Equivocação Controlada Viveiros de Castro
Equivocação Controlada Viveiros de Castro
Equivocação Controlada Viveiros de Castro
Rodrigo Amaro
Universidade Estadual de Minas Gerais
1 Este ensaio foi apresentado como a conferência inaugural dos encontros da Society for the Anthropology of Lowland
South America (SALSA), ocorridos na Universidade Internacional da Florida, Miami, 17-18 de janeiro, 2004. Alguns
parágrafos foram canibalizados em Metafisicas Canibais.
2 Traduzido de VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo (2004), “Perspectival Anthropology and the Method of Controlled
Equivocation”, Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America: Vol. 2: Iss. 1, Art. 1. Available
at: https://digitalcommons.trinity.edu/tipiti/vol2/iss1/1.
Perspectival Anthropology
and the Method of Controlled Equivocation
Abstract: This article argues that doing anthropology means comparing anthropo-
logies. Comparison is not just our primary analytic tool, it is also our raw material
and our ultimate grounding, since what we compare are always and necessarily, in
one form or other, comparisons. If, as Marilyn Strathern suggests, culture consists
in the way people draw analogies between different domains of their worlds, then
every culture is a multidimensional process of comparison. Likewise, if anthropology
studies culture through culture, then, following Roy Wagner, whatever operations
characterize our investigations must also be general properties of culture. Intracul-
tural relations, or internal comparisons, and intercultural relations, or external com-
parisons, are in strict ontological continuity. But direct comparability does not ne-
cessarily signify immediate translatability, just as ontological continuity does not
imply epistemological transparency. How can we restore the analogies traced by,
say, indigenous Amazonian peoples within the terms of our own analogies? What
happens to our comparisons when we compare them with indigenous comparisons?
The perspective advocated here is that of perspectivism and controlled equivocation.
Keywords: Perspectivism; equivocation; translation.
La antropología perspectivista
ACENO, 5 (10): 247-264, agosto a dezembro de 2018. ISSN: 2358-5587
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O
americanismo tropical tem se provado uma das áreas mais dinâmicas e
criativas da antropologia contemporânea, exercendo uma influência cres-
cente na agenda conceitual mais ampla. Mas apesar deste florescimento,
e mesmo que o trabalho fundamental de Lévi-Strauss – dentro do qual o pensa-
mento ameríndio é dado privilégio de lugar – esteja tido em circulação por mais
de meio século, a originalidade radical da contribuição dos povos do continente
para a herança intelectual da humanidade ainda não foi totalmente absorvida
pela antropologia. Mais particularmente, algumas das implicações desta contri-
buição para a teoria antropológica em si ainda esperam para serem traçadas. É
isto que pretendo começar a fazer aqui, sugerindo mais alguns pensamentos so-
bre o perspectivismo ameríndio, um tema com o qual estive ocupado (ou talvez
obcecado) pelos últimos anos3.
Tradução
O título deste trabalho é uma alusão a um famoso artigo de Fred Eggan
(1954) intitulado Social Anthropology and the Method of Controlled Compari-
son, que compunha parte da caixa de ferramentas do conhecido Projeto Harvard-
Brasil Central, do qual eu sou um dos descendentes acadêmicos. A dupla dife-
rença entre os títulos registra a direção geral do meu argumento, que, verdade
preender o que constitui, tanto por extensão quanto por compreensão, o conceito
do social (ou do cultural) para as pessoas estudadas. Em outras palavras, a ques-
tão é como configurar as pessoas enquanto agente teórico ao invés de “sujeito”
passivo. Como argumentei em um trabalho recente (Viveiros de Castro
2002b:122), o problema que define a antropologia consiste menos em determinar
quais relações sociais constituem seu objeto, e muito mais em perguntar o que
seu objeto constitui como uma relação social – o que uma relação social é nos
termos do seu objeto, ou melhor ainda, nos termos que emergem da relação (uma
relação social, naturalmente) entre o “antropólogo” e o “nativo”.
Dito concisamente, fazer antropologia significa comparar antropologias,
nada mais – mas nada menos. A comparação não é apenas a nossa ferramenta
analítica primária. É também nossa matéria-prima e nossa fundamentação su-
prema, porque o que comparamos são sempre e necessariamente, de uma forma
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a isto que traduzir é sempre trair, como diz o ditado italiano. Porém, uma boa
tradução – e aqui estou parafraseando Walter Benjamin (ou melhor, Rudolf
Pannwitz via Benjamin)4 – é uma que trai a língua de destino, e não a língua de
origem. Uma boa tradução é uma que permite que os conceitos alienígenas defor-
mem e subvertam a caixa de ferramentas conceitual do tradutor para que o inten-
tio da língua original possa ser expresso dentro da língua nova.
