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GRUPO MULTITRAD
O TRADUZIR TRADUZIDO:
DIÁLOGOS COM A TRADUÇÃO
CITRAT
Organizadora:
LENITA ESTEVES
O TRADUZIR TRADUZIDO:
DIÁLOGOS COM A TRADUÇÃO
Organização
Lenita Esteves
DOI: 10.11.606/9788575063675
Reitor
Vahan Agopyan
Vice-Reitor
Antonio Carlos Hernandes
Diretora
Maria Arminda do Nascimento Arruda
Vice-Diretor
Paulo Martins
É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a autoria,
proibindo qualquer uso para fi ns comerciais
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Maria Imaculada da Conceição – CRB-8/6409
ISBN 978-85-7506-367-5
DOI 10.11606/9788575063675
CDD 418.02
ÍNDICE
Introdução ............................................................................ 7
Por Lauro Maia Amorim
CAPÍTULO 1
1. Apresentação de “A (ideo)lógica da espectralidade”,
de Douglas Robinson, e comentário sobre sua tradução
para o português ............................................................. 13
Por Lenita Esteves
2. A (ideo)lógica da espectralidade ................................... 22
Por Douglas Robinson
Traduzido por Lenita Esteves
CAPÍTULO 2
1. “Traduzindo a ciência social: o bom versus o mau
utopismo”, de Joshua Price: por um fazer tradutório
do imprevisível ................................................................. 57
Por Lauro Maia Amorim
2. Traduzindo a ciência social: o bom versus
o mal utopismo ................................................................ 68
Por Joshua Price. Traduzido por Lauro Maia Amorim
CAPÍTULO 3
1. Traduzindo(se) com Jean-Luc Nancy: ser-com
e democracia .................................................................... 95
Por Maria Angélica Deângeli e Simone Petry
4 | GRUPO MULTITRAD
2. Ser-com e democracia ..................................................... 107
Por Jean-Luc Nancy
Traduzido por Maria Angélica Deângeli e Simone Petry
CAPÍTULO 4
1. Relações de poder na tradução praticada
na era digital .................................................................... 121
Por Érika Nogueira de Andrade Stupiello
CAPÍTULO 5
1. Ali, através do espelho .................................................... 141
Por Caetano Waldrigues Galindo
2. Os desates da tradução ................................................... 167
Por Ali Smith
Traduzido por Caetano Waldrigues Galindo
CAPÍTULO 6
1. Algumas notas sobre a leitura do texto
de Christine Lombez, “A tradução poética
e o verso francês no século XIX” .................................. 200
Por Sandra M. Stroparo
2. A tradução poética e o verso francês
no século XIX .................................................................. 210
Por Christine Lombez
Traduzido por Sandra M. Stroparo
ÍNDICE |5
CAPÍTULO 7
1. Naoki Sakai: tradução e a fronteira como poiesis ....... 230
Por Angélica Neri, Cristina Carneiro Rodrigues,
Guilherme Bernardes, Haluana Koepsel
e Mauricio Mendonça Cardozo
2. Tradução e a figura da fronteira: por uma apreensão
da tradução como ação social ........................................ 244
Por Naoki Sakai
Traduzido por Angélica Neri, Cristina Carneiro Rodrigues,
Guilherme Bernardes, Haluana Koepsel
e Mauricio Mendonça Cardozo
CAPÍTULO 8
1. É possível traduzir psicanálise? ..................................... 261
Por Márcia Atalla Pietroluongo
2. Lacan pode falar brasileiro? ........................................... 274
Por Angela Jesuíno
Traduzido por Márcia Atalla Pietroluongo
6 | GRUPO MULTITRAD
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO |7
No capítulo “A (ideo)lógica da espectralidade”,
de Douglas Robinson, traduzido e comentado por Lenita
Esteves, o autor discute um caso polêmico em que o tradutor
e poeta finlandês Matti Rossi traduziu o drama King Lear, de
Shakespeare, transformando-o em uma peça marxista, mas
isso não sem a autorização do bardo inglês, segundo o pró-
prio Rossi afirma em seu prefácio. Robinson não se contenta
com esse aparente absurdo e explora, a seu modo, em que me-
dida essa proposição poderia fazer sentido à luz da noção de
“espectralidade”, seguindo uma argumentação que perpassa
a problemática da (in)visibilidade dos tradutores e da tradu-
ção, chegando a contrastar as visões de Schleiermacher e Marx
que, sob o viés da fantasmagoria, tanto iluminam quanto “as-
sombram” os lugares do(a) tradutor(a) em sua relação com a
cultura doméstica e a cultura estrangeira.
Em “Traduzindo a ciência social: o bom versus o mau
utopismo”, de Joshua Price, traduzido e comentado por mim,
o autor reflete sobre os desafios de se traduzir no campo das
ciências sociais, considerando problemática a exigência quase
sempre inexequível de que se traduza sob um sistema inter-
nacional de referências terminológicas padronizadas. Em seu
texto, Price questiona em que medida a utopia da tradução, ba-
seada na universalidade (supostamente) compartilhada entre
línguas e terminologias, seria um “mau utopismo”, em contras-
te com o “bom utopismo”: este não oferece garantias absolutas,
resvala no imprevisível e escapa à padronização, ainda que sob
o amparo de um raciocínio rigoroso menos convencional. Em
vez de se basear em sistemas terminológicos, Price propõe uma
tradução alternativa do termo bewildered para o espanhol, com
base na narrativa surpreendente do náufrago Cabeza de Vaca,
conquistador espanhol do século XVI.
No capítulo “Ser-com e democracia”, de Jean-Luc
Nancy, traduzido e comentado por Maria Angélica Deângeli
8 | GRUPO MULTITRAD
e Simone Petry, o filósofo reflete sobre a constituição da noção
de comunidade, valendo-se do pensamento de Heidegger e da
proposição crítica em relação ao conceito de “com” (em Ser-
com/Mitsein), visto tradicionalmente apenas como uma refe-
rência à contiguidade, espacial ou temporal, entre objetos no
mundo. Nancy nos oferece o “com” como copresença, como
partilha, e se vale da imagem da partilha do alimento, da co-
mida, do comer(mos) juntos como forma de, na democracia
do ser-com, “intercambiar algo do apaziguamento da fome
e do prazer dos sabores”. As tradutoras/pesquisadoras Maria
Angélica Deângeli e Simone Petry reaproximam esse sentido
de “ser-com” do fazer tradutório como gesto de partilha estru-
turante que pode refundar a tradução como uma relação mais
acolhedora e tolerante.
No capítulo “Relações de poder na tradução praticada
na era digital”, baseado no texto “Plain speaking”, capítulo do
livro Translation in the Digital Age, de Michael Cronin, sua
autora, Érika Stupiello, avalia que, segundo Cronin, a suposta
liberalidade e transparência que estaríamos vivendo no mo-
mento atual, com a promoção de práticas de tradução colabo-
rativas baseadas em informações fornecidas por usuários(as)
às grandes empresas, seria apenas uma forma de transferência
de custos da tradução para eles/elas, dissimulando as relações
ocultas de poder entre tradução e tecnologia. As formas de
poder que se disseminam no campo das práticas de tradução
online seriam, assim, desproporcionais em relação ao nível de
consciência que tradutores(as) (amadores(as) ou não) teriam
sobre o esgarçamento dos poderes de controle que eles/elas te-
riam sobre o uso de suas práticas autorais de tradução (cada
vez mais esvanecidas no universo digital).
O capítulo “Os desates da tradução”, da escritora Ali
Smith, traduzido e comentado por Caetano Galindo, foi origi-
nalmente apresentado em 2011 em Londres, em homenagem
INTRODUÇÃO |9
ao décimo ano da morte do escritor alemão W. G. Sebald.
Segundo Galindo, trata-se de “uma escritora falando sobre ou-
tro escritor. [...] O enfoque tradutório, quando a situação é des-
crita nesses termos, estaria longe de ser uma necessidade”, mas
a tradução se faz necessária em sua fala: dividida entre idas
e vindas, entre reflexões sobre o traduzir em geral (a autora
convidou diversos tradutores a responder a suas dúvidas sobre
o universo da tradução, refletindo, então, sobre as respostas) e
o olhar que (se) traduz na obra de Sebald. Deixando de lado a
discussão sobre o que se perde na tradução (lost in translation/
os desastres da tradução), a autora opta por percorrer os desa-
tes da tradução (loosed in translation), ou seja, “as coisas que
ela desata, solta, afrouxa ou liberta”.
O papel transformador da tradução poética na introdu-
ção e formulação de novas tendências literárias no campo da
poesia é do que trata o capítulo “A tradução poética e o verso
francês no século XIX”, de Christine Lombez, traduzido e co-
mentado por Sandra M. Stroparo. O surgimento do verso livre
é considerado uma das maiores novidades na França na se-
gunda metade do século XIX. A autora demonstra, no entanto,
que o aparecimento revolucionário dessa forma poética data
do fim dos anos 1820 e remonta ao trabalho de tradução poé-
tica (de versos metrificados para versos livres) realizado espe-
cialmente por tradutores francófonos de outros países, como
Bélgica e Suíça. Como ressalta Stroparo, “a tradução poética
pôde contribuir para fazer emergir uma outra percepção do
verso francês, para sua renovação”, e o texto de Lombez per-
mite avaliar as “zonas de permeabilidade que a tradução teria
sido capaz de favorecer e revelar”.
O capítulo “Tradução e a figura da fronteira: por uma
apreensão da tradução como ação social”, de Naoki Sakai,
traduzido e comentado por Angélica Neri, Cristina Carneiro
Rodrigues, Guilherme Bernardes, Haluana Koepsel e Mauricio
10 | GRUPO MULTITRAD
Mendonça Cardozo, desenvolve-se, como demonstram os(as)
tradutores(as), em torno da distinção que o autor faz entre a
fronteira em si (border) e o ato de fazer fronteiras (bordering).
Sakai problematiza o pressuposto de que a fronteira seja uma
condição dada, a partir da qual as diferenças seriam enten-
didas como consequências naturais. Como bem ressaltam os
tradutores, o autor demonstra, ao se voltar para a história li-
terária do Japão, em que medida, “ao operarmos com a noção
de fronteira, nós também a estabelecemos, criando e alimen-
tando o espaçamento e a separação que a instaura”. O questio-
namento proposto leva o autor a problematizar “as condições
práticas da distinção que fazemos entre idiomas, culturas e
nações”.
No último capítulo, “Lacan pode falar brasilei-
ro?”, de Angela Jesuino, traduzido e comentado por Márcia
Pietroluongo, discute-se sobre a possibilidade de se traduzi-
rem os complexos escritos de Lacan para o português brasi-
leiro. Os jogos com os significantes, na escrita de Lacan, já
tornam seu texto em francês um trabalho de “esgarçamento”
da linguagem. Tradicionalmente, as traduções de seus escritos
no Brasil favoreceram galicismos, sob a forma de emprésti-
mos e literalizações. A autora aposta na possibilidade de se
fazer algo diferente na tradução para o “brasileiro” e, para
tanto, dis- corre sobre o que ela considera “tradouvir” o texto
de Lacan: o(a) tradutor(a), se necessário, poderá inventar algo
que o(a) afaste “de uma certa corrente da tradução que, diante
do real da letra, trabalha no luto e na impotência”. Para a auto-
ra, tradouvir “não implica, então, nem uma tradução literária
nem literal, mas a tradição da letra com aquilo que ela carrega
de impossível e de invenção, tradouvir pressupõe uma inven-
ção de escrita”.
Todos os trabalhos aqui traduzidos e comentados ofe-
recem uma perspectiva inusitada sobre o traduzir: o traduzir,
INTRODUÇÃO | 11
aqui traduzido, revela as faces menos visíveis da tradução; as
suas arestas; as imprecisões da sua precisão; as fronteiras que
redimensionam o seu existir – bem como o seu rexistir1; a fan-
tasmagoria que habita suas sombras, mas, também, sua luz (e,
por que não, o centro e a margem do poder que jaz nos dois
lados); esse desnudamento que nunca deixa de ser um (re)ves-
tir-se (de novo, desde já e sempre) e que faz da tradução um
gesto a se traduzir, um corpo infinitamente desnudável, mas
que também resiste a se despir; é a tradução que se multiplica
dentro (e para além) do espelho, como alguém que ali (se) vê,
como alguém, e democraticamente, com alguém, para ser de
todo mundo e não ser de ninguém.
1
Existência que em si já é resistência
12 | GRUPO MULTITRAD
CAPÍTULO 1
APRESENTAÇÃO DE “A (IDEO)LÓGICA
DA ESPECTRALIDADE”,
DE DOUGLAS ROBINSON, E COMENTÁRIO
SOBRE SUA TRADUÇÃO PARA O PORTUGUÊS
1
Professora associada de teoria e prática de tradução no Departamento
de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).
2
Todas as traduções de Douglas Robinson presentes nesta apresentação
são de minha responsabilidade.
14 | GRUPO MULTITRAD
mente pretendido por Rossi? Com a permissão de Rossi, a primeira
vez que traduzi essa passagem, em 1985, optei pela segunda; desta
vez, em 1997, optei pela primeira. E nas duas vezes eu realmente
acreditei que estava interpretando a passagem com sua permissão
– embora eu nunca tenha telefonado para perguntar a ele, e em-
bora, infelizmente para a credibilidade de minha alegação geral de
permissão, as implicações ideológicas para a natureza da “mediuni-
zação” de Shakespeare por Rossi sejam significativamente diferen-
tes nas duas interpretações, a ponto de serem quase mutuamente
excludentes. Com artigos definidos32Rossi está alegando acesso ao
“real comportamento” dos detentores do poder na peça, o que im-
plicaria, suspeito eu, que ele está mediunizando algum tipo de
realidade dramática diretamente do indivíduo Shakespeare ou da
mente coletiva de sua companhia de repertório. Com artigos indefi-
nidos,43em contrapartida, Rossi está alegando acesso ao “real com-
portamento” dos detentores de poder no mundo “real”, o mundo
das políticas do poder. Claramente, a primeira é a alegação mais es-
piritualista, a segunda é a mais realista. (ROBINSON, 2001, p. 120)
Dificuldades de tradução
3
A frase traduzida em inglês com artigos definidos ficou assim: “offered
as an alternative the real behavior of the power-holders when the battle for
the crown truly begins” [ofereceu como alternativa o real comportamento
dos detentores do poder quando a batalha pela coroa realmente começa].
4
A frase traduzida em inglês com artigos indefinidos ficou assim: “offe-
red as an alternative the real behavior of power-holders when a battle for a
crown truly begins” [ofereceu como alternativa o real comportamento dos
detentores do poder quando uma batalha por uma coroa realmente começa].
Canalizar:
verbo
1 t.d.bit. (prep.: para) fazer avançar ou escorrer através de canos,
canais, valas etc. (para uma direção, um lugar) ‹canalizou a água
da chuva› (para o reservatório)
2 t.d. colocar redes de água e de esgoto em ‹o prefeito vai c. o bairro›
3 t.d. construir canais em ‹canalizou parte do campo›
4 bit. (prep.: para); fig. conduzir, dirigir ‹canalizou todo o seu ódio
para a vingança›.
(ca.na.li.zar)
v.
1. Dispor ou instalar canais, tubos, canos, valas, sulcos etc. para
conduzir (líquido, gás); conduzir (fluido) por meio de canais ou
canos [td.: Para evitar enchentes, será preciso canalizar as águas
das chuvas e o córrego que atravessa a cidade.]
2. Abrir canais ou valas em (terreno) [td.: canalizar as terras da
fazenda para melhorar a irrigação]
16 | GRUPO MULTITRAD
3. Construir redes de água e esgoto em. [td.: O secretário de obras
mandou canalizar vários bairros da cidade.]
