A Tese Leibniziana Do Melhor Dos Mudods - Rateau
A Tese Leibniziana Do Melhor Dos Mudods - Rateau
A Tese Leibniziana Do Melhor Dos Mudods - Rateau
O objetivo deste artigo é tentar explicar a tese leibniziana tão conhecida – e ao mesmo
tempo tão caricaturada, tão mal compreendida – da criação, por Deus, do melhor dos mundos
possíveis. Essa tese não significa certamente que “Tudo vai bem” (segundo a fórmula de
Alexander Pope) ou que “Tudo ocorre tendo em vista o melhor” (segundo a fórmula de Voltaire)
no mundo. Ela repousa, ao contrário, sobre o seguinte paradoxo: nosso mundo é o melhor
possível, ainda que seu fim primeiro não seja nem a felicidade das criaturas racionais (os
espíritos) nem a realização, em seu valor “absoluto”, da maior quantidade de ser e de perfeição.
Ele não é tampouco o melhor porque se reduziria a um compromisso entre a simplicidade das
leis requeridas para o criar e o conservar, por um lado, e a riqueza dos fenômenos obtidos por
elas, por outro lado, como se os meios pudessem ser concebidos independentemente dos fins
e entrar em conflito com eles (como em Malebranche). Em qual sentido, pois, ele o é? Como
veremos, o universo criado é o mais perfeito possível porque ele constitui a forma ótima única,
dita também a mais determinada, e porque ele reenvia a uma perfeição de ordem qualitativa,
mais do que quantitativa.
45
1 Agradeço calorosamente a Ulysses Pinheiro pela tradução deste texto para o português.
46
2 A tese segundo a qual do ser necessário não se segue forçosamente o necessário é estabelecida desde a
Confessio Philosophi (Confessio Philosophi, A VI, 3, 127-129).
3 Teodiceia, § 8, GP VI, 107. Grifo nosso.
PAUL RATEAU
impossibilidade moral de fazer outra coisa que ela. Empregando a expressão não pôde deixar de, o
autor sublinha que o constrangimento (interno) que se exerce sobre Deus não é, aqui, de ordem volume 21
lógica, mas moral, que ele incide sobre sua vontade e não sobre seu entendimento. A escolha número 1
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do melhor não é absolutamente ou metafisicamente necessária, ao ponto em que toda outra
escolha implicasse contradição. Não resulta daí menos de um dever indispensável4, que Deus
não pode não cumprir sob pena de pecar, pois “[....] haveria algo a ser corrigido nas ações de
Deus, se houvesse um meio de fazer melhor”. A obrigação é apresentada aqui negativamente,
como um imperativo ao qual Deus não poderia se subtrair sem contrariar sua sabedoria (isto
é, sem se contradizer a si mesmo), e não, como em outras passagens, sob seu aspecto positivo,
como essa necessidade moral, “feliz” (segundo a expressão de Agostinho), porque ela se segue
da sabedoria e da bondade5, leva infalivelmente a vontade ao bem e, longe de ser contrária à
liberdade, torna perfeitamente livre6.
Uma objeção vem à mente então imediatamente: como é possível afirmar a perfeição
na ordem do finito? Não é verdade que, na ordem do criado, nada é tão perfeito que não
seja possível conceber algo de ainda mais perfeito, a assim ao infinito7? Poder-se-ia evitar a
dificuldade através do reconhecimento, no caso do mundo, da possibilidade de uma progressão
indefinida no melhor, reservando apenas a Deus a perfeição absoluta (perfeição absoluta de seu
ser e de seu modo de agir, qualquer que seja o grau de perfeição do mundo criado). Mas Leibniz
recusa essa solução. Ele afirma que há um melhor absolutamente único, que o mais perfeito não
é contraditório com o finito e que o admitir na ordem do criado não redunda em identificá-lo à
perfeição divina, nem em fazer do mundo um outro deus.
Para prová-lo, a argumentação vai misturar considerações a priori e razões a posteriori,
perseguindo a “via negativa” pelo emprego de um raciocínio por absurdo (é preciso haver
um melhor, senão...). Não se trata mais de dizer somente que o mundo deve ser o melhor,
senão Deus, que não pode fazer o mal, não o teria escolhido, mas ainda que ele deve ser o
melhor, senão Deus não teria podido fazer a escolha, porque toda escolha teria sido impossível.
