vingou na velha e civilizada Europa e que, hoje, lá para as bandas
do Oriente, está denunciando toda uma nova civilização... O senhor,
lá em África queremos dizer, tem de dar ao escravo mulher, comida
e panos, e nunca o pode matar. Antes da ocupação europeia, os
escravos eram moeda corrente. E isto, como muito bem nota José
Redinha, a depõe, a seu modo, a favor da valorização do indivíduo.
Em alguns casos, geralmente confundidos com a escravatura, a moeda-
-humana era usada como indemnização por vidas, espécie de preço
de sangue, fundamentado no conceito de que a perda dum indivíduo
só com outro indivíduo se paga — seja dizer que não há dinheiro
que pague o valor duma vida humana» 0).
A influência europeia, duma maneira geral, e a acção aturada
das autoridades administrativas e da religião católica, em particular,
Chueue é
Oh mama iámi ( ) x
Mupema Muanzeia ( 2
)
Au unalande kinga( 4 )
5
Úri ku-lútue ia? ( )
8.2.4.1. — Nascimento.
É crença deste povo que o múku de cada homem é dado por
Deus, em cada caso. O homem e a mulher, no acto sexual, geram um
feto, que só Deus animará com um coração. As mahamba, porém,
impedem muitas vezes a concepção da mulher, havendo necessidade
de certos rituais para garantia da sua força genésica. São as chama-
das mahamba de geração, de que vamos indicar algumas:
( )
x
Oh minha mãe.
(
2
) Muanzeia está bem.
(
3
) Tem um filho.
(
4
) Este comprou uma bicicleta.
( )
5
Quem está na frente?
( )
G
Sanzala que foi do posto de Lóvua e é agora do de Capaia.
«Akíchi á mbala» i
1
). — O marido espeta, atrás da casa. no
alpendre e no chão, lado a lado. uma estaca de mulemba (
2
) e outra
Kajia (
6
). — Consiste numa pequena escultura de madeira (cerca
de 10 cm), que de algum modo lembra um pássaro.
Coloca-se na cobertura da casa, no alpendre.
Mahamba á muia (
5
) (fig. 21). — No cinto exterior (muia) as
mulheres trazem atadas as mahamba á muia: duas pequenas escul-
turas de madeira a imitar cães (macho e fêmea); duas esculturas de
pássaros (macho e fêmea); uma tchitanga (uma estatueta, de cerca
de 2 cm, semelhando um homem com as mãos a segurar o ventre);
uma jinga (dois pequenos paus juntos e amarrados por uma rede de
algodão).
( )
2
Muvuma — Mitragyne stipulosa Kuntze.
(
3
) Muhêngu— Liliácea de chana.
( )
4
Mugonga— convolvulácea do muchito.
5
( ) Mahamba á muia — Mahamba do cinto.
( )
5
Kai — Sylvicapra grimmia.
(
6
) Musa — Xilopia aethiopica (Dunal) A. Rich.
4
mutôngu ( ).
filhos».
Encontrámos outra hamba com o mesmo nome: uma imagem
andromórfica de capim barreado com argila, a dar ideia de um
muângi ( 6 ). Esta hamba é também do caçador.
O Casa da hamba.
(
2
) :—
Muvuma Mitragyne stipulosa Kuntze.
( )
3
Munda — Symphonia gabonensis (Vesque) Pierre.
( )
4
Mutôngu — Parinari capensis Harv.
( )
5
Esta hamba é essencialmente para provocar a geração.
6
( ) Vide p. 118.
( )
7
Musangula — árvore do muchito.
(
1
) Tâmbue — leão.
2
( ) Casa do Leão.
(
3~) —
Muvuma Mitragyne stipulosa Kuntze.
( )
4
Mutôngu — Parinari capensis Harv.
í
5
) Munda — Symphonia gabonensis (Vesque) Pierre.
( )
6
Pemba — caulino branco.
(
7
) Mukúndu — caulino vermelho.
( )
8
Lukótchi — cabeleira.
( )
9
Tchikuakuale — corvo.
mulher juntam, por cima deste pau. um monte de terra até o cobrir.
O marido mata uma galinha, que ambos comem. As penas das
asas são aproveitadas para ambos as porem na cabeça, a jeito de
diadema, que conservam de manhã à noite.
C
1
) Mukula — Pterocarpus angolensis D. C.
2
( ) Kasuâmu — erva da chana.
3
( ) Kahemba — de tuhemba.
sing.
4
( ) Casa das tungonga.
( )
5
Tchizau— pequena cabaça.
