Revista Memória Da Psicanálise
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VIVER MENTE&CÉREBRO 5
A CRIADORA DA ANÁLISE INFANTIL FUNDOU UM SISTEMA TEÓRICO
PRÓPRIO,AMPLIANDO A NOÇÃO DE INCONSCIENTE EINTRODUZINDO
CONCEITOS COMO OBJETO INTERNO E IDENTIFICAÇÃO PROJETIVA
M
elanie Klein, em. três décadas de produção adultos, aspectos muito infantis, tais como dependência
escrita, criou a principal corrente variante da excessiva e necessidade de ser guiado, acompanhado de
psicanálise em relação à freudiana e introduziu uma desconfiança bastante irracional".
pontos de vista originais que alguns consideram comple- Klein considera que a estrutura arcaica das emoções
mentares e outros, controversos. infantis, muitas vezes datada de um período pré-verbal,
Melanie Klein considerava-se uma freudiana, parecen- . persiste ao longo de nossas vidas e interfere na mente adulta.
do não ter consciência dos profundos avanços que estava A análise e o entendimento desse funcionamento favorece o
introduzindo na psicanálise, e se surpreendeu quando uma desenvolvimento e a criatividade. Para que este modo emo-
de suas discípulas, Betty joseph, lhe disse: "Agora já é tarde, cional de operar seja perceptível é necessário que o analista
você é uma kleiniana" - acentuando então que ela estava desenvolva uma sensibilidade muito acurada e sutil de suas
criando um novo sistema de pensamento. formas de manifestação na personalidade adulta.
Klein se distinguiu por muitas coisas. Ela é considerada O estudo da arquitetura emocional do bebê abriu as
a criadora da psicanálise de crianças por meio da técnica do portas para a investigação das atividades mentais primitivas
brincar. Esta consistia em considerar o brincar da criança características dos estados psicóticos e, em alguns casos,
durante a sessão como equivalente à associação livre do permitiu tratá-Ios. Suas observações proporcionaram um
adulto, ou seja, como discurso alocutório cujo significado desenvolvimento muito grande das possibilidades de se
emocional era equivalente ao sonho do adulto. falar a estes aspectos mais infantis e a núcleos mais primi-
Ao analisar seus pequenos pacientes, desenvolveu um tivos da personalidade.
entendimento muito profundo do funcionamento emo- Um analista kleiniano procura dirigir-se diretamente
cional do se/f infantil. Sua apreensão do mundo interno ao funcionamento emocional de seu paciente, buscando
infantil e das formas por meio das quais as emoções ali mostrar não apenas como ele é como pessoa, mas como
adquirem significado contribuiu para o entendimento da está sendo, isto é, como ele estrutura suas emoções a partir
personalidade adulta com seus núcleos infantis incrustados de núcleos internos atribui dores de significado às vivências
que persistem por toda a vida. e às relações enquanto estas estão ocorrendo.
Em seu artigo "Nosso mundo adulto e suas raízes na Klein amplia a noção de inconsciente ao propor que
infância" (1949), sintetiza algumas de suas descobertas. este é habitado sobretudo por fantasias consideradas por
Nesse trabalho, acentuou que o entendimento profundo ela representantes mentais das pulsões instintivas. Pascal
da personalidade da criança é a base para a compreensão dizia que os instintos são as razões do coração sobre as
da vida social. Escreve ela: "(...) a técnica de brincar que quais a razão nada sabe. Klein procura decifrar essas ra-
desenvolvi na psicanálise de crianças muito pequenas e zões do coração através da compreensão do sentido e do
outros avanços resultantes do meu trabalho permitiram- significado das fantasias. Essa tem existência sob a forma
me tirar novas conclusões sobre estágios muito iniciais da de uma representação figurativa, tal como um fragmento
infância e camadas mais profundas do inconsciente ("')i em de cena, que evoca estados e significados afetivos que por
uma psicanálise o paciente revive em relação ao psicanalis- sua vez organizam as emoções enquanto as vivemos.
