Filosofia Social

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Filosofia Social

Filosofia Social
Conselho Editorial EAD
Dóris Cristina Gedrat (coordenadora)
Mara Lúcia Machado
José Édil de Lima Alves
Astomiro Romais
Andrea Eick

Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil.


Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores
a emissão de conceitos.

Nenhuma p arte dest a publicação poderá ser reproduzida


por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da
Editora da ULBRA.

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei


nº 9.610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código Penal.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S328f Scheunemann, Arno Vorpagel


Filosofia social. / Arno Vorpagel Scheunemann. - Canoas: Ed. ULBRA,
2010.
208 p. : il.

1. Fisiologia social I. Título.

CDU 101

Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero - ULBRA/Canoas

ISBN: 978-85-5639-149-0

Dados técnicos do livro

Fontes: Tahoma, Book Antiqua


Papel: offset 90g (miolo) e supremo 240g (capa)
Medidas: 15x22cm

Impressão: Gráfica da ULBRA


Janeiro/2010
Sumário
Apresentação ........................................................... 7

1 Concepções de filosofia, atitude e campos


filosóficos ............................................................... 11

2 Gênese da filosofia e a filosofia antiga .............. 29

3 Filosofia patrística e medieval ............................ 57

4 Filosofia renascentista e moderna ...................... 69

5 Filosofia iluminista e contemporânea ................ 85

6 Correntes filosóficas: positivismo e


neotomismo ......................................................... 109

7 Correntes filosóficas: materialismo


dialético – princípios e leis ................................ 127

8 Correntes filosóficas: materialismo dialético –


exigências, cuidados e categorias ...................... 151

9 Correntes filosóficas: filosofia da libertação ..... 173

10 Correntes filosóficas: fenomenologia ............... 197


Apresentação
Bem-vindo(a) à disciplina de Filosofia Social!
Existem várias maneiras de entender e conceber filo-
sofia. Ao respondermos à pergunta “o que é filosofia?”,
expressamos nossa concepção, ou seja, nossa maneira
de entender e viver filosofia. Filosofia é uma palavra
composta por dois termos gregos: phyllon (amigo); sophia
(sabedoria). Assim, ser filósofo é ser “amigo da sabedo-
ria”. Cada concepção de filosofia revela uma maneira
particular de ser “amigo(a) da sabedoria”. Mas nem toda
sabedoria é Sabedoria e nem tudo que se diz filosofia é
Filosofia.
Na intenção de clarificar o que é filosofia, essa disci-
plina não pretende ser uma introdução geral à filosofia,
nem uma abordagem exaustiva, como se formasse filó-
sofos. Ela pretende estudar a filosofia como uma refle-
xão que fundamenta epistemologicamente o serviço so-
cial. No geral, essa disciplina compreende três grandes
assuntos: concepções, atitude, campos e temas filosófi-
cos; origem da filosofia e principais períodos de sua his-
tória; correntes filosóficas e suas influências no serviço
social.
Este livro-texto está organizado em dez capítulos,
subdivididos em unidades para que sua leitura e com-
preensão se dêem de forma a agregar conhecimentos e
favoreça a realização das atividades e da auto-avalia-
ção, propostas ao final de cada capítulo. Igualmente, ao
final de cada capítulo, apresenta as referências biblio-
gráficas que fundamentam teoricamente o estudo reali-
zado e sugere, sob a forma de referência comentada, lei-
turas que ampliam e/ou aprofundam o assunto do ca-
pítulo em questão.
Os capítulos são: concepções de filosofia, atitude e
campos filosóficos; gênese da filosofia e a filosofia anti-
ga; filosofia patrística e medieval; filosofia renascentista
e moderna; filosofia iluminista e contemporânea. Tam-
bém as correntes filosóficas Positivismo e Neotomismo;
Materialismo Dialético - princípios e leis; Materialismo
Dialético - exigências, cuidados e categorias; Filosofia
da Libertação; Fenomenologia.
Bom trabalho!

Professor Arno Vorpagel Scheunemann


Apresentação

10
1
Concepções de
filosofia, atitude
e campos
filosóficos
Arno Vorpagel Scheunemann é assistente
social, mestre e doutor em Teologia,
professor de graduação e pós-graduação no
Serviço Social da ULBRA/Canoas. É autor
de todos os capítulos deste livro-texto.
Arno Vorpagel Scheunemann

Nessa disciplina, vamos conhecer o início da filoso-


fia, os principais momentos da sua história e as princi-
pais correntes filosóficas presentes no serviço social.
Existem várias maneiras de entender e conceber filo-
sofia. Ao respondermos à pergunta “o que é filosofia?”,
expressamos nossa concepção, ou seja, nossa maneira
de entender a viver filosofia. Nesse capítulo serão abor-
dadas as concepções de filosofia, a atitude e os campos
filosóficos.

