Território e Regulação Livro Páginas 1 10,55 91
Território e Regulação Livro Páginas 1 10,55 91
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Um especial agradecimento a Profª Maria Adélia de Souza, minha cara orientadora desde
o ingresso na pesquisa acadêmica.
Para Luciana
Índice
Apresentação
Introdução
Capítulo 1
A administração territorial da justiça no Brasil
1 Comarca, a região basal do direito, pp. 2 Regionalização por sobreposição:
as varas, pp. 3 Território como norma e hegemonia soberana, pp.
Capítulo 2
O espaço geográfico: fonte material e não formal do direito
1 O uso do território pelos diversos níveis de hegemonia, pp. 2 Técnica e Norma:
elementos para uma compreensão epistemológica da regulação no território, pp. 3
As normas jurídicas e o território, pp. 4 As normas morais e o território, pp. 5 Os
sistemas jurídicos e o território, pp. 6 Os sistemas romano-germânico e common law:
a distinção dos federalismos na estruturação do território, pp.
Capítulo 3
A expansão histórico-geográfica do direito ocidental
1 A formação do direito romano-germânico, pp. 2 O inquérito e a prova, pp. Um
método eficaz de registro das informações, pp. 3 As razões de receptividade do
direito romano-germânico, pp. 4 A formação do modelo common law: uma
regulação colonizadora, pp. 5 O common law e o direito romano-germânico, pp. 6 A
implementação dos sistemas jurídicos europeus na América
Capítulo 4
Dos territórios étnicos aos territórios nacionais
1 Vários povos, uma população, pp. 2 Território integrado: o corpo da alma nacional,
pp. 3 As formas jurídicas de regulação social e econômica emergentes sob o
capitalismo, pp. 4 O surgimento de uma nova forma jurídica: o exame, pp.
Capítulo 5
A emergência dos atores hegemônicos corporativos e a partição da regulação do
território
1 Transformações das funções do Estado territorial na sociedade contemporânea: a
mundialização da economia e novas formas jurídicas de alcance global, pp. 2 O
aumento do número e do tamanho das organizações multinacionais, pp. 3 Estado,
soberania e novos agentes hegemônicos: o controle da informação, pp. 4 O
restabelecimento do jus mercatorum: a lex mercatoria, pp.
Capítulo 6
A regulação híbrida do território
1 Os agentes da regulação híbrida do território, pp. 2 A novidade da eletrificação dos
territórios nacionais e os novos condicionamentos sociais, pp. 3 Poderes imbricados:
a criação das agências nacionais de regulação, pp. 4 ANEEL, a mediação entre uma
energia cinética do território e a mercadoria energia elétrica, pp. 5 As organizações
sociais, o território e a regulação, pp.
Bibliografia
Mapas
Gráficos
Estados da federação que passaram por oscilações no número de comarcas entre
2000 e 2003
Processos protocolados por ramos de direito – 1990 a 1999
Relação investimento x produção de energia elétrica no Brasil
Evolução das tarifas de eletricidade entre 1995 e 2002
Tabelas
Quadros
Ricardo Castillo
setembro de 2004
Capítulo 2
O espaço geográfico:
fonte material e não-formal do direito
Milton
Santos,
Espaço
e
Sociedade.
58Segundo o Dicionário Houaiss, Rio de Janeiro: Objetiva, 2001: advogado: “pessoa habilitada a prestar, em
assunto jurídico, assistência profissional a outrem, defendendo seus interesses judicial ou
produzidas para cada setor da sociedade servirem como ferramentas,
operacionais portanto, nos processos sociais em que vêm dirimir conflitos e,
assim, realizar o papel mais típico do direito: a manutenção de uma dada
ordem social.
Se não pelos motivos que serão abordados mais adiante, este já nos
autoriza a não considerar a norma jurídica apenas em sua característica
puramente formalista: a presente análise focaliza a interdependência entre
direito e geografia, instâncias sociais, e, portanto, entre suas respectivas
dinâmicas. A ciência jurídica e a geográfica não apresentam o mesmo
dinamismo das instâncias que procuram explicar e alimentar, posto serem
cristalizações de experiências havidas, organizadas criteriosamente, para
singularizar o conhecimento de cada disciplina em relação ao seu objeto
específico.
