Arqueologia Pós-Colonial

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R. Museu Arq. Etn.

, 25: 105-117, 2015

Metodologia para análise tecnológica em cristais de quartzo

Luis Felipe Bassi*

BASSI, L.F. Metodologia para análise tecnológica em cristais de quartzo. R. Museu Arq.
Etn., 25: 105-117, 2015.

Resumo: O tema deste artigo foi discutido na dissertação de mestrado sobre


a análise tecnológica do cristal de quartzo proveniente do sítio arqueológico
Bibocas II, em Jequitaí/MG (Bassi, 2012). Pela avaliação dos ângulos entre as
facetas naturais do cristal, identificam-se elementos importantes dos processos
de lascamento, de modo que o método proposto permite localizar a lasca no
suporte/núcleo e mapear possíveis métodos de lascamento.

Palavras-chave: Tecnologia lítica. Cristal de quartzo. Métodos e técnicas de


lascamento.

Introdução facetas de cristal em quantidade suficiente. A


análise das facetas permite identificar métodos
de lascamento e formas de abordagem de cris-

O tema deste artigo foi discutido na


dissertação de mestrado do autor (Bassi
2012), sobre o sítio arqueológico Bibocas II,
tais, ou seja, é possível discutir escolhas relativas
a técnicas e modos de gestão dessa matéria-pri-
ma, como a preferência do primeiro golpe para
localizado em Jequitaí-MG. O trabalho é fruto de abertura de um plano de percussão, controle
pesquisas realizadas desde 2008 e financiadas pela volumétrico etc.
FAPEMIG e pelo CNPq, em projetos coordena-
dos pela Profa Dra Maria Jacqueline Rodet, do
Setor de Arqueologia Pré-Histórica da UFMG. Características do cristal de quartzo: considera-
Um artigo dedicado exclusivamente à ções sobre cristalografia
análise de cristal de quartzo pretende questionar
a simplicidade e a superficialidade com que este A cristalografia (ciência que estuda os
tema é geralmente tratado – quase sempre uma cristais e as leis que governam seu crescimento,
descrição de estigmas, apresentação morfoló- forma externa e estrutura interna) considera
gica e/ou análise estatística sem problemáticas que a grande maioria dos cristais tem arranjo
definidas. O objetivo aqui é apresentar uma interno ordenado. Em condições ideais, assu-
metodologia de análise baseada na identificação mem formas geométricas regulares (superfícies
dos eixos do cristal pelas facetas naturais, o que planas e lisa) (fig.1).
permite levantar discussões sobre as sequências Podemos, assim, idealizar uma definição
de lascamento, mesmo na falta de núcleos ou mais ampla de um cristal como um sólido ho-
instrumentos. mogêneo possuindo ordem interna tridimensio-
Dessa forma, é possível analisar apenas nal que, sob condições favoráveis, pode manifes-
lascas e distinguir sequências de cadeias opera- tar-se externamente por superfícies limitantes,
tórias específicas, desde que existam peças com planas e lisas (Dana e Hurlbut 1974: 4).
As características físicas e químicas dos cris-
* CEARPH – UFMG tais são constantes e podem ser tomadas como

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Todo cristal apresenta facetas naturais


que formam entre si ângulos com regularidade
e constância (Lei de Steno), portanto, sem-
pre com as mesmas medidas. Dessa forma, é
possível aplicar metodologias da mineralogia e
da cristalografia para extrair informações sobre
a posição e a direção da lasca em relação ao
cristal, seja no núcleo, no suporte ou em restos
brutos de lascamento.