ta situações e emoções muito arcaicas. Portanto, a relação Na perspectiva kleiniana, todo impulso instintivo é
com o psicanalista de vez em quando encerra, mesmo em dirigido a um objeto, palavra técnica que designa uma
representação mental de uma pulsão ou instinto. Ao fa-
larmos de objeto, imago, representação interna, estamos
MELANIE KLEIN em 1955, durante congresso da Associação
no domínio da fantasia inconsciente. Klein escreve: "Essas
Internacional de Psicanálise (IPA) realizado em Genebra imagos, que são uma imagem distorcida de forma fantástica
ESTRUTURAS PRECURSORAS
Ao nascer, o bebê ainda não tem um ego, ou um self
constituído, mas estruturas precursoras deste, tornando-o
capaz de sentir ansiedade e de se defender dela por meio
de projeções e introjeções. Essas estruturas precursoras
(nunca integralmente definidas por Klein) do ego do bebê
podem dividir-se ou excindir-se (split), e ser projetadas
para fora. Assim, não são apenas os estados de espírito
perturbadores que são projetados para fora, mas partes
da própria personalidade. Aqui temos mais uma das gran-
des novidades da psicanálise kleiniana. Isto significa que
podemos perder funções mentais, viver parte de nossas
vidas projetados (em fantasia) no mundo interno de outra
pessoa. Ou podemos ter parte de nossas vidas vividas
de compreendê-Ia, cuidar dela e se torna fonte de segu- em identificação com aspectos da vida de outrem. Klein
rança. O recém-nascido vive um mundo de extremos, denomina este mecanismo identificação projetiva.
povoado por objetos bons e objetos maus num embate Donald Meltzer, um dos continuadores de Klein recen-
permanente. temente falecido, define a identificação projetiva como o
Ao postular este tipo de funcionamento mental, Mela- nome de uma fantasia inconsciente onipotente que afeta
nie Klein cria uma psicanálise voltada para a descrição e a as relações entre as partes do self e dos objetos tanto no
compreensão dos estados afetivos e a natureza das relações mundo interno como no externo. A importância desse
estabeleci das com o mundo interno e externo. conceito pode ser avaliada ao dizermos que boa parte da
Sem negar a importância do passado histórico, isto é, psicanálise de 1950 para cá tem se dedicado a estudar a
das repressões inconscientes acumuladas durante o desen- fenomenologia da identificação projetiva.
volvimento como fatores produtores do desenvolvimento, Em Freud, o que era projetado perdia-se, pois este con-
tanto normal quanto patológico (da forma como Freud o cebia a projeção como um processo similar à evacuação.
faz), Melanie Klein introduz uma concepção particular Já em Klein, aquilo que é projetado para fora, isto é, para
do desenvolvimento humano. Não são só as experiências dentro de um objeto, não só não é perdido como também
vividas constituídas no passado histórico que geram o confere nova identidade a esse objeto. Um indivíduo
desenvolvimento e as patologias. Klein parte do conceito agressivo, por exemplo, que projeta sua raiva para fora, não
de instinto de morte ampliando-o e relacionando-o com o se limita a negá-Ia e atribuí-Ia ao outro. Ao dirigir sua raiva
medo de não sobreviver, transformando-o assim em nossa em direção ao outro, o indivíduo torna-se temeroso do
principal fonte de ansiedade. receptor para dentro do qual seus maus sentimentos foram
Ao fazê-lo, ela redefine nossa relação com o passado projetados e, ao mesmo tempo, destituído de potência.
histórico e com sua função na constituição de nossa iden- Este conceito modifica tanto a técnica psicanalíti-
tidade. Não são apenas o passado histórico e as repressões ca como nossa concepção das relações humanas e do
acumuladas durante a vida que se tornam parte de nossa desenvolvimento, e é responsável pela preocupação
subjetividade e a perturbam. Antes mesmo da formação
OS ,~LJ rORES
do ego e do superego do bebê, já existiria uma força ne-
gativa (pulsão de morte) atuando, gerando defesas contra ElIAS MALLET DA ROCHA BARROS é analista didata da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de São Paulo, membro titular da Sociedade
ansiedades iniciais, que vão, aos poucos, se corpo rificando
Britânica e editor do International journal of Psychoanalysis. Recebeu
em estruturas. o Prêmio Sigourney (1999), da Universidade Columbia, pelas suas
Aquele nada que precederia o bebê não é um vazio! contribuições nos últimos dez anos.
Ele vem preenchido de forças pulsionais que ameaçam a ElIZABETH LIMA DA ROCHA BARROS é analista didata da So-
ciedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, membro titular da
integridade do bebê, sua unidade, gerando uma ansiedade Sociedade Britânica, DEA pela Sorbonne, e trabalhou na Tavistock
de aniquilamento e um intercâmbio intenso entre o mundo Clinic, Londres.
REDEFINIÇÃO DA PATOLOGIA
Nesse desenho da estrutura psíquica humana, o le-
vantamento das repressões, por si só, não conduz nem
à sanidade nem a uma capacidade de aprofundamento
do contato com a realidade e não torna o uso da razão
plenamente efetivo.
