Textos Dissertativo Argumentativos PDF
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ARGUMENTATIVOS:
SUBSÍDIOS PARA
QUALIFICAÇÃO
DE AVALIADORES
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Brasília-DF
AGOSTO/2017
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)
É permitida a reprodução total ou parcial desta publicação, desde que citada a fonte.
Equipe técnica
Maria Inês Fini
Diretoria de Avaliação da Educação Básica (Daeb)
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t355
279 p. : il.
ISBN 978-85-7863-054-6
CDU 806.90:331.86
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO...................................................................................................................... 9
introdução.........................................................................................................................11
REFLEXÕES METODOLÓGICAS
AVALIAÇÃO FORMATIVA, REGISTROS REFLEXIVOS E PRODUÇÃO DE TEXTOS.... 265
André Lúcio Bento
O ENSINO DE REDAÇÃO........................................................................................... 275
Lucília Helena do Carmo Garcez
APRESENTAÇÃO
O Exame Nacional do Ensino Médio – Enem foi concebido com ênfase na aferição das
estruturas mentais com as quais construímos continuamente o conhecimento. Essas estruturas
se desenvolvem e são fortalecidas em todas as dimensões de nossa vida pela quantidade e
pela qualidade das interações que estabelecemos com o mundo físico e social. Das interações
contínuas realizadas pelo cidadão, individualmente, e validadas por todos os cidadãos, coleti-
vamente, é que são construídos os conhecimentos.
A aferição das estruturas mentais, na avaliação do Enem, é mediada por esta interação que
acontece em dois momentos distintos: o participante como escritor e como leitor do mundo.
O momento leitor do mundo é priorizado na parte objetiva por meio das questões de
múltipla escolha, quando são apresentadas propostas em que o participante demonstra a inte-
ração do conhecimento adquirido nas diversas áreas com a sua leitura de mundo, atribuindo
novos sentidos ao que se lê, questionando a veracidade e fazendo escolhas. Ele não é passivo,
lê/percebe/observa o mundo que o cerca, simbolicamente representado em diversos gêneros
textuais como charges, poesias, gráficos, tabelas, imagens e algoritmos. O participante interpreta
esse mundo, decodificando-o e atribuindo um sentido; atribuindo um valor, criando hipóteses,
julgando, para só então resolver a situação-problema proposta.
O momento escritor do mundo se dá na redação, quando o participante se torna autor
para atender à proposta feita pelos interlocutores. O autor é também o leitor à medida que
leva para seu texto toda a sua vivência, por meio do que já leu, e por sua experiência pes-
soal. Nessa proposta, espera-se que o participante lance mão de seu acervo pessoal, reorgani-
zando o conhecimento construído ao logo da sua trajetória, para elucidar seu projeto de texto.
Esta autoria é única e pessoal; porém há limites implícitos para este projeto: a língua escrita,
a tipologia textual e o tema. No papel de autor, o participante organiza seu texto à representação
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subsídios para qualificação de avaliadores
mental construída, demonstra suas expectativas antevendo seu alvo, ajustando sua intenção
de escrita à proposta apresentada. O texto da redação, portanto, não é isento; ele pode causar
aos avaliadores as mais diversas impressões, como incômodo, conforto, alegria ou tristeza,
o que exige do avaliador a prioridade dos critérios estabelecidos na correção em detrimento
de sua subjetividade.
O material ora apresentado tem por objetivo a qualificação dos avaliadores das redações
do Enem. Esperamos que seja útil e que ampliem cada vez mais a reflexão metodológica sobre
a redação e sua correção.
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subsídios para qualificação de avaliadores
Introdução
Produzidos por participantes dos mais remotos pontos do país, os textos que constituem
este livro são um desafio a seus avaliadores, provenientes de todas as regiões brasileiras. Assim,
como coordenadoras pedagógicas gerais, para a avaliação das redações do Enem, entendemos
que a avaliação isonômica dos textos depende da qualificação desses avaliadores e do acompa-
nhamento de seu trabalho com as redações. Um livro com noções teóricas básicas sobre os cri-
térios de avaliação de tais textos constitui, então, um recurso importante para o esclarecimento
e para a preparação desses profissionais.
Como complemento para o perfeito alinhamento dos critérios de avaliação entre as equipes
responsáveis pela avaliação dos textos, são apresentados, neste livro eletrônico, alguns textos
que explicitam as bases linguísticas subjacentes a aspectos da Matriz de Referência para Redação
do Enem, documento básico para a atribuição de notas às redações dos participantes do exame.
O livro está subdividido em seções que contemplam as cinco Competências da Matriz e as
Situações que levam à atribuição de nota zero à redação. Os textos estão em concordância com os
critérios de avaliação estabelecidos pela Matriz de Referência para Redação e pelo edital do exame.
No que se refere à Competência I da Matriz, o livro apresenta uma reflexão sobre o que é
considerado modalidade escrita formal da língua portuguesa e o que se espera de um estudante
ao final do ensino médio quanto ao domínio das regras gramaticais e das convenções da escrita
necessárias para a elaboração de textos dissertativo-argumentativos.
No que se refere à compreensão da proposta de redação, ao desenvolvimento do tema e ao
respeito aos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo, focalizados na Competência II,
as considerações apresentadas ampliam e aprofundam as diferenças entre as noções de gênero
e tipo, a definição do que seja um texto dissertativo-argumentativo e ainda discutem a redação
escolar como um gênero específico, que se diferencia de outros por sua natureza, seu objetivo
e contexto em que se realiza.
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subsídios para qualificação de avaliadores
Quanto à seleção e organização de argumentos em defesa de um ponto de vista,
relativas à Competência III, os capítulos desenvolvem reflexões sobre os indícios de autoria reve-
lados na elaboração de textos. Desenvolvem-se também noções relativas ao funcionamento
das informações, dados, fatos, testemunhos, conceitos, evidências e opiniões no processo
argumentativo de defesa de uma posição em relação a algum problema colocado pelo tema
da prova de redação. Nesse particular, são especialmente importantes as discussões sobre a
função dos operadores argumentativos e conectores e sobre o emprego de figuras de retórica
como recursos de argumentação.
No que se refere aos mecanismos linguísticos de coesão textual necessários para a cons-
trução do texto dissertativo-argumentativo, objetos da Competência IV, são apresentadas, neste
e-book, as diversas estratégias que asseguram a elaboração de um texto coeso e coerente.
Quanto à Competência V, os textos dos especialistas desenvolvem uma profunda reflexão
sobre como se revelam o respeito aos direitos humanos e as propostas de exercício da cidadania
nas redações dos participantes do Enem, que objetivam solucionar os problemas levantados,
a cada ano, pelas provas de redação do Enem.
Além da reflexão sobre os direitos humanos, há esclarecimentos relevantes sobre situa-
ções previstas em edital que levam à atribuição de nota zero à redação: inserção de parte des-
conectada do tema; fuga ao tema; não atendimento ao tipo textual dissertativo-argumentativo;
cópia de texto motivador, entre outras formas propositais de anulação da prova pelo participante.
Como os avaliadores são necessariamente professores de língua portuguesa, acrescen-
taram-se a essas considerações específicas sobre a avaliação das redações do Enem textos que
ampliam as reflexões metodológicas a respeito da prática de redação no ensino médio, com o
objetivo de enriquecer o acervo de noções sobre a natureza da escrita e sobre seu desenvol-
vimento no ambiente escolar. Assim, destinada prioritariamente aos avaliadores das redações
do Enem, a obra dirige-se também a professores de língua portuguesa do ensino médio.
A colaboração de renomados e experientes especialistas da área de Letras garante a
qualidade e a atualidade dos conceitos apresentados. A variedade de textos escritos sobre
a Matriz de Referência para Redação permite ainda a expectativa de que a publicação esclarecerá
os vários, e por vezes desconhecidos, critérios que regem a avaliação das redações do Enem.
Lucília Garcez
Vilma Reche Corrêa
Organizadoras
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subsídios para qualificação de avaliadores
domínio
da modalidade
escrita formal da
língua portuguesa
a modalidade
escrita formal
da língua
Carlos Alberto Faraco*
1 A variação linguística
Uma das características fundamentais das línguas é a sua variabilidade. Nenhuma língua
é homogênea e uniforme; todas as línguas são heterogêneas e multiformes.
A variabilidade é tão intrínseca à realidade linguística que não há outro meio de con-
ceituar uma língua que não seja como um conjunto de variedades. A língua (qualquer língua)
existe exclusivamente no conjunto das variedades que a constituem.
Essa heterogeneidade constitutiva da língua está diretamente relacionada com a diversi-
dade seja das experiências históricas, seja das atividades sociais e culturais dos grupos humanos
que a falam. Por isso, a diversidade linguística — tanto no plano interno (as variedades consti-
tutivas de uma língua) quanto no plano externo (as muitas línguas que são faladas no mundo)
— deve ser para nós motivo de maravilhamento contínuo, embora, muitas vezes, ela também
seja, infelizmente, motivo de preconceito, exclusão e violência simbólica.
A diversificada ocupação demográfica de cada ponto do território em que a língua é
falada, as diferentes circunstâncias históricas que se desenvolvem em cada um desses pontos, a
variadíssima (quase infinita) dinâmica da vida social e cultural – essa diversidade toda repercute
nas formas como a língua é falada nas diferentes regiões de um país, em diferentes momentos
de sua história, por diferentes segmentos sociais (identificados estes pelos mais variados cri-
térios: faixa etária, gênero, atividade profissional e nível de renda, experiência de escolaridade
e assim por diante).
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subsídios para qualificação de avaliadores
Outro aspecto fundamental da variabilidade da língua é o fato de ela ser também intrín-
seca a cada falante. Nenhum falante é unilíngue no sentido de dominar apenas uma variedade
da língua. Em sua vida social e cultural, cada falante participa de várias comunidades de prá-
tica (por exemplo, no interior da família, no trabalho, na escola, nas atividades de lazer, etc.)
e estabelece em cada uma dessas comunidades um conjunto de múltiplas redes de interação
(por exemplo, com seus chefes e colegas no trabalho, com seus professores e colegas na escola,
com seus pares nas atividades esportivas, com sua roda de amigos, com seus parentes mais
velhos ou da mesma faixa etária na família, e assim por diante).
Pelo fato de sua vida social e cultural ser assim diversificada, o falante vai constituindo
um repertório linguístico igualmente diversificado, ou seja, todos os falantes dominam
sempre muitas variedades da língua. Daí dizer-se que todo falante é um poliglota em sua
própria língua.
Em suma, a língua, em decorrência da heterogeneidade quase infinita da vida social, é alta-
mente diversificada no interior da sociedade que a fala; e cada falante, no interior dessa sociedade, é
também altamente diversificado do ponto de vista linguístico: domina não apenas uma, mas muitas
das variedades sociais da língua em razão de estar envolvido em muitas comunidades de prática
que albergam múltiplas redes de interação social.
Toda essa realidade linguística heterogênea que caracteriza a sociedade e o falante é
extremamente dinâmica. Como a sociedade muda continuamente, também as variedades
sociolinguísticas vão passando por mudanças lentas e contínuas. Nesse sentido, nenhuma
variedade é estática.
Também o repertório sociolinguístico do falante não é estático. Ele se altera e se amplia
à medida que se alteram e se ampliam suas experiências de vida. Como exemplo, basta lembrar
o impacto amplificador que o processo de alfabetização e letramento tem sobre o repertório
linguístico de qualquer falante.
A entrada no universo da cultura escrita e o progressivo envolvimento com as práticas
sociais de leitura e escrita não só ampliam exponencialmente o conhecimento, como também
o acesso e o domínio das variedades linguísticas próprias da língua escrita ou correlacionadas
com todo o universo da cultura letrada.
Um dado que não podemos perder de vista é que o falante, à medida que vai construindo
seu heterogêneo perfil sociolinguístico, vai também desenvolvendo a capacidade de fazer uso
adequado das variedades que domina. Nesse sentido, o falante vai adquirindo a capacidade
de selecionar a variedade que melhor se ajusta a cada evento interacional, atendendo assim
as expectativas sociais.
A sociedade vai criando historicamente expectativas quanto à variedade linguística que
pode ou deve ocorrer em diferentes situações. Por isso é que o saber linguístico envolve não só
o domínio das variedades, mas também a capacidade de adequar a expressão linguística ao con-
texto. Daí dizer-se que todo falante é um camaleão linguístico.
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subsídios para qualificação de avaliadores
E são vários os condicionantes desse processo de ajuste e adequação. Levamos em conta,
por exemplo, as características dos nossos interlocutores (conhecidos/desconhecidos; mais
velhos ou mais novos; acima ou abaixo nas muitas hierarquias sociais) e do próprio evento
(o fato de acontecer na intimidade ou no espaço público; de envolver um pequeno público ou
um público amplo; de ser informal ou formal; de ser atividade falada ou escrita, etc.).
O falante, obviamente, não precisa sempre se ajustar às expectativas sociais. Ele pode
romper com elas para alcançar os mais diferentes efeitos de sentido: humor, ironia, crítica, etc.
Pensemos, por exemplo, no conferencista que, de repente, usa, em meio à sua fala formal,
um termo da gíria para produzir humor e, com isso, dar um momento de descanso a seus
ouvintes. Ou pensemos ainda no impacto sociocultural que foi a decisão dos poetas moder-
nistas de usar variedades linguísticas coloquiais na escrita de poesia, rompendo, portanto,
com a tradição que só admitia os chamados estilos elevados no texto poético.
Como falantes, somos, então, camaleões (adequamos nossa expressão linguística à situação),
mas somos também capazes de romper com as expectativas, explorando a variação linguística para
produzir sentidos inesperados seja no nosso cotidiano seja até mesmo em grandes projetos estéticos.
Nesse sentido, a língua é, ao mesmo tempo, espaço de restrição (as suas estruturas e
as suas condições de uso limitam nossas possibilidades expressivas) e espaço de liberdade
(a língua nos põe à disposição um conjunto de opções léxico-estruturais e de variedades sociais
que podemos aproveitar expressivamente na construção e individualização do nosso dizer).
No trato da diversidade do português do Brasil e para dar conta de sua enorme comple-
xidade, temos utilizado hoje um modelo de três contínuos inter-relacionados, desenvolvido
pela professora Stella Maris Bortoni, da Universidade de Brasília: o contínuo rural/urbano, o
contínuo oralidade/letramento e o contínuo da monitoração.1
É preciso lembrar que o perfil sociolinguístico da sociedade brasileira não é de modo
algum simples. Ele reflete as vicissitudes da nossa história socioeconômica e cultural, bem como
a diversidade da nossa população.
Nossa realidade sociolinguística — como reflexo da forma como a sociedade brasileira
foi constituída — é ainda fortemente polarizada. As grandes divisões socioeconômicas e cultu-
rais, resultantes de uma economia escravocrata que subsistiu durante trezentos anos, reper-
cutiram no português do Brasil na forma de uma polarização sociolinguística. De um lado está
o conjunto de variedades reunidas sob o rótulo de português popular; e de outro, o conjunto
das variedades reunidas sob o rótulo de português culto.
Ver, entre outros trabalhos, “Um modelo para a análise sociolinguística do português brasileiro”, publicado no livro Nós
1
cheguemu na escola, e agora? – Sociolinguística e educação. São Paulo: Parábola, 2005, p. 39-52.
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No meio desses dois polos há — em decorrência das mudanças por que passou e con-
tinua passando nossa sociedade — um leque de variedades que manifestam diferentes graus
de contato entre os dois extremos.
O Brasil foi, até meados do século XX, um país eminentemente rural, com a maioria da
sua população morando no campo. Em poucas décadas, esse perfil mudou radicalmente. O país
passou por um rápido e amplo processo de urbanização, de tal modo que o século XX terminou
com aproximadamente 80% da população brasileira vivendo no espaço urbano.
Esse fato de tamanha proporção repercutiu e continua repercutindo na variabilidade do
português que se fala no Brasil. Há nos extremos variedades tradicional e tipicamente rurais e
variedades tradicional e tipicamente urbanas. No meio desses dois polos, há um contínuo de
variedades em que características urbanas e rurais coexistem com predominância de umas ou
outras, dependendo do grau de urbanização do respectivo grupo social.
Da mesma forma, o Brasil foi, até meados do século XX, um país com elevados contin-
gentes populacionais sem acesso à leitura e à escrita. Embora os índices de analfabetismo
tenham sido reduzidos nos últimos quarenta anos, ainda hoje aproximadamente 10% da
população adulta são analfabetos. E, considerando que nossos índices de escolaridade con-
tinuam baixos (basta lembrar que apenas 23% da população adulta atual concluíram a edu-
cação básica, ou seja, têm o ensino médio completo), os níveis de letramento da população
são, em geral, muito reduzidos. Calcula-se que apenas 25% dos adultos podem ser conside-
rados plenamente letrados.
Essa realidade sociocultural tem também seus efeitos sobre a variabilidade do português
falado no Brasil. Há variedades linguísticas típicas dos grupos sociais afetados pelo analfabetismo
(dominam apenas a oralidade) e, no outro extremo, variedades linguísticas típicas dos grupos
sociais que, por terem tido historicamente acesso a todos os níveis de escolaridade (inclusive a
universitária), assim como aos bens da cultura escrita, têm alto grau de letramento (dominam
fluentemente as práticas sociais de leitura e escrita). Entre esses dois polos, há uma gama de
variedades correlacionadas com os diferentes graus de letramento dos respectivos grupos sociais.
Inter-relacionando esses dois contínuos, adquirimos condições de explicar a polarização
sociolinguística do Brasil. As variedades que constituem o chamado português culto são as que
estão mais próximas do polo urbano e do polo do letramento. Ou seja, o português culto reúne
as variedades linguísticas da população tradicionalmente urbana e com acesso histórico à plena
escolaridade e aos bens da cultura escrita.
Já o chamado português popular reúne as variedades linguísticas da população de raiz rural
e que historicamente teve pouco ou nenhum acesso à escolaridade e aos bens da cultura escrita.
Podemos também entender por que os falantes do português culto estigmatizam tão
fortemente os falantes do português popular do Brasil: a variação linguística, numa sociedade
historicamente dividida como a nossa, é tomada como o mais pesado fator de discriminação
positiva (“nós”) e negativa (“eles”) dos grupos sociais.
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subsídios para qualificação de avaliadores
Os estudos sociolinguísticos mostram ainda que, entre as muitas características que dis-
tinguem as variedades desses dois grandes grupos do português do Brasil, a mais forte é a fre-
quência com que cada grupo faz a concordância verbal, desde os percentuais mais baixos no
extremo rural e na oralidade até os mais altos no extremo oposto, passando por um gradiente
de progressivo aumento de frequência desse particular fenômeno sintático.
Por fim, temos de considerar que, em qualquer ponto em que os falantes estejam desses
dois contínuos, dependendo da situação interacional, eles monitoram, em graus variados, sua
expressão linguística. Há, portanto, um contínuo da monitoração (ou seja, de graus de atenção
à forma da expressão) que atravessa os outros dois.
Em decorrência, existem variedades próprias de situações que exigem do falante alto
grau de atenção e controle da forma como se expressa (a escrita de uma tese universitária,
ou um pronunciamento presidencial pelo rádio e pela televisão, por exemplo); e outras típicas
de situações mais distensas, mais coloquiais (um e-mail entre amigos, ou um bate-papo entre
colegas de trabalho na hora do cafezinho, por exemplo).
Essas variedades linguísticas correlatas com os graus de monitoração são, normalmente,
denominadas de estilos ou modalidades. Dizemos, então, que há estilos/modalidades mais for-
mais ou mais informais; mais elevados (solenes) ou mais coloquiais (distensos), etc.
3 A língua escrita
É importante destacar que esse modelo dos três contínuos serve não só para a identifi-
cação e descrição das variedades da fala, mas também das variedades da escrita.
Tal como a fala, a escrita não é homogênea nem uniforme: admite variação principalmente
no contínuo da monitoração. Claro, o espectro de variação na escrita é bem menor do que na fala.
E há uma razão histórica para isso. Até muito recentemente na história da Humanidade, as práticas
de leitura e escrita eram restritas a reduzidos grupos sociais. Com isso, consolidaram-se na escrita as
variedades típicas desses grupos e fixaram-se modelos que limitam bastante a variabilidade na escrita.
Em geral, consideram-se adequadas hoje no Brasil, para a expressão escrita, variedades
tradicionalmente urbanas dos grupos com maior grau de letramento e submetidas a graus mais
elevados de monitoramento.
Para facilitar nossas referências, poderíamos atribuir a esse conjunto de variedades a
denominação de português brasileiro standard. Dentro dessa estreita faixa de intersecção dos
três contínuos, a escrita admite obviamente variabilidade.
Há textos que, para atenderem as expectativas sociais historicamente construídas, devem
ser escritos num estilo ou modalidade altamente monitorada. Ocorrem em situações de grande
formalidade, como nos pareceres dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), nos docu-
mentos diplomáticos e nas teses e ensaios universitários.
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subsídios para qualificação de avaliadores
Para outros textos, as expectativas sociais podem ser menos rígidas. Se tomarmos como
exemplo um jornal diário, vamos observar que os textos são escritos no português brasileiro
standard, mas em variados estilos ou modalidades. Os editoriais e os artigos de opinião sobre
temas de economia e política tendem a ser escritos num estilo ou modalidade mais formal do
que um artigo de opinião na seção esportiva ou um comentário de gastronomia ou turismo.
Por outro lado, muitos dos textos publicitários estão escritos no português brasileiro
standard, mas num estilo ou modalidade muito próxima da fala urbana coloquial. O mesmo
se pode dizer de uma carta familiar ou de um e-mail entre amigos.
Outra situação que merece particular reflexão é a dos exames de escolaridade. Pelo
fato de a instituição escolar e a cultura letrada estarem historicamente ligadas umbilicalmente,
temos a forte expectativa de que os egressos da escola básica tenham um razoável domínio da
escrita. Por isso, nos exames de escolaridade (vestibulares e Exame Nacional do Ensino Médio
– Enem), assim como em concursos públicos, costuma haver uma prova de produção de texto.
Essas provas, em geral, solicitam dos participantes um texto dissertativo, ou seja, um texto
em que o autor, sustentado em argumentos, defende uma hipótese, uma tese, uma opinião.
Os textos dissertativos – muito frequentes no mundo universitário, mas também no
mundo jurídico e no jornalismo – ocorrem normalmente em situações interacionais conside-
radas formais (há um relativo distanciamento social entre os interlocutores) e, por isso, espera-
-se que sejam escritos na modalidade formal.
4 Instrumentos normativos
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subsídios para qualificação de avaliadores
do Padre Vieira, para ficarmos num só exemplo); ou a tomar uma das possibilidades estrutu-
rais como a única possível (fenômeno muito comum no trato da regência verbal, por exemplo).
E os dicionários, mesmo os melhores, muitas vezes apenas repetem os enunciados aleatórios
das gramáticas sem um estudo sistemático dos fatos.
Além disso, esses instrumentos muitas vezes se contradizem nos julgamentos de fenô-
menos da modalidade escrita formal. Não há, portanto, seja entre os especialistas, seja entre
os instrumentos normativos correntes (dicionários e gramáticas), absoluto consenso sobre que
fenômenos pertencem à modalidade escrita formal do português brasileiro contemporâneo.
Há razoável convergência quanto à morfologia dos verbos e a concordância verbal e nominal;
mas há não poucas divergências quanto à regência verbal e a colocação e uso dos pronomes
(para ficarmos em alguns casos).
Quem escreve regularmente não tem como fugir dessa situação, que não é má em
si (apenas revela que os autores dos instrumentos normativos têm olhares parciais sobre a
língua, além da falta frequente de estudos sistemáticos sobre seu uso efetivo). No entanto, no
momento de resolver uma dúvida ou de avaliar um texto, precisamos enfrentar essas contra-
dições, adotando sempre, nesses casos, um parâmetro flexível, que pode ser assim resumido:
o uso formal corrente deve prevalecer sobre o julgamento dos instrumentos normativos; e, se
o mesmo fenômeno recebe julgamentos divergentes, os dois registros são próprios da moda-
lidade formal escrita da língua.
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subsídios para qualificação de avaliadores
a avaliação do domínio
da língua portuguesa
no enem e a diversidade
do português brasileiro
Alzira Neves Sandoval*
Simone Silveira de Alcântara**
Stefania C. M. de R. Zandomênico***
O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), criado em 1998 com o objetivo de ava-
liar o desempenho do estudante ao fim da escolaridade básica, é hoje utilizado como critério
de seleção para diversas universidades, seja complementando seja substituindo o vestibular.
Além disso, é utilizado como critério de seleção para os estudantes que pretendem concorrer
a uma bolsa no Programa Universidade para Todos (ProUni), bem como para estudantes que
pretendem obter a certificação de conclusão do ensino médio. Para tanto, podem participar do
exame alunos concluintes do ensino médio e indivíduos com, no mínimo, dezoito anos de idade.
Esse critério de participação abarca, portanto, um público bastante variado no que se refere à
escolaridade. Os participantes podem estar concluindo o ensino médio no ano de realização
do exame, podem ter interrompido os estudos e visarem à obtenção do diploma da educação
básica ou podem, ainda, almejar entrar em mais um curso de graduação.
A diversidade que se observa com relação aos anos de escolarização dos participantes do
Enem caracteriza não somente o exame, mas também o nosso país. E, nesse contexto de dife-
renças sociais, econômicas, geográficas e etárias, o português brasileiro não constitui um todo
homogêneo. Ao contrário, existem numerosas variações, as quais se devem, primeiramente,
às diferenças entre a língua escrita e a falada, bem como entre os registros formal e informal. Não
há, portanto, um único modo de exprimir o pensamento. Para expressar uma mesma realidade,
existem diversas variantes, isto é, formas linguísticas diferentes que veiculam o mesmo sentido.
* Professora da educação básica da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal e doutora em Linguística pela
Universidade de Brasília.
** Professora do Colégio Militar de Brasília e doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília.
***Professora da educação básica da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal e doutoranda em Linguística na
Universidade de Brasília.
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subsídios para qualificação de avaliadores
Diante de tamanha diversidade, é preciso ter consciência da multiplicidade dos códigos
no português brasileiro e da importância da valorização de todos eles, bem como do conse-
quente exercício da cidadania. Nessa perspectiva, considera-se imprescindível que, para avaliar
o domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa no Enem, todos os envolvidos nos
procedimentos operacionais compreendam a concepção de linguagem que norteia o exame,
traduzida como a capacidade humana de articular significados coletivos e compartilhá-los, em
sistemas arbitrários de representação, que variam de acordo com as necessidades e experiências
da vida em sociedade. A principal razão de qualquer ato de linguagem é a produção de sentido.
Além disso, é importante também conhecer os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino
Médio (PCNEM). Ao tratar dos conhecimentos de Língua Portuguesa, os PCNEM afirmam que
Na prática, todos nós, professores de língua portuguesa, de uma forma geral, devemos
saber que o objetivo do ensino da língua é ampliar a competência do estudante para o exer-
cício cada vez mais fluente da fala e da escrita, incluindo-se nessa prática a escuta e a leitura.
As aulas de português são, portanto, aulas de falar, ouvir, ler e escrever textos em uma comple-
xidade gradativa, com atividades que promovam, entre outras habilidades, a compreensão das
relações sintáticas, semânticas e pragmáticas que caracterizam textos orais e escritos estrutu-
rados de forma clara e coerente. Nesse contexto, dada a importância da aprendizagem dessas
habilidades, uma das competências avaliadas na redação do Enem é o domínio da modalidade
escrita formal da língua portuguesa.
Avaliar textos em seus diferentes aspectos não constitui tarefa das mais simples. Diferentes
formações acadêmicas e até mesmo preferências pessoais fazem com que haja diversas concep-
ções e julgamentos por parte do professor de língua portuguesa acerca de língua, de texto, de
níveis de formalidade, de adequação vocabular, de conhecimento linguístico mínimo necessário,
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subsídios para qualificação de avaliadores
entre outros elementos. Há, ainda, outros fatores determinantes nesse processo: o ano de
escolarização dos alunos, os objetivos a serem alcançados em cada etapa, as especificidades
de cada público-alvo. Esses fatores interferem diretamente na forma de trabalhar produção de
texto com os alunos em sala de aula e no modo de avaliar os mais diversos aspectos dos textos
que eles produzem. É possível, entretanto, desenhar alguns cenários que, com algumas adap-
tações, podem corresponder a diversos contextos educacionais e, a partir daí, adotar procedi-
mentos de ensino de língua que, se bem empregados, podem se mostrar bastante profícuos
em diferentes ambientes educacionais.
Neste artigo, deixaremos de lado a avaliação de questões relacionadas ao atendimento
à proposta, à seleção de informações, à articulação de argumentos, entre outros aspectos
relativos ao conteúdo das redações. Essa escolha não está relacionada com o nível de impor-
tância de cada um desses aspectos da redação, e sim com a delimitação do tema que nos
propusemos discutir. Interessa-nos aqui, especificamente, abordar o tratamento de aspectos
gramaticais dos textos dos alunos, assim como sugerir procedimentos gerais de ensino que
auxiliem o trabalho do professor de língua portuguesa em sala de aula e que favoreçam a efe-
tividade da aprendizagem linguística pelo aluno, no que diz respeito aos tópicos aqui levan-
tados. Para tanto, faz-se necessário conhecermos como os PCN+ Ensino Médio compreendem
a gramática e o texto.
Gramática
Texto
Texto é um todo significativo e articulado, verbal ou não verbal. O texto verbal pode assumir
diferentes feições, conforme a abordagem temática, a estrutura composicional, os traços
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subsídios para qualificação de avaliadores
estilísticos do autor – conjunto que constitui o conceito de gênero textual. A partir do
pressuposto de que o texto pode ser uma unidade de ensino, sugere-se abordá-lo a partir
de dois pontos de vista.
Para tanto, pode-se partir do texto literário bem como dos múltiplos textos que circulam
socialmente (BRASIL, 2002, p. 60-61).
26 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
Segundo Antunes (2003, p. 110),
no texto, a relevância dos saberes é de outra ordem. Ela se afirma pela função que esses
saberes têm na determinação dos possíveis sentidos previstos para o texto. Ou seja, quanto
ao pronome, o relevante vai ser identificar as referências feitas, no decorrer do texto, pelas
diferentes formas pronominais e avaliar as conveniências de sua distribuição ao longo do
texto.
Assim, para que se promova o aprendizado efetivo da gramática em sala da aula, Pilati
(2014) defende que três princípios devem ser seguidos: i) levar em consideração o conhecimento
prévio do aluno; ii) promover a aprendizagem ativa e iii) fazer com que o aluno compreenda
os processos envolvidos no âmbito do assunto estudado. O professor, segundo a pesquisa-
dora, deve levar seus alunos a: i) aprender a identificar padrões; ii) desenvolver compreensão
profunda do assunto; iii) saber quando, como e onde usar o conhecimento – conhecimento
circunstanciado; iv) possuir acesso fluente ao conhecimento; v) ter conhecimento do con-
teúdo pedagógico; e vi) aprender com metacognição e para toda a vida.