4. Fig. Mobilizar e encaminhar (trabalho, recursos etc.); fazer con-
vergir para um mesmo objetivo ou propósito; DIRECIONAR [tdr.
+ contra, para: O governo canalizou recursos para a saúde.]
18 | GRUPO MULTITRAD
Trechos “sensíveis”
Uma cisma
5
“Matti Rossi was indeed his given name, and both his father and his
father’s father were named Mikko Rossi. If they had an Italian ancestor, he
would have come to Finland fairly early on! While Matti was emphatically
20 | GRUPO MULTITRAD
A lição que se tira disso é que nem sempre o que parece fla-
grantemente significativo tem mesmo algum significado. No
caso de Matti Rossi, sua radicalidade na tradução de King Lear
me levou a enxergar fantasmas onde estes não existiam. Ter-
mino aqui, não sem antes citar uma frase de Shakespeare, es-
pero que com sua permissão: “What’s in a name?”
Referências bibliográficas
a Red, and in fact was notorious for informing on the anti-Soviet commen-
ts of a Hungarian colleague who visited him in Finland, his father Mikko
Rossi was a White officer in the Finnish Civil War! So clearly the surname
was only coincidentally appropriate for Matti’s ideological leanings.”
A permissão de Shakespeare
1
In: ROBINSON, Douglas. Who Translates? Translator subjectivities
beyond reason. Albany: State University of New York Press, 2001.
2
Aqui, a tradução para o inglês feita por Robinson foi substituída pela
tradução que fiz dela para o português (Nota da Tradutora).
22 | GRUPO MULTITRAD
Keskeiseksi teemaksi tuli taistelu vallasta, satamasta ja Doverin sa-
tamaalueesta, joka oli merkitykseltään elintärkeä Britannian ku-
ningaskunnalle. “Dover” on tämän näytelmän avainsana. Miltei
kaikki tekemäni tekstinmuutokset ja lisäykset kytkeytyvät siihen.
Lähteinäni muutoksia ja lisäyksiä varten olen käyttänyt Elisabetin
kauden yhteiskuntaa, taloutta ja tapakulttuuria kuvaavia
teoksia. Näytelmän “työttömät” ovat historiallinen totuus. Heitä
nimitettiin 1500-luvulla “kerjäläisiksi” ja heidän paljoutensa
johtui maaomaisuuden keskittymisestä. He olivat olennainen
ilmiö Elisabet Ensimmäisen Englannissa.
Shakespearen luvalla olen vähentänyt loppukohtauksen
jaloutta ja esittänyt vaihtoehdoksi mahtimiesten todellisen
käyttäytymisen silloin kun taistelu kruusnusta todella alkaa
(ROSSI, 1975, p. 153).
A (IDEO)LÓGICA DA ESPECTRALIDADE | 23
Com a permissão de Shakespeare eu eliminei a alta nobreza do
desfecho e ofereci como alternativa o real comportamento dos
detentores do poder quando a batalha por uma coroa realmente
começa.3
3
Todas as traduções dos textos de Rossi para o português foram feitas a
partir das traduções que Robinson fez para o inglês (NT).
24 | GRUPO MULTITRAD
específico tão fascinante, que ele elimina a alta nobreza do
desfecho “com a permissão de Shakespeare” [“Shakespearen
luvalla”]. O que exatamente ele quer dizer com isso? Devemos
imaginá-lo pedindo permissão? Essa fraseologia é conhecida
das formalidades envolvendo reis e outras autoridades: “Com
sua permissão, Excelência, eu gostaria de eliminar...” [“Teidän
Majesteettinne luvalla haluaisin poistaa...”]. Sendo que essa
solicitação, se ela for de fato uma solicitação, acontece vários
anos depois que a tradução em si foi feita, no prefácio de Rossi
à versão publicada da peça (claramente um fato consumado), e
parece tratar-se de pura e simples formalidade. E, de fato, para
mim, ao que parece, e talvez isso não cause surpresa alguma, é
como se Rossi não estivesse exatamente pedindo a permissão
de Shakespeare, mas sim invocando o espírito dele – como que
reivindicando a bênção de Shakespeare, lá do além-túmulo,
para a sua adaptação socialista.
Por incrível que pareça, o espírito de Shakespeare
concedeu, num modo de dizer (e, pelo que sei, um modo
real e verdadeiro), uma espécie de permissão geral para esse
tipo de adaptação de sua obra. Num livro intitulado From
Heaven to Earth: Shakespeare Returns (1978), por exemplo,
Robert R. Leichtman mantém uma conversa com o espírito
de Shakespeare, valendo-se da mediunidade de D. Kendrick
Johnson. Nessa conversa, Shakespeare invoca várias vezes a
importância de “tomar liberdades” com suas peças, interpre-
tando-as, adaptando-as:
LEICHTMAN: Então de fato as suas peças continuaram a evoluir
durante sua vida.
SHAKESPEARE: Bem, na minha opinião, o teatro deve ser uma
coisa viva. Voltando ao meu comentário sobre as liberdades que
as pessoas tomaram com minhas peças, eu acho isso natural: isso
tende a mantê-las vivas. Se alguém atualizar Hamlet de determi-
nadas maneiras, por exemplo, a peça será algo novo todas as ve-
zes que uma plateia assistir a ela. A propósito, eu nem sequer me
A (IDEO)LÓGICA DA ESPECTRALIDADE | 25
incomodo com a versão dessa peça na qual Hamlet no fim revela
que é uma mulher [risos]. É uma ideia bem interessante... Eu mes-
mo gostaria de ter pensado nisso.
LEICHTMAN: E sobre encenar suas peças com linguagem e figu-
rinos modernos?
SHAKESPARE: Por que não? Permita-me estabelecer uma analo-
gia a partir da pintura medieval, pela qual me interessei, mas que
só conheci superficialmente. Na pintura medieval, cenas da Bíblia
eram muitas vezes apresentadas em roupagens e cenários contem-
porâneos – para torná-las mais vivas e imediatas.
LEICHTMAN: Isso é razoável.
SHAKESPEARE: As artes podem fazer isso, ao passo que a Histó-
ria não pode. (LEICHTMAN, 1978, p. 31)
26 | GRUPO MULTITRAD
Em outras palavras: não tem problema uma adaptação
socialista de Rei Lear! Esqueça suas picuinhas acadêmicas; o
“verdadeiro Shakespeare” pura e simplesmente deu sua per-
missão para que mudássemos sua obra, para que a adaptás-
semos, para que a mantivéssemos viva independentemente
da radicalidade dos meios empregados para isso (exatamen-
te como, presumo eu, quem fez essas observações ainda está
“vivo” depois de sua morte). Transforme Hamlet numa mu-
lher; transforme Dover na coisa mais importante de Lear –
não vejo problema nenhum! O autor-fonte diz que tudo bem!
Só não deixe a peça morrer!
Pensando melhor... qual é exatamente o status ontológi-
co dessa conversa da permissão de Shakespeare? O espírito de
Shakespeare realmente existe em algum “plano interior”, po-
dendo assim, de fato, conceder sua permissão para que tradu-
tores adaptem suas peças? E devemos realmente pressupor que
Rossi está invocando um motivo espiritualista para justificar
sua tradução marxista? De que modo, exatamente, funciona-
ria isso? Marx tinha profunda aversão a explicações espiri-
tualistas, embora, como veremos mais adiante neste capítulo,
ele também as invocasse repetida e obsessivamente a fim de
refutá-las e repudiá-las, e, nesse processo de refutação e repú-
dio, ele continuava conferindo-lhes vida de forma metafórica.
Devemos pensar que Rossi deseja que a “permissão espiritual”
de Shakespeare e que o “real comportamento dos detentores
do poder” existam no mesmo plano ontológico, ambos con-
ferindo-lhe o mesmo tipo de justificativa para a sua tradu-
ção? Ou devemos reduzir a permissão espiritual à condição
de veículo metafórico para o discurso ideológico da política
do poder? Estaria ele realmente alegando que mediuniza am-
bos, Shakespeare e Marx? Ou será que ele está apenas fingindo
mediunizar Shakespeare para mediunizar Marx? Ou, ainda,
estaria ele apenas fingindo mediunizar Shakespeare a fim de
A (IDEO)LÓGICA DA ESPECTRALIDADE | 27
fingir que mediuniza não Marx, mas a realidade, a realidade
política, a Realpolitik (que tem, mas apenas por coincidência,
um matiz distintamente marxista, talvez porque Marx tam-
bém, como Rossi, mediunizou a realidade da realidade, a ver-
dade política realmente real, mas em paralelo mais do que em
séries, de modo que deveríamos evitar a conclusão precipitada
de que Rossi mediunizou Marx)?
Note-se também que na última frase da citação de Rossi
eu tive de fazer uma escolha sintática e semântica: já que o
finlandês não tem artigos, nem definidos nem indefinidos, eu
poderia ter traduzido “esittänyt vaihtoehdoksi mahtimiesten
todellisen käyttäytymisen silloin kun taistelu kruunusta todella
alkaa” (lit. “ofereci como alternativa real/verdadeiro compor-
tamento de homens-poder no momento em que batalha por
coroa realmente/verdadeiramente começa”) como “ofereci
como uma alternativa o real comportamento dos detentores do
poder quando uma batalha por uma coroa realmente começa”
ou como “ofereci como uma alternativa o real comportamento
dos detentores do poder quando a batalha pela coroa realmen-
te começa.” As duas traduções funcionam como representa-
ções do finlandês; mas qual delas traz o significado realmente
pretendido por Rossi? Com a permissão de Rossi, a primeira
vez que traduzi essa passagem, em 1985, optei pela segunda;
dessa vez, em 1997, optei pela primeira. E nas duas vezes eu
realmente acreditei que estava interpretando a passagem com
sua permissão – embora eu nunca tenha telefonado para per-
guntar a ele, e embora, infelizmente para a credibilidade de
minha alegação geral de permissão, as implicações ideológicas
para a natureza da “mediunização” de Shakespeare por Rossi
sejam significativamente diferentes nas duas interpretações, a
ponto de serem quase mutuamente excludentes. Com artigos
definidos Rossi está alegando acesso ao “real comportamento”
dos detentores do poder na peça, o que implicaria, suspeito eu,
28 | GRUPO MULTITRAD
que ele está mediunizando algum tipo de realidade dramática
diretamente do indivíduo Shakespeare ou da mente coletiva
de sua companhia de repertório. Com artigos indefinidos, em
contrapartida, Rossi está alegando acesso ao “real comporta-
mento” dos detentores de poder no mundo “real”, o mundo
das políticas do poder. Claramente, a primeira é a alegação
mais espiritualista, a segunda é a mais realista. Mas como,
realmente, verdadeiramente, o que significa imediatamente –
sem mediação ideológica, sem a orientação “externa” de uma
ideologia como o marxismo (ou poderia ser o capitalismo, ou
o humanismo liberal, embora essas últimas sejam ideologias
desprezadas por esse tradutor finlandês específico) –, pode
Rossi alegar conhecer uma ou outra? Com certeza, e eu o ima-
gino concordando comigo neste ponto, mesmo que apenas in-
conscientemente, de forma que de um modo ou de outro eu
posso seguir esta linha de raciocínio com sua permissão, sua
concepção da “realidade” do comportamento dos detentores
de poder é mediunizada para ele ideologicamente? Esteja ele
alegando “verdadeiro” conhecimento do “real comportamen-
to” dos detentores de poder na peça ou no mundo, com certeza
a “verdade” e a “realidade” do que ele conhece são moldadas
pelo pensamento marxista?
Como enfatizou Derrida em Espectros de Marx (1994), a
dificuldade surge aqui porque insistimos em dualizar dentro e
fora, eu e outro. Shakespeare realmente mandou Rossi trans-
formar Rei Lear num drama socialista ou não mandou? Se
mandou, tudo bem; numa estrutura crítico-literária tradicio-
nal, o autor-fonte é a autoridade suprema nessas coisas e, por
mais implausível que pareça, se Shakespeare realmente ainda
existir em alguma lúcida forma espiritual quatro séculos após
sua morte e for capaz de transmitir a Rossi ou a outros tradu-
tores e diretores sua permissão de adaptar suas peças assim ou
assado, bem, nesse caso simplesmente temos de aceitar isso.
A (IDEO)LÓGICA DA ESPECTRALIDADE | 29
Se, porém (e você pode imaginar o sofrido acadêmico soltando
aqui um profundo e até histriônico suspiro para dramatizar
sua minguada paciência ante uma idiotice como essa possibili-
dade recém-mencionada), Shakespeare realmente não deu sua
permissão para que Rossi expurgasse a sua peça dessa maneira
absurda, então Rossi está simplesmente inventando toda essa
história, a interpretação marxista que ele atribui a Lear é sua
pequena fantasia solipsista que ele escandalosamente impin-
giu a nós, seus espectadores ou leitores finlandeses (espero que
vocês não se importem por serem brevemente incluídos nesse
grupo para fins de ilustração), quando tudo o que queremos
é Shakespeare, o verdadeiro Shakespeare, o que Shakespeare
realmente escreveu. Ou existe uma verdadeira ordem externa
para a sua adaptação e ela deve, portanto, ser aceita como ofi-
cial, autorizada pelo autor original; ou não existe essa fonte
externa e o Lear de Rossi deve ser tomado apenas como pura-
mente interno, uma pura invenção pessoal de Rossi.
Todavia, como argumenta Derrida, “talvez a gente tenha
de se perguntar se o efeito da espectralidade não consiste em
desfazer essa oposição, ou até mesmo a dialética, entre a pre-
sença atual, efetiva e sua contrapartida”4 (DERRIDA, 1994, p.
40) – se, em outras palavras, “a lógica do fantasma” não solapa
criticamente essa noção dualista tradicional de que eu estou
aqui e você está aí, eu sou um sujeito e aquilo é um objeto,
eu sou real e aquela não coisa imaginária é irreal, e assim por
diante. “Se temos desde o início insistido tanto na lógica do
fantasma”, Derrida acrescenta em seguida:
4
As traduções de Derrida para o português foram feitas a partir da tradu-
ção que Peggy Kamuf fez de Espectros de Marx (1994) para o inglês, à qual
recorreu Robinson (NT).
30 | GRUPO MULTITRAD
distingue ou opõe efetividade ou atualidade (seja presente, empíri-
ca, viva – ou não) e idealidade (não presença reguladora ou absolu-
ta). (DERRIDA, 1994, p. 63)
A (IDEO)LÓGICA DA ESPECTRALIDADE | 31
que foram “somatizadas” nos sistemas nervosos autônomos dos
indivíduos e regulam fisiologicamente o comportamento deles.
Em Translation and taboo (1996), eu usei a noção de Outro de
Jacques Lacan para tratar de algo semelhante a esse mesmo in-
terior/exterior psicossocial, essa ponte unindo eu/outro. Aqui,
uma vez que já estamos falando sobre teatro, peço permissão
para usar outra abordagem: a da performance. A criação perfor-
mativa do “personagem”. O que é o “personagem” do, digamos,
Rei Lear? Onde é que “ele” existe? Onde é que existe o “real
comportamento” dos “detentores de poder” na peça? Em lugar
nenhum, na verdade; em nossa mente, em nossa imaginação.