Por mais recente e progressista que se pretenda uma lei, ela já é fruto
de necessidades passadas, e o seu papel é o de promover uma espécie de
congelamento ou, no melhor dos casos, de estabilização das relações sociais
no espaço e no tempo. A geografia não escapa a essa condição mesmo que
os geógrafos anseiem o inverso; o ensino de geografia, expressão mais
difundida desse campo de conhecimento, ao explicar o funcionamento do
mundo ou a constituição de um dado território, revela uma coisa que já não
é mais. Assim como esta pesquisa necessariamente trata de um passado,
ainda que muito recente, como se fosse expressão dos eventos que estão se
processando à medida que o leitor faz esta interlocução.
59 Em todo o século XX, e em especial após a Segunda Guerra Mundial, as ciências alavancaram o processo
produtivo, gerando uma constelação de objetos técnicos potencializadora das ações em todas as
atividades da vida social. São objetos das mais diminutas dimensões até portes colossais, constituintes de
sistemas lógicos sem os quais sua existência não teria qualquer sentido. Os objetos técnicos assim
constituídos e dispostos são atualmente indissociáveis da ciência e, no início do século XXI, configuram
parte da materialidade da superfície terrestre: o espaço geográfico é um híbrido, ao mesmo tempo natural
e social. (Ver Milton Santos, A natureza do espaço. Técnica e Tempo, Razão e Emoção, São Paulo: Hucitec, 1996
– especialmente capítulo 3. E Boaventura de Sousa Santos, Introdução a uma ciência pós-moderna, Porto:
Afrontamento, 1995, p. 75: “Se todo o conhecimento científico é social na sua constituição e nas
conseqüências que produz, só o conhecimento científico da sociedade permite compreender o sentido da
explicação do mundo ‘natural’ que as ciências naturais produzem (...) por isso, as ciências sociais são
epistemologicamente prioritárias em relação às ciências naturais.”)
60 Boaventura de Sousa Santos, “O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica”, em:
Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, número especial em homenagem ao Prof. Dr. J.
J. Teixeira Ribeiro, 1979, pp. 227-341.
61 Economia e Sociedade, Brasília: UnB, 1991, p. 209.
pelo prisma do jurista, apresenta caráter completamente distinto quando
analisada pelo sociólogo. Do mesmo modo, observa-se que, para a
geografia, as normas, de modo geral, e particularmente as jurídicas aqui,
não são vistas exatamente como o jurista as concebe ou como o sociólogo as
analisa; poderíamos dizer que contemplam um pouco de cada um desses
olhares, uma vez que da interação difusa dessas concepções normativas62,
próprias a cada uma dessas ciências, resulta a produção de parte da
materialidade condicionadora da vida social, que é, grosso modo, o objeto da
geografia.
Parte-se, neste estudo, de uma concepção do espaço geográfico como
constituído por objetos e ações; conjuntos de objetos em sistema
indissociáveis de conjuntos de ações em sistema63. Há, portanto, na
interação entre objetos e ações, a presença de densidades normativas
variadas, conforme a quantidade e a qualidade com que esses dois
elementos distribuem-se pela superfície terrestre, e grande parte dessas
normas, jurídicas, busca regular tal relação.
As metrópoles, como outras estruturas espaciais promotoras de
grande concentração populacional, apresentam intensa densidade
normativa; o campo produtivo e modernizado reúne aspectos normativos
bastante específicos, cujos fins são bem definidos em ordenamentos
técnicos e jurídicos; as reservas e parques naturais apresentam menores
densidades e nem sempre formam um arranjo bem encadeado e lógico de
62 “Para a dogmática jurídica, uma norma é válida desde que seja estabelecida ou figure em um Código;
para a Sociologia, trata-se de controlar sua importância no curso da atividade social dos indivíduos, pois
não é sempre que uma lei estabelecida é respeitada.” Julien Freund, Sociologia de Max Weber, Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1987, p. 178/179.
63 Milton Santos, Técnica Espaço Tempo - globalização e meio técnico-científico-informacional, São Paulo,
Hucitec, 1994.
normas, pois freqüentemente ali se confundem formas de direito distintas
(nacional/internacional; ocidental/autóctone).