1.1 Concepções de filosofia


De início, é importante decifrarmos a palavra filoso-
fia. Filosofia é um termo composto por dois termos gre-
gos: phyllon (amigo); sophia (sabedoria). Assim, ser filó-

Concepções de filosofia, atitude e campos filosóficos


sofo é ser “amigo da sabedoria”. Esse termo foi usado
pela primeira vez pelo filósofo grego Pitágoras por vol-
ta do século V a.C., ao responder a um de seus discípu-
los que ele não era um “Sábio”, mas apenas alguém que
amava a Sabedoria. Cada concepção de filosofia revela
uma maneira particular de ser “amigo (a) da sabedo-
ria”.
Podemos encontrar diferentes entendimentos, dife-
rentes concepções de filosofia. Mas, nem toda a sabedo-
ria é Sabedoria e, nem tudo o que se diz filosofia é Filo-
sofia. Para melhor entendermos isso, precisamos ver
quais são as principais concepções de filosofia que os
chamados filósofos concebem, diferenciando sabedoria,
conhecimento, ciência e filosofia.
13
Para Platão, filosofia “é o uso do saber em proveito
do homem, o que implica posse de um conhecimento
que seja o mais amplo e mais válido possível, e posteri-
or uso desse conhecimento em benefício do homem” (in:
Eutidemo).
No entender do filósofo francês, que nasceu no final
do século XVI e é considerado o criador do Racionalismo
Moderno, René Descartes, filosofia “é o estudo da sabe-
doria”.
O filósofo Thomas Hobbes nasceu em Westport, In-
glaterra, em 1588. Em 1642, publicou, em Paris, o De Cive
e, em 1651, em Londres, o Leviatã ou matéria, forma e
autoridade de uma comunidade eclesiástica e civil. Mes-
mo defendendo a sensação como origem de todo o co-
nhecimento, sua filosofia é materialista e mecanicista.
Logo, para ele filosofia “é o conhecimento causal e a uti-
lização deste, em benefício do homem”. Igualmente, “fi-
losofia é a ciência dos corpos (naturais e artificiais), isto
é, tudo o que tem existência material”.
Immanuel Kant nasceu, estudou, lecionou e morreu
Concepções de filosofia, atitude e campos filosóficos

em Köenigsberg. Jamais deixou essa grande cidade da


Prússia Oriental. Publicou Crítica da Razão Pura (1781),
Fundamento da Metafísica dos Costumes (1785), Crítica
da Razão Prática (1788), Crítica do Juízo (1790). Enten-
dia que filosofia “é ciência da relação do conhecimento
à finalidade essencial da razão humana, que é a felicida-
de universal”.
Para Auguste Comte, pai da filosofia Positivista, fi-
losofia “é a ciência universal que deve unificar num sis-
tema coerente os conhecimentos universais fornecidos
pelas ciências particulares”.
O filósofo brasileiro Roberto Gomes tem uma con-
cepção interessante que marcará o início dessa caminha-
da. Para ele, filosofia “é a tentativa de enxergar um pal-
14 mo diante do nariz – o que não é tão fácil nem tão inú-
til como muitos pensam. Afinal, o peixe é quem me-
nos sabe da água” (GOMES, 1994, p.15). Em outras pa-
lavras, filosofia é uma atitude crítica em relação àquilo
que nos cerca, em relação àquilo que vivenciamos.
Roberto Gomes apresenta algumas razões que exi-
gem que a filosofia no Brasil seja entendida como “en-
xergar um palmo diante do nariz”:
Primeira razão – O povo brasileiro foge da sua iden-
tidade, achando que filosofia é só aquilo que os gre-
gos e romanos fizeram. Segundo Gomes, é necessário
pensar o que se é e como se é. Isso acontecerá “a partir do
momento que (a filosofia) vier a ser, como a piada, uma
investigação do avesso da seriedade vigente” (1994,
p.13). Só assim será possível restabelecer a ligação críti-
ca com a realidade brasileira, o que, aliás, é a principal
atitude da filosofia.
O sentido de uma piada ou frase engraçada está no
fato de despertar um sentido contrário, ou seja, avesso
ao sentido normal das palavras usadas. Por exemplo:
- A filosofia racional séria (filosofia que impõe o raci-