E, no entanto, depois de ver uma encenação da peça saímos di-
zendo coisas como “Ele estava perfeito como Lear!” ou “Aquele
não é Lear de maneira nenhuma!” Quando falamos assim, pa-
rece que estamos pressupondo alguma “estrutura profunda”
estável e universal de personagem, como um ideal platônico,
que os atores “captam” ou “não captam”. Acontece a mesma
coisa quando dizemos que determinado ator “ficou no papel”
ou que “saiu do papel”. Onde exatamente residiria um ideal
assim? No texto? Os críticos literários essencialistas parecem
estar convencidos disso – ou pelo menos falam como se assim
pensassem. Não se requer, todavia, muito ceticismo para lançar
dúvidas sobre essa noção; onde quer que se possa supor que
residam o “Rei Lear” ou “o real comportamento dos detento-
res de poder”, parece claro que eles são principalmente criados
pela imaginação dos leitores, a partir dos materiais “irreais”
de nossa fantasia. Um personagem é uma ilusão criada, uma
ficção formulada pelo ator e a plateia numa interação dialógica
simultânea com o script e com interações prévias semelhan-
tes, que tendem a ser reaproveitadas de maneiras influentes e
sub-reptícias. Um personagem é uma interpretação que, se for
bem-sucedida, assume uma realidade imaginária precisamen-
te superando ou agrupando ou incorporando e transformando
32 | GRUPO MULTITRAD
interpretações prévias na visão do espectador. Dizemos que
um determinado Rei Lear (sinalizando nosso reconhecimento
da pluralidade das interpretações de Lear pelo artigo indefi-
nido, que rapidamente vai se tornando uma espécie de herói
secundário deste capítulo) estava “errado” não porque o ator
não conseguiu “captar” uma estrutura profunda universal de
Lear, mas porque ele não conseguiu nos convencer de que Lear
não poderia ser diferente. A tarefa do ator é apresentar sua per-
formance de Lear não como uma representação de um ideal ou
um universal, mas como um substituto soberano de todas as
interpretações anteriores, como uma ilusão usurpadora ou um
“espectro” ante os quais ilusões ou espectralidades concorren-
tes empalidecem e se tornam insignificantes.
E nalgum sentido – pelo menos ideológico – é irrelevan-
te saber com precisão de onde vem o espectro ou como ele é
criado e sustentado. Mediunizado por D. Kendrick Johnson,
o “verdadeiro Shakespeare” nos diz que “a rainha Elizabeth
inspirou decisivamente o estilo de atuação de Bette Davis. Seu
famoso gestual. Quando a Srta. Davis estava representando a
rainha Elizabeth, ela era muitas vezes eclipsada em passagens
importantes” (LEICHTMAN, 1978, p. 42). Devemos, então,
dizer que Bette Davis “era” a rainha Elizabeth quando era
“eclipsada” pela “real rainha Elizabeth” e que estava apenas
fingindo ser a rainha Elizabeth quando não era? Devemos ridi-
cularizar todas as outras rainhas Elizabeth como meras fingi-
doras, impostoras? Podemos afirmar que se um ator/uma atriz
não tem acesso ao “real” espírito do personagem que está re-
presentando ele/ela é uma fraude? Isso seria absurdo. O ator/a
atriz tira o personagem de algum lugar. Ele vem de dentro e de
fora de sua cabeça. Bette Davis “imagina” como deve ter sido
ser a rainha Elizabeth, lê sobre ela, talvez assista a alguns fil-
mes sobre ela, e constrói um “personagem” muito pessoal para
a rainha, a rainha Elizabeth tal qual representada por Bette
A (IDEO)LÓGICA DA ESPECTRALIDADE | 33
Davis – e, talvez, se esse tal livro Shakespeare returns merece
crédito, a “irreal” rainha Elisabete a estivesse “eclipsando” du-
rante parte do tempo. Que atos da imaginação foram guiados
por um espírito da pessoa que ela estava representando? Quais
foram suas próprias invenções “internas” ou “pessoais”? Se
William Shakespeare e a rainha Elizabeth ainda existem em
alguma forma espiritual e estão me acompanhando (talvez me
eclipsando) neste exato momento em que escrevo estas pala-
vras, provavelmente é muito importante para eles distinguir
uma coisa da outra. De uma perspectiva leiga, mundana, que
lamentavelmente, pelo que sei, é a única que habito, isso não
tem a menor importância. A única coisa que preciso saber é
que, pragmaticamente falando, “personagem” no sentido per-
formativo, assim como “a intenção do autor”, ou “o espírito
do original”, ou a “verdade” política ideológica e pragmática,
são imagens heurísticas, ficções, espectros que seres humanos
concebem a partir de alguma espécie de ectoplasma ideológico
(ou “ideoplasma”), que eles e nós e eu não sabemos o que seja.
(In)visibilizando Lear
34 | GRUPO MULTITRAD
ou se afasta dela, e fazendo isso a supera (pelo menos na ima-
ginação do leitor/espectador/ouvinte). Apresentei o processo
naquele livro anterior em termos basicamente elogiosos, em
termos da criatividade do tradutor. Todavia, colocar a questão
em termos de espíritos, espectros, fantasmas ou o que quer que
seja e, especificamente, em termos de uma espectralização da
ideologia; colocar a representação e a tradução como a molda-
gem performativa ou intencional de um ideoplasma espectral
lança uma luz um tanto problemática, até perturbadora, sobre
essas figuras. Será que uma teoria performativa da tradução,
por exemplo, não confere ao tradutor um poder insuportável
tanto sobre o autor-fonte quanto sobre o leitor-alvo? Mesmo
desconfiando de abordagens essencialistas da literatura, mes-
mo sendo apaixonado por abordagens construtivistas/da res-
posta do leitor /performativas/figurativas, eu resisto à noção de
Rei Lear como uma peça dramática socialista e quero sair cor-
rendo em defesa de Shakespeare. Isso não é o que Shakespeare
quis dizer! A simples afirmação de que Shakespeare lhe deu
permissão para radicalizar a peça não lhe dá o direito de fazer
isso! Shakespeare não é apenas um ideoplasma para que você o
molde de acordo com seus fins marxistas!
Mas é claro que, de todas as maneiras importantes, ele
é. E a noção de que não seja, de que Shakespeare possui certo
caráter estável que tradutores e diretores e atores devem empe-
nhar-se em não violar ou distorcer, é um fato que me é media-
do por outro tipo de ideoplasma, os fantasmas dos estudiosos
de Shakespeare ao longo dos últimos três séculos ou mais ou
menos isso, os fantasmas de críticos literários essencializadores
que buscaram instilar em gente como eu uma crença na imuta-
bilidade (em oposição à ideoplasticidade) dos “grandes autores”.
Todavia, os fantasmas de essencialistas do passado conti-
nuam nos assombrando, e muito. Apesar de dois séculos de crí-
ticas kantianas e neokantianas do fundamentalismo filosófico,
A (IDEO)LÓGICA DA ESPECTRALIDADE | 35
continua hoje parecendo intuitivamente “correto” estabilizar o
“caráter” ou a “natureza” ou a “essência” do autor ou do tex-
to-fonte, e ter cautela com as distorções ou criticá-las. Há todo
um coro de fantasmas aqui, sustentando o ideoplasma do au-
tor-fonte, construindo-o como isso ou aquilo, e somente isso
ou aquilo. Esses “fantasmas” são a(s) força(as) coletiva(s) (não
importa como queiramos chamá-la(s) ) que preservam a ideo-
logia. É ideologicamente correto acreditar na imutabilidade de
“Shakespeare” – acreditar de forma implícita, por exemplo, in-
dependentemente do que ele possa ter sido, que Shakespeare
não foi e nunca poderia ter sido um marxista, de modo que
jamais deveria ser forçado a parecer marxista. Isso porque inú-
meros fantasmas – as palavras indeléveis de tanta respeitável
gente morta pairando no ar – nos disseram que assim é que é.
Com certeza, visto sob essa fantasmagórica luz ideoló-
gica, o inegável poder do tradutor sobre o ideoplasma autoral
é perturbador. Falando em termos mais explicitamente políti-
cos: se na política internacional o erro de um intérprete pode
desencadear um incidente diplomático, que grau de caos não
poderia causar um intérprete manipulador ou distorcivo – es-
pecialmente se esse intérprete invocasse o “espírito” ou a “per-
missão” do falante da língua-fonte como elemento autorizador
ideológico da manipulação? Não seria a submissão a uma ilu-
são de fidelidade tradutória infinitamente preferível ao osten-
sivo reconhecimento do vasto poder do tradutor de suplantar,
usurpar, moldar, impor termos? Matti Rossi é mais conhecido
na Finlândia como poeta, apenas secundariamente como tra-
dutor, e isso não deveria causar nenhuma surpresa. Seu poema
“Kuningas Lear”, “Rei Lear”, dramatiza essa questão melhor
do que sua tradução de Lear jamais poderia fazer:
Kuningas Lear täyttää tänään 128 vuotta, kuningas Lear on nos-
tettu ikkunaan katsomaan paraatia, 250 divisioonaa jalkamiestä,
90000 panssaria, 150000 maailman ympäri lentävää pommittajaa
36 | GRUPO MULTITRAD
joista kolmannes on aina matkalla jonnekin, silmiinkantamat-
tomiin kuuraketteja, jokaisen raketin päällä kahareisin jäntevä
naissotilas; hilpeitä maanpuolustajia, nuortuneita kenraaleja, sillä
tänään vietetään kuningas Learin syntymäpäivää,
***
O rei Lear completa hoje 128 anos; eles o alçaram ante a janela para
ver o desfi le, 250 divisões de infantaria, 90.000 tanques, 150.000
bombardeiros de longo alcance, um terço dos quais está sempre
voando, foguetes lunares até onde a vista alcança, montada em
cada foguete uma graciosa representante dos batalhões femininos;
soldados intrépidos, generais rejuvenescidos, todos celebram o
aniversário do rei Lear,
5
O número da página da citação não foi fornecido pelo autor (NT).
A (IDEO)LÓGICA DA ESPECTRALIDADE | 37
e na janela [vê-se] o rei Lear em sua jaqueta de veludo e de galo-
chas, e ninguém sabe se o seu cabelo já começou a crescer ou se já
parou de crescer, e ninguém pergunta,
uma arma terrível que nós não queremos usar, uma arma terrível,
38 | GRUPO MULTITRAD
fantoche dos verdadeiros detentores do poder, representados
no poema pela enfermeira e o intérprete, “pais” simbólicos de
Lear. A enfermeira, identificada em finlandês como mulher,
é uma figura materna que troca as calças de Lear quando ele
as molha; naquilo que Freud chama “romance familiar”, isso
transformaria o intérprete (de gênero não identificado em
finlandês) numa figura paterna, o guardião paternalista das
funções da fala de Lear que “interpreta” para os hóspedes o
ideoplasmático balbucio do bebê, o “ditador” que dita o que a
criança vai dizer ou disse.
De fato, num sentido importante, a “arma terrível” com
a qual o intérprete (em nome do rei) ameaça os inimigos do
Estado é a própria linguagem, palavras, a fala como um ideo-
plástico “falar por” – e o verdadeiro inimigo não é nenhuma
vítima potencial de um ataque à bomba, mas precisamente o
“aquele por quem se fala”, o ostensivo falante que tem o ideo-
plasma de suas palavras destruído e reformulado por uma
autoridade. A vontade de potência é especificamente, sugere
o poema de Rossi, uma vontade de ditar, de dominar a fala
alheia: um desejo de silenciar o clamor de vozes contrárias,
de esvaziar a fala do outro transformando-a em ecos da voz
interior do eu.
6
A fonte da citação não é mencionada pelo autor (NT).
A (IDEO)LÓGICA DA ESPECTRALIDADE | 39
como um desejo de protegê-la de possíveis cáries ou protegê-lo
a ele de seu choramingo real ou imaginário, mas em ambos
os casos é um objetivo de poder. O poder de falar por outra
pessoa ou lhe ditar algo é politicamente uma das formas de
poder mais eficazes e, pessoalmente, mais danosas porque a
liberdade que esse poder restringe é a liberdade de escolher
ou definir uma ação, e isso em última análise significa a li-
berdade de escolher ou configurar uma identidade pela ação.
(E é claro que nesse ponto o poema de Rossi, assim como a
tradução dele, apenas redirecionam politicamente a peça de
Shakespeare, que gira em torno das complicações políticas
de trocar o poder de ditar pelo amor ditado: a enfermeira e o
intérprete do poema simbolizam de maneiras importantes as
filhas Regan e Goneril da peça.)
A beleza desse poder reside em sua economia: ele é
exercido pela simples ameaça de usá-lo. Falar dele é exercê-lo.
Ameaça-se usar, se houver provocação, essa arma terrível, que
não se pretende usar, e agindo assim se oculta o fato de que se
acabou de usá-la; de que na verdade o uso dessa arma consti-
tuiu toda a razão de se negar o desejo de usá-la.
E, no poema de Rossi, por mais improvável que isso pa-
reça, diante de todas as nossas queixas sobre a nossa invisibi-
lidade, o ditador é o intérprete, o tradutor. Aqui estão de fato
sonhos pós-românticos da visibilidade do tradutor elevados
à máxima fruição: o intérprete não é apenas um dissidente,
mas também um ditador não tão secreto, visivelmente invisí-
vel, invisivelmente visível, resistindo ao “poder” de Lear pela
mediunização de uma ideologia que (presume-se) não é do rei,
postado junto ao elegantemente vestido Lear que acena para as
massas como se realmente tivesse a situação sob seu contro-
le, como se fossem suas as palavras lançadas sobre as cabeças
deles, quando de fato o que é lançado é o ideoplasma verbal
de Lear reformulado, reformado, reconstituído pelo intérprete
40 | GRUPO MULTITRAD
“dissidente”. Lear ocupa mais ou menos a mesma situação de
presença/ausência no poema de Rossi, como fez Shakespeare
no prefácio de Rossi, na qualidade de “autoridade” espectral
cuja presença ao mesmo tempo autoriza a interpretação trans-
formadora do tradutor e desaba (o verbo de Rossi é “vyyhtey-
tyä”, emaranhar-se como uma meada de fios) em incoerência e
impotência, e, assim, em última análise, em ausência. O que a
lógica do fantasma de Derrida assinala tanto no poema quan-
to no prefácio é o possível intercâmbio complexamente sobre-
posto da “atual, efetiva presença e de seu outro”, o ser humano
vivo e o fantasma, o visível e o invisível: fingindo mediunizar
o “autor-fonte” ou o “falante-fonte”, o tradutor/intérprete me-
diuniza em vez disso uma ideologia de poder, o marxismo de
Rossi no prefácio, algum tipo de imperialismo não denomi-
nado no poema (o capitalismo americano ou o comunismo
soviético), e (in)visibiliza o eu/outro como (in)visível.
Seria possível argumentar, de fato, que Rossi nos dá ape-
nas a leitura “oficial” da ação do poema, a versão oficial ou
pública de seus eventos; pois “kfmyfkh”, mais do que a trans-
crição de um balbucio ininteligível, parece ser um marcador
oficial, um carimbo da censura, uma sequência de asteriscos
indicando que alguma coisa foi cortada. O Rei Lear não só
é caracterizado como alguém cambaleante, reduzido a esta-
lar os lábios e a urinar nas calças, mas é também privado de
coerência verbal, silenciado pelo revisionário historiador, cuja
caligrafia pode ser identificada com o poema. “Kfmykfh” é o
ideoplasma na sua condição mais ignóbil, a argila pronta para
ser ideologicamente modelada por seu mestre verbal.
