Vinculo

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VÍNCULO MÃE-FILHO: REFLEXÕES HISTÓRICAS E CONCEITUAIS À LUZ DA

PSICANÁLISE E DA TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES

MOTHER-CHILD RELATIONSHIP: CONCEPTUAL AND HISTORICAL


REFLECTIONS IN THE VIEW OF PSYCHOANALYSIS AND PSYCHIC
TRANSMISSION BETWEEN GENERATIONS

Denise Machado Duran Gutierrez1, Ewerton Helder Bentes de Castro2, Karine Diniz da Silva Pontes3

RESUMO
Desenvolvemos aqui um estudo teórico sobre maternidade centrado no vínculo mãe-filho.
Através do exame conceitual sobre a maternidade a contextualizamos como objeto sócio-
histórico que se modifica no tempo-espaço da cultura. Desse modo podemos falar em
“maternidades” e não em uma única forma de vivenciá-la e apreender sua complexidade
enquanto fenômeno psicossocial. Ao mesmo tempo conduzimos nosso olhar para as relações
afetivas e vinculares que se estabelecem na família reconhecendo as contribuições da
psicanálise da transmissão psíquica enquanto forma de elucidar certos processos que
identificamos na família contemporânea. A formação de vínculos muitas vezes condiciona a
saúde futura dos sujeitos e aparece como elemento central em seu desenvolvimento psíquico.
Para o estabelecimento dos vínculos afetivos contribuem elementos transmitidos pelas
gerações anteriores que funcionam como precipitados e cristalizações, configurando
microuniversos relacionais dentro dos quais as interações acontecem. Destacamos assim que
os princípios que compõem a análise da transmissão psíquica, como a importância das
relações intersubjetivas, os mecanismos de defesa que sustentam a transmissão de conteúdos
não elaborados, a função da transmissão, e as formas de apropriação são assim primordiais
para a compreensão mais aprofundada do processo de formação do vínculo mãe-filho e
merecem atenção nos estudos na área.
PALAVRAS-CHAVE: Maternidade; vínculo mãe-filho; Transmissão psíquica.

ABSTRACT
We develop here a theoretical study on maternity centered in the bond mother- child. Through
the conceptual examination on the maternity we contextualize it as social historical object that
modifies in the time-space of the culture. In this manner we can speak about “maternities” and
not in an only form to live it and to apprehend its complexity while psychosocial
phenomenon. At the same time we look to affective relations and bonds established in the
family recognizing the contributions of the psychoanalysis of the psychic transmission as
forms to elucidate certain processes that we identify in the contemporary family. The
formation of bonds many times conditions the future health of the individuals and appears to
be a central element in its psychic development. For the establishment of the affective bonds
contribute elements transmitted for the previous generations that function as precipitated and
crystallizations, configuring micron reflationary universes in which the interactions happen.
We point out the principles that compose the analysis of the psychic transmission, as the
importance of the inter subjective relations, the defense mechanisms that support the
transmission of contents not elaborated, the function of the transmission, and the forms of
appropriation are primordial for the deep understanding of the process of formation of the
bond mother-child that deserve attention in the studies in the area.
1
Psicóloga, Doutora em Saúde da Mulher e da Criança pelo Instituto Fernandes Figueira - FIO CRUZ, R.J.
Atualmente é professora efetiva da Universidade Federal do Amazonas.
2
Psicólogo, Doutor em Ciências. Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
3
Assistente Social e Psicóloga, mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

Revista do Nufen - Ano 03, v. 01, n.02, agosto-dezembro, 2011. 3


KEYWORDS: Maternity; bond mother-son; Psychic transmission.
RESUMEN
Desarrollamos aquí un estudio teórico de la maternidad centrada en el enlace madre-hijo. A
través de la exanimación conceptual en la maternidad nosotros la contextualizamos como
objeto socio-histórico que si se modifica en el tiempo-espacio de la cultura. De este modo
podemos hablar en “maternidades” y no en una única forma de vivir la y aprehender su
complejidad mientras fenómeno psicosocial. Al mismo tiempo conducimos nuestra mirada a
las relaciones afectivas y al lazo que si establecen en la familia que reconoce las
contribuciones del psicoanálisis de la transmisión psíquica como formas para aclarar ciertos
procesos que identifiquemos en el contemporáneo de la familia. La formación de enlaces
muchas veces condiciona la salud futura de los individuos y aparece como elemento central
en su desarrollo psíquico. Para el establecimiento de los enlaces afectivos contribuyen los
elementos transmitidos por las generaciones anteriores que funcionan como precipitados y
cristalizaciones, configurando los micro universos de los cuales las interacciones suceden. Los
principios que componen el análisis de la transmisión psíquica, como la importancia de las
relaciones intersubjetivas, los mecanismos de defensa que apoyan la transmisión del
contenido no elaborado, la función de la transmisión, y las formas de su apropiación son así
primordiales para la comprensión profundizada del proceso de la formación del enlace madre-
hijo y merece atención en los estudios en el área.
PALABRAS-CLAVE: Maternidad; madre-hijo en enlace; Transmisión psíquica.