Concepções de filosofia, atitude e campos filosóficos


onal-lógico com critério e princípio fundamental) pro-
duziu muitos textos sobre a transitoriedade da vida, so-
bre como tudo passa na vida. O brasileiro, fazendo jus
ao seu lado piadístico, aborda a mesma questão a partir
de ângulos como: “na vida tudo é passageiro, menos o
motorista e o cobrador/trocador”. Outro exemplo é que
muito se produz na filosofia racional séria sobre o que é
sonho e o que é realidade. O brasileiro sabiamente sinte-
tiza: “ontem eu sonhava com o futuro. Hoje eu nem con-
sigo pegar no sono!”.
Gomes destaca que o brasileiro não pensa a vida a
partir de conceitos racionais sérios, mas, quebrando ou
“desconstruindo” esses conceitos a partir das suas ex-
periências, imagens e figuras da vida. Esse tipo de abor-
dagem possibilita uma compreensão mais ampla, mais 15
rica e mais profunda do que aquela produzida exclusi-
vamente pelo raciocínio sério. Por isso, a filosofia brasi-
leira não deveria começar pelas formulações teórico-ra-
cionais sérias, mas pelo que se pode ver “um palmo di-
ante do nariz”, ou seja, a nossa realidade, a nossa cultu-
ra, a nossa vida, as nossas piadas.
Assim, a filosofia brasileira, que ajuda a “enxergar
um palmo diante do nariz”, é aquela que assume o seu
país e o seu jeito de ser e, a partir disso, compreende a
vida, as pessoas, o mundo, as ciências. Filosofia brasilei-
ra é aquela que, sem jogar fora, não coloca em primeiro
plano o que pensaram outros povos, em outras épocas.
Filosofia brasileira compreende as pessoas, a vida, o
mundo, as ciências a partir e através do jeito de ser do
seu povo e de como ele fundamenta a vida.
Ou seja, a filosofia precisa descobrir o que está diante
do nariz a partir daquilo que ali está, e respeitando o jeito
avesso de ser/contrário à seriedade racional-formal.
Segunda razão – A filosofia no Brasil colocou-se a
serviço de uma máscara social imposta a partir de fora,
Concepções de filosofia, atitude e campos filosóficos

por isso transformou-se em algo sério, que não leva a


sério o país (território, povo, cultura, riquezas), ou seja,
as reflexões e os textos filosóficos, de tanto se preocupa-
rem com a seriedade dos conceitos teóricos, do método
e da forma, próprios da realidade de outros povos (como
os europeus, por exemplo), deixaram de levar a sério
nosso território, nosso povo, nossa cultura, nossos valo-
res. Não levando a sério o que é nosso e o que somos,
refletiram nossa realidade através de máscaras impos-
tas a partir de fora, como por exemplo: brasileiro é fol-
gado, não gosta de pegar no pesado, só gosta de futebol
e carnaval; brasileiro gosta de levar vantagem em tudo;
brasileiro não é muito de refletir sobre as coisas.
É verdade, brasileiro gosta de futebol e carnaval, mas
16 isso não o transforma num folgado. Basta compararmos
e veremos que o brasileiro é um dos povos que mais tra-
balha. Essa máscara de brasileiro folgado só serve para
os estrangeiros, pois aqui eles instalam suas indústrias e
fábricas em busca de mão-de-obra barata e abundante.
É verdade que tem brasileiro que gosta de levar van-
tagem em tudo, mesmo que para isso tenha que passar
por cima da ética, logo não é confiável. Contudo, esse
tipo de pessoa existe em todas as culturas.
Também é verdade que brasileiro não é muito de re-
fletir. Só que precisamos acrescentar algo: não é muito
de refletir “usando” conceitos, princípios e valores que
pouco têm a ver com o seu dia-a-dia. Brasileiro pensa
muito, sim. Brasileiro reflete muito, sim. Contudo, como
tem um jeito menos racional de viver a vida, pensa atra-
vés de figuras e imagens do seu dia-a-dia. Brasileiro não
costuma refletir a vida a partir de conceitos racionais,
até porque, ao longo da história, foi-lhe negada à possi-
bilidade de estudo, leitura, reflexão a partir da sua reali-
dade. Precisávamos aprender e decorar saberes, concei-
tos e informações produzidos por outros povos.