Uma das implicações das observações e hipóteses klei-
nianas é a de que a personalidade é constituída de diversos
níveis que atuam ora em consonância e harmonia, ora
em conflito aberto que pode inclusive paralisá-Ia. Assim,
aspectos infantis da personalidade atuam simultaneamente
com aspectos adultos, ora dominando a personalidade, ora
sendo mais bem integrados nesta. Essas diversas instâncias
podem ou não estar em comunicação entre si e com o
mundo externo.
Os aspectos infantis têm sua existência no núcleo
da personalidade que se desenvolve mais próximo do
contato com as necessidades corpóreas, acompanhadas
de sensações de urgência e impulsos para satisfação. A
criança não espera, ela deseja e quer ser satisfeita imedia-
tamente. Suas necessidades têm um caráter imperativo.
14 VIVER MENTE&CÉREBRO
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We had the experíence but míssed the meaníng) And approach to the Como analistas kleinianos, ao interpretar, trabalhamos
meaníng restares the experíence/ In a different way. .. (Four quartets; com a idéia implícita de que nossa comunicação só será
tradução: Nós tivemos a experiência mas perdemos sua efetiva se conseguirmos interessar o paciente por nossa
significação,! E a busca da significação restaura a expe- observação. Só aquilo que estimula o paciente a pensar
riência/ De uma forma diferente ... ). sobre suas emoções tem chance de ser internalizado. O
A restauração, aludida por Eliot, dentro da perspec- novo, quando encontrado, produz, em geral, medo. A
tiva da psicanálise kleiniana, ocorre no mundo interno, presença de uma mãe capaz de transformar os aspectos per-
A condição do sujeito contemporâneo i, de imigran- Seu irmão Emanuel foi, sem dúvida, uma das prin
fi. te, sobrevivente, órfão; aquela de quem perdeu cipais influências sobre o desenvolvimento inicial d
Melanie. Era um adolescente inquieto e inteligente, es
seu lugar de origem na proteção da autoridade
paterna e sua fé quanto à imortalidade da alma, assim como critor e interessado por arte, que a apresentou ao mund
em relação ao progresso infinito da espécie. Perdas e lutos cultural e filosófico de Viena. Faziam parte deste grup
constantes movem o humano para novos caminhos; por o dramaturgo Arthur Schnitzler e o filósofo Friedrich
vezes, ele consegue sair do abandono e do isolamento e se Nietzsche. Teve sucesso imediato com a juventude
envolve em transformações profundas e radicais.O contato progressista de Viena, que se identificava com a voz de
com o desamparo e a angústia delas proveniente pode ser protesto contra a corrupção e a letargia intelectual d
a mola propulsora para novas reinvenções. Império Austríaco. Emanuel foi incentivador de sua arnbi-
Melanie Klein foi uma dessas pessoas que encarnaram ção em estudar medicina e especializar-se em psiquiatria
a condição de desamparo e de reinvenção, valorizando Melanie sentia-se viva, imbuída da mais profunda paixão
e mergulhando em suas experiências de vida para delas o fervor intelectual.
retirar o caldo vital do qual até hoje nos alimentamos. Quando tinha 17 anos conheceu seu futuro marido
Foi uma mulher à frente de seu tempo. Revolucionou a Arthur Klein, um rapaz sério, estudante de engenharia
técnica de trabalho com crianças e ampliou o alcance da química, admirado por sua inteligência. Na mesma época
psicanálise para a compreensão de estados primitivos da falece o pai, que vinha doente, sofrendo provavelmente do
constituição do humano. Uma das inovadoras mais ori- mal de Alzheimer. Algum tempo depois, Emanuel faleceria
ginais da psicanálise, imprimiu nova orientação à teoria de parada cardíaca. O tema das perdas e a melancolia mar-
e à técnica na compreensão do inconsciente, o que pos- cariam profundamente seu ser, influenciando sua obra,
sibilitou desdobramentos fecundos à clínica dos estados como veremos adiante.
limites, da psicose e do autismo. Em seguida, Melanie casou-se, aos 21 anos; o seu in-
Viena, 30 de março de 1882. Nasce Melanie Reizes, a teresse pelo estudo e pela pesquisa teria que aguardar um
caçula de quatro filhos de Libussa e Moriz. A família era tempo para vir a se realizar. Após o casamento, o casal vai
judia: Moriz, o pai, proveniente de um meio ortodoxo, residir em Budapeste, onde tem três filhos: Melitta, Hans
dedicara-se à religião; entretanto, aos 37 anos inicia estu- e Erich. O distanciamento do ambiente cultural que tanto
dos de medicina. Seu espírito independente e sua atitude amava e a impossibilidade de entregar-se a um trabalho que
científica foram motivo de grande admiração da filha. A realmente a interessasse, acrescido por desgostos da vida
mãe, Libussa, mulher inteligente e ativa, auxilia o marido conjugal e familiar, e pela perda da mãe, levaram-na à de-
para complementar a renda familiar, abrindo um pequeno pressão, marcada por períodos de desânimo e desespero.