Os alunos já possuem um vastíssimo conhecimento gramatical, que envolve aspectos
fonológicos, morfossintáticos, pragmáticos, entre outros, mas tal conhecimento é incons-
ciente. E, na interação com os colegas, com a comunidade escolar, com o material didático
e com o professor, o aluno se depara com vários gêneros textuais e, consequentemente,
com várias mídias e linguagens. Nessa interação, quanto maior a diversidade dos gêneros
escritos e orais com os quais o aluno tiver contato, maior sua consciência linguística e,
sobretudo, sua capacidade de selecionar suas leituras. Para formar o próprio gosto literário,
por exemplo, é importante que o aluno não tenha contato somente com textos clássicos cano-
nizados pela crítica. Ainda que não tenha tido contato com variados textos literários escritos,
orais e visuais, ele pode, sim, desenvolver sua habilidade de escrita. Escrever bem, no entanto,
deve traduzir, também, ler bem o mundo. Isso significa que o aluno não desenvolverá autonomia
na leitura (e, consequentemente, na escrita) se não aprender a escolher o que quer ler e se
não tiver consciência do que precisa ler. Para desenvolver escrita autônoma e crítica, a leitura
diversificada e consciente – por parte do professor e do aluno – implica capacidade de escolha,
o que se torna mais difícil com o predomínio de um único gênero na sala de aula.
O professor de língua portuguesa precisa, nesse contexto, ter consciência do tipo
de informação linguística que pretende abordar com seus alunos em cada situação de
fala que trouxer para a sala de aula. Para tanto, é necessária a constante reflexão acerca
dos recursos didáticos que devem ser utilizados em exercícios com estruturas escritas de varie-
dades formais da língua, sempre que forem exigidas pelo contexto. Assim, a consciência linguís-
tica desenvolvida a partir do contato do aluno com a nossa diversidade linguística e cultural e o
domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa são, hoje, habilidades fundamen-
tais à escrita da redação do Enem.
Textos dissertativos-argumentativos: 27
subsídios para qualificação de avaliadores
Referências
ANTUNES, I. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
Leitura de apoio
PILATI, E. et al. Laboratório de ensino de gramática: práticas inovadoras para a sala de aula.
(No prelo).
28 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
notas sobre a avaliação
de desvios de registro
Alzira Neves Sandoval*
Simone Silveira de Alcântara**
Stefania C. M. de R. Zandomênico***
1 Registro
O termo “registro” é usado para se fazer referência aos níveis de formalidade na língua
falada e na língua escrita. Segundo Preti (1994, p. 50), as variações determinadas pelo uso da
língua pelo falante, em situações diferentes, são denominadas registros ou níveis de fala (ou,
ainda, níveis de linguagem).
Em qualquer ato de linguagem, para a escolha do registro, o indivíduo leva em conta,
mesmo que inconscientemente, a situação de produção da fala ou da escrita. Isso quer dizer
que o falante, ao produzir seu texto oral ou escrito, considera, entre outras coisas, o seu inter-
locutor, o ambiente em que se encontra, o assunto de que trata e a intenção do ato de lin-
guagem (persuadir, pedir, ordenar, informar etc.). Nesse sentido, a atenção à seleção vocabular,
* Professora da educação básica da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal e doutora em Linguística pela
Universidade de Brasília (UnB).
** Professora do Colégio Militar de Brasília e doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília.
***Professora da educação básica da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal e doutoranda em Linguística pela
Universidade de Brasília.
Textos dissertativos-argumentativos: 29
subsídios para qualificação de avaliadores
à pronúncia (no caso da fala), à ortografia (no caso da escrita) e à estruturação das sentenças
deve adequar-se aos elementos anteriormente citados. Quanto mais formal for um ato de lin-
guagem, mais atenção deve ser dada à escolha lexical e à sintaxe dos períodos, por exemplo.
Por outro lado, situações informais entre familiares e amigos não requerem planejamento nem
monitoramento quanto ao emprego de vocábulos e à organização das sentenças.
De acordo com Gleason Jr. (apud PRETI, 1994, p. 38),
um único falante, sem se afastar das convenções habituais na sua área, fala de modos
diversos em diferentes situações sociais. São diferentes o vocabulário, as construções e
até as pronúncias utilizadas numa alocução formal e numa conversa familiar.
Tomemos como exemplo o discurso de um jovem que sofre um pequeno acidente de trân-
sito no caminho para o trabalho. Ele usa registros diferentes para informar, via mensagem de
texto, seu chefe e sua mãe sobre o ocorrido. No primeiro caso, usará uma linguagem mais formal, e,
no segundo caso, fará uso de uma linguagem coloquial, uma vez que há mais intimidade na
relação com a mãe do que na relação com o chefe.
Para Preti (1994, p. 38), as variações quanto ao uso da linguagem pelo mesmo falante, em
função das variações de situação, podem ser de duas espécies: registro formal e registro coloquial.
O registro formal é empregado em situações de formalidade, com predomínio de linguagem culta,
comportamento mais refletido e vocabulário selecionado; já o registro coloquial é usado em situa-
ções familiares e em diálogos informais nos quais ocorre maior intimidade entre os falantes, com
predomínio de estruturas e vocabulário da linguagem popular, gírias e expressões obscenas ou
de natureza afetiva. O autor menciona ainda outras subdivisões dos níveis de linguagem, como o
nível coloquial tenso e distenso. No Dicionário de Linguística e Fonética, Crystal (2000, p. 224)
cita também abordagens que distinguem cinco níveis diferentes de registro no uso da língua: frio,
formal, consultativo, casual e íntimo.
Ainda de acordo com Preti, os limites entre o registro formal e o coloquial são indefi-
nidos, por isso é praticamente impossível determinar as fronteiras entre essas gradações, seja
na língua oral, seja na língua escrita.
30 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
Segundo o autor, a variação de uso da linguagem pelo mesmo falante, ou seja, a variação
de registro, poderia também ser chamada de variedade estilística, no sentido de que o usuário
escolhe, de acordo com a situação, um estilo que julga conveniente para transmitir, em deter-
minadas circunstâncias, seu pensamento. Nesse caso, pode-se falar, então, em estilo formal e
em estilo coloquial ou informal.
Para Camacho (1988 apud PRETI, 1994, p. 38):
Textos dissertativos-argumentativos: 31
subsídios para qualificação de avaliadores
2 A escolha de registro na redação do Enem
cabe à escola propiciar que o aluno participe de diversas situações de discurso, na fala ouna
escrita, para que tenha oportunidade de avaliar a adequação das variedades linguísticas
às circunstâncias comunicativas (BRASIL, 2002, p. 76).
Isto é, o papel da escola, no que se refere ao ensino de língua portuguesa, não é apenas
ensinar a língua padrão, mas ampliar a competência linguística dos alunos, sem desconsiderar
o seu conhecimento linguístico e sem que tal norma seja considerada superior às demais varie-
dades linguísticas.
32 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
Nesse sentido, o aluno deve conhecer a norma padrão da língua, a fim de que possa
usá-la quando necessário, adequando-a às variadas situações comunicativas em que ela é exi-
gida. Não se trata de supervalorização de uma modalidade da língua sobre outra, ou seja, da
língua padrão sobre o conhecimento linguístico próprio dos estudantes, mas da adoção de
uma norma que permita a avaliação justa e isonômica dos textos produzidos. Além disso, um
usuário competente da língua não deve conhecer somente o registro formal, mas deve saber
adequar os registros ou níveis de linguagem às diferentes situações comunicativas que vivencia.
Vejamos no quadro 1 alguns exemplos de escolha de registro encontrados em redações
do Enem 2014 que atribuem informalidade ao texto.
(1) Se adultos já ficam facinados imagine uma criança, a propaganda as vezes tende ser abusivas
com preços fora do normal.
(2) “Publicidade infantil”, eis um tema bem interessante. Estes dias estava conversando com
um amigo sobre isso.
(3) Como utilizá essas propaganda sem prejudicá as nossa crianças e o adolescente de forma
bem família e dento da lei.
(4) Comerciais de TV induzem as crianças a solicitarem de seus pais a compra de quase tudo
que elas vem passando ali, sendo brinquedos então, quanto mais novos e modernos melhor.
(5) A revista Super Interessante fez uma matéria mostrando o quanto as pessoas estão con-
sumindo produtos muitas vezes voluvéis que além de prejudicar gradativamente o meio-
-ambiente, estão conturbando a mente e formação das crianças devido as massivas formas
de publicidade infantil.
(6) A partir do momento que a criança nasce, tem já existência de direitos, como todos seres
humano.
(7) Quem sabe daqui uns dias o Brasil tome o exemplo do Canada e da Noruega para acabá
com esse tipo de publicidade.
(8) Prepara a criança para o futuro pra ela se descontágia das divulgações do mundo.
(9) Entretanto os nossos brasileirinhos precisam viver suas vidas sem muita pressão,
para que em um futuro próximo, ele esteja com todo gás para vencer os desafios da vida.
(10) Porém vai da cabeça dos pais saber o que é bom ou não para seus filhos… Mais na minha
opinião não acho que é abuso ou exploração usar crianças em comerciais de TV.
Textos dissertativos-argumentativos: 33
subsídios para qualificação de avaliadores
linguagem utilizada pelos jovens e acarreta informalidade ao texto. Em (4), embora o trecho
tenha sido iniciado com um registro formal, o emprego de “então”, nesse contexto, consiste
em marca de oralidade, atribuindo, assim, informalidade ao período. Em (5), o problema
de registro deve-se ao emprego inadequado da seleção lexical do termo “voluvéis”. Em (6),
novamente, o problema de registro deve-se à seleção vocabular inadequada: “existência de
direitos”. Em (7), a expressão “daqui uns dias”, típica da oralidade, confere informalidade ao
trecho. Em (8), o emprego de vocábulo inexistente na língua revela fragilidade da seleção
vocabular, o que prejudica o estilo formal do texto. Em (9), o emprego da expressão afetiva
“os nossos brasileirinhos” e da gíria “com todo gás” atribui caráter informal ao texto. Em (10),
a expressão “vai da cabeça dos pais” é gíria típica da linguagem dos jovens, o que atribui
informalidade ao trecho. O emprego da expressão “na minha opinião” não chega a acarretar
prejuízo à escolha de registro do participante, uma vez que não é vedado o uso de primeira
pessoa do singular na escrita do texto.
34 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
mesas-redondas e seminários são produtivas para que os alunos percebam que o registro
formal não se vincula necessariamente à língua escrita e que o registro informal não se rela-
ciona necessariamente à língua falada, bem como para que compreendam a adequação ou a
inadequação de determinados registros em diferentes situações de uso da língua.
Convém ressaltar que o professor deve respeitar o conhecimento linguístico dos alunos
e seu modo de se expressar, mesmo que pareçam inadequados diante de determinadas situa-
ções, e retrabalhar os discursos a fim de adaptá-los às respectivas situações. Nesse sentido,
atividades de retextualização são muito apropriadas (BRASIL, 2002, p. 76).
Referências
Leitura de apoio
BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
CASTILHO, A. T. de. Nova gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.
CUNHA, C. Nova gramática do português contemporâneo. 5. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2008.
ILARI, R. A linguística e o ensino da língua portuguesa. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
Textos dissertativos-argumentativos: 35
subsídios para qualificação de avaliadores
POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado de Letras;
Associação de Leitura do Brasil, 2000.
36 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
notas sobre a avaliação
dos desvios gramaticais
e de convenção
da escrita
Alzira Neves Sandoval*
Simone Silveira de Alcântara**
Stefania C. M. de R. Zandomênico***
As regras de convenção da escrita são aquelas que estabelecem a forma correta de grafar
as palavras em um texto. Essas regras correspondem, basicamente, às regras da ortografia,
mas não se restringem a elas. Podemos dizer que as regras de convenção da escrita dizem res-
peito ao emprego correto das letras, dos acentos gráficos (agudo, circunflexo e grave) e das
demais notações léxicas (til, cedilha, hífen e apóstrofo) e de iniciais maiúsculas e minúsculas,
assim como à forma correta de segmentar as palavras.
* Professora da educação básica da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal e doutora em Linguística pela
Universidade de Brasília.
** Professora do Colégio Militar de Brasília e doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília.
***Professora da educação básica da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal e doutoranda em Linguística pela
Universidade de Brasília.
Textos dissertativos-argumentativos: 37
subsídios para qualificação de avaliadores
A maneira correta de empregar as letras e as notações léxicas, em geral, pode ser ates-
tada em uma simples consulta ao dicionário. Já o emprego de iniciais maiúsculas e minúsculas,
além de estar relacionado a nomes comuns e próprios, também depende de outras variáveis,
tais como o início de períodos e títulos e a singularização de certos nomes. A segmentação das
palavras, por sua vez, é feita a partir de processos próprios, predeterminados, que se baseiam
essencialmente na pronúncia das sílabas das palavras.
Vejamos no quadro 1 alguns exemplos de desvios dessa natureza encontrados em reda-
ções do Enem 2014.
38 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
Em (4), há erro na grafia da palavra “fralda” em razão do emprego indevido da letra “u”,
em lugar de “l”, e erro de acentuação em “usa-lás”, em que se acentuou o pronome,
em lugar de se acentuar o verbo. Em (5), grafou-se “facinados”, em vez de “fascinados”.
Além desse erro, há ausência de sinal indicativo de crase na expressão adverbial “às vezes”.
Nesse caso, é importante observar que a necessidade de emprego do acento grave não se
deve à regência de algum nome ou verbo. Trata-se de expressão adverbial com nome femi-
nino, assim como ocorre em “à noite”, “à tarde”, “às pressas”, “à vista”. Em casos assim, o
emprego do acento grave é uma convenção, e não uma exigência sintática. Por essa razão,
sua ausência consiste em desvio de convenção da escrita, e não em desvio gramatical. Em
(6), grafou-se “indenpende” em lugar de “independe”. Em (7), o participante grafou “expec-
tadores” em lugar de “espectadores”. Em (8), há erro na flexão dos verbos “dar” e “prestar”,
que foram grafados sem o “r” final. Ademais, a palavra “importância” foi grafada com “s”, em
vez de “c”, e em “público” falta acento gráfico. Por fim, em (9), empregou-se indevidamente
o hífen na expressão “meio ambiente”.
Todos os desvios apresentados acima consistem em desvios de convenção da escrita e a
ocorrência simultânea de dois ou mais dos desvios apresentados seria suficiente para impedir
a atribuição de nota máxima na Competência I em uma redação do Enem. Passemos agora à
definição e à análise dos desvios gramaticais.
2 Desvios gramaticais
Textos dissertativos-argumentativos: 39
subsídios para qualificação de avaliadores
Quadro 2 – Exemplos de desvios gramaticais extraídos de redações do Enem 2014 (parte 1)
(1) Vale lembrar, que existe uma corrida de empresários para fazer propagandas ainda mais per-
suazivas e com mensagens ocultas que estimulam a criança a buscar incansavelmente o pro-
duto no qual se oferece.
(2) No Brasil a publicidade infantil está em questão pelo fato de não existir leis que proíba a utili-
zação de crianças em comerciais.
(3) Quando não damos a atenção necessária, estamos expondo eles em muitas situações
perigosas.
(4) Se adultos já ficam facinados imagine uma criança, a propaganda as vezes tende ser abusivas,
com preços fora do normal.
(5) Indenpende de como sejam as propagandas relacionadas as crianças, são seus valores, for-
mação e caráter de cada uma que as definem.
Em (1), há emprego indevido de vírgula logo após a forma verbal “vale lembrar”.
A vírgula separa o verbo e seu complemento, o que vai de encontro às regras gramaticais.
Além disso, a expressão “no qual” foi mal-empregada. Em (2), os verbos “existir” e “proibir”
deveriam ter sido flexionados no plural (“existirem” e “proíbam”), uma vez que se referem
ao nome “leis”. Em (3), o emprego do pronome pessoal reto “eles” não condiz com o que
se espera de um texto escrito na modalidade formal da língua, em que os complementos
verbais diretos, quando representados por pronomes pessoais, são representados por pro-
nomes pessoais oblíquos. Observa-se, ainda, problema de regência verbal: o verbo “expor”,
quando transitivo indireto, apresenta complemento introduzido pela preposição “a”, e não
pela preposição “em”. No exemplo (4), a oração adverbial que inicia o período (“Se adultos
já ficam facinados”) deveria ter sido isolada por vírgula, uma vez que está deslocada de
sua posição tradicional e a primeira vírgula foi usada em lugar de um ponto. Ainda nesse
excerto, há erro de regência decorrente da ausência da preposição “a” após o verbo “tender”
(“tende a ser”) e de concordância, já que o adjetivo “abusivas”, que remete a “propaganda”,
deveria ter sido flexionado no singular. Em (5), a ausência do sinal indicativo de crase no
“as” da expressão “relacionadas as crianças” constitui desvio de regência. Diferentemente
do que ocorre no exemplo (5) do quadro 1, aqui o acento tem a função indicar a fusão da
preposição “a” exigida pelo nome “relacionadas” com o artigo “as” diante de “crianças”.
Por essa razão, no contexto apresentado no exemplo (5) do quadro 2, há desvio gramatical,
e não de convenção da escrita.
40 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
Quadro 3 – Exemplos de desvios gramaticais extraídos de redações do Enem 2014 (parte 2)
(1) As crianças desta década, não se comparam com as de dez décadas atrás, onde bebês
levavam trêze dias para abrir os olin-/-hos e por quarenta dias eram obrigados a confinar
dentro de casa. tomavam chá, e não causava nem um mal.
(2) Há pais incentivando os filhos ao mundo do crime, mães a prostituição, e outros criando
cidadões corretos, honestos e verdadeiros.
(3) Em muitos países a “Publicidade Infantil” é proibida parcialmente. Existem muitos fatores
que contribuem para que essa atitude fosse tomada.
(4) Muitas vezes os produtos oferecidos, não estão diretamente ligados as crianças, e sim no
impacto que causariam aos seus expectadores ou consumidores.
Em (1), o pronome “onde” foi indevidamente empregado, uma vez que não faz referência
a um lugar. Ainda nesse exemplo, há problemas de construção em razão do uso de vírgula, sepa-
rando sujeito de predicado, do emprego de “a confinar” em lugar de “a ficar confinados” e da
ausência de expressão que funcione como sujeito do verbo “causava”. Em (2), também se verifica
problema de construção do período, dada a falta de paralelismo na primeira oração (“ao mundo
do crime” — objeto indireto iniciado com artigo definido; “a prostituição” — objeto indireto
iniciado sem artigo definido). Mais uma vez, é importante destacar que o simples emprego do
acento grave no “a” que antecede “prostituição”, que solucionaria o problema da falta de para-
lelismo, consiste em desvio gramatical, e não em desvio de acentuação, isto é, de convenção da
escrita. Ainda em (2), há desvio na forma plural “cidadões”, empregada em lugar de “cidadãos”.
Em (3), há problemas de construção do período: as formas verbais destacadas não estão fle-
xionadas de forma a promover a coerência do trecho. Uma possível maneira de se reescrever
adequadamente o período seria, por exemplo, por meio da substituição da forma verbal “fosse”
por “seja”. Por fim, em (4), há problema de pontuação em virtude da vírgula empregada logo
após “oferecidos”, a qual separa o sujeito e o predicado da oração, e problemas de regência,
decorrentes da ausência de sinal indicativo de crase no “as” da expressão “ligados as crianças”,
e do emprego da preposição “em” no lugar de “a” na contração “no”.
Todos os desvios apresentados nos quadros 2 e 3 são desvios gramaticais e, tal como
se dá relativamente aos desvios de convenção da escrita, a ocorrência simultânea de dois ou
mais dos desvios apresentados seria suficiente para impedir a atribuição de nota máxima na
Competência I em uma redação do Enem. Passemos, agora, à definição e à avaliação dos des-
vios de convenção da escrita e dos desvios gramaticais na redação do Enem.
Textos dissertativos-argumentativos: 41
subsídios para qualificação de avaliadores
3 A avaliação dos desvios de convenção
da escrita e dos desvios gramaticais
na redação do Enem
42 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
4 Sugestão de atividade de revisão textual
e de reescrita1 2
A proposta de atividade apresentada aqui é uma adaptação do que sugerimos em Pilati et al. (no prelo).
1
Textos dissertativos-argumentativos: 43
subsídios para qualificação de avaliadores
Em seguida, deve-se fazer uma nova leitura do texto, período por período, identificando
e destacando todos os verbos presentes. É importante que os alunos trabalhem com cópias
do texto original, pois, assim, poderão riscar o papel à vontade e escrever nele os comentá-
rios que acharem necessários. Folhas adicionais para sugestões de reescrita também devem
estar disponíveis, uma vez que devem fazer parte do processo de revisão de texto propostas
de reformulação de trechos mal estruturados, ambíguos, redundantes, pouco claros etc.
Pode-se, ainda, caso seja possível, realizar a atividade com os alunos em um computador.
Nesse caso, o texto a ser revisado deve ser digitado (também impresso, caso se julgue con-
veniente), e os alunos realizarão a atividade de revisão na própria máquina, digitando e sal-
vando as propostas de alteração que venham a fazer em um documento de um programa
de edição de textos (como o Word). Independentemente do material a ser utilizado (apenas
papel ou papel e computador), é importante que, ao final, os alunos tenham um registro
do texto original e do texto revisado pelo grupo, para que as diferenças entre as produções
fiquem mais explícitas.
A partir da identificação dos verbos presentes no texto, os alunos devem buscar o
sujeito de cada um deles. A identificação do sujeito em cada oração do texto visa a alguns
objetivos fundamentais: i) verificar se os períodos do texto são formados por orações com-
pletas, sem truncamentos sintáticos; ii) avaliar se as orações apresentam sujeito facilmente
identificável, de modo que favoreçam a veiculação das ideias de forma clara e coerente;
iii) constatar se as regras de concordância verbal foram empregadas adequadamente no
texto. Os alunos devem fazer as correções necessárias quanto à concordância e devem assi-
nalar os trechos em que julgam haver problemas de truncamento sintático e falta de clareza.
Para esses desvios, caso os alunos julguem que os problemas são facilmente sanáveis dentro
do próprio período, pode-se redigir uma proposta de reformulação antes que se passe para
a leitura do período seguinte. Caso julguem que o trecho apresenta problemas mais difí-
ceis de resolver e que, para a reformulação, talvez seja preciso alterar outro(s) período(s)
do texto, os alunos podem optar por elaborar uma proposta de reescrita na etapa seguinte,
quando todo o texto for lido novamente, já com as primeiras sugestões de alteração feitas.
Vale lembrar que a consulta aos dicionários e às gramáticas disponíveis deve ser estimulada
pelo professor e que os alunos podem e devem usá-los a qualquer momento da atividade,
quantas vezes sentirem necessidade.
Terminada a etapa de análise dos verbos e de seus respectivos sujeitos em cada oração
do texto, os alunos devem relê-lo destacando os elementos de referenciação e retomada
empregados (pronomes, repetição dos nomes já empregados ou substituição desses por
novos etc.). Essa etapa avança com relação à anterior pelo fato de ser necessário observar
mais atentamente a relação existente entre os períodos do texto. Os alunos deverão avaliar
se os termos nominais das orações foram retomados adequadamente — sem repetições
44 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
desnecessárias, por exemplo — e fazer as alterações que considerarem relevantes. Em seguida,
ou simultaneamente à análise dos elementos de referenciação e retomada (isso dependerá
do nível de domínio de conhecimento gramatical dos alunos), deverão identificar os conec-
tores presentes no texto e avaliar se as circunstâncias que exprimem estão adequadas ao
contexto em que foram empregados. Caso os conectores não tenham sido bem empregados,
os alunos devem apresentar proposta de reestruturação do trecho original. É importante,
também, avaliar se há estruturas sintáticas com regência verbal e nominal inadequada, o
que pode acarretar alteração de sentido.
A última leitura do texto, que deve ser feita de forma mais global (tomando-se o texto
como uma unidade coesa), deve contemplar a análise de todos os sinais de pontuação apre-
sentados, além da verificação da grafia correta e da adequação das palavras. Com relação à
seleção e à adequação vocabular, faz-se necessária a intervenção do professor para a escolha
do registro apropriado ao gênero/tipo textual produzido, a fim de que expressões típicas da
linguagem oral não sejam transpostas para a modalidade escrita formal da língua.
O professor pode e deve auxiliar os alunos durante o processo de revisão dos textos. Esse
procedimento conduzirá os alunos ao longo do trabalho e dará a eles a segurança de que pre-
cisam para, posteriormente, revisarem seus textos por si mesmos. Ao final da atividade com a
turma, é fundamental que todos os alunos tomem conhecimento do trabalho realizado pelos
demais grupos. O professor ou os próprios alunos que fizeram a revisão podem apresentar a
proposta de reformulação para os demais. Isso pode ser combinado em cada turma a partir do
que o professor julgar como mais produtivo em termos didáticos. Caso haja projetor disponível
na escola, o professor pode também realizar essa atividade com a participação de toda a turma
no processo de revisão e de reescrita do texto.
Os aspectos avaliados no roteiro podem variar segundo o nível de conhecimento dos
alunos, aumentando-se o grau de complexidade dos aspectos a serem considerados na revisão
dos textos conforme o professor observar avanço nos alunos. Outro aspecto importante a
ser levado em conta ao se realizar esse tipo de atividade é o tempo. Atividades de revisão
e reescrita demandam muito tempo de aula, bem como bastante atenção e dedicação do
professor, especialmente se as turmas forem numerosas. No entanto, embora trabalhosa,
essa estratégia é extremamente necessária e os ganhos na aprendizagem dos alunos são
enormes, uma vez que eles passam a reconhecer e a fazer uso da riqueza e da flexibilidade
da língua. Sendo assim, convém que a atividade seja feita com certa regularidade, desde o
início do ano letivo, de forma que a importância do processo de revisão de um texto fique
clara para os alunos e que esse procedimento passe a fazer parte da rotina habitual de seu
ato de produção textual como uma prática de desenvolvimento/aperfeiçoamento de suas
habilidades linguísticas.
Textos dissertativos-argumentativos: 45
subsídios para qualificação de avaliadores
Considerações finais
Referência
PILATI, E. et al. Laboratório de ensino de gramática: práticas inovadoras para a sala de aula.
(No prelo).
Leitura de apoio
ALMEIDA, N. M. de. Gramática metódica da língua portuguesa. 46. ed. São Paulo: Saraiva,
2009.
BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
46 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros
Curriculares Nacionais: Ensino Médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília:
MEC/SEMTEC, 2000. Parte II.
CASTILHO, A. T. de. Nova gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.
CHOMSKY, N. Knowledge of language: its nature, origin and use. New York: Praeger, 1986.
______. Linguagem e Mente: pensamentos atuais sobre antigos problemas. Brasília: Editora
UnB, 1998.
COSTA, J.; CABRAL, A. C.; SANTIAGO, A.; VIEGAS, F. Guião de Implementação do Programa
de Português do Ensino Básico. Lisboa: Ministério da Educação; Direção-Geral de Inovação
e de Desenvolvimento Curricular, 2011.
Textos dissertativos-argumentativos: 47
subsídios para qualificação de avaliadores
desenvolvimento
do tema e limites
estruturais do texto
dissertativo-
argumentativo
gênero e tipo de texto
Lucília Helena do Carmo Garcez*
* Professora aposentada da Universidade de Brasília e doutora em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Textos dissertativos-argumentativos: 51
subsídios para qualificação de avaliadores
• Qual o objetivo do texto?
• Quem serão os leitores?
• Como será estruturado?
• Quais as informações que vão compor o texto?
• contar acontecimentos (narrar); por exemplo: Ontem eu fui ao teatro e assisti à peça;
• apresentar uma reflexão teórica sobre o fato (dissertar); por exemplo: Ir ao teatro e
viver a experiência estética proporcionada pela peça;
• convencer o seu leitor de seu ponto de vista (argumentar e persuadir); por exemplo:
É imperdível o espetáculo apresentado pelo grupo de teatro;
• apresentar um resumo da peça (descrever); por exemplo: Há dois personagens no
palco. O cenário é uma sala de estar de uma casa de aristocratas. Há objetos de valor
e o ambiente é luxuoso. O diálogo é cheio de agressividade.
52 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
maneiras de começar uma palestra, as diversas possibilidades de participação em uma conversa,
a melhor maneira de contar uma anedota, como relatar um acontecimento…
Ao utilizar um gênero numa comunicação verbal oral ou escrita, empregamos tipologias
variadas de texto. Um gênero é composto por sequências tipológicas diversas, havendo, geral-
mente, um tipo de texto predominante. Enquanto os gêneros são infinitos, os tipos textuais
constituem uma lista restrita. Assim, em um romance encontramos prioritariamente sequên-
cias narrativas, mas há também sequências descritivas, dialógicas, dissertativas, expositivas e
argumentativas que se sucedem e se entrelaçam compondo o enredo. Podem mesmo ocorrer
sequências injuntivas, como é o caso de Machado de Assis, em Dom Casmurro, que se dirige
ao leitor orientando o percurso da leitura:
exemplo 1
Sim, leitora castíssima, como diria o meu finado José Dias, podeis ler o capítulo até ao fim, sem
susto nem vexame.
(ASSIS, 1971, p. 869)
exemplo 2
A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para
a valsa de hoje, quer fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos um abismo. Não faça isso, querida;
eu mudo de rumo.
(ASSIS, 1971, p. 925)
exemplo 3
Ontem eu fui ao teatro e assisti a uma peça de Nelson Rodrigues. Os atores se apresentaram de
forma magnífica.
Textos dissertativos-argumentativos: 53
subsídios para qualificação de avaliadores
exemplo 4
O jogador passa pela esquerda. O artilheiro chuta na direção do gol. O goleiro abraça a bola.
exemplo 5
O cenário é deslumbrante. Há luxuosos objetos que revelam a época em que se situa a trama.
A sala de estar se compõe de móveis de estilo. Há muitas flores.
O cenário era deslumbrante. Havia luxuosos objetos que revelavam a época em que se situava
a trama. A sala de estar se compunha de móveis de estilo. Havia muitas flores.
exemplo 6
As peças de Nelson Rodrigues tratam de denunciar toda a hipocrisia que paira sobre uma socie-
dade vítima da repressão sexual. É o seu teatro que abre as portas para a modernidade na drama-
turgia brasileira.
exemplo 7
É impossível desconhecer que Nelson Rodrigues é o maior dramaturgo brasileiro de todos os tempos.
Foi revolucionário, renovador e ousado em relação ao teatro tradicional. Suas dezessete peças são
sucessivamente reeditadas. Sua obra é frequentemente encenada na atualidade. Seus textos são
os mais estudados nos cursos de Letras.
54 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
O tipo textual injuntivo está centrado no leitor ou no ouvinte. É composto de verbos
no imperativo ou outras formas que incitam à ação, como: é necessário, deve-se, é preciso.
É predominante em textos didáticos, manuais, guias, receitas e outros gêneros que transmitem
instruções de como realizar alguma ação.
exemplo 8
Para chegar ao teatro João Caetano, pegue o metrô até a Estação Carioca, siga pela Rua da Carioca
até a Praça Tiradentes.
Esses tipos textuais são utilizados combinados, entrelaçados e organizados para compor
cada um dos gêneros. Geralmente há um tipo textual predominante que contribui para permitir
que o texto seja classificado como exemplar de um determinado gênero.
Para produzir cada tipo de texto e cada gênero, algumas habilidades específicas de lin-
guagem são necessárias, e muitas delas se desenvolvem durante o período de escolarização por
meio de atividades de leitura, de análise e de produção de textos.
Como já vimos, a lista de gêneros é aberta e pode ser infinita. Observe o quadro abaixo,
em que estão listados alguns dos gêneros mais conhecidos.
(continua)
Situações
Habilidades
discursivas Tipo textual
de linguagem Gêneros orais ou escritos
ou domínio predominante
dominantes
discursivo
Elaboração da
Expressão linguagem como
Literatura poética poética forma de expressão Poesia, letra de música.
Verso da interpretação
pessoal do mundo.
