Dom Casmurro, A Peça de Teatro
Dom Casmurro, A Peça de Teatro
Dom Casmurro, A Peça de Teatro
Criar uma maquiagem para representar um tom caricatural, porém que carregue
um ser ar de clássico. O personagem DOM CASMURRO é o que leva a
maquiagem mais carregada [mais suja, borrada, num tom mais soturno]. Música
“Don Giovanni” de Mozart. Em cada ápice do começo da ópera, os atores
congelam em cena, formando fotos. Com olhar fixo à plateia, anunciam o
capítulo.
DOM CASMURRO: Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo,
encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de
chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da Lua e dos ministros, e
acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não
fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os
olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e
metesse os versos no bolso.
BENTINHO: Continue.
RAPAZ: Já acabei.
DOM CASMURRO: Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não
passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios,
e acabou alcunhando-me Dom Casmurro.
ATOR 1: Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã.
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DOM CASMURRO: Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que
eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom
veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também
não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do
livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor.
E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros
que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto. Agora que expliquei o
título, passo a escrever o livro.
Música “No caminho do bem” de Tim Maia entra, enquanto os atores arrumam o
cenário. Ao fim congelam e falam à plateia.
TODOS: A denúncia.
JOSÉ DIAS: Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me
parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga,
e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que
lutar para separá-los.
D. GLÓRIA: Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi nada
que faça desconfiar. Basta a idade; Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorze
à semana passada; são dois criançolas. Não se esqueça que foram criados juntos,
desde aquela grande enchente, há dez anos, em que a família Pádua perdeu tanta
coisa; daí vieram as nossas relações. Pois eu hei de crer? Sim, creio que o senhor
está enganado.
JOSÉ DIAS: Pode ser, minha senhora. Oxalá tenham razão; mas creia que não falei
senão depois de muito examinar...
D. GLÓRIA: Em todo caso, vai sendo tempo; vou tratar de metê-lo no seminário
quanto antes. É promessa, há de cumprir-se.
JOSÉ DIAS: Sei que você fez promessa... mas uma promessa assim... Não sei...
Creio que,bem pensado... Verdade é que cada um sabe melhor de si, Deus é que
sabe de todos. Contudo, uma promessa de tantos anos... (D. GLÓRIA começa a
chorar) Está chorando? Ora esta! Pois isto é coisa de lágrimas? (D. GLÓRIA chora
mais forte) Desculpe-me D. Glória, se soubesse, não teria falado, mas falei pela
veneração, pela estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo, um dever
amaríssimo...
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Entra a ópera “Faust” de Wagner, enquanto os atores retiram o cenário.
JUNTOS: A ópera.
DOM CASMURRO: A vida é uma ópera e uma grande ópera. Deus é o poeta. A
música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório
do céu. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso do
conservatório. Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus não houvesse escrito
um libreto de ópera, do qual abrira mão. Satanás levou o manuscrito consigo para o
inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros, compôs a partitura, e logo
que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.
DEUS: Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou
pronto a dividir contigo os direitos de autor.
DOM CASMURRO: Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns
desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado. Com
efeito, há lugares em que o verso vai para a direita e a música, para a esquerda. Não
falta quem diga que nisso mesmo está a beleza da composição, fugindo à monotonia.
Trago a vocês essa teoria, contada a mim por meu amigo, o tenor Marcolini, porque a
minha vida se casa bem a definição, como vocês poderão ver a partir de agora.
CAPITU: Nada, não; você tem alguma coisa. Que é que você tem?
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BENTINHO: Você sabe...
Os atores que antes formavam um muro que dividia a cena, agora formam um
muro no fundo da cena, de modo que forme um paredão. Eles seguram cartazes
representando pichações, um com a inscrição: FORA TEMER!; e outro com a
inscrição: BENTO CAPITOLINA. BENTINHO vê a inscrição e fica surpreso e feliz
ao mesmo tempo, enquanto CAPITU tenta esconder o escrito, começando a
tentar apagá-lo. Entra Pádua.