A sociedade busca produzir e ao mesmo tempo controlar seu
território. Como ela sempre se apresenta fragmentada em grupos, classes,
castas etc., os graus de controle se afirmam conforme os recursos e as
possibilidades dos grupos ou indivíduos para efetivamente exercê-lo. Por
outro lado, as formas produzidas (bem como as não produzidas mas
igualmente humanizadas) não poupam a dinâmica social de atritos e
condicionamentos, gerando, desse modo, uma forma peculiar de regulação.
Na verdade, pode-se afirmar que a rigidez da norma jurídica e a da forma
geográfica − elementos que, instrumentalizados, se prestam à regulação −
compõem partes de um mesmo processo.
A concepção de espaço geográfico assumida aqui encontra
consonância naquela do direito proposto por Boaventura de Sousa Santos64,
para quem a norma é constituída de três dimensões65 das quais derivam os
seguintes elementos: comunicacional, sistêmico e repressivo – que estão
implícita ou explicitamente na conceituação de espaço geográfico de Milton
Santos, no que concerne à solidariedade orgânica na composição do espaço
banal, à solidariedade organizacional, às estruturas de enquadramento ou à
noção sistêmica de funcionamento que subjaz a essa concepção de espaço
geográfico.
Embora não haja uma correlação direta e mecânica entre esses
elementos da norma e o espaço geográfico, nota-se em ambas as concepções
a vocação para a produção de conhecimentos abarcantes, capazes de
64 Boaventura de Sousa Santos, “O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica”.
65 Noções que serão desdobradas adiante.
estabelecer relações entre os variados produtos sociais que estão à espera de
explicações mais reveladoras desta camada do presente em que nos
situamos e que, devido à complexidade atingida, já derrubou muitos
conceitos e enterrou esquemas teóricos.
Assim temos a instituição legal das fronteiras políticas, isto é, a
normatização do espaço geográfico pelas ações. Articulam-se a isso a
própria estruturação e a organização do território, realizadas segundo uma
racionalidade que se pretende o mais eficaz possível na ordem econômica
vigente, reguladoras dos comportamentos e diretrizes das ações pautadas
pelo que se afigura útil a essa ordem. No que tange à normatização pelas
ações, Milton Santos66 fala em território normado; no que concerne à
configuração territorial produtora de normas, em território como norma. No
território normado, o elemento repressivo sobrepõe-se aos demais; no
território como norma, o elemento comunicacional fornece o referencial
diretor. Em ambos os casos, que de fato compõem um par dialético, o
elemento sistêmico está presente, primeiro organizacionalmente, depois,
organicamente.
72
Ver, por exemplo, FARIA, José Eduardo. O Direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999 e
SANTOS, Boaventura de Sousa. “O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica”. Em Boletim
da Faculdade de Direito. Universidade de Coimbra, número especial em homenagem ao Prof. Dr. J. J. Teixeira
Ribeiro, Coimbra, 1979, pp. 227-341.
SANTOS, Milton. Técnica Espaço Tempo - globalização e meio técnico- científico-informacional. São Paulo:
73
Hucitec, 1994.
a norma. A partir de cada uma é possível estabelecer recortes teóricos e
objetos de pesquisa, mas a análise geográfica exige o tratamento conjunto
destes dois elementos.
Segundo Milton Santos, os objetos são artificiais ou humanizados, isto
é, são constituídos pela técnica ou apropriados por ela. A norma também
está nos objetos técnicos: a construção de uma ponte, por exemplo,
demanda e produz extensa normatização para que possa cumprir a função
desejada pelos seus investidores, sejam eles empresários, instâncias do
Estado, uma comunidade local.
Já as ações são inequivocamente humanas. Uma ação supõe a
existência de um ou mais agentes imbuídos de finalidade, e o agente pode
ser um indivíduo ou um conjunto de indivíduos agrupados na forma de
empresa, instituição, movimento social ou qualquer outra configuração que
apresente uma divisão interna do trabalho para, através da organização
lógica e racional, empreender uma inferência específica sobre a realidade.
Vemos, assim, que as ações só se realizam por meio da técnica e da
norma, e atualmente de modo intensificado, pois as ações se tornaram
sobremaneira complexas e estão divididas em uma grande quantidade de
etapas realizadas por objetos técnicos e definidas igualmente por um
detalhado ordenamento de normas, sejam elas jurídicas, técnicas ou morais.