47
5 Cf. ibid., §§ 174-175.
6 Cf. Abrégé, VIII, GP VI 385. Quinto escrito a Clarke, § 7, GP VII 390.
7 Cf. Discurso de metafísica § 3.
A TESE LEIBNIZIANA DO MELHOR DOS MUNDOS POSSÍVEIS
A afirmação segundo a qual existe o mais perfeito dos universos possíveis é a conclusão à qual
volume 21 chega necessariamente aquele que quer evitar duas contradições: uma moral, de um Deus que
número 1 fracassou; a outra, lógico-metafísica, de um Deus que simplesmente não pode escolher se não
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há o melhor e, portanto, que nada cria. A perfeição do Ser supremo (razão a priori) exclui todo
erro ou falta; a realidade de nosso mundo (argumento ab effectu) prova que houve certamente
escolha e, pois, que um melhor se distingue entre a infinidade dos possíveis.
E como na Matemática, quando não há maximum nem minimum, enfim, nadade distinto,
tudo se faz igualmente ou, quando isso não é possível, não se faz absolutamente nada,
pode-se dizer a mesma coisa no que tange à perfeita sabedoria, que não é menos regrada
do que a Matemática, a saber: que, se não houvesse o melhor (optimum) dentre todos os
mundos possíveis, Deus não teria produzido nenhum deles8
48
9 Notemos que elas supõem que se tenha admitido previamente a tese da infinidade dos mundos
possíveis e não a existência de um único mundo possível (aquele que existe).
10 Segundo a imagem do § 416 da Teodiceia.
PAUL RATEAU
Se (A) fosse verdadeira, isto é, se houvesse outros mundos possíveis iguais ao nosso em
perfeição, ou se todos fossem perfeitamente equivalentes, Deus não teria tido nenhuma razão volume 21
de criar este mais do que um outro. Não sendo levado mais a um do que a outro, em situação de número 1
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perfeito equilíbrio e de indiferença, ele ou bem os teria produzidos todos (o que é impossível tanto
logicamente11 quanto moralmente12) ou bem não teria produzido nenhum deles. O princípio de
razão exclui toda escolha imotivada ou arbitrária. A existência efetiva do mundo prova que houve
escolha, logo, diferença entre os universos possíveis dentre os quais se distinguia um melhor.
A hipótese (B), segundo a qual simplesmente não haveria o melhor, mas uma progressão
infinita no mais perfeito, é igualmente indefensável, por ao menos duas razões. Por um lado,
porque se seguiria que Deus teria, de qualquer modo, feito o mal ao criar, se é verdadeiro que
“um bem menor é uma espécie de mal, se ele faz obstáculo a um bem maior”(§ 8). Pois, qualquer
que fosse a perfeição do mundo que ele tivesse criado, um mais perfeito sendo possível, ele teria
sempre sido, por assim dizer, pego em falta, culpado por haver mal feito ao não ter querido
fazer o melhor. O mundo sendo posto, (B) dá razão àqueles que sustentam que Deus poderia
ter agido bem melhor. Posição incompatível com sua perfeição e sua glória. Por outro lado,
se não tivesse havido um mundo melhor do que todos os outros, para além do qual nenhum
outro ainda melhor seria possível, Deus não teria, tampouco nesse caso, nada criado, “pois ele
é incapaz de agir sem razão, e isso seria até mesmo agir contra a razão”13. Sua escolha teria
sido impossível, não porque se encontrasse em estado de indiferença (como no caso de uma
equivalência entre os mundos), mas na incapacidade de querer o que quer que seja, toda razão
para criar um mundo sendo imediatamente contraditada por uma outra, aquela de criar um
outro mais perfeito, e essa última ainda por uma nova, e assim ao infinito. Nada teria sido
produzido, pois a vontade teria sido perpetuamente impedida, suspensa: não que ela não
tivesse nenhuma razão para escolher, mas porque ela as teria em demasia! Deus não quereria
nada porque quereria sempre melhor; ele não faria nada, pois poderia sempre fazer melhor.
11 É preciso considerar não somente que todos os possíveis não são compatíveis entre si (§ 201), mas que
o mundo criado é único. Leibniz rejeita, de fato, a ideia da existência simultânea (em diferentes lugares) ou
sucessiva (em diferentes tempos) de uma pluralidade de mundos (cf. § 8).
49
12 Pois, entre esses mundos, há aqueles onde os justos são condenados e os maus recompensados por uma
felicidade eterna. Tais universos, contrários à justiça, são incompatíveis com a perfeição divina (Grua 300; GP IV 344).