PÁDUA: Capitu!
CAPITU: Papai!
CAPITU: Já tinha rido das outras vezes; não pode. Papai quer ver?
CAPITU fica de frente com BENTINHO, séria, como se estivesse jogando o siso
(jogo onde quem rir primeiro perde). BENTINHO fica sério.
PÁDUA: Quem dirá que esta pequena tem catorze anos? Parece dezessete. Como
vão Tio Cosme, Prima Justina?
PÁDUA: Há muito dias que não a vejo. Quero ir visitá-la um dia desses. Você já viu o
meu gaturamo? Está ali no fundo. Ia buscar a gaiola; ande ver.
Atores dão menção de sair e congelam. Entra a música “No caminho do bem”.
BENTINHO fica congelado enquanto os outros atores o vestem com uma batina.
Entra CAPITU.
BENTINHO: Acho que nenhum; foi só para fazer mal. É um sujeito muito ruim; mas,
deixe estar que me há de pagar. Parece até que chorou.
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CAPITU: José Dias?
BENTINHO: Não sei; ouvi só dizer que ela não chorasse, que não era cousa de
choro... Ele chegou a mostrar-se arrependido... Mas, deixe estar, que ele me paga! Ele
disse que fazia isso para cumprir um dever amargo, um dever...
DOM CASMURRO: Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia...
TODOS: Um seminarista.
BENTINHO: Eu... Eu não queria estar aqui... É que tem uma garo... Nada esquece.
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BENTINHO e ESCOBAR saem conversando.
BENTINHO: Mas isso não está certo Escobar... Minha mãe acredita tão em Deus, e
tem mais, eu estou no seminário apesar de não querer; Por que ele é tão injusto com a
gente?
ESCOBAR: Você tem que ser mais firme Santiago... Você tá cheio de incertezas...
Mas mudando de assunto, sabe que eu gostei muito da sua casa. É um espaço muito
bonito e parece que você fica em paz quando está aqui... Santiago, eu não pude
deixar de perceber que você tem um contato muito próximo com a família que mora
aqui atrás...
BENTINHO: A família Pádua? Eles são muito próximos nossos... Sabia que o senhor
Pádua é chamado de tartaruga pelo José Dias?
BENTINHO: É porque ele é baixinho e parece uma tartaruguinha... (os dois riem)
Escobar você precisa ver a filha dele, Capitu, ela tem olhos lindos...
ESCOBAR: Ah! Meu amigo está com um leve brilho nos olhos, seria por causa dessa
tal...
CAPITU entra.
CAPITU: Prazer o meu nome é Maria Capitolina. Mas pode me chamar de Capitu.
ESCOBAR: Prazer, meu nome é Ezequiel de Sousa Escobar. Mas pode me chamar
de...
Ficam apertando a mão durante algum tempo. Bentinho vai ficando com ciúmes.
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ESCOBAR: Eu não gosto muito do seminário, para falar a verdade. Minha paixão é o
comércio...
CAPITU: Engraçado, até parece o Bentinho falando, ele também não gosta nada,
nada daquele lugar. Eu disse a ele que ele deveria ser mais firme, falar com a sua mãe
e tal... Mas o Bentinho é um tanto quanto frouxo com as coisas...
BENTINHO: Desculpe, é um modo de falar. Eu sei que é moço sério, e faço de conta
que me confesso a um padre.
BENTINHO: Escobar, eu não posso ser padre. Estou aqui, os meus acreditam, e
esperam; mas eu não posso ser padre.
BENTINHO: Só isso?
ESCOBAR: Uma pessoa? (entende) Há... Bem então é só ir falar com a sua mãe.
BENTINHO: Não dá... Ela fez uma promessa: (declamando) “Se tiver um filho, farei
um padre.”