Textos dissertativos-argumentativos: 55
subsídios para qualificação de avaliadores
(continuação)
Situações
Habilidades
discursivas Tipo textual
de linguagem Gêneros orais ou escritos
ou domínio predominante
dominantes
discursivo
Contratos, declarações,
Registro e
Estabelecimento, documentos de registro
Exposição apresentação
construção e pessoal, atestados, certidões,
textual de fatos
transmissão de Injunção estatutos, regimentos,
e saberes da
realidades códigos, diplomas,
realidade.
certificados.
56 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
(conclusão)
Situações
Habilidades
discursivas Tipo textual
de linguagem Gêneros orais ou escritos
ou domínio predominante
dominantes
discursivo
Existem muitos
outros domínios Há muitos gêneros específicos
mais específicos, de cada um dos diversos
como o religioso, o domínios discursivos, como
Domínio de
do serviço público sermão, oração, ofício,
Vários tipos estruturas e
e da comunicação requerimento, discurso
textuais de formatos
oficial, o jurídico, o político, projeto de lei,
específicos.
político, o esportivo, narrativa esportiva, editorial,
o jornalístico, o anúncio classificado, redação
escolar, entre escolar.
outros
Textos dissertativos-argumentativos: 57
subsídios para qualificação de avaliadores
mais importantes que circulam nas práticas sociais. É muito importante esclarecer qual é o
seu objetivo, qual o seu funcionamento pragmático, em que prática comunicativa ocorre, quais
são as suas características essenciais, de quais sequências é formado, quais as habilidades de
linguagem que exige.
Referências
ASSIS, M. de. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1971. v.1.
DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. Gêneros e progressão em expressão oral e escrita. In: ______.
Gêneros Orais e Escritos na Escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004.
58 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
o texto dissertativo-
argumentativo
Maria Luiza Coroa*
1 Língua e linguagem
Textos dissertativos-argumentativos: 59
subsídios para qualificação de avaliadores
que servem, e reflexões a respeito de como esses conceitos devem ser considerados nesse
processo de construção do conhecimento requerem a explicitação do ponto de vista teórico
que fundamenta esse entendimento.
Desde a década final do século XX, documentos norteadores da educação no Brasil dire-
cionam esse ponto de vista para um referencial teórico que extrapola o código como objeto do
trabalho didático-pedagógico. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), as dire-
trizes curriculares, os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM) e outros
documentos afins trazem objetos linguísticos – sobre os quais produzimos o conhecimento a
respeito da língua e da linguagem – vinculados à língua não apenas como representação, mas
sobretudo como uma “atividade interativa de natureza sociocognitiva” (MARCUSCHI, 2002a).
Marcuschi esclarece bem como devemos entender a distinção entre língua e linguagem nessa
perspectiva de interação humana.
De acordo com esse ponto de vista, a língua que realiza a nossa capacidade de linguagem
tem íntimas vinculações com nossas práticas sociais e com os papéis que ocupamos na socie-
dade. Falar de língua portuguesa, no nosso caso, é mais do que falar de código linguístico, de
estruturas gramaticais, de palavras; falar de língua é falar de atos significativos que ocorrem
socialmente e que têm raízes históricas porque há sempre uma razão para que uma estrutura
sintática se organize de uma maneira, e não de outra, para que uma palavra tenha tal pronúncia
ou tal grafia, e não outra. Portanto, estruturas gramaticais e palavras são situadas em práticas
interativas de linguagem – e por elas moldadas e configuradas significativamente em seus usos
sociais e culturais. Refletir sobre os modos em que a língua realiza atos significativos coloca o
texto como unidade central de qualquer trabalho pedagógico.
60 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
2 Texto
Embora haja hoje uma grande variedade de definições para texto,1 pois cada corrente
teórica propõe sua própria concepção, existe uma característica que todas essas correntes
apresentam em comum: um texto é uma unidade significativa. Isto quer dizer que a função,
a conceituação ou a definição de texto está ligada a fazer sentido. Assim se reconhece que
as “partes” de um texto se articulam de tal maneira que os sentidos são construídos global-
mente, solidariamente em um determinado contexto sociocomunicativo. Trata-se, pois, não
de uma mera “soma” de signos, mas de uma arquitetura construída em “camadas” e hierar-
quias de significações.
Associando uma perspectiva teórica vinda da pragmática a uma perspectiva cognitiva,
entende-se hoje que um texto, longe de ser um produto acabado, constitui-se em uma uni-
dade complexa que realiza atividades, ou ações, comunicativas, ou interativas, por meio do
processamento de modelos histórico e culturalmente determinados. Consequentemente, visto
como atividade interacional entre sujeitos sociais, realizado para determinados fins, um texto
não traz todas as significações fechadas e fixas: seus sentidos são construídos na interlocução.
Contudo, isso não se dá arbitrariamente, produzindo qualquer significação, mas a partir de
marcas, ou pistas textuais, que o sujeito produtor do texto vai fornecendo de maneira que o
sujeito leitor vá reconhecendo e interpretando, em um processo de avanço e recuo, buscando
coerência nas significações. Nessa interpretação, a coerência pode ser considerada a possibi-
lidade de atribuir uma continuidade de sentidos a um texto. Estabelece-se na interlocução e
depende de uma multiplicidade de fatores que não estão apenas e exclusivamente no texto,
pois o conhecimento de mundo e as experiências prévias das pessoas que o interpretam são
alguns desses fatores (COROA, 2008b, p. 74).
Nesse contexto, os interlocutores se constituem como sujeitos participantes da com-
plexidade de significações. Por isso, algumas associações de significados, de modos de dizer,
podem ser pertinentes em um texto, mas em outros textos, não. Cabe ao produtor inicial do
texto propor as significações que, no correspondente contexto sociocomunicativo, o leitor
tece, como sentidos globais do texto, na sua leitura. Os modos de dizer e as escolhas lexicais
e gramaticais seguem parâmetros convencionados como adequados, legítimos ou certos
relativamente ao contexto em que o texto é produzido – tanto na fase da leitura como na
da elaboração.
Ou seja, na leitura, os sentidos de um texto são produzidos pelo leitor como se ele
seguisse um “mapa”: a cada marca ou pista, ele avança, recua ou reorienta seu caminho.
Nessa abordagem, os sentidos de um texto são construídos também pela multiplicidade de
Falamos aqui de textos linguísticos, embora consideremos que qualquer sistema de símbolos – ou sistema semiótico – possa
1
Textos dissertativos-argumentativos: 61
subsídios para qualificação de avaliadores
experiências de mundo tanto do autor quanto do leitor. Visando a uma (re)construção de sen-
tidos coerente, o produtor do texto deve, assim, considerar o conhecimento de mundo que
seu leitor precisa ter para chegar à interpretação, ou leitura, desejada.
Quanto maior for a informação do leitor a respeito do tema, maior sua prontidão para
interpretar a continuidade de sentidos, a coerência textual. A harmonia entre as informações
que servem de pistas para estabelecer essa continuidade constitui a coerência textual. Portanto,
diferentes leitores, com diferentes informações prévias, com diferentes visões de mundo, podem
atribuir níveis de coerência diferentes ao mesmo texto (COROA, 2008a, p. 82).
Nessa abordagem, o controle das informações necessárias para que o assunto do texto
seja apreendido e interpretado integra a habilidade de produzir um texto: o que dizer, como
dizer e para que dizer são aspectos associados na tessitura textual.
Se compararmos a elaboração e a leitura de um texto a um percurso em que se vão dei-
xando e reconhecendo “pistas”, para construir coerentemente os sentidos permitidos pelo texto,
é na sistematização dessas “pistas” que se desenvolve o processo de ensino e aprendizagem
de um texto. É, consequentemente, sobre essa sistematização que uma avaliação adequada
deve ser desenvolvida.
É importante lembrar que, ao se organizar num todo significativo, ou em uma unidade
de sentidos, o texto “dialoga” externamente com a sua situação de produção, mas se apoia,
internamente, em relações que se dão entre estruturas linguísticas. Essas duas dimensões
textuais – a vinculação com a “face externa”, social e cultural da interação linguística, e a vin-
culação com a “face interna”, de estruturação gramatical, semântica e lexical – conduzem-nos
a outros dois conceitos relevantes para a sistematização da análise e do estudo de texto: os
gêneros textuais, que se classificam segundo a “face externa”, e os tipos textuais, que se clas-
sificam segundo a “face interna”.
3 Gêneros textuais
62 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
Nessa perspectiva da variação dos textos em razão dos contextos em que circulam, a lin-
guística, sobretudo aquela de orientação pragmática, tem proposto e desenvolvido a categoria
discursiva de gêneros textuais, na pretensão de caracterizar as especificidades das manifesta-
ções culturais concernentes ao uso da língua e de facilitar o tratamento cognitivo desse uso,
seja oral, seja escrito (ANTUNES, 2009, p. 210).
A base da classificação de gêneros textuais está, portanto, na conformidade ao contexto
sociocomunicativo: é nas práticas sociais e discursivas que uma cadeia de enunciados (sen-
tenças ou palavras) constitui ou não um texto. É situada em suas condições de produção que
uma sequência de palavras articula sentidos. Tudo porque os textos são formatados segundo
as necessidades de seus objetivos e das relações sociais entre seus interlocutores.
Consequentemente, diferentes gêneros vão sendo formatados de maneiras diferentes ao
longo das práticas discursivas. Uns apresentam seções ou partes bem distintas, como a receita
culinária, por exemplo, que se divide em “ingredientes” e “modo de fazer”, ou as cartas que
começam com local, data e vocativo, e assim por diante. Esses formatos são histórica e cultu-
ralmente construídos e, por isso, apesar de relativamente estáveis,2 também sofrem mudanças.
São as comunidades e sociedades que, ao longo do tempo, vão definindo como deve ser orga-
nizado um texto.
Assim reconhecemos que, na produção de um texto, oral ou escrito, o nível de linguagem,
as características da situação, a relação social entre os interlocutores e as finalidades das ati-
vidades desenvolvidas interferem na sua textualidade. Por isso, precisamos levar em conside-
ração todos esses elementos como parte integrante das escolhas linguísticas que fazemos ao
construir um texto. Ou seja: não apenas escolhemos as palavras e as frases para compor um
texto, como também seguimos o gênero em que vamos realizar esse texto. Esses condicio-
nantes, que situam o texto em sua circulação sociocultural e que são tradicionalmente tratados
como elementos “externos”, acabam por se integrar de modo indissociável aos elementos
linguísticos, tradicionalmente considerados internos. É nessa integração que os sentidos são
produzidos: sem que os chamados aspectos “formais” sejam independentes dos chamados
aspectos de “conteúdo”.
Apenas para efeitos de análise e sistematização, a classificação dos textos quanto a
aspectos que os situam socialmente varia de acordo com as culturas e com as épocas histó-
ricas. Trata-se, portanto, de uma classificação aberta. Não se pode dizer, por exemplo, que há
vinte ou duzentos ou 2 mil gêneros diferentes em língua portuguesa no Brasil, pois esse número
é flutuante, de acordo com as necessidades de interação da sociedade. Novos gêneros vão
resultando de novas situações de interação: quem, há vinte anos, por exemplo, conhecia um
blog, ou um chat? Ou, há setenta, conhecia um telejornal? É frequente que, para finalidades
Bakhtin (2000) define gêneros – a que chama “discursivos” – como estruturas relativamente estáveis que se constroem histórica
2
e culturalmente; por isso, culturas diferentes e épocas diferentes decidem o que é um texto adequado, ou não adequado, à sua
situação de produção/leitura.
Textos dissertativos-argumentativos: 63
subsídios para qualificação de avaliadores
semelhantes, encontremos uma variedade de gêneros que atendam a pequenas alterações na
relação entre os interlocutores, como um bilhete e uma carta comercial, ou no desenvolvimento
da tecnologia, como uma carta e um telefonema, e assim por diante.
Nessa perspectiva teórica de classificação de gêneros textuais, não deixa de ser rele-
vante também a compreensão e explicação dos modos de funcionamento da linguagem em
cada “formato” socioculturalmente constituído. As noções de certo e errado, no uso da língua,
estão, dessa maneira, associadas ao gênero textual. A cada gênero diferente corresponde um
nível de formalidade diferente: alguns gêneros admitem abreviaturas, por exemplo, outros
exigem tratamento formal do interlocutor; alguns permitem gírias, outros admitem a cons-
trução de sentidos apenas sobre usos já culturalmente legitimados pela norma de prestígio.
De outra forma, alguns gêneros exigem usos menos formais de linguagem, seja para manter
a proximidade entre os interlocutores, seja para realizar outra estratégia de eficácia textual.
A língua como código imbrica-se, assim, em exigências dos gêneros textuais que a cristalizam
em variedades adequadas.
Já que a língua é a matéria-prima do texto, as estruturas linguísticas utilizadas em sua
superfície composicional3 – a tradicionalmente chamada “face interna” do texto – são a base
de classificação dos tipos textuais.
4 Tipos textuais
Enquanto os gêneros textuais são muito diversificados, porque atendem à grande varie-
dade de situações sociocomunicativas, os tipos textuais são definidos por critérios linguísticos
e classificados em um número restrito. No entanto, as duas classificações estão interligadas
na própria produção de sentidos do texto.
O fato de cada tipo de texto ser caracterizado pela predominância de determinadas
marcas linguísticas de superfície (por exemplo, o emprego de certos tempos verbais: o imper-
feito, para o tipo descritivo; o imperativo para o tipo instrutivo; o perfeito para o tipo narra-
tivo etc.) não deixa de ter suas raízes mais remotas em aspectos de sua dimensão contextual
(ANTUNES, 2009, p. 209-210).
Tomemos dois pequenos fragmentos como exemplos para substanciar a reflexão a res-
peito dos modos de organização textual.
O termo “superfície composicional” é utilizado por Marcuschi (2002b) em seu artigo fundante sobre gêneros textuais.
3
64 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
exemplo 1
No endereço dos Beauregard encontro uma casa de janelas fechadas, sem sinal de vida. É uma cons-
trução modesta, quase colada aos seus dois vizinhos, num renque de sobrados trigêmeos que só
pelas cores se distinguem entre si. O deles é ocre com venezianas verdes de madeira, sendo central
a janela do segundo andar, e a do rés do chão deslocada para a esquerda em simetria com a porta.
(BUARQUE, 2014, p. 82)
exemplo 2
Pouco antes daquela data, numa esquina a cem metros da minha escola vi grupos descendo dos
bairros elegantes rumo ao centro da cidade. Resolvi acompanhá-los por desenfado, já que, depois
de uma palestra no centro acadêmico sobre o embargo a Cuba, tinha assistido duas horas de aula
de alemão e a de literatura francesa eu podia dispensar por adiantado na disciplina.
(BUARQUE, 2014, p. 47-48)
Reconhecemos com facilidade que o exemplo (1) realiza uma descrição e o exemplo (2),
uma narração. São formas de organizar textualmente os sentidos com as quais estamos fami-
liarizados nas nossas práticas de leitura (e de ensino).
Ao observar o uso dos verbos nos dois fragmentos, percebemos que no primeiro denotam
mais estaticidade. No segundo, os verbos conferem maior movimento aos acontecimentos.
Relações de temporalidade são mais relevantes no segundo fragmento, na narração. Na descrição,
é a espacialidade que predomina sobre a temporalidade: são comuns as expressões que indicam
lugares e características, como “No endereço” e “É uma construção modesta”. No exemplo (2) há
várias expressões que põem em sequência os acontecimentos: “já que, depois de uma palestra”
e “resolvi acompanhá-los”. Ao mencionar um acontecimento depois de outro que tinha ocorrido,
o tempo verbal fornece essa pista: “tinha assistido”.
A análise de outros exemplos de descrição e de narração nos mostraria que na descrição
há predominância de expressões nominais, como substantivos, adjetivos e verbos nas formas
nominais (particípio, infinitivo e gerúndio). Na narração, há predominância de períodos com-
postos, com exploração de vários tempos e locuções verbais, além de advérbios e conjunções
que permitem recuperar a sequência de eventos no texto.
Em princípio, as “imagens” descritas no primeiro fragmento poderiam ser apresentadas
em outra ordem, sem que a organização da textualidade fosse prejudicada. Isso se dá porque,
na descrição, características e propriedades, em uma abordagem estática, se sobrepõem à
mudança dos acontecimentos no tempo.
O tipo descritivo caracteriza-se, assim, por apresentar “pistas” que levam a construir ima-
gens mentais de um objeto a partir de um ponto de vista. Por isso, o tipo descritivo é comumente
Textos dissertativos-argumentativos: 65
subsídios para qualificação de avaliadores
associado à dimensão espacial, como se o olhar do leitor fosse conduzido, linguisticamente,
para um passeio por determinados lugares ou para a observação de coisas e pessoas.
Por outro lado, no segundo fragmento, há um marco temporal inicial depois do qual se
desenvolve a narração. O texto caminha com a mudança de eventos e de ações. A situação de
início vai sendo modificada e, ao final, já é outra. Por sua forte vinculação com as mudanças no
tempo, ao mostrar ações, é que o tipo narrativo costuma apresentar mais frequentemente o uso
do pretérito perfeito, pois é esse tempo verbal que melhor marca a mudança nos acontecimentos.
Vejamos outro exemplo para ilustrar um terceiro tipo textual.
exemplo 3
1.3 BATERIA
Antes de utilizar o telefone, carregue a bateria por 3 horas e trinta minutos até que ela atinja a
carga total.
Mantenha a bateria carregada enquanto não estiver usando o telefone, deste modo o aproveita-
mento dos tempos de conversação e espera serão maiores.
1.3.1 INSTALANDO A BATERIA
Para instalar a bateria, insira a parte inferior dela na abertura existente na parte traseira do tele-
fone. Empurre então a parte superior de encontro ao aparelho até ouvir a trava de segurança
encaixar-se na bateria.
(Trecho do Manual do Usuário de um telefone celular)
66 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
Essa mescla de tipos textuais em um mesmo texto, para realizar um determinado gênero
textual, ressalta que a organização dos sentidos recorre a vários tipos em um mesmo texto.
Ou seja: cada texto costuma apresentar mais de um tipo textual. Por isso, fala-se em sequên-
cias de tipos constituindo a textualidade. A classificação se dá, então, pela predominância de
cada tipo. Até mesmo gêneros textuais que obedecem a regras mais rígidas de estruturação,
como os manuais de instruções ou bulas de remédios, admitem a variedade de tipos na sua
organização. No fragmento, por exemplo, encontramos uma explicação que argumenta sobre o
carregamento da bateria: “deste modo o aproveitamento dos tempos de conversação e espera
serão maiores.” A explicitação ou a fundamentação de afirmações caracterizam outro tipo tex-
tual: o argumentativo. Sobre as características do tipo argumentativo versa a seção seguinte.
5 O tipo dissertativo-argumentativo
Textos dissertativos-argumentativos: 67
subsídios para qualificação de avaliadores
Vejamos um exemplo do tipo expositivo.
exemplo 4
A forma temporária como tratam os vídeos criados reflete outro aspecto característico desses apps.
Em oposição à noção de que tudo o que é postado na internet fica registrado para a eternidade
(e tem potencial de se transformar em viral), os aplicativos querem passar a sensação de efêmero.
Quem não viu a transmissão ao vivo dificilmente terá nova chance. Nisso, eles se assemelham a
outro app de sucesso, o Snapchat, serviço de troca de mensagens pelo qual o conteúdo é destruído
segundos após ser recebido pelo destinatário.
(VEJA, 2015, p. 98)
exemplo 5
Fazer pesquisa crítica envolve difíceis decisões de cunho ético e político a fim de que, não importa
quais sejam os resultados de nossos estudos, nosso compromisso com os sujeitos pesquisados
seja mantido. A questão é complexa por causa das múltiplas realidades dos múltiplos partici-
pantes envolvidos na pesquisa naturalística da visa social. Por exemplo, no projeto de pesquisa
de referência neste artigo, havia um componente que envolvia a observação participante da sala
de aula, isto é, a observação à procura das unidades e elementos significativos para os próprios
participantes da situação.
(KLEIMAN, 2001, p. 49)
68 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
entre estados de coisas, propriedades e fenômenos do que entre sequenciação de aconteci-
mentos. A dimensão de temporalidade apenas se torna relevante se, inserida no tipo expositivo,
a sequência narrativa de algum evento é tomada como propriedade do fenômeno a ser exposto.
No entanto, apesar de se aproximar da descrição em uma visão do referente desvinculada de
características temporais, a exposição tem como tema ideias, conceitos ou fenômenos, dife-
rentemente da descrição, que tem como tema coisas, pessoas ou situações.
Como, nas nossas práticas sociais e culturais, o tipo expositivo é o mais indicado para
informar ou para explicar relações entre processos ou acontecimentos, gêneros textuais que
têm a finalidade de informar ou explicar são os que mais nele se realizam. Por isso, é um tipo
muito comum nas práticas pedagógicas, seja na oralidade (em aulas), seja na escrita (nos
livros didáticos).
Em contraste com o exemplo do tipo expositivo, o fragmento exemplificador do tipo argu-
mentativo é organizado no encadeamento de relações lógicas. Tem claramente o objetivo de dar
a conhecer alguma coisa ao leitor – informá-lo ou ensiná-lo –, como também pretende o tipo
expositivo, mas o tipo argumentativo busca mais: visa convencer o leitor sobre a verdade dos
sentidos que constrói. Por causa desse objetivo, neste tipo – em contraste com o expositivo –,
a articulação lógica entre as ideias usadas para a atribuição de qualidades, ou para a expressão
de opinião, é fundamental. Nele, os fenômenos, conceitos ou ideias são chamados de tese e
argumentos. E uma tese sustenta-se como verdadeira quando apoiada em argumentos que
permitem uma continuidade de sentidos que não admitem contestação válida. Por outro lado,
se a tese não for admitida, aceita como plausível, os argumentos tornam-se vazios ou inócuos.
Por articular os sentidos em uma rede de ações linguísticas de convencimento, é o tipo que
predomina em textos que têm como objetivo provocar o leitor para um posicionamento a res-
peito de algum ponto de vista – como em editoriais de jornais e revistas – e, principalmente,
em textos publicitários que pretendem “vender” uma ideia, serviço ou produto.
Por causa da necessidade de uma forte ligação entre a ideia selecionada para ser (com)
provada e as razões para (com)prová-la, o tipo argumentativo recorre com muita frequência às
relações lógicas para demonstrar a verdade daquilo que diz, como as de causa e consequência
e as de condição. Comumente tais relações são expressas por conectivos de finalidade, de
causa, de justificativa, como em “por causa das múltiplas realidades” ou em “a fim de que, não
importa quais sejam os resultados de nossos estudos, nosso compromisso”. Mas também a
seleção lexical, como “complexa”, “múltiplas realidades”, “elementos significativos”, deve estar
a serviço do objetivo da argumentação.
Outra estratégia textual muito produtiva na argumentação é o uso de exemplos e ilus-
trações de casos particulares para mostrar a generalização, como no trecho que parte de
“Por exemplo, no projeto de pesquisa de referência neste artigo, havia um componente […]”.
Neste caso, é muito recorrente que exemplos se desenvolvam com predominância do tipo des-
critivo e do tipo narrativo (quando não do expositivo).
Textos dissertativos-argumentativos: 69
subsídios para qualificação de avaliadores
Da mesma forma que os demais tipos textuais aparecem imbricados na realização de cada
texto, o tipo argumentativo se vale, especialmente, da contribuição dos demais tipos textuais
para se organizar composicionalmente. O elemento norteador (e critério maior de classificação)
encontra-se nos sentidos globais do texto. Esses sentidos, por sua vez, inter-relacionam-se com
a veiculação social do texto, o gênero textual.
Quando o tipo argumentativo é o eixo de construção textual de um gênero, a continui-
dade de sentidos requer “pistas textuais” que concatenem os argumentos de maneira clara
e inequívoca, sob pena de comprometer a coerência do texto como um todo. Por isso, para
que seja possível um desenvolvimento coerente da argumentação, é necessário que a escolha
do ponto de partida seja respeitada ao longo da tessitura textual. As relações lógicas de argu-
mentação têm compromisso não apenas com a retomada da ideia que foi introduzida como
tese: também a inserção de novos referentes deve ser motivada. Referentes que apenas “se
juntam” ao texto, sem assumir funções relevantes na argumentação, criam o risco de apontar
para outras direções argumentativas e fraturar a coerência necessária à comprovação da tese.
A negação de possíveis – ou hipotéticas – contestações revela-se uma produtiva estra-
tégia argumentativa se empregada solidariamente com a afirmação das comprovações. Nem
só pela via da afirmação, como nem só pela via negação, se constrói uma argumentação eficaz.
O controle das informações, originadas no campo do autor e lançadas em forma de marcas
de produção de sentidos para o leitor, é o compromisso que a tese assume em um texto
dissertativo-argumentativo.
Considerações finais
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subsídios para qualificação de avaliadores
(narrativo) etc. Do ponto de vista do aluno que interpreta tais orientações à luz do referencial
dos tipos textuais, as características das “pistas” a serem produzidas são atualizadas em situa-
ções concretas. Do ponto de vista do avaliador, os elementos caracterizados do texto, dos tipos
e dos gêneros são organizados em critérios de avaliação.
Referências
ANTUNES, I. Língua, texto e ensino – outra escola possível. São Paulo: Parábola, 2009.
MARCUSCHI, L. A. Oralidade e ensino de língua: uma questão pouco “falada”. In: DIONÍSIO,
A. P.; BEZERRA, M. A. (Orgs.). O livro didático de português. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002a.
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subsídios para qualificação de avaliadores
redação escolar: um
gênero textual?
Maria da Graça Costa Val*
Para responder à pergunta que dá título a este texto, apresento, de início, uma compilação
de ideias hoje bastante divulgadas sobre o conceito de gênero textual, privilegiando aspectos
relevantes para a reflexão que pretendo construir. Em seguida, seleciono alguns pontos dessa
retomada teórica para caracterizar o que estou chamando de redação escolar.
1 Gêneros textuais
1
Os gêneros textuais vão-se constituindo no uso coletivo da linguagem – oral e escrita.
Os membros de uma sociedade vão estabelecendo, no correr de sua história, modos específicos
de se dirigirem a determinado público para alcançarem determinados objetivos, cumprindo
determinadas funções. Em outras palavras, as práticas sociais de linguagem vão estabelecendo
modelos textuais para serem usados em determinadas situações, numa esfera específica de
atividade humana.
Luiz Antônio Marcuschi (2002, p. 19) considera os gêneros textuais como práticas sócio-
-históricas cuja funcionalidade prevalece sobre a forma. Segundo o autor, os gêneros “são fenô-
menos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social”, que “contribuem para
ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia a dia”; “são entidades sociodiscursivas
e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa”.
* Professora da Universidade Federal de Minas Gerais e doutora em Educação pela mesma instituição.
1
Não vou considerar neste artigo a distinção terminológica entre gênero de texto e gênero de discurso.
Textos dissertativos-argumentativos: 73
subsídios para qualificação de avaliadores
A ideia de que os gêneros organizam nossa vida social e tipificam nossas ações é a base
da teoria de Charles Bazerman (apud DIONÍSIO; HOFFNAGEL, 2005). Para o autor, eles definem
padrões para as ações de linguagem orais e escritas que realizamos nos diferentes contextos
sociais: na convivência cotidiana com a família e amigos, no trabalho, na igreja, na escola etc.
De fato, as instituições que frequentamos estabelecem modelos de comunicação orais e escritos
que realizam certas ações recorrentes em determinadas circunstâncias. Alguns modelos nos
permitem pouca ou nenhuma inovação, como o gênero cheque, que circula nas relações bancá-
rias e comerciais, ou o gênero formulário de pedido de férias, usado nas empresas e nos órgãos
públicos. Outros gêneros institucionais, como a aula, a conversa com o gerente ou a carta de
demissão, são mais abertos à criatividade e ao estilo pessoal do produtor, mas, de qualquer
forma, têm padrões formais e funcionais a serem observados. No entanto, “os gêneros tipificam
muitas coisas além da forma textual; são parte do modo como os seres humanos dão forma às
atividades sociais” (BAZERMAN apud DIONÍSIO; HOFFNAGEL, 2005, p. 31).
Nosso conhecimento e reconhecimento dos gêneros e de seu funcionamento institu-
cional é que nos possibilita, por exemplo, decidir como devemos comunicar alguma coisa a
nosso chefe, no trabalho. Conversa pessoal, telefonema, memorando, e-mail ou bilhetinho –
a escolha de um desses gêneros vai depender das rotinas usuais na empresa, das relações do
funcionário com o chefe, da importância ou gravidade das informações. E, em determinadas
situações, há riscos a correr, consequências a assumir, quando se decide não seguir os padrões.
Para Bazerman, a padronização das ações de linguagem é que explica o sentido que
atribuímos a determinados documentos e a submissão sem questionamento que assumimos
diante de certos formulários ou procedimentos. Por exemplo: por que aceitamos assinar ponto,
quando todos sabem que estamos presentes no local de trabalho e que realizamos nossas
tarefas normalmente? Essa ação de linguagem padronizada, embora possa parecer sem sentido,
é um dos elementos que organizam nossa vida social. Ou seja, o gênero ponto é um elemento
de organização coletiva nas instituições de trabalho.
Interpretando Bakhtin, Faraco, citado por Marcuschi (2005, p. 23), afirma que gêneros
do discurso e atividades são mutuamente constitutivos.
O pressuposto básico da elaboração de Bakhtin é que o agir humano não se dá inde-
pendentemente da interação; nem o dizer do agir. Numa síntese, podemos afirmar que, nessa
teoria, estipula-se que falamos por meio de gêneros no interior de determinada esfera da ati-
vidade humana. Falar não é, portanto, apenas atualizar um código gramatical num vazio, mas
moldar o nosso dizer às formas de um gênero no interior de uma atividade.
Nas sociedades complexas, a diversidade das formas de ação humana gera uma varie-
dade de gêneros discursivos, que responde à diversidade dos grupos sociais e das relações
interpessoais que se estabelecem intra e intergrupos. Bakhtin2 (1992, p. 277-326) discute a
Bakhtin viveu de 1895 a 1975. Seu estudo Os gêneros do discurso foi escrito em 1952-1953 e publicado em Moscou, em edição
2
póstuma, em 1979. No Brasil, o texto está no livro Estética da Criação Verbal, edição de 1992.
74 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
questão da diversidade dos gêneros discursivos ponderando o peso de três fatores cruciais
na delimitação e definição dos diferentes gêneros: as condições histórico-culturais que deter-
minam os processos de produção, circulação e compreensão do discurso, o jogo interlocutivo
e o intuito discursivo do sujeito.
Os gêneros nascem da práxis comunicativa de sujeitos que interagem numa determinada
esfera da convivência humana: as atividades e expectativas comuns – que definem necessidades
e finalidades para o uso da linguagem –, o círculo de interlocutores – que define hierarquias e
padrões de relacionamento –, a própria modalidade linguística (oral ou escrita) – ligada ao grau
de proximidade e intimidade dos interlocutores –, tudo isso acaba definindo formas típicas de
organização dos textos. Assim, pode-se dizer, por um lado, que os gêneros se constituem na
interdiscursividade e, por outro, que conformar o próprio discurso a um gênero implica entrar
em relação com o discurso do outro, dos outros, anônimos, cujo trabalho linguístico-histórico
resultou na configuração daquele padrão.