A aquisição de uma infraestrutura estatal como a rede de abastecimento de
energia elétrica por uma empresa transnacional é o exemplo mais acabado
de uma ação hegemônica, que se dá através de uma intensa divisão do
trabalho e envolve uma quantidade expressiva de indivíduos. Todo esse
processo é intensamente regido pelas normas.
Então, seja para compreender a constituição e o funcionamento dos
objetos técnicos, seja para desenrolar o emaranhado de agentes
compreendidos numa ação, torna-se necessário aprofundar as pesquisas
atinentes à norma e, por extensão, ao direito.
Mas a preocupação central é a referida indissociabilidade entre
objetos e ações. A compreensão dessa mútua dependência entre o objeto e a
ação parece fundamental para o avanço de uma teoria crítica da geografia,
cujos desdobramentos podem desmistificar certos dogmatismos que
acusam de um novo determinismo geográfico a noção de que o espaço tem
papel condicionador sobre a sociedade e é, por isso, sua instância − e não
seu assoalho ou reflexo.
Técnica e norma são, pois, categorias fundamentais não explicitadas
nessa conceituação de espaço geográfico, mas conferem uma tal
operacionalidade para a análise dos processos sociais contemporâneos, que
se afiguram um caminho firme para a construção de uma ciência geográfica
não dicotômica.
A técnica, e não simplesmente a força-trabalho, é o modo pelo qual os
homens se relacionam com a natureza (natural e recriada), atribuindo à
materialidade intencionalidades condicionadoras das ações. Em outros
termos, a partir de uma dada configuração dos objetos técnicos,
intencionalmente estabelecida, decorre a repetição de um certo conjunto de
ações (embora não impossibilite ações inusitadas). Assim emerge a norma:
como a resultante de um condicionamento que produz a rotinização de um
dado evento. Mas para que seja norma, é condição sine qua non que o
condicionador tenha origem social.
Os obstáculos oriundos da natureza natural não podem ser
considerados produtores de normas, pois não têm qualquer sentido
teleológico, não buscam criar eventos produtivos ou úteis, e se ocorrem, é
puro acaso. Ao contrário, um sistema de transporte urbano, um conjunto
habitacional, uma estrutura nacional de energia elétrica produzem esse
efeito, produzem regulação.
Desse modo, a indissociabilidade entre ações e objetos pode, em
parte, ser compreendida por meio de uma análise vertical do papel da
técnica e da norma. Acreditamos que tal inseparabilidade não se esgota no
estudo dessas duas categorias e de suas mútuas implicações. Mas é certo
que, para lograr êxito nessa tarefa, é necessário ainda que o diálogo entre
geografia e direito se estreite e possamos pensar equilibradamente os
papéis atinentes à técnica e à norma.
Fundamental, portanto, que os geógrafos interessados em dar
continuidade à proposta teórica de Milton Santos (que reconhecidamente
carrega em si um projeto de inovação epistemológica do conhecimento
geográfico) dediquem atenção sobre a íntima relação entre a forma
geográfica e a norma jurídica, a saber: como a materialidade se desdobra
em ação, e o seu inverso.
Uma noção que urge difundir-se no pensamento geográfico é o
pluralismo jurídico. Muitos são os equívocos sobre o modus operandi de
sociedades não ocidentais, equívocos devidos ao desconhecimento dessa
rica e complexa noção.
A situação de pluralismo jurídico salta aos olhos do geógrafo, por
exemplo, quando se analisa a dinâmica entre o território e o direito a partir
de concepções bastante distintas dos Estados territoriais ocidentais,
paradigma com o qual nos habituamos a lidar.74
O aparente monismo jurídico dos estados territoriais do ocidente
contrasta com o pluralismo jurídico secular de grande parte dos países dos
continentes africano, asiático e mesmo americano, como, por exemplo, na
região amazônica. Nesses continentes há uma tal riqueza de pluralismo
normativo que num mesmo país (para utilizar uma noção geográfica
ocidental) há mais de um Estado afirmado por suas próprias leis e, o que
dificulta ainda mais o nosso imediato entendimento, é que mais de um
Estado pode exercer regência sobre um mesmo território75.