Concepções de filosofia, atitude e campos filosóficos


Já dizia Nelson Rodrigues: “o mais grave defeito dos
personagens de romance brasileiro é serem incapazes
de cobrar um escanteio” Isso é desastroso, uma vez que
a sabedoria e o humor brasileiros são avessos à
“pomposidade” e à formalidade.
Em outras palavras, filosofia brasileira não pode pen-
sar a vida, o povo, as ciências brasileiras usando concei-
tos, valores e princípios construídos por outras cultu-
ras. Especialmente, as formais e racionais que eliminam
da crítica e atitude filosóficas nosso futebol, nossa cultu-
ra, nosso território, nossas riquezas, nossas piadas.
Gomes ainda tem uma terceira razão para a filosofia
no Brasil ser enxergar um palmo diante do nariz.
Terceira razão – Nossa aversão à pompa acaba con-
vertendo-se em seu oposto – o triunfo da cultura 17
formalística. Urge abandonarmos a tirania do sério, as-
sumindo a capacidade a sério do humor que vê no aves-
so das coisas a forma mais profunda de compreender a
vida.

Todo sujeito que sobe numa tribuna julga essencial, antes


do mais, trocar todas as palavras usuais por palavras es-
tranhas ao nosso modo. Construir frases numa ordem que
jamais usaria para pedir um cafezinho. E falar de coisas
sobre as quais nos custa encontrar referência na realidade
em volta. No intelectual brasileiro que discursa, triunfa o
sério – expressão de uma classe privilegiada diante de uma
multidão analfabeta. (GOMES, 1994, p.14)

Ou seja, incorporamos a dominação cultural externa


e nos convencemos de que a formalidade/seriedade ra-
cional precisa estar presente em nosso jeito de filosofar.
Assim, acabamos produzindo textos filosóficos extrema-
mente profundos e sérios, mas distantes da nossa reali-
dade e da nossa maneira de compreender as coisas.
Concepções de filosofia, atitude e campos filosóficos

No entanto, nem tudo o que é refletido levando a sé-


rio o território, a cultura e o povo brasileiro, pode ser
considerado “filosofia científica”.
Uma explicação - Filosofia científica é uma contradi-
ção, pois, como veremos a seguir, filosofia não é ciência,
mas uma reflexão sobre seus fundamentos. Chamá-la de
científica seria submetê-la às ciências, cujos fundamen-
tos propõem refletir. E, para refletir algo não se pode
estar submisso a isso. Então “filosofia científica” refere-
se à reflexão filosófica que atende aos critérios de
racionalidade estabelecidos pela própria filosofia.
A filósofa brasileira Marilena Chauí nos ajudará a
clarificar isso. Ela concebe quatro tipos gerais de filoso-
fia.
18
1 - Filosofia como “visão de mundo de um povo, de uma
civilização ou de uma cultura” - Trata-se do conjun-
to de idéias, valores e práticas a partir e através dos
quais uma sociedade compreende o mundo e a si
mesma. Costumamos usar a expressão “esta é a vi-
são de mundo de fulano”, referindo-nos a tudo o que
fundamenta sua forma de ser, pensar, viver e agir.
Essa visão não pode ser aceita como definição de fi-
losofia porque apenas contém ou indica alguns as-
pectos que compõem a sua definição, ou seja, a visão
de mundo faz parte da filosofia, mas não é filosofia.

2 - Filosofia como “sabedoria de vida” - Filosofia como


“sabedoria de vida”, ou seja, como arte do bem-vi-
ver, como contemplação do mundo e das pessoas para
se chegar a uma vida mais feliz, sábia e justa. Tam-
bém conhecemos a expressão “essa é minha filosofia
de vida”. Filosofia de vida diz respeito à forma de
organizar a própria vida, os princípios, os valores, os
relacionamentos, os medos, as esperanças, as cren-

Concepções de filosofia, atitude e campos filosóficos


ças, a partir da própria visão de mundo. Filosofia de
vida expressa aquilo que fundamenta a vida no dia-
a-dia.
Também não pode ser aceita como filosofia, porque
apenas indica o que se espera da filosofia, sem indi-
car o que é e como faz. Também a filosofia científica
se propõe a proporcionar uma vida mais sábia. É o
que se espera de uma filosofia. No entanto, ela faz
isso refletindo esses fundamentos da sabedoria de
vida. A filosofia não quer apenas uma vida mais sá-
bia, ela quer refletir o próprio entendimento de “sa-
bedoria de vida” ou “vida sábia”. Ela se pergunta “o
que é a vida?”, “o que é sabedoria?”, “como se cons-
tituiu?”, “como se faz a vida sábia?”. Essas pergun-
tas não são preocupação da chamada filosofia de 19
vida, logo, não pode ser considerada “filosofia cien-
tífica”.