C )
6
Mundo — Symphonia gabonenses (Vesque) Pierre.
7
f ) Mulêngu — árvore do muchiío.
8
( ) Kangonga — qualquer árvore tombada pelo vento.
C
1
)
— Maprounea africana Mucll Ar.
Mufulafula
( )
2
Musole— Bombax reflexum Sprague.
( )
3
Mukósu — Albizzia gummifera C. A. Sm.
Os frutos de muhásu 1
i ) só os usa a mulher (napasa) que tiver
dado à luz gémeos. O nascimento destes é celebrado com danças e
Mama napasa 2
( )
U buanga 3
( )
0) Muhásu —
Schrebera affinis Lingelah.
( ) Mama napassa
2 —
mãe napasa.
3
( ) U buanga —-fruto de muhásu.
4
( ) Túmbi — ratos do mato.
5
( ) Masenda — larvas comestíveis.
6
( ) Makósu — larvas comestíveis.
C) O conteúdo das cabaças é previamente seco. Mas é sobejamente conhe-
cido que os nativos comem muita carne em estado adiantado de putrefacção.
da porta da cubata.
0) Masólu —
Também dão este nome a uma hamba que pode ser feita
( )
8
Casa da hamba.
9
( ) Tchikúku — Ochthocosmus candidus (Engl. e Gilq.) Mali. F.
Musasa — Cussonia angolensis Hiern. (?)
(
n
) Muhonga — árvore da chana.
(
12
) Mukula — Pterocarpus angolensis D. C.
(
Ji
) Kata — argola de capim.
(
2
) Mukôndu — Myonax sanguineus.
( )
3
Mukuângu — Memecylon flavoriens Dak.
(
4
) Muiemaema —
arbusto da chana.
f )
5
Os Quiocos sabem muito bem que os venenos são os melhores feitiços.
( )
6
O parêntesis é nosso.
(
7
) De Medicina Gentílica dos. Bijagós. .-. ......
deite uma caneca de água sobre ele c lhes escorra sobre as cabeças.
Cortarão depois uma tira dum pano usado em vida pelo morto e, se
Lúmbu ria-mu-zenga ( 3 )
Lúmbu káchi kúri mucman ( 4 ).
pela viúva mais velha da aldeia. Ali tomam banho e de lá saem para
uma encruzilhada de carreiros onde já está colocada a porta da casa
do defunto. Sentam-se numa extremidade dela e deixam que à outra
extremidade lancem o fogo. Em certo momento, levantam-se e regres-
sam à sanzala. A família do defunto faz então, para elas, uma casi-
nhota (nzuo riá ngúngu), onde terão de dormir quatro noites seguidas.
Para completar o ritual terão ainda de ser fumigadas, na tchiota, com
folhas a arder de mumbumbuíji. Depois de receberem da família do
l
( ) Musúngua — Cobretum laxiflorum Welw.
(') Mutúndu —
Afromomum Daniellii K. Schum.
( )
2
Muehe - - Hymenocardia acida Taul.
( ') Sângu — maracás.
(*) Muinda — homem das andas.
1
f ) Kasonga — uma mão-cheia de capim, de raízes para cima, em forma
de bastão, que enfeita o cume da cobertura. Se as duas águas, a anterior e a
posterior, são trapezoidais, o enfeite toma outra forma e o nome de muchínji.
2
( ) É daí que autores mal informados querem ver em certos ritos deste
povo a existência de bosques sagrados, quando, na verdade, é apenas o respeito
pelas sepulturas dos seus maiores.
8.2.5. — Espíritos.
8.2.5.1. — Pelo que atrás ficou dito se conclui que a hamba é sinó-
O kambala é hoje raro. Usa uma máscara enorme presa aos braços
por cordas e o bailarino receia que, no frenesim do ritmo, a deixe cair
diante sobretudo das mulheres e dos miúdos.
Tupende 3
( ) são todas as caraças esculpidas por um indígena
de nome Pende que vivia no Congo ex-Belga. Pintava ele todas as suas
í
1
) Mukíchi da mulher. Também chamado, mais modernamente, mukíchi
uá muana púo {mukíchi da jovem mulher).
2
( ) Ikolokólu
—
padrinhos dos circuncidandos.
( )
3
Tupende — pl. de ka pende.