Mas o monismo jurídico do ocidente é apenas aparente, embora possa
ter sido hegemônico durante alguns séculos nas formações socioespaciais
mais bem acabadas (América Anglo-saxônica e Europa ocidental). De
qualquer modo, o ressurgimento do pluralismo jurídico no ocidente é um
fenômeno inédito, que aponta a emergência do novo paradigma social que
deve ser compreendido pela ciência: ele difere do antigo pluralismo
medieval e daquele mencionado nas formações socioespaciais africanas,
asiáticas e americanas. Trata-se da capacidade das corporações
transnacionais e das organizações sociais bem estruturadas de criarem
novas juridicidades que influem na vida de todos que vivem num mesmo
território.
74Observar o mapa que apresenta a territorialização das principais formas de direito no mundo.
75Evidentemente a lógica dos Estados territoriais imposta pelo ocidente e seu motor econômico não deixa
de influenciar esse funcionamento, o que conduz a guerras sangrentas. Veja-se o caso de países da África
onde partidos políticos (forma jurídica ocidental) são militarizados, têm milícias próprias e conquistam
partes do território pelo uso da força. A esse respeito, ver artigos da revista O mundo em português (n. 1,
ano I; n. 2, ano I; n. 8, ano I; ns. 22/23, ano III) sobre a situação política de Angola.
Esse novo pluralismo não se restringe, evidentemente, aos países
ocidentais, pois o motor desse processo é a emergência de uma forma de
solidariedade fortemente vinculada às tecnologias mais avançadas capazes
de integrar porções territoriais não-contíguas e que abarcam todo o planeta:
a solidariedade organizacional. Fundada na informação fria, vinda de longe
por um centro de comando insensível às necessidades locais (porque, de
fato, trata-se de racionalidades puras), a solidariedade organizacional
promove, freqüentemente, um desequilíbrio das tradicionais formas de
solidariedade orgânica e implementa ou, antes, prepara a implementação
de novas ordens. Não se trata de uma ordem global, mas de várias e
distintas, pertencentes sobretudo às grandes corporações transnacionais,
muito embora grandes organizações sociais ambientalistas, assistencialistas
e até mesmo agrupamentos mais progressistas venham crescentemente se
utilizando dessa possibilidade técnica.
A regulação social e territorial, quer nos parecer, é efetivamente
exercida pelas instâncias que detêm poder de fato e não apenas um poder
declarado. Advém daí a proposta de um entendimento de que a regulação
do território nacional atravessa hoje uma transição para uma evidente
divisão entre poderes: 1. o poder monolítico e extensivo da hegemonia
soberana; 2. o poder fragmentado, especializado por setores econômicos
(não necessariamente produtivos), formado por redes técnicas e
organizacionais − a hegemonia corporativa; e 3. a constituição de novas
formas de poder fundada no multiculturalismo.
As normas jurídicas e o território
(princípio de causalidade)
psíquicos (caracterizados por laços de mundo histórico-cultural. O
coexistência e sucessão) homem compôs formas novas
e estruturas inéditas sobre a
– coisas, corpos físicos
objetos naturais
natureza, segundo sua
são espaço-temporais intencionalidade.
objetos
(qualidade intrínseca: extensão e
físicos conseqüentemente resistência ao
SER
elementos constituintes
triângulo, o círculo, um número,
um juízo lógico, um silogismo. Segundo Milton Santos, os
objetos são a-temporais e a-espaciais objetos culturais
(são incluídos no espaço, mas não correspondem aos objetos
ideais
das técnicas
possuem espacialidade como técnicos.
condição de seu revelar-se) Das três dimensões dos
objetos enunciadas, resulta a
produção de normas.
DEVER SER valores
Adaptado de Miguel Reale, Filosofia do Direito, 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p.188.
Obs.: apenas os textos em itálico são de nossa autoria.