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Vínculo mãe-filho: reflexões históricas e conceituais à luz da Psicanálise________________________________

INTRODUÇÃO

Abordar o tema da maternidade e do vínculo mãe-filho é relevante para a

ampliação dos conhecimentos dentro do campo da Psicologia, e, em especial, da Psicologia

do Desenvolvimento. Através da maternidade, as gerações se produzem e se reproduzem, e,

de acordo com o contexto sócio histórico cultural, haverá variações na forma em que pais e

filhos se relacionam, gerando diferentes modalidades na formação de vínculos futuros.

Mesmo com o advento dos métodos anticoncepcionais, muitas mulheres optam

por se tornarem mães, pois para algumas a maternidade representa ainda uma possibilidade, e

das mais valiosas, de completarem-se como pessoas.

Transformações históricas mudaram o papel da mulher na sociedade, bem como a

forma de relacionamento pais-filhos. Apesar da maior demonstração de afeto, entretanto,

muitas mães e pais ainda vivenciam dificuldades no desempenho de seus papéis,

especialmente no que se refere à conciliação entre sua função de autoridade e sua função de

provedores afetivos. O presente artigo pretende focar a relação mãe-filho, realizando uma

reflexão sobre os fatores que influenciam a formação do vínculo afetivo entre ambos,

considerando as mudanças históricas a respeito do papel materno, os períodos críticos para a

formação do vínculo, desde a gravidez até os primeiros dias de vida da criança, bem como

uma reflexão sobre a transmissão psíquica entre gerações, a fim de melhor compreender a

influência da história de vida materna na estruturação do vínculo com seu filho.

MATERNIDADE – UM POUCO DE HISTÓRIA

Realizar um levantamento histórico sobre a maternidade nos permite perceber que

houve uma mudança na relevância dada à mãe e nas formas de exercício da função materna,

que estão ligadas a transformações sócio histórico culturais que afetaram a família, além de

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contribuir para uma maior compreensão sobre as vicissitudes atuais que a cercam e os

processos afetivos que envolvem o relacionamento entre seus membros.

Badinter (1985) e Ariès (1981) relatam que, em períodos como a Antiguidade e

Idade Média, predominava o poder paterno dentro da família, em detrimento do materno,

configurando um sistema familiar apoiado ideologicamente pela teologia cristã e pelo

absolutismo político. Não existia ainda o que Ariès (1981) denomina de “sentimento de

infância”, sendo a família uma realidade moral e social mais do que sentimental, cujas

relações baseavam-se em fatores como idade, virtuosidade, dote, classe social, honra da

linhagem, preservação do nome e integridade do patrimônio. A família cumpria, assim, a

função de transmissão da vida, dos bens, dos costumes e do nome, não havendo preocupação

com os laços afetivos e nem com a educação formal das crianças.

Estes valores faziam com que a relação pais-filhos fosse marcada pela violência

física, pelo predomínio da autoridade paterna e, especificamente a relação mãe-filho, marcada

pelo distanciamento afetivo, pela recusa em amamentar, o que deu origem à prática comum

nos vários países europeus e no Brasil, de entregar as crianças para serem amamentadas por

amas-de-leite, mulheres pobres e doentes, que o faziam em busca de retorno financeiro. Além

disso, era comum que bebês fossem abandonados, ainda recém-nascidos: os “expostos”. A

infância tinha curta duração, seu término ocorrendo por volta dos 5 anos de idade (SILVA,

1998).

Neste contexto de abandono, até o século XVIII, a taxa de mortalidade infantil era

elevada, de modo que as mães desenvolviam uma frieza emocional a fim de não se apegarem

a seus bebês e sofrerem, caso o perdessem. Badinter aponta a indiferença materna como uma

defesa, que “serviria inconscientemente de couraça sentimental contra os grandes riscos de

ver desaparecer o objeto de sua ternura” (1985, p.85). Contudo, a despeito deste aparente

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distanciamento afetivo e das dificuldades enfrentadas pelas mães, o amor materno sempre

existiu, embora não se pudesse dizer que era um amor universal.

Foi durante os séculos XVII e XVIII que emergiu o sentimento de família, com a

privatização da vida familiar e o consequente aumento da intimidade e da demonstração de

afetos, passando a criança a ser valorizada, à medida em que “se tornava uma fonte de

distração e relaxamento para o adulto, um sentimento que poderíamos chamar de

‘paparicação’ ” (ARIÈS, 1981, p. 100).

Ao mesmo tempo, com os progressos da higiene e a introdução do leite animal, a

distância materna em relação aos filhos diminuiu, tendo as mães assumido mais efetivamente

os cuidados com os filhos, a partir de então considerados frágeis. Por meio dos preceitos de

Rousseau e da Filosofia das Luzes, bem como dos conselhos de moralistas, administradores e

médicos, as mães foram estimuladas a amamentar seus filhos e a se preocupar com sua

higiene e saúde física. Na verdade, a criança passou a ter um valor mercantil, sendo

considerada uma riqueza econômica em potencial e investimento útil para a transmissão do

patrimônio, por isso o Estado passa a se preocupar com sua perda (ARIÈS, 1981).

