A Literatura Feminina No Brasil Contemporâneo
A Literatura Feminina No Brasil Contemporâneo
A Literatura Feminina No Brasil Contemporâneo
RESUMO: Reflexões acerca da força inventiva e das peculiaridades formais e/ou temáticas da criação
literária, produzida pela mulher brasileira, desde os anos 60/70 até o momento (1989); e analisada em
relação á crise sócio-cultural ainda em curso em nosso século.
Entre as conclusões provisórias a que se pode chegar, pela análise da produção dc vinte escri
toras (selecionadas em função não só do valor intrínseco dc suas obras, mas também como representa
tivas das várias tendências da ficção contemporânea), registramos: a consciência dc que â linguagem
poética ou ficcional compete dar realidade definitiva ãs novas vivências; a presença de problemáticas
específicas do "eterno feminino" em transformação; a inexistência de uma sintaxe linguística especifi
camente "feminina" (tal como alguns estudiosos tentam provar); a evidência dc que o valor literário de
uma obra não depende do sexo do autor ou autora,, mas do talento de cada um; e finalmente a impor
tância basilar que essa literatura adquire para um possível conhecimento ou conscientização das trans
formações estruturais que atingem hoje a Sociedade e a Cultura herdadas.
Talvez não seja exagero afirmar (só o tempo o dirá...) que, atualmente, a
produção literária das mulheres é muito mais expressiva do que a dos homens, em
sc tratando de testemunho ou reflexo da crise civilizaciona! ainda em processo.
Crise que abala muito mais fundo os valores ou padrões do comportamento "fe
minino”, do que atinge os padrões "masculinos" Daí, por exemplo, a "busca da
identidade", - uma das forças motrizes da literatura atual, seja mais exasperada na
criação literária das mulheres, do que na dos homens.
Nosso percurso, neste breve ensaio sobre a literatura feminina no Brasil,
procurará estabelecer os nexos entre crise e criação literária, como abertura de
caminhos à compreensão de suas peculiaridades. Comecemos pelo mais geral e
abrangente.
A C R IS E DA M U L H E R NO SÉC U LO XX
"... somos mutantes, mulheres em transição. Como nós, não houve outras
antes. E as que vierem depois serão diferentes. Tivemos a coragem de começar
um processo de mudança. E porque ainda está em curso, estamos tendo que ter a
coragem de pagar por ele. /.../Saímos de um estado que embora insatisfatório, em
bora esmagador, estava estruturado sobre certezas. Isso foi ontem. Até então nin
guém duvidava do seu papel. Nem homeas, nem muito menos mulheres./.../Mas
essa certeza nós a quebramos para poder sair do cercado".
Uma das perguntas mais frequentes que se colocam hoje nas discussões
sobre a Literatura Feminina, diz respeito à especificidade da voz que ali fala. Ha
veria um discurso essencialmente "feminino"? Existiria uma linguagem feminina
na Arte? Evidentemente, não são perguntas ociosas ou gratuitas e têm sua razão
de ser, uma vez que em passado recente acreditava-se em diferenças de ordem
biológica que determinariam a criação artística do homem c da mulher: o primei
ro, sendo ativo, forte e dinâmico seria dono de uma arte idêjitica à sua natureza
viril; enquanto a segunda, sendo sensível, frágil, psicologicamente sutil, afetiva,
ingênua, etc. criaria uma arte também delicada e Crágil...(como vemos, já nessa
diferenciação está patente a presença do modclo-de-comportamcnto que se consi
derava ideal para a mulher...)
Hoje, as diferenciações continuam a ser pesquisadas, principalmente via
psicanálise junguiana, que aponta para um simbólico masculino, - animus, e para
um simbólico feminino, - anima. Entretanto, as análises têm provado que nem
sempre tais simbolismos correspondem ao sexo correlativo... O que nos leva a
concluir que a diferenciação entre a criação literária masculina c feminina não
pode ser decidida exclusivamente no âmbito do biológico.
