A Relação Entre Natureza e Graça
A Relação Entre Natureza e Graça
A Relação Entre Natureza e Graça
Matheus Bernardes*
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Revista de Cultura Teológica
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Cf. GS 22.
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Cf. SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et al., História dos Dogmas: o homem e sua salvação
(Tomo II), 1ª Edição, São Paulo: Ed. Loyola, 2003, p. 314-316.
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Por um lado, Deus criou o ser humano, mas, por outro, o gerou
para que fosse seu filho. Há dois aspectos da obra de Deus na pessoa
humana: o primeiro corresponde à “natureza”, o segundo, à “graça”.
Mas a natureza humana e o dom de Deus não se opõem. Há entre eles,
em sua grande diferença, uma íntima harmonia.
É conhecida a afirmação do primeiro parágrafo das Confissões:
“Tu o incitas para que sinta prazer em louvar-te, fizeste-nos para ti
e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti” .6 O ser
humano, finito por natureza, atinge sua plenitude só no Infinito. A
3
Cf. MEIS, A., Antropología Teológica: acercamientos a la paradoja del hombre, 2ª Edição,
Santiago de Chile: Ediciones Universidad Católica de Chile, 1998, p. 333-336.
4
Cf. SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et. al., Op. cit., p. 314-316.
5
AGOSTINHO DE HIPONA, Comentários aos Salmos 122,5, 1ª Edição, São Paulo: Ed. Paulus,
1998, p. 599.
6
AGOSTINHO DE HIPONA, Confissões I,1,1, 10ª Edição, São Paulo: Ed. Paulus, 1984, p.
15.
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Cf. AGOSTINHO DE HIPONA, De natura et gratia (Natureza e graça) in: A Graça I, 1ª
Edição, São Paulo: Ed. Paulus, 1999, p. 114.
8
Cf. SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et. al., Op. cit., p. 316-319.
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Que o único fim do ser humano seja Deus é claro desde o Comen-
tário sobre as Sentenças.10 O fim último de toda operação racional é a
beatitude perfeita, e a alma foi feita para participar da beatitude, que
é o único Bem supremo. Parece que Boaventura não fala de outro fim
do ser humano. A propósito do estado original e da situação do ser
humano após o pecado, encontra-se também a distinção habitual entre
o que corresponde à natureza e o que corresponde à graça. À natureza
9
BOAVENTURA, Breviloquium 5,1,3; vol. 5, p. 29-30, apud SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et.
al., Op. cit., p. 318.
10
Cf. BOAVENTURA, Commentarium Sententiarum Petri Lombardi II, d.19, a.1, q.1, 1ª
Edição, Grottaferrata: Ed. Quaracchi, 1971, p. 460.
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Cf. SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et. al., Op. cit., p. 319-324.
12
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma contra os gentios, III,37, 1ª Edição, Porto Alegre: Pontifícia
Universidade do Rio Grande do Sul, 1996, p. 435.
13
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica Ia q.12, a.1, Op. cit., p. 161.
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TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica Ia-IIae, q.3, a.8., Op. cit., p. 78.
15
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma contra os gentios, III,52, Op. cit., p. 466-467.
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tal, do que a natureza que não pode conseguir o bem perfeito, mas
que consegue algum bem imperfeito, embora para tal não necessite
auxílio exterior.16
16
TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica IaIIae, q.5, a.5, ad.2, Op. cit., p. 105.
17
Cf. SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et. al., Op. cit., p. 328-331.
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fruição perfeita, dando-lhe, por graça, o que ela não podia obter por
natureza. Deriva daí uma dupla ordem entre os seres criados existen-
tes: a ordem da natureza e a da graça.
A ordem natural equivale ao “devido” à criatura, nos termos que
já se conhece; a ordem sobrenatural, ao que nas criaturas está acima
do que se lhe deve. Nesse sentido, “sobrenatural” equivale a “gratuito”.
Caetano de Vio segue, nesse ponto, a doutrina de Tomás de Aquino.
Para compreender o que é a graça, é preciso referi-la à natureza
divina: concretamente, a graça faz que os seres humanos, criados à
imagem e semelhança de Deus, sejam também irmãos de Jesus Cristo,
que é o Filho de Deus por natureza. Igualmente, a luz da glória (lumen
gloriae), que dá a possibilidade de ver Deus na vida eterna, é também
de ordem divina. Tanto a graça como a luz da glória ultrapassam a ca-
pacidade da natureza criada e são “sobrenaturais”, no sentido estrito.