O jogo interlocutivo tem também papel decisivo no estabelecimento dos gêneros dis-
cursivos: “as diversas formas típicas de dirigir-se a alguém e as diversas concepções típicas do
destinatário são particularidades constitutivas que determinam a diversidade dos gêneros do
discurso” (BAKHTIN, 1992, p. 325). Tanto os processos interlocutivos – a produção do discurso
orientada pela representação das circunstâncias da enunciação e dos conhecimentos e dispo-
sições do interlocutor buscando/presumindo determinadas atitudes responsivas – quanto os
processos interdiscursivos – o entrecruzar-se dos discursos na sociedade em geral e em cada
esfera de convivência em particular – vão historicamente constituindo formas padronizadas de
organização dos discursos.
Do ponto de vista formal, um gênero pode ser reconhecido, segundo Bakhtin (1992,
p. 277-326), por modos típicos de organização temática, composicional e estilística. Em cada
esfera de atividade, vão se constituindo formas padronizadas de organização dos discursos,
que associam a determinadas situações de relacionamento humano determinadas aborda-
gens temáticas, determinados “procedimentos composicionais” e determinados usos dos
recursos linguísticos.
Os gêneros estabelecem pautas temáticas e formas típicas de tratamento do tema: nas
diferentes instâncias de uso da linguagem, estabelecem-se diferentes expectativas quanto ao
leque de assuntos pertinentes ou impertinentes, permitidos ou proibidos, e quanto ao grau de
autenticidade/fidedignidade e exaustividade de sua abordagem. Determinado tema, frequente
no círculo científico, pode não ter penetração e circulação no circuito familiar – e vice-versa;
o compromisso com a veracidade e a precisão das afirmações é muito mais rigoroso na esfera
científica ou oficial do que na familiar, por exemplo.
Os gêneros estabelecem padrões de estrutura composicional (construção composicional,
tipo de estruturação e de conclusão do todo), que se pode entender como as partes que usual-
mente compõem os textos pertencentes a determinado gênero e a organização modelar dessas
Textos dissertativos-argumentativos: 75
subsídios para qualificação de avaliadores
partes. Bakhtin aponta também formas usuais de delimitação do discurso, como sua extensão,
suas fronteiras.
Os gêneros definem o estilo, orientando o processo de seleção de recursos lexicais e
morfossintáticos intra e interfrasais.
A padronização formal dos gêneros, integrada aos conhecimentos linguísticos dos sujeitos,
é que possibilita ao interlocutor engajado num processo interacional – que partilha, pois, situação,
conhecimentos e pressupostos – prever, desde as primeiras palavras, o todo do discurso, sua
forma de organização e o intuito discursivo do locutor, o que facilita/viabiliza a compreensão
(BAKHTIN, 1992, p. 300-301). Por seu turno, “a variedade dos gêneros do discurso pressupõe a
variedade dos escopos intencionais daquele que fala ou escreve”; entretanto, a práxis linguís-
tica social vai estabelecendo padrões de realização desses escopos intencionais, de tal modo
que, na vida cotidiana, “o querer-dizer do locutor quase que só pode se manifestar na escolha
do gênero”, ao qual se adapta e se ajusta, “sem que o locutor renuncie à sua individualidade e
à sua subjetividade” (BAKHTIN, 1992, p. 291; 301-302).
É ainda em Bakhtin (1992, p. 277, grifo nosso) que encontramos a conhecida postulação
de que os gêneros, embora atuem como padrões, não são imutáveis, não são inalteráveis: “são
padrões de enunciado relativamente estáveis”. Por sua estabilidade, esses padrões nos orientam
nas atividades comunicativas, na compreensão e na produção de textos. No entanto, como a
vida social muda e as práticas de linguagem se modificam continuamente, esses padrões são
apenas relativamente estáveis: alteram-se de acordo com as novas possibilidades e necessi-
dades sociais. Por isso, há gêneros que caem em desuso (ex.: telegrama, telex) e gêneros novos
que aparecem (ex.: e-mail, WhatsApp). Portanto, são inúmeros os gêneros textuais coexistentes
numa sociedade, já que são múltiplas as necessidades comunicativas das coletividades humanas.
O autor considera que os gêneros funcionam como uma “gramática do discurso”, no
sentido de que os membros de uma comunidade linguística aprendem, na convivência social,
os gêneros de que precisam no seu dia a dia e acatam razoavelmente os padrões apreendidos.
No entanto, Bakhtin (1992) explica que, embora essa gramática do discurso tenha “leis nor-
mativas”, suas leis são “mais maleáveis, mais plásticas e mais livres” do que as da gramática da
língua. Se os gêneros são padrões relativamente estáveis, as leis que regulam sua configuração
76 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
e seu uso têm de ser maleáveis e plásticas. As leis são normativas na medida em que só têm
razão de ser se forem acatadas por toda a comunidade; mas são maleáveis e plásticas na medida
em que precisam mudar conforme mudam os usos e costumes sociais e a tecnologia disponível
para a comunicação.
Além disso, lembra Bakhtin (1992, p. 302-303) que há sempre a possibilidade de se
“confundir[em] deliberadamente os gêneros pertencentes a contextos diferentes”. Essa possibili-
dade é geradora de efeitos de sentido que podem servir a diferentes objetivos: há propagandas
que se disfarçam de notícia para dar mais credibilidade ao produto que pretendem vender; há
aulas que se parecem com shows de auditório, para envolver os alunos.
Pode-se também, no plano do discurso, “confundir deliberadamente” os componentes
e o estilo dos gêneros: i) reprocessando a organização típica (por exemplo, começando um edi-
torial pela conclusão, ou então iniciando um romance pelo desfecho ou pelo meio da história e
recuperar os episódios anteriores desordenadamente, seguindo os movimentos da memória de
uma personagem); ii) buscando efeitos de sentido especiais pelo recurso à mistura de estilos ou
a um estilo inusitado para determinada situação (por exemplo, num bilhete informal de agra-
decimento a um amigo por um favor prestado, pode-se empregar um ficar-lhe-ei para sempre
penhorado, buscando produzir um efeito cômico).
2 Os gêneros escolares
A natureza sócio-histórica dos gêneros e sua função tipificadora das práticas de linguagem,
nas diversas esferas de atividade humana, possibilitam o surgimento de padrões textuais que
servem à organização e ao funcionamento de diferentes instituições. A instituição social escola
produz gêneros que organizam e controlam seu funcionamento administrativo e pedagógico,
como o registro de matrícula dos alunos, o histórico escolar, o diário de classe, a lista de pre-
sença, o boletim. Há ainda gêneros constitutivos das ações de linguagem que integram o pro-
cesso de ensino-aprendizagem, como o dever de casa, o exercício, o questionário, a ficha,
o resumo, a pesquisa, a prova e a redação, entre outros. Todos eles definem padrões para ações
recorrentes no funcionamento cotidiano da escola.
Nesse sentido, não se pode duvidar que a redação escolar é um gênero.
Beth Marcuschi (2007, p. 64) considera que a redação escolar se configura como um
“macrogênero” que abarca as subcategorias “redação endógena ou clássica” – que nasce e cir-
cula quase que exclusivamente dentro da escola – e “redação mimética” – que traz para a sala
de aula modelos de gêneros que circulam externamente à escola e os toma como objetos de
ensino, mas numa situação que apenas imita sua efetiva trajetória e suas funções. Vou consi-
derar aqui apenas a chamada redação endógena ou clássica, que se manifesta, tradicionalmente,
como padrão textual em três modalidades distintas: a descrição, a narração e a dissertação.
Textos dissertativos-argumentativos: 77
subsídios para qualificação de avaliadores
São conhecidas as condições de realização da redação clássica. A partir de um tema –
trabalhado ou apenas sugerido –, os alunos escrevem seguindo um modelo prévio de estrutura
composicional e usando um estilo de linguagem considerado adequado, para atender ao propó-
sito pedagógico de aprender a escrever. Trata-se de um propósito escolar legítimo, como acentua
Beth Marcuschi, em geral explicitado para os alunos: a tarefa é escrever de acordo com o que
o professor propõe como certo e desejável, para obter uma avaliação positiva, uma boa nota.
A interação se dá entre a função aluno e a função professor, numa ação endógena e ritualizada.
Essa prática sugere algumas considerações. A primeira delas, de acordo com Schneuwly
e Dolz (1999), é o “desaparecimento da comunicação”. Na cena discursiva, não se veem inter-
locutores empenhados em dizer alguma coisa ou em compreender a palavra do outro, esco-
lhendo o gênero mais adequado para se expressar naquela circunstância, de modo a cumprir
determinado objetivo e produzir determinados efeitos. Apaga-se a dimensão discursiva do
texto produzido.
Anulada a possibilidade de comunicação, esse exercício tradicional da escrita na escola
acaba tomando como objeto de ensino apenas os elementos formais caracterizadores dos
gêneros, sem levar em conta sua funcionalidade. A elaboração temática, que implica seleção,
organização e articulação dos conteúdos, visando à construção de um texto coerente, sempre
é orientada de maneira eficiente e suficiente. O que ganha lugar privilegiado, nesse processo,
são a estrutura composicional e o estilo de linguagem.
Ou seja, o trabalho com a redação escolar valoriza enfaticamente os padrões formais e
não favorece a formação do aluno como sujeito de linguagem capaz de compreender as circuns-
tâncias de sua enunciação e definir a que gênero de texto recorrer para dizer o que tem a dizer
a seus interlocutores, tendo clareza quanto aos objetivos comunicativos que pretende alcançar.
Esse procedimento, que oblitera a natureza maleável e plástica da “gramática do discurso”, não
dá aos alunos a oportunidade de aliar ao estilo do gênero o seu próprio estilo, de contrapor à
“fôrma” composicional prescrita seu intento de “confundir deliberadamente” os elementos do
gênero que intenta produzir, para obter determinados efeitos de sentido.
Submetendo a escrita dos alunos a padrões formais inflexíveis e à ausência de uma
perspectiva discursiva, a redação escolar é um gênero que só funciona na escola, para cumprir
objetivos pedagógicos em geral unilaterais: o professor manda, e o aluno escreve por obrigação.
A endogenia da redação tem relação de reciprocidade com os padrões textuais exerci-
tados na escola. A descrição, a narração e a dissertação (expositiva e/ou argumentativa) não
são textos empíricos que circulam publicamente no espaço social, a não ser em concursos de
redação ou em provas de seleção para cargos oficiais ou vagas em universidades. Em outdoors
ou revistas, a descrição não aparece como texto autônomo, constituído exclusivamente desse
tipo de organização composicional e que tenha como único objetivo retratar uma pessoa, um
objeto, uma paisagem. Não se encontram dissertações em jornais ou blogs. O que se vê, com
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subsídios para qualificação de avaliadores
frequência, são colunas jornalísticas, artigos de opinião, editoriais, reportagens, cujo propó-
sito costuma ser repercutir uma questão polêmica e discutir sobre ela, buscando convencer
os leitores da posição do enunciador. Esses gêneros não se constituem de uma sequência de
parágrafos expositivo/argumentativos reunidos de modo a compor uma introdução, um desen-
volvimento e uma conclusão nitidamente delimitados. Pelo contrário, eles podem incluir pas-
sagens descritivas e narrativas que se apresentam como provas e argumentos altamente con-
vincentes, podem, deliberadamente, promover alterações na ordenação dos componentes e
estilo usuais para surpreender, para chocar, para captar a atenção do leitor, para mascarar seu
verdadeiro propósito.
Os objetos de ensino que a prática de escrita escolar elege não configuram um gênero na
sua integralidade de forma e função. O trabalho se volta para o que os estudiosos têm chamado
de tipos textuais, modos de organização que correspondem a diferentes atitudes enunciativas
(narrar, relatar, descrever, expor, argumentar, ordenar procedimentos) e se caracterizam por um
uso específico de determinados recursos linguísticos (aspectos lexicais, tempos verbais, con-
junções, advérbios e locuções adverbiais, estruturas sintáticas, entre outros). Os tipos podem
entrar na composição de diferentes gêneros; um texto pertencente a determinado gênero pode
incluir diferentes tipos em sua composição. Um gênero como o romance, por exemplo, em
que predomina a atitude enunciativa de narrar, pode conter passagens descritivas, expositivas,
argumentativas, tanto na fala do narrador como na dos personagens.
A tradição escolar trabalha com tipos textuais na crença de que, focalizando exclusi-
vamente os aspectos composicionais e estilísticos, possa contribuir para o desenvolvimento
de capacidades linguísticas “supragenéricas” que sejam transferíveis para a escrita de textos
pertencentes a qualquer gênero. Ainda que a transferência de aprendizado possa ocorrer, o
aprendizado da dimensão discursiva dos gêneros fica excluído. A redação escolar não propicia
ao aluno desenvolver-se como sujeito autor, capaz de realizar a escolha do gênero adequado
às circunstâncias da interlocução e adaptar seu querer-dizer às exigências desse gênero, sem
renunciar à sua individualidade e à sua subjetividade.
Referências
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 1992.
Textos dissertativos-argumentativos: 79
subsídios para qualificação de avaliadores
MARCUSCHI, B. Redação escolar: breves notas sobre um gênero. In: SANTOS, C. F.;
MENDONÇA, M.; CAVALCANTE, M. C. B. (Orgs.). Diversidade textual: os gêneros na sala
de aula. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
______. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, Â. P.; MACHADO A. R.;
BEZERRA, M. A. (Orgs.). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.
SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Os gêneros escolares: das práticas escolares aos objetos de ensino.
Revista Brasileira de Educação, n. 11, mai./ago. 1999.
Leitura de apoio
MEURER, J. L.; BONINI, A.; MOTA-ROTH, D. (Orgs.). Gêneros: teorias, métodos, debates.
São Paulo: Parábola, 2005.
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subsídios para qualificação de avaliadores
a análise do texto
dissertativo-
argumentativo
Márcio Matiassi Cantarin*
Roberlei Alves Bertucci**
Rogério Caetano de Almeida***
* Professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná e doutor em Letras pela Universidade Estadual Paulista.
** Professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná e doutor em Letras pela Universidade de São Paulo.
*** Professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná e doutor em Literatura pela Universidade de São Paulo.
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subsídios para qualificação de avaliadores
Do ponto de vista textual, numa exposição, o primeiro passo é situar o leitor a respeito
do tema. Às vezes, isso se dá pela contextualização histórica do problema, até se chegar ao pre-
sente. Outra possibilidade é fazer o percurso do geral ao específico, apresentando o tema de
forma abrangente num primeiro momento e chegando às questões mais específicas que serão
abordadas por ele no texto, como se verá no exemplo1. De qualquer modo, deve-se utilizar o
tipo textual expositivo, apresentando o tema e a situação-problema para o leitor.
No exemplo1 a seguir, já nas duas primeiras linhas, percebemos que o produtor do texto
generaliza o poder das ações de marketing e, aparentemente, acredita que as campanhas
têm uma força persuasiva tão relevante que é capaz de influenciar a “formação dos sujeitos”.
Essa afirmação parece coerente, tendo em vista que as campanhas são sempre utilizadas para
a promoção de produtos, ideias e serviços; servem, em essência, para “conquistar” aqueles a
quem são direcionadas.
É fato que as diferentes ações de marketing exercem grande influência no processo de formação
dos sujeitos. Em se tratando de crianças, o poder das propagandas na criação de hábitos e identi-
dades é bastante grande. Surge então o debate acerca dos limites da publicidade infantil
1
Os textos deste artigo são excertos de redação do Enem 2014.
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exemplo 2 introdução direta da tese e propostas
Deveriam existir no Brasil leis para proibir propagandas dirigidas as crianças, com apelo para compra
e consumo de qualquer produto, em um país onde as crianças deixaram de brincar para assistirem
TV, não vale a pena deixar que industrias de produtos infantis abusem disso.
A publicidade infantil é um ramo que vem crescendo muito no Brasil. Afinal, as crianças ainda não
formaram toda base crítica necessária para entender toda a complexidade e persuasão de uma
propaganda, fatos que as tornam um público alvo facilmente convencido.
Vamos considerar também que dissertar seja fazer uma reflexão teórica sobre um assunto.
Então, na avaliação de textos dissertativo-argumentativos, é preciso levar em conta o grau
dessa reflexão feita pelo participante. Nesse sentido, a exposição precisa apresentar os fatos
como já “estabelecidos”, servindo para situar o problema em uma determinada esfera (tem-
poral, geográfica, humana etc.). Um exemplo seria dizer que “a publicidade infantil tem crescido
nos últimos anos, como consequência dos inúmeros produtos que têm chegado ao mercado
para esse público”. Vemos que, aqui, haveria poucas dúvidas por parte do leitor em relação à
veracidade da informação, inclusive por haver uma relação lógica entre a causa (aumento dos
produtos) e a consequência (aumento da publicidade).
Por outro lado, se alguém escrevesse que “a publicidade infantil vem crescendo cau-
sando problemas psicológicos às crianças”, estaria correndo sérios riscos de ter a informação
Textos dissertativos-argumentativos: 83
subsídios para qualificação de avaliadores
contestada pelo leitor. Se ele não apresentar dados sobre esse fato, aquilo que seria uma mera
exposição passa a ser um ponto de conflito no texto, por não ser algo de conhecimento de
todos, ou pelo menos de fácil reflexão e aceitação.
O fragmento a seguir é um exemplo do que acabamos de considerar. Primeiramente, não
se sabe o sentido de “consumista secundária” assumido pelo produtor do texto, muito menos
se existem dados a respeito do número de crianças com esse suposto perfil.
Hoje vem crescendo muito o número e taxas que comprovam, a criança como consumista secundária.
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subsídios para qualificação de avaliadores
Textos dissertativos-argumentativos: 85
subsídios para qualificação de avaliadores
Vemos que, no exemplo 5, a seguir, além de tratar do modo como as propagandas são
construídas, algo explícito no Texto I da proposta de redação de 2014, o participante acres-
centa a informação de uma restrição de horário de veiculação dessas peças publicitárias.
A área da publicidade voltada a elas utiliza recursos estratégicos, como o uso excessivo de cores
vibrantes, linguagem apelativa e voltada ao público infantil e suas personagens de desenho favoritas.
Outro recurso muito utilizado é o horário de exibição. Estas propagandas são transmitidas com mais
frequência entre onze e doze horas da manhã, quando a criança geralmente chega da escola para
assistir desenho, ou ainda entre três e seis da tarde, quando muitas assistem filmes e programas.
Claramente, vemos que o participante faz uso de uma exposição sobre o tema da
publicidade infantil, deixando claro que a forma e o horário de veiculação são parte da
situação-problema.
Como segundo elemento crucial do texto dissertativo-argumentativo, temos a persuasão,
cujo poder deve ser matéria de avaliação desse gênero. Vamos assumir aqui que argumentar
é oferecer ideias, razões, provas tão relevantes que consigam convencer o leitor sobre um
ponto de vista. Com isso, para a avaliação de textos dissertativo-argumentativos, é preciso
levar em conta a qualidade dos argumentos na composição do texto. Em geral, essa qualidade
pode ser avaliada assim: o produtor apresenta uma ideia e, em seguida, articula um raciocínio
capaz de comprová-la.
Esses argumentos (raciocínios) podem ser de diferentes tipos, como provas concretas
(dados ou fatos sobre o tema), exemplos (fatos similares ou relacionados ao tema), autoridades
(citação de especialistas no tema), lógica (causa e consequência, por exemplo) e senso comum
(o que as pessoas em geral pensam sobre o tema). Em geral, textos dissertativo-argumenta-
tivos devem apresentar mais de um argumento, a fim de que a ideia possa ser defendida de
diferentes maneiras, e também evitar argumentos de senso comum, os quais, embora válidos,
podem ser fruto de uma reflexão muito rasa, o que não condiz com o gênero.
No trecho que apresentaremos a seguir, verificamos a presença de dois argumentos
fortes: na primeira parte, um argumento de raciocínio lógico; na segunda, um argumento
baseado em autoridade, por ser uma referência indireta ao Texto III da proposta de redação
de 2014.
Na persuasão, além da qualidade dos argumentos, é imprescindível que o produtor utilize
conectivos que articulem os argumentos tanto entre si quanto com o ponto de vista defendido.
Aqui, a avaliação recai sobre o fato de que a persuasão é a condução do leitor/ouvinte pelo
produtor por um caminho específico. Vejamos o exemplo a seguir para discutir de que forma
esse produtor constrói seu caminho de persuasão:
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exemplo 6 caminho da persuasão
A preocupação de ONGs e dos pais frente ao abuso excessivo das propagandas apresentadas às
crianças é compreensível, uma vez que além de incentivar o consumo, elas vendem a ideia de rea-
lização, excluindo de certa maneira aqueles que não podem possuir determinado bem. Todavia,
a restrição da comunicação com o referido público, não resolve o problema e pode comprometer o
desenvolvimento crítico do indivíduo, por não poder conhecer o mundo de forma mais abrangente.
Textos dissertativos-argumentativos: 87
subsídios para qualificação de avaliadores
essa referência é ótima porque, além de se colocar como um raciocínio válido (não estar em
contato com a publicidade pode comprometer o senso crítico da criança), o produtor mostra
que compreendeu o texto motivador e soube inseri-lo no lugar correto em seu próprio texto
para contrabalançar a opinião que havia dado antes. Além disso, pode servir como oposição
a uma tese óbvia: a de que a restrição/proibição da publicidade infantil é a melhor ação para
combater os possíveis malefícios causados por esse tipo de marketing.
Embora o texto do participante possa ser considerado um excelente exemplo de per-
suasão, coerente com as exigências de um texto dissertativo-argumentativo, dois pontos pode-
riam ser melhorados, além de questões de norma-padrão que deixaremos de lado por não
ser o foco do nosso texto. O primeiro é a eliminação da redundância que aparece no final da
primeira linha: “abuso excessivo”. O participante deveria optar por uma das duas expressões,
já que todo abuso é um excesso e, ao se cometer um excesso, é muito provável que se esteja
cometendo um abuso. O segundo é a explicação de por que a restrição não resolveria o pro-
blema, se há excessos nas publicidades infantis.
Na conclusão, como se vê a seguir, o participante defende que a responsabilidade maior
é dos pais, mas, ainda assim, acredita que “a regulamentação dos meios comunicativos é neces-
sária no intuito de valorizar temáticas mais educativas”, ou seja, de alguma forma, ele defende
algum tipo de restrição a partir de mecanismos de controle. Logo, o texto não é totalmente
coerente, perdendo, portanto, em seu final, parte do poder argumentativo que havia construído
no trecho analisado acima.
88 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
exemplo 8 grau de leitura dos textos motivadores
Essas propagandas voltadas às crianças como brinquedos atrativos, personagens engraçados, roupas
e sapatos com seus personagens preferidos, desenhos animados e isso atrai muito o público infantil,
porque as propagandas focam também de uma maneira ou outra ensinando as crianças a descobrir
cores, objetos, números e etc…
As propagandas vinculadas a esse público, muitas vezes geram uma influência desnecessária.
A publicidade de alimentos que fazem mal à saúde, por exemplo, contribui para a disseminação
de um problema bem presente na sociedade, chamado obesidade, visto que quanto mais cedo se
adotar a essa dieta de alimentos industrializados, enlatados e com alto teor de gordura, maiores
serão as chances de tornar-se um adulto obeso e com problemas cardiovasculares.
Textos dissertativos-argumentativos: 89
subsídios para qualificação de avaliadores
motivadores. O texto ganha poder persuasivo porque o produtor consegue trazer um argumento
relativamente inesperado, mas extremamente lógico.
Para finalizar, já que estamos tratando de exemplos relativos à temática do Enem 2014,
mencionemos o Texto Motivador II da avaliação, que apresenta algumas medidas tomadas por
diferentes países com relação à publicidade infantil. Caso o produtor utilizasse dados sobre o
modo como essas nações lidam com o problema, teria argumentos de qualidade para mos-
trar que tanto o problema não é exclusivo do Brasil, quanto as soluções podem ser diferentes.
O excerto a seguir mostra que o participante tinha consciência desses fatos, ao mencionar a ati-
tude do Conanda e, ao mesmo tempo, julgar que ela não foi a melhor medida, considerando-se
a interpretação do Texto II.
Diferentes grupos civis e instituições governamentais têm contribuído com essa discussão.
Recentemente, o conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente emitiu parecer que
classifica toda publicidade infantil como abusiva. No entanto, não há consenso que a proibição
absoluta desse tipo de propaganda seja produtiva. Há casos de países como o Reino Unido e o Chile,
por exemplo, que estabeleceram restrições parciais.
Por outro lado, o produtor do exemplo 11, embora tenha inserido corretamente a infor-
mação a respeito da proibição de publicidade infantil na Noruega, afirma que o país fez isso
porque visava “um estilo de vida mais saudável para as pessoas”. Não se sabe se essa é a razão
última da lei proposta, até porque a proibição não garante que as crianças serão adultos sau-
dáveis. Portanto, a afirmação não pode ser considerada completamente aceitável, o que pre-
judica o texto.
Alguns países como Noruega, já estabelecem leis proibindo publicidades infantis visando assim, um
estilo de vida mais saudável para as pessoas. Em outros lugares, ativistas e ONGs lutam por uma
amenização do forte uso de publicidades para crianças. Já outros com o Brasil procuram criar regras
e acordos com setores comerciais e governamentais para possíveis atividades.
Além disso, o trecho tem dois problemas graves: o primeiro é dizer que “em outros
lugares” se luta por uma “amenização do forte uso de publicidades para crianças”. Essa infor-
mação, além de não ter fonte (nem nos textos motivadores), parece ser mais verdadeira em
relação ao Brasil. Aliás, o segundo problema se refere ao Brasil, uma vez que o participante
90 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
afirma que o país procura “criar regras e acordos”, quando, na verdade, foi uma resolução a
provocadora da situação-problema que virou tema da redação. Finalmente, o objeto da criação
de tais regras e acordos, que seria “para possíveis atividades”, fica extremamente vago, na
medida em que o produtor não faz referência explícita ao tipo de atividade. Aqui, a sugestão
seria ele relacionar os grupos de países e suas decisões, tal como se vê nos textos motivadores.
Como está, o avaliador poderá considerar o texto como uma interpretação equivocada deles.
Um produtor de texto com a temática em questão, que quisesse fazer referência àquilo
que vem sendo decidido em outros países, tal como apresentado pelo Texto II, poderia (o que
não ocorreu) defender a tese de que, como as crianças carecem de maturidade e discerni-
mento, a restrição de propagandas a determinadas faixas etárias é uma alternativa bastante
viável para o problema. A utilização do conectivo “como” introduziria a causa (imaturidade das
crianças) relacionada a uma consequência importante apresentada no texto do aluno (restrição
de propagandas). Na continuidade, se o produtor dissesse “assim como ocorre em diferentes
países ao redor do mundo”, estaria reforçando seu argumento por meio de uma comparação
estabelecida pelo conectivo “assim como”. Por consequência, teria ainda introduzido bons
argumentos para a defesa de algumas propostas sobre o tema.
A avaliação de textos dissertativo-argumentativos exige, portanto, a análise dos elementos
que constroem a exposição e a argumentação, sem as quais o texto carecerá da força neces-
sária para a defesa da tese. Como se viu, essa força é construída, sobretudo, por meio do bom
uso de recursos linguísticos ao longo do texto.
Referência
Leitura de apoio
BRASIL. Programa Gestão da Aprendizagem Escolar – Gestar II. Língua Portuguesa: Caderno
de Teoria e Prática 3 – TP3: gêneros e tipos textuais. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Básica, 2008. 196 p. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/
arquivos/pdf/2008/gestar2/>. Acesso em: 28 jul. 2015.
Textos dissertativos-argumentativos: 91
subsídios para qualificação de avaliadores
argumentos
em defesa de um
ponto de vista
originalidade e
consciência da escrita:
indícios de autoria na
argumentação em textos
escolares
Anderson Luís Nunes da Mata*
Um texto – qualquer texto – costuma ser avaliado, entre outros aspectos, por sua origi-
nalidade. Onde, porém, essa originalidade costuma ser encontrada? Para iniciar essa discussão,
o enfoque será dado no binômio forma-conteúdo. Assim, por um lado, pensa-se na originali-
dade como uma qualidade ligada à forma: o texto é tão mais original quanto mais for inven-
tivo, ou mesmo transgressor, em relação à sintaxe ou aos gêneros com os quais ele dialoga.
É o enfoque no como se diz. Por outro, valoriza-se a abordagem de temas pouco usuais, ou, se
na era da informação é difícil encontrar temas que já não tenham sido tratados, valoriza-se a
originalidade das imagens ou informações reunidas para a discussão de um determinado tema,
pelo fato de essas informações ou imagens trazerem em si novidades. É o o que se diz.
No entanto, outro modo de se valorizar a originalidade pode ser encontrado na combi-
nação entre forma e conteúdo. Reconhecendo-se que a separação entre as duas dimensões do
texto é artificial, uma vez que elas estão sempre em correlação, o modo como os elementos
ligados à forma auxiliam no arranjo das informações ou imagens para a construção de uma
argumentação, descrição ou narração, por exemplo, pode ser o mais eficiente de se determinar
essa originalidade. Como provoca Adília Lopes (2002), “O poema não é forma de bolo”.
O que se encontra sob essa busca de originalidade é a noção de autoria. A originalidade
pressupõe uma forma de elaboração que necessariamente tem um sujeito por detrás de si.
Textos dissertativos-argumentativos: 95
subsídios para qualificação de avaliadores
O reconhecimento desse sujeito se dá, nesse contexto, pelo que ele pode apresentar tex-
tualmente como singularidade. Esta, por sua vez, constitui-se, a princípio, pelos indícios de
autoria. Se um leitor é como um caçador, na comparação de Carlo Ginzburg (1989, p. 151),
capaz de “ler nas pistas mudas uma série coerente de eventos”, é lícito concluir que, no ato
de leitura, pode-se atribuir sentido às pistas que se encontra. Dessa maneira, quem se dispõe
a avaliar criticamente o texto na sua construção vai inevitavelmente buscar, entre outros, os
indícios que contribuem para a determinação da originalidade daquele texto. É assim que se
separa o texto que é apenas repetição do que já foi dito com uma já desgastada relação entre
forma e conteúdo de um texto que apresenta alguma novidade, com informações originais ou
que se articulam em uma estrutura original. Rimar amor e dor ou amor e flor, por exemplo,
é, hoje, um lugar-comum que reproduz um sem-número de outros textos já escritos e publi-
cados no universo da lírica amorosa.
Um aspecto importante a ser considerado nessa discussão sobre originalidade é o caráter
provisório que ela assume. O uso – e o abuso – de uma determinada informação ou de uma
dada estrutura formal pode tornar o que já foi original um clichê, isto é, uma estrutura crista-
lizada, pronta, na qual se torna difícil encontrar a marca singular e pessoal de quem escreve: a
autoria. As transformações históricas que se inscrevem na linguagem, e das quais ela também
é agenciadora, em uma relação dialética, fazem com que os valores atribuídos ao que se com-
preende como marcas de autoria também se transformem. Sírio Possenti (2002, p. 121) suma-
riza essa questão da seguinte forma:
há indícios de autoria quando diversos recursos da língua são agenciados mais ou menos
pessoalmente – o que poderia dar a entender que se trata de um saber pessoal posto a
funcionar segundo um critério de gosto. Mas, simultaneamente, o apelo a tais recursos
só produz efeitos de autoria quando agenciados a partir de condicionamentos históricos,
pois só então fazem sentido.