Desde que a estrutura interna de


qualquer substância cristalina é constante e
as faces do cristal têm relação definida com
aquela estrutura, segue-se que as faces de-
vem ter relação definida entre si. Este fato
foi observado muito tempo atrás (1669)
por Nicolaus Steno, que acentuou que os
ângulos entre as faces correspondentes nos
cristais de quartzo eram sempre os mesmos.
Generalizamos hoje esta observação desig-
nando-a Lei de Steno da constância dos
ângulos interfaciais, a qual afirma que os
ângulos entre faces equivalentes de cristais
da mesma substância, medidos à mesma
temperatura, são constantes. Por essa razão,
a morfologia cristalina é frequentemente
Fig. 1. As diferentes faces do cristal de quartzo, instrumento valioso na identificação do
as quais se apresentam sempre desta maneira mineral. Um cristal pode ser achado em
em minerais bem desenvolvidos, designadas por
cristais de tamanhos e formas largamente
letras, onde: m - 6 faces do prisma hexagonal
do corpo do cristal (A) apresentam estrias
variados, mas os ângulos entre pares de fa-
horizontais; r - 3 faces maiores, mais ou menos ces correspondentes são sempre os mesmos
triangulares, no ápice do cristal (B); e z - 3 faces (Dana, J. D.; Hurlbut C. S., 1974: 13).
menores, geralmente triangulares, no ápice do
cristal. (adaptado de: http://www.quartzpage.de/ Para medir os ângulos recorrentes em cris-
crs_intro.html. Acesso em 19/04/2012). tais, é necessário que exista uma aresta natural,
formada pelo encontro de duas facetas. O ins-
trumento que afere os ângulos recorrentes é o
goniômetro de contato (fig. 3) e deve estar exa-
referências para a análise tecnológica de peças tamente perpendicular à aresta medida, ou seja,
lascadas. A forma mais recorrente do quartzo na é necessário identificar o eixo cristalográfico
coleção analisada é de prisma hexagonal hialino conforme a figura 2B e a figura 3.
em posição primária. É um composto químico As estrias de crescimento nas facetas de
de pureza quase completa e de propriedades cristal (fig. 2A) são o indicador mais seguro do
físicas constantes. Os cristais são quase sempre eixo cristalográfico, mas isso depende também
prismáticos, com facetas naturais que podem de o fragmento de quartzo analisado remeter
conter estrias (fig. 2A) transversais ao eixo lon- ao corpo ou ao ápice do cristal. Por isso, o
gitudinal do prisma, o que permite identificar melhor é conjugar o máximo de informações
a orientação dos fragmentos e das lascas (eixo e aliar as facetas naturais às estrias de cresci-
longitudinal e transversal do cristal). mento.

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Fig. 2: Esquema básico para identificação e orientação do cristal de quartzo


para tomada das medidas dos ângulos recorrentes. A: Arestas e estrias de
crescimento do cristal, realçadas com grafite para melhorar a visibilidade.
B: Eixos cristalográficos do cristal de quartzo (adaptado de http://www.
quartzpage.de. Acesso em 19/04/2012).

Fig. 3. Goniômetro de contato que mede arestas do cristal de quartzo. A posição da


lâmina do goniômetro é sempre perpendicular à aresta a ser medida (Bassi, 2012)

É comum encontrar muitos cristais do pondentes às possíveis formas/formatos que o


mesmo mineral numa localidade, sendo que cristal pode assumir. Isso depende das condi-
todos têm aparência idêntica. Mas esses cristais ções no momento da formação, e o tipo mais
podem ter aparência inteiramente diferente, comum é o de hábito normal ou prismático.
dependendo de seu hábito (fig. 4) Os cristais Mesmo com aparências distintas, os ângulos
de quartzo têm ao menos oito hábitos, corres- correspondentes entre as facetas não mudam.

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Fig. 4. Alguns possíveis hábitos do cristal de quartzo: A. normal ou prismático; B. trigonal; C. hexagonal; D. dauphine;
F. muzo; G. tessin; H. agulha; I. cúbico ou pseudocúbico. Fonte: http://www.quartzpage.de. Acesso em 19/04/2012

Cristais de quartzo: elementos para reconhecer A análise conjunta desses elementos permi-
métodos de lascamento te identificar a orientação do lascamento, tendo
como referência o eixo cristalográfico do quart-
Os ângulos identificados como recorrentes zo. Dessa forma, há a possibilidade de mapear
são: 120o (corpo-corpo), 142o (corpo-ápice), 134o escolhas e possíveis recorrências na maneira
(ápice-ápice), 115o entre facetas não consecutivas como essa matéria-prima foi gerida.
de corpo-ápice e 86o para facetas não conse-
cutivas de ápice (fig. 5). Esses ângulos foram
medidos com um goniômetro de contato1 exata-
mente perpendicular à aresta medida. Ou seja,
o cristal, ou o fragmento de cristal que se quer
medir deve seguir seu eixo cristalográfico.
Portanto, os ângulos descritos acima
foram usados como referência para determinar
a localização da lasca no cristal, permitindo
que se definisse a direção do golpe em relação
ao núcleo ou suporte. Dessa forma, é preciso
buscar a referência sempre na relação entre o
eixo tecnológico da lasca e o eixo do cristal. Isso
é possível pela relação entre talão e face inferior
(interna) da lasca, da identificação das arestas
naturais e/ou estrias de crescimento.

