Ingold - Antropologia Versus Etnografia PDF
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Tim Ingold
University of Aberdeen, Escócia, Reino Unido
TRADUÇÃO: Rafael Antunes Almeida
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira,
Redenção, Ceará, Brasil
DOI 10.11606/issn.2316-9133.v26i1p222-228
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Traduzido de INGOLD, Tim. Anthropology contra ethnography. HAU: Journal of ethno-
graphic theory, v.7, n. 1, pp.21-26, 2017. Disponível em: < https://www.haujournal.org/in-
dex.php/hau/article/view/hau7.1.005 > Acesso em: 02 de out. 2017
Deixe-me dizer logo de partida que nada tenho contra a etnografia. O ob-
jetivo da etnografia, assim como a compreendo, é produzir uma descrição –
escrita, fílmica ou que faça uso de outro meio gráfico – da vida como ela é de
fato vivida e experienciada pelas pessoas em dado lugar e em dado período. A
boa etnografia é sensível, contextualmente matizada, ricamente detalhada e,
acima de tudo, fiel àquilo que descreve. Todas essas são qualidades admiráveis.
Aquilo contra o que eu meu oponho não é à etnografia enquanto tal, mas
ao seu retrato como o fim último da antropologia. Creio que a antropologia, ao
sucumbir à etnografia, desviou-se do seu propósito apropriado; isto impediu
os esforços antropológicos de contribuir para o debate de grandes questões
de nosso tempo e comprometeu o seu papel na academia. Eu argumento que é
vital para o futuro da disciplina que paremos de ser tão evasivos e sejamos cla-
ros sobre a diferença entre a antropologia e a etnografia. Isto, naturalmente,
significa ser claro sobre a definição e o propósito da disciplina.
Eis a minha definição. Sustento que a antropologia é uma investigação ge-
nerosa, aberta, comparativa e crítica das condições e possibilidades da vida
humana no mundo que habitamos. É generosa porque está atenta e responde
ao que as outras pessoas fazem e dizem. Em nossas pesquisas, nós recebemos
de bom grado o que nos é dado ao invés de procurarmos meios de, por subter-
fúgios, extrair o que não nos é dado, criando um esforço para devolver o que
devemos aos outros no nosso processo de formação moral, intelectual e práti-
co. Isso acontece, acima de tudo, na observação participante e eu retornarei a
esse ponto.
A antropologia é aberta porque não buscamos soluções finais, mas cami-
nhos através dos quais a vida pode se fazer. Somos comprometidos com a for-
mas de vida sustentáveis – isto é, uma forma de sustentabilidade que não deixa
o mundo sustentável para alguns a partir da exclusão de outros, mas, ao con-
trário, tem um lugar para todas as pessoas e para todas as coisas. A antropo-
logia é comparativa pois estamos conscientes que qualquer caminho que a vida
possa ter tomado, ele não é o único. Nenhum caminho é pré-instituído como
único que é “natural”. Assim, a questão “Por que deste modo e não de outro?”
sempre predomina em nossas nossas reflexões. E a antropologia é crítica por-
que não podemos estar satisfeitos com as coisas tal como estão.
De modo geral, as organizações de produção, distribuição, governo e co-
nhecimento que dominaram a era moderna levaram o mundo à beira de uma
catástrofe. Para encontrar meios de continuar, precisamos de toda a ajuda que
conseguirmos. Mas nenhuma especialidade científica, nenhum grupo indíge-
na, nenhuma doutrina ou filosofia detém a chave para o futuro - se é que esta
chave pode ser encontrada. Temos de fazer este futuro juntos, para nós, e isso
só pode ser feito por meio do diálogo. A antropologia existe para expandir o
escopo deste diálogo: para entabular uma conversa sobre a vida humana.
Se você está de acordo com a minha definição de antropologia, então eu
penso que terá de concordar que os seus objetivos e princípios são inteiramen-
te diferentes daqueles da etnografia. Como empreendimentos, a antropologia
e a etnografia podem ser complementares, têm muito a contribuir entre si,
mas, não obstante, são diferentes.
Eu gostaria de deixar absolutamente claro, contudo, que não consigo ver
essa diferença no modo segundo o qual esta relação foi apresentada, em termos
igualmente inflexíveis, por alguns dos pais fundadores da antropologia social e
ainda é mantida por alguns nos dias de hoje. A sua visão era – e continua sen-
do - que a etnografia é idiográfica, dedicada à documentação das características
empíricas; e a antropologia é nomotética, dedicada à generalização comparati-
va e à busca por leis que expressem regularidades na condução dos assuntos
humanos. A ideia é que primeiro você faz a sua pesquisa etnográfica e então
– em um estágio subsequente – você converte o seu estudo em um caso para
comparação, disposto ao lado de outros estudos similares, na esperança de que
algumas generalizações viáveis possam emergir. Todas as vezes que eu escuto
a frase “estudo de caso etnográfico”, inocentemente apresentada como se fosse
completamente não problemática, eu estremeço em protesto. E quando as pes-
soas pintadas neste estudo são retratadas como se pertencessem ao etnógrafo
em pessoa – como “Os Balineses de Geertz” – meu estremecimento se torna um
grito. Nada é mais degradante para o espírito e para o propósito da pesquisa
etnográfica. Às vezes sou acusado de desejar atacar a etnografia, mas meu obje-
tivo é justamente o oposto. É defender a etnografia contra aqueles que embru-
lham a vida das pessoas em casos e que veem na etnografia não um fim impor-
tante em si mesmo, mas apenas o meio para a generalização antropológica. Eu
quero defender a etnografia daqueles que a veriam como um método. É claro
que, como todo esforço artesanal, a etnografia tem os seus métodos – as suas
regras de procedimento, os seus modos de trabalhar – mas não é um método.
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N.T: Ingold utiliza a expressão “of corresponding with people”. No artigo intitulado “Che-
ga de etnografia: a educação da atenção como propósito da antropologia” o autor define a
ideia de correspondência: “Propõe-se o termo correspondência para designar essa compo-
sição de movimentos que, à medida que se desenrolam, respondem continuamente uns aos
outros. Não se entende por isso um alinhamento preciso nem um simulacro daquilo que se
encontra nos acontecimentos à volta. Não tem nada a ver com representação ou descrição.
Trata-se, pelo contrário, de responder a esses acontecimentos por meio das próprias inter-
venções, questões e respostas – em outras palavras, viver atencionalmente com os outros. A
observação participante é uma prática de correspondência nesse sentido.”(INGOLD, Tim.
Chega de etnografia: a educação da atenção como propósito da antropologia.Educação,-
v.39,n.3,2016,p.408. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fa-
ced/article/view/21690> Acesso em: 02 de out.2017
Recebido em 27/10/2017
Aceito para publicação em 19/05/2018