A discussão sobre a autoria de um texto tem diversas dimensões: jurídica, filológica, dis-
cursiva, filosófica, poética, entre outras. Evidentemente, não se trata de categorias estanques,
pois existem imensas áreas de intercessão entre elas. Porém, considerando cada uma delas, e
sempre tendo em vista a articulação entre forma e conteúdo, o enfoque se transforma: juridi-
camente, por exemplo, a preocupação é com o sujeito civil que se constitui autor; filosofica-
mente, por outro lado, com o sujeito do pensamento; discursivamente, com o aspecto singular
de uma subjetividade que emerge do texto.
Quando tratamos da avaliação de textos escolares, a dimensão discursiva é a que assume
o primeiro plano. Nesse sentido, na tentativa de encontrar os indícios de autoria em uma redação,
busca-se enxergar a marca pessoal do sujeito que está por detrás desse discurso, dando-lhe
coerência, algo como um “ser de razão”, como define Michel Foucault (2009, p. 276). Quando
96 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
falamos em autor, aqui, não estamos pensando em um sujeito empírico, o estudante, embora
saibamos que ele exista (e não possamos perdê-lo de vista no contexto da educação). Porém,
para uma leitura mais complexa da produção textual, é necessário compreender que o autor,
tal como formulou Michel Foucault, é parte do próprio tecido discursivo. O leitor crítico da
redação está em busca, portanto, desse sujeito que pode ser revelado no texto.
Suponhamos que estamos diante de uma prova como a do Exame Nacional do Ensino
Médio (Enem). Em 2013, a prova aplicada tinha como tema Efeitos da implantação da Lei Seca
no Brasil. A proposta dos examinadores, disponível no portal do Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), além das instruções de redigir texto disserta-
tivo-argumentativo na modalidade escrita formal da língua portuguesa sobre o tema indicado,
apresentando proposta de intervenção que respeite os direitos humanos, trazia um conjunto
de textos de caráter motivador, que forneciam algumas informações sobre o tema para aqueles
que deveriam escrever a redação. Nessa proposta, os textos discorriam sobre: i) a relação entre
o número de acidentes e a motivação para proposição da legislação; ii) os riscos envolvidos
na associação entre bebida e direção; iii) a redução dos acidentes decorrentes de embriaguez
ao volante após início da vigência da lei; iv) uma das ações de conscientização que ocorreram
nesse contexto.
Uma redação sobre esse tema poderia se apresentar da seguinte maneira:
exemplo 1
O Brasil é um país muito grande. Até a implantação da lei seca no Brasil, o índice de acidentes era
muito alto. Algumas pessoas não concordam com essa lei e colocam as vidas dos outros em risco.
Para acabar com os acidentes de uma vez por todas é preciso aceitar a lei. Por isso, se dirigir não
beba e se beber não dirija ou chame um táxi.
Nessa redação, a marca pessoal do autor é muito frágil. As informações contidas nos
enunciados “O Brasil é um país muito grande”, “Até a implantação da lei seca no Brasil, o índice
de acidentes era muito alto”, “Algumas pessoas não concordam com essa lei”, “[Algumas pes-
soas] colocam as vidas das pessoas em risco” e “Para acabar com os acidentes de uma vez por
todas é preciso aceitar a lei” constatam aquilo que é quase evidente: a dimensão do país, a
crise de segurança no trânsito, a irresponsabilidade dos motoristas que provocam acidentes
e o condão regulador da lei, sem que haja um fio condutor argumentativo no seu conjunto.
Do ponto de vista informacional, nesse sentido, não é possível distinguir nesses trechos um
repertório próprio desse autor.
A ausência de uma marca de singularização também está na forma como essas infor-
mações são articuladas no texto, sem um planejamento em que a combinação das informa-
ções, ainda que óbvias, pudesse surpreender o leitor. Não se nota, por exemplo, uma evidente
Textos dissertativos-argumentativos: 97
subsídios para qualificação de avaliadores
autoconsciência sobre a linguagem, o que seria capaz de dar força de argumento ao que é
óbvio, como veremos mais adiante. No caso, no entanto, os enunciados se justapõem ou esta-
belecem entre si uma relação de causa e consequência ou de complementaridade, que não
extrapolam essa dimensão da obviedade. “O Brasil é um país grande” é um enunciado que não
está claramente conectado ao restante do texto. Já os enunciados seguintes trazem de volta o
que já fora informado nos textos motivadores, como a menção ao aumento dos acidentes até
a instauração da Lei Seca, ou reafirmam truísmos como o de que é preciso aceitar a lei. Além
disso, a frase “se dirigir não beba e se beber não dirija” repete um conhecido slogan publicitário.
Nesse contexto específico, a presença de textos com informações sobre o tema e, even-
tualmente, até mesmo argumentos já construídos interfere na avaliação da originalidade das
marcas de autoria na redação. A depender do modo como o estudante lança mão dessas infor-
mações e argumentos já dados, sua marca pessoal pode não se construir discursivamente, pois
o seu texto não apresentaria originalidade.
Outro texto, ainda sobre o mesmo tema, Efeitos da implantação da Lei Seca no Brasil,
poderia ter um fragmento desenvolvido da seguinte maneira:
exemplo 2
É preciso ver que com essa lei muita coisa mudou. Bares tiveram que fechar as portas mais cedo,
a venda de bebidas passou a ser mais regulada e, aos poucos, pelo conjunto de ações, não apenas
pelas blitzes, as vendas foram melhorando.
Infelizmente, o ser humano se adapta, e mesmo com a maior fiscalização e a divulgação de cam-
panhas contra a associação entre álcool e direção, os acidentes causados por motoristas bêbados
continuam ocorrendo, ainda que em menor número. É até possível encontrar motoristas que dizem
que dirigem melhor depois de beber. Como é possível alguém afirmar algo assim quando se sabe
dos efeitos do álcool no corpo? Parece óbvio, mas é preciso continuar a fiscalização e talvez endu-
recê-la, pois sempre vai haver quem não consegue respeitar as leis.
98 Textos dissertativos-argumentativos:
subsídios para qualificação de avaliadores
A marca autoral é intensificada, nesse fragmento, pelo modo como se diz. A pergunta
“Como é possível alguém afirmar algo assim quando se sabe dos efeitos do álcool no corpo?”,
que segue o trecho em que sua experiência de escuta é trazida ao texto, introduz uma interlo-
cução com um leitor hipotético que reforça a existência de sujeito por detrás desses enunciados.
O questionamento, que é a base de toda reflexão, constrói no texto um diálogo (e um dialogismo)
que torna sua argumentação mais complexa – e, por isso, mais original. Outro aspecto formal
que revela indícios de autoria no texto é a autoconsciência da linguagem presente no trecho
“Parece óbvio, mas é preciso continuar a fiscalização e talvez endurecê-la, pois sempre vai haver
quem não consegue respeitar as leis”. Nesse caso, o autor demonstra estar consciente de que
o que ele vai dizer não é original, mas, ao destacar a obviedade de sua conclusão, ele acaba
por dar força a ela, como se não houvesse outro modo de pensar o problema. O emprego da
expressão “parece óbvio” antecipa a crítica que o leitor pudesse fazer, mostrando que o autor
está plenamente consciente da qualidade das informações que ele maneja em seu texto, o que
indica, embora nem sempre garanta, que há um projeto de texto por detrás daquela redação.
E é aí que chegamos ao ponto-chave da questão dos indícios de autoria no texto escolar:
a consciência da escrita. A autoria é revelada, na combinação entre forma e conteúdo, pela
existência de um projeto para o texto que determina desde a seleção das informações até a
escolha das palavras, passando pelo modo como elas se arranjam no texto. Em um texto autoral,
cada um dos elementos selecionados para a escrita (fatos, informações, opiniões, vocabulário,
sintaxe) tem como objetivo provocar um efeito no leitor. Nem sempre esse plano está claro
no texto, mais “barca de tolo” que “forma de bolo”, para retomar a metáfora de Adília Lopes.
Por isso, o leitor-caçador que está em busca de indícios de autoria no texto vai encontrá-los à
medida que desvelar essa autoconsciência e conseguir recompor o chamado “ser de razão” no
projeto que justifica as escolhas de quem escreve, delineando, desse modo, discursivamente,
a figura do autor.
Referências
FOUCAULT, M. O que é um autor? In: ______. Ditos & Escritos. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2009. v. 3.
GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
LOPES, A. A cura. In: ______. Antologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
Textos dissertativos-argumentativos: 99
subsídios para qualificação de avaliadores
a avaliação dos
indícios de autoria
José de Ribamar Oliveira Costa*
Mariza Andrade Guedes**
Como Marilena Chauí pode concorrer com Hebe Camargo? Esta impotência de Chauí
(e não só dela!), porém, não desqualifica o valor da intervenção social do escritor, quando
age como intelectual. Também não se pode ser escritor sem conhecimento profundo
* Professor da Secretaria Estadual de Educação do Pará e da Universidade Federal Rural da Amazônia e mestrando do
Programa de Pós-graduação em Educação, Ciências e Matemática na Universidade Federal do Pará (UFPA).
** Professora da Secretaria Estadual de Educação do Pará e mestre em Ensino-Aprendizagem do Português pela mesma instituição.
Com aparente circularidade, é a noção de autor que, entre outros aspectos, permite que
se fale de uma obra, especialmente em decorrência de determinada propriedade que as
obras têm (teriam), a de se caracterizarem por uma certa unidade. Ora, é exatamente a
figura do autor que confere essa unidade a uma obra. Mas fique claro que, para Foucault,
a noção de autor é discursiva (isto é, o autor é de alguma forma construído a partir de um
conjunto de textos ligados a seu nome, considerado um conjunto de critérios, dentre eles
sua responsabilidade sobre o que põe a circular, um certo projeto que se extrai da obra e
que se atribui ao autor etc.), daí porque ele distingue tão claramente a noção de autor da
de escritor (POSSENTI, 2002, p. 107).
Para Foucault (1992 apud POSSENTI, 2002, p. 107), “a noção de autor se constitui a partir
de um correlato à noção de obras” , ou seja, só temos um autor se tivermos uma obra cuja
autoria possa ser atribuída a ele. A noção de autor para Foucault é discursiva. Desse ponto de
vista, além de ter um conjunto de textos atribuído a ele, é necessário que este assuma a res-
ponsabilidade (político/social) sobre o que põe a circular na sociedade. Remontando às ideias
de Foucault sobre autoria, pode-se considerar como autor o proprietário da obra literária,
a pessoa que goza dos privilégios trazidos pelo reconhecimento mercadológico.
Schneider (1990) contesta a questão da originalidade da criação literária, lembrando que,
ao longo da história, a escrita, mesmo a dos grandes mestres, prescinde de textos que já foram
escritos por outros autores. Para ele, a apropriação ou empréstimo de textos anteriores colocaria
exemplo
Já faz muito tempo que se sabe […] [o poder que as propagandas tem sobre as pessoas]. Muitas
vezes, adultos acabam […] sucumbindo a seus apelos. A criança sendo naturalmente imediatista,
estaria, então mais suscetível a tudo isso […] Além disso, devemos questionar se é adequado dirigir
propagandas às crianças.
O Conar [sente-se eticamente autossuficiente] “[…] para normatizar a publicidade destinada às
crianças”. Isso seria verdadeiro? vemos propagandas com garotas magras e bonitas com carrinhos
que se chocam violentamente […] Mostramos isso como padrão a ser seguido. […] o próprio ato
de levar o público infantil a consumir, […] deve ser repensado.
A nossa sociedade […] é influenciada pelo que circula na mídia. Baudrillard […] defende que nos
tornamos reféns de necessidades criadas. […] O Brasil deve fazer igual aos outros países, devemos
oferecer proteção as nossas crianças por meio da regulamentação [externa] da publicidade infantil.
Há necessidade de se questionar acerca das propagandas infantis no Brasil.
É necessária a união entre família e escola para estimular a criança a ter um olhar crítico sobre
as mensagens divulgadas diariamente pelas propagandas. Para isso, Os pais poderiam “boicotar”
produtos relacionados a mensagens publicitárias inadequadas, uma boa alternativa para os pais
seria não comprar estes produtos e para as escolas seria criar projetos que fomentem atitudes de
consumo consciente.
Excerto de redação do Enem 2014 (com alterações).
Referências
AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
DUCROT, O. Princípios de semântica geral: dizer e não dizer. São Paulo: Cultrix, 1997.
SANTOS, J. S. dos. A função autor e os indícios de autoria. Revista Querubim, ano 5, 2009,
Letras – Ciências Humanas – Ciências Sociais.
TORRES, J. W. L. A crise do escritor na era dos escritores. Revista Espaço Acadêmico, n. 96,
mai. 2009. Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.br/096/96torres.pdf>. Acesso
em: 13 jul. 2015.
A tradição, em boa medida incorporada pela escola durante muito tempo, propôs que
há três tipos básicos de texto: a narração, a descrição e a dissertação. Como os títulos de certa
forma indicam, a narração é um texto que apresenta fatos, encadeados temporalmente ou não;
a descrição é um texto que mostra objetos, pessoas, paisagens (lembre-se do início de O gua-
rani, por exemplo); e a dissertação é um texto que apresenta uma (várias) tese(s) e a(s) justifica.
Frequentemente, estes tipos de texto se misturam. Ou seja, um texto que é basicamente
narrativo (um romance, por exemplo) normalmente inclui passagens descritivas e passagens
nas quais se argumenta (as personagens ou mesmo o narrador defendem posições, teses, a
respeito de outras personagens ou sobre as questões que surgem na narrativa – a vida e a
morte, o poder, negócios etc.).
Não é impossível dizer que um romance defende uma tese, ou mais de uma. Por exemplo,
Grande Sertão: Veredas pode ser lido como um romance que discute a existência e a natureza
do mal (e do diabo, uma de suas encarnações), além de outras questões: jagunços ajudam
políticos; Diadorim exerce um fascínio sobre Riobaldo (no final, descobre-se que é mulher, o
que, de certa forma, “resolve” o problema de Riobaldo – uma solução que alguém poderia
qualificar de machista) etc.
No mesmo romance, há muitas descrições da paisagem “do sertão”, de pássaros, de
plantas, arbustos, ervas, flores, ora mais, ora menos detalhadas. Não necessariamente cada des-
crição colabora para sustentar uma tese. Ela apresenta o ambiente em que se dão os eventos;
mostra, talvez, um tipo de sensibilidade do narrador, o próprio Riobaldo, que, no entanto, em
outras circunstâncias, é bem pouco sensível.
2 Sentidos de argumento
A palavra “argumento” tem dois sentidos básicos: i) refere-se a uma totalidade que inclui
tanto as premissas quanto a conclusão ou a tese (um exemplo é o silogismo, apresentado
abaixo); ii) refere-se apenas ao enunciado ou aos enunciados que sustentam a conclusão ou
tese; neste caso, no exemplo do silogismo, só as premissas são argumentos. É neste sentido
que se diz, por exemplo, que um escritor é bom porque vende bem / é elogiado pela crítica.
A tese: “é bom”; os argumentos: “vende bem / é elogiado pela crítica”.
A lógica e a retórica são teorias da argumentação, ou seja, tratam das formas dos argu-
mentos. Comecemos pela lógica. O argumento lógico mais típico é o silogismo, que se compõe
de premissas (em geral duas) e conclusão. As premissas demonstram a conclusão.
Um exemplo característico é:
exemplo 1
Os dois primeiros enunciados são as premissas; o último é a conclusão. Num caso como
este, já que conhecemos um pouco sobre pássaros, sabemos que os três enunciados são verda-
deiros. Mas não é isto que faz do silogismo um bom exemplo de argumentação. O que importa
no silogismo é a relação entre os enunciados, e a verdade ou falsidade de cada um. Assim, por
mais absurdo que possa parecer, o exemplo seguinte também é um silogismo perfeito:
Observe a distribuição das palavras em negrito, em itálico e sublinhadas nos dois silo-
gismos. É a mesma nos dois casos. Se o silogismo fosse o argumento seria falacioso.
exemplo 3
exemplo 4
Se o lemos na linguagem da teoria dos conjuntos, a demonstração fica ainda mais clara:
Os pássaros pertencem ao conjunto dos seres que voam; o beija-flor pertence ao con-
junto dos pássaros; logo, o beija-flor pertence ao conjunto dos seres que voam. Se desenharmos
círculos no interior de outros círculos, cada um denotando uma classe (pássaros, beija-flores,
que voam), fica ainda mais claro.
Uma forma comum de silogismo apresenta uma só premissa, ficando a outra implícita.
Se ele é humano, então pode errar. Premissa implícita: todos os humanos podem errar.
Este tipo de silogismo (chamado entimema) é muito comum na retórica. Um discurso
pode persuadir sem demonstrar. Num certo sentido, pode-se dizer que a retórica se baseia nas
crenças dos ouvintes, que ela as explora.
Outro aspecto sobre argumentos ligado à lógica é a diferença entre argumento dedutivo
e argumento indutivo. A dedução é um procedimento que vai do geral para o particular. Um
exemplo banal: dado que todos os corpos caem, é melhor segurar este copo com cuidado, senão
ele cai (porque o copo é um corpo). Mas são frequentes os procedimentos que vão do particular
ao geral (quase todos os nossos preconceitos em relação a “outros” grupos são generalizações
a partir de um conhecimento parcial). Os livros dão exemplos cotidianos, como o teste para
ver se a sopa está bem temperada: prova-se uma colherada e generaliza-se para todo o con-
teúdo da panela as características dessa pequena porção. Outro exemplo são pesquisas como
as eleitorais. Os institutos perguntam a cerca de 2 mil pessoas em quem elas vão votar e gene-
ralizam para mais de 100 milhões de eleitores os percentuais obtidos na amostra. A validade
dos argumentos indutivos como o das pesquisas eleitorais é proporcional à representatividade
da amostra: os realmente pesquisados devem representar adequadamente a diversidade dos
eleitores, homens e mulheres, de diversos graus de escolaridade, de diversos níveis de renda,
distribuídos pelas diversas regiões do país etc.
Nos textos dissertativo-argumentativos, esses tipos de argumento aparecem de maneira
mais ou menos sofisticada. É com eles que se constrói tal tipo de texto.
exemplo 5
Os argumentos que sustentam a tese (1) virão dos laboratórios, que vão mostrar, com
análises, que o Aedes aegypti pode estar infectado e pode transmitir o vírus às pessoas que pica
(detalhando: mostra-se também que são as fêmeas as responsáveis pela transmissão do vírus).
exemplo 6
Os argumentos que sustentam uma tese como essa podem ser, por sua vez, ideológicos
(buscados na declaração universal dos direitos humanos, por exemplo), mas também podem ser
científicos (por exemplo, avaliações genéticas ou fatos históricos que mostram que, mesmo em
condições desiguais, mulheres produziram grandes feitos – nas artes, na ciência, na política…).
Outra divisão importante no que se refere aos argumentos diz respeito a eles serem
factuais, até mesmo numéricos ou estatísticos (quantitativos) ou a serem “abstratos” (expres-
sando valores, isto é, ideologias).
Os argumentos quantitativos são extremamente comuns. É neles que se baseia frequen-
temente a avaliação do desempenho da economia (crescimento do Produto Interno Bruto –
PIB –, distribuição de renda, queda ou aumento do valor dos salários na economia de um país,
número de cidadãos da classe média, número de cartões de crédito, número de endividados,
aumento ou diminuição do preço das commodities – o menor crescimento da China faz com que
se compre menos, o que prejudica o Brasil, que vendia muito para a China etc.). Os números
estão em muitos dos argumentos apresentados no debate sobre aquecimento global (quan-
tidade de tal gás, aumento de temperatura, mudanças climáticas, período de tempo mais ou
menos longo).
A palavra “ideologia” tem a ver com ideias — não com ideias de esquerda, como comumente se pensa; em geral segue-se a
1
tese que opõe ideologia e ciência, como se não houvesse nenhuma ideologia nas ciências e nada de ciência nas ideologias.
Breve conclusão
Usamos a língua na forma de textos e eles são repletos do modo como olhamos e inter-
pretamos o mundo, das nossas crenças e descrenças, das nossas posições e opiniões.
Isso porque, como seres dotados de razão e de vontade, nós constantemente avaliamos,
julgamos, criticamos, isto é, formamos juízos de valor. E, por meio do que dizemos (na fala ou
na escrita), tentamos influir sobre o comportamento do outro ou fazer com que o outro com-
partilhe de nossas opiniões. Por essa razão, o ato de argumentar, isto é, de orientar o que se
diz para determinadas conclusões, constitui o ato linguístico fundamental.
Neste artigo, veremos que toda língua possui em seu bojo uma série de elementos que
permitem orientar nossos enunciados para determinadas conclusões. São os operadores argu-
mentativos, objeto de nossa atenção na primeira parte deste estudo. Em seguida, nosso foco
recai sobre os articuladores textuais e as funções que exercem no plano do encadeamento e da
argumentação do texto. Por fim, o nosso olhar se volta para expressões nominais referenciais
e a orientação argumentativa que imprimem ao texto.
1 Operadores argumentativos
* Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e é doutora em Língua Portuguesa pela mesma instituição.
exemplo 1
Por quê?
No exemplo, todos os argumentos têm o mesmo valor para levar o interlocutor à con-
clusão desejada: a História é mesmo a bola da vez.
Representando graficamente esses argumentos que compõem uma classe argumenta-
tiva, temos:
exemplo 2
exemplo 2
Por quê?
Diz aos outros quem somos (argumento 1).
Diz aos outros o que queremos (argumento 2).
Diz aos outros o que gostaríamos de ser (argumento 3).
O enunciado poderia ter a seguinte forma:
A roupa é elemento que nos define. Não apenas diz aos outros quem somos, como também o que
queremos e até (mesmo, ainda) o que gostaríamos de ser.
No exemplo, os três argumentos são orientados para a mesma conclusão, mas há uma
gradação: do argumento mais fraco ao mais forte, na escala argumentativa. Esquematicamente,
podemos representar a escala assim:
exemplo 4
Somam argumentos a favor de uma mesma conclusão, isto é, argumentos que fazem
parte de uma mesma classe argumentativa: e, também, não só… mas também, ainda; até, até
mesmo, inclusive (estes três últimos marcam o argumento mais forte de uma escala).
exemplo 5
“Nunca confie em um computador que você não pode jogar pela janela”, disse Steve Wozniak, cofun-
dador da Apple, talvez logo após um momento de fúria com uma máquina. Mas o ditado, que possui
tom anedótico, ganha ares sinistros quando é a máquina que tem capacidade de jogar o humano
pela janela.
É essa possibilidade que Nick Bostrom, filósofo e professor da Universidade de Oxford, explora no
livro Superintelligence: Paths, Dangers, Strategies (Superinteligência: Caminhos, Perigos, Estratégias,
ainda sem edição em português), lançado em setembro do ano passado.
Na obra, o estudioso sueco argumenta que é questão de tempo até que nós, humanos, criemos
computadores que superem nosso intelecto.
Em um período de décadas, portanto, algumas máquinas terão capacidade intelectual superior à
de humanos como Isaac Newton, Charles Darwin e Sigmund Freud. O desafio passa a ser não só
controlar como surge essa superinteligência, mas também os caminhos pelos quais se desenvolve.
(ARAGÃO, 2015)
Quando a escala é orientada para a negação, usamos operadores como “nem”, “nem
mesmo”.
exemplo 6
Há um conflito e as partes não se reconhecem nem pedem mediação. Em lugar de reconhecer desi-
gualdades de distribuição de renda e lidar com isso, se constrói o muro. A mensagem é: aqui não
entra. Isso contribui para o ressentimento social e para o aumento do ódio, mal-estar.
(DUNKER, 2015)
Há, ainda, o operador “aliás”, que acrescenta um argumento decisivo de maneira sub-rep-
tícia, como se não fosse necessário, para “dar o golpe final”, nos ensina Koch (1987, 1989, 1992).
exemplo 8
Máquinas e homens falham eventualmente, por mais preparados que sejam. Contra falhas
humanas, há pouco que as máquinas possam fazer, mas é desejável que se permita ao ser
humano tentar corrigir as falhas eventuais das máquinas.
(ROSSI, 2015)
exemplo 9
Embora representante tardio do teatro medieval, Gil Vicente, pai do palco português, está entre
os melhores do período. Dele é obrigatório percorrer O auto da barca do inferno, A farsa de Inês
Pereira e O auto da fama.
(GUZIK, 2005)
Vale ressaltar, com base em Koch (1987, 1989, 1992, 2014), que os operadores perten-
centes ao grupo do “mas” e do “embora” funcionam de modo semelhante do ponto de vista
semântico, mas de forma diferente do ponto de vista da estratégia argumentativa. Isso porque,
enquanto o uso do “mas” é marcado pela estratégia do suspense, pois primeiro faz o interlocutor
pensar numa dada conclusão para depois apresentar o argumento que levará a uma conclusão
contrária, o uso do “embora” é marcado pela estratégia de antecipação, visto que anuncia de
antemão que o argumento introduzido pelo “embora” vai ser anulado, não tem peso, não vale.
exemplo 10
Torturar um corpo é bem menos eficiente do que moldar uma mente. É por isso que a comunicação
é uma potência. O pensamento coletivo (que não é a soma dos pensamentos individuais em inte-
ração, mas sim um pensamento que absorve e difunde tudo no conjunto da sociedade) elabora-se
dentro do campo da comunicação. Pois é justamente deste campo específico que vêm as imagens,
as informações, as opiniões; além disso, é também por meio de mecanismos comunicacionais que
a experiência se difunde e se transmite em nível coletivo.
(CASTELLS, 2011)
Operadores de explicação
exemplo 11
exemplo 12
Como a geografia é uma área de estudo ampla, ela foi dividida em geografia física e humana, embora
os profissionais ressaltem que o objetivo dessa ciência é integrar os dois aspectos.
(VÁRIOS AUTORES, 2007)
exemplo 13
Vou tentar ser mais claro: depois que o pintor deixou de imitar a natureza para criar a partir da tela
vazia e dos elementos gráfico-pictóricos, entendeu que fazer o quadro é que importava e, para isso,
tanto podia valer-se de cores e linhas, de uma figura inventada, quanto de outros elementos como
papel colado, barbante, areia ou o que fosse. Realizar o quadro (a obra) não se limita a pintá-lo,
mas fazê-lo. É nisso que Maria Tomaselli se aproxima dos cubistas: ela também “faz” o seu quadro;
não apenas o pinta.
(GULLAR, 2014b)
Operadores de alternância
exemplo 14
Seja para os amantes da adrenalina, seja para os aficionados por parques ou para quem prefere se
aventurar na pesca, a Flórida é o destino certo para te conquistar.
(Informe publicitário. Folha de S. Paulo, 26 mar. 2015)
2 Articuladores textuais
Articular dois atos de fala em que o segundo toma o primeiro como tema com
o fim de justificá-lo ou explicá-lo; contrapor-lhe ou adicionar-lhe argumentos;
generalizar, especificar, concluir a partir dele; comprovar-lhe a veracidade;
convocar o interlocutor à concordância etc.
exemplo 15
Sabe quando duas pessoas estão brigando e aparece alguém no meio para apartar a confusão,
pedindo para elas pararem de se agredir e tentando fazer que voltem a ser amigas? Ou quando
duas pessoas que falam línguas diferentes não conseguem se entender e, mais uma vez, é preciso
que alguém resolva a situação, conversando com cada uma delas em seus próprios idiomas? Pois
é mais ou menos isso que faz um diplomata, só que não entre pessoas, mas entre países.
(VÁRIOS AUTORES, 2007)
exemplo 16
Ou isto ou aquilo
Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
(MEIRELES, 1990)
exemplo 17
Aos sinólogos juntaram-se linguistas e especialistas em fengshui para discutir que animal repre-
senta o ano no zodíaco chinês.
Afinal, o Ano-Novo chinês, que começa na quinta (19), é o ano da cabra, da ovelha, ou do carneiro?
A confusão ocorre porque o caractere chinês para o oitavo dos 12 signos do horóscopo chinês é
“yang”, que pode se referir aos animais citados e a outros, como a gazela.
(NINIO, 2015)
exemplo 18
Antes, é preciso esclarecer como a questão do gênero é tratada neste livro. Quando falamos em
gênero, estamos falando da construção cultural do que é percebido e pensado como diferença
sexual, ou seja, das maneiras como as sociedades entendem, por exemplo, o que é “ser homem”
e “ser mulher”, e o que é “masculino” e “feminino”. Assim, podemos tratar essas noções como
conceitos históricos.
(BASSANEZI PINSKY, 2014).
Para sinalizar convite à aceitação da decorrência apresentada, pode ser usado o articu-
lador daí que.
exemplo 19
Quando cheguei aos Estados Unidos ano passado […], meus amigos, colegas da universidade,
estavam todos 50 por cento mais pobres. Os seus fundos de pensões estavam investidos na bolsa,
a bolsa tinha caído. Ou seja, a pensão passou a ser um fator de risco. Ora, não podemos tolerar,
em países onde as desigualdades sociais são tão graves, que os sistemas de pensões passem
a ser mais um fator de risco para os cidadãos. Daí que continuo a defender o sistema público.
(O MUNDO…, 2003)
Os filhotes selecionados ficam com famílias socializadoras, que são responsáveis por mostrar aos
cães a maior diversidade possível de ambientes, situações e pessoas.
Depois, voltam às escolas para receber o adestramento, que envolve capacitações diversas.
Por último, os cães passam pelo processo de aproximação com os futuros donos, que vão aprender
a comandá-los.
Apesar de os cachorros, por tradição, serem doados, todo o processo de treinamento pode custar,
em média, até R$ 60 mil.
Labradores e goldens são os assistentes mais comuns, mas outras raças também podem ser treinadas.
exemplo 21
“A leitura de um texto exige muito mais que o simples conhecimento linguístico compartilhado pelos
interlocutores”, ensinam Ingedore Villaça Koch e Vanda Maria Elias no livro Ler e compreender, os
sentidos do texto. De fato, quanto mais rico e pleno de referências for o universo cultural do leitor,
mais rica poderá ser sua leitura. Por outro lado cabe ao autor conhecer o leitor, o interlocutor, se
de fato deseja estabelecer um diálogo frutífero e não um monólogo estéril.
(PINSKY, 2010)
Marcadores continuadores como aí, daí, então, agora, aí então podem ser bastante fre-
quentes também em textos escritos, especialmente quando se deseja dar uma feição seme-
lhante à da fala.
A história real, de tão delirante, é daquelas de bater o olho e decretar que daria filme. Mas, do
ponto de vista de roteiro, tem um problema grave: o final chocho. A saída do país foi fácil. Ninguém
no aeroporto deu muita bola para os gringos. Embarcaram tranquilos.
Agora, tente se imaginar no lugar do roteirista de “Argo”. Ele lê o texto da “Wired” e pensa: OK, his-
tória saborosa, mas só até certo ponto. Como imprimir ritmo e suspense à parte final?
Aí entra, a meu ver, a grande sacada do filme. A reportagem cita de passagem a convocação, pelos
invasores da embaixada, de crianças tapeceiras. Acostumadas a lidar com fios que, unidos, fazem
surgir os desenhos complexos da tapeçaria persa, foram chamadas para tentar reconstruir docu-
mentos que os americanos, às pressas, tinham picotado no começo da confusão.
(PEREIRA JUNIOR, 2013)
exemplo 23
Quantas línguas existem no mundo? Essa é uma boa pergunta, mas lamentavelmente não há para
ela uma resposta precisa. Estima-se que haja entre seis e sete mil línguas. Mas esse é só um número
aproximado por dois motivos. Primeiro porque existem muitas línguas ainda não catalogadas na
África, na Ásia e na América do Sul. Em segundo lugar, não é fácil identificar uma língua, porque as
línguas não são homogêneas, usadas por todos os seus falantes da mesma maneira. Pelo contrário,
elas comportam muita variação.