O fim último do ser humano, a visão de Deus, é, portanto, sobre-
natural. Por essa razão, ela não pode ser conhecida naturalmente. Na
natureza não se dá um desejo do sobrenatural; não há desejo da visão
de Deus, porque o apetite natural não pode ir além do que é capaz
atingir naturalmente.18 Na natureza humana existe, sim, a capaci-
dade de receber as perfeições sobrenaturais, mas essa capacidade,
que é somente passiva, não é acompanhada de nenhuma inclinação
a respeito delas.
Uma inclinação natural que não possa ser realizada pelas forças
naturais se torna, para Caetano de Vio, uma contradição: a dimensão
sobrenatural do objeto do desejo tornar-se-ia um compromisso. As-
sim, o ser humano deseja somente o conhecimento de Deus que pode
alcançar com suas forças naturais. Essa posse e conhecimento são
suficientes para satisfazer seu desejo de beatitude, sem que lhe seja
necessário chegar à visão perfeita. É claro, de outro modo, que a ple-
na beatitude se encontra conforme tal visão, mas nada faz desejá-la.
Existe, portanto, no ser humano, apenas um “poder obediencial”,
ou seja, uma capacidade de receber o dom de Deus. Essa capacidade
18
Cf. ALFARO, J., Lo Natural y lo sobrenatural, 1ª Edição, Madrid: Consejo Superior de
Investigaciones Científicas, 1952, p. 286-292.
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CAETANO DE VIO, Comentário sobre a Suma Teológica IaIIae, q.3, a.8 apud SESBOÜÈ,
B., LADARIA, L., et. al., Op. cit., p. 330. Cf. ALFARO, J., Lo Natural y lo sobrenatural, Op.
cit., p. 151s.
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Cf. SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et. al., Op. cit., p. 331-334.
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DE LUBAC, H., Augustinisme et Théologie Moderne, 1a Edição, Lyon: Ed. Montaigne,
1965, p. 20.
22
Cf. SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et. al., Op. cit., p. 335-338.
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Cf. DE LUBAC, H., Augustinisme et Théologie Moderne, Op. cit., p. 186.
24
Cf. SESBOÜÈ, B., LADARIA, L., et al., Op. cit., p. 339-343.
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DE LUBAC, H., Lê mystère du surnaturel, 1ª Edição, Paris: Ed. Aubier, 1965, p. 92-93.
26
Ibidem, p. 105.
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A criatura espiritual tem uma relação direta com Deus que lhe vem
de sua origem. E isso muda tudo. Daí haver nela essa espécie de
bamboleio, essa misteriosa claudicação, que não é a do pecado, mas,
mais radicalmente, a de um animal que é espírito, de uma criatura
que, estranhamente, atinge Deus.27
27
Ibidem, p. 107.
28
Ibidem, p. 75-76.
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4. Balanço final
29
Cf. MEIS, A., Op. cit., p. 417s.
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A natureza efetiva não é nunca uma natura pura, mas, sim, uma
natureza na ordem da graça, uma natureza sempre em contato com
a graça salvífica de Deus. Seguindo a já exposta tese do “existencial
sobrenatural”, o teólogo alemão afirma que a ordem da graça é um a
priori transcendental da atual ordem histórica do ser humano o que
implica que a graça está coerentemente implicada e operante em toda
existência humana concreta, antes mesmo da tomada de consciência
e tematização da problemática.30
30
Cf. MEIS, A., Op. cit., p. 417s.
31
Cf. KASPER, W., Natur-Gnade-Kultur. Zur Bedeutung der modernen Säkularisierung.
Theologische Quartalschrift v. 170 n. 2, Tübingen,1990, p. 81-97.
32
Cf. ALFARO, J., El problema teológico de la trascendencia e inmanencia de la gracia,
Gregorianum, Roma, v. XXXVIII, p. 314.
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33
Cf. MEIS, A., Op. cit., p. 417s.
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34
Cf. LADARIA, L., Teología del pecado original y de la gracia in: Sapientia Fidei (Tomo
I), 3ª Edição, Madrid: BAC, 2001, p. 22-30.
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Cf. DH 3891.
36
Cf. GS 36.
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37
Cf. BOFF, L., Graça e experiência humana, 7ª Edição, Petrópolis: Editora Vozes, 2012,
p. 360.
38
Cf. LG 01.
39
Cf. BOFF, L., Op. cit., p. 349s.
40
Cf. MEIS, A., Op. cit., p. 417s.
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Bibliografia:
2EUDVGHWHyORJRV
ALFARO, J. Lo sobrenatural y lo natural, 1ª Edição. Madrid: Consejo Su-
perior de Investigaciones Científicas, 1952.
ALFARO, J. Trascendencia e inmanencia de lo sobrenatural. Gregorianum
ann. XXXVIII, Roma, 1959.
BOFF, L. Graça e experiência humana, 7ª Edição. Petrópolis: Editora
Vozes, 2012.
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