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ESCOBAR: Como assim?
DOM CASMURRO: Logo depois de casarmos, fomos ao teatro ver uma peça que eu
nunca tinha visto e nem nuca lera antes, conhecia apenas o assunto. A peça chamava-
se: “Otelo, o mouro de Veneza”, de Wiliiam Shakespeare. Na peça, Otelo, general e
destemido guerreiro venesiano, prezava o seu amor a mui gentil Desdêmona. Porem
Otelo tinha um “amigo” chamado Iago, que destilava sua calúnia nos ouvidos do mui
ciumento Otelo, colocando na cabeça do mouro a dúvida sobre a fidelidade de
Desdêmona em relação ao seu tenente Cássio. Vi as grandes raivas do mouro por
causa de um lenço...
DOM CASMURRO: Lhes explico... Iago, conseguiu surrupiar o lenço que Otelo
presenteou a mulher, lenço esse herdado de sua mãe, entregando o lenço a Cássio.
Otelo, tomado por total cólera e cego pelo ciúme, questiona a Desdêmona: “O lenço
que te dei, entregaste a Cássio?” “Não meu senhor... Eu perdi o lenço...” “Mentirosa!
Vil e cruel mulher... Em minhas mãos sepulto a tua infidelidade!” Otelo matou a mulher
em sua própria cama, e tudo por causa de um lenço...
BENTINHO: (olhar fixo, dando o subtexto de comprar a ideia de matar por ciúme)
É, onde já se viu, matar a mulher por causa de ciúme...
CAPITU: (com uma bolsinha de dinheiro) Veja só Bentinho, o tanto de dinheiro que
a avarenta da sua mulher conseguiu juntar nesse mês.
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CAPITU: Mas tenho que confessar que não consegui isso sozinha. Escobar me
ajudou bastante com a contabilidade. Ele tem vindo aqui em casa, durante as tardes...
Quem iria acreditar: Escobar e Sancha – minha melhor amiga – casados, com filho,
uma menina; e ainda por cima chamada Capitu. Por isso decidi, Bentinho, se nascer
um menino, o nosso filho vai se chamar Ezequiel, o primeiro nome do Escobar...
BENTINHO: Cunhadinha?
ESCOBAR: Há, Santiago... É um apelido carinhoso que dei a Capitu. Afinal, somos
quase irmãos não?
ESCOBAR: Capitu lhe contou? Estou ajudando ela com a contabilidade. Você viu que
ela já conseguiu juntar dez libras? Quando contei isso a Sanchinha, ficou espantada:
“Como é que Capitu conseguiu economizar, agora que tudo está tão caro?” “Não sei,
meu bem; sei é que arranjou dez libras”.
ESCOBAR: Não creio; Sanchinha não é gastadeira, mas também não é poupada; o
que lhe dou chega, mas só chega.
ESCOBAR faz que sim com a cabeça. Volta a música “Dor de cotovelo” de Elza
Soares, enquanto ESCOBAR fica a gesticular como que se falasse de Capitu. Ao
fim, música sai.
ESCOBAR abraça BENTINHO que não se move, estático. ESCOBAR sai. Entra
DOM CASMURRO.
DOM CASMURRO: Ezequiel nasceu... Um tanto semelhante com Escobar, para dizer
melhor... Tudo estava se esclarecendo para mim, tudo se encaixava. Como eu poderia
ter sido tão estupido. E tudo foi feito na minha cara. Eu ia tomar uma decisão naquela
manhã, até que...
Música “Brave Sea (Full-HD) Ocean Will Be” de Gabriel Yacoub et Bruno Coulais
[youtube]. Atores se dispõem nos lados do palco e esticam um pano azul,
começando a ondulá-lo, como o mar. ESCOBAR se põem atrás do pano e faz
uma partitura de nado [se possível, que fique sem camisa, aparecendo apenas
da cintura para a cima]. ESCOBAR morre. Enquanto DOM CASMURRO narra, o
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pano fica esticado, de modo que esconda ESCOBAR da plateia, para que ele
vista a camisa, deite no chão e se cubra por um pano branco.