A partir do século XIX, as mudanças ocorridas na família relacionam-se com a

perda do sentido da tradição (SARTI, 2003). Paralelamente, emerge o amor romântico,

descrito por Giddens (1993) como um sentimento de perspectiva individual, que vincula amor

com liberdade. Baseada na reciprocidade de sentimentos, a nova família valoriza a divisão do

trabalho entre o casal e o filho passa a ser considerado um sujeito, sendo tanto o pai como a

mãe veículos de transmissão psíquica (ROUDINESCO, 2003).

A mulher, enfim, passa a ser vista como um indivíduo e não meramente como

“mulher-natureza”, à medida que ingressa no mercado de trabalho e adquire um domínio

maior da possibilidade de reprodução, com a criação dos métodos anticoncepcionais. Busca o

prazer próprio e preocupa-se mais com sua imagem, sem correr o risco de ser condenada

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moralmente (PEIXOTO et all, 2000). No que se refere ao papel materno, uma consequência

desta mudança, como atesta Chodorow (1990), foi o consequente aumento da função materna

psicológica da mulher em detrimento de seu papel biológico, de procriação.

Apesar da emancipação feminina, Peixoto et all (2000) e Giddens (1993)

destacam a desigualdade de expectativas que incidem, ainda hoje, sobre o homem e a mulher,

pois ainda se espera que os homens sejam “indivíduos sem família” e das mulheres se exige

que a maternidade se sobreponha à profissão. A idealização do papel materno e a associação

da maternidade com a feminilidade, parte integrante da moderna construção da maternidade,

reforçou a diferença entre a imagem do homem e da mulher, criando um modelo de “dois

sexos” identificados com de um lado as ‘atividades’, e, de outro, com os ‘sentimentos’.

Roudinesco (2003), porém, afirma que a mãe moderna assume uma função mais

masculinizante e o pai uma função maternalizante, à medida que passa a dedicar-se mais ao

cuidado dos filhos. Para a autora, o modelo de família conjugal não é mais o único possível,

pois os tratamentos contra a infertilidade - fecundação in vitro, inseminação artificial e os

bebês de proveta - fizeram com que a presença do pai e sua soberania simbólica na vida da

criança fossem redimensionadas. Surgiram, ainda, as mães de aluguel e as experiências de

clonagem que impactaram a vida familiar, gerando uma multiplicidade de conflitos e

discussões bioéticas.

Apesar destes conflitos, também associados à maior independência feminina e o

crescimento do número de divórcios; os laços de parentesco são mais humanizados e a família

contemporânea se pretendeu “frágil, neurótica, consciente de sua desordem,” recebendo novas

conceituações, como famílias “co-parentais”, “recompostas”, “monoparentais”, “biparentais”,

“multiparentais” ou “pluriparentais” (ROUDINESCO, 2003, p.153).

Ainda a respeito da fragilidade da família contemporânea, Belhadj (2000) e

Peixoto et all (2000) ressaltam que as mudanças na vida familiar, levaram a uma

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reinterpretação dos modelos conjugais e familiares. A família contemporânea é, ao mesmo

tempo, relacional e individualista, forte e frágil, à medida que, apesar da dissolução dos

vínculos conjugais, a vida privada, representada pelo casamento, ainda é desejada por muitas

pessoas.

Sobre o futuro da família, apesar de todas estas mudanças ocorridas em sua

configuração e nos princípios nos quais se baseiam os laços afetivos, Roudinesco (2003)

defende que a família contemporânea, horizontal e em “redes” vem garantindo a reprodução

das gerações e que, embora feita de “feridas íntimas, violências silenciosas e lembranças

recalcadas”, ainda representa um valor e um local de segurança ao qual as pessoas não

desejam renunciar: “Ela é amada, sonhada e desejada por homens, mulheres e crianças de

todas as idades, de todas as orientações sexuais e de todas as condições” (p.198). Assim,

apesar de cada vez mais dessacralizada, a família permanece sendo a instituição humana mais

sólida da sociedade.

Através do exame conceitual sobre a maternidade, que pudemos apresentar acima,

a contextualizamos como objeto sócio-histórico que se modifica no tempo-espaço da cultura.

Desse modo podemos falar em “maternidades” e não em uma única forma de vivenciá-la e

apreender sua complexidade enquanto fenômeno psicossocial que dialoga com a sociedade

como um todo e ao mesmo tempo se constitui num espaço para o desenvolvimento de

relações afetivas.

VÍNCULO AFETIVO: CONCEITOS E FATORES CRÍTICOS EM SUA FORMAÇÃO

O termo vínculo tem sua origem no latim “vinculum”, que significa uma união

com características duradouras. De igual maneira, provém da mesma raiz que a palavra

“vinco”, que se refere a alguma forma de ligação entre partes que se unem e que são

inseparáveis, embora permaneçam delimitadas entre si. Vínculo também significa um estado

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mental que pode ser expresso através de diversos modelos e abordagens (ZIMERMAN,

2010).