comércio. A,esposa de um médico exercer uma profissão Foi por essa época que teve a oportunidade de ler o
contrariava os padrões da época. A energia e a indepen- texto de Freud sobre os sonhos; entusiasmada, decide
dência daquela que se opunha a preconceitos arraigados iniciar a análise com Sándor Ferenczi.
também viriam a influenciá-Ia profundamente. Melanie Klein relata: "Durante a análise com Ferenczi,
No decorrer da infância, foi muito apegada à mãe e à ele chamou a minha atenção para o grande dom que eu
irmã Sidonie. Esta foi quem iniciou Melanie na leitura e tinha para entender as crianças e o meu interesse por
na escrita, mas cai gravemente doente aos 8 anos e falece elas e deu muito incentivo à minha idéia de me dedicar
pouco tempo depois. Seria a primeira de uma longa série à análise de crianças. Nessa época eu tinha, é claro; três
de mortes que pontuaram a vida de Melanie, cada uma filhos ... Não descobrira que a educação podia abranger
reavivando o medo, a dor e a perplexidade. toda compreensão da personalidade e por conseguinte
\
-
!
A observação clínica opunha-se à idéia vigente na ram no surgimento de fantasias
época, em especial de Anna Freud, de que o trabalho com e brincadeiras espontâneas.
crianças deveria ter um sentido mais formal e explicativo. Histórias fantásticas apare-
Havia também a idéia de que as crianças não faziam uma ceram, e a criança, até então
neurose de transferência com o analista pois suas transfe- silenciosa, se revelou.
rências estavam ligadas aos pais reais. Em 1922, Melanie divor-
O trabalho com as crianças revelava o inconsciente, o cia-se de Arthur Klein e passa
acesso a fantasias primitivas ou inatas, que davam expressão a residir em Berlirn, a convite
a impulsos e reações instintivas. As fantasias primitivas de Karl Abraham, com quem,
são experimentadas em sensações e mais tarde assumem a mais tarde, teria sua segun-
forma de imagens; elas estão o tempo todo presentes (mas da experiência analítica. Em
não dependem de palavras). Manifestam-se por meio de 1924, no Congresso Inter-
ações ou, ainda, acabam fazendo parte do que se sente ser nacional, apresenta um texto
a realidade (psíquica). sobre a psicanálise de crianças.
A observação desses primeiros contatos trouxe a neces- Sofreria duras críticas dos membros
sidade de encontrar alguém (um analista) que estivesse apto mais conservadores, que afirmaram que suas idéias inova
a captar emoções que se apresentavam de forma pré-verbal doras violentavam a inocência das crianças e perturbava
e que fosse capaz de mobilizar-se, a fim de recebê-Ias em a relação com os pais.
seu corpo e em sua mente para, em seguida, transformá-Ias Enfrenta resistência por parte de outros analistas, poi
em palavras, abrindo, assim, espaço para a simbolização. A não era médica nem possuía outro diploma universitári
princípio, Klein teve muita cautela com as interpretações e Ingressou na Sociedade Psicanalítica de Berlim, tornan
foi surpreendida com o alcance das mudanças que ocorre- do-se um de seus membros, o que legitimou sua entrad
no mundo da psicanálise mundial. Nessa época sua filha
Melitta, termina seus estudos de medicina e acompanh
a mãe nas reuniões psicanalíticas. Essa mulher notáv
conseguiu superar dificuldades pessoais e profissional
liberando seu potencial criativo, dand~ início a uma fas
em que publica vários artigos. A idéia de fazer nome
ter reconhecimento lhe permitiria mobilidade para novo
centros. Era necessário imprimir sua marca, e assim acon
teceu. Apurou sua técnica e elaborou conceitos com
introjeção e projeção. Depressão, culpa, angústia e naturez
compulsiva da fantasia seriam temas que investigari
cada vez mais. A agressividade, e não a libido, começa
assumir, em sua teoria, a principal força da angústia.
Com base nessas primeiras análises, aprende qu
seu papel seria dar liberdade às crianças para que ela
pudessem expressar suas emoções e fantasias; sua funçã
seria compreender aquilo que se passava na mente dela
e transmitir-Ihes o que ocorria.
impulso, o centro de sua atenção. Klein fazia da experiência REGINA MARIA RAHMI é psicóloga e psicanalista pelo Instituto de
emocional o objetivo principal de suas investigações. Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.