13 Teodiceia, § 196, GP VI, 232.
A TESE LEIBNIZIANA DO MELHOR DOS MUNDOS POSSÍVEIS
50
14 Carta a Coste (19 de dezembro de 1707), GP III 401.
15 Cf. De mente, de universo, de Deo, A VI, 3, 463 ; Discurso de metafísica § 1.
16 Discurso de metafísica § 1.
PAUL RATEAU
ótimo do todo (ou da coleção) não vem da perfeição de suas partes, mas de sua consideração
por si mesmo e em si mesmo. O todo não resulta das partes, mas lhes é, ao contrário, anterior17. volume 21
Ele pode ser dito, desta vez, o melhor, não simplesmente em relação a outros inferiores, mas número 1
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absolutamente falando, por razões intrínsecas, porque ele é insuperável em seu gênero. Os
exemplos mais frequentemente utilizados por Leibniz são tomados emprestados da geometria.
O círculo é a mais perfeita das figuras regulares planas, porque ela é aquela na qual a circunferência
é a mais extensa (capacissima)18, como o é o triângulo equilátero em seu gênero, porque ele é a
figura de três lados que compreende a maior superfície19. Pode-se evocar também os espíritos,
os mais perfeitos de todos os seres criados, porque eles “ocupam o menor volume, isto é […] se
impedem o menos possível”20.
Esses exemplos provam a existência de melhores absolutos na ordem do finito. É possível
afirmar ao mesmo tempo que o círculo é a mais perfeita das figuras e, no entanto, que nunca se
encontrará nenhuma figura concreta (nem mesmo um círculo, não importa o quão grande ele
seja) que não possa ser ultrapassada em tamanho, ou ainda que o espírito é a mais excelente
das criaturas e, no entanto, que não há espírito criado que não seja suscetível de progredir
sempre na perfeição, ou de ser ultrapassado por um outro mais perfeito do que ele. A distinção
entre perfeição absoluta e perfeição relativa (que podem coexistir no mesmo sujeito, dito ser o
mais perfeito em seu gênero e, ao mesmo tempo, perfectível em si mesmo), e a consideração da
relação entre o todo e suas partes, ou, mais exatamente, no caso do mundo, entre uma coleção
e seus componentes, permitem responder àqueles que contestam a possibilidade de produzir o
melhor, alegando que algo de mais perfeito é sempre concebível.
“Respondo que o que se pode dizer de uma Criatura ou de uma substância particular, que
pode sempre ser ultrapassada por uma outra, não deve ser aplicado ao universo, o qual,
devendo estender-se por toda a eternidade futura, é um infinito”.21
51
19 Cf. Tentamen Anagogicum, GP VII 278.
20 Discurso de metafísica § 5.
21 Teodiceia, § 195, GP VI, 232.
A TESE LEIBNIZIANA DO MELHOR DOS MUNDOS POSSÍVEIS
O erro é julgar que o que vale para a parte vale para o conjunto e que, do finito ao infinito,
volume 21 a consequência é boa. O que é declarado o melhor não é um certo estado, um momento ou uma
número 1 parte qualquer do mundo, mas o próprio universo considerado como o Universitas creaturarum22,
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a totalidade das coisas, das criaturas e de seus acontecimentos, em todos os tempos e em todos
os lugares. Essa coleção, esse aglomerado, reunião de todos os existentes, estende-se ao infinito,
não somente no tempo, mas também no espaço, “porque há uma infinidade de Criaturas na
menor parcela de matéria, por causa da divisão atual do Continuum ao infinito”23.
Não devemos, no entanto, nos enganar. Não é porque o mundo é infinito que ele é o melhor
possível, mas é porque ele é infinito que sua perfeição não pode ser estimada da mesma maneira
que a de uma coisa finita, a qual é sempre superável por uma outra mais perfeita. Um infinito só
pode ser comparado a outro infinito. Nosso mundo não é o mais perfeito possível, repitamo-lo,
porque ele é um infinito, mas porque ele é o melhor em relação a outros infinitos, isto é, a outros
mundos igualmente possíveis. No gênero “universo”, nosso mundo é a forma a mais perfeita,
como o é o círculo no gênero “figura regular plana”, como esta diferença notável: enquanto, no
caso do círculo, ainda que ele seja o melhor em seu gênero, é sempre possível encontrar um maior,
porque ele é uma figura finita (um círculo de um diâmetro maior é sempre concebível), no caso
de nosso mundo não apenas ele é o mais perfeito em seu gênero, mas é impossível encontrar um
outro que o ultrapasse no plano da grandeza ou da extensão, porque ele é infinito.