Mas observe-se que essa leitura “autorizada” é construí-
da sobre o alicerce da antiga autoridade: como o rei e, no eixo
do poema-prefácio, como a figura do próprio Shakespeare,
Lear é o representante de ambos: (a) o feudalismo substituí-
do pelo capitalismo no Ocidente e (por algum tempo) pelo
A (IDEO)LÓGICA DA ESPECTRALIDADE | 41
marxismo no Oriente e (b) a tradução como reverente mediu-
nização do espírito, a tradução como subordinada ao espírito
mediunizado do autor-fonte. Se pudéssemos ouvir Lear falan-
do, se ele pudesse nos dizer mais do que “kfmyfkh”, ele falaria
com a autoridade agora desalojada do passado feudal e mediu-
nizado pelo espírito. Seu silenciamento, sua (in)visibilização,
sua redução ao estado de fantasma presente/ausente, são todos
sinais de que o rei está morto, viva o burocrata – de que o
velho regime foi substituído por um regime novo e diferente,
mas sem dúvida igualmente repressivo.
42 | GRUPO MULTITRAD
Kostüm, um in dieser altehrwürdigen Verkleidung und mit dieser
erborgten Sprache die neuen Weltgeschichtsszene aufzuführen. So
maskierte sich Luther als Apostel Paulus, die Revolution von 1789-
1814 drapierte sich abwechselnd als römische Republik und als
römisches Kaisertum, und die Revolution von 1848 wußte nichts
besseres zu tun, als hier 1789, dort die revolutionäre Überlieferung
von 1793-1795 zu parodieren (MARX, 1927, p. 21).
7
Tradução para o português feita a partir da tradução inglesa de Eugene
Kamenka (1983) para o texto em alemão de Karl Marx (NT).
A (IDEO)LÓGICA DA ESPECTRALIDADE | 43
o controle racional de suas ações, pensam que estão “crian-
do algo que antes não existia”, mas com demasiada frequência
“elas ansiosamente invocam, buscando ajuda, os espíritos do
passado”. E depois ele compara esse processo com o aprendi-
zado de línguas e a tradução:
So übersetzt der Anfänger, der eine neue Sprache erlernt hat,
sie immer zurück in seine Muttersprache, aber den Geist der
neuen Sprache hat er sich nur angeeignet, und frei in ihr zu
produzieren vermag er nur, sobald er sich ohne Rückerinnerung
in ihr bewegt und die ihm angestammte Sprache in ihr vergißt.
(MARX, 1927, p. 21).
44 | GRUPO MULTITRAD
com a língua materna, sem totalmente descartar essas coisas;
parar de traduzir da língua materna, parar de levá-la para o
estrangeiro, o novo, mas de algum modo mantê-la de reserva.
E ele imagina essa tensão entre manter/descartar, novamente,
com espíritos e fantasmas:
A (IDEO)LÓGICA DA ESPECTRALIDADE | 45
O dilema conceitual e imagético sobre o qual Marx aqui
se vê estirado é surpreendentemente semelhante, pelo menos
em termos metafóricos, àquele que Friedrich Schleiermacher
encontra em sua palestra de 1813, “Ueber die verschiedenen
Methoden des Uebersenzens” (1838) [“Sobre os diferentes mé-
todos de traduzir”], que também invoca a tradução, espíritos
e fantasmas a fim de construir uma ponte sobre o vão entre
o nativo e o estrangeiro, o velho e o novo. O terceiro capítulo
do meu livro Translation and taboo (1996) foi uma extensiva
leitura cerrada do momento bastante bizarro na palestra de
Schleiermacher a que me refiro; e, embora eu não pretenda
repetir aquela discussão aqui, as convergências e divergên-
cias entre aquela passagem e a de O dezoito de Brumário de
Marx, bem como a aplicabilidade desses textos à questão da
tradução como mediunização do espírito, são tão intrigan-
tes que não resisto a mais uma rápida análise. O momento
fantasmático surge no contexto do ataque de Schleiermacher
contra a velha cantilena segundo a qual o tradutor deveria
fazer o autor “falar” na língua alvo como se ele (o autor-fon-
te) tivesse originalmente escrito naquela língua. Essa é uma
noção evidentemente absurda, argumenta Schleiermacher,
porque ninguém jamais poderá escrever tão bem numa lín-
gua estrangeira como escreve em sua língua materna. Não
há dúvida de que diplomatas e cortesãos muitas vezes se tor-
nam fluentes em várias línguas, e, sendo que as conversas do
convívio social dessas pessoas conhecedoras do mundo são
às vezes coligidas e denominadas literatura – romances de
costumes, por exemplo –, pode-se minimamente imaginar
que algum escritor possa escrever uma peça dessa “literatura
leve” numa língua estrangeira; e talvez esse tipo de literatu-
ra também pudesse ser razoavelmente traduzido, segundo a
regra de que a tradução deve soar como se tivesse sido origi-
nalmente escrita na língua-alvo. Também textos comerciais
46 | GRUPO MULTITRAD
e técnicos, que Schleiermacher descreve como “sob o do-
mínio do objeto” [in der Gewalt des Gegenstandes] (1838, p.
236), podem ser traduzidos dessa maneira. Esse é o ponto
em que Heidegger irá retomar a discussão um século e meio
depois. Mas literatura verdadeira, literatura que está impreg-
nada da “estampa de uma era muito remota” [das Gepräge
einer längst abgelaufenen Zeit] (1838, p. 236), não pode abso-
lutamente ser traduzida desse jeito (e novamente Heidegger
teria de concordar):
Dasselbe ist der Fall mit dem romanischen. Wer gezwungen
und von Amtswegen eine solche Sprache schreibt, der wird sich
doch wohl bewußt sein, daß seine Gedanken im ersten Entstehen
deutsch sind, und daß er nur sehr früh während der Embryo
sich noch gestaltet schon anfängt sie zu übersezen; und wer sich
einer Wissenschaft wegen dazu aufopfert, der wird sich auch da
nur leicht ungezwungen und ohne geheimes Uebersezen finden,
wo er sich ganz in der Gewalt des Gegenstandes fühlt. Es giebt
freilich auch außerdem eine freie Liebhaberei am lateinisch oder
romanisch schreiben, und wenn es mit dieser wirklich darauf
abgesehen wäre in einer fremden Sprache gleich gut wie in der
eigenen und gleich ursprünglich zu produciren: so würde ich sie
unbedenklich für eine frevelhafte und magische Kunst erklären,
wie das Doppeltgehen, womit der Mensch nicht nur der Geseze der
Natur zu spotten, sondern auch andere zu verwirren gedächte. So
ist es aber wohl nicht, sönderndfiese Liebhaberei ist nur ein feines
mimisches Spiel, womit man sich höchstens in den Vorhöfen
der Wissenschaft und Kunst die Zeit anmuthig vertreibt. Die
Production in der fremden Sprache ist keine ursprüngliche; sondern
Erinnerungen an einen bestimmten Schriftsteller oder auch an die
Weise eines gewissen Zeitalters, das gleichsam eine allgemeine
Person vorstellt, schweben der Seele fast wie ein lebendiges äußeres
Bild vor, und die Nachahmung desselben leitet und bestimmt die
Production […] Ist aber jemand gegen Natur und Sitte förmlich ein
Überläufer geworden von der Muttersprache, und hat sich einer
andern ergeben: so ist es nicht etwa gezierter und angedichteter
Hohn, wenn er versichert, er könne sich in jener nun gar nicht
mehr bewegen; sondern es ist nur eine Rechtfertigung, die er sich
A (IDEO)LÓGICA DA ESPECTRALIDADE | 47
selbst schuldig ist, daß seine Natur wirklich ein Naturwunder
ist gegen alle Ordnung und Regel, und eine Beruhigung für die
andern, daß er wenigstens nicht doppelt geht wie ein Gespenst
(SCHLEIERMACHER, 1838, p. 236-37, itálicos de Robinson).
8
Tradução para o português feita a partir da tradução inglesa de Robinson
(1997, p. 129-130) (NT).
48 | GRUPO MULTITRAD
O único elemento semântico “faltante” nessa passa-
gem, se nós a tomarmos como uma espécie de “texto-fonte”
das ruminações de Marx, quase quatro décadas mais tarde,
sobre traduções, espíritos e fantasmas, é der Geist – que apare-
ce, como mostrei em Translation and taboo (p. 179-180), uma
ou duas páginas antes (entre outras passagens), em conexão
com Grotius e Leibniz escrevendo de modo igualmente ori-
ginal em latim e em alemão ou holandês. E, seja como for,
Schleiermacher de fato tem uma lista de bons espíritos dos
mortos, fantasmas-que-não-são-exatamente-fantasmas, que
eu destaquei em itálicos na citação acima: a “persona coleti-
va” modelada por lembranças de autores mortos, que “flutuam
diante da alma quase como simulacros vivos.”
O que é interessante em relação à justaposição dessa
passagem com a de O dezoito de Brumário é que ambas in-
vocam figuras idênticas, tradução, espíritos e fantasmas, mas
em direções quase diametralmente opostas. Para ambos os
autores o espírito/Geist é bom e o fantasma Gespenst é ruim;
ambos querem manter o espírito e erradicar o fantasma. Mas,
para Schleiermacher, espíritos (ou melhor, personas coletivas
e simulacros vivos) estão vinculados ao antigo, a “lembran-
ças de autores específicos ou do costume de certa época”,
precisamente o que Marx chama de fantasmas; e o que Marx
identifica como o “espírito do novo”, o verdadeiro espírito de
revolução ou uma língua estrangeira excluída de traduções
políticas e linguísticas do velho, Schleiermacher identifica
como duplos fantasmáticos. Schleiermacher, no fim das con-
tas, está advertindo especificamente contra separar a literatura
da língua materna; quem tentar falar uma língua estrangeira
sem subliminar ou secretamente traduzir da língua nativa (ex-
ceto em assuntos comerciais ou técnicos); quem tentar escre-
ver de modo tão original numa língua estrangeira quanto na
língua nativa, efetivamente “se duplica como um fantasma”.
A (IDEO)LÓGICA DA ESPECTRALIDADE | 49
O falante, escritor e tradutor estão todos encarnados na lín-
gua nativa, em casa, no que é velho e familiar. A tentativa de
atuar na língua estrangeira sem laços tradutórios com a ori-
gem nativa equivale a projetar uma duplicidade fantasmáti-
ca sobre fronteiras ontológicas, tornando-se algo que não se
é, algo novo e inatural (“uma tentativa simultânea de zombar
das leis da natureza e confundir os outros”). A ideia de não
traduzir mentalmente, de libertar-se por completo da língua
nativa, enche Schleiermacher de medo. Toda vez que um escri-
tor ou tradutor transita nas esferas do estrangeiro, ele precisa
de uma ponte para voltar para a sua língua nativa; sem essa
ponte ele não só não consegue voltar para casa, mas também
não pode “transitar” na língua nativa; torna-se não apenas um
exilado no exterior, mas também fica paralisado em seu país.
Marx quer explodir essa ponte, quer simbolizar a revolução
com a imagem do falante nativo que se afasta de sua língua
nativa e se transfere de corpo e alma para o estrangeiro, es-
quecendo a língua nativa a fim de “produzir” no exterior sem
traduzir: o espírito da revolução é (será mesmo?) o novo sem
o velho, o estrangeiro sem a ponte tradutória para voltar ao
nativo; o fantasma ou espectro da revolução é o velho, o nativo,
o familiar-mas-morto, o passado, ideologias antigas, que con-
tinuam controlando a burguesia, mas não devem continuar
influenciando o proletariado! Nós precisamos eliminá-las,
exorcizá-las, não mediunizá-las, não nos tornar necromantes
de fantasmas do passado ideológico morto, não traduzi-los
para o futuro, que deve permanecer livre de fantasmas e li-
vre de traduções. Shakespeare não deveria precisar conceder a
Rossi permissão para radicalizar Lear. Shakespeare está mor-
to e sepultado. Seu fantasma não deveria controlar o que um
tradutor marxista faz com sua obra em 1972. O futuro cha-
ma, e o tradutor revolucionário responde. Schleiermacher, em
contrapartida, como outros românticos alemães, de Herder a
50 | GRUPO MULTITRAD
Humboldt, é a quintessência do burguês que se torna aristo-
crata, ansiando por um retorno dos mortos, sonhando com
os sepulcros se abrindo e os mortos invisíveis voltando à vida,
ganhando novos corpos tangíveis, tornando-se visíveis e vi-
tais. E os mortos devem aparecer como quem realmente são,
estrangeirizados, não assimilados a nossa cultura moderna;
eles devem voltar à vida em seu torrão natal, e nós devemos
caminhar rumo a eles (esse é o legado que Schleiermacher re-
cebe do falecido Herder, há dez anos em sua sepultura, mas
ainda falando com os românticos alemães). E se os mortos não
falarem, se seus espíritos se mantiverem em silêncio, ora, fale
por eles, fale com a voz e a permissão deles, ou com aquilo
que você presume ser a voz e a permissão deles; faça o que
você deve fazer em nome deles, e no espírito deles; deixe que
isso seja a mediunização das necessidades ideológicas do seu
grupo, mas chame-o de mediunização dos mortos, Homero e
Shakespeare. Ouça com atenção o que você supõe ser a fala dos
mortos, e se tudo o que você escutar for “kfmyfkh”, então diga
o que você sabe que eles estão dizendo...
Aqui estão, portanto, os pontos extremos da discussão:
A (IDEO)LÓGICA DA ESPECTRALIDADE | 51
ra exercida por esses espíritos sobre a escrita e a tradução;
Marx chama de “fantasmas” essas figuras históricas que
continuam a influenciar o presente e nos adverte contra
seus perniciosos efeitos.
52 | GRUPO MULTITRAD
Pois, por mais que continue sendo verdade, sob muitos aspectos,
que ninguém pode ser considerado culto e cosmopolita sem o co-
nhecimento de várias línguas, nós também devemos admitir que o
cosmopolitismo não nos parece autêntico se em momentos críticos
ele suprimir o patriotismo; e o mesmo se aplica às línguas. Aquele
altamente generalizado amor pelas línguas que pouco se importa
com qual língua (a nativa ou alguma outra, velha ou nova) está
sendo usada para uma variedade de fins expressivos (mundanos
ou sublimes) não é a melhor espécie de amor para aperfeiçoar a
mente ou a cultura. Um país, uma língua – ou então outra: uma
pessoa tem de decidir pertencer a algum lugar, ou então aceitar
ficar solta no desagradável espaço intermediário.9
9
Tradução para o português feita a partir da tradução de Robinson para
o inglês (1997, p. 235) (NT).
A (IDEO)LÓGICA DA ESPECTRALIDADE | 53
fantasmas quando eles voltarem a nos assombrar. “Então a
pessoa não deve se esquecer disso”, diz Derrida; “a pessoa
deve lembrar-se, mas ao mesmo tempo esquecer o suficiente,
nessa mesma memória, a fim de “encontrar novamente o es-
pírito da revolução sem fazer seu espectro voltar” (DERRIDA,
1994, p. 110). Schleiermacher está vinculado ao passado e não
estaria disposto a eliminá-lo; mas ele também está voltado
para um futuro melhor, no qual a desunião passada e presen-
te da Alemanha, da cultura alemã, da língua alemã, poderá
ser gloriosamente transformada e purificada. Como escreve
Pym sobre o romance familiar de Schleiermacher: trata-se
aqui do solo pátrio paterno e da língua materna e de seu
Blendling ou filho bastardo, a cultura alemã do futuro, pro-
duto de traduções estrangeirizadoras:
O fi lho deles era necessariamente “ein werdendes Volk”, um povo
com um futuro, uma povo cujos valores deviam ser mais do que
aqueles herdados do passado. Uma vez que a mãe não é uma
mãe real [ela ainda tem de depender do latim], o pai ainda não
é um pai inteiramente legítimo [ele é politicamente fragmentado
e militarmente ocupado pelos franceses], e o fi lho é solicitado a
tornar-se de preferência mais do que um “retrato puro” de seus
pais, de forma alguma se pode falar de um simples contraste da
impureza dos Blendlinge com a imaculada virtude de qualquer fa-
mília imediatamente feliz. O fi lho natural alemão talvez também
seja bastardo. As perguntas retóricas de Schleiermacher, propon-
do uma escolha entre estar em casa e longe dela, não poderiam
ser respondidas com clareza porque nenhum de seus termos era
claro. O bom e o mau situam-se nos dois lados. O pregador só po-
deria apresentar o problema e prosseguir para outras metáforas.