O kátua é todo ele vestido com uma malha inteira de ráfia sem
quaisquer aberturas para os olhos, ouvidos ou boca. Por cima, veste
um nzômbu {
l
) dos circuncidados. Este mukíchi — dizem — não tem
olhos, boca e ouvidos e por isso não responde a qualquer pergunta
que se lhe faça. Só acena com a cabeça e faz sinal batendo com duas
varas uma na outra. Normalmente, dança no início de qualquer festa
da circuncisão.
Ninguém, a não ser o dono, pode mascarar-se com a caraça dum
mukíchi. É uma ofensa grande para o seu proprietário. Pode este
fazer mesmo uma estranha mistela que permite à máscara aderir à
cabeça de quem, sem devido consentimento, a use. E só ele poderá
conseguir que o ofensor dela se liberte.
Nenhuma mulher, a não ser a namuári do ngangahmukanda na
circuncisão, nenhuma criança poderá identificar o dançarino ou olhar
as caraças e vestimentas despidas.
Os conhecidos dançarinos, pelo malabarismo dos gestos e movi-
mentos, são muito cobiçados das mulheres...
Kapuakala. — Aquele
que for a enterrar vestido apenas com uma
pele de kai tornar-se-á tchipúpu e vagueará pelos caminhos, matando
quem encontrar.
É o que os maus receiam: serem levados para a tumba com uma
pele de antílope. O nganga teme que as suas vítimas ou familiares delas
lhe vistam no funeral uma pele de kai. É isto espírito, portanto, o
temor e o castigo dos maus.
x
( ) Kanjíri — Lonchura cucullata.
2
( ) Mupáfu — Canarium Schweinfurthii Engl.
O soba tem inúmeros deveres para com a sua gente. Deve cum-
pri-los com perfeito sentido de justiça e igualdade de todos. Este espí-
rito deve certamente destinar-se a disciplinar as suas funções e incum-
bências.
coisa vulgar. Matar nas chuvas, isso sim, é que é próprio do verdadeiro
caçador.
plinar o fúri l
( ) de modo a exercer a profissão em proveito de todos.
Todo o homem adulto almeja possuir uma espingarda. O bom fer-
reiro tem sempre que fazer. Mas não vá ele trabalhar apenas para
0) Fúri — ferreiro.
soa, a quem tira o coração. Dele utiliza um pedaço, que prende, por
Tchuhúngu —
O mau feiticeiro busca um ninho de tchuhúngu.
Mata uma criança a cujo cadáver extrai o coração, que coloca dentro
do ninho. Atravessa este com uma vara de junco a cujas pontas se
agarra, e voa. como as aves. Mata quem lhe aparecer.
. .
Tchúmu —
É um nganga que, enfiando na cabeça uma rnusanda ( 3 )
coberta com panos vermelhos enfeitados de penas de galinha e munido
dum coração de alguém que matou, vai para as encruzilhadas lutar
com quem pode, sem receio de ser vencido.
Acreditam que o tchúmu tem quatro olhos, dois à frente e dois
atrás. Talvez para prevenir ataques pelas costas, à traição...
Pela descrição destes ipúpu se vê que eles, ou são criação do feiti-
ceiro para matar, ou metempsicose dos espíritos maus e dos que não
entraram ou não chegaram a entrar no grupo social da tribo.
8 3 — Moral.
8.3.1. — Mons. Le Roy define a moral do modo seguinte: «La
règle des moeurs, c^st-à-dire la règle de nos actions libres, par rapport
à notre fin dernière. selon qu'elles lui sont conformes ou non, elles sont
(
!
) A. Le Roy, La Religion des Primitifs, p. 215.
Kakone
Um pequeno pedaço de mutete 2
( ) com uma curvatura em coto-
velo. Completo, mede cerca de 5 cm.
O cliente não está a falar a verdade. Que fale bem.
Lukoka
Lukútu 0)
Majíku
Mandamba
Duas pequenas argolas de junco, enlaçadas uma na outra.
5
Muínhi uá têmu ( )
0) Lukútu — pénis.
(
2
) Alembamento — Tchaháku.
3
( ) Muiômbu — árvore da chana.
4
( ) Vide nota 1 da pág. seguinte.
( )
5
Cabo de enxada.
dever sagrado. Não raros têm sido os autores que descrevem os indí-
genas madraços e resistentes passivos ao trabalho. Nada disso. As
poucas necessidades, a natureza relativamente fértil é que cs exoneram
de mais trabalhar. A subalimentação torna-os pouco vigorosos e, por-
tanto, menos aptos para grandes esforços físicos. Mas o trabalho da
tribo, do clã, da família extensa, da família moral não é fadiga ímproba
a arrostar, mas um dever suportado e cumprido com amor e carinho.