O universo, tomado em sua infinidade, pode assim ser considerado o melhor possível, em
um sentido que não é simplesmente relativo, secundum quid (tendo em vista todos os outros
que lhe são inferiores em perfeição), mas absoluto, secundum se (em si mesmo), sem que isso o
transforme em um deus24.
52
22 Segundo a fórmula da Causa Dei (§ 15).
23 Teodiceia, § 195, GP VI, 232.
24 Sobre esse ponto, ver a refutação dos argumentos de Diroys nos §§ 200 et 202.
PAUL RATEAU
e objeções. Se nos restringirmos ao plano teórico e a priori, fazendo abstração dos índices da
ordem e da perfeição universais tirados da experiência, ou ainda dos diversos argumentos em volume 21
favor da prevalência dos bens sobre os males no nível global25, encontramos, na Teodiceia, senão número 1
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provas positivas, em todo caso uma definição do melhor mundo que permite retirar dela certas
características fundamentais.
Como ilustram as comparações tiradas da arquitetura, dos jogos, da geometria ou ainda
da ótica, o melhor deve ser entendido como o que o que responde melhor a um fim dado,
levando em conta as condições (terreno, matéria, espaço, tempo) disponíveis. Ele resulta da
combinação de meios a um fim, de tal modo que os meios sejam os melhores empregados e
que o fim seja o melhor realizado. A estimação da relação vias/efeitos lembra Malebranche,
cujo sistema Leibniz afirma, sobre esse ponto justamente, que ele se aproxima do seu26. A
aproximação é, porém, apenas superficial e sem dúvida acima de tudo tática, na polêmica com
Bayle27. Não somente porque, como vimos, Leibniz não separa os meios dos fins, mas ainda
porque o melhor tem para ele uma significação bem particular. Ele deve ser compreendido no
sentido do método de Formis optimis, esse método introduzido pelo filósofo de Hanover para
ultrapassar aquele de maximis e minimis, utilizado em matemática desde Fermat. O melhor
designa o mais determinado (e, logo, o mais “determinante” para a vontade divina), o qual é o
mais inteligível, o mais racional e único.
Não é por acaso, de fato, que a noção de optimum seja introduzida no § 8, no contexto
preciso de uma comparação com o cálculo dos maxima et minima. Esse cálculo é empregado para
determinar o ou os ponto(s) nos quais a função de uma variável x (x pertencendo ao conjunto
dos números reais) dá o/os valor(es) o/os maior(es), ou o/os menor(es) possível(eis) em relação
a sua lei de variação. Trata-se assim de “procurar as ordenadas máximas ou mínimas de uma
curva dada, o que é apenas um corolário do Método das tangentes ordinário […]”. Ora, no caso
de Formis optimis, o problema é, de certa forma, inverso: “o que se procura é a própria curva,
25 Eles pertencem ao que denominamos a parte defensiva supererrogatório da Teodiceia (ver nossa
obra: RATEAU, Paul. La question du mal chez Leibniz. Fondements et élaboration de la Teodiceia. Paris: Honoré
53
Champion, 2008, pp. 477-492).
26 Cf. Teodiceia, § 208.
27 Dada a simpatia desse último pelas teses de Malebranche.
A TESE LEIBNIZIANA DO MELHOR DOS MUNDOS POSSÍVEIS
devendo preencher otimamente uma condição dada […]”28. É preciso aqui encontrar a curva que
volume 21 responde a certas condições postas (por exemplo: um plano inclinado, pontos a ligar, o tempo
número 1 de percurso, etc.), e não mais determinar coordenadas a partir de uma curva dada. É, pois, a
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própria curva que deve apresentar uma propriedade de máximo. Os problemas geométricos a
serem resolvidos são de uma outra ordem do que aqueles, puramente quantitativos, tratados
pelo cálculo dos maxima et minima. O método desenvolvido por Leibniz permite passar da
quantidade à qualidade (maximum aut minimum praestantibus) e se revela particularmente útil
“nas aplicações da Geometria à Mecânica e à natureza: de fato, ela consiste, dentre todas as
figuras possíveis, em escolher aquela que preenche melhor uma certa condição”29.