(PYM, 1995, p. 19)
54 | GRUPO MULTITRAD
da mentalidade ou cultura ou Geist nacional), mas não conse-
guem concretizá-la. Não só não conseguem atingir essa uto-
pia, mas nem sequer podem imaginá-la integralmente. Eles
precisam dos espíritos da outridade, do passado para Marx,
do estrangeiro para Schleiermacher. Eles forçam suas ideali-
zantes imaginações binárias e as aplicam a um mundo nebu-
loso, e logo se veem emaranhados na impossibilidade de seus
próprios projetos.
Esses dois projetos impossíveis convergem com uma cla-
reza extrema na teoria contemporânea da tradução, possivel-
mente, em Lawrence Venuti: um marxista schleiermacheriano
que pretende ao mesmo tempo basear a tradução no respeito
pelo passado e o estrangeiro e usar a tradução para impul-
sionar a cultura nativa para um futuro melhor; um elitista
schleiermacheriano conservador que acusa Schleiermacher
por seu conservadorismo elitista; um marxista dissidente que
associa algo muito semelhante ao conceito revolucionário de
tradução de Marx ao capitalismo assimilativo, o inimigo por
ele combatido. Venuti quer ter ambos, Marx e Schleiermacher,
e binarizar a seu modo a vagueza que cada um deles não con-
seguiu resolver por conta própria.
O problema desses três pensadores é a persistência de
espíritos, espectros, fantasmas – especificamente, neste capí-
tulo, ideologias, ou mais genericamente a outridade, a alteri-
dade – apesar de tudo o que eles fizeram para bani-las de uma
abordagem propriamente racionalista da tradução. O indi-
víduo seria contido, controlado, autônomo, decisivo; livre de
impulsos inconscientes de origem dúbia; capaz de avaliar uma
situação, tomar uma decisão racional para o futuro e pô-la em
prática, sem a interferência de forças alheias. E, no entanto, o
alheio, o estrangeiro, o diferente, o outro é precisamente aqui-
lo de que se precisa para agitar as coisas no âmbito domésti-
co. O indivíduo instituiria um regime estrangeirizador sem a
A (IDEO)LÓGICA DA ESPECTRALIDADE | 55
interferência do estrangeiro; uma política inclusiva racionalis-
ta que excluirá todos os impulsos não controlados estritamen-
te pela razão. Isso não é factível. Mas não torna o projeto nem
um pouco menos atraente.
Referências bibliográficas
56 | GRUPO MULTITRAD
CAPÍTULO 2
1
Professor Assistente Doutor do Departamento de Estudos Linguísticos
e Literários da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”,
Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, campus de São José do
Rio Preto, São Paulo. Email: laurinhomaia@gmail.com.
58 | GRUPO MULTITRAD
poder, bem como o papel da tradução na construção dos sabe-
res nas ciências humanas e sociais.
O título do artigo, “Traduzindo a ciência social: o bom
versus o mal utopismo”, sugere o que, aparentemente, seria um
contrassenso: embora se refira a algo que, em tese, não pode
ser realizado, um pensamento utópico não seria algo bom em
si mesmo?21Como se pode pensar em um mal utopismo? Para
responder a essa pergunta, seguimos Price em seu convite à
reflexão sobre o papel menos previsível da tradução no campo
das ciências sociais, para além da expectativa corrente segun-
do a qual a única tradução bem sucedida é aquela que oferece
alguma forma de padronização universal terminológica, de
acordo com os parâmetros disciplinares.
Price menciona alguns princípios gerais defendidos por
Immanuel Wallerstein (1981 apud PRICE, p. 349-50) sobre
como traduzir, de maneira eficaz, textos sócio-científicos:
1. Busque uma tradução padronizada, se ela existir. Por tradução
padronizada, refiro-me ao equivalente aceito, para um termo téc-
nico, nas duas línguas.
2. Se a melhor tradução possível parecer anacrônica ou perder al-
guma nuance, a solução é acrescentar o original entre parênteses.
3. Se um conceito for padronizado em uma língua, mas (ainda) não
o é em outra, ou não traduza, ou, então, indique ao leitor a existên-
cia dessa diferença intelectual entre as duas culturas linguísticas.
4. Se um termo que não dispõe de uma tradução padronizada for
utilizado pelo autor de uma forma marcadamente diferente, mas
compreensível no contexto original, não o traduza por um termo
padronizado.
2
Segundo o dicionário Michaelis online, uma utopia se refere a “qualquer
descrição ou conceito imaginário de uma sociedade com um sistema
social, político e econômico ideal, com leis justas e dirigentes e políticos
verdadeiramente empenhados no bem-estar de seus membros.” Disponível
em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=utopia>.
Acesso em: 04 mar. 2017.
60 | GRUPO MULTITRAD
eficaz, de modo que tudo passa a ser mais facilmente compreen-
dido na medida em que os critérios terminológicos empregados
representam a face de uma moeda corrente conhecida e consa-
grada. Mas será que esse tipo de descrição padronizadora da
realidade é capaz de dar conta das especificidades locais que
cada vivência antropológica nos oferece? Price nos apresenta
uma interessante discussão, suscitada pelo antropólogo Tullio
Maranhão, a respeito da classificação recorrente, entre muitos
antropólogos, da caça indígena como uma forma de “trabalho
produtivo”, segundo os moldes marxistas. Maranhão argumen-
ta que a caça, para os indígenas, é alçada a uma experiência de
natureza espiritual e ritualística que implica até mesmo um ato
de sedução entre caçador e presa. Equiparar o gesto da caça a
“um trabalho produtivo”, no sentido marxista de “surplus”, “la-
bor” ou “mais valia”, equivaleria a aplicar essa mesma noção de
“produtividade” à atividade de um sacerdote que assa hóstias e
as consagra na eucaristia (MARANHÃO, 2002, p. 66-67 apud
PRICE, 2008, p. 362). Ao empregarmos uma terminologia pa-
dronizada para descrever uma realidade social particular mui-
to diferente daquela que serve de fundamento para essa mesma
terminologia, corremos o risco de estarmos nos valendo apenas
da aplicação de uma abstração teórica a fenômenos que trans-
bordam as fronteiras conceituais já consolidadas por essa abs-
tração. Esse transbordamento requer, portanto, que sejamos
capazes de renovar nossa capacidade de enxergar o outro, com
uma linguagem embebida pela experiência do descentramento,
deixando de nos ancorar demasiadamente em nossa capacida-
de exaurida de apenas ver o outro a partir da centralidade posta
pelo que sabemos e conhecemos.
Nesse sentido, o artigo de Joshua Price aponta caminhos
interessantes para uma reflexão mais detida sobre a prática da
tradução, no campo das ciências sociais, na medida em que
ela se torna mais aberta à experimentação e, o que é mais
3
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, por exemplo, faz uso des-
se termo na seguinte passagem de seu artigo “Perspectival Anthropology
and the Method of Controlled Equivocation”: “Accordingly, even when
misunderstandings are transformed into understandings – like when the
anthropologist transforms his initial bewilderment at the natives’ ways
into ‘their culture’, or when the natives understand that what the Whites
called, say, ‘gifts’ were in reality ‘commodities’ – even here such unders-
tandings persist in being not the same” (2004, p. 12, itálico nosso).
62 | GRUPO MULTITRAD
reduzidos a náufragos à mercê de circunstâncias desconheci-
das. Essa experiência desconfortante revelou-se transforma-
dora na medida em que expôs Cabeza de Vaca a uma vivência
deslocadora de seus próprios princípios eurocêntricos ao ter
que aprender, pela força impiedosa da natureza, da fome e da
fragilidade, a enxergar, com olhos desnudos de si, os indígenas
aos quais se via submetido e que, ironicamente, aprendera a
admirar. É com base nessa experiência, nessa narrativa, que
Price propõe sua tradução para bewildered.
A vivência do deslocamento, da desterritorialização por
Cabeza de Vaca é, antes de mais nada, a fonte de reconfigu-
ração que, na proposta de tradução de Price, revela-se como
tradução renarrada: sua opção lexical foge à força universali-
zadora da padronização ao permitir que ela se hibridize com
uma narrativa outra e se mostre “imprevisível”, tanto mais por
não ser prevista pela narrativa usual que circunda os sentidos
das palavras na convencionalidade linguística de que lança-
mos mão no dia-a-dia (e mesmo no discurso sócio-científico).
É imprevisível também porque sua proposta de tradução não é
“pre-visível”, ou seja, não se encontra sob a égide daquilo que
a visão é capaz de revelar a priori sem se mover no tempo e no
espaço: por ser fruto da desterritorialização e do deslocamen-
to espaço-temporal vividos por Cabeza de Vaca, a tradução de
Price contém algo do inesperado, para além do “visível”, para
além do que somos capazes de “ver” quando parados sobre um
ponto de referência que nos permite visualizar somente o que
está ao alcance do olhar.
O modo com que Joshua Price nos oferece sua tradução
nos ajuda a vislumbrar o próprio movimento pela busca de
uma reflexão mais detida sobre o entorno, menos estritamente
linguístico e mais permeável às considerações de natureza cul-
tural, ideológica e epistemológica da tradução, ensaiadas pelos
Estudos Descritivos da Tradução a partir de fins da década
64 | GRUPO MULTITRAD
ou menos hegemônica, seria, enfim, inescapável: não haveria
como nos despirmos dela. Mas é justamente com o texto de
Price que se pode observar algo que parece não exatamente
negar as convenções (até porque são necessárias), mas que
inscreve nelas uma espécie de instante que se desloca como
forma de resistência à inteligibilidade plena que essas conven-
ções demandam e necessitam para existirem como tais. Esse
instante, daquilo que nos soa imprevisível, e até inesperado,
não é capaz de suspender a força das convenções, mas é capaz
de inseminá-las com aquilo a que Walter Benjamin se refere,
em “A Tarefa do Tradutor”, como sendo o “tangenciamento”
da tradução no texto de partida, no qual a tradução deixa de
ser mera “transmissão de informação”:
66 | GRUPO MULTITRAD
Referências bibliográficas
1
Texto originalmente publicado na revista Target, n. 20, vol. 2, 2008, com
o título: “Translating social science: good versus bad utopianism”. Tanto o
autor quanto a John Benjamins Publishing Company permitiram a publi-
cação deste artigo em língua portuguesa (Nota do Tradutor).
2
State University of New York at Binghamton (NT).
68 | GRUPO MULTITRAD
E onde se encaixa a ciência social? Na minha experiên-
cia, a ciência social e a teoria social são geralmente discutidas,
nos Estudos da Tradução, como se pertencessem à categoria
da tradução literária. Mas existe algo de irredutível na ciência
social ou na teoria social que indique que devam ser traduzi-
das de acordo com outra lógica?3 Deveria existir um campo
autônomo nos Estudos da Tradução que pudesse examinar es-
sas questões de tradução nas áreas de Geisteswissenschaften4
e Sozialwissenschaften5? Em caso afirmativo, como é possível
teorizar a tradução de textos das ciências sociais sem tratá-los
como se fossem textos literários? Qual é o trabalho que envolve
a sua tradução? Além disso, o(a) tradutor(a) deve diferenciar
sua abordagem de acordo com o paradigma que orienta o tex-
to original? Em outras palavras, uma única teoria da tradução
poderia satisfazer os requisitos de textos advindos de todas
as disciplinas, escolas, movimentos intelectuais e que abran-
gem pesquisadores(as) pós-modernos, cientistas empírico-po-
sitivistas, etnógrafos(as) interpretativistas, economistas da
Escola de Chicago, cientistas políticos(as) da América Latina,
historiadores(as) foucaultianos(as) e estatísticos(as) – cientis-
tas sociais de pleno direito? Uma única estratégia de tradução
funcionaria quando esses textos implicam noções conflitantes
de linguagem, verdade, objetividade, neutralidade axiológica,
3
O American Council of Learned Societies (ACLS - Conselho Americano
de Sociedades Acadêmicas) patrocinou recentemente um estudo que as-
sumiu a posição segundo a qual textos sociocientíficos são distintos, de
forma significativa, da literatura e das ciências naturais, sendo, portan-
to, necessários conhecimentos especializados e estratégias próprias para
a sua tradução. O estudo desenvolvido pela ACLS fornece uma série de
orientações para tradutores e editores (cf. Heim e Tymowski, 2006) (Nota
do Autor).
4
Humanidades (NT).
5
Ciências Sociais (NT).
6
Torna-se evidente, a partir do exposto neste ensaio, que me refiro à tra-
dução da literatura pertencente às ciências sociais. Deve-se distinguir essa
área do campo de pesquisa emergente dos Estudos da Tradução que trata
especificamente de Pierre Bourdieu e Bruno Latour, o qual se dedica à
sociologia da tradução. Para um excelente estudo realizado nesse campo,
sugiro o trabalho de Simeoni (1998) (NA).
7
Quando este texto traduzido não fornecer numeração de página das ci-
tações feitas pelo autor, é porque essa informação não se encontra no arti-
go originalmente escrito em inglês e publicado pela revista Target. (NT).
70 | GRUPO MULTITRAD
a existência dessa diferença intelectual entre as duas culturas lin-
guísticas.
4. Se um termo que não dispõe de uma tradução padronizada for
utilizado pelo(a) autor(a) de uma forma marcadamente diferente,
mas compreensível no contexto original, não o traduza por um ter-
mo padronizado.
5. Se um termo apresentar amplitudes cognitivas diferentes em
duas línguas e o conceito for central para o artigo, o(a) tradutor(a)
deverá fazer essa observação, seja por meio de uma nota ou da in-
serção do termo original entre parênteses.
6. Se um termo revelar amplitudes cognitivas diferentes em duas
línguas, mas paralelas entre elas, é mais seguro contar com a tra-
dução literal, preferencialmente com o uso de cognatos, se houver.
7. Quando um(a) autor(a) desfizer uma confusão conceitual, o(a)
tradutor(a) não deve restabelecê-la.
8
Em trabalhos de grande influência, Lawrence Venuti (1986, 1994) tem
defendido que o/a tradutor(a) se torne mais proeminente no processo de
tradução. Em um argumento agora familiar nos Estudos da Tradução,
ele advoga contra o senso comum de que textos traduzidos devam se
adequar harmoniosamente à lógica do(a) consumidor(a) pertencente à
cultura alvo, que valoriza a fluência e a fácil assimilação. Para Venuti,
essa exigência estética e comercial somente agrava a invisibilidade do(a)
tradutor(a) e encobre o fato de que um texto, na verdade, foi traduzido
em grande medida em detrimento dos profissionais da tradução. Ele e
outros(as) estudiosos(as) são contrários a qualquer tentativa de aplacar,
diminuir, ou emudecer o(a) tradutor(a) ou de torná-lo(la) um/uma ser-
vo(a) do(a) autor(a); em outras palavras, questionam a noção de que é me-
lhor que o(a) tradutor(a) não seja notado(a), ou que seja imperceptível,
visão essa que concebe o bom/a boa tradutor(a) como aquele(a) que tem
a graça de desaparecer para o fundo dos bastidores. Em vez disso, esses/
essas pesquisadores(as) têm buscado libertar o(a) tradutor(a) de seu papel
de mero(a) escriba, apontando tanto para a inevitabilidade da inovação e
da presença textual do(a) tradutor(a) quanto para a promoção do exercí-
cio de sua atuação. Para esses(as) pesquisadores(as), a invisibilidade do(a)
tradutor(a), tal como ela tem sido classicamente moldada, é mais honrada
na violação do que na sua observância. Por uma razão diferente, Gregory
Rabassa, refinado tradutor de literatura latino-americana, tem se quei-
xado do que chama de “professores horrendos”, estudiosos que policiam
suas traduções escrevendo artigos acadêmicos e tirando proveito disso
por meio de um pedante monitoramento crítico de suas opções muitas
vezes líricas (cf. Rabassa, 2005) (NA).