Apresentarei um breve relato (uma tradução) da teoria de tradução presente
250 no perspectivismo ameríndio para averiguar se podemos ter sucesso em
Perspectivismo
251
5 De acordo, mitos amazônicos lidam principalmente com as causas e consequências das incorporações específicas a
espécies de diferentes sujeitos pré-cosmológicos, todos eles concebidos como originalmente semelhantes a “espíritos”,
seres puramente intensivos onde aspectos humanos e não-humanos são indiscernivelmente misturados.
mesma e seu mundo do mesmo modo que nós percebemos a nós mesmos e nosso
mundo. “Cultura” é o que alguém vê de si mesmo quando diz “eu”.)
O problema para o perspectivismo ameríndio não é, portanto, descobrir o
referente comum (digamos, o planeta Vênus) de duas representações diferentes
(digamos, a “Estrela da Alva” e a “Estrela Vespertina”). Pelo contrário, é tornar
explícita a equivocação insinuada em imaginar que quando a onça diz “caxiri” ela
se refere à mesma coisa que nós (quer dizer, uma poção saborosa, nutritiva e ine-
briante). Em outras palavras, o perspectivismo supõe uma epistemologia cons-
tante e ontologias variáveis, as mesmas representações e outros objetos, um único
significado e múltiplos referentes. Portanto, o objetivo da tradução perspectivista
– a tradução sendo uma das tarefas principais do xamanismo, como sabemos
(CARNEIRO DA CUNHA, 1998) – não é encontrar o “sinônimo” (uma represen-
tação correferencial) na nossa linguagem conceitual humana para as representa-
ções que outras espécies de sujeito usam para falar da mesma coisa. Ao invés
disso, o objetivo é evitar perder de vista a diferença escondida dentro de “homô-
nimos” equivocais entre nossa língua e a língua de outras espécies, já que nós e
eles nunca estamos falando das mesmas coisas.
Esta ideia pode, em um primeiro momento, parecer um tanto contraintui-
tiva, já que parece cair dentro de seu oposto quando começamos a pensar nela.
Gerard Weiss (1972:170), por exemplo, descreve o mundo Campa da seguinte ma-
neira:
Agora, o jeito que Weiss “vê as coisas” não é um erro, mas mais precisa-
mente uma equivocação. O fato de seres de diferentes tipos verem as mesmas
coisas diferentemente é nada mais que uma consequência do fato de seres de di-
ferentes tipos verem coisas diferentes do mesmo jeito. O fantasma da coisa-em-
si-mesma assombra a formulação de Weiss, que na verdade expressa uma inver-
são do problema colocado pelo perspectivismo – uma inversão tipicamente an-
tropológica.
O perspectivismo inclui uma teoria de sua própria descrição pela antropo-
logia – uma vez que é uma antropologia. Ontologias ameríndias são inerente-
mente comparativas: elas pressupõem uma comparação entre os modos que tipos
diferentes de corpo “naturalmente” experimentam o mundo como uma multipli-
cidade afetual. São, portanto, um tipo de antropologia invertida, já que a antro-
pologia procede através de uma comparação explícita entre os modos que tipos
diferentes de mentalidade representam “culturalmente” o mundo, visto como a
origem unitária ou foco virtual de suas diferentes versões conceituais. Por isso,
Tradução
Nas Grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta da América, enquanto os espa-
nhóis enviavam comissões de investigação para indagar se os indígenas possuíam ou
não alma, estes últimos dedicavam-se a afogar os brancos feitos prisioneiros para ve-
rificarem, através de uma vigilância prolongada, se o cadáver daqueles estava ou não
sujeito à putrefação.
O ser lá fora
Estava Urban errado – estava ele fazendo uma afirmação falsa – ao declarar
que montanhas e espécies naturais estão “lá fora”, enquanto a sociedade é um
produto cultural? Acredito que não. Mas também não acredito que ele estava
certo. À medida que qualquer ponto antropológico esteja em jogo aqui, o interesse
de sua declaração jaz no fato de que ela contrainventa a equivocação que permite,
e que a contrainvenção dá a ela seu poder objetificante. A fé professada de Urban
na autossubsistência ontológica de montanhas e animais e na demiurgia institu-
258 cional do discurso é, em última análise, indispensável para que nós possamos
propriamente avaliar a enormidade do espaço que separa as ontologias indígenas
e antropológicas.