A resolução do problema da catenária, da curva braquistócrona, mas também o cálculo
dos caminhos óticos, mostram a fecundidade desse método e ilustram o princípio segundo
o qual a via a mais simples, a mais fácil, não é necessariamente a mais curta. Assim, a luz,
refletindo-se sobre um espelho côncavo, toma o caminho o mais longo. O optimum pode ser um
máximo ou um mínimo. Em todos os casos, ele reenvia ao mais determinado, ao mais fácil, pois,
repitamo-lo, o ponto de vista não é quantitativo (entre dois pontos o caminho o mais curto é
sempre a linha reta), mas qualitativo (o caminho o mais rápido para ir de um ponto a um outro
pode ser o mais longo30).
O que significa aqui a maior determinação? Está determinado o que segue de algo se nada
o impede31, isto é, se nenhuma outra determinação mais forte se opõe. A via mais determinada,
única32, é aquela que se distingue das outras por suas próprias características, em razão do
que ela permite, e se impõe por isso mesmo. Ela prevalece, mas sua prevalência não implica
uma necessidade absoluta ou a impossibilidade de outras vias possíveis. A vantagem que ela
54
32 Essa unicidade é figurada pela reunião das gêmeas (ou, se se prefere, pela ausência de gêmea, isto é, de
caso simétrico) na análise da reflexão da luz em um espelho convexo ou côncavo. Cf. Tentamen Anagogicum,
GP VII 275.
PAUL RATEAU
33 Ibid. 273.
55
34 Cf. Discurso de metafísica § 22.
35 Cf. Tentamen Anagogicum, 279.
36 Ibid. 272. Ver também Discurso preliminar da conformidade da fé com a razão § 2.
A TESE LEIBNIZIANA DO MELHOR DOS MUNDOS POSSÍVEIS
37 Essas leis fazem do universo o sistema o melhor ordenado e o mais inteligível, no qual se conservam “a
mesma quantidade da força total e absoluta, ou de ação, a mesma quantidade da força respectiva, ou da reação,
a mesma quantidade enfim da força diretiva” e no qual se observa ainda a equivalência da causa plena e do
efeito inteiro (Princípios da Natureza e da Graça § 11 ; ver também Teodiceia, § 346).
38 Cf. Princípios da Natureza e da Graça § 11.
56
39 “Aproximadamente como se diz na jurisprudência, quae contra bonos mores sunt, ea nec facere nos posse
credendum est” (Tentamen Anagogicum, 278).
40 Teodiceia, § 227.
PAUL RATEAU
diferentes possíveis e uma vontade que o escolhe de acordo com uma razão inclinante, mas não
necessitante. Não há e não pode haver melhor a não ser que se houver inteligência, escolha e, volume 21
portanto, contingência. Inteligência, escolha e contingência são os três requisitos da liberdade41. número 1
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O melhor exige, portanto, liberdade. Ele só é para uma liberdade e não pode acontecer sem ela.
Essa redução do “problema” do melhor mundo para um caso particular do método de
Formis Optimis poderia levantar uma objeção. Se o nosso universo é o melhor de seu gênero,
como o é no seu a curva braquistócrona, então seria preciso supor que cada parte do universo
também seja igualmente a melhor, uma vez que cada porção (por menos que ela seja) entre dois
pontos quaisquer da trajetória de queda a mais rápida é igualmente a trajetória a mais rápida
entre esses dois pontos. Como Leibniz indica no Tentamen anagogicum, a melhor das formas
não está apenas no todo, mas em cada uma das partes, e não estaria no todo sem isso. E, para
concluir: “Assim é que as menores partes do universo são reguladas de acordo com a ordem da
maior perfeição; caso contrário, o todo não o seria” 42. Mas o autor não afirmará exatamente
o contrário nos § 212-213 da Teodiceia, argumentando que, da quantidade à qualidade, a
consequência nem sempre é boa?
“A parte do caminho mais curto entre duas extremidades é também o caminho mais curto
entre as extremidades desta parte, mas a parte do melhor Todo não é necessariamente o
melhor que pode ser feito desta parte; uma vez que a parte de uma coisa bela nem sempre
é bela, podendo ser retirada do todo, ou tomada no todo, de forma irregular” 43.