1 O único goniômetro de contato disponível era de metal, por


isso foi necessário cobrir com uma fina fita plástica adesiva Fig. 5. Medidas dos ângulos recorren-
transparente o ponto de contato entre a peça e o instrumento tes entre as facetas de cristal de quartzo
de medição. (Bassi, 2012: 82).

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Particularidades que confundem marcas geralmente aparecem quando os cristais


se formam colados uns nos outros (o que é mui-
Há casos em que se encontram ângulos to comum) e/ou se sobrepõem, sendo depois
“desviantes”, ou seja, ângulos que fogem muito separados. Esse processo deixa um negativo que
do padrão identificado, e para isso há três pos- contém essas marcas paralelas, mas não tem
sibilidades explicativas: a primeira é que se trate nenhuma relação com o eixo cristalográfico
de um tipo de cristal de quartzo muito especí- da peça (fig. 6). Essas estrias que não indicam
fico chamado de dupla terminação2; a segunda o eixo cristalográfico não são perfeitamente
é que não se possam medir os ângulos entre alinhadas ou paralelas e por isso podem ser
as facetas perpendicularmente ao goniômetro, diferenciadas das estrias de crescimento.
fornecendo uma medida falsa; a terceira é que
existam cristais subidiomórficos ou subédricos3.
Há nas facetas naturais algumas marcas As cinco formas elementares do lascamento de
com regularidade e paralelismo parecidos com cristal de quartzo
as estrias de crescimento, e isso pode prejudicar
a identificação da orientação do cristal. Essas Durante as análises do quartzo lascado
no sítio arqueológico Bibocas II (Bassi 2012),
identificaram-se cinco formas básicas e im-
prescindíveis para o lascamento do cristal de
quartzo. Essas possibilidades foram descritas a
partir da análise do material, tendo em vista as
discussões sobre sua morfologia, facetas e ân-
gulos. Acredito que qualquer retirada de lascas
dessa matéria-prima implique necessariamente
ao menos um desses procedimentos técnicos.
Todo o referencial espacial se faz por meio dos
eixos cristalográficos. As formas elementares de
lascamento, ilustradas nas figuras 7 e 8, são:

a. Transversal lateral: Ocorre principal-


mente no corpo do cristal, sendo passível de
identificação por estrias no mesmo sentido do
eixo tecnológico da lasca; arestas perpendicula-
res ao eixo tecnológico da lasca; talão de faceta
de cristal com ângulo de 120o entre o talão e a
face externa
b. Transversal frontal: As arestas são
perpendiculares ao eixo tecnológico da lasca; as
facetas e arestas estão quase sempre nas bordas
Fig. 6. Cristais de quartzo com marcas parecidas com
estrias de crescimento, mas que não são indicadoras do
da lasca; se houver estrias de crescimento no
eixo cristalográfico. Essas marcas são decorrentes do talão, elas serão perpendiculares ao eixo tecno-
crescimento de cristais sobrepostos que se separaram. lógico da lasca
c. Transversal diagonal: Transição entre o
lascamento frontal e o lateral. O que define essa
2 O cristal de dupla terminação é aquele que tem dois ápices, classificação é a análise da relação entre o eixo
um em cada extremidade. Um desses ápices tem 6 lados e tecnológico da lasca e o eixo cristalográfico
corresponde aos ângulos padronizados; o outro tem menos
d. Lascamento longitudinal: O eixo tecno-
de 6 lados e não tem ângulos recorrentes.
lógico da lasca coincide com o eixo cristalográfi-
3 São cristais com faces desenvolvidas imperfeitamente. co. O talão nunca é de faceta de cristal (cortical);