Acredito que posso de fato falar de um erro na parte de Urban, já que estou
situado no mesmo jogo linguístico que ele – a antropologia. Posso, portanto, le-
gitimamente dizer (embora possa certamente estar errado) que Urban perpetrava
um erro antropológico ao fracassar em considerar a equivocação em que ele
mesmo estava implicado. A distribuição discordante das partes dadas e constru-
ídas entre Urban e os Xokleng não é uma escolha anódina, uma mera troca de
sinais deixando intactos os termos do problema. Há “toda a diferença do mundo”
(Wagner 1981:51) entre um mundo onde o primordial é experimentado como
transcendência nua, pura alteridade antiantrópica (o não-construído, o não-ins-
tituído, aquilo que é exterior aos costumes e ao discurso) e um mundo de huma-
nidade imanente, onde o primordial toma forma humana (o que não o torna ne-
cessariamente tranquilizante; porque lá onde tudo é humano, o humano é intei-
ramente outra coisa). Descrever este mundo como se fosse uma versão ilusória
do nosso próprio, unificar os dois via uma redução de um às convenções do outro,
é imaginar uma forma demasiado simples de relação entre eles. Este conforto ex-
planatório acaba produzindo todo tipo de complicações chatas, uma vez que este
desejo por monismo ontológico normalmente paga com uma emissão inflacioná-
ria de dualismos epistemológicos – êmico e ético, metafórico e literal, consciente
e inconsciente, representação e realidade, ilusão e verdade, et cetera.
“Perspectiva é a metáfora errada”, fulmina Stephen Tyler em seu manifesto
normativo para a etnografia pós-moderna (1986:137). A equivocação que articula
o discurso Xokleng com o discurso de seu antropólogo me leva a concluir, pelo
contrário, que a metáfora é talvez a perspectiva errada. Este é certamente o caso
brasileira, ele decidiu usar uma palavra indígena como título do disco que estava
gravando. A palavra escolhida foi txai, que os Kaxinawá haviam usado abundan-
temente ao se referirem a Milton e aos outros membros da expedição.
Quando o disco Txai estava prestes a ser lançado, um de meus amigos da
ONG pediu que eu escrevesse uma nota para o encarte. Ele queria que eu expli-
casse aos fãs de Milton o significado do título, e que dissesse algo sobre o sentido
de solidariedade fraterna expressada pelo conceito de txai e seu significado “ir-
mão”, e assim por diante.
Respondi que era impossível redigir a nota nesses termos, uma vez que txai
pode significar basicamente qualquer coisa exceto, precisamente, “irmão”. Expli-
quei que txai é um termo usado por um homem para se referir a certos parentes,
por exemplo, seus primos cruzados, o pai de sua mãe, os filhos de sua filha, e, no
geral, seguindo o sistema Kaxinawá de “aliança prescritiva”, qualquer homem 259
cuja irmã Ego trate como um equivalente à sua própria esposa, e vice-versa (KEN-
SINGER, 1995:157-74). Em sumo, txai significa algo parecido com “cunhado”. O
termo refere aos cunhados reais ou possíveis de um homem, e, quando usado
como um vocativo amigável para falar com estrangeiros não-Kaxinawá, a impli-
cação é que estes são tipos de afins. Além disso, expliquei que não é necessário
que alguém seja um amigo para ser txai. Basta ser um estrangeiro, ou até mesmo
– e até melhor – um inimigo. Por isso, os Inca na mitologia Kaxinawá são ao
mesmo tempo canibais monstruosos e txai arquetípicos com quem, devemos no-
tar de passagem, não se deve ou de fato não se pode casar (MCCALLUM ,1991).
Mas nada disso serviria, reclamou meu amigo. Milton acha que txai significa
“irmão”, e além do mais seria ridículo dar ao disco um título cuja tradução é “Cu-
nhado”, não seria? Talvez, concedi. Mas não espere que eu passe ao largo do fato
que txai significa “outro” ou afim. O resultado final da conversa foi que o disco
continuou a ser chamado Txai, e a nota do encarte acabou sendo escrita por outra
pessoa.