57
41 Ibid., § 288.
42 Tentamen Anagogicum, 272-273.
43 Teodiceia, § 213, GP VI, 245.
A TESE LEIBNIZIANA DO MELHOR DOS MUNDOS POSSÍVEIS
textos? Não, se considerarmos, por um lado, que é o método de maximis et minimis e não o de
volume 21 Formis optimis (que se aplica precisamente à qualidade), que é diretamente visado na Teodiceia,
número 1 e, por outro lado, que o Tentamen pretende somente mostrar que o princípio da perfeição não se
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aplica apenas ao geral, mas “desce também ao particular das coisas e dos fenômenos”, que são,
pois, igualmente regulados o mais perfeitamente possível44. Ora, a afirmação de que a parte de
um conjunto perfeito (o universo) não é necessariamente a mais perfeita absolutamente falando,
tomada em si mesma e que ela poderia até parecer muito imperfeita em relação a outro possível
(pertencente a outro universo possível) não significa que essa mesma parte não seja regrada ou
perfeita, desta vez relativamente falando, enquanto está relacionada ao melhor universo.
No entanto, é importante levar em conta esta advertência contra o uso de comparações
matemáticas na metafísica. É sempre aconselhável ser prudente, uma vez que os seres
matemáticos são apenas ficções e abstrações. Eles não podem, pois, assumir o lugar de seres
reais. Ao enfatizar a diferença entre qualidade e quantidade, Leibniz pretende evitar qualquer
interpretação errônea de sua metafísica e de sua teologia. Seu Deus não é apenas um Deus
calculador, um Deus matemático que, tendo encontrado a melhor forma possível, a realizaria,
por assim dizer, automaticamente, mecanice. “Cum Deus calculat et cogitationem exercet fit
mundus”45. O perigo de tal declaração é evidente: a derivação do mundo a partir do pensamento
divino parece imediata e necessária. O cálculo não envolve nenhuma consideração da bondade,
da justiça e, mais geralmente, das causas finais. Ora, sem uma vontade que escolhe entre a
infinidade dos mundos possíveis, nada distinguiria Deus da necessidade bruta ou do Destino.
A matemática divina (Mathesis Divina) ou o mecanismo metafísico (Mechanismus Metaphysicus)46
é, portanto, incompleto ou antes insuficiente e até estéril, se não se adicionar uma vontade que
se mova livremente para o melhor.
58
44 Tentamen Anagogicum, 272.
45 Lembremos que se trata de uma nota marginal de Leibniz (Dialogus, A VI, 4-A, 22).
46 Cf. De rerum originatione radicali, GP VII 304.
PAUL RATEAU
59
48 Ibid., § 10.
49 Ibid., § 9, GP VI, 107.
50 Sobre o decreto universal único, ver ibid., § 84 ; Carta a Coste (19 de dezembro de 1707), GP III, 400.
A TESE LEIBNIZIANA DO MELHOR DOS MUNDOS POSSÍVEIS
o menor mal ou o mais insignificante de seus eventos seria conceber um outro completamente
volume 21 diferente:“não seria mais este mundo, que, no final das contas, tudo considerado, foi visto como
número 1 o melhor pelo Criador que o escolheu”51.
2017
A segunda razão é o papel desempenhado pelo mal na realização do melhor universo
possível. Sem o querer nem o aprovar como tal, em si, Deus faz com que ele sirva a seus propósitos.
É por isso que ele o permite, como uma condição sine qua non de um bem superior (no caso do
pecado), ou mesmo de meio para obtê-lo (no caso da dor e da imperfeição em geral). Sabemos
que dois males podem, ao se unir, cancelar seus efeitos negativos e até ter um efeito benéfico,
como dois venenos produzem um remédio, ou ainda uma falha pode ter consequências felizes.
Assim também, o erro deste general do exército que conduz, inesperadamente, à vitória, ou a
queda de Adão que nos valeu a intercessão de Cristo52. Deve-se admitir que “o melhor curso de
ação nem sempre é o que tende a evitar o mal, pois é possível que o mal seja acompanhado por
um bem maior”53. Certamente Deus pode tirar todos os males do mundo, mas ele não o quer, por
sua vontade consequente, “porque ele tiraria os bens ao mesmo tempo, e ele tiraria mais bem
do que mal”54.
Remover o mal do mundo seria, em realidade, remover mais bem do que mal. O olhar sobre
a parte considerada, no início, como muito imperfeita, muda então... Porque, se pudéssemos
contemplar todo o universo e compará-lo com todos os outros mundos possíveis (como Teodoro
na apologia da Teodiceia), não só veríamos que não poderia ser feito melhor, mas que não há
nem mesmo nada melhor a ser desejado no particular55, em relação a cada uma de suas partes,
na medida em que ela contribui a seu modo para o conjunto o mais perfeito ou, em qualquer
caso, na medida em que ela está inextricavelmente ligada a ele.