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as estrias e as arestas de corpo-ápice são perpen- de lascamento transversal frontal, com ponto
diculares ao eixo tecnológico da lasca; as arestas de impacto no corpo (2); a partir daí abrem-se
de corpo e ápice-ápice coincidem com o eixo outras possibilidades, como por exemplo, a
tecnológico da lasca. retirada transversal diagonal (3); formando um
e. Lascamento oblíquo: A transição entre o ângulo favorável para lascamento transversal
lascamento longitudinal e o transversal carac- lateral (4). Após esta sequência, o primeiro nega-
teriza-se por um ângulo próximo a 45o entre o tivo formado pela remoção do ápice serve como
plano de percussão e o eixo cristalográfico. plano de percussão para uma retirada longitu-
Como ilustrado na figura 8, considerando dinal (5). O cristal então é lascado (transversal
um cristal inteiro (1), é possível realizar uma frontal) (6), formando um plano de percussão
abertura inicial com a retirada de ápice através favorável para negativos oblíquos (7).

Fig. 7. Formas elementares de lascamento em cristal de quartzo. A: tansversal lateral; B:


transversal frontal; C: transversal diagonal; D: longitudinal; E: obliquo.

Fig. 8. Possibilidades para o lascamento do cristal de quartzo. (1): cristal inteiro; (2):
abertura inicial com retirada do ápice por lascamento transversal frontal; (3): retirada
transversal diagonal; (4) lascamento transversal lateral; (5) retirada longitudinal; (6)
lascamento transversal frontal; (7) retiradas por lascamento oblíquo.

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Percussão sobre bigorna (PSB ou bipolar) apenas se a morfologia do corpo do cristal fosse
achatada e houvesse um recuo maior no plano
O lascamento sobre bigorna também pode de percussão, formando um talão mais largo. Na
ser analisado pela metodologia proposta neste imagem de número 3 há uma retirada que extrai
artigo. A viabilidade depende da apresentação mais massa do núcleo/suporte e que prolonga-se
da coleção: se houver peças nucleiformes com ao até quase a aresta da parte inferior do hexágono.
menos uma faceta de cristal, é possível fazer uma Na figura 4 o ângulo de percussão se aproxima
análise diacrítica dos estigmas para identificar os muito do ângulo “ideal” de 90o, sendo que extrai
gestos de lascamento e pressupor a posição do boa parte do núcleo/suporte, formando uma
núcleo/suporte em relação ao golpe recebido. abertura quase plana no hexágono.
Assim, pode-se inferir se a peça foi lascada As retiradas de lascas transversais laterais
transversal, longitudinal ou obliquamente (para são perfeitamente possíveis, mas frequente-
este último caso, ver Prous, Souza e Lima 2014: mente devem ser acompanhadas por outras
287-326). Além disso, também se podem distin- retiradas que facilitam o lascamento, como por
guir as sequências de lascamento, as preferên- exemplo uma retirada transversal diagonal (ver
cias e as ausências. fig. 8 número 4). Um ângulo de lascamento
próximo a 120o, em cristais de quartzo, não é
Lascamento transversal lateral e lascamento completamente restritivo, uma vez que vários
oblíquo hábitos e formatos de corpo facilitam este tipo
de lascamento. Isso não significa que qualquer
Alguns consideram o lascamento transver- cristal pode ser lascado por técnica transversal
sal lateral impossível, mas ele já foi reproduzido lateral, pois todo tipo de abordagem depende
inúmeras vezes em experimentos no MHN- da apresentação do núcleo/suporte e aspectos
JB-UFMG. Lascas deste tipo apresentam um como homogeneidade e linhas de fratura são
ângulo de 120o entre o talão e a face superior, fundamentais para o sucesso da retirada de
isso é possível devido à fragilidade do quartzo lascas. Além disso, o prisma hexagonal pode
e também porque, na maioria das vezes, a lasca apresentar achatamento ou alargamento em
retira completamente a faceta (fig. 9, imagens 3 áreas do corpo, sendo a morfologia também um
e 4), o que permite “vencer” um ângulo impro- aspecto importante a ser considerado.
vável. Dessa forma, o ângulo de lascamento é Uma outra questão muito importante
inferior a 120o (Isnardis e Prous, comunicação sobre o lascamento oblíquo deve ser discutida:
pessoal). quando há percussão no ápice do cristal e a
A figura 9 apresenta algumas das possibilida- única faceta existente na lasca se encontra no
des de lascamento transversal lateral. Na imagem talão (talão com faceta de cristal), a identifica-
número 2 há uma retirada improvável devido ção espacial da peça pode ser feita a partir das
ao ângulo de lascamento permanecer próximo estrias de crescimento contidas neste talão. Mas
de 120o. Nesse caso, o lascamento seria possível quando o cristal inteiro é considerado, a transi-