Tchiotai 1
)
T chi pano a
Upite
Utai 1 )
sake... mukonda uringile átu ésue mutuama kapema» («Deus não quer
feiticeiro, adúltero, ladrão, mentira... porque criou todos os homens
para viverem em paz»).
Kuía (roubar).
Kutcmbula upite káchi kufuta (dever e não pagar) na morte da
mulher, no adultério, no alembamento e nas dívidas em geral.
Kupíhisa tchuma tchá mbala (danificar a propriedade de outrem).
Kutchina nhi kuetcha mukuó iatoka (abandonar alguém em perigo).
Sake (mentira). A revelação de segredos é para eles também sake.
Kuika (incesto).
Kulapakana (lenocínio).
Katukana (injuriar). Injuriador diz-se kazaluka, palavra que igual-
mente significa maluco.
Kulamikiza (difamar).
Kulamba mujimba (ofensas corporais). Haja ou não motivo sufi-
ciente, as ofensas corporais são milonga desde que delas resulte aleijão,
A
noção da causalidade, a natureza mística dos conceitos e a
concepção mágica de muitas instituições viciam a cada passo as ideias
de culpa e responsabilidade.
acepção, não tem aplicação pelo facto de, como se disse, não haver
uma prostituição. Há a palavra tchikói ou tchitânji para designar aquele
ou aquela que, com frequência ou sem ela, procura às ocultas ligações
de acaso.
O casamento é tido como alguma coisa de sagrado. Na primeira
noite de núpcias não pode o casal ter relações. Marido e mulher
dormirão juntos, mas só depois de ela, no dia seguinte, comer a galinha
(kasúmbi ká ulúngi) é que o homem a pode possuir.
A poligamia, praticada por este povo, não exclui o fundo mono-
gâmico do casamento. O matrimónio com a primeira mulher (puó
mutângu) é que é considerado essencialmente legítimo e verdadeiro.
Cimenta-se após o nascimento do primeiro filho. Será ela a namuári,
se vier, também pela sua fidelidade, a merecer a consideração do
marido. Gozará de bastantes direitos sobre as outras (tusula) e será
em tudo a preferida. Os restantes casamentos no mesmo lar serão
como que desdobramentos do dela com o marido.
Aqueles que, mal-avisados, assistem às danças dos nativos, são
tentados logo a classificá-los de sensuais, de libidinosos, tendentes em
tudo à satisfação dos seus instintos carnais. É Gilberto Freire quem,
no seu livro Casa Grande e Senzala, afirma que «os selvagens sentem
necessidade de práticas saturnais ou orgiásticas para compensarem-se,
Mu tchana, mu tchana 4
( )
Oh mama iámi 5
( )
Oh mama iámi
O P. 69.
(
2
) Nange — Bubulcus ibis.
( )
3
Tchikungúlu — mocho.
( )
4
Mu tchana — na chana.
( )
5
Oh minha mãe.
( )
6
Foram à chana aos frutos.
Heleriê
Alebetu kinga ia-mu-toka
2
Kátchi ku-tchi-lamba riá ( )
1
C ) « Alberto perdeu a bicicleta».
( )
:
«Já não vai mais apanhá-la»
justificação moral.
(
2
) «A pele é minha».
3
( ) «O pescoço é meu».
8 4 — Culto.
8.4.1. — Oração.
Pela noção que os Quiocos têm do mundo e da vida, pela con-
cepção da providência divina, fàcilmente se compreende que não pres-
tem a Nzâmbi um culto sistemático e organizado.
1
C ) Moeurs et coutumes des Bantous. Vol. II. P. 402.
gioso diferem pelo espírito, e não pela matéria. Num mesmo rito
( )
J
Ngôji— corda.
(-) Tchisângu— arbusto da chana.
( )
3
Pemba — caulino branco.
(
4
) Ngoma — tambor de uma só pele.
— Kangonga — um (
2
) pequeno objecto (de 5 cm) em forma de
maçaneta.
O cliente não caça porque está a desmazelar as mahamba. Que
faça a hamba kangonga.
— Kúku — pequena (
3
) estatueta a imitar um homem sentado no
chão, com as mãos a agarrar o pescoço e cotovelos apoiados nos
joelhos.
— Lukânu — Uma ( )
5
argola de cobre que usam no pulso.
) Kúku —
pessoa muito velha.
4
( ) Muiômbu — árvore da chana.
(
5
) Lukânu — os Lundas faziam o lukânu de tendões dum defunto.