(BORTONI-RICARDO, 2014)
exemplo 24
Há alguns anos, numa instância preliminar, o Iphan atendeu ao então Super-Eike Batista e aprovou
a construção de um centro de convenções na Marina da Glória. O projeto era amparado pelo pre-
feito Eduardo Paes. Felizmente, os santos que defendem o Rio fizeram com que Eike e seu mafuá
fossem à lona e com que caducasse a licença para o restaurante da fortaleza.
Do jeito que estão as coisas, o monstrengo parece ter sido arquivado, mas não custa ao Exército
anunciar que, em nome de José Bonifácio, Olavo Bilac e Lott, não desfigurará a entrada da barra.
(GASPARI, 2015)
Em termos fisiológicos, aprendizagem significa que nosso cérebro fez algum exercício – digeriu
informação, relacionou conceitos e memórias de maneiras novas – e por meio disso nossas células
nervosas foram alteradas.
(KHAN, 2013)
exemplo 26
Do ponto de vista científico, os sonhos são um recurso adotado pelo organismo para deixar o cérebro
ativo durante as horas de sono, período em que alguns dos acontecimentos do dia são arquivados
nas prateleiras de uma gigantesca biblioteca cerebral, que seria a memória como um todo.
(TURBINE, 2015)
exemplo 27
Mas é possível ensinar originalidade? Com franqueza, duvido. Todavia, ao mesmo tempo confio
totalmente que mais criatividade emergiria da minha escola imaginária do futuro próximo. Meus
motivos para acreditar nisso não são misteriosos. Mais criatividade emergiria porque teria per-
missão de emergir e porque haveria tempo para isso.
(KHAN, 2013)
exemplo 28
Na verdade, quase todo projeto de redação começa com um plano que visa produzir um docu-
mento de formato específico, geralmente moldado pela experiência de gerações de escritores, que
adotam certos formatos não só para agradar os editores ou supervisores, mas para se pouparem
do trabalho de inventar um novo formato para cada projeto e, tão importante quanto isso, para
ajudar os leitores a identificarem seus objetivos.
(BOOTH, 2005)
exemplo 29
A única opção realista seria nos instalarmos em nossa vizinha, a Lua. Mas, mesmo ali, os problemas
para o estabelecimento de uma colônia humana parecem insolúveis a curto prazo.
Para começar, a construção de uma pequena cidade espacial exigiria dezenas de milhares de lan-
çamentos para levar até lá o material necessário.
Na década de 1980, a Nasa calculou quanto custaria construir uma simples estação espacial per-
manente na Lua.
Resumindo: não podemos usar nosso satélite como refúgio no próximo ano, nem tampouco na
próxima década. Isso nos deixa com apenas um mundo habitável ao nosso alcance: a Terra.
(DESPEYROUX, 2011).
exemplo 30
A onda mais recente para novas empresas de internet é apostar nos desconhecidos. Depois de
quase uma década buscando formas de capturar laços sociais já existentes (vide a hegemonia do
Facebook), a nova fronteira do momento é usar a rede para colocar em contato pessoas que não
se conhecem, com fins diversos. Em suma, os “desconhecidos” se tornaram a bola da vez.
(LEMOS, 2015)
Introduzir o tópico
Conforme diz Umberto Eco, “uma Europa de poliglotas não é uma Europa de pessoas que falam
fluentemente numerosas línguas, mas sim, no melhor dos casos, de pessoas que podem se encon-
trar, falando cada uma a sua própria língua, e entendendo a do seu interlocutor, ainda que sem ser
capaz de falar esta última fluentemente”.
A esse respeito, o Conselho da Europa elaborou ferramentas preciosas, entre as quais o Quadro
Europeu Comum de Referência para as Línguas, que propõe uma escala de seis níveis e reconhece
como perfeitamente legítima a possibilidade de um aluno possuir níveis de competência muito
diferentes nas capacidades de compreensão ou de expressão numa mesma língua.
(CASSEN, 2015)
Na absoluta maioria dos casos, formas referenciais encerram valor persuasivo, isto é, têm
o poder de orientar o interlocutor no sentido de determinadas conclusões. Portanto, a refe-
renciação por meio de formas nominais é um dos mais importantes recursos argumentativos
que a língua nos oferece.
Assim, a orientação argumentativa que pode ser realizada apenas por meio do nome-
-núcleo ou pelo acréscimo de modificadores avaliativos (positivos ou negativos) evidencia a
relação íntima entre formas nominais referenciais e argumentação. Isso porque o emprego de
uma forma nominal implica sempre uma escolha de características ou traços do referente que
possibilita ao interlocutor construir do referente uma determinada imagem, vê-lo sob um deter-
minado prisma, o que permite a esse interlocutor extrair do texto informações importantes sobre
opiniões, crenças e atitudes do seu produtor, de modo a auxiliá-lo na construção do sentido.
exemplo 32
Hoje, 26 de março de 2015, o rei Ricardo 3º, da Inglaterra, voltará a ser sepultado em uma ceri-
mônia na catedral de Leicester, 529 anos depois de sua morte na batalha de Bosworth Field, nas
cercanias da cidade, em 1485. Ricardo 3º foi o último dos reis medievais ingleses. Reinou de 1483
a 1485. Sua morte marcou o fim das “Guerras das Rosas”, entre a casa de Lancaster (representada
por uma rosa vermelha) e a casa de York (representada por uma rosa branca).
[…]
Até a rainha Elizabeth escreveu um tributo a Ricardo 3º. Ele já não é considerado como “o venenoso
sapo de costas encurvadas” que Shakespeare famosamente descreve em sua peça. Isso agora é
encarado como manobra de propaganda dos Tudors. E tampouco é visto como o verdugo dos dois
jovens príncipes encarcerados na Torre de Londres. E não é mais considerado como rei que tentou
fugir do campo de batalha oferecendo “meu reino por um cavalo”.
Mas a história está nos olhos de quem a vê.
(MAXWELL, 2015)
exemplo 33
Viva a banana!
Daniel Alves, o lateral direito brasileiro que joga pelo Barcelona FC, causou um terremoto no domingo
passado (27/4) ao pegar, descascar e comer uma banana jogada nele como insulto racista durante
um jogo do campeonato espanhol no estádio El Madrigal, contra o Villarreal, na cidade espanhola
homônima. Logo depois desse episódio lamentável, o Barcelona virou o jogo aos 37 minutos do
segundo tempo, quando o atacante argentino Lionel Messi marcou o gol que deu a vitória por 3 a
2 à equipe catalã. Foi o resultado perfeito.
(MAXWELL, 2014)
Daniel Alves, o lateral direito brasileiro que joga pelo Barcelona FC, causou um terremoto no domingo
passado (27/4) ao pegar, descascar e comer uma banana jogada nele como insulto racista durante
um jogo do campeonato espanhol no estádio El Madrigal, contra o Villarreal, na cidade espanhola
homônima.
O rótulo indica uma avaliação negativa do episódio (marcada pelo uso do modificador
“lamentável”) por parte de quem produz o texto. Assim também funciona a expressão nominal
“o resultado perfeito”, só que, agora, esse rótulo indica uma avaliação positiva (marcada pelo
modificador “perfeito”) do que foi descrito no segmento textual:
Resumindo o que foi apresentado nesta unidade, vimos que argumentar é uma ativi-
dade que exige, entre outros, conhecimento e uso de recursos da língua, como os que foram
estudados nesta unidade.
ALCANTARA E SILVA, L. Leida, onde Rembrandt nasceu, tem moinhos, museus e campo
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BASSANEZI PINSKY, C. Mulheres dos anos dourados. São Paulo: Contexto, 2014.
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VÁRIOS AUTORES. O que você vai ser quando crescer? São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2007.
* Professora da Universidade Federal do Ceará e pós-doutora em Linguística Textual pela Universidade Estadual de Campinas.
• tese inicial;
• dados (argumentos);
• garantia (conhecimentos implícitos que apoiam e complementam os argumentos);
• inferências (ligações implícitas que permitem relacionar os dados à conclusão);
• conclusão nova tese (ponto de vista central).
Se o conjunto dessas fases é considerado como critério fundamental para, na Competência II,
classificar um texto como “dissertativo-argumentativo”, o que deve estar contemplado na III?
O investimento retórico. Compete ao corretor julgar se o participante foi eficiente na argumen-
tação persuasiva e, para isso, deve ponderar sobre o caminho argumentativo escolhido na redação.
Analisará, então, se o produtor do texto formulou os argumentos organizando-os por ideias que se
associam ou que se dissociam. Deverá observar se ele se valeu de técnicas argumentativas para
tornar mais persuasivas as informações e opiniões acrescidas. Para transformar essas informações
e opiniões em dados ou argumentos, o participante pode se valer de definições, de comparações,
de técnicas de inclusão de partes num todo, de cálculos de probabilidade, de exemplos, ilustrações
e analogias, entre outros expedientes retóricos. Na verdade, não há fórmulas prontas para trans-
formar informações e opiniões em argumentos convincentes para a tese central.
Tese inicial
A primeira década do século XXI é significativa para o Brasil, pois marca a entrada do país
na lista de nações preferidas por imigrantes estrangeiros, que se dispuseram a adotar uma nova
pátria. Desde então, o Brasil comporta o Brazil: o país é a mais nova Pasárgada de imigrantes
oriundos das mais longínquas e diversas nações.
Por comparação
Até o início dos anos 2000, o Brasil comumente não era atrativo para imigrantes, já que
sua economia estava pautada pela instabilidade, com inflação e desempregos em níveis ele-
vados, repelindo, desse modo, os imigrantes estrangeiros para outros países que dispunham
de um quadro econômico mais favorável. A situação modifica-se quando o Brasil apresenta
melhores resultados econômicos, passando de uma economia dependente externamente, prin-
cipalmente no que tange ao comércio, a uma economia mais estável, ganhando status de país
em desenvolvimento, ao deixar de lado a alcunha de país subdesenvolvido.
Um país cuja economia vem crescendo claramente em relação a décadas passadas atrai
as pessoas do mundo todo, em busca de melhores condições de vida.
Por causa-consequência
a) Outros fatores são determinantes para esse novo paradigma do movimento imigra-
tório do século XXI, como as crises que atingiram os principais centros financeiros
capitalistas, deflagradas nos Estados Unidos desde 2008, e nos últimos dois anos
em diversas nações europeias. Tais crises fizeram com que os estrangeiros viessem
para o Brasil, sempre em busca de melhores oportunidades.
b) Soma-se a isso o clima brasileiro, visto também como um forte atrativo, já que pro-
porciona uma melhor adaptação do estrangeiro no país. Sem falar, claro, na hospi-
talidade brasileira, tão difundida e veiculada em outras nações.
Existem diversas teorias do sentido, seja das palavras ou morfemas, seja das frases ou
orações ou enunciados.
Há teorias que privilegiam o sentido “literal”, em geral ligadas ao que se chama “valor
de verdade”. Um exemplo de tipo clássico é “A grama é verde”. A suposição primeira é que
“grama” e “verde” são palavras que designam certo tipo de objeto (ou classe de objetos –
no caso, diversos tipos de grama) e determinada propriedade (no caso, uma cor). O artigo defi-
nido “a” pode ter dois sentidos, basicamente:
Segundo essa teoria, atribuir um sentido a esta oração é saber quando é verdadeira e
quando é falsa. Há duas maneiras de fazer isso: conferir se a grama é ou não verde ou assumir
uma tese segundo a qual a oração é verdadeira se a grama for verde (sem conferir se é ou não).
1) uma é para que as teses sejam mais bem compreendidas por todos (se os exemplos
fossem enunciados ou psicanalíticos ou mesmo religiosos ou literários, a questão
da interpretação poderia ser mais complicada);
2) outra razão é que se quer mostrar que a questão do sentido não é relevante apenas
para os campos tradicionalmente considerados profundos, e, portanto, não é apenas
uma questão de especialistas, mas de qualquer falante;
3) a terceira razão é que, na língua falada, a probabilidade de haver sentidos “implí-
citos” é maior.
apesar de ducrot ter dedicado grande parte de seu trabalho a análises como estas, sua
questão fundamental é mostrar que mesmo enunciados que não contenham palavras como
estas têm valor argumentativo. exemplos diários desta tese são enunciados como “vai chover/
esfriar” ( leve/vou levar o guarda-chuva/uma blusa), “o cachorro não comeu” tem de
lhe dar ração/pode estar doente etc. a análise das circunstâncias é decisiva para a descoberta
do sentido. Mas as circunstâncias não são meros contextos; são práticas e/ou estão ligadas a
ideologias, a valores sociais e históricos (dar comida para o cachorro; prevenir-se contra o frio
ou chuva; dar mais valor ao meio ambiente ou à produtividade etc.).
2 OS TOPOI
ducrot desenvolve em separado, mas para melhor sustentar suas teses, um aspecto
segundo o qual a argumentação funciona: porque se baseia em topoi ou lugares, no sen-
tido que esta palavra tem na retórica (daí “lugar-comum”), ou seja, em crenças ou em
“verdades” amplamente aceitas.
Por exemplo, se alguém pergunta a um amigo se quer tomar vinho e ele responde “não,
está muito quente”, a resposta evoca um tópos, isto é, um lugar-comum, segundo o qual vinho
é bebida de estações (mais) frias. com cerveja seria o inverso, pelo menos em nossa cultura (o
leitor pode construir o diálogo correspondente).
contrariar um lugar-comum, isto é, um valor aceito, pode criar problemas de interpre-
tação para os enunciados, eventualmente para sequências textuais. outra possibilidade é que
tal contrariedade represente outra posição (cultural, ideológica) ou que há pessoas de compor-
tamento não convencional (que tomam sorvete no inverno, vinho na praia etc.) – ver abaixo, o
tópico sobre blocos semânticos.
os exemplos de ducrot (adaptados) são, entre outros:
Pedro tem dinheiro (saúde), portanto é feliz (que funciona com base no tópos “ter dinheiro [saúde]
traz felicidade”).
Pedro tem dinheiro (saúde), mas não é feliz (que contariam os lugares-comuns, ou os valores domi-
nantes, por muitos considerados universais).
Para verificar como funcionam os topoi (plural grego de tópos), vejamos outro exemplo
com “mas”, em outro campo, o basquete. Suponhamos que, faltando três segundos para o final
de um jogo, o técnico do time que está perdendo por um ponto proponha escalar certo jogador
porque “ele é alto” (no basquete, ser alto é um valor; é um lugar-comum que jogadores de bas-
quete devem ser altos, embora se aceite que os armadores possam ser baixos). Suponha agora
que seu auxiliar lhe diga: “é alto, mas é lento” (a velocidade é outro lugar da argumentação).
“É alto” é um argumento para escalar o jogador; “é lento”, para não escalar. A decisão do técnico
(é ele quem decide, o que é outro tópos…) dependerá de ele preferir velocidade ou altura, o
que, por sua vez, depende da jogada que ele vai propor aos seus atletas.
Esse exemplo serve também para ilustrar outra tese de Ducrot, a da polifonia. Segundo
ele, muitos enunciados apresentam mais de uma voz, que podem ser vozes de locutores (como
em um diálogo “real”) ou de enunciadores (pontos de vista representados).
Os dois casos podem ser representados por um diálogo como o exemplificado acima:
o técnico propõe escalar um jogador alto, e seu auxiliar, um jogador rápido. São dois locutores
divergindo. A sequência “é alto, mas é lento” pode também ser proferida (ou pensada) por
um só locutor; digamos, pelo treinador. A análise de Ducrot é que, mesmo nesse caso, estão
representados dois pontos de vista: um em favor da altura, outro em favor da rapidez (que
fazem com que o treinador tenha dúvida sobre qual decisão tomar; ambas as posições vêm da
história do basquete).
Como se pode ver, o tópos é uma espécie de implícito. Eventualmente, ele é o pano de
fundo de um argumento (como é o caso da relação entre vinho e frio e entre cerveja e calor;
e também entre altura ou rapidez do atleta para decidir partidas de basquete).
A leitura dos jornais mostra que o Brasil parece ser o país do “mas”. São comuns notícias
do tipo “o emprego aumentou no último mês, mas ainda mostra queda no último trimestre”.
Não seria difícil mostrar que essa manchete é “negativa” ou “positiva”, dependendo da
posição do leitor/do jornal em relação ao papel do governo na condução da economia. A notícia
poderia ser “emprego caiu no trimestre, mas mostrou recuperação no último mês”; seria uma
avaliação “positiva”. A oração que segue “mas” predomina, ou seja, é ela que propõe o argu-
mento decisivo e, portanto, o tom dessa notícia.
exemplo 3
BRASÍLIA – Após um déficit de R$ 7,4 bilhões em fevereiro, o governo central – que reúne Tesouro
Nacional, Previdência Social e Banco Central – registrou superávit primário de R$ 1,463 bilhão em
março. Isso significa que o governo economizou para pagar juros da dívida pública no mês pas-
sado. No entanto, o resultado representa uma queda de 54,3% na comparação com a poupança
de R$ 3,2 bilhões registrada em março de 2014. Os dados foram divulgados nesta quarta-feira
pelo Tesouro Nacional.
3 Blocos semânticos
A teoria da semântica argumentativa passa por uma espécie de terceira fase, que não
muda o essencial das teses de Ducrot e Anscombre. A diferença diz respeito a uma questão de
detalhe. Nas fases anteriores, a tese básica era que a primeira parte de um enunciado (com
“mas”, por exemplo) sugeria uma sequência (chuva, então guarda-chuva).
A diferença nesta terceira fase consiste basicamente em propor que o primeiro enunciado
(ou mesmo uma palavra) forma um bloco com a sequência. Um exemplo de bloco pode ser “rico,
então feliz”. Isto é, propõe-se que a sequência faz parte do próprio sentido de “rico” (no mundo
político antigo, por exemplo, “comunista, portanto ateu” ou “capitalista, portanto explorador”).
A teoria propõe que há duas sequências possíveis. Uma é considerada normativa; a outra,
transgressiva. A normativa segue a cultura dominante (o conector típico é “portanto” – e sinô-
nimos, isto é, conectores que mantêm uma direção). A transgressiva a contraria (o conector
típico é “no entanto” – e sinônimos, isto é, conectores que mudam a direção, como “mas”,
“mesmo assim”). Exemplos:
exemplo 4
É atencioso, portanto não tem problemas com os colegas (assume que é um valor universal que pes-
soas atenciosas se dão bem com os outros). Outro exemplo: Faz calor, portanto vamos tomar cerveja.
É atencioso, no entanto tem problemas com os colegas (contraria uma expectativa que seria uni-
versal etc.). Outro exemplo: Faz calor, mesmo assim vou tomar vinho.
Vale a pena considerar um fato: no universo que se poderia chamar de cultural, é possível
que haja verdadeiros lugares-comuns (ou que eles dominem bastante). Mas, no mundo ideo-
lógico (debates sobre economia, política, costumes…), o mais comum é haver divisões sociais,
ou seja, lugares-comuns que só valem para grupos, não para uma sociedade inteira.
Referências
RODRIGUES, F. O quase nanico Democratas. Folha de S. Paulo, São Paulo, 30 nov. 2009.
Disponível em: <http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2009/11/30/2>. Acesso em: 30 nov. 2009.
Opinião, A2.
* Professor da Rede Estadual de Educação de Sergipe e da Faculdade Décimo e mestre em Estudos Literários pela Universidade
Federal de Sergipe.
1 Proposta de leitura
Durante a análise de alguns textos escritos pelos participantes do Enem, pudemos cons-
tatar certa regularidade no uso de algumas figuras retóricas. Na figura 1, tentamos sintetizar
alguns desses usos.
Como já dissemos, toda figura retórica — assim como todo discurso — tem um componente
implícito. No caso dos usos localizados nos textos, percebemos que a conotação pode ser marcada
como um recurso retórico-argumentativo, que busca a interlocução com o leitor e uma possível
persuasão deste, e também como um recurso lógico-discursivo, que faz da figura uma ferramenta
de construção de sentido no intuito de conferir concisão textual.
Enquanto recurso retórico-argumentativo, as figuras se dividiriam entre marcadores de uma
crítica ideologicamente implícita no texto e como ideias extraídas de um senso comum que o autor
parece ativar, como forma de validar social e coletivamente seu argumento.
Já as figuras com função lógico-discursiva servem como operadores argumentativos para
conferir objetividade ao texto. De fato, não agem sozinhas porque não têm o mesmo caráter
persuasivo do ramo retórico-argumentativo. No entanto, sem elas os textos tenderiam a ficar
mais densos porque o locutor precisaria de mais recursos para evitar fazer uma personificação
ou uma metonímia, por exemplo.
Metáfora
Marcador Paradoxo
Crítico-Ideológico Ironia
Recurso Metonímia
Retórico-Argumentativo
(interlocução) Metáfora
Hipérbole
Utilização do Metonímia
Componente Senso Comum Antítese
Figura Retórica
Implícito Comparação
Perífrase
exemplo 1 (continua)
No contexto global onde a maioria dos países são capitalistas a publicidade é uma das ferramentas
mais utilizadas para persuadir os consumidores, independente da idade dos mesmos. No Brasil
uma demanda também é elevada, pois ela tenta induzir os interlocutores à prática do consumo
para reduzir o impacto imposto pela propaganda deverão ser adotadas medidas como: controle
do que será divulgado, formas pedagógicas de consumo e uma educação familiar direcionada
para conscientização.
A toda hora vemos na TV, jornais, revistas, internet todo tipo de propaganda pra estes pequenos.
A indústria e comércio de produtos infantis vê nas crianças de hoje potenciais consumidores. Eles
só querem vender seus produtos.
Os textos pertencem ao acervo do Enem 2014 e foram digitados para integrar este artigo
1
Como a publicidade induz até quem tem uma cognição mais avançada, que são os adultos, imagine
o que fará com as crianças, que ainda estão em fase de formação mental. Dessa forma, é preciso
de uma parceria entre ONGs e as autoridades competentes que atuam nesse nicho do “marketing”,
visando à proteção da criança.
Uma forma de tentar neutralizar essas mazelas que o sistema capitalista ensina é a adoção de
ensino voltado para o consumo equilibrado. As escolas podem fazer isso nas aulas e em projetos
que levem as crianças a refletirem como o capitalismo utiliza a propaganda para vender.
Além disso, uma base familiar, que ajude as crianças com diálogo e apoio, é fundamental para evitar
que esses pequenos seres indefesos absorvam as informações veiculadas pela mídia com o intuito de
forçá-los a levar seus pais a passarem rapidamente o cartão ou clicarem repetidamente no mouse.
Baseado no exposto acima, e sabendo que não existem leis em nível mundial que proíbam total-
mente essas práticas, ou seja, esse segmento é controlado apenas por resoluções, é necessário
que o Estado e as diversas entidades, ativistas, ONGs unam forças para proteger o futuro das que
gerações futuras.
exemplo 2
Alienação Comercial
Atualmente o mundo vem sofrendo uma profunda e vasta influência por parte de grandes corpo-
rações globais a fim de persuadir as pessoas consumirem diferentes produtos e isto, o processo de
persuasão, vem sendo mirado nas pessoas desde cedo, ainda criança num forte sistema de alie-
nação comercial.
A revista “Super Interessante” fez uma matéria mostrando o quanto as pessoas estão consumindo
produtos desnecessários, que além de prejudicar gradativamente o meio-ambiente, estão contur-
bando a mente e formação das crianças devido as massivas formas de publicidade infantil.
Alguns países, como Noruega, já proíbem publicidades infantis visando assim, um estilo de vida
mais saudável para as pessoas, Em outros lugares, ativistas e ONGs estão em um cabo de guerra
com as empresas e agências de publicidade para discutir os limites éticos da propaganda. As ONGs
criticam o modo como a publicidade chega às crianças.
Fato é que as crianças estão sendo bombardeadas com publicidade, a qual usa propagandas para
afetar o psicológico infantil e criar adultos consumidores compulsivos de suas marcas, trazendo
também um prejuízo para o meio ambiente. Nesse jogo, as crianças são como peças chave para
o comércio.
O Brasil seguindo regras e acordos com empresas publicitárias, sociedade e governo deve, pelo bem
humano e mundial, estabelecer leias claras, seguras e fixas sobre a publicidade infantil. Quebrando
assim essa alienação precoce de crianças.
O texto acima já começa com uma marca conotativa no título: “Alienação Comercial”,
o qual será debatido com argumentos embasados em figuras como metáfora, comparação,
hipérbole e metonímia. A começar pelo título, que já presume uma metáfora, com o desloca-
mento do sentido de alienação para ser atribuído ao comércio, que por extensão significa as
empresas de publicidade.
Uma figura comum nas redações é a comparação das crianças com “peças-chave”, dando
a entender que são parte de um sistema maior. No texto em análise, parece que o autor tenta
firmar uma crítica ao estabelecer uma relação semântica entre a ideia de alienação e uma espécie
de reificação (coisificação) das crianças, em prol do consumismo.
Também aparecem outras metáforas, como “massivas formas” e “cabo de guerra”.
No primeiro exemplo, encontramos uma apropriação de expressão comum nas artes plásticas
atribuída à publicidade com o propósito de reforçar o tamanho e/ou quantidade de investidas
sobre o público infantil; no segundo, fica bem claro o sentido que se quer dar, uma vez que
exemplo 3
As figuras não substituem a ideia central do argumento, antes ajudam a ilustrar e dire-
cionar as intenções textuais para a persuasão do leitor. Percebemos isso no modo como certo
alinhamento ideológico é exposto, ou mesmo como alguns traços de humor podem ser tão
críticos quanto argumentos “referenciais”.
Observamos que na maioria dos textos analisados há alguma figura retórica. Mesmo
que esteja centrada na função lógico-discursiva, a figuração é um suporte bastante criativo na
construção do argumento, dinamizado mais ainda quando o locutor sabe utilizá-la como ferra-
menta retórico-argumentativa. Sem prejuízo para a qualidade do texto, não julgamos que todos
os autores saibam que estão fazendo esse uso conscientemente, mesmo assim, a necessidade
de formar um significado mais complexo – e completo – para suas ideias ativa um grau de cria-
tividade que o avaliador pode interpretar como marca de autoria.
1 Introdução
* Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutora em Linguística pela mesma instituição.
2 A construção da argumentação
exemplo 1
Nos debates acerca da publicidade voltada para o público infantil, há duas questões que se opõem.
Embora para alguns as campanhas publicitárias não exerçam influência sobre o público infantil, para
outros, porém, elas exerceriam influência sobre esse público, o que confirmaria a necessidade de
proteger a infância da mídia.
O pai da psicanálise, Freud, afirma que a consciência seria constituída até aos seis anos de idade,
permitindo que uma criança seja facilmente seduzida pela publicidade. Essa facilidade é usada pela
indústria dos bens de consumo que, através de campanhas publicitárias, e com a ajuda do sistema
capitalista, molda valores e comportamentos. A massa de jovens que ostenta o consumo no Brasil
é exemplar dessa situação.
Somado a isso, a presença cada vez maior da mulher no mercado de trabalho tem consequências
na organização familiar, criando a necessidade de se compensar a ausência da mãe através de bens
materiais. É nesse contexto que aumenta mais a quantidade de produtos feitos para o consumidor
infantil, produzindo crianças incapazes de se proteger da publicidade e à mercê de seu controle.
Por conseguinte, a falta de estímulos a atividades de lazer e esportivas é uma das principais razões
para o tempo que a criança dedica para assistir TV ou para ficar diante de um computador. A dispo-
nibilidade da criança à mídia favorece a ação da publicidade. Somado a isso, datas comemorativas
também são usadas pela publicidade para influenciar o público infantil.
(Excerto de redação do Enem 2014)
direto, localizada na fronteira entre a citação e a narração, a pergunta retórica possui importante
valor persuasivo. Ao introduzir uma pergunta que deverá ser respondida pelo próprio locutor,
ela mostra o problema e prepara o interlocutor para toda a argumentação que vem a seguir.
exemplo 2
Uma resolução que considera abusiva a publicidade infantil foi aprova com o objetivo de garantir
os direitos das crianças, assegurados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Entretanto, uma
questão permanece. Até que ponto a publicidade infantil deve ser autorizada, preservando o direito
das crianças e sem causar prejuízos às empresas voltadas para elas?
O capitalismo, política econômica brasileira, é baseado no consumo da sociedade. Entretanto,
para aumentar seus lucros as empresas têm como alvo muito precoce as crianças, que são exage-
radamente estimuladas ao consumo através de propagandas. O estímulo exagerado do consumo
pode trazer problemas como a obesidade, os vícios e o sedentarismo nas crianças, que se tornarão
adultos com muitos problemas de saúde.
Porém, isso não significa que se deva proibir que empresas anunciem seus produtos para as crianças,
pois elas precisam dos consumidores para existir. Além disso, a falência das empresas não é algo
bom para o país, visto que elas são responsáveis pela criação de empregos, ajudam na economia
e atraem investimentos, ou seja, contribuem com o crescimento. Além do que empresas do setor
infantil possuem diversos produtos feitos para estimular o desenvolvimento das crianças, desde
que utilizados moderadamente.
Assim sendo, é possível verificar a necessidade de leis que regulamentem a publicidade infantil,
sem que haja prejuízos para as empresas do setor.
O padrão dissertativo-argumentativo, que tanto caracteriza a redação escolar, compreende um texto estruturalmente composto
2
pela introdução, que, além de contextualizar a assunto ou tema, apresenta a sua proposição, pelo desenvolvimento, no qual
ocorre a formulação dos argumentos, e pela conclusão, que decorre da formulação dos argumentos.
exemplo 3
A tomada da posição enunciativa ocorre com a aplicação da lei lógica “se P então Q”.
O raciocínio ocorreria mais ou menos da seguinte forma: se os adultos são vulneráveis aos
artifícios das propagandas e campanhas publicitárias, então a vulnerabilidade da criança seria
ainda maior. Tal raciocínio se apoia na premissa implícita de que as crianças seriam mais vul-
neráveis do que os adultos. A vulnerabilidade da criança é justificada pelo argumento introdu-
zido pelo conectivo pois, que estabelece uma relação de causalidade entre a premissa implícita
Referências
KOCH, I. G. V. O texto e a construção dos sentidos. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2000.
Leitura de apoio
DUCROT, O. Dizer e não dizer. Princípios de semântica linguística. São Paulo: Cultrix, 1977.
* Professora da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal e do Centro de Educação a Distância da Universidade de
Brasília.
2 O planejamento de argumentos
A produção de um texto não para na escolha dos argumentos. Devemos lançar mão de
estratégias argumentativas, que são os recursos utilizados para envolver, convencer o leitor.
O emprego da modalidade escrita formal da língua portuguesa, das funções da linguagem,
dos elementos coesivos e a clareza na exposição das ideias são exemplos de estratégias de um
texto mais persuasivo.
A diversidade e o arranjo dos argumentos em um texto também contribuem para o con-
vencimento do interlocutor. A diversidade está relacionada ao nível de informatividade do texto:
as informações devem pertencer a áreas de conhecimento diversas e estar a serviço da defesa
do ponto de vista. O outro lado da moeda da informatividade é a organização dos argumentos.