DOM CASMURRO: Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão
apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e
caladas... os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem
palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse
tragar também o nadador da manhã.
DOM CASMURRO: Assim, o tempo foi passando. E Ezequiel ficava cada vez mais
parecido com ESCOBAR. E não era apenas eu que achava isso...
CAPITU: Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão esquisita? Só vi
duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto Escobar.
O defunto levanta.
Entra CAPITU.
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CAPITU: Há tudo, não entendo as tuas lágrimas nem as de Ezequiel. Que houve entre
vocês?
CAPITU: O que?
CAPITU: Que é que lhe deu tal ideia? (silêncio) Diga, diga tudo. Que é que lhe deu
agora tal convicção? Ande, Bentinho, fale! fale!
CAPITU: Que se não dizem só metade; mas já que disse metade, diga tudo. Não,
Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que tenho defesa,
ou peço-lhe desde já a nossa separação: não posso mais!
BENTINHO: A separação é cousa decidida. Uma vez, porém, que a senhora insiste,
aqui vai o que lhe posso dizer, e é tudo. A senhora me traiu com... Com ... Não consigo
nem falar o nome dele.
CAPITU: Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes! Sei a razão
disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É
natural- apesar do seminário não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto;
não nos fica bem dizer mais nada. Adeus!
BENTINHO: Depois de várias discussões nos separamos na Europa, longe das vistas
da sociedade daqui. Entenda-se que, se nas viagens que fiz à Europa, José Dias não
foi comigo, não é que lhe faltasse vontade; ficava de companhia a tio Cosme, quase
inválido, e a minha mãe, que envelheceu depressa. Também ele estava velho, posto
que rijo. Ia a bordo despedir-se de mim, e as palavras que me dizia, os gestos de
lenço, os próprios olhos que enxugava eram tais que me comoviam também. A última
vez não foi a bordo.
BENTINHO: Venha...
JOSÉ DIAS: Não; não posso. Agora, adeus, Bentinho, não sei se me verá mais; creio
que vou para a outra Europa, a eterna...
BENTINHO: Não foi logo; minha mãe embarcou primeiro. Procura no cemitério de São
João Batista uma sepultura sem nome, com esta única indicação: Uma santa. É aí. Fiz
fazer essa inscrição com alguma dificuldade. O escultor achou-a esquisita; o
administrador do cemitério consultou o vigário da paróquia; este ponderou-me que as
santas estão no altar e no Céu.
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JOSÉ DIAS: É porque não a conheceram; se a conhecessem mandariam esculpir
santíssima.
BENTINHO: Não foi o último superlativo de José Dias. Outros teve que não vale a
pena escrever aqui, até que veio o último, o melhor deles, o mais doce, o que lhe fez
da morte um pedaço de vida...
JOSÉ DIAS: (morrendo) Ouvi dizer que o céu hoje está lindo. Abra a janela, por
favor...
BENTINHO: Foi a última palavra que proferiu neste mundo. Pobre José Dias! Por que
hei de negar que chorei por ele? Ezequiel, voltou com as feições cada vez mais
parecidas das de Escobar. Desejei que ele morresse de lepra. Erro meu: ele morreu
de febre tifoide durante uma viajem. Foi enterrado em Jerusalém. Mulheres tive
muitas, mas nenhuma com os olhos de Capitu. Olhos de cigana oblíqua e dissimulada.
Capitu tinha olhos de ressaca.
Música “Elephant Gun” de Beirut entra durante a fala de BENTINHO. Criar uma
partitura para finalizar a peça, onde Capitu vai hora na mão de BENTINHO, hora
na de ESCOBAR, enquanto DOM CASMURRO fica tentando pegá-la.
FIM.
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