Há ainda as pesquisas ao nível do discurso, que apontam como caracterís
ticas "femininas" na literatura contemporânea: a palavra fragmentada; a tendência
COELHO, Nclly Novaes. A lileralura feminina no Brasil conlcin|x>râneo. Lingiui t 95
Literatura, v. 16, n. 19, 91-101,1991.
A PO ESIA
A FIC Ç Ã O
Como sc verá pela recolha de títulos aqui reunidos, dentre os vários cam i
nhos escolhidos pelas escritoras, destacam-se dois que, aparentemente antagôni
cos, muitas vezes se misturam. Trata-se do Erotismo e da Inquietude Metafísica.
Optando abertamente pela "linguagem do corpo" e pelo "direito ao prazer do cor
po" (ambos proibidos pelas normas tradicionais do viver...), a literatura erótica fe
minina coloca com agudez o problema da mulher de hoje, pressionada entre dois
mundos: o tradicional/opressor e o moderno/liberador. Como disse Márcia Den-
ser cm O Animal dos Motéis: "As mulheres da minha geração perambulam pelo
castelo em ruínas do casamento. E se possuem a chave da liberdade conferida
pela pílula, nada podem fazer com ela. Deram-nos a chave, mas esqueceram dc
construir a porta",
Aí está expresso metaforicamente o difícil processo de liberação que vem
sendo enfrentado pela mulher-século XX, devido á inevitável inadequação entre a
"liberdade" conquistada e a estrutura tradicional ainda vigente na Sociedade. Não
sc pode negar que, em nosso século, o Sexo explodiu as barreiras que o manti
nham na clandestinidade tradicional e se impôs como um dos mais controvertidos
mitos contemporâneos. Mas a verdade é que a deslocação dos valores, que essa
explosão provocou, ainda não foi resolvida. E a basca continua...
É importante notar que uma das vias escolhidas para essa busca é a do
Erotismo limítrofe com a Metafísica. Um dos exemplos mais fascinantes desse
"erotismo metafísico" nos é dado pelo breve-denso romance de Hilda Hilst, A
Obscena Senhora D. Rompendo os limites impostos pelos preconceitos e pela es-
Ireitez repetitiva de um cotidiano aparentemente calmo e parado, faz-se ouvir a
agônica "Senhora D": "Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar
nome: por isso irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também cha
mada por Ehud, A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu á procura da
luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas".
Assim tem início a narrativa e nessa obssessiva busca, Hillé-narradora
prossegue até o final, tentando tocar o Mistério para lá dos limites conhecidos, lá
onde o sagrado e o profano formam uma só massa voraz e aterradora que engole
sua lucidez. A violência verbal de A Obscena Senhora D se identifica com a vio
lência que devora o homem contemporâneo, a partir do momento de conscientiza
ção, em que ele, encarando de frente o mistério de sua condição, e com lucidez,
exige uma resposta racional para o caos e o calvário que parecem ser, afinal, o
verdadeiro destino do Homem.
De qualquer forma, para além do poço obscuro uma indecisa luz é vislum
brada...
O espesso erotismo desse belo/terrível romance acaba por se idenlicar com
a enorme interrogação existencial que impulsiona a busca que muitas mulheres
vêm empreendendo, na vida c na literatura, no encalço de si mesmas; do lugar
que devem ocupar no mundo; e de suas possíveis relações com o Mistério...
COELHO, Nclly Novaes. A literatura feminina no Brasil contemporânco. Língiut e 101
Lilenitiiro, v. 16, n. 19, p. 91-101,1991.
C O N C LU SÃ O
B IB L IO G R A FIA
MARÍAS, Julian. A Mulher no século XX. SP, liD. Convivi um, 1981.
COLASANTI, Marina. Mulher daqui para frente. RJ, Nórdica, 1981.
TRABA, Marta. "Hipótese sobre uma escritura diferente" in Leia Livros. SP, março, 1982.