Um texto repleto de citações, dados, opiniões que não se relacionam não é um exemplo de
uma boa produção escrita. Dessa forma, não basta jogar as informações no texto sem nenhuma
organização; antes, devemos interligá-las, sempre verificando se elas estão relacionadas, por
sua vez, ao nosso projeto de texto.
exemplo 1
exemplo 3
Neste ano de 2014, a revista Vogue Kids gerou polêmica ao trazer uma campanha publicitária com
crianças usando roupas adultas e maquiagem em excesso em poses consideradas sensuais para a
faixa etária. No mundo atual do capital, onde vender e acumular se coloca acima até mesmo da
responsabilidade social, essa publicação é apenas mais um exemplo dessa falta de responsabili-
dade na publicidade infantil. A fim de proteger a criança do marketing abusivo, o Conselho Nacional
de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) aprovou uma resolução para regulamentar as
ações da mídia, causando divergências de opiniões.
Não é de ser espantar que um bom número de países com alto IDH e desenvolvimento social tenham
adotado pelo menos restrições à publicidade infantil. Este meio de atingir a juventude é uma das prin-
cipais artimanhas perversas do capitalismo desmedido em que vivemos para estimular a banalização
da formação cultural e ideológica do indivíduo a favor do lucro. É incabível a alienação de crianças no
caminho contínuo à plena cidadania e consciência social e ambiental a fim de ganhos financeiros de
um grupo ínfimo e seleto de empresários, promotores do raso nível de raciocínio sustentável.
exemplo 5
O poder dos anúncios publicitários age de forma poderosa no psicológico do ser humano, segundo
diversos pesquisadores. Isso se mostra no efeito negativo que eles exercem nos consumidores, como
também na própria história da humanidade quando a propaganda foi utilizada como instrumento
decisivo para influenciar a opinião pública a apoiar regimes totalitários na Segunda Guerra Mundial.
Se os artifícios propagandísticos publicitários possuem tais efeitos negativos sobre a opinião das
massas adultas, em crianças tal efeito se torna ainda maior, pois os infantis são mais frágeis e suas
personalidades ainda estão em construção, o que os torna mais passíveis de alienação, são mais
facilmente ludibriados pelas maravilhas da publicidade.
(Excerto de texto da prova de redação do Enem 2014 – Adaptado)
exemplo 6
Vivemos em um mundo onde a propaganda juntamente com os meios de comunicação e os seus avanços
tecnológicos chegam a todos, e o público alvo dessa vez é o: publico infantil.
A publicidade infantil vem a intenção de persuadir, as crianças usando instrumentos e meios pelos quais
fazem parte do universo delas, como: desenhos com personagens animados, musicas, muitas cores e
brilho, tudo para que as mesma se sintam fascinadas, venda de brinquedos, acessórios tecnológicos,
vestuário vem crescendo no mundo todo.
exemplo 8
O atual sistema econômico em que grande parte do mundo está inserida, o capitalismo, possui o
seu cerne no capital, no consumo e nas vendas. Para isso, a mídia, sua forte aliada se faz presente
persuadindo a população, tendo como principal alvo, as crianças.
Augusto Comte, com sua teoria sobre o Darwinismo social, onde o indivíduo busca fazer o que a
maioria faz a fim de não ser excluído, o que ocorre com frequência, gerando o bullying. Portanto
as crianças são o combustível da mídia, um carro que não respeita sinalizações nem os limites de
seus feitos.
No trecho em destaque, o participante muda de uma ideia a outra sem fazer as conexões
lógicas necessárias. Desse modo, o possível argumento de autoridade se perde.
A seguir, mais exemplos de elementos que podem enfraquecer o esquema argumentativo:
Resumo
Escolha da Temática
(caso o tema não tenha sido proposto)
FIORIN, L. J.; PLATÃO, F. S. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1990.
GARCEZ, L. H. do C. Técnica de redação: o que é preciso saber para bem escrever. 3. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2012.
Neste artigo, vamos tratar da coesão textual. Como acontece a coesão no texto? Que
estratégias podemos usar para estabelecer a conexão entre porções textuais? São questões
que discutiremos com base em estudos realizados no campo da linguística de texto. Por isso,
vamos inicialmente apresentar a concepção de texto que ancora a nossa discussão para, em
seguida, abordar a coesão textual.
1 O que é texto?
* Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e é doutora em Língua Portuguesa pela mesma instituição.
exemplo 1
(FOLHA…, 2015)
Voltando ao exemplo 1, vimos que a conexão entre partes do texto pode acontecer de
duas grandes formas:
Nos momentos iniciais da linguística de texto, a coesão referencial era entendida como
a forma pela qual podíamos remeter um elemento linguístico a outros elementos no interior
do texto.
A remissão podia ocorrer em um movimento retrospectivo (anafórico) ou em um movi-
mento prospectivo (catafórico). De outro modo, a forma referencial com função coesiva podia
remeter a um referente que lhe era anterior (no caso da anáfora), ou a um referente que lhe
era subsequente (no caso da catáfora). Vamos aos exemplos.
O apaixonado
é incapaz de se declarar,
ele se denuncia.
(CARPINEJAR, 2010)
No texto, o pronome “ele” retoma o referente que veio antes dele: “o apaixonado”.
Trata-se de uma forma referencial anafórica.
exemplo 3
2.1.1 Pronomes
exemplo 4
A derrota do Minotauro
Quando os atenienses chegaram a Creta, a filha do rei Minos, Ariadne, apaixonou-se por Teseu.
Ofereceu-lhe ajuda em troca da promessa de casamento, dando a ele um novelo de cordel. Teseu
amarrou uma das pontas na entrada do labirinto e entrou, liberando a corda conforme caminhava.
No meio do labirinto, lutou contra o Minotauro e o matou.
(WILKINSON, 2010, p. 62)
2.1.2 Numerais
exemplo 5
Buda
Maria de Fátima da Silva, mãe do bailarino DG – assassinado em circunstâncias ainda não esclare-
cidas –, é medalhista de natação em águas abertas.
Andréa Beltrão, minha parceira em ‘Tapas e Beijos”, é colega dela na turma de nado do Posto 6
de Copacabana.
Andréa mora na Atlântica, Maria de Fátima no morro do Cantagalo, mas as duas desfrutam do
mesmo mar; junto com as tartarugas, os peixes e os sacos plásticos.
(TORRES, 2014)
A expressão “as duas”, que tem como núcleo um numeral cardinal, remete aos referentes
introduzidos anteriormente: “Maria de Fátima da Silva” e “Andréa Beltrão”.
2.1.3 Artigos
exemplo 6
Chico na Alemanha
“Não me ocorreria escrever esse livro com minha mãe viva”: diz Chico à Piauí deste mês, na única
entrevista à imprensa sobre o romance “O Irmão Alemão”: que frequentou o topo das listas de
mais vendidos em 2014. A revista acompanhou o escritor numa viagem à Alemanha após a des-
coberta do irmão Sérgio Günther, filho de um namoro da juventude de seu pai Sérgio Buarque de
Holanda (1902-1982).
(COZER, 2015)
Nas formas nominais referenciais “a revista” e “o escritor”, o artigo definido indica que
se trata de referentes já apresentados no texto e facilmente identificados: (a revista – Piauí;
o escritor – Chico).
exemplo 7
exemplo 8
Fui fazer faculdade nos Estados Unidos em 1995 e depois voltei pra mais dois anos de mestrado
lá. Saí mais otimista em relação ao Brasil do que quando cheguei.
(IOSCHPE, 2012, p. 173)
exemplo 9
exemplo 10
Folia e foliões
Pensei em dois assuntos para esta crônica: o Carnaval e a estupefação da sociedade com a eleição
dos novos presidentes do Congresso. Refletindo com certa calma, verifiquei que os dois temas,
aparentemente tão conflitantes, no fundo são a mesma coisa: aquilo que em tempos idos cha-
mavam de “folia”.
(CONY, 2013)
Nomes genéricos
exemplo 11
exemplo 12
Da janela da pequena casa de madeira que dividia com os pais e os três irmãos, lagoara avistava
seu quintal. As árvores da floresta amazônica e as águas do rio funcionavam como cenário das
brincadeiras do indiozinho da etnia kambeba. Correr, subir em árvores, caçar, nadar e pescar eram
as brincadeiras que faziam o tempo passar para os curumins em sua tribo, a cerca de quatro horas
de barco de Manaus, em uma área de proteção ambiental do rio Negro.
(LAJOLO, 2015)
Nominalização
exemplo 13
Uma vez anotei todas as senhas. Mas onde guardar a anotação? E como lembrar onde foi guar-
dada, depois? Seria preciso outra anotação, com o lugar onde foi guardada, mas onde guardá-la?
Não. Anotar também não é aconselhável. A conclusão é que o mais seguro de tudo é esquecê-
-las todas. Pronto. Estou completamente blindado, inclusive contra mim mesmo. Não sou eu para
nada. Não existo. Melhor assim.
(TOLEDO, 2014, p. 104)
exemplo 14
exemplo 15
E agora, qual é o referente das formas coesivas: “o juiz de paz”, “o sim”, “os noivos”? Como
é de nosso conhecimento, geralmente, os referentes, quando aparecem pela primeira vez no
texto, vêm acompanhados de artigo indefinido e, quando reaparecem, vêm com artigo definido.
Isso significa que uma das funções do artigo indefinido é introduzir um referente no texto.
Por sua vez, o artigo definido promove a reativação ou retomada desse referente, sinalizando
a mudança de status: de informação nova para informação conhecida, alocada na memória do
leitor/ouvinte, como podemos observar em:
Era uma vez um rei que tinha dois filhos. O rei vivia descontente porque os filhos brigavam demais.
Voltando ao exemplo 15, vimos que os referentes “o juiz de paz”, “o sim”, “os noivos” são
introduzidos sob a capa do dado, do conhecido, daí o uso do artigo definido. O procedimento
não causa estranheza nem dificulta a compreensão do texto, porque facilmente relacionamos
esses referentes ao frame ou modelo mental que temos de casamento.
Dizendo de outro modo: os referentes “o juiz de paz”, “o sim”, “os noivos” são introdu-
zidos e compreendidos como alguns dos elementos que compõem o nosso modelo mental de
A coesão sequencial diz respeito a procedimentos linguísticos por meio dos quais se esta-
belecem entre segmentos do texto (enunciados, partes de enunciados, parágrafos, sequências
textuais) diversos tipos de relações semânticas ou pragmático-discursivas, à medida que se faz
o texto progredir, nos ensina Koch (2004).
A coesão sequencial pode ocorrer com a reiteração de formas linguísticas. Nesse caso,
podem ser destacados na progressão textual os seguintes tipos de recorrências.
exemplo 16
(ESTADO…, 2010)
exemplo 17
(REVISTA…, 2015)
Por quê? Porque eles começam sempre da mesma forma – uso de forma nominal do
verbo – “descoberta, colonizada, erguida + agente da passiva: pelos portugueses, pelos italianos,
pelos brasileiros, respectivamente.
A que essas formas se referem? À cidade de São Paulo. Essa cidade é que foi “desco-
berta”, “colonizada” e “erguida” por agentes distintos. Daí o uso do feminino na forma nominal
dos respectivos verbos.
A esse tipo de repetição de uma mesma estrutura sintática que a cada vez é preenchida
com itens lexicais diferentes dá-se o nome de paralelismo: um recurso que promove a pro-
gressão textual com função retórica ou persuasiva.
exemplo 18
No exemplo, o segmento “ou seja, com os animais ganhando o mesmo peso, mas consu-
mindo menos comida” reapresenta com mais precisão o conteúdo do enunciado que o ante-
cede, “conforme a criação de bovinos ficasse mais eficiente”.
Trata-se, portanto, de um caso de paráfrase. Existem expressões linguísticas que enca-
beçam a paráfrase. Além da que observamos no exemplo (“ou seja’’), há outras que assumem
essa função: “isto é”, “quer dizer”, “ou melhor”, “em outras palavras”, “em síntese” etc. Contudo,
é bom ressaltar, como o faz Koch (2004), que a alteração no conteúdo pode indicar ajustamento,
reformulação, desenvolvimento, síntese ou, ainda, maior precisão.
A progressão temática diz respeito ao modo como se encadeiam os temas (aquilo que
se toma como base da comunicação, aquilo de que se fala) e os remas (aquilo que se diz a res-
peito do tema) em frases sucessivas.
Nos estudos de Danes (1970), recuperados por Koch (2004), são apresentadas algumas
formas de progressão temática. Vamos tratar de algumas dessas formas a seguir.
exemplo 19
O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é
capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma
coisa, responde: “Estou fazendo. Estou pensando.”
(LISPECTOR, 2010, p. 53)
exemplo 20
T2 fisiologia vegetal
T3 morfologia vegetal
T4 fitopatologia
Botânica
T T5 paleobotânica
T6 fitogeografia
T7 sociologia vegetal
T8 ecologia vegetal
exemplo 21
Como notamos no exemplo 21, a coesão sequencial é garantida por meio da estratégia
que transforma o rema em tema do enunciado seguinte. Vamos representar esquematicamente,
na figura 3, como isso acontece no exemplo.
A B
Tofu é a ricota oriental
B C
A ricota o chuchu dos queijos
C D
E o chuchu é o quarto estado da água
2.4 Encadeamento
exemplo 22
exemplo 23
Quero corar
Faz tempo que eu não coro. Acho que, atualmente, só fico vermelha nas minhas aulas de ioga,
quando insisto em tentar a posição invertida.
Será que, com o tempo, a gravidade não age só em nossa pele e nossos músculos mas também em
nossa corrente sanguínea, impedindo que o sangue nos chegue às faces, mesmo que numa situação
constrangedora? Ou será que não tenho tido motivos para corar? Não, sempre há motivos para corar.
(FRAGA, 2015, p. 90)
No exemplo 23, destacamos o encadeamento que ocorre por meio do uso de conectores
que estabelecem relações lógico-semânticas ou discursivo-argumentativas, conforme estudos
de Ducrot (1972, 1987) e Koch (1987, 1989, 2004).
Por meio das relações lógico-semânticas, encadeiam-se conteúdos ou estados de coisas
de que falam os enunciados anteriormente apresentados. No exemplo, observamos que entre
os enunciados “Acho que, atualmente, só fico vermelha nas minhas aulas de ioga, quando
insisto em tentar a posição invertida.”, a conjunção “quando” estabelece uma relação lógico-
-semântica de temporalidade.
As relações discursivo-argumentativas têm como característica o fato de promover o enca-
deamento de atos de fala em que se enunciam argumentos a favor de determinadas conclu-
sões, como ocorre em “Será que, com o tempo, a gravidade não age só em nossa pele e nossos
músculos mas também em nossa corrente sanguínea, impedindo que o sangue nos chegue às
faces, mesmo que numa situação constrangedora? Ou será que não tenho tido motivos para
corar? Não, sempre há motivos para corar.”
No trecho, o par correlato de conectores “não só… mas também” liga dois argumentos
a favor de uma mesma conclusão; por sua vez, o uso do “Ou” indica disjunção argumentativa
que aponta para uma provocação ou convocação à concordância.
Resumidamente, apresentamos no quadro a seguir as estratégias de coesão textual
estudadas nesta unidade.
Referências
BEAUGRANDE, R. de. New foundations for a science of text and discourse: cognition,
communication, and freedom of access to knowledge and society. Norwood: Ablex, 1997.
______. Princípios de semântica linguística: dizer e não dizer. São Paulo: Cultrix, 1972.
KOCH, I. G. V.; ELIAS, V. M. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto,
2006.
______. Ler e escrever: estratégias de produção textual. São Paulo: Contexto, 2009.
LAJOLO, M. Olimpíadas – tiro com arco. Serafina, Folha de S. Paulo, abril 2015.
LISPECTOR, C. Das vantagens de ser bobo. In: MONTEIRO, T. (Org.). Clarice na cabeceira:
crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.
LOPES, R. J. Arroto dos bois esquenta o mundo e deixa pesquisadores pessimistas. Folha
de S. Paulo, 17 mar. 2015. Ciência+ saúde, C8.
MACHADO, L. “Cãocurso” elege pets mais bem fantasiados. Folha de S. Paulo, 4 mar. 2014.
Carnaval, B4.
IOSCHPE, G. O que o Brasil quer ser quando crescer? São Paulo: Paralela, 2012.
PRATA, A Desmantelo só quer começo. Folha de S. Paulo, 4 mai. 2014. Cotidiano, C2.
SOUZA, R. M. de. Em Indaiatuba, um casamento pelo MSN. O Estado de S. Paulo, 12 jun. 2010.
TOLEDO, R. P. de. Perdido nas senhas. Veja, edição 2.419, ano 48, n. 13, 1º abr. 2014.
WILKINSON, P.; PHILIP, N. Guia Ilustrado Zahar: Mitologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
VÁRIOS AUTORES. O que você vai ser quando crescer? São Paulo: Companhia das Letrinhas,
2007.
Leitura de apoio
SCHWARZ-FRIESEL, M.; CONSTEN, M.; KNEES, M. (Eds.). Anaphors in text: cognitive, formal
and applied approaches to anaphoric reference. Studies in Language Companion, Series 86,
John Benjamins Publishing Company, 2007.
______. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. São Paulo: Contexto, 2012.
* Professora da Universidade Federal de Minas Gerais e membro do Centro de Alfabetização e Leitura da Faculdade de Educação
da mesma universidade.
** Professora da Universidade Estadual de Campinas e membro da coordenação do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação
à Docência de Letras da mesma universidade.
exemplo 1
Um satélite artificial é um artefato criado pelo homem e colocado em órbita ao redor da Terra ou
de outro corpo celeste. Até hoje já foram efetuados milhares de lançamentos desses aparelhos
ao espaço, mas a maioria já está desativada. Quando ocorrem falhas no lançamento ou no pró-
prio satélite, partes do mesmo podem ficar orbitando o planeta por tempo indefinido, formando
o lixo espacial.
Há satélites que servem às comunicações, a estudos astronômicos e meteorológicos, a finalidades
militares. Apesar de terem funções diversas, eles possuem partes em comum. Todos têm antenas
para emissão e recepção de dados e, como precisam de energia, a maioria conta com painéis solares.
O primeiro satélite artificial, o Sputnik, foi lançado pelos soviéticos em 1957. Em tempos de Guerra
Fria, esse episódio marcou o início da corrida espacial.
(SATÉLITE…, adaptado)
exemplo 2
A expressão nominal “um cenário de pujança como esse” retoma todas as menções
anteriores às mudanças implementadas no Brasil nos últimos vinte anos. Mas não faz só isso:
categoriza essas mudanças como parte de um panorama ou situação, a que se refere o autor
na metáfora do “cenário”, enquadrando-as numa percepção positiva, de “pujança” econômica.
Esse recurso coesivo dá o tom para o articulista introduzir o contraponto que revela as contradi-
ções do nosso país: vários dos garotos que não foram atingidos por tiros na chacina morreram
doentes, entraram para o tráfico ou foram assassinados, vivendo nesse mesmo macrocenário
de grande desenvolvimento econômico. Essa linha argumentativa está presente desde o título
da postagem – “Candelária, 20 anos – País rico é país sem chacina”.
O parágrafo seguinte continua desenvolvendo a tese, que pode ser assim resumida:
apesar de o Brasil ser um país em franco desenvolvimento econômico, a violência cometida
ou tolerada pelo Estado contra os mais pobres permanece. Vejamos:
exemplo 3
Pensávamos que não cometeríamos os mesmos tipos de ‘’erros” de 20 anos atrás, mas não foi bem
assim. Carandiru (1992), Vigário Geral (1993), Ianomâmis (1993), Candelária (1993), Corumbiara
(1995), Eldorado dos Carajás (1996) ganharam roupagem nova e continuam acontecendo. Ou seja,
o modelo se manteve: continuamos matando gente pobre.
(SAKAMOTO,2013)
exemplo 4
O Brasil é um país de grande divergência, vários ritmos, cores, culturas, crenças e desde o século
XIX os imigrantes ajudaram o Brasil a ser tão diversificado.
Desde séculos atrás a imigração ocorre com mais frequência. Os imigrantes chegam de várias
formas, raramente chegam de um modo correto, com documentação legalizada.
Nesta última década o aumento de guerras, terremotos, tsunamis e vários fenômenos naturais acon-
tecem com frequência. Por isso imigração também aumentou, a opção do imigrante é sempre mudar
de vida é conseguir um bom emprego, ter uma boa maneira de viver socialmente e financeiramente.
É da natureza humana querer tudo isso, principalmente quando acaba de perder tudo o que tem.
A fome, o desemprego, a falta de moradia, as poucas oportunidades, tudo isso ocorreu em alguns
países como a África, o Haiti, algumas cidades dos Estados Unidos, após guerras, fenômenos naturais
e outros graves acontecimentos. Fazendo com que eles resolvessem vir morar no Brasil, sabendo
que aqui eles terão facilidade para começar do zero, com o custo de vida mais barato, opções de
emprego e várias oportunidades.
É essa fácil adaptação e essa tamanha facilidade que faz com que a imigração para o Brasil no
século XXI, o século da revolução, seja tão grande.
(Redação do Enem 2012)
SAKAMOTO, L. Candelária, 20 anos – País rico é país sem chacina. 23 jul. 2013.
Disponível em: <http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2013/07/23/candelaria-20-
-anos-pais-rico-e-pais-sem-chacina/>. Acesso em: 1° ago. 2013.
* Professora da Universidade Estadual Paraíba e doutora em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba.
exemplo 2
Diferentes grupos civis e instituições governamentais têm contribuído com a discussão sobre a
publicidade infantil. Recentemente o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente
emitiu parecer em que classifica toda publicidade infantil como abusiva. Entretanto, não há con-
senso de que a proibição absoluta desse tipo de propaganda seja benéfica para a sociedade. Talvez
fosse mais eficiente, ao invés da proibição, o incentivo a campanhas publicitárias que, além do
apelo comercial, apresentassem também algo educativo.
exemplo 2
Aqui no Brasil é muito comum passar na televisão e anúncio personagem criativo e desenho para
chamar atenção do público, principalmente de crianças para consumir algum produto.
Neste caso ficará mais fácil para o empresário vender. O consumo de roupas e outros produtos é
diariamente necessário. Para o comerciante é mais prático vender quando se tem argumento que
chame atenção do consumidor.
exemplo 3
A propaganda tende a persuadir as crianças por todos os lados: utiliza-se de animações que fazem
parte do dia a dia delas, para promover o desejo por alguma novidade que está sendo posta no
mercado. As invenções para crianças são diariamente veiculadas pela mídia e engendram um dese-
quilíbrio social, visto que nem todas as crianças poderão adquirir o produto veiculado.
exemplo 4
Atualmente a publicidade infantil no Brasil não está adequada às crianças e adolescentes. Eles não
estão tendo direitos como qualquer pessoa. Vários casos que já aconteceram pelo Brasil em vários
países que as crianças e adolescente não estão tendo infância.
Referências
ANTUNES, I. A coesão como propriedade textual: bases para o ensino do texto. Calidoscópio,
v. 7, n. 1, jan./abr., 2009.
______. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola, 2005.
KOCH, I. V.; ELIAS, V. M. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2011.
* Professor do ensino médio e do ensino superior e doutor em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais, em parceria
com a Universidade do Minho.
exemplo 2
No exemplo acima, a redação está fora do tema, mas dentro do assunto (trabalho infantil
no campo da publicidade). Entretanto, no parágrafo final, o participante insere um longo trecho,
dirigindo-se ao leitor do texto e expressando uma solicitação a partir das suas convicções reli-
giosas. Note que essa prática discursiva (desejar bem a alguém a partir de suas convicções reli-
giosas) é comum em situações sociais cotidianas e efetiva-se por meio do uso de expressões
como “Deus te abençoe”, “Graças a Deus” ou ‘’Vai com Deus”.
Comentário pedagógico – Nas práticas escolares, os alunos precisam ser levados a perceber
que tais expressões são perfeitamente adequadas em determinadas situações sociais de comu-
nicação, sobretudo naquelas que se desenvolvem no âmbito da modalidade oral da língua e
em contextos pouco monitorados, mas que essas mesmas expressões são inadequadas em
outras situações (e, portanto, precisam ser evitadas), em especial nas que se desenvolvem em
contextos formais de uso monitorado da modalidade escrita da língua, como é o caso de um
exame de abrangência nacional e que pretende aferir determinadas habilidades do participante.
exemplo 3
Abuso infantil
Publicidades infantil em questao no Brasil
Em um pais rico como o Brasil é muito triste saber que ainda tem muitas crianças que são obri-
gadas a pedir esmola na rua a troco de ter o que comer e de um lugar para morar.
Crianças que deveriam estar nas escolas estudando são obrigadas a pedir dinheiro, em meio ao
trânsito colocando em riscos suas vidas, levando a público uma imagem de abandono.
Estas pessoas pegam as crianças para conseguir dinheiro para que eles mesmo não precise ir tra-
balhar e enfrentar o patrão, já que por serem seres indefesos e inocentes a população ficam com
dó e acabam não aguentando ver tanta necessidades e dão nem que seja uma moeda apenas.
O conselho tutelar e os órgãos responsáveis deveriam investigar e ver quem está por trás destas
crianças e colocar estes exploradores no lugar deles que é na cadeia, e levando estas crianças a
um abrigo aonde tenha educação e carinho.
Uma das estratégias textuais possíveis para se assegurar o atendimento ao tema pro-
posto e de se reforçar a manutenção temática ao longo da produção textual é utilizar um léxico
que, além de relacionado ao tema, esteja a favor da coesão do texto, a chamada coesão por
Comentário pedagógico – Em sala de aula, o trabalho com a produção escrita precisa ser reali-
zado a partir da leitura e da produção de textos que apresentem temáticas e direcionamentos
argumentativos distintos e que utilizem articuladores textuais com funções variadas, expondo
o aluno a um amplo espectro de possibilidades argumentativas e coesivas asseguradas por
diferentes mecanismos linguístico-textuais.
Uma boa capacidade de encadear o texto e de conduzir o seu direcionamento argumen-
tativo de forma consistente é também fundamental para que o texto atenda à Competência II
da Matriz de Referência para Redação no que se refere aos “limites estruturais do texto disser-
tativo-argumentativo em prosa”, nosso próximo tópico.
exemplo 4
Note como o participante aborda reiteradamente o tema proposto (marcado pelo grifo
nosso na redação), mas escapa à estrutura dissertativo-argumentativa. Os tipos textuais se
definem pela natureza linguística de sua composição: escolhas lexicais, aspectos sintáticos,
emprego de tempos verbais e relações lógicas estabelecidas no texto. Na redação em análise,
as marcas do tipo textual narrativo são percebidas, sobretudo, no uso de tempos verbais futuros
(“Eu colocarei”, “E vou começa proibindo”, “E aqueles que desobedece essa lei seram punidos”,
“e sera em breve”, “vai virar lei”).Além disso, é notável a ausência de construções impessoais,
características do tipo textual dissertativo.
A última situação que leva à anulação da redação é a de Desrespeito aos direitos humanos.
A redação receberá nota zero caso a proposta de intervenção elaborada pelo participante (ou
mesmo outras partes de sua produção textual) desrespeite, afronte, agrida, fira, explícita e deli-
beradamente, os direitos humanos – consagrados nos tratados e na Constituição da República
Federativa do Brasil (direitos fundamentais) e entendidos como valores, atos e comportamentos,
nomeados e protegidos, que possibilitam a todos uma vida digna, tais como o direito à vida, à
integridade, à liberdade à intimidade.
No processo de avaliação das redações do Enem 2014, foram consideradas como pro-
postas que feririam os direitos humanos as que incitassem a qualquer tipo de violência contra
consumidores ou licenciadores de marcas e produtos supostamente veiculadores de publicidade
infantil abusiva. Outra possibilidade de ferir os direitos humanos prevista nessa edição do exame
era a formulação de uma proposta de intervenção que visasse tolher a liberdade de expressão
da mídia no que tange à veiculação de propaganda para todos os públicos. Não se considerou,
no contexto de discussão proposto, que a proibição total da veiculação de publicidade voltada
apenas ao público infantil configurasse um desrespeito aos direitos humanos, uma vez que essa
linha de defesa deve considerar a prerrogativa do dever de proteção às crianças, com vistas ao
bem comum. Entretanto, considerou-se a proibição de veiculação de propaganda para todos
os públicos como um desrespeito ao direito à liberdade de expressão. Veja o exemplo abaixo,
que apresenta uma redação anulada por desrespeitar os direitos humanos.
A Publicidade Infantil vem crescendo a cada ano, e o avanço e a modernização da tecnologia ajuda
bastante esse crescimento, devido a facilidade de divulgação dos mesmos.
O enorme número de propagandas, comerciais e produtos à mostra faz com que a demanda por esses
produtos infantis seja cada vez maior e isso leva ao abuso da propaganda e a alienação da criança.
Um dos principais meios usados pela publicidade é o desenho infantil onde além de contarem uma
história cativante, incentivam as crianças a exigirem dos pais a comprarem determinado produto,
seja um brinquedo, um jogo ou um tênis da moda.
Para evitar esse tipo de situação abusiva, deveria proibir de uma vez por todas qualquer propa-
ganda, evitando que houvesse abuso. Além disso, quem descumprisse deveria ser torturado sendo
obrigado a assistir essas propagandas 24 horas por dia!!!
A partir da leitura dos textos motivadores seguintes e com base nos conhecimentos
construídos ao longo de sua formação, redija texto dissertativo-argumentativo em norma
padrão da língua portuguesa sobre o tema Publicidade infantil em questão no Brasil,
apresentando proposta de intervenção, que respeite os direitos humanos. Selecione,
organize e relacione, de forma coerente e coesa, argumentos e fatos para defesa de seu
ponto de vista.
[…]
Receberá nota zero, em qualquer das situações expressas a seguir, a redação que:
• tiver até 7 (sete) linhas escritas, sendo considerada “insuficiente.
• fugir ao tema ou que não atender ao tipo dissertativo-argumentativo.
• apresentar proposta de intervenção que desrespeite os direitos humanos.
• apresentar parte do texto deliberadamente desconectada com o tema proposto.
(INEP, 2014, p. 2)
Referências
O Exame Nacional do Ensino Médio, doravante Enem, não somente como parte de uma 1
política pública de avaliação da educação básica no Brasil, mas também como porta de acesso
ao ensino superior da maioria das universidades públicas, possui, inquestionavelmente, o mérito
de fazer convergir políticas e práticas educacionais em torno dos principais documentos nor-
teadores da educação brasileira. Assim, vivenciamos um tempo no qual os discursos contidos
nos documentos imperativos, tais quais a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, e nos instrumentos de caráter não vinculante, como os Parâmetros
Curriculares Nacionais e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio, têm sido revisitados
com o fito de alinhar os currículos e programas das disciplinas ministradas nas escolas públicas
e privadas do país.
A redação do Enem, vista como outro aspecto digno de destaque no bojo dessa polí-
tica, tem se apresentado como um novo paradigma de concepção do gênero redação escolar,
impactando diretamente os modos de conceber o ensino da produção e da recepção textual e
a avaliação dos textos produzidos não somente pelos alunos, ao longo da jornada escolar, mas
também pelos participantes que se submetem ao exame.
A formulação de uma matriz de competências para fins de avaliação dos textos do Enem,
a despeito de quaisquer limitações que possua, figura, por um lado, como um instrumento que
tem o condão de, a um só tempo, dar conta das demandas exigíveis pelas concepções linguís-
ticas contidas nos documentos oficiais que regulam a educação e o ensino de língua portuguesa
– como é o caso das Competências I a IV. Por outro, por meio da exigência de elaboração de
* Professor da Universidade Federal de Sergipe e doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia.
1
Este texto é parte constitutiva da obra Linguagem, interação e sociedade: diálogos sobre o Enem, organizado por Leilane Ramos
da Silva e Raquel Meister Ko Freitag e editado em João Pessoa pela Editora do CCTA, em 2015. Sua publicação nesta coletânea
foi autorizada pela referida editora.