John Bowlby (2006 a) desenvolveu uma teoria designada como teoria da ligação,

ou apego. Para o autor, o comportamento de ligação é concebido como qualquer forma de

comportamento que resulta em que uma pessoa alcance ou mantenha a proximidade com

algum outro indivíduo diferenciado e preferido, considerado mais forte ou mais sábio. Assim,

a partir de um contexto evolutivo, a principal função do vínculo seria a de garantir a

sobrevivência do indivíduo contra agentes predadores externos.

Pichon-Rivière (1998), para definir vínculo, nos remete à análise das relações de

objeto. Para o autor, “relação de objeto é a estrutura interna do vínculo. Um vínculo é, então,

um tipo particular de relação de objeto” (p.17). Essa relação envolve uma conduta mais ou

menos fixa com esse objeto, que tende a se repetir automaticamente. Há dois campos

psicológicos no vínculo, um interno e outro externo, sendo possível, portanto, estabelecer uma

relação com um objeto interno e também com um objeto externo.

Bion (apud ZIMERMAN, 2010), afirma que um vínculo possui um aspecto

relacional, com recíprocas influências entre as pessoas, que origina diferentes configurações

vinculares, baseadas no amor, ódio, conhecimento e reconhecimento, e um aspecto

emocional, que dá significado ao relacionamento. Nesta concepção, o vínculo não se dá

apenas no mundo exterior do sujeito, mas em seu mundo interior, por isso o vínculo primitivo

é capaz de continuar a interagir no presente.

Abordando o vínculo primitivo, Zimerman afirma que o primeiro vínculo consiste

“na inter-relação do bebê recém-nascido com a sua mãe ou com alguma figura substituta

dela” (2010, p.21). A formação deste primeiro vínculo é facilitada pela disposição inata do

bebê para a vinculação, e não se inicia apenas com o nascimento deste, mas antes, já na

história da gravidez, que por sua vez, envolve a história de vida do casal.

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Autores como Nóbrega (2005), Bowlby (2006 b), Winnicott (2001) e Szejer e

Stewart (1997) ressaltam que conceber um filho é um projeto que nasce do encontro de um

homem e de uma mulher, podendo ser consciente ou não, e sofrer diferentes configurações,

que já farão parte da história da criança. Assim, as motivações da gravidez são, por vezes,

inconscientes: o desejo de engravidar pode ser motivado pela necessidade da mãe de ter um

objeto de amor que nunca teve, uma tentativa de usar a vergonha de ter um filho ilegítimo

como uma arma contra pais dominadores, ou ainda pode ser que o filho represente uma arma

contra si mesma, por um desejo de autopunição enraizado e profundo, resultado de um

acentuado sentimento de culpa. Desse modo, Bowlby afirma que muitas mães “se tornam

mães solteiras por uma necessidade neurótica e não simplesmente por acidente” (2006,

p.107).

Bowlby (2006a) e Winnicott (1998) destacam que as experiências infantis são

fundamentais no processo de configuração e estabelecimento de vínculos afetivos futuros. A

vivência da maternidade terá como pano de fundo todos os outros vínculos da vida da mãe,

essencialmente o vínculo primitivo, com seus próprios pais. É neste sentido que a escolha do

parceiro recebe influência dos modelos parentais, ocorrendo muitas vezes a “projeção

fantasmática” do outro, mecanismo que faz com que se idealize o parceiro de acordo com os

próprios desejos.

Ao se tornarem pais, surge uma nova relação entre o casal, influenciada pela

história de seu relacionamento. Cada gravidez se insere num determinado momento da vida

do casal, é diferente e tem o seu próprio significado, evocando para o pai e para a mãe, sua

própria história e os remetendo a ela. Para Szejer e Stewart (1997) esse fato é, muitas vezes

inconsciente, entretanto, “nem por isso menos real, porque o lugar que cada um ocupou e

ocupa ainda em sua linhagem deixa marcas, faz parte de cada um e é em função desse lugar

que cada um deles se estruturou” ( p.67).

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Da mesma forma, a gravidez é estruturada tanto sobre elementos da realidade

quanto das fantasias maternas. Durante a gestação, podem surgir sentimentos ambivalentes

em relação ao feto, de rejeição e ansiedade. Contudo, se houver aceitação e predomínio de

sentimentos positivos, as chances de formação de um vínculo positivo com o bebê são

maiores (NÓBREGA, 2005).

Processos regressivos podem ocorrer com a grávida, fazendo com que ela deseje

“voltar atrás, voltar a ser a filhinha de sua própria mãe” (SZEJER e STEWART, 1997, p.87).

Winnicott afirma que a mãe “já foi um bebê, e traz com ela as lembranças de tê-lo sido; tem,

igualmente, recordações de que alguém cuidou dela, e estas lembranças tanto podem ajudá-la

quanto atrapalhá-la em sua própria experiência como mãe” (1988, p.4).

Os sintomas típicos da gravidez, como enjoos, náuseas, hipersonia durante o dia e

insônia à noite, e até mesmo os choros, se assemelham às primeiras funções do recém-

nascido, reforçando a hipótese de que a mãe, através de um movimento de regressão, entra em

contato com sua própria infância.