80 Emile Durkheim, Da divisão do trabalho social, São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 37.
As normas morais e o território
83 Segundo Durkheim, em Da divisão do trabalho social, as solidariedades que se prendem às regras jurídicas
apresentam sanções organizadas e com elevado grau de homogeneização, pois se apresentam
formalmente iguais por toda parte, principalmente no caso das normas penais; e as solidariedades ligadas
às regras puramente morais também apresentam sanções, “mas distribuídas de maneira difusa por todo o
mundo indistintamente”. Parece lícito afirmar, então, que as normas morais variam na mesma proporção
em que variam os lugares.
84 Milton Santos, “Sociedade e Espaço: a Formação Social como teoria e como método”, em Boletim Paulista
de Geografia, São Paulo: AGB, seção São Paulo, junho de 1997, n. 54, pp. 81-100.
descrita como “uma combinação localizada de uma estrutura demográfica
específica, de uma estrutura de renda específica, de uma estrutura de
consumo específica, de uma estrutura de classes específica e de um arranjo
específico de técnicas produtivas e organizativas utilizadas por aquelas
estruturas e que definem as relações entre os recursos presentes.”85
Tomando como exemplo o período em que o Brasil se apresentava
como um arquipélago de economias, isto é, com divisões sociais e
territoriais do trabalho específicas e articuladas com o capitalismo
internacional, tínhamos nitidamente a formação de regiões delimitadas por
atividades definidas, que coincidiam com uma regionalização produzida
pelas normas morais, pois as solidariedades sociais advindas daquelas
divisões do trabalho estavam delimitadas por fronteiras geográficas (e não
jurídicas). A região cacaueira, o clima tropical, uma estrutura social muito
desigual e um poder fortemente centralizado, por exemplo, constituem
elementos que se relacionam e podem ser bem compreendidos, se o ponto
de partida da análise se assentar nos costumes que estruturaram e
mantiveram aquela economia viva, sem necessidade de comunicação com
as demais do país. Aliás, este exato ponto de partida levou Sérgio Buarque
de Holanda86 a afirmar, em relação à economia que se formou na região
Sudeste, que o café era uma “planta democrática”.
Além dessa relação entre as normas morais e o fato regional, há
também a relação dessas normas com os objetos geográficos; sejam eles
objetos técnicos, naturais humanizados, ou sistemas técnicos.
87 Ubi societas, ubi jus, isto é, “onde está a sociedade, aí está o direito”, Antonio Costella, “Direito da
Comunicação”, em Revista dos Tribunais, São Paulo, 1979, p. 1.
88 “Os elementos do espaço seriam os seguintes: os homens, as firmas, as instituições, o chamado meio
91 Boaventura de Sousa Santos, “O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica”.
92 Aqui nos apoiamos nas explicações de Michel Foucault sobre a força-poder do disciplinamento através
da concepção e da manipulação de objetos técnicos. Quanto ao uso mais intenso para a acumulação de
capitais, particularmente por parte das corporações transnacionais, será abordado nos capítulos 5 e 6.
93 Expressão freqüentemente utilizada por Boaventura de Sousa Santos na obra citada. Sobre a dimensão
retórica, Boaventura demonstra que, desde o movimento de codificação do direito, ela foi reduzida a uma
linguagem estritamente técnica, sob o argumento de tornar o direito mais científico.
94 René David, Os grandes sistemas do direito contemporâneo, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 324.
espaço banal. O componente comunicacional, como se vê, é central, pois
todas as soluções, por definição, interessam, e elas assim alimentam esse
sistema jurídico.
Isso já não se aplica aos códigos e às leis que constituem o modelo
romano-germânico. Dura lex, sed lex. A lei é dura, mas é a lei; deve cumprir-
se. No mais das vezes, caem em desuso.
Dada a essência mais formalista do direito romano-germânico, no
território brasileiro, as solidariedades organizacionais já estão estabelecidas
antes mesmo da chegada do homem de cultura ocidental. Não importa o
grau de civilidade nem a cor da pele dos que cheguem aos estados do norte
do Brasil hoje, por exemplo, e serão assim interpretados ou sentidos pelos
homens de qualquer nação que lá estava há mais de 300 anos. Isso quer
dizer que as soluções dos problemas específicos daquela região apresentam
um grau de previsibilidade maior, porque já estão, em grande medida,
estabelecidas.