( )
i;
Mukosa — pulseira.
— Muaka — um ( )
x
fruto de mutôngu 2
( ).
— Musau uá túlu 4
( )
— Minúsculo travesseiro de madeira em
forma de bigorna.
Os infortúnios e desgraças do cliente são causados pelo seu des-
leixo na feitura das mahamba aa família.
0) Muaka ano. —
Q) Mutôngu —
Parinari capensis Harv.
3
( ) Muângi —
hamba.
(*) —
Musau uá túlu Travesseiro dosono.
5
( )
— Thrionomis swinderianus.
Seje
( )
8
Munzômbu — grande trepadeira do muchito.
reconhecida memória pela abdicação daquilo que mais falta lhes faz
«nas mahamba com o que de momento têm à mão. E isso não acon-
tece. Terão de aguardar pacientemente que um caçador tenha na chana
A — Cenário:
I — Zemba — caminho para o andamento dos munda.
facilitar
O Circuncisão.
B — Protagonistas:
I — Samazemba — o que preside ao rito. É ele quem primeiro
chega ao local.
II — Miári — os que( )
2
se submetem ao rito. É condição necessá-
ria e suficiente que tenham sido circuncidados. Em qualquer idade
poderão ir ao< mungonge.
III — Tchimbúngu — homem que prende atrás um rabo de capim
e se desloca, de gatas, com pequenas andas nos pés e nas mãos. É o
segundo a chegar ao local.
IV — Áfu — os 3
( ) que, deslocando-se de gatas, às ocultas no
capim, assaltam, volta e meia, os miári aos beliscos.
C — Outros intervenientes.
0) Plural de musa.
2
( ) Plural de muári.
( )
3
Mortos. Plural de mufú.
4
( ) Plural de kariângu.
Maracá, quase sempre de uma pequena cabaça, ou do mesocarpo seco
( )
5
D — Descrição.
Q) Plural: miinda.
2
( ) Plural de tchikolokólu.
3
( ) «Por agora chega».
4
( ) Plural de muinda.
em busca dos miârí. Os que sentem coragem para aparecer são agarra-
dos e levados ao zemba.
Já noite escura, ouvem-se as cantigas características do rito:
«Tchikai-mbôngu menda
É, é, é, é*.
O Pirão da corda.
2
( ) Sylvicapra grimmia.
não ido ao mungonge, fizer tal jura, poderá pagar caro o seu atrevi-
mento: se for ouvido por outros já submetidos a esse ritual, poderão
eles matar galinhas e cabras que por ali andem. O atrevido receberá
apenas a cabeça de cada um dos animais mortos e a obrigação de os
pagar ao dono.
Não é o mungonge um rito obrigatório — já se disse. Se não é
obrigatório, não poderá ser uma confirmação da circuncisão, rito que
é indispensável na vida de todo o quioco capaz. Parece-nos não ser
difícil verificar nele uma natureza religiosa.
O
samazemba, antes do começo do tocar dos tambores, faz as cha-
madas mahamba do mungonge: com uma catana, escava no chão dois
2
buracos e aí enterra dois pequenos paus de muehe ( ). Dirige-se então
aos antepassados a pedir a sua intervenção para os bons sucessos do
rito que vai iniciar-se. E esta invocação pode considerar-se totalmente
religiosa.
3
( ) «Deus está no céu*.
elevarem (?) até Nzâmbi. Também este povo sente a eficácia moral da
confissão.
O kúria chima x
( )
— quanto a nós —
não tem qualquer interesse.
A haste que o muári devolve ao samazemba é mero pretexto para este
lhe agarrar o pulso. Além de que, em vida, o homem submetido ao
mungonge não usufrui de outra vantagem que não seja a de poder
jurar kaianda, não se vê outra qualquer justificação na vida social. Os
outros direitos reservam-se-lhe para além da vida. Terá kariângu na
morte. Não conseguimos averiguar se — na crença dos Quiocos — a
alma do muári vai para Nzâmbi. Mas uma coisa concluímos: não se
torna tchipúpu mau nem vem inquietar, neste mundo, os familiares.
Q) «Comer o pirão».
2
( ) Plural de tchipúpu.
CK-<
three facts that are: faiths, moral and cult because they are the consti-
tutive elements of religion. Shows how the cult of the ancestors can
projectly be relationed with a monotheism. The author concludes,
saying that there exists among the Quiocos the mithology, supersti-
tion, magic, tabuism and also by the existence of an associated mono-
theism many times identified with the cult of manes (or shades of
ancestors) and spirits.
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