Fig. 9. Viabilidade do lascamento transversal frontal

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ção entre corpo e ápice resulta em uma quebra Duas jazidas de cristal de quartzo foram
de angulação de 38o em relação ao corpo, o que localizadas nas proximidades do sítio arqueo-
leva inevitavelmente à associação com o lasca- lógico Bibocas II, denominadas localmente
mento oblíquo. Por isso é muito difícil afirmar como Lavra das Bibocas e Lavrinha. Estas foram
que as lascas que possuem faceta de cristal descritas como:
somente no talão têm orientação longitudinal
ou oblíqua, e é preciso cuidado ao se definir “As rochas filíticas e quartzíticas das
a orientação do lascamento, principalmente Serras do Cabral e Espinhaço encontram-se
quando a única informação disponível sobre o recortadas por numerosos veios de quartzo
eixo cristalográfico são as estrias de crescimento de origem hidrotermal, como produto de
localizadas exclusivamente no talão da lasca. preenchimento de falhas e fraturas. Tam-
Outra dificuldade sobre a identificação do bém ocorrem, em menor escala, veios de
lascamento oblíquo diz respeito ao ângulo de quartzo atravessando sequências pelíticas da
lascamento, ou seja, aquele formado entre o Formação Paraopeba e Grupo Macaúbas.”
talão e a face inferior da lasca. Se ele se apresen- (Engecorps 2005: 219).
tar próximo a 135o o lascamento provavelmente
é oblíquo, e isto se explica pela posição do A Nota Explicativa da Folha Jequitaí
eixo tecnológico da lasca (sempre num plano (SE.23-X-C-II)1:100.000 caracteriza as jazidas de
tridimensional) em relação ao eixo cristalográ- cristal desta região como:
fico. Porém nem sempre uma retirada oblíqua
gera um ângulo de lascamento próximo a 135o, “Os depósitos de quartzo se associam
e esta medida deve ser utilizada apenas como a filões hidrotermais, com no máximo 5 m
mais um elemento para identificação. de espessura e provavelmente relacionados
à Orogenia Brasiliana, cortando rochas me-
tapelíticas dos supergrupos Espinhaço e São
Jazidas e o garimpo de cristal: aspectos para a Francisco.” (Chaves e Benitez 2007: 34).
contextualização dos sítios arqueológicos

A localização de jazidas e a forma como as


rochas e minerais se apresentam são fundamen-
tais para discutir aspectos de economia e de
gestão da matéria-prima. As escolhas dos grupos
pré-históricos estão atreladas a elementos que
podem ser identificados e discutidos através do
registro arqueológico, tais como a distribuição
geográfica dos ambientes procurados e suas pos-
síveis relações com a dificuldade de extração de
matéria-prima, com as morfologias dos núcleos
e suportes, com as características das rochas e
minerais, etc.
A compreensão das características naturais de
ocorrência do quartzo é de grande relevância para
pensar nas políticas de aproveitamento das coisas Fig. 10. O coqueirinho (na parte superior
da imagem) é um pequeno martelo de me-
e do espaço, transformadas em registro arqueoló-
tal com uma extremidade pontuda e outra
gico pela agência humana. Compreender e carac- quadrada; o cabo pode ser de madeira ou de
terizar bem, em cada contexto, as formas naturais vergalhão de aço. Os vergalhões dobrados
do quartzo, influencia diretamente as considera- (ambos na parte inferior da imagem) tam-
ções feitas sobre o aproveitamento tecnológico, bém são usados para lascar cristal. Fonte:
sobre o uso e sobre a ocupação do espaço. Bassi (2012: 23)