60
55 Ibid., § 125, GP VI, 180 : “Não se pode nem mesmo desejar que as coisas sejam melhores, uma vez que
se as entende : e isso seria um vício no autor das coisas, se ele as quisesse mudar no que quer que fosse, se ele
quisesse excluir delas o vício que nelas se encontra”.
PAUL RATEAU
56 O pecado de Adão, ocasião da Encarnação e da Redenção, serve, de algum modo, como exemplo
61
paradigmático.
57 Sobre essa distinção: Carta a Wolff (21 de fevereiro de 1705), GB 19.
58 Ou, negativamente: o que faz obstáculo ao menor número de coisas possíveis.
A TESE LEIBNIZIANA DO MELHOR DOS MUNDOS POSSÍVEIS
A perfeição, no nível universal, é a harmonia das coisas. Como indica a carta de Leibniz
volume 21 a Wolff, de 18 de maio de 171559, ela tem um sentido ao mesmo tempo metafísico e epistêmico:
número 1 ela é «o acordo ou a identidade na variedade» (uma fórmula que lembra a famosa definição da
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harmonia dada na Confessio Philosophi60), e o que torna todas as coisas notáveis e suscetíveis
de serem consideradas (observabilitas universalium e gradum considerabilitatis). A perfeição
se refere, o ponto de vista ontológico, a uma relação entre contrários (um/múltiplo, mesmo/
diferente) e, do ponto de vista do conhecimento, a um grau de inteligibilidade, porque“a ordem,
a regularidade e a harmonia são o mesmo” 61. Para ser possível, é suficiente ser inteligível,
concebível, isto é, não conter nenhuma contradição. Mas, para passar à existência, “deve haver
uma prevalência de inteligibilidade ou de ordem; porque há ordem na medida em que há muito
para ser notado em uma multiplicidade”62. O mundo o melhor é o que é o mais racional, onde
nada é feito em vão, deixado ao acaso, onde não há nenhum ser que não cumpra exatamente
seu papel no desígnio divino, nenhum evento que não contribua para isso de alguma maneira,
nenhum lugar ou tempo que não seja usado. Um universo onde tudo é ordem e finalidade,
regulado por leis simples e gerais, que não reivindica milagres permanentes para paliação da
incapacidade das criaturas, porque tira o melhor partido da natureza das coisas (do que elas são
e podem por si mesmas) e das condições impostas pelo espaço e pelo tempo.
No nível metafísico, a carta a Wolff permite assim compreender em que sentido nosso
mundo realiza a maior quantidade de essência. Para Leibniz, a essência ou grau de perfeição
de uma coisa é medida por suas “propriedades harmônicas”63. A exigência de um máximo de
realidade ou de ser coincide com a exigência de um máximo de harmonia no nível global64.
O mundo que permite trazer à existência o máximo de possibilidade, o máximo de essência, não
é o que, por exemplo, conteria mais indivíduos ou bens particulares, mas aquele que contém o
59 GB 172 : “perfectio est harmonia rerum […] seu consensus vel identitas in varietate”.
60 Op. cit., p. 30 : “Similitudo in varietate, seu diversitas identitate compensata”.
61 GB 172.
62 Carta a Bourguet, GP III 558.
62
63 GB 172.
64 Sobre esse ponto, ver especialmente Gregory Brown :“Leibniz’s Theodicy and the Confluence of worldly
goods” (1994), in G. W. Leibniz: critical assessments, edited by Roger S. Woolhouse, p. 466-467.
PAUL RATEAU
máximo de “propriedades harmônicas”. Ora, a harmonia exclui que só exista bem no universo.