3 - Filosofia como “esforço racional para conceber o uni-


verso como uma totalidade ordenada e dotada de
sentido” - Em outras palavras, um esforço para co-
nhecer o universo como uma totalidade, cujo sentido
e finalidade podem ser racionalmente explicados.
Mais adiante, nos principais períodos na história da
filosofia, ficará claro que houve um período em que
a filosofia era o esforço racional para mostrar que uni-
verso era um todo e que, a partir desse todo se pode-
ria explicar o sentido e a finalidade de tudo.
Hoje não pode ser aceito como filosofia porque a fi-
losofia não se propõe a ter uma explicação total do
sentido da totalidade do universo. Ela compartilha
essa explicação com as ciências e as artes. Além dis-
so, a filosofia nega sua própria natureza se insistir
numa única explicação para o todo da realidade.
Concepções de filosofia, atitude e campos filosóficos

4 - Filosofia como “fundamentação teórica e crítica dos


acontecimentos e das práticas” - Antes de qualquer
coisa, é preciso entender a sua relação com o sentido
das palavras. Fundamentação é o processo de cons-
trução de uma base sólida, de um alicerce sobre o
qual é possível construir com segurança.
Os fundamentos de uma construção normalmente
não aparecem, mas estão lá. A forma, o tamanho, a
segurança, a durabilidade da construção dependem
direta ou indiretamente da solidez desses fundamen-
tos. Na área do saber, a coisa não é muito diferente:
tudo o que eu penso, falo e faço tem um fundamen-
to, apareça ou não.
Em filosofia, fundamentar significa encontrar, definir
20 e estabelecer racionalmente os princípios, as causas e
as condições que determinam a existência, a forma e
os comportamentos de alguma coisa, bem como as
leis ou regras de sua mudança (CHAUÍ, 2006, p.23).
Outra palavra que precisamos ver é teoria. Teoria vem
do grego theorein, que expressava o trabalho dos ci-
dadãos encarregados de observar a vida e a produ-
ção de uma cidade a fim de explicar o todo de seu
funcionamento, bem como indicar novas alternativas.
O termo tem na sua raiz o termo Theós (Deus), aquele
que vê e conhece tudo e o todo. Em filosofia passou a
significar “contemplar uma verdade com os olhos
do espírito” (CHAUÍ, 2006, p.23). Logo, fundamenta-
ção teórica significa:

Determinar pelo pensamento, de maneira lógica, metódi-


ca, organizada e sistemática o conjunto de princípios, cau-
sas e condições de alguma coisa - de sua existência, de seu
comportamento, de seu sentido e de suas mudanças.
(CHAUÍ, 2006, p.23)

Concepções de filosofia, atitude e campos filosóficos


Se filosofia é uma reflexão que busca “determinar pelo
pensamento, de maneira lógica, metódica, organizada e
sistemática o conjunto de princípios, causas e condições
de alguma coisa”, não pode ser confundida com ciência.
A filosofia ocupa-se com os princípios, as causas e as con-
dições das coisas. Entre essas coisas estão as ciências.
Marilena Chauí, magistralmente, diferencia a filoso-
fia de outros saberes, ao afirmar que filosofia é:

Uma reflexão sobre os fundamentos da ciência, isto é, so-


bre seus procedimentos e conceitos científicos. Não é reli-
gião: é uma reflexão sobre os fundamentos da religião, isto
é, sobre as causas, origens e formas das crenças religiosas.
Não é arte: é uma reflexão sobre os fundamentos da arte,
isto é, sobre os conteúdos, as formas, as significações das 21
obras de arte e do trabalho artístico. Não é sociologia nem
psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos con-
ceitos e métodos da sociologia e da psicologia. Não é políti-
ca, mas interpretação, compreensão e reflexão sobre a ori-
gem, a natureza e as formas do poder e suas mudanças.
Não é história, mas reflexão sobre o sentido dos aconteci-
mentos enquanto inseridos no tempo e compreensão do que
seja o próprio tempo. (2006, p.23-24)

1.2 Atitude filosófica


A atitude filosófica por excelência é a “atitude críti-
ca”. Crítica vem do grego e significa a capacidade de:

• julgar, distinguir, diferenciar e decidir corretamente;


• examinar racionalmente, sem preconceitos ou
prejulgamentos;
• examinar e avaliar detalhadamente, na raiz da ques-
Concepções de filosofia, atitude e campos filosóficos

tão, os fenômenos e os acontecimentos.