72 | GRUPO MULTITRAD
Agora, é verdade que muitos, senão a maioria, dos(as)
cientistas sociais, veem seus textos como meros transmissores
de informação. Para eles ou elas, a língua é um instrumento.
Esses(as) cientistas sociais podem se imaginar participando
de uma conversa universal, ou, ao menos, de uma conver-
sa que aspire à universalidade. (Eu retornarei a essa questão
da universalidade mais adiante). As diretrizes oferecidas por
Wallerstein parecem ser muito bem aplicáveis a esses tipos de
textos sociocientíficos.
O primeiro pedido de precaução e o primeiro indício
de que podemos estar no caminho errado vêm de Walter
Benjamin. Ele inicia o texto9 com uma jogada de mestre, ob-
servando que a característica fundamental da má tradução é
que ela transmite informação ([1923] 1968). Wallerstein não
poderia estar mais correto se todos(as) os(as) cientistas sociais
estivessem envolvidos(as), ou unicamente envolvidos(as), em
intercambiar conceitos, como se estivessem em um comércio,
onde os conceitos representam a moeda do reino. Bons ou
boas cientistas sociais, porém, não permutam conceitos tanto
quanto buscam elaborá-los. Os conceitos em si não são fixos.
Por exemplo, na antropologia cultural, disciplina em que
atuo, a prática da clarificação conceitual interlingual e, às vezes,
intralingual, tem sido empregada na escrita etnográfica desde
pelo menos Franz Boas. Para dar apenas um exemplo contempo-
râneo, entre inúmeros outros, o antropólogo Roberto DaMatta
(1993) escreveu um ensaio adorável, presente no livro Conta de
Mentiroso, intitulado “Antropologia da Saudade”, em que focali-
za o uso melancólico do conceito de saudade no Brasil. DaMatta
considera “saudade” um performativo que se respira profunda-
mente na vida coletiva cotidiana, modulando-lhe o andamento,
9
O texto no caso é “The task of the translator” [A tarefa do tradutor], ori-
ginalmente “Die Aufgabe des Übersetzers” (NT).
10
“A confiança na possibilidade da tradução intercultural”, comenta
Tullio Maranhão, “e os esforços para refinar suas técnicas ignoram a di-
ficuldade fundamental que reside no fato de que há um processo dialógi-
co de comunicação que nunca pode ser inteiramente capturado por uma
determinada língua ou por uma determinada cultura como um sistema
homeostático” (2002, p. 76). Conceitos como “saudade” estão sujeitos à
evolução de uma cultura viva. “É verdade que os sistemas culturais, lin-
guísticos e sociais moldam a conduta cotidiana, mas a liberdade humana
para escapar ao determinismo não pode ser ignorada.” (MARANHÃO,
2002, p. 76) (NA).
74 | GRUPO MULTITRAD
Escrever bem é fazer contínuas incursões na gramática, nos usos
instituídos e nas normas linguísticas aceitas. É um ato de rebelião
permanente contra o entorno social, uma forma de subversão. Es-
crever bem é empregar certa coragem radical... ([1937] 2000, p. 50)
11
Volapuque e esperanto são consideradas línguas artificiais (NT).
76 | GRUPO MULTITRAD
e mecanizado dela. A linguagem técnica que aspira a ser uma
terminologia universal, embora torne a tradução mais acessí-
vel, também parece acarretar (ou pelo menos está fortemente
associada com) a alienação obstinada do(a) cientista em rela-
ção à língua em que ele ou ela vive. A linguagem técnica pro-
duz um código sintético fechado.
É possível produzir um vocabulário técnico universal?
Isso é desejável? Eu compreendo o impulso de Wallerstein para
estabelecer terminologias e padronizações e tornar tudo (total-
mente) regular e estável. Eu compreendo esse impulso, mas ele
parece equivocado, mesmo se concordarmos com Feyerabend
que tais normas ou regras podem ser fixadas até certo ponto.
Vamos voltar, mais uma vez, a Ortega y Gasset, e che-
car se ele pode nos ajudar a superar esse dilema prático. Para
Ortega y Gasset, o desejo das coisas impossíveis marca nossa
condição humana. Se compreendermos que elas são impossí-
veis, então somos “bons” ou “boas” utopistas. O(A) bom/boa
utopista, argumenta Ortega y Gasset, está disposto(a) a con-
siderar que a tradução representa a melhor tentativa possível.
O(A) falso(a) ou mau/má utopista acredita que se algo é desejá-
vel, então é algo simplesmente possível.
A virada normativa e o desejo universalista de Wallerstein
fazem dele um utopista. Mas de que tipo? Wallerstein delineia
uma comunidade internacional de estudiosos que negociam
conceitos e sistemas. Saber os nomes dos conceitos e ter o con-
trole da linguagem técnica são as credenciais necessárias para
que seja admitida a entrada no salão de convenções. Mas eu não
sou seduzido por esse sonho. Para mim isso não é nem possível
nem desejável. Não é possível por conta da tremenda expansão de
conhecimentos incomensuráveis (SANTOS, 2004). Feyerabend
se refere a eles como resultados “obtidos por outros métodos
que estão fora de cogitação”. Não é um sonho desejável em vista
da enorme riqueza representada por esses conhecimentos, uma
78 | GRUPO MULTITRAD
de Julaha, na Índia do século XIX, enxergavam o trabalho e
a veneração como atividades inseparáveis. Os(as) trabalhado-
res(as) chamavam a si mesmos de nurbafs, ou “tecelões(ãs) de
luz” (2007, p. 78; PANDEY, 2005). Chakrabarty observa que a
adoração das máquinas é um fato da vida cotidiana na Índia
(2007, p. 17). Nos dias comemorativos, ferramentas e máquinas
são adornados com guirlandas de flores.
Compare esses(as) “tecelões(ãs) de luz” com as experiên-
cias contemporâneas, mas incomensuráveis, dos(das) trabalha-
dores(as) têxteis de Liverpool, que, segundo a célebre afirmação
feita por E. P. Thompson, eram assombrados pelo “mito de dias
melhores”.12 Pode-se argumentar que esses(as) melancólicos(as)
12
Pode-se compará-los(as) àquilo que Tullio Maranhão e Eduardo
Viveiros de Castro escreveram a respeito do “ameríndio”. (Coloquei a
palavra “ameríndio” entre aspas porque esse é o termo que Maranhão
e Viveiros utilizam. Mas não gosto dela: existem grupos distintos, cada
um com seu próprio nome. “Ameríndio” parece ser uma abstração, um
tipo ideal, concebido por pessoas que estão do lado de fora). Maranhão
argumenta que muitos antropólogos têm dormido no ponto ao definir a
prática da caça “ameríndia” como “trabalho produtivo”. Escreve ele que “A
caça se torna uma atividade econômica ligada ao projeto de produção de
uma sociedade gerida por um Estado-nação. Essa cadeia de pensamentos
tem uma longa tradição na antropologia e inclui esforços para delinear
uma economia da idade da pedra, ou equiparar práticas ameríndias com
o trabalho, destinado à subsistência e impregnado por categorias analíti-
cas marxistas como surplus value” (2002, p. 67). Maranhão entende que
essa interpretação é fundamentalmente equivocada. Ele observa que, no
Ocidente, e mesmo no âmbito da antropologia, “caça” como em “caça e
coleta” refere-se à procura e abate de um animal como alimento ou como
atividade esportiva. O “ameríndio”, no entanto, considera a caça “como
um ato de sedução entre caçador e presa. O homem se adorna como se
tivesse um encontro sexual com uma mulher, usando pintura corporal
festiva, penas e essências aromáticas. As atividades relacionadas ao ato de
caçar são igualadas à cópula e a matar um inimigo... Antes de o caçador
sair para uma expedição de caça, o xamã deve consultar a entidade guar-
diã invisível responsável pela espécie do animal a ser caçado. O xamã se
80 | GRUPO MULTITRAD
determinável em cada caso. Como com a posse de um trun-
fo, ele poderia invocar os reinos rarefeitos da ciência para ar-
gumentar que o “surplus value” pode ser calculado, e, desse
modo, demonstrar a possibilidade da universalidade e, deri-
vada disso (ou baseado nisso?), a possibilidade da equivalên-
cia. Ou ele poderia argumentar que, não obstante as diferenças
reais entre experiências e práticas em todo o mundo, termos
técnicos e seus equivalentes de tradução devem ser mantidos
como constantes.
Em ambos os casos, Wallerstein parece ver diferença
apenas no que diz respeito ao seu impacto na história intelec-
tual. Consequentemente, quando se refere à cultura, ele o faz
apenas no âmbito da história intelectual; os problemas associa-
dos à tradução de conceitos weberianos, como verstehen, para
o inglês, em contraste com o francês, relacionam-se às influên-
cias diferentes do pensamento de Weber nos EUA e na França,
respectivamente, e não com as diferenças culturais de modo
mais amplo. Dito de outro modo, seu argumento se baseia em
uma visão anêmica da diferença cultural: ele ignora as vidas
que as pessoas levam, como trabalham, como se amam, os ri-
tuais que executam, suas histórias sociais, entre outras coisas.
A diferença é enquadrada como diferença nas tradições dos
círculos intelectuais dos vários países.
Esse debate em torno da categoria sociológica de “labor”
oferece ganhos significativos para o(a) tradutor(a). Se alguém
estivesse empenhado(a) em demonstrar, ou pressupusesse, ver-
dades universais ou genéricas – nesse caso reafirmando cer-
to esquema marxista com suas categorias intactas (tais como
“surplus labor”, “capital”, etc,) – então seria possível insistir que
o(a) tradutor(a) de termos técnicos deveria se ater à busca de
um equivalente aceito como tal. Mas o que dizer do(a) cientis-
ta social, ou do(a) tradutor(a), que, à semelhança da raposa de
Isaiah Berlin, vê uma série de coisas pequenas e não uma coisa
13
A distinção é entre a busca por leis de abrangência universal em certos
direcionamentos da investigação científica (a nomotética) e o objetivo de
se descreverem os acontecimentos históricos em sua singularidade na di-
mensão idiográfica. Windelband e Rickert associam-se à elaboração dessa
distinção (NA).
14
Marshall Sahlins (1976) defendeu essa mesma questão muito tempo
atrás em sua crítica da “razão prática” pela perspectiva da “cultura” (NA).
15
“No emergente campo da literatura comparada que trata da relação
Oriente-Ocidente, pouca atenção tem sido dada a questões de metodolo-
gia e à lógica da comparação. Questões fascinantes e presumivelmente in-
teressantes – tais como: existe tragédia chinesa? Por que não há nenhuma
epopeia em chinês? – despertam o interesse, mas não chegam, de fato, a
lançar alguma luz. É claro que as pessoas falham em perceber o preconcei-
to nessas perguntas. As perguntas, em sentido inverso, raramente são fei-
tas, se é que são. Por que não há nenhuma história dinástica no Ocidente?
Por que o Ocidente não produziu nada equivalente ao Shijing? Existem
equivalentes às formas lushi e zaju no Ocidente? Se essas perguntas, que
82 | GRUPO MULTITRAD
caminhar dentro da água, enquanto o mau ou a má utopista
confia em caminhar sobre o gelo fino de conceitos universais.
84 | GRUPO MULTITRAD
problema algum, invocar Willem de Kooning para captar o
que eu quero dizer:
Está tudo bem quando estou em queda [...] Estar de pé é que me inco-
moda: eu não me sinto tão bem; estou enrijecido. Na verdade, eu real-
mente, na maioria das vezes, estou deslizando para dentro daquele
olhar de relance. Sou como um observador de relance, deslizante.
17
A expressão “sentimento oceânico” é usada em um contexto um pouco
diferente por Romain Rolland para descrever, a Freud, a experiência reli-
giosa (cf. Freud, 1961 [1930]) (NA).
86 | GRUPO MULTITRAD
Embora ambas as palavras deixem o sentido em aber-
to, elas não especificam a hesitação causada ao se entreverem,
de lampejo, construções alternativas de mundo que têm sido
isoladas por muros construídos em nome de uma lealdade a
uma narrativa que se imagina acerca da racionalidade, e que se
mostra exaurida e limitada (SANTOS, 2007). Essas opções não
me levam a reconhecer o outro lado daquilo que Santos (2007)
chama de “cisão abissal”, a qual ele se refere como sendo o vas-
to território exterior à razão considerada soberana pela exau-
rida tradição ocidental; razão essa fundamentada na exclusão
da suposta irracionalidade e inferioridade de suas alteridades.
Quero que o termo utilizado conote o engajamento com o abis-
mo, com a cisão, e com aquilo que se encontra além deles.
Mas aí, o nosso original, “bewilderment”, também não
provoca isso. A dificuldade em encontrar uma tradução ade-
quada aponta para um problema mais básico. O termo “bewil-
derment” não implica esse choque de epistemologias, entre
Ocidente e não Ocidente. Essa problemática me conduz ao
naufrágio de Cabeza de Vaca e suas peregrinações posteriores.
Permitam-me fazer uma viagem curta por um rio afluente an-
tes de retornar à questão principal da tradução como elabora-
ção conceitual para as ciências sociais.
88 | GRUPO MULTITRAD
de Cabeza de Vaca. Para seu crédito, Cabeza de Vaca revela
como ele e outros espanhóis foram ineptos, reduzidos à impo-
tência e à mais absoluta desgraça. Nesse ponto da narrativa, em
seu estado elementar de nudez, despojados do poder institucio-
nal, militar e simbólico de Castela, feridos e com frio, eles per-
dem seu orgulho e indiferença em relação ao povo aborígine.
Como nos encontrávamos nessa condição a que me referi, com
muitos de nós desnudos, e com o clima turbulento para seguir
viagem, atravessar rios e baías a nado, estando inteiramente sem
provisões ou quaisquer meios de transporte, nós nos tornamos
obedientes ao que a necessidade exigia, ou seja, passar o inverno
no lugar onde estávamos. (CABEZA DE VACA, [1542] 1907, p. 46)
18
O autor se refere particularmente a certos economistas que idealizam
ou até instituem planos econômicos sem conhecerem, de fato, os proble-
mas reais de sua população (NT).
90 | GRUPO MULTITRAD
e “desnudo” poderiam pressagiar o autoacolhimento que se dá
na relação com os outros na condição de iguais, de contem-
porâneos. A tradução, nesse caso, me ajuda a captar o sentido
do “original” mais do que o próprio original tomado isolada-
mente. A tradução fornece um complemento importante tan-
to quanto necessário. Além disso, a tradução corrói as divisões
artificiais existentes: a fronteira histórica, geográfica e linguís-
tica que nós gringos estamos acostumados a impor para nos
distinguir, como anglo-americanos, do resto dos habitantes
das Américas, e que nos permite participar da ilusão de uma
linhagem ininterrupta e contínua com o pensamento europeu
(PRICE, 2004). O efeito de “bewilderment”, de se estar desnu-
do, é também uma forma de questionar a própria necessidade
de proteção, bem como a concepção de tradução como uma
mera transposição de significados de uma tradição linguística
para outra(s) sem que sejamos possivelmente transformado(a)
s por elas.