Note que o problema com este mal-entendido sobre txai não jaz no fato que
Milton Nascimento e meu amigo estavam errados quanto ao sentido da palavra
Kaxinawá. Pelo contrário, o problema é que estavam certos – de certo modo. Em
outras palavras, estavam “equivocados”. Os Kaxinawá, como muitos outros povos
indígenos da Amazônia, usam termos cujas traduções mais diretas são “cunhado”
ou “primo cruzado” em vários contextos onde brasileiros, e outros povos da tra-
dição euro-cristã, realmente esperariam algo como “irmão”. Neste sentido, Mil-
ton estava certo. Se eu tivesse me recordado, teria lembrado ao meu interlocutor
que a equivocação já havia sido antecipada por um etnógrafo dos Kaxinawá. Fa-
lando sobre a diferença entre a filosofia social deste povo e aquela tida pelos bran-
cos ao seu redor, Barbara Keifenheim conclui: “A mensagem ‘todos os homens
são irmãos’ encontrou um mundo onde a expressão mais nobre de relações hu-
manas é a relação entre cunhados...” (1992:91). Precisamente, mas é por esta
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mesma razão que “irmão” não é uma tradução adequada para txai. Se existe al-
guém que um homem Kaxinawá ficaria relutante em chamar de “txai”, é seu pró-
prio irmão. Txai significa “afim”, não “consanguíneo”, mesmo quando usado para
fins semelhantes aos nossos, quando chamamos um estranho de “irmão”. Em-
bora os propósitos possam ser semelhantes, as premissas decididamente não são.
Meu deslize de tradução sem dúvida soará totalmente banal aos ouvidos de
americanistas que se interessam há muito tempo nas inúmeras ressonâncias sim-
bólicas do idioma de afinidade na Amazônia. O interesse desta anedota no pre-
sente contexto, porém, é que ela parece a mim expressar, na diferença real entre
as expressões “irmão” e “cunhado”, dois modos inversos de conceber o princípio
de comparação tradutiva: o modo multiculturalista da antropologia e o modo
multinaturalista do perspectivismo.
As poderosas metáforas ocidentais de irmandade privilegiam certas (não to-
das) propriedades lógicas desta relação. O que são irmãos, na nossa cultura? São
indivíduos identicamente relacionados a um terceiro termo, seus genitores ou
seus análogos funcionais. A relação entre dois irmãos deriva de sua relação equi-
Tradução
valente com uma origem que os engloba, e cuja identidade os identifica. Esta
identidade em comum significa que irmãos ocupam o mesmo ponto de vista
quanto a um mundo exterior. Derivando sua similitude de uma relação seme-
lhante a uma mesma origem, irmãos terão relações “paralelas” (para usar uma
imagem antropológica) com todo o resto. Assim, pessoas que não são parentes,
quando concebidas como estando relacionados em um modo genérico, o são as-
sim em termos de uma humanidade comum que faz de todos nós parentes, isto é,
260 irmãos, ou ao menos, para continuar usando a imagem anterior, primos parale-
los, irmãos classificatórios: filhos de Adão, da Igreja, da Nação, do Genoma, ou
de qualquer outra figura de transcendência. Todos os homens são irmãos em al-
guma medida, uma vez que a fraternidade é em si a forma geral da relação. Dois
parceiros em qualquer relação são definidos como sendo conectados à medida em
que possam ser concebidos como tendo algo em comum, isto é, como estando na
mesma relação com um terceiro termo. Relacionar é assimilar, unificar, e identi-
ficar.
O modelo amazônico da relação não poderia ser mais diferente disso. “Dife-
rente” é a palavra adequada, uma vez que ontologias amazônicas postulam a di-
ferença ao invés da identidade como o princípio da relacionalidade. É precisa-
mente a diferença entre os dois modelos que fundamenta a relação que estou ten-
tando estabelecer entre elas (e aqui já estamos usando o modo ameríndio de com-
parar e traduzir).
A palavra comum para a relação, nos mundos amazônicos, é o termo tradu-
zido como “cunhado” ou “primo cruzado”. Este é o termo pelo qual chamamos
pessoas que não sabemos do que chamar, aqueles com quem desejamos estabe-
lecer uma relação genérica. Em suma, “primo/cunhado” é o termo que cria uma
relação onde nenhuma existia. É a forma pela qual o desconhecido é tornado co-
nhecido.
Quais são as propriedades lógicas da conexão de afinidade destacada nestes
usos indígenas? Como um modelo geral de relacionamento, a conexão entre cu-
nhados surge como uma conexão cruzada com um termo mediador, que é visto
de maneiras diametricamente opostas pelos dois polos da relação: minha irmã é
sua esposa e/ou vice-versa. Aqui, as partes envolvidas encontram-se unidas por
aquilo que as divide, ligadas por aquilo que as separa (STRATHERN, 1992:99-
100). Minha relação com meu cunhado é baseada em eu estar em outro tipo de
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Referências
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