O momento do nascimento é de fundamental importância para o vínculo mãe-

filho, podendo intensificá-lo. Para Szejer e Stewart (1997), a mulher que dá à luz vive um rito

de passagem que lhe permite dar à luz a si mesma. Tettamanti (2008) afirma que a

maternidade é uma infinita sucessão de partos, onde a experiência de parir se repete em cada

etapa do desenvolvimento da criança.

Além de tomar consciência da separação de seu filho, o nascimento é o momento

em que surgirá a criança, antes um filho em potencial, que passa a ter um estatuto de sujeito

de direito e o status de pessoa. Winnicott (1988) ressalta que cada bebê é desde o começo

uma pessoa, necessitando ser conhecida por alguém, e que ninguém pode conhecer melhor um

bebê que a própria mãe. O bebê também aprende logo a interpretar a mãe, por isso é

considerado ativo no processo de vinculação, à medida que suas capacidades

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comportamentais de ver, ouvir e se mover, provocam respostas na mãe, iniciando interações

recíprocas (NÓBREGA, 2005).

A regressão materna, quando propicia identificação com o bebê, é extremamente

útil para que os primeiros cuidados efetuados à criança sejam saudáveis. Para Chodorow

(1990) a aptidão para cuidar de uma criança decorre do fato da mãe haver vivenciado este

tipo de relacionamento quando criança, e ser capaz de regredir, embora permanecendo adulta,

ao estado psicológico daquela experiência. Assim, as pessoas que vivenciaram o amor

primário têm algum aspecto do eu que deseja recriar estas experiências e esta capacidade não

é exclusiva das mulheres, mas pode ser exercida por homens e mães adotivas, por exemplo.

Este processo de identificação com o bebê foi muito bem descrito por Winnicott

(1983) que o denominou de “preocupação materna primária”, descrita como uma

sensibilidade que faz a mãe perceber e suprir as necessidades de seu filho, lançando as bases

de sua saúde mental, processo este essencial, uma vez que o bebê experimenta angústias

muito fortes nos estágios iniciais do desenvolvimento emocional, antes que seus sentidos

estejam organizados e seu ego desenvolvido. É em virtude desta dependência do bebê que

Bowlby afirma que “a mãe, nos primeiros anos de vida da criança, funciona como sua

personalidade e consciência” (2006 b, p.55). No mesmo sentido, Bion (apud ZIMERMAN,

2010) usou a expressão “relação continente-conteúdo” para expressar a capacidade da mãe de

acolher e processar as angústias, anseios, medos, necessidades e desejos de seu filho.

Winnicott (1988) usa o termo “mãe devotada comum” para designar aquela mãe

que, naturalmente, se adapta de forma sensível e ativa às necessidades do bebê, que no início

são absolutas. O rumo do desenvolvimento, porém, deve percorrer um estágio de dependência

absoluta, rumando para a dependência relativa e culminando na independência, que nunca

será absoluta. Em estado saudável, o indivíduo nunca está isolado, mas preserva uma

interdependência com o ambiente. A criança, no estágio de dependência absoluta, acredita que

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o mundo é criação sua, mas ao atingir outros estágios, deve viver um processo de

“desilusionamento”, facilitado pela mãe, à medida que esta permite um contato cada vez

maior do bebê com a realidade. Porém, esta desilusão deve ocorrer apenas depois da mãe ter

proporcionado ao bebê uma crença nas coisas e nas pessoas, um sentimento de confiança

básica, característico do desenvolvimento saudável.

A relação mãe-filho pode, entretanto, ser patológica, quando, por exemplo, gera

problemas de fusão. Se a mãe, ou a pessoa que desempenha este papel, tiver sido uma criança

carente em sua história inicial, terá dificuldade em cuidar sozinha de seu bebê, da mesma

maneira que ela ainda precisa ser cuidada, em virtude de um sentimento de desamparo,

caracterizando o que ressalta Winnicott (1988) como o confronto de desamparos.

Outra situação possivelmente indicadora de fusão patológica é a amamentação

prolongada. Quando prolongada, pode indicar que a mãe permanece num estado de fusão com

a criança, impossibilitada de reconhecer a alteridade de seu filho, o que terá consequências

sobre o seu desenvolvimento (SZEJER e STEWART, 1997).

Num extremo, a perda de interesse pela criança prejudica sua saúde emocional,

aumentando o risco de doenças, desnutrição ou retardo no desenvolvimento. As dificuldades

maternas podem ser decorrentes da existência de transtornos psíquicos como a ansiedade e a

depressão pós-parto, gerando para o bebê, na visão de Winnicott (1988), uma experiência de

desintegração. O bebê foge destas sensações de desintegração que a experiência de

distanciamento materno suscita, se recolhendo em si mesmo ou desenvolvendo um “falso

self”, que surge em virtude da necessidade de agradar a mãe. Ao invés de viver a experiência

da criatividade e da espontaneidade, entrando em contato com sua essência, a criança

desenvolve a capacidade de reconhecer qual o desejo da mãe em relação a ela e, assim, se

submete aos seus desejos.