Assim, prima facie e sem contexto, traduzir “bewildered”
como “desnudo” significa fazer uma escolha idiossincrática,
selecionando um termo de forma totalmente equivocada.
“Desnudo” é uma palavra de uso cotidiano em espanhol, com
uma abrangência semelhante àquela denotada por “naked” em
inglês. No entanto, ao recapitular as experiências e sensibili-
dades de Cabeza de Vaca, espero ter lançado alguma luz sobre
a história social particular de desnudo como um conceito no
trabalho de Cabeza de Vaca – a geopolítica de sua enuncia-
ção,19 por assim dizer – e o que gostaria que “bewilderment”
pudesse registrar: sou um cientista social em busca de uma
relação de copresença com antigos sujeitos que são objetos de
pesquisa em ciências sociais – ou seja, com aqueles grupos e
indivíduos que normalmente seriam os “temas” de um estudo
19
Sobre o “locus da enunciação”, cf. Mignolo (1995).
Agradecimentos
92 | GRUPO MULTITRAD
Referências bibliográficas
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territoriality, and colonization. Ann Arbor: University of Michigan Press,
1995.
NIETZSCHE, Friedrich. On truth and lies in the nonmoral sense. In:
BREAZEALE, Daniel. Philosophy and truth: selections from Nietzsche’s
94 | GRUPO MULTITRAD
CAPÍTULO 3
1
Professora do Departamento de Letras Modernas da Universidade
Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas
(Ibilce), Campus São José do Rio Preto. Email: angelica.deangeli@unesp.br
2
Pós-doutoranda do Departamento de Ciência da Literatura da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bolsista CNPq PDJ.
email: petry.simone@gmail.com
O texto
96 | GRUPO MULTITRAD
Na problematização dessas questões, o autor elabo-
ra uma inversão dos conceitos heideggerianos de Dasein e
Mitsein, dando prioridade ao coexistente (Mitsein), à plurali-
dade da condição de existir, ao invés de lançar foco na singu-
laridade do existente, como representa o conceito de Dasein.
Desse modo, há uma (re)colocação do “ser-com” enquanto
“qualidade constitutiva e originária” do ser, e não como sua
“qualificação secundária e aleatória” (p. 42).
A partir disso, o discurso se desdobra numa defesa por
inclusão, por desieraquização na convivência existencial, visto
que, em todo o seu discurso, Nancy destaca que o que existe são
“coisas”, e não “coisa”; não existe, portanto, algo “único”; desse
modo, toda singularidade é completamente dependente da con-
vivência com o(s) outro(s). O plural (Mitsein) precede e torna
possível a unidade (Dasein), ele não se soma a ela. Com isso, o
espaço comum que habitamos (no sentido amplo, mas no es-
trito também) não preexiste ao ser-com, ao contrário, ele nasce
a partir dele (p. 42). Temos assim, em “Ser-com e democracia”,
um discurso que quer mudar radicalmente o modo de pensar a
democracia para então tornar possível, a partir dessa mudança,
uma reflexão atualizada sobre o conceito de comunidade.
Democracia, para Nancy, é a dis-posição da justa-posi-
ção. Articulando, assim, o diálogo entre o próximo e o dis-
tante. Ela promove o “com” que não é simples igualdade, mas
partilha de sentido. Ela sai da lógica da política, Ela sai da lógi-
ca da política, para fluir da lógica dos sentidos. A política, nes-
se novo cenário, é então precedida pela democracia, que, por
sua vez, é o poder do “com”. A política deve ser “responsável
pelo ‘com’, mas não pelas formas e riscos de todos os sentidos
possíveis” (p. 45). Diz Nancy, como conclusão:
Por isso, tudo aqui passa pela política, mas nada se origina nem
termina nela. Nem tudo é político, contrariamente a uma fórmula
que foi fascista ou totalitária. E é assim porque o “com” que sus-
3
Todas as traduções do texto de Garrido presentes neste comentário são
de nossa responsabilidade.
98 | GRUPO MULTITRAD
texto a quatro mãos, acreditamos que seria mais interessante
para esta apresentação falar sobre esse processo de um modo
condizente com as questões trabalhadas pelo autor do texto
em francês. Assim, decidimos falar um pouco da experiência
compartilhada de tradução desse texto.
Trazer o texto de Nancy para a ordem do que se apre-
senta como uma experiência, mais precisamente, “uma” ex-
periência singular, implica engajar-se em várias frentes de
experimentação ou, dito de outro modo, significa experimen-
tar coisas e sentimentos de diversas naturezas, fazendo apelo
ao que ele nomeia em seu texto de “‘um’ sentido4,2um sentido
singular – o sentido ‘de uma vida’ [...] ou de uma ‘cultura’, de
uma língua, de uma obra artística, de um encontro, de um
amor, de uma amizade, de um ódio, etc.” (p. 9).
A experiência de que se trata aqui é então permeada de
afetos uma vez que coloca diretamente em jogo inúmeros sen-
tidos da relação; a relação em um sentido que lhe é próprio e
que nos permite, ao mesmo tempo, estar próximos e distantes
do objeto que buscamos experimentar, pois, como diz Nancy,
“a proximidade implica mais do que um mínimo de distância:
ela envolve uma certa partilha” (p. 5).
A partilha primeira que podemos partilhar com nossos
leitores, em uma palavra, compartilhar – e o vocábulo em por-
tuguês nos oferece essa junção mágica do prefixo “com” na raiz
do verbo partilhar, convidando-nos, assim, a uma forma de
partilha incondicional, que introduz o “com” na origem e como
origem da própria divisão –, essa partilha inaugural diz respeito
à relação que cada sujeito estabelece com as suas línguas, e, nes-
te caso específico, refere-se à relação de duas leitoras de Nancy
4
Na tentativa de desqualificar a ideia de “o” sentido para entender a ver-
dade do sentido no âmbito de sua multiplicidade e singularidade. Assim
“‘o’ sentido é cada vez ‘um’ sentido” (NANCY, 2011, p.9).
Referências bibliográficas
1
Professora do curso de Letras, com Habilitação de Tradutor, na
Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de São José do Rio
Preto. Tradutora pública e intérprete comercial. Email: erikatradutora@
gmail.com.
2
A proposta inicial deste trabalho consistia na apresentação de minha
tradução dessa seção do livro, juntamente com um curto ensaio que in-
troduzisse as questões centrais do texto. Embora tenha obtido autorização
do autor, Michael Cronin, a quem sou muito grata, fui impedida de apre-
sentar minha tradução, de um texto de apenas quatro páginas extraídas
de um livro com um total de 165, pela editora Routledge, cuja política
editorial não permite a veiculação de obras por ela publicadas em perió-
dicos de acesso gratuito, como é o caso deste livro. Em vista desse impe-
dimento, restrinjo-me a apresentar minha tradução de alguns trechos do
capítulo “Plain Speaking”, incluído a seção “Power” do livro Translation
in the Digital Age (2013).
3
Faço distinção, neste trabalho, entre programa de tradução automática
(softwares que se instalam na máquina do usuário) e serviços de tradução
automática (plataformas em nuvem, como aquelas do Google API ou do
LILT) para marcar as diversas possibilidades de aplicação da automação.
4
Preço informado do serviço Google Translation API: US$ 20 mensais
para até 1 bilhão de caracteres com espaços. Informações disponíveis em:
<https://cloud.google.com/translate/pricing>. Acesso em: 13 jun. 2017.
5
“Quanto dinheiro o Facebook ganha com você (e como isso acontece)”.
Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/internacional-37898626>.
Acesso em: 10 nov. 2016.
6
Disponível em: <http://translation-blog.multilizer.com/top-reasons-
for-translation-crowdsourcing/>. Acesso em: 12 nov. 2016.
7
Página eletrônica disponível em: <https://traduttoriperlapace.
wordpress.com/>. Acesso em: 13 jun. 2017.
8
Página eletrônica disponível em: <http://www.babels.org/>. Acesso em:
13 jun. 2017.
9
Documento disponível em: <http://www.fit-ift.org/wp-content/uploads/
2015/04/Crowd-EN.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2017.
Considerações finais
Referências bibliográficas
1
Professor Doutor no curso de Letras da Universidade Federal do Paraná,
pesquisador do CNPq.
2
A frase original inteira seria “There but for the grace of God goes John
Bradfordi”. Ou, na sua versão mais citada, “There, but for the grace of God,
go I”. Teria surgido da constatação de Bradford, um pastor inglês do sé-
culo XVI, que, ao ver um grupo de condenados à morte, percebeu que era
somente a graça de Deus que o impedia de ter se visto ali entre eles. O con-
texto em que ela é talvez mais conhecida, no entanto, especialmente entre
grupos de “doze passos”, como os Alcoólicos Anônimos, já é o de mais
um truncamento, em que aparece apenas como There but for the grace of
God. O uso no romance, portanto, conta com a capacidade do leitor de
“suprir” ainda esse segmento faltante. Não bastasse isso, há várias ocor-
rências no livro do nome próprio Grace, da palavra grace e mesmo de um
sistema telefônico representado por um acrônimo g.r.a.c.e., sublinhando
a ausência dessa graça.
3
Há que se mencionar, no entanto, no que se refere especificamente a
questões de tradução, que os problemas de um idioma de morfologia mais
inflexionada como o português fazem com que o tradutor tenha que lidar
com uma gama muito maior de marcas. Marcas que precisam ser con-
sistentemente evitadas. No inglês, afinal, o problema da indecidibilida-
de genérica vai pouco além do que se apresentou aqui. Já no português,
que marca o gênero do eu e do você também, por exemplo, em qualquer
4
No conto “Fidélio e Bess”.
5
A canção “Half an apple”, presente no álbum Ballads of the Book, da
banda escocesa Trashcan Sinatras.
6
Cf. Ali Smith, The story of Antigone (2016b).
7
Cf. Ali Smith, 2008.
8
Penso especialmente em seu livro The gift.
9
Eu mesmo, inclusive, já pude participar de duas atividades do BCLT: uma
oficina de tradução em Paraty, em 2014, e um programa de mentoria, em que
selecionei e orientei um tradutor mais jovem durante um ano, em 2015.
10
O áudio completo do evento está disponível em: <http://www.bclt.org.
uk/sebald/sebald-lecture-2011>. Acesso em: 24 maio 2017.
11
Cf. Cleanth Brooks & Robert P. Warren, 1961, p. 200.
12
Talvez seja exagero, mas não consigo deixar de ver aqui também os ecos
de uma determinada guerra de gênero, especialmente nos termos definidos
recentemente pela historiadora Mary Beard (2017) num artigo na London
Review of Books, que advogava a necessidade de as mulheres deixarem
de tentar ocupar os lugares dos homens numa sociedade cujos valores (e
cujos lugares) foram fundamentalmente definidos pelos homens, segun-
do seus parâmetros, oferecendo então como alternativa um horizonte de
redefinição das questões sociais em termos da derrubada mais radical dos
mesmos critérios hoje vigentes. Nesta minha leitura, o que Ali Smith aca-
ba realizando aqui é menos o questionamento da posição de Craft-Burgess
do que o questionamento da realidade das premissas mesmas em que ela
se basearia. Refundir. Rever. Questionar ab initio.
13
Ou uma barbarização, como Plauto chegou a dizer (cf. Mary Beard,
2016, p. 202).
14
Malgrado a objeção de Burgess, que a própria Smith faz questão de re-
gistrar, lembremos, e de (jocosamente?) atribuir ao estado de saúde, ao
contexto em que vivia o autor quando pronunciou aquelas palavras.
15
“a própria arte é algo fraturado, na melhor das hipóteses, e que o ato de
refazer, ou imaginar, ou do envolvimento imaginativo, é o que faz a dife-
rença”. Tradução minha, como em todos os outros casos.
16
Uma tentativa de tradução desse excerto poderia ser “a borda é a dife-
rença entre uma coisa e outra. É a beira. Sugere agudeza e sugere gume.
Pode ferir. Pode cortar. É a lâmina — mas é também o lado cego da faca
[…], pois a noção de borda tem dois gumes”.
17
Para uma defesa da ideia de que a tradução é uma extensão do domínio
do sermo obliquus, do discurso citado em geral, cf. Caetano Galindo, 2006.
18
“antes até de você poder dar alguma coisa, algo precisa ser tomado – em
confiança – e é aqui que a troca passa a ter a ver com um ato de fé em algo
que vai além de você. (Confie em mim)”. E não resisto a comentar que, em
muitos casos, eu, como tradutor, pensaria em alterar o uso da autora, que
italiciza também os parênteses na frase final. Mas, vindo da mão dela, é
melhor parar para pensar; e, ao pensar, se descobre a imensa diferença
que essa italicização pode fazer.
19
Na leitura de Smith, e apenas depois de ela chamar atenção para um
detalhe tão pequeno em meio ao tecido do romance, salta aos olhos o
quanto a frase se aproxima de experimentos mais radicais como os da
obra madura de Cristovão Tezza, bakhtiniano que é também obcecado
por conectividade. Penso, por exemplo, na abertura em terceira pessoa de
seu Um erro emocional: “Cometi um erro emocional, Beatriz se imaginou
contando à amiga dois dias depois.” (TEZZA, 2013, p. 1).
Referências bibliográficas
1
E aqui traduzo ao português as traduções que a autora apresenta. Em
diversas passagens (no texto todo, na verdade), opto por traduzir direto
do inglês as citações que ela emprega, já que em grande medida os argu-
mentos que ela desenvolve dependem (conscientemente) da materialida-
de desses textos. Acrescentar uma camada a mais de tradução, apesar de
consoante com a proposta do texto, geraria apenas um véu a mais numa
discussão sobre desvelamentos na linguagem literária. O que me interessa
aqui são os argumentos, as imagens conforme resgatadas por ela, mesmo
que a partir do velamento do original em tradução inglesa. Em que medi-
da essa decisão se sobrepõe ou se contrasta ao que ao fim e ao cabo o texto
de Smith propõe… é já questão para outro texto (Nota do Tradutor).
2
Tradução realmente realizada pelo Google Translate, direto para o por-
tuguês, em outubro de 2016 (NT).
3
Ali Smith, obviamente, é uma mulher. E vale notar que as questões de
gênero (biológico, social, linguístico…) são centralmente relevantes para
toda sua ficção e toda sua obra. Ou seja, aqui, quando tomo decisões
quanto à tradução de substantivos sem gênero no original (como writer
ou translator) estou, eu, homem, acrescentando também outra camada à
discussão original. Nos romances e nos contos de Smith que já traduzi,
optei sempre por gerar um texto em português em que não fosse possível
a atribuição de gênero quando ela era também fluida no original (NT).
4
No original “worth her salt” (NT).
5
A autora, que não é propriamente uma acadêmica, não fornece, no tex-
to-fonte, as referências bibliográficas precisas das citações que faz. Por
isso, optamos por suprimi-las nesta tradução (NT).
6
Cf. Robert Creeley, “Reflections on Whitman in age”. Disponível em:
<http://www.vqronline.org/essay/reflections-whitman-age>. Acesso em:
15 out. 2017 (NT).
7
General Certificate of Secondary Education, uma espécie de ENEM (NT).
8
Em referência ao “Estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde” (também
conhecido no Brasil como O médico o monstro), do britânico Robert Louis
Stevenson, em que Jekyll e Hyde são duplos da mesma pessoa (NT).
9
Revista literária britânica (NT).
10
Schutzstaffel, a tropa de choque paramilitar do regime nazista (NT).