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Os cristais de quartzo destas jazidas são quartzo amorfo para utilização em indústrias e
explorados comercialmente em Jequitaí e sua construção civil.
extração é feita de forma manual (marretas, pica- Outra característica importante nestas
retas, pás, alavancas e marrão). Geralmente são jazidas de “custelão” são as “ilhas” de cristal
abertos no sedimento buracos de até 4 metros lascado (acumulações detríticas), geralmente
de diâmetro, passando pela rocha até chegar ao localizadas em áreas de sombra. Nestes locais há
veio, ou, em outros casos, são feitos cortes no uma enorme quantidade de lascas e fragmentos
perfil que podem chegar a mais de 10m de altura de cristais de todos os tipos, cores e tamanhos.
(fig.10). Quando isto ocorre os garimpeiros se- É onde os garimpeiros “limpam” os cristais
guem a linha do filão e extraem o que chamam para agregar valor às peças, ou seja, retiram os
de “custelão”. Este tipo de extração gera pilhas cristais do “custelão” ou retiram partes de sílica
de sedimento e rejeito, este último composto ba- amorfa para vender o “custelão” inteiro. Nesta
sicamente por quartzo esbranquiçado e amorfo atividade, que pode ser exercida nestas “ilhas”
(localmente chamado de “quartzito”), e também de cristais lascados ou em qualquer outra área
por cristais com muitas intrusões e por pedaços (o sítio arqueológico Bibocas II foi um local
que não possuem valor agregado. utilizado pelos garimpeiros para lascar cristal)
Este “quartzito” é a fonte de sílica que são usados como percutores o “coqueirinho”
proporcionou a formação/crescimento de e/ou um pedaço de vergalhão de aproximada-
cristais em meio aquoso nas fendas, sendo o mente 30 cm de comprimento (fig. 11), dobrado
revestimento característico em que os cristais se em uma das pontas. Ambos são utilizados para
formam. É uma rocha silicosa amorfa e acinzen- retirar lascas com maior precisão. Este trabalho
tada e/ou esbranquiçada, com fissuras que não pode ser realizado por mulheres e crianças,
interessam ao mercado atual embora os garim- sendo que a extração do “custelão” é exercida,
peiros relatem que já houve comércio para este quase sempre, pelos homens.

Fig 11. Jazida de quartzo das Bibocas (em atividade). Os garimpeiros fizeram um corte
no barranco para seguir o filão hidrotermal. Formam-se pilhas de rejeito com sedimento
e quartzo sem valor agregado. Isso é chamado localmente de garimpo de “custelão”, em
referência ao quartzo amorfo com cristais entremeados.

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Os garimpeiros de “custelão” fazem uma se- Conhecer este tipo de garimpo é de grande
paração entre o que é quartzo e o que é cristal. importância, pois a extração e o lascamento de
O primeiro é o quartzo leitoso, o segundo é o quartzo permanecem até hoje como atividade
cristal hialino e pode variar em tipos mais ou importante para as pessoas que moram na re-
menos valiosos. O cristal de “cabelo” (rutilado) gião de Jequitaí. Além disso, o garimpo interage
é o mais caro chegando a ser vendido por até 50 diretamente na conservação de sítios pré-his-
reais o quilo. Outro muito procurado, porém tóricos, pois pode sobrepor e/ou misturar o
mais raro, é o cristal “mofado”, este apresenta material lítico, devido à grande possibilidade de
uma intrusão verde. Existem também os cristais compartilhamento dos mesmos espaços e jazidas
de hábito do tipo Muzo e Tessim (cuja deno- de quartzo.
minação local não foi registrada) que apresen- Dessa forma, o conhecimento das técnicas
tam estrias de crescimento muito marcadas e da localização dos garimpos atuais pode ajudar
e protuberantes, além do “lobisomem” (com a encontrar novos sítios arqueológicos pré-histó-
facetas escuras e ásperas, mas muito hialino por ricos e contribuir para o conhecimento das for-
dentro, ideal para lapidar). Todas essas intrusões mas de exploração e gestão desta matéria-prima.
minerais ou morfologias específicas são carac- Através deste estudo é possível levantar mais
terísticas que aumentam consideravelmente o dados e expandir as discussões sobre tecnologia
valor de venda das peças. lítica e gestão de matérias-primas, assim como
Todos estes tipos são mais caros, mas po- uso e ocupação da paisagem.
dem variar de preço dependendo do tamanho,
formato e a forma como estão arranjados no
“custelão”. O cristal hialino fragmentado, sem Comparação entre os sítios arqueológicos
qualquer característica que o torne especial, cus- Bibocas II e Santana do Riacho
ta em média 10 reais o quilo. Antigamente os
cristais eram vendidos para indústrias eletrônica As análises da escavação central do sítio
e siderúrgica, mas atualmente os principais com- arqueológico Bibocas II possibilitaram a identi-
pradores são os intermediários que adquirem o ficação de várias abordagens de lascamento do
quartzo por valores muito baixos na mão dos ga- quartzo, o que demonstra uma grande varieda-
rimpeiros e revendem para serem lapidados em de de escolhas. Portanto não há uma recorrên-
joalherias e/ou lojas de esoterismo e decoração. cia ou repetição no lascamento do cristal, mas
Durante as campanhas de campo em o que é típico desta indústria em específico é a
Jequitaí, foi coletado quartzo lascado das áreas diversidade de formas de lascamento. Esta carac-
de garimpo. Este material está sendo analisado terística diverge das publicações sobre o cristal
em trabalhos de monografia de estudantes de de quartzo do abrigo de Santana do Riacho
graduação do curso de Antropologia da UFMG (Prous 1991: 229-274), localizado no município
e também foi alvo de um artigo (Rodet et al homônimo, no estado de MG.
2014). A. Prous (1991) descreve as indústrias sobre
No sítio arqueológico Bibocas II são raras cristal de quartzo de Santana do Riacho como
as peças em quartzo leitoso, no entanto, este sendo majoritariamente lascadas por PSB (per-
material é o mais abundante nas jazidas de cussão sobre bigorna, também conhecida como
quartzo da região. É possível encontrar alguns lascamento bipolar), para o autor isso acarreta
cristais dispersos em superfície, mas em geral, é num melhor aproveitamento de cristais devido
necessário cavar buracos e quebrar rochas para ao tamanho e morfologia destes. Esta técnica
extração do cristal hialino. Isso indica uma clara tende a produzir os mesmos tipos de produtos
escolha dos grupos pré-históricos que ocupa- e na mesma proporção, enquanto na debita-
ram o abrigo (Bassi, 2012). Este conhecimento gem por percussão direta dura (PDD, também
da gestão do quartzo, seja ele sob a forma de conhecida como unipolar) a morfologia do
cristais ou não, é fundamental para se pensar o cristal limitaria as possibilidades de abordagem.
contexto arqueológico. Segundo Prous, a dificuldade de debitagem