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É neste sentido que Zimerman (2010) acrescenta a noção de “vínculo do

reconhecimento”, defendendo que o ser humano necessita reconhecer a si próprio e ao outro

como alguém diferente dele, para que o processo de individualização seja bem sucedido.

Constata-se, enfim, que o estado psíquico da mãe é muito importante, pois

determina a qualidade dos cuidados que ela oferece ao seu filho. Pela possibilidade da

existência de transtornos maternos e reconhecendo “o quão vulnerável é a mãe”, Winnicott

(1988) recomenda que figuras de apoio para a mãe se façam presentes, como o parceiro e

outros membros de sua família, para que ela se prepare e exerça melhor seu papel, buscando

ajuda profissional nos casos dos transtornos psíquicos.

Em síntese, a partir desta reflexão sobre o vínculo mãe-filho, constata-se que este,

por ser o mais primitivo, lança as bases para a saúde mental do indivíduo, e que existem

momentos críticos em sua formação, que vão desde o relacionamento do casal que gerou a

criança até os primeiros cuidados com a mesma. As vivências psicológicas do pai e, em

especial, da mãe, marcadas por sua própria história de vida, interferem na formação do

vínculo afetivo com o filho, uma vez que determinam a qualidade dos cuidados oferecidos à

criança e o envolvimento emocional com a mesma.

TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES

O tema da transmissão psíquica está presente desde a Antiguidade, tendo sido

abordado por Freud e, nos últimos anos ganhou impulso através da Psicanálise. Nela os

trabalhos têm buscado articular a realidade psíquica do sujeito à realidade do grupo no qual se

insere (GRANJON, 2000). A transmissão é um processo que ocorre ao longo de um tempo,

que nem sempre é linear, mas pode ser circular, intermitente, como ocorre nos sistemas

complexos, em que diferentes tempos coexistem ou se excluem.

O que se transmite ao longo do tempo são traços, que representam a memória de

um afeto, e que se mantêm vivos, embora inconscientes. Granjon (2000) afirma que não são

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os acontecimentos mais dolorosos os únicos que, uma vez transmitidos, serão traumáticos,

mas qualquer acontecimento cujo afeto não seja expresso, nem representado. Ainda sobre o

que é transmitido, Inglez-Mazzarella (2006) afirma que “toda a vida psíquica encontra-se no

impulso para transmitir algo: afetos, mecanismos de defesa, sintomas, traumas...” (p.80).

Bion (apud KAËS, 2001) definiu dois tipos de objetos que podem ser

transmitidos: os objetos psíquicos inconscientes transformáveis, que formam a base e a

matéria psíquica da história familiar que é transmitida ao longo das gerações, e os objetos

psíquicos não-transformáveis, que permanecem inertes, não permitindo que haja

transformação. Kaës (2001) acrescenta que a transmissão pode se organizar a partir do que

não adveio, do que é ausência de inscrição e representação. Esta ausência de representação se

constitui na dimensão negativa da transmissão, que ocorre quando as vivências do sujeito não

são registradas em palavras. O aspecto patológico da transmissão acontece, assim, quando não

há a possibilidade de simbolização das situações traumáticas vividas.

Apesar de possuir um aspecto patológico, a transmissão pode ser positiva, pois

uma geração não pode existir sem aquela que a precede e deve criar outra para perpetuar a

vida para além de seu desaparecimento. Sendo assim “há, antes de tudo, a vida a ser

transmitida” (GRANJON, 2000, p.25). Na visão freudiana existe uma espécie de impulso

para transmitir, em virtude da necessidade narcísica de conservação e de continuidade da vida

psíquica, caso contrário, as gerações estariam num processo contínuo de recomeçar a

aprendizagem da vida (KAES, 2001).

A psicanálise apresenta uma concepção de sujeito como “sujeito do inconsciente”,

da herança, sujeito de um grupo. Assim, os autores psicanalíticos abordam o tema da

transmissão psíquica a partir do inconsciente e do intersubjetivo. O grupo precede o sujeito, o

que significa que o ser humano, ao nascer, é inevitavelmente nele incluído e passa a pertencer

a um conjunto intersubjetivo que segundo Kaës (2001, p.13) nos mantém como “servidores e

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herdeiros de seus sonhos de desejos insatisfeitos, de seus recalcamentos e de suas renúncias,

na malha de seus discursos, de suas fantasias e de suas histórias”.

O grupo familiar, as instituições e as situações de massa, sendo os grupos aos

quais o sujeito está ligado, vão designar lugares, apresentar objetos, ritos, ideologias, indicar

limites e impor interditos. O sujeito se torna membro deste grupo e se constitui como tal

através da linguagem, se tornando sujeito “falante” e “falado”. Ao herdar o que é transmitido

pelo grupo, que, nas palavras de Kaës (2001), são “predisposições significantes”, o indivíduo

tem a tarefa de construí-los, organizá-los e transformá-los, sendo este processo denominado

de “aquisição apropriativa” da herança. Para Granjon (2000) esta apropriação nunca é

totalmente passiva e sempre há um trabalho de reconstrução na passagem de uma geração a

outra.