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988,
p. 94, grifo nosso).
1 Os paradigmas da conclusão-solução
e da avaliação da Competência V
na redação do Enem
Não há como negar que o advento da prova de redação do Enem gerou uma intensa
movimentação nos modos de avaliar e conceber a produção do gênero redação escolar.
Especialmente no que diz respeito ao paradigma da avaliação, a elaboração de uma matriz
de competências que serve de referência trouxe critérios mais objetivos para os participantes
e para os avaliadores envolvidos num processo subjetivo de correção de textos em massa que
precisa contar com o máximo de precisão e transparência em sua execução.
Analisando-se por esse prisma, no momento em que elabora sua proposta de intervenção
na redação, o participante demonstra que é capaz de interligar um conjunto de conteúdos con-
ceituais e procedimentais adquiridos em todos os processos formativos, escolares ou não, pelos
quais passou, em uma postura de conteúdo atitudinal que pode ser traduzida como a sua ação
cidadã perante a realidade na qual vive.
O termo conteúdos atitudinais engloba uma série de conteúdos que, por sua vez, podemos
agrupar em valores, atitudes e normas. Cada um destes grupos tem uma natureza
suficientemente diferenciada que necessitará, em dado momento, de uma aproximação
específica.
• Entendemos por valores os princípios ou as ideias éticas que permitem às pessoas
emitir um juízo sobre as condutas e seu sentido. São valores: a solidariedade, o res-
peito aos outros, a responsabilidade, a liberdade, etc.
• As atitudes são as tendências ou predisposições relativamente estáveis das pessoas
para atuar de certa maneira. São a forma como cada pessoa realiza sua conduta de
acordo com valores determinados. Assim, são exemplos de atitudes: cooperar com
o grupo, ajudar os colegas, respeitar o meio ambiente, etc.
• As normas são padrões ou regras de comportamento que devemos seguir em deter-
minadas situações que obrigam a todos os membros de um grupo social. As normas
constituem a forma pactuada de realizar certos valores compartilhados por uma
coletividade e indicam o que se pode fazer e o que não se pode fazer neste grupo
(ZABAIA, 2010, p. 46, grifos do autor).
Os direitos humanos possuem uma definição que enseja um certo grau de polêmica.
De forma bastante resumida, parte dessa polêmica situa-se no fato de que aquilo que se con-
vencionou chamar internacionalmente de direitos humanos choca-se frontalmente com a
forma como algumas comunidades se articulam culturalmente. Traços culturais vistos com
certo grau de naturalidade em certas sociedades podem se configurar como uma verdadeira
afronta à dignidade da pessoa humana e, como consequência, aos próprios direitos humanos
em outras. Atualmente, entretanto, a noção que se difunde entre os Estados que se alinharam
com a maioria dos tratados de direitos humanos aproxima a concepção de direitos humanos à
dignidade humana, que tem um aspecto ligado a uma dimensão individual, mas também deve
Sobre essa dupla abordagem acerca da dignidade da pessoa humana, Shiler (2007) relembra uma história bastante ilustrativa
2
ocorrida numa cidade francesa chamada Morsang-sur-Orge, na qual se praticava em uma taberna, após certo horário, um
“esporte” chamado arremesso de anão, que consistia em permitir que os clientes arremessassem, o mais distante possível,
um anão devidamente contratado para tal fim. Ao tomar conhecimento do fato, o prefeito da cidade proibiu que a prática
fosse repetida sob o argumento de que afrontava a dignidade humana. Diante da proibição, o estabelecimento e o próprio
anão decidiram ingressar com um recurso em desfavor da decisão do gestor municipal. O tribunal administrativo francês,
compreendendo que a dignidade da pessoa humana é valor universal e que a agressão à dignidade de uma pessoa importa
na agressão da dignidade de todos, proibiu definitivamente a prática do arremesso, para a frustração do estabelecimento, dos
clientes e do próprio anão.
3
Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno.
Quando nos referimos à questão dos direitos humanos na redação do Enem, enten-
demos que esses princípios e essas características servem como parâmetros e limites para fins
de avaliação dos participantes na Competência V. O respeito aos direitos humanos na redação
do Enem é, desse modo, o momento no qual o participante deve comprovar que ao longo
do seu percurso formativo, o qual não ocorre exclusivamente em instituições de ensino, mas,
conforme relatamos acima, desenvolve-se também “na vida familiar, na convivência humana,
no trabalho, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações
culturais”, transformou-se em alguém capaz de compreender a si mesmo como membro
integrante do tecido social. Para tal, devem ser garantidos, ao menos no ambiente escolar, os
seguintes aspectos:
Não restam dúvidas de que o Enem, na sua prova de redação, ao solicitar que o participante
elabore proposta de intervenção que respeite os direitos humanos, faz referência direta a essas
diretrizes que são de observação obrigatória na educação básica e no ensino superior. Vejamos:
Urge que as Diretrizes Nacionais sejam incorporadas nos currículos das instituições de
ensino de educação básica, que estejam presentes nos cursos de formação inicial e continuada dos
Consideração final
Buscamos, ainda que de forma bastante sucinta, revelar quais as funções da Competência
V da Matriz de Referência para Redação.
Se não perdermos de foco o fato de o Exame ser também um instrumento de avaliação
do final do ciclo da educação básica, momento no qual os indivíduos podem escolher entre
ingressar imediatamente no mercado de trabalho ou buscar dar continuidade aos seus estudos
no ensino superior, teremos uma visão cristalina da importância das funções da Competência
V da prova de redação do Enem, quais sejam, aferir se a escola entregará para a sociedade
uma pessoa ciente dos seus direitos e obrigações como cidadão e, sobretudo, alguém que
compreende o valor do princípio da dignidade humana e que, por esse motivo, será capaz de
conviver em uma sociedade multicultural e multiétnica.
Por outro lado, quando se trata da redação do Enem, a nossa sociedade vive um verda-
deiro paradoxo linguístico-moral. Há um imenso barulho social quando alguns participantes
são flagrados incorrendo em pequenos deslizes de cunho linguístico-ortográfico que podem
ser frutos de nervosismo ou até mesmo de problemas de formação que não foram sanados ao
longo da trajetória escolar. Nesse momento, fala-se de fracasso da escola, a mídia alardeia para
todos os cantos, a sociedade critica o processo. Na verdade, tal alvoroço deveria se dar quando
a sociedade tivesse conhecimento de algum participante eliminado do processo por formular
uma proposta de intervenção que afronta diretamente os direitos humanos. Isso porque, num
caso como esse, falhamos todos nós. Falhou o Estado, falhou a família e falhou a sociedade em
cumprir o compromisso constitucional de formar o indivíduo para o exercício pleno da cidadania.
Não é algo que anime a qualquer educador testemunhar anualmente o comportamento
de uma sociedade que se diz mais escandalizada com a ocorrência de um “trousse”escrito com
“ss”, que com uma proposta de fuzilamento de imigrantes haitianos; que se estarrece mais com
desvios linguístico-ortográficos “plantados” por pessoas que se inscrevem no exame com o
Referências
* Este capítulo é parte constitutiva da obra Linguagem, interação e sociedade: diálogos sobre o Enem, organizado por Leilane
Ramos da Silva e Raquel Meister Ko Freitag, e foi gentilmente cedido ao Cebraspe pela Editora do CCTA.
** Professor da Universidade Federal de Sergipe e doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia.
1
Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno.
2
Diário Oficial da União, Brasília, 31 de maio de 2012 – Seção 1 – p. 48.
Ainda que as instituições de educação básica e superior não sejam as únicas instâncias a
educar os indivíduos em Direitos Humanos, elas têm como responsabilidade a promoção
e legitimação dos seus princípios como norteadores dos laços sociais, éticos e políticos.
Isso se faz mediante a formação de sujeitos de direitos, capazes de defender, promover e
reivindicar novos direitos (BRASIL, 2013, p. 523).
Cremos que uma aproximação preliminar de alguns conceitos basilares do campo dos
direitos humanos, mesmo que de forma bastante panorâmica, possa nos ajudar a compreender
melhor as formulações contidas no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos e nas
Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, bem como nos usos desses instru-
mentos na avaliação da educação básica na prova do Enem.
Ainda que idealmente devêssemos recuar no tempo em busca das origens filosóficas e
das normas de proteção aos direitos humanos, perpassando pensadores da estatura intelec-
tual de Thomas Hobbes, John Locke, Norberto Bobbio e Hannah Arendt, e balizas importantes
dessa evolução histórica, como a Magna Carta de 1215 (Inglaterra), a Declaração de Virgínia
de 1775 (EUA) e, na França, a Declaração do Homem e do Cidadão de 1789, por conta dos
objetivos e das limitações de extensão do nosso texto, somos levados a ancorar o nosso olhar
majoritariamente nas concepções contidas no marco contemporâneo mais relevante, qual seja,
a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.
Indissociavelmente ligada à evolução histórica das lutas dos mais diversos povos, com
vistas a garantir a efetividade de direitos, está a classificação dos direitos humanos que nos é
apresentada normalmente sob o formato de gerações de direitos. Utilizamo-nos, neste estudo,
da classificação de Giuseppe Tosi, apresentada no Caderno de Educação em Direitos Humanos,
elaborado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, no ano de 2013.
a) Os direitos de primeira geração, ou direitos civis, são direitos negativos, que proíbem
excessos do Estado e garantem a vida, a igualdade perante a lei, a propriedade, a
segurança, a livre expressão, a reunião e associação e a liberdade de ir e vir.
b) Os direitos de segunda geração, ou direitos políticos, são direitos positivos que
têm a liberdade como núcleo central e garantem a todos os membros de uma
comunidade o sufrágio universal, o direito de constituir partidos políticos e o
direito de plebiscito.
c) Os direitos de terceira geração, ou direitos econômicos, sociais e culturais, são
efetivados pelo Estado e voltados para trabalhadores e marginalizados, visando a
Ainda em relação à classificação dos direitos humanos, há quem postule, por exemplo, a
existência de direitos humanos do mundo virtual, inseridos no rol dos direitos da quarta geração,
bem como os direitos de manipulação de materiais genéticos a serem catalogados como sendo
pertencentes aos direitos de quinta geração.
A classificação dos direitos humanos em “gerações” é alvo de severas críticas e tem um
caráter mais didático do que jurídico, de forma que pode haver divergências entre autores da
área. Uma das críticas que se faz ao modelo geracional é o fato de que ele pode dar a entender,
erroneamente, que as gerações posteriores de direitos marcam rupturas com as gerações ante-
riores, quando, na verdade, trata-se de processos históricos concomitantes e cumulativos. É por
esse motivo que alguns autores utilizam-se da nomenclatura “dimensões”: eles creem que essa
expressão exprime a noção de coexistência de direitos, e não de sobreposição.
Um ponto-chave no avançar do nosso debate consiste em enfrentarmos a questão da
polissemia na própria conceituação dos Direitos Humanos. São muitos os teóricos que nos
alertam para o fato de que, em vários documentos, algumas terminologias são utilizadas indis-
tintamente como sinônimas, principalmente entre os termos “direitos humanos” e “direitos
fundamentais”, o que pode gerar certo grau de imprecisão na elaboração de um conceito.
As nomenclaturas mais comumente encontradas, nesse sentido, são: direitos humanos; direitos
fundamentais; liberdades públicas; direitos humanos fundamentais etc. De acordo com Guerra
(2013), essa multiplicidade semântica pode ser verificada até mesmo na Constituição brasileira,
que ora se refere aos Direitos Humanos (art. 4º, II), ora aos direitos e garantias fundamentais
(Título II, art. 5º, § 1º), ora aos direitos e liberdades constitucionais (art. 5º, LXXI), ora aos direitos
e garantias individuais (art. 6º, § 4º, IV).
Com o intuito de se buscar maior precisão conceitual ao termo “direitos humanos”, princi-
palmente em relação ao que se convencionou chamar de direitos fundamentais, estabeleceu-se
entre eles uma relação de hiperonímia/hiponímia na qual os primeiros figurariam numa ordem
internacional, mais ampla, aspirando validade universal, enquanto os últimos seriam aqueles
direitos que foram inseridos na ordem constitucional dos países. Assim, é cediço afirmar que
todo direito fundamental é direito humano, mas nem todo direito humano pode ser conside-
rado um direito fundamental em alguns países.3
Pode-se verificar essa situação por meio da polêmica temática da legalidade do aborto, que, aos olhos da ONU, faz parte dos
3
chamados “direitos reprodutivos da mulher” e figura, portanto, no rol dos Direitos Humanos. Tal posicionamento, no entanto,
não encontra abrigo irrestrito no ordenamento jurídico brasileiro, sendo o aborto, inclusive, passível de punição nos termos do
Código Penal. Esse procedimento, portanto, não é visto no Brasil (assim como em muitos países) como um direito fundamental.
Esse aspecto conceitual parece-nos ter sido devidamente enfrentado na elaboração das
Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos quando, no § 1º do art. 2º, seguindo
a orientação jurídico-doutrinária majoritária, assim se definem os direitos humanos:
Aos direitos humanos são atribuídas algumas características fundantes, entre as quais
Abreu (2015) destaca: universalidade; inerência; historicidade e proibição do retrocesso; ina-
lienabilidade, irrenunciabilidade e indisponibilidade. A essa lista, podemos ainda acrescentar,
conforme nos sugere Portela (2011), algumas características complementares e importantes
para nosso estudo, como: i) transnacionalidade, que consiste no fato de que os direitos humanos
são indissociáveis dos indivíduos, não importando suas nacionalidades; e do ii) caráter não
exaustivo das listas de fatores de discriminação, que visa não restringir o rol de vedações discri-
minatórias àquelas já existentes nas legislações, como é o caso da estigmatização por motivos
de etnia, cor, sexo, língua, religião, nacionalidade etc.
Sobre o caráter não exaustivo dos fatores de discriminação, já é possível encontrar no
mercado editorial brasileiro obras que apontam para os direitos humanos e a proteção das
minorias e dos grupos vulneráveis, os quais até pouco tempo não dispunham da proteção
estatal de maneira tão ostensiva, como as de Ferraz e Leite (2015), de Wolkmer e Leite (2012),
de Sarmento, Ikawa e Piovesan (2010) e de Jubilut, Bahia e Magalhães (2013b), que analisam,
sob o viés da legislação pátria, os direitos das mulheres, das crianças e dos adolescentes; dos
O percurso da EDH no Brasil tem como um dos seus marcos principais a formulação
dos Planos Nacionais de Direitos Humanos. Segundo Silva (2013), foi nesse momento que o
Estado brasileiro iniciou um processo de criação de ações estratégicas para a defesa dos direitos
humanos, atendendo ao disposto na Conferência de Viena,4 de 1993.
Ao todo, três versões do PNDH foram elaboradas no Brasil. Conforme aponta Silva (2013),
na primeira versão, PNDH-1, de 1996, foi criada, no âmbito do Ministério da Justiça, a Secretaria
de Direitos Humanos, com o objetivo de coordenar e gerenciar a execução das ações do pró-
prio PNDH.
As atualizações do PNDH-1, ocorridas em 2002 e em 2009, deram origem, respectiva-
mente, ao PNDH-2 e ao PNDH-3, que incluíram temáticas diversas, afeitas às questões dos
direitos humanos em suas propostas, entre as quais a necessidade de elaboração de um Plano
Nacional de Educação em Direitos Humanos, bem como de Diretrizes Nacionais para a Educação
em Direitos Humanos.
O PNDH-1 de 1996 tinha o foco voltado para os direitos civis e políticos, a saber: 1) Políticas
públicas para a proteção e promoção dos Direitos Humanos (incluindo a proteção do direito
à vida, liberdade e igualdade perante a lei); 2) Educação e cidadania: bases para uma cultura
dos Direitos Humanos; 3) Políticas internacionais para a promoção dos Direitos Humanos;
e 4) Implementação e monitoramento do Programa Nacional de Direitos Humanos.
O PNDH-2, de 2002, incorporou alguns temas destinados à conscientização da sociedade
brasileira com o fito de consolidar uma cultura de respeito aos direitos humanos, tais
como cultura, lazer, saúde, educação, previdência social, trabalho, moradia, alimentação,
um meio ambiente saudável.
A Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, realizada na capital austríaca em 1993, foi o ponto de partida para a
4
Declaração e Programa de Ação de Viena, que marcou o início de um esforço para a proteção e a promoção dos Direitos
Humanos. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/apos-20-anos-da-conferencia-de-viena-direitos-humanos-sao-mais-
importantes-do-que-nunca-diz-onu>
O PNEDH, lançado em 2003 e revisado em 2006, como um desdobramento das ações dos
PNDH, enuncia os seguintes objetivos a serem perseguidos: i) fortalecer o respeito aos direitos
humanos e liberdades fundamentais; ii) promover o pleno desenvolvimento da personalidade
e dignidade humana; iii) fomentar o entendimento, a tolerância, a igualdade de gênero e a
amizade entre as nações, os povos indígenas e grupos raciais, nacionais, étnicos, religiosos e
linguísticos; iv) estimular a participação efetiva das pessoas em uma sociedade livre e demo-
crática e governada pelo Estado de Direito; e v) construir, promover e manter a paz.
Na busca de dar luzes aos aspectos mais relevantes das DNEDH, podemos verificar, pre-
liminarmente, pela leitura direta do caput e do § 1º de seu art. 2º, a importante diferença que
Dignidade humana
O princípio da dignidade humana coloca o ser humano e seus direitos como centro das ações para
a educação. Qualquer iniciativa deve obedecer, ou pelo menos levar em consideração, a promoção
dos direitos humanos e da valorização da dignidade do homem.
Relacionada a uma concepção de existência humana fundada em direitos. A ideia de dignidade
humana assume diferentes conotações em contextos históricos, sociais, políticos e culturais diversos.
É, portanto, um princípio em que se devem levar em consideração os diálogos interculturais na
efetiva promoção de direitos que garantam às pessoas e grupos viverem de acordo com os seus
pressupostos de dignidade.
Igualdade de direitos
A respeito do princípio de igualdade de direitos, orienta a realizar a justiça social, que é muito além
de tratar a todos como iguais, é dar a cada indivíduo a atenção e a importância que merece, per-
cebendo as necessidades individuais.
O respeito à dignidade humana, devendo existir em qualquer tempo e lugar, diz respeito
à necessária condição de igualdade na orientação das relações entre os seres humanos. O princípio
da igualdade de direitos está ligado, portanto, à ampliação de direitos civis, políticos, econômicos,
sociais, culturais e ambientais a todos os cidadãos e cidadãs, com vistas a sua universalidade, sem
distinção de cor, credo, nacionalidade, orientação sexual, biopsicossocial e local de moradia.
Democracia na educação
O princípio da democracia na educação tangencia os preceitos de liberdade, igualdade, solidarie-
dade e, principalmente, dos direitos humanos, que embasam a construção das condições de acesso
e permanência ao direito educacional.
Direitos humanos e democracia alicerçam-se sobre a mesma base – liberdade, igualdade e solida-
riedade –, expressando-se no reconhecimento e na promoção dos direitos civis, políticos, sociais,
econômicos, culturais e ambientais. Não há democracia sem respeito aos direitos humanos, da
mesma forma que a democracia é a garantia de tais direitos. Ambos são processos que se desen-
volvem continuamente por meio da participação. No ambiente educacional, a democracia implica
a participação de todos os envolvidos no processo educativo.
Sustentabilidade socioambiental
Por fim, o princípio da sustentabilidade socioambiental informa que a educação em direitos humanos
deve incentivar o desenvolvimento sustentável, visando ao respeito ao meio ambiente, preservando-
-o para as gerações vindouras.
A EDH deve estimular o respeito ao espaço público como bem coletivo e de utilização democrática
de todos. Nesse sentido, colabora para o entendimento de que a convivência na esfera pública se
constitui numa forma de educação para a cidadania, estendendo a dimensão política da educação
ao cuidado com o meio ambiente local, regional e global. A EDH, então, deve estar comprometida
com o incentivo e promoção de um desenvolvimento sustentável que preserve a diversidade da
vida e das culturas, condição para a sobrevivência da humanidade de hoje e das futuras gerações.
1) Dominar linguagens (DL): Dominar a norma padrão da língua portuguesa e fazer uso
das linguagens matemática, artística e científica e das línguas espanhola e inglesa.
2) Compreender fenômenos (CF): Construir e aplicar conceitos das várias áreas do
conhecimento para a compreensão de fenômenos naturais, de processos histórico-
geográficos, da produção tecnológica e das manifestações artísticas.
3) Enfrentar situações-problema (SP): Selecionar, organizar, relacionar, interpretar
dados e informações representados de diferentes formas, para tomar decisões e
enfrentar situações-problema.
4) Construir argumentação (CA): Relacionar informações, representadas em diferentes
formas, e conhecimentos disponíveis em situações coneretas, para construir argu-
mentação consistente.
5) Elaborar propostas (EP): recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para
elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os
valores humanos e considerando a diversidade sociocultural.
A partir desses cinco eixos cognitivos, foi elaborada a Matriz de Referência para a redação
do Enem, o que também nos permite chegar a duas cristalinas conclusões.
1) A prova de redação do Enem não está situada exclusivamente nos domínios das
Linguagens, Códigos e suas tecnologias, mas, sim, de forma transversal, situa-se
Fonte: Inep
O Enem é aplicado desde o ano de 1998, mas somente começou a ser utilizado como acesso ao ensino superior a partir do ano
7
de 2009.
Fonte: Inep
Analisando essas últimas dezoito edições do Enem, podemos levantar alguns dados sobre
a evolução metodológica utilizada pelo Inep para avaliar os textos dos participantes, especifi-
camente no que diz respeito ao tratamento dado à questão dos direitos humanos.
14.9 Em todas as situações expressas a seguir, será atribuída nota o (zero) à redação:
14.9.1 que não atenda à proposta solicitada ou que possua outra estrutura textual que
não seja a estrutura dissertativo-argumentativa, o que configurará “Fuga ao tema/não
atendimento à estrutura dissertativo-argumentativa”;
14.9.2 que não apresente texto escrito na Folha de Redação, que será considerada “Em
Branco”;
14.9.3 que apresente até 7 (sete) linhas, qualquer que seja o conteúdo, que configurará
“Texto insuficiente”;
14.9.3.1 as linhas com cópia dos textos motivadores apresentados no Caderno de Questões
serão desconsideradas para efeito de correção e de contagem do mínimo de linhas;
Em 2012 (ano da entrada em vigor das DNEDH), apesar de não haver previsão em edital da atribuição da nota zero à redação
8
que desrespeitasse os direitos humanos, esse comando aparecia de forma explícita nas instruções da prova de redação. A partir
de 2013, constata-se a existência concomitante da norma editalícia e das instruções na prova.
Desde a entrada em vigor das novas diretrizes para a EDH, três edições do Enem foram
aplicadas. Nas provas de redação desses exames, os temas sobre os quais os participantes
tiveram de formular seus textos dissertativo-argumentativos foram os seguintes: i) Efeitos da
implantação da Lei Seca no Brasil (2013); ii) Publicidade infantil em questão no Brasil (2014); e
iii) A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira (2015).
Entre as temáticas acima, a que abordou a questão da persistência da violência contra a
mulher na sociedade brasileira foi responsável por um verdadeiro movimento de euforia, reper-
cutindo imediatamente em redes sociais, sites especializados nas temáticas da educação e da
defesa e proteção às mulheres e dos direitos humanos em geral, na mídia impressa, radiofônica
e televisiva. Em absolutamente todos esses meios de comunicação, a leitura positiva da socie-
dade sobre a pertinência da temática nos leva a uma inequívoca conclusão: conforme mencio-
namos anteriormente, a prova de redação do Enem não pode mais ser vista unicamente como
um instrumento de aferição de competências e habilidades linguísticas dos aspirantes ao ensino
superior; deve, sim, ser concebida, na escola e fora dela, como um instrumento eficaz de ava-
liação da formação de cidadãos ativos, comprometidos com os rumos da sociedade brasileira
e afinados com os discursos e práticas do respeito aos direitos humanos.
Passaremos, a partir de agora, a realizar uma aplicação dos princípios contidos nas DNEDH,
considerando que, na avaliação das redações dos participantes do Enem, cada tema exige uma
orientação específica sobre a questão dos direitos humanos que dê aos avaliadores maior segu-
rança no momento de avaliar as redações.
Buscaremos, agora, proceder a uma análise da proposta de redação do Enem 2015, cujo
tema proposto foi a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira.
Considerando tal proposta de redação, podemos afirmar que foram ativados os seguintes
princípios do art. 3º das DNEDH:
1. dignidade humana;
2. igualdade de direitos;
3. reconhecimento e valorização das diferenças e das diversidades.
Considerações finais
FERRAZ, C. V.; LEITE, G. S. Direito à diversidade. São Paulo: Atlas, 2015. GUERRA, S. Direitos
Humanos: curso elementar. São Paulo: Saraiva, 2013.
SARLET. I. W. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos Direitos
Fundamentais na perspectiva constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
SARMENTO, D.; IKAWA, D.; PIOVESAN, F. (Coords.). Igualdade, diferença e Direitos Humanos.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
______. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP Nº 8/2012, sobre a proposição das
Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. Relatores: Antônio Carlos Caruso
Ronca; Rita Gomes do Nascimento; Raimundo Moacir Feitosa
e Reynaldo Fernandes.
Organização das Nações Unidas – ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações
Unidas em 10 de dezembro de 1948. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/
images/0013/001394/139423por.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2015.
SARLET, I.W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2012.
Outro dia ouvi a história da cidade do interior onde só existe um restaurante e ele sempre
fica fechado na hora do almoço e do jantar. Um restaurante que não se abre ao público na
hora do almoço e do jantar não é um restaurante, pois não cumpre seu papel precípuo de
lugar onde são servidas refeições nos momentos em que a maioria das pessoas se alimenta.
Eu pensei: a escola, às vezes (e infelizmente), tem sido esse restaurante fechado na hora do
almoço e do jantar. Vejamos o caso específico da proficiência de leitura: segundo dados do
Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), do Instituto Nacional de Estudos Educacionais
Anísio Teixeira (Inep), vinculado ao Ministério da Educação (MEC),1 apenas 5,34% dos estu-
dantes concluintes da 3ª série do ensino médio deixam a educação básica no estágio adequado.
Ou seja, menos de 6% dos estudantes demonstram habilidades compatíveis com as três séries
do ensino médio. No mesmo levantamento, observa-se que 37,2% dos estudantes são avaliados
no estágio crítico (leem apenas textos narrativos e informativos simples) e que 52,54% estão
no estágio intermediário (desenvolvem habilidades de leitura, mas aquém das exigidas para a
série). O estágio muito crítico (não desenvolvem habilidades de leitura nem sequer compatí-
veis com o 5º e 9º anos) corresponde a 4,92%. Juntos, os níveis crítico e muito crítico alcançam
42,12%. Os dados revelam aspectos da proficiência de leitura, mas não devem ser tão distantes
das competências referentes à escrita de textos.
A pesquisa Projeto de vida: o papel da escola na vida dos jovens,2 feita com estudantes
que realizaram o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e obtiveram desempenho superior
analisam, de maneira frequente e interativa, o progresso dos alunos, para identificar o que
eles aprenderam e o que ainda não aprenderam, para que venham a aprender, e para que
reorganizem o trabalho pedagógico.
Nesse sentido, conforme o autor, a combinação de critérios com a observação das con-
dições dos estudantes torna a avaliação parte essencial do trabalho pedagógico. Isso significa
dizer que, para além de “verificar” o que se aprende, a avaliação busca levantar informações
essenciais para o encorajamento dos estudantes na sua trajetória de aprendizagem.
Segundo Hadji (1994), a avaliação formativa se estabelece por meio de três conceitos:
critérios, diagnóstico e regulação (intervenção).3 Assumir uma avaliação baseada em crité-
rios significa tornar objetivo o que se espera dos estudantes e estabelecer com detalhes o
que ele deve ser capaz de fazer após um período específico de formação. No caso particular
da escrita no ensino médio, é preciso que o estudante saiba com antecedência que, ao final
dessa etapa da educação básica, ele deverá ser capaz, por exemplo, de produzir textos com
predominância argumentativa e de aprender estratégias de defesa de um ponto de vista. Além
A regulação, muitas vezes, é tomada pelo termo “intervenção”, no sentido das ações escolares e pedagógicas que são adotadas
3
para que os estudantes consigam progredir no seu processo formativo. A intervenção requer sempre uma reorganização do
trabalho pedagógico.
Vejamos o que dizem as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (BRASIL, 2006,
p. 18) sobre os objetivos gerais do componente de língua portuguesa:
exemplo 1
Esses dias estava conversando com uns amigos sobre esse tema da publicidade infantil. A gente
sempre custuma conversar bastante sobre os assuntos mais importante da atualidade, pois acre-
dito muito na opinião dos meus amigos e gosto de sempre de refretircom eles sobre todos os
temas. Desse vez, algums amigos se colocaram contra a publicidade e outros se colocaram a favor
das propaga nas para crianças.
A proposta de Zabalza (1994) recai sobre os chamados “diários de aula”. “O termo registros reflexivos foi usado por Villas Boas
4
(2008, p. 97) por entender que a expressão tem uma ‘conotação mais ampla’. Conforme o próprio Zabalza, esses ‘diários’ não
se referem a uma atividade diária, o que de certa forma desobriga a utilização literal da nomenclatura” (LIMA, 2012, p. 107).
5
Excerto de redação do Enem 2014.
Mais do que simplesmente corrigir e dar uma nota final para o texto do aluno,
levá-lo a refletir sobre o que ele escreveu é o mais importante, porque isso pode significar levá-
-lo a tomar consciência de suas escolhas textuais e das lacunas que o texto produzido apresenta.
Ao refletir sobre o que escreveu em forma de registro, o estudante assume o papel de avaliador
de sua prática, função historicamente reservada apenas ao professor.
Um registro reflexivo produzido, por outro lado, é uma fonte relevante de informações
para quem ensina. Se a prática docente ocorrer na perspectiva professor-pesquisador, os regis-
tros reflexivos dos estudantes servirão como base para a reorganização do trabalho pedagó-
gico com textos na escola, tendo em vista a considerável gama de dados sobre a qualidade
Referências
ANTUNES, I. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
HADJI, C. A avaliação, regras do jogo: das intenções aos instrumentos. Porto: Porto, 1994·
ZABALZA, M. A. Diários de aula: contributo para o estudo dos dilemas práticos dos profes-
sores. Porto: Porto Editora, 1994.
Leitura de apoio
PROJETO de vida: o papel da escola na vida dos jovens. Fundação Lemann 2014.
* Professora aposentada da Universidade de Brasília e doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
Leitura de apoio
BARRAS, Robert. Os cientistas precisam escrever. São Paulo: Queiroz, 1986. BASTOS, L. K.
Coesão e coerência em narrativas escolares escritas. São Paulo/Campinas: Editora Unicamp,
1985.
FIORIN, L. J.; PLATÃO, F. S. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1990.
GERALDI, J. W. (Org.). O texto na sala de aula: leitura e produção. Cascavel: Assoeste, 1985.
______. Aprender e ensinar com textos dos alunos. In: CHIAPPINI, L. (Coord.). São Paulo:
Cortez Editores, 1997.
GUIMARÃES, E. A articulação do texto. São Paulo: Ática, 1987. KATO, M. No mundo da escrita.
São Paulo: Ática, 1986.
KOCK, I. V.; ELIAS, V. M. Ler e escrever – Estratégias de produção textual. São Paulo: Contexto,
2009.