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lateral leva a iniciar o lascamento pelo ápice ou Por fim, a escavação central do sítio arqueo-
raiz, criando lascas com gume de faceta sem a lógico Bibocas II apresenta uma ampla variação
necessidade de “descorticar” a peça. Outra ca- das cinco formas elementares do lascamento
racterística importante é a raridade dos cristais de cristal, no entanto, não há neste momento,
ou seixos maiores que 5cm no sítio. nenhuma indicação quantitativa ou qualitativa
São descritos quatro processos de lasca- que indique sistematização ou métodos de las-
mento baseados na análise de lascas e núcleos camento nesta matéria-prima. O que se sabe é
(nuclei) em Santana do Riacho: os nuclei semi que todas as possibilidades de lascamento estão
piramidais, resultado de quando o lascamen- presentes de forma aparentemente aleatória na
to se inicia pelo ápice ou pela raiz; os cristais estratigrafia. Isto não significa que não existam
grandes (raros), retira-se uma faceta lateral e métodos sistemáticos por trás da gestão tecno-
posteriormente são retiradas lascas (laterais) lógica dos cristais, mas que ainda não temos
transversais; o lascamento a partir de ambas as dados suficientes para afirmar tal proposição.
extremidades, com dois planos de percussão
opostos; e por fim os núcleos poliédricos, com
mais de dois ângulos de percussão, caracterizan- Considerações finais
do os blocos residuais de debitagem bipolar. Há,
também, as lascas com dorso cortical indicando A recorrência natural de ângulos entre
uma debitagem transversal (frontal e/ou diago- as facetas do cristal permite, em alguns casos,
nal) em gomos ou fatias, sendo raros os nuclei identificar imediatamente a posição da lasca no
correspondentes a esta abordagem. suporte original e mapear algumas das formas
As formas de lascamento do cristal identi- como o quartzo foi lascado e, quando possível,
ficadas em Santana do Riacho são mais asso- os métodos mais recorrentes. A análise desses
ciadas à PSB (bipolar), sendo a PDD menos ângulos constantes entre as facetas dos cristais
recorrente no sítio, dessa forma não há explo- pode ensejar novas interpretações sobre a gestão
ração recorrente das cinco formas elementares humana do quartzo em sítios arqueológicos.
do lascamento do cristal presente no abrigo Na prática, é difícil medir os ângulos,
Bibocas II. Em Jequitaí ocorre o contrário, a ainda mais numa coleção de pequenas lascas,
PDD é predominante, principalmente nos ní- o que dificulta a aplicação dos procedimentos
veis mais antigos (VI e V inferior), isso permite necessários para chegar a uma medida exata
uma ampla variação da utilização da morfologia proposta pela cristalografia. Nem sempre é
dos cristais, demonstrando que o que foi con- possível medir satisfatoriamente os ângulos,
siderado impraticável em Santana do Riacho pois algumas lascas apresentam facetas corres-
acontece com frequência em Jequitaí. Ou seja, pondentes muito pequenas, devido ao processo
há lascamento lateral com talões de faceta de de lascamento. Na coleção do sítio Bibocas II,
cristal e outras formas muito variáveis de apro- casos assim foram descritos, mas excluídos das
veitamento desta matéria-prima. Portanto, não sínteses qualitativas e separados para possíveis
acreditamos que a morfologia do cristal limita referências.
as possibilidades de abordagem, muito pelo Essa metodologia de análise pode ser
contrário, ela as amplia e permite conjugar com aplicada a qualquer coleção arqueológica que
muita eficiência as cinco formas elementares apresente cristais com facetas, de modo que é
do lascamento de cristal, podendo ser infinita- possível identificar as escolhas mais recorrentes
mente aproveitadas, criando planos e superfícies no lascamento do cristal e fazer um levantamen-
de percussão, transformando as morfologias e to estatístico das preferências.
ângulos dos núcleos ou suportes. Na arqueologia, os ângulos recorrentes
O que antes era considerado limitador, em cristais não devem ser interpretados como
agora deve ser visto como novas possibilidades, dados inequívocos, mas como instrumentos
que vão muito além de ângulos considerados auxiliares para descrever tendências ou mé-
“ruins” para lascar. todos de lascamento. Como os suportes do