O direito romano-germânico é de caráter prescritivo, há uma lei geral
para casos que irão ocorrer, cujo grau de ineditismo ignorado é bem mais
amplo do que no common law, no qual há graus de previsibilidade pelo
simples fato de tratar-se de um modelo − de outra sistematicidade − de
solução de conflitos. Mas, ainda assim, é possível afirmar que o
componente repressivo da lei é maior do que o da jurisprudência. Isso
implica outra estruturação do território, posto que, além da diferença entre
essas duas dimensões, há ainda a especificidade do elemento sistêmico
inerente à burocracia.
“‘A amplitude do espaço retórico do discurso jurídico varia na razão
inversa do nível de institucionalização da função jurídica e do poder dos
instrumentos de coação ao serviço da produção jurídica’(...) É sabido que o
declínio da retórica, enquanto disciplina do saber, no princípio do séc. XIX,
coincidiu com a época áurea do desenvolvimento industrial e, a nível
cultural, com o movimento romântico. (...) No que respeita à dimensão
burocrática, a expansão do elemento sistémico resultou sobretudo do
movimento da codificação e da ciência jurídica que se desenvolveu para,
directa ou indirectamente, o servir, enquanto a expansão do elemento
institucional resultou sobretudo da consolidação do estado liberal como
centro da dominação política de classe. No que respeita à dimensão
coercitiva, a sua expansão consubstanciou-se no desenvolvimento e
diversificação dos corpos de polícia, na consolidação do movimento
penitenciário trazido do século anterior e nos primeiros esforços
sistemáticos para pôr as forças militares ao serviço da ‘segurança interna’,
isto é, do controle social.”95
Diante dessa síntese analítica, fica evidente como as diferenças de
proporção das dimensões retórica, burocrática e repressiva dos dois
modelos de direito são fundamentais para a compreensão do
funcionamento dos territórios sob as juridicidades correspondentes.
Citamos, por exemplo, a estrutura do federalismo nos Estados
Unidos e no Brasil. O modo de funcionamento da administração jurídica e
política de cada um dos territórios, atinentes aos respectivos sistemas
jurídicos, é revelador da composição das três dimensões. No common law,
95Boaventura de Sousa Santos, “O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica”, pp.
313/314.
as dinâmicas espaciais − e isso lhes é inerente − acompanham prontamente
o movimento da dialética social, até onde é possível separar estas duas, nos
lugares e na escala da região, conferindo-lhes maior autonomia. Sempre foi
fundamental para a geografia operar com a diferenciação das
temporalidades da materialidade inerente ao espaço geográfico articuladas
e conjugadas às temporalidades das ações, que igualmente o compõem. O
espaço é uma acumulação desigual de tempos96. “Com a evolução dos
sistemas de engenharia, a própria noção de tempo muda: o tempo da
produção, o tempo da circulação, o do consumo e da realização da mais-
valia. Quanto mais evoluem os sistemas de engenharia, mais coisas se
produzem em menos tempo. Também se transportam mais objetos em
menos tempo, o consumo se faz mais imediatamente, tornando tudo isso
mais e mais fácil graças aos equipamentos criados pelo Estado para facilitar
a circulação. Altera-se a relação capital-trabalho, isto é, a equação dos
empregos, e muda a estrutura profissional, levando ao aumento de número
dos técnicos, administradores e de outros terciários.”97
Assim, no território que compreende uma federação e seu respectivo
sistema burocrático de controle, os litígios e soluções decorrentes de
questões geográficas, econômicas e culturais distintas vão gerando uma
especificidade no funcionamento normativo, dada a autonomia que esse
sistema confere ao território sob sua influência e administração. O mosaico
de peças diferentes é uma imagem mais próxima do federalismo
estadunidense que do brasileiro.