O excesso de bem seria um mal, ele produziria uma homogeneidade e uma uniformidade volume 21
contrárias à beleza. Se houvesse apenas o bem, haveria menos bem; se houvesse apenas os número 1
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maiores bens, a excelência perderia seu valor:
“[...] verifica-se que, se houvesse apenas virtude, se houvesse apenas criaturas razoáveis,
haveria menos bem. Midas ficou menos rico quando tinha apenas ouro. Além disso, a
sabedoria deve variar. Multiplicar unicamente a mesma coisa, por mais nobre que seja, seria
supérfluo, seria uma pobreza: ter mil Virgílios bem conectados em sua biblioteca, cantar o
tempo todo as árias da ópera de Cadmus e Hermione, para quebrar todas as porcelanas
para ter apenas copos de ouro, ter apenas botões de diamante, comer apenas perdizes,
beber apenas vinho da Hungria ou de Shiras; seria isso chamado de razão?”65
A riqueza reside tanto na pluralidade, isto é, certamente, na quantidade (uma única vir-
tude, uma única espécie de criatura, mesmo a mais nobre, seria um defeito) e na diversidade,
isto é, na qualidade. É preciso haver graus na posse de uma virtude e na respectiva perfeição
das substâncias (incluindo no interior de uma mesma espécie de substâncias – por exemplo,
os espíritos66). A harmonia exige essa variação quase infinita, essa heterogeneidade, e não a
repetição do mesmo, ainda que ele fosse o mais perfeito em seu gênero.
O melhor mundo possível, se for o mais harmônico, constitui assim um tipo de ponto de
equilíbrio que também é um ponto limite. Ele é uma forma notável, única, a mais determinada,
pois ele é aquele que compreende a maior diversidade possível, além da qual a própria identidade
seria ameaçada67. É um compromisso entre a busca da máxima variedade e riqueza nos efeitos
e a preocupação com a unidade e similaridade:
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66 Cf. ibid., § 120.
67 Cf. Elementa juris naturalis, A VI, 1, 479 : “Major harmonia est cum diversitas major est, et reducitur
tamen ad identitatem. (Nam non in identitate, sed varietate gradus esse possunt)”.
A TESE LEIBNIZIANA DO MELHOR DOS MUNDOS POSSÍVEIS
Conclusão
O universo o mais perfeito é aquele que melhor responde ao fim de Deus, que é a sua
glória, à qual todo outro fim é subordinado. Assim,“pode-se dizer que os homens são escolhidos
e classificados não tanto de acordo com sua excelência como de acordo com sua conveniência
com o plano de Deus”69. Não é o que é em si o melhor, na parte, que é escolhido, mas o que é mais
adequado à meta fixada. Deus quer a felicidade dos espíritos tanto quanto possível, porque ele tem
em vista a totalidade das coisas. A perfeição do todo não é reduzida a uma soma de perfeições
particulares, isto é, à quantidade de ser e de bem realizados no mundo. É necessário adicionar, no
cálculo global, o que não deriva estritamente da quantidade, mas da qualidade: a ordem, a conexão
e a harmonia de todas essas coisas variadas que formam o mundo. Nosso universo é o melhor
ao mesmo tempo em um sentido relativo, em comparação com outros possíveis, mas também
na medida em que expressa uma relação entre meios, condições dadas e fins, e em um sentido
absoluto, na medida em que constitui a forma a mais determinada, a mais inteligível e única.
(Tradução: Ulysses Pinheiro)
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69
Confessio Philosophi, A VI, 3, 122.
Teodiceia, § 105, GP VI, 161.
PAUL RATEAU
RESUMO
O objetivo deste artigo é explicar o sentido da tese do melhor dos mundos possíveis. Para Leibniz, o melhor deve ser volume 21
compreendido no sentido do método de Formis optimis, isto é, como o que reenvia, em um gênero dado, à forma a número 1
mais determinada. Essa última é a um só tempo única e a mais racional. Assim, a perfeição do mundo não resulta 2017
do fato de que ele concentraria a maior quantidade de essência ou de bem (perfeição quantitativa), mas do fato
de que ele constitui a ordem a mais inteligível, na qual cada coisa, sem ser necessariamente a mais perfeita em si
mesma, contribui, no entanto, com a harmonia universal, ou seja, a unidade de uma multiplicidade que preenche
da melhor maneira possível os fins divinos (perfeição qualitativa).
Palavras-chave Leibniz, melhor mundo possível, compossibilidade, harmonia universal, mal, perfeição.
ABSTRACT
The aim of this paper is to explain the significance of Leibniz’s thesis of the best possible world. For Leibniz, the
best is to be understood in the sense of the method de Formis optimis, as what refers, for a given sort of things,
to the most determined form, which is both unique and the most rational one. Thus, the perfection of the world
does not result from its containing the largest quantity of essence and of good (quantitative perfection), but from
its forming the most intelligible order, in which every single thing, without being necessarily the best in itself,
nevertheless contributes to the universal harmony, that is to the unity of a manifold fulfilling the divine ends in
the best possible way (qualitative perfection).
Keywords Leibniz, best possible world, compossibility, universal Harmony, evil, perfection.
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