Kaës (2001) apresenta a noção de “trabalho psíquico da transmissão”, entendido

como o processo e o resultado de ligações psíquicas entre aparelhos psíquicos e como se pode

operar transformações através dessas ligações. Envolve o que é recebido e transformado no

processo de apropriação do sujeito da herança, à medida que este assume o pensar sobre o que

herda, através de uma “reinscrição interpretativa” (p.69).

Entretanto, quando não há um processo de transformação do que é transmitido,

permanecendo os conteúdos da transmissão em estado bruto, a tarefa apropriativa não é

cumprida, o que origina a modalidade negativa da transmissão, a “transmissão transpsíquica”,

aquela na qual não há uma retomada transformadora da transmissão e que se dá “através” dos

sujeitos. Inglez-Mazzarella (2006) acrescenta que a transmissão transpsíquica ocorre através

das gerações no sentido descendente, sem contato direto, ou seja, as gerações passadas

transmitem às gerações presentes um material não transformado e não simbolizado,

constituído de segredos, não - ditos e interditos.

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Kaës (2001) esclarece que a patologia da transmissão, embora afete um sujeito em

sua singularidade, não pode por definição ser um atributo seu, mas uma formação que é

mantida e transmitida no processo psíquico do conjunto intersubjetivo. É o “pacto

denegativo”, processo pelo qual aquilo que é recalcado, recusado, rejeitado, é imposto nas

relações subjetivas em grupos como a família, o casal e até nas instituições. Sendo um acordo

inconsciente, o pacto denegativo atende ao interesse de todos os membros, que se organizam a

partir de identificações comuns, de crenças semelhantes. As resistências que mantêm o pacto

denegativo são poderosas e uma de suas funções é preservar o vínculo entre aqueles que a

mantêm, sob pena do sujeito se sentir excluído. Assim, ao mesmo tempo em que possui uma

função defensiva, o pacto denegativo organiza a convivência entre os membros, ainda que

negativamente, criando, "no conjunto do não-significável, do não-transformável, zonas de

silêncio, bolsões de intoxicação, espaços-lixeiras ou linhas de fuga que mantêm o sujeito

estranho à sua própria história” (KAËS, 2000, p.46).

Descrevendo o processo de alienação presente na transmissão transpsíquica,

Granjon (2000) afirma que quando não há um espaço de separação, uma devida distância

entre o transmissor e aquele a quem se transmite, o sujeito é colocado num estado de

alienação, passando a ser portador de uma história que não lhe pertence e a qual não tem

acesso, fazendo com que renuncie à sua própria subjetividade. Nas palavras da autora, quando

um acontecimento com potencialidade traumática não é adequadamente elaborado, se

converte em “passados sob silêncio”, mantidos em segredo, produzindo “restos insensatos”,

“enigmas”, “impensados”, “assombrações”, “criptas”, uma vez que a transmissão da vida

psíquica é passível de “bloqueios”, de “panes” e de retenções.

Baranes (2001) também se refere ao processo de alienação quando afirma que “o

transgeracional é (...) a repetição até a caricatura que liga uma geração à outra numa

identificação alienante” (p.199). Para o autor, o transgeracional só pode ser pensado como

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estrutural na psique, um dado fundamental em sua constituição, tanto de forma positiva,

quando permite o que denomina de operação de transformação quanto de forma negativa,

quando origina uma transmissão alienante.

Correa (2000) aponta as consequências dos silêncios e segredos, uma vez que a

“falta de inscrição do sujeito na sucessão das gerações e no tecido grupal comunitário, limita

ou impede o acesso aos processos de simbolização que organizam uma cadeia de significantes

(p.65)”. Contudo, mesmo não inscritos nem representados, estes conteúdos psíquicos

supostamente silenciados continuam ativos na vida do indivíduo, presentes em seu

inconsciente, processo descrito por Winnicott (1963) como um “vivido não vivido e sempre a

reviver.” Os sintomas patológicos são reveladores destes conteúdos reprimidos e representam

uma tentativa do indivíduo simbolizá-los.

Quando, porém, ao invés de predominarem os silêncios e o não simbolizado,

houver elaboração e transformação dos conteúdos transmitidos, efetua-se a transmissão

intergeracional ou intersubjetiva, que se dá “entre” sujeitos, pois há a experiência da

separação entre os mesmos (KAËS, 2001). Para Inglez-Mazzarella (2006) há modificação do

que foi transmitido intergeracionalmente, pois transformações e ligações podem ser realizadas

pela descendência, haja vista que uma geração fica situada em relação às anteriores, “e os

integrantes dela, inscritos numa genealogia, podem fazer da herança algo próprio (p.82)”.

Correa (2000) usa a expressão metabolização do material psíquico para se referir à

transmissão intergeracional, afirmando que este material metabolizado assim será transmitido

à geração seguinte.

Tendo em vista que o grupo familiar é considerado um grupo primário, no qual

ocorrem as primeiras e principais transmissões psíquicas, torna-se importante pontuar a

relação pais x filhos, a forma como se dão as transmissões pelos pais e a apropriação por parte

dos filhos, analisando esta relação desde a infância.