98 Apud René David, Os grandes sistemas do direito contemporâneo, p. 368/369. Nesta mesma obra, o autor
explica que, logo após a independência estadunidense, houve uma breve tendência de se adotar a
codificação para o país, chegando mesmo a ser efetivamente implementada, por influência francesa, no
território de New Orleans, destacado da antiga Louisiana, e também no estado de Nova York, onde se
chegou a preparar planos para a codificação.
direito. Em conseqüência, temos que “a organização judiciária e a
organização administrativa diferem de estado para estado, assim como o
processo civil e o criminal; o divórcio não é admitido nas mesmas condições
e pelas mesmas causas; o regime matrimonial pode ser ora de comunhão,
ora de separação de bens; o direito das sociedades e o direito fiscal
comportam regras diversas; a relação e a sanção das infrações penais
também variam de um estado para outro (...) é o direito dos estados que, na
vida cotidiana, permanece o mais importante para os cidadãos e para os
juristas americanos”.99
Conforme procuramos demonstrar no primeiro capítulo, a
organização judiciária e administrativa brasileira mantém alto padrão de
uniformidade, se comparada com o federalismo estadunidense; e mesmo as
matérias desenvolvidas em cada estado apresentam maior equivalência. Em
outros termos, poder-se-ia afirmar que o princípio do ordenamento jurídico
implica um ordenamento territorial. Essa é uma questão que, ao nosso ver,
se analisada detidamente, pode ser reveladora do modus operandi de cada
um dos sistemas federativos aludidos; do exercício da hegemonia soberana
cotidiana e, por extensão, de dinâmicas territoriais distintas, mas que
muitas vezes são tomadas como tendo o mesmo funcionamento.
* * *
100 Milton Santos, “A revanche do território”, em Folha de S. Paulo, 3/08/1997 e “O chão contra o cifrão”,
em Folha de S. Paulo, 1999.
101 Norberto Bobbio, “Norma”, em Enciclopédia Einaudi, vol. 14, Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da
Moeda, s/d.
internacionais criadas, por eles mesmos, para regular a diplomacia
internacional. Assim, Organização das Nações Unidas - ONU; Organização
Mundial do Comércio − OMC; Organização Internacional do Trabalho −
OIT; Fundo Monetário Internacional − FMI, entre outros, são instituições de
abrangência mundial que, em princípio, não têm poder de interferir nos
diferentes territórios nacionais, caso isso lese de alguma forma suas
soberanias. Esses organismos podem e devem socorrer este ou aquele país,
se por eles convocados.
Cabe, a esta altura, frisar dois aspectos sobre o modo de produção
jurídico: 1. o território e todas as formas de técnicas nele contidas são
produtores de normas, as quais se incorporam, por sua vez, ao sistema
jurídico; 2. a noção de soberania é uma espécie de pedra fundamental dos
sistemas jurídicos nacionais e internacional. Isso posto, a questão de nosso
interesse assim se formula: com o processo de globalização, o território
nacional perdeu importância como fonte primária do direito?
A resposta imediata é negativa. Mas há ressalvas a fazer. O recente
processo de mundialização da economia e a criação de nexos globais
atinentes a todos os setores envolvidos mais intensamente com as
tecnologias da informação e da comunicação avançadas promoveram um
substantivo crescimento das corporações multinacionais, que, como as
entendemos, hoje merecem o tratamento de “transnacionais”, porque esta
categorização pressupõe que a ação desses agentes supera a da simples
empresa, mesmo sendo ela uma multinacional.
Desde meados da década de 1980, o capitalismo vem conhecendo um
processo de megafusões que têm produzido mais efeitos do que somente
ampliar a acumulação de capitais. Esse processo tem conferido às
transnacionais um acúmulo de poder inédito na história do capitalismo.
Ora, o discurso do Estado sobre sua condição de única instância capaz
de regular o território através de sua hegemonia soberana funda-se num
poder mítico e hereditário para extrair riquezas das extensões territoriais.
Ao contrário, o que passaremos a denominar aqui de hegemonia corporativa
ou de corporações hegemônicas se vale do poder disciplinar para constituir
redes (hoje estabelecidas em escala planetária) com vistas a extrair as
riquezas segundo outro princípio, a saber, sobre pontos específicos da
superfície terrestre, constituindo, assim, uma fonte de poder com
pretensões de regular o território juntamente com o Estado territorial.
Para aprofundar as reflexões daí suscitadas e desenvolver a
problemática central da presente tese, será preciso analisar a origem
histórica e o sentido atual do que sejam soberania e hegemonia, elementos
fundamentais na constituição dos Estados territoriais. Para tanto,
trataremos, nos capítulos 3, 4 e 5, do processo de desenvolvimento histórico
dos sistemas jurídicos ocidentais em sua íntima relação com a estruturação
das formações socioespaciais.