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Metodologia para análise tecnológica em cristais de quartzo
R. Museu Arq. Etn., 25: 105-117, 2015

quartzo hialino são conhecidos – são prismas Agradecimentos


hexagonais –, é possível discernir sequências
de lascamento, e, mesmo que não se identifi- Agradeço à professora Maria Jacqueline
quem métodos ou padrões na forma de lascar, Rodet, pela orientação e pelos ensinamentos
podemos ver elementos que são comumente desde o meu início na arqueologia; ao profes-
ignorados pelos pesquisadores: procedimentos sor Andrei Isnardis, pela co-orientação, pelas
técnicos que não foram adotados, escolhas discussões e pelos esclarecimentos; ao professor
de lascamento que não são cogitadas por ser André Prous, pelo suporte e pelo incentivo,
consideradas “absurdas” pelos arqueólogos e as além das críticas construtivas ao trabalho; ao
possibilidades que foram exploradas, sejam elas professor Marcelo Fagundes, que também teve
sistemáticas ou não. uma importante participação no amadureci-
Além disso, essa metodologia abre novas mento do texto e das ideias propostas neste
possibilidades de análises para qualquer coleção artigo; à professora Sibeli Aparecida Viana,
que tenha cristais com algumas facetas, inde- cujas contribuições foram importantes pra o
pendentemente do número de lascas, núcleos texto; e a Marcony Lopes Alves, companheiro
ou instrumentos. Mas, como já foi dito, tudo de moradia que ajudou na revisão do texto
isso depende da análise do contexto, no sentido e teceu comentários que foram prontamente
mais amplo do termo. assimilados.

BASSI, L.F. Methodology for technological analysis in quartz crystals. R. Museu Arq.
Etn., 25: 105-117, 2015.

Abstract: This article covers a topic discussed in the master’s thesis (Basssi,
2012) on technological analysis of the quartz crystal, from the archaeological
site Bibocas II in Jequitaí MG. Through the analysis of the axes in the natural
crystal facets is possible to identify important elements on the knapping process.
Thus, the technologic analysis of the collection by the proposed approach allows
identification of the location of the core / blank, in addition to the description
of possible knapping methods.

Keywords: Lithic Technology. Quartz Crystal. Methods and Techniques of


knapping.

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Luis Felipe Bassi

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