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Para Kaës (2001), o espaço originário da intersubjetividade é o grupo familiar, na

medida em que ele precede o sujeito e permite o estabelecimento de relações de diferença e de

complementaridade. Para Peixoto et all (2000), a criança se individualiza no seio da família,

espaço no qual, através do amor, se constrói a identidade pessoal. A criança precisa do olhar

do outro para tornar-se ela mesma, ao mesmo tempo em que os pais tentam consolidar o seu

“eu” ao educar os filhos.

Discutindo a transmissão alienante através da relação pais-filhos, Faimberg (2001)

afirma que esta ocorre quando os pais ocupam o lugar da criança, que fica sujeita ao que eles

lhe dizem ou calam. Desta forma, os pais transmitirão à criança conteúdos definidos a partir

da estrutura de seu psiquismo e de seu inconsciente. Surge, então, a questão de como a criança

recebe estes conteúdos e que fatores a fazem incorporá-los ou reinterpretá-los.

Analisando a forma como a criança se apropria do que lhe é transmitido e

ressaltando o papel da figura materna, Chodorow (1990) defende que todos os aspectos da

estrutura psíquica são sociais, adquiridos e transformados internamente através de processos

inconscientes, uma vez que, os conteúdos que serão internalizados dependerão dos afetos

predominantes nos primeiros relacionamentos objetais da criança.

A transmissão de sentimentos entre mãe e filho inicia-se durante o período fetal,

durante o qual a criança já absorve as mensagens que lhe são transmitidas, e se intensifica

após o nascimento, através dos cuidados a ela dispensados. Quando estas mensagens são

transmitidas sem significação, se tornam enigmáticas e incompreensíveis para a criança, que

delas se torna depositária e forçosamente herdeira, acarreta prejuízo para sua individualização,

e tem seu processo de singularização comprometido (INGLEZ-MAZZARELLA, 2006).

Além disso, se os conteúdos transmitidos forem muito negativos e invasivos, a

criança, por não contar com um psiquismo maduro o suficiente para compreendê-los, corre o

risco de se identificar ao negativo, àquilo que não pôde ser elaborado por seus pais. Assim,

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para “libertar” os pais, a criança se constitui num “continente de negativo”. Para isso, ela

“toma o lugar e não a carga daquilo que deveria ser mantido escondido, daquilo que não

deveria ser dito nem pensado [...] A criança não é mais herdeira, mas torna-se o negativo de

seu conteúdo” (GRANJON, 2000, p.30).

Refletindo sobre o processo de transmissão de valores no mundo contemporâneo,

Rocha Coutinho (2006) afirma que diferentemente do passado, em que um modelo identitário

era fornecido a cada um de seus membros e em que valores e padrões de comportamento mais

ou menos estáveis eram passados de geração a geração, presencia-se agora um momento de

indefinição e ausência de modelos fixos e imutáveis. Estes valores e padrões de

comportamento tradicionais parecem coexistir, muitas vezes em conflito, com novos valores e

padrões de comportamento no interior das famílias. Isto porque, apesar da família

desempenhar importante papel na transmissão e perpetuação de valores e comportamentos,

estes não podem ser dissociados da realidade social mais ampla na qual a família está

inserida.

De acordo com Esteves e Borges (2007), o conceito de transgeracionalidade vem

sendo cada vez mais usado no entendimento da dinâmica das relações entre mãe-bebê. Os

autores definem o conceito como uma transferência - normal ou patológica - realizada sobre o

bebê, impondo-lhe, dessa forma, a partir de outra(s) geração(s), a marca, para melhor ou para

pior, de experiências psicológicas oriundas dos genitores.

A criança pode assim, se ver no papel de ter que preencher um vazio de alguém

que não pôde realizar seu luto, que não pôde diferenciá-la como um ser separado. Este alguém

que a obriga a ocupar este lugar pode ser a própria mãe, com seus desejos, que transmite algo

que a criança não pode simbolizar. O contrário ocorre quando, transformando a herança, o

sujeito pode herdar e receber a transmissão como uma criação. Os elementos da história do

sujeito, que ele recebe sem saber, são por ele reinventados, reencontrados e recriados.

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Enfim, o estudo das modalidades de transmissão psíquica reveste-se de

fundamental importância para a compreensão das relações patológicas entre pais e filhos, e

suas consequências, como dificuldades no desenvolvimento da identidade, passíveis de gerar

quadros patológicos na infância. A análise dos fatores que intervêm na transmissão dos afetos

é, também, fundamental para a compreensão das diferentes modalidades de vinculação mãe-

filho, uma vez que a mulher, ao se tornar mãe, já é portadora de uma história própria e suas

vivências infantis poderão ser reativadas no momento em que se torna mãe. Neste sentido, os

princípios que compõem a análise da transmissão psíquica, como a importância das relações

intersubjetivas, os mecanismos de defesa que sustentam a transmissão de conteúdos não

elaborados, a função da transmissão, e as formas de apropriação são assim primordiais para a

compreensão mais aprofundada do processo de formação do vínculo mãe-filho.

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