1
Professora na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e tradutora.
2
Romantisme. Revue du XIXe siècle, Paris, vol. 2, n. 140, 2008.
3
Cf. site pessoal de Christine Lombez: <http://www.christine-lombez.
com/>. Seu livro mais recente, La seconde profondeur: la traduction
poétique et les poètes traducteurs en Europe au XXe siècle, foi publicado em
2016, na Coleção Traductologiques da editora Les Belles Lettres (Paris).
4
No original: “c’est la rationalisation systématique de l’original, qui ignore
l’unicité irréductible de chaque poème.”
5
Cf. Antoine Berman, 2012, p. 129-155.
Referências bibliográficas
1
Romantisme. Revue du XIXe siècle, Paris, n. 140, vol. 2, p. 99-110, 2008.
2
Compreendemos, aqui, por verso livre um verso não rimado, “que não é
organizado nem em referência a um sistema normativo nem por uma lei
interna ao poema” (BACKÈS, 1997, p. 157) (Nota da Autora).
3
O verso livre é também utilizado no século XVIII nas traduções poé-
ticas fictícias, igualmente chamadas de pseudotraduções. Cf. Christine
Lombez, «La traduction supposée ou de la place des pseudotraductions
poétiques en France», 2005, p. 107-121 (NA).
4
Cf. e de maneira não exaustiva: Bragt, 1995; Brunet, 1975; Hoof, 1991;
Lorenz e Jordell, 1892-1920 (NA).
Κοράσιον έτραγουδησεν
ἐπάνω σε γεφύρι.
Καὶ τὸ γεφύρι ράγιδε,
καὶ τὸ ποτάμι στάθη,
Καὶ τὸ στοχειὸν του ποτάμου
καὐτὸ ς την ἂκρἐβγηκε.
῍Κόρη μου, πάψε τὸν ἀχὸν,
κ᾽εἰπε κ᾽ἂλλο τραγοὒδι.
L’esprit du fleuve
Du haut d’un pont désert chante une femme en pleurs:
Les pierres, tressaillant à cette voix plaintive
Se fendent dans le fleuve, ému de ses douleurs;
Son cours s’arrête; et sur la rive,
L’esprit du fleuve monte, et du milieu des eaux:
«Jeune beauté, dit-il, interromps tes complaintes,
Et forme des accords nouveaux.»(...)5
Friedrich Schiller
Die Ideale
So willst du treulos von mir scheiden
Mit deinen holden Phantasien,
Mit deinen Schmerzen, deinen Freuden,
Mit allen unerbittlich fliehn?
L’idéal
Tu t’enfuis loin de moi, beau temps de ma jeunesse;
À peine ai-je goûté ta rapide caresse,
Et tu n’es déjà plus!
5
Tradução de Népomucène Lemercier (LEMERCIER, 1825) (NA).
The Raven
Back into the chamber turning, all my soul within me burning,
Soon I heard again a tapping, somewhat louder than before.
«Surely», said I, «surely that is something at my window lattice;
Let me see, then, what thereat is, and this mistery explore
Let my heart be still a moment, and this mistery explore;
«Tis the wind and nothing more».7
6
Tradução de Léonce Hallez (SCHILLER, 1840) (NA).
7
POE, 1845 (NA).
8
Tradução de E. Goubert (POE, 1996 [1869]) (NA).
9
Élise Voïart (1785-1866), mulher de letras e tradutora francesa, autora,
entre outras, de obras edificantes e de traduções de Schiller (Fridolin. Le
dragon de l’Île de Rhodes, 1829), d’A. Lafontaine (Choix de contes et de nou-
velles dédiées aux femmes, 1820), du Robinson Suisse de Wyss (1837) e dos
Contes de Mary Edgeworth (1822). Cf. J. M. Quérard, La France Littéraire,
tomo 10, 1839; Index biographique français. Munique: Saur, 2004 (NA).
10
Algumas referências bibliográficas não foram fornecidas de modo
completo no texto-fonte, por isso não temos a página dessa citação (Nota
da Tradutora).
11
Amsel significa “melro” em alemão. Trata-se da famosa batalha chama-
da “do Campo dos Melros” em Kosovo, que opôs, em 1389, os otomanos
aos sérvios e viu a derrota dos últimos (NA).
12
STEPHANOWITSCH, 1834, p. 180. Anotemos ainda que se trata aqui
de uma tradução intermediária: Voïart trabalhou, na verdade, a partir de
uma versão alemã do original sérvio (NA).
Die Glocke
Fest gemauert in der Erden,
Steht die Form, aus Lehm gebrannt.
Heute muß die Glocke werden,
Frisch, Gesellen! Seyd zur hand.
La Cloche
Dans le moule en bricque rouge
Que, sous terre, nous fi xons,
On va couler, mes garçons
La grand’cloche!
Or çà! qu’on bouge!
Aujourd’hui, fondeurs!
C’est jour de sueurs!
Jour d’honneur, aussi! Courage!
Et Dieu bénisse l’ouvrage! [...]13
13
AMIEL, 1876, p. 181-182 (NA).
14
Cita-se frequentemente como exemplo de tais desfigurações a adapta-
ção dos Lieder du Wilhelm Meister de Goethe feita por Charles-Louis de
17
D’HULST, 2000 (NA).
18
D’HULST, 2000, p. 137 (NA).
19
AMIEL, 1863, p. 107 (NA).
20
Notamos, entretanto, que a restrição da rima permanece, obrigan-
do as duas versões a supressões e/ou substituições: Van Hasselt e Rongé
(D’HULST, 2000) fazem, assim, desaparecer a menção à “noite”, a criança
é levada junto ao “coração” (não no braço), ele está “doente, tremente de
medo”, o que o original não diz. Quanto a Amiel, ele inventa no verso
quatro um “pesado casaco” fantasioso, que tem por única razão de ser
gerar rima com “quente”... [manteau e chaud] (NA).
21
As exigências particulares da tradução para o canto levarão de qualquer
maneira Amiel a propor outras soluções possíveis a fim de evitar desfigu-
rar o texto estrangeiro: “[A] noção de grande verso, considerada como a
aglutinação de muitos versos sem rima, os quais formam seus próprios
segmentos interiores, poderá ser útil para os libretos de ópera, diminuin-
do o número das fragilidades verbais que apresentam inevitavelmente
os pequenos versos rimados e consecutivos.”(AMIEL, 1876, p. 260-261)
(NA).
22
E que confirmam ainda hoje tradutores experientes: “O que é um pentâ-
metro em francês? Isso não existe. Ora, acontece que eu que falo francês
e russo, eu o ouço na língua francesa. Podemos fazê-lo em francês. [...]
Podemos tudo.” (MARKOWICZ, 2007, p. 23) (NA).
23
Cf., entre outros: A. Scoppa, 1816; L. Bonaparte, 1825; L. M. Quicherat,
1850 (NA).
24
Ver esta nota de um poeta tradutor cheio de desencorajamento e de in-
veja: “Em inglês e em italiano, as rimas masculinas e femininas são des-
conhecidas: prodigiosa cooptação do pouco” (BREUGNOT, 1833) (NA).
25
Devemos a ele, entre outras, traduções da poesia grega moderna, da ser-
vo-croata, da portuguesa, etc. (NA).
26
Cf. E. Etkind, 1982; L. D’Hulst, 2000b; C. Lombez, 2008 (NA).
27
O poeta faz preceder seu poema com a seguinte epígrafe: “Das Meer hat
seine Perlen/ Der Himmel hat seine Sterne”. Tradução literal em francês:
“La mer a ses perles/ Le ciel a ses étoiles” (NA). Tradução literal em portu-
guês: “O mar tem suas pérolas/ O céu tem suas estrelas” (NT).
28
HASSELT, 1857, p. 304 (NA).
29
Tradução literal em português: “Sonho em pleno mar./ O mar em sua
onda que quebra,/ O mar em sua onda vai rolando,/ O nácar em que bri-
lhas, oh, pérola,/ Joia do abismo vociferante./ A noite, matizada de es-
plendores/ E de astros e de astros ainda,/ Esmalta sua abóboda azulada,/
Estrelas, de seu tesouro [...]” (NT).
30
HASSELT, 1860, p. 223 (NA).
31
Cf. R. Pensom, 2000 (NA).
32
O poeta Jules Laforgue traduziu alguns poemas do conjunto Feuilles
d’herbe do americano Walt Whitman na revista La Vogue, de Gustave
Kahn, em 1866 (NA).
33
WHITMAN, 1886, p. 325. “Les brins d’herbes”, tradução do espantoso
poeta americano por Jules Laforgue (NA). Tradução literal em português:
“Eu canto eu mesmo, uma simples pessoa separada/ Entretanto toda pa-
lavra democrática, a Palavra em massa./ É a da fisiologia do alto ao baixo,
que canto/ A fisionomia apenas, o cérebro apenas, não é digno da Musa
[...]”(NT).
34
A primeira edição do Petit traité de versification française data de 1908
(NA).
Referências bibliográficas
Vida e obra
1
Angélica Neri e Guilherme Bernardes são mestrandos do Programa de
Pós-graduação em Letras da UFPR. Haluana Koepsel é graduanda do Curso
de Letras da UFPR. Cristina Carneiro Rodrigues é professora do Programa
de Pós-graduação em Estudos Linguísticos da UNESP de São José do Rio
Preto. Mauricio Mendonça Cardozo é professor do Curso de Graduação em
Letras e do Programa de Pós-graduação em Letras da UFPR.
Questões centrais
O “entre” em questão
Traduzir Sakai
Isso para dizer que devemos nos ocupar de perguntas como: o que
é uma língua? como o linguístico difere do extralinguístico? como
o domínio do linguístico é constituído? Contudo, no âmbito da di-
ferença na língua ou da diferença da língua, ainda permanecemos
cativos do modelo que pressupõe a unidade de uma língua.
Referências bibliográficas
1
Tradução de Angélica Neri, Guilherme Bernardes, Haluana Koepsel
e Mauricio Mendonça Cardozo. Revisão técnica de Cristina Carneiro
Rodrigues.
2
Para a tradução dos termos border e bordering, cuja produtividade
abrange as diversas nuances de termos como limite, fronteira, confim e li-
miar, valemo-nos, aqui, do termo fronteira e da expressão fazer-fronteira.
Desta, aproveitamo-nos tanto de seu sentido mais corrente (como quando
dizemos, por exemplo, que um país faz fronteira com outro) quanto do
sentido que ganha destaque, na reflexão de Sakai, a partir de sua ênfase ao
caráter poiético desse fazer-fronteira (Nota dos Tradutores).
Muitas em uma
3
Em seu texto, Sakai ora cita diretamente, ora parafraseia o texto de
Kant, sempre a partir de uma tradução para o inglês (KANT, 1929). Para
a tradução dessa passagem, optamos sistematicamente pela forma da pa-
ráfrase com base na elaboração discursiva de Sakai, na tradução de Kant
para o inglês e em um cotejo com o original em língua alemã (NT).
4
Tomo por base, aqui, a noção clássica de nacionalidade no contexto do
liberalismo britânico. Segundo John Stuart Mill, nacionaldiade significa
que “uma parte da humanidade se reúne por força de simpatias que as pes-
soas partilham entre si e que não têm em comum com os outros – o que os
faz co-operar entre si mais voluntariamente do que com outras pessoas, do
mesmo modo que os faz desejar a sujeição a um mesmo governo e que este
seja um governo assumido exclusivamente por eles mesmos ou por uma
parte representativa deles. Esse sentimento de nacionalidade pode ter as
mais diversas causas. Por vezes, pode ser o efeito de uma identidade de raça
ou de origem. O pertencimento a uma comunidade linguística ou religio-
sa também pode contribuir decisivamente. Limites geográficos são uma de
suas causas. A causa mais forte de todas, porém, é a identidade construída
a partir de antecedentes politicos: ter uma história nacional e, consequente-
mente, uma memória em comum; partilhar coletivamente de momentos de
orgulho e humilhação, de prazeres e pesares, todos conectados a um mesmo
conjunto de incidentes no passado.” (MILL, 1972, p. 391) (Nota do Autor).
5
Seguindo a convenção de nomes na China, na Coreia e no Japão, nomes
pessoais são escritos com o sobrenome na frente, seguido pelo prenome.
Logo, Motoori Norinaga quer dizer “Norinaga, da família Motoori” (NA).
6
A fissura (split) não pode ser limitada à tradução. Como Briankle Chang
sugere, as supostas unidades do remetente e do destinatário também mal
podem ser sustentadas, pois o remetente é cindido e se multiplica, como
mostra figurativamente o duplo Platão-Sócrates no “Envois” de Derrida
(DERRIDA, 1987, p. 1-256). Quanto à comunicação em geral, Chang ar-
gumenta que “como tanto a assinatura quanto a entrega são assombradas
1
Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atua principalmente
no âmbito dos Estudos da Tradução, com ênfase em questões de Tradução
e subjetividade, Tradução e Interpretação de Psicanálise e de Direito.
2
Uma primeira versão desse artigo foi publicada em La Revue Lacanienne,
n. 11, p. 65-71, 2011. A versão que foi traduzida aqui – e que pode ser lida
na sequência deste comentário – foi produzida para esta publicação; por
isso, as citações que faço dele não vêm acompanhadas de sua referência
bibliográfica.
Ou ainda:
Pode-se dizer que uma tradução que se impõe pode ser dessub-
jetivante, e que na passagem de uma língua para outra, lalangue
se inventa e sofre transformações: condensações e deslocamentos
que expõem a resiliência do material linguístico; formações, como
o chiste, capazes de mostrar a inutilidade das ideologias da co-
municação — o tradutor joga com as palavras e é jogado por elas,
experimenta no corpo o efeito de interpretação próprio à tarefa da
tradução [...]
[...] será que os escritos psicanalíticos, com todos os seus desvios,
omissões e deformações podem ser dispensados? Uma tradução
que se diz fiel à teoria, que deixa em segundo plano a participação
subjetiva que Freud mesmo se vê obrigado a reconhecer em suas
análises, está sendo fiel a quê? [...] (p. 10)
Nela [na teoria lacaniana] vejo uma base teórica sólida na qual
fundamentar a necessária inscrição do tradutor no texto que a es-
creve, a total impossibilidade tanto de uma escrita neutra, da qual
ele não pudesse tomar parte, quanto de uma escrita livre, na qual
ele pudesse decidir seja por sua isenção, seja por sua participação,
esta vista apenas como um gesto de manipulação deliberado. Nela
encontro uma base teórica para a legitimação da tradução naqui-
lo em que esta implica a escrita de significantes que, porque sin-
gulares em seu uso interpretativo, não deixam de ser legítimos;
não constituem erros, ainda que efetuem rupturas ou desvios em
relação ao código, este materializado basicamente sob a forma de
gramáticas e dicionários. (FROTA, 2000, p. 63)
Ainda que nossa intenção não fosse fazer uma avaliação da qua-
lidade dessas traduções, percebemos, na maioria dos casos, uma
indefinição de critérios. Em outras palavras, não parece ter havido,
por parte de todos os tradutores, uma reflexão anterior à tradução
dessas obras, com efeito, algumas vezes, na mesma obra, o tradutor
dá um tratamento diferente a formações neológicas semelhantes,
como se cada uma delas pertencesse a uma categoria única [...].
Referências bibliográficas
1
Uma primeira versão desse artigo foi publicada em La Revue Lacanienne,
n. 11, p. 65-71, 2011. A versão aqui traduzida foi produzida para esta publi-
cação e discutida com a autora (Nota da Tradutora).
2
As traduções de todos os autores mencionados aqui são de minha res-
ponsabilidade (NT).
Referências bibliográficas