A natureza crítica da atitude filosófica consiste em


“indagar” (perguntar):

• O que é?
• Como é?
• Por que é?

Essa atitude filosófica produz (e é produzida pela) a


“reflexão filosófica” que se organiza em torno de três
questões:

• Por que pensamos o que pensamos, dizemos o que


dizemos e fazemos o que fazemos?
22
• O que queremos pensar quando pensamos, dizer
quando dizemos e falar quando falamos?
• Para que pensamos o que pensamos, dizemos o que
dizemos e fazemos o que fazemos?

Nesse sentido, considerando a concepção de filoso-


fia brasileira:

• “enxergar um palmo diante do nariz” é perguntar o


que é aquilo que pensamos, dizemos e fazemos?
• “enxergar um palmo diante do nariz” é perguntar
por que pensamos o que pensamos? Por que dize-
mos o que dizemos? Por que fazemos o que fazemos?
• “enxergar um palmo diante do nariz” é perguntar o
que queremos pensar quando pensamos? O que que-
remos dizer quando dizemos? O que queremos falar
quando falamos?
• “enxergar um palmo diante do nariz” é perguntar
para que pensamos o que pensamos? Para que dize-
mos o que dizemos? Para que fazemos o que faze-

Concepções de filosofia, atitude e campos filosóficos


mos?

Quem assim critica o que acontece e o que pensa, faz


e fala, apresenta uma atitude filosófica, é um amigo da
sabedoria.

1.3 Campos filosóficos


A filosofia, ao final dos seus 26 séculos de existência,
apresenta os seguintes campos de investigação filosófica:

1 - Ontologia ou metafísica – ontologia é o estudo da


essência-primeira um ser, fenômeno ou objeto.
23
Metafísica é a palavra que expressa a reflexão filosó-
fica que se ocupa com as coisas que estão “além ou
acima da” física. Assim, a filosofia ontológica busca
o conhecimento dos princípios e fundamentos últi-
mos de toda a realidade, de todos os seres.
2 - Lógica – do grego Logikós ocupa-se com a organiza-
ção e ordenação do Lógos (saber). É um campo da fi-
losofia que se ocupa com as formas e regras gerais
do pensamento correto e verdadeiro, independente
do assunto em questão. Também se ocupa com as
regras e critérios de demonstração, explicação e de
verificação da veracidade ou falsidade de um pensa-
mento ou discurso.
3 - Epistemologia – do grego episteme (conhecimento) e
logos (saber, estudo), significa “estudo do conheci-
mento”. É o campo da filosofia que reflete os dife-
rentes processos de produção do conhecimento, bem
como suas formas de expressão. Para tanto, estabele-
ce e analisa regras, critérios e métodos de construção
e de avaliação dos resultados e, analisa a relação en-
Concepções de filosofia, atitude e campos filosóficos

tre os diferentes saberes.


4 - Teoria do conhecimento – estuda as diferentes mo-
dalidades de conhecimento humano:

o conhecimento sensorial (sensação e percepção); a memó-


ria e a imaginação; o conhecimento intelectual; a idéia de
verdade e falsidade; a idéia de ilusão e realidade; formas de
conhecer o espaço e o tempo; formas de conhecer relações;
conhecimento ingênuo e conhecimento científico; diferen-
ça entre conhecimento científico e filosófico, etc. (CHAUÍ,
2006, p.59)

5 - Ética – estuda os valores, a vontade, a paixão e a re-


lação entre eles, bem como, a liberdade, o dever, o
24 direito, a obrigação, etc. Além disso, se ocupa com os
princípios, as regras, a finalidade e os valores da ação
moral.
6 - Filosofia política – estuda a natureza do poder e da
autoridade, regimes políticos, formas do Estado, teo-
rias de revolução e reforma, e ideologias.
7 - Filosofia da história – preocupa-se com os funda-
mentos da dimensão temporal da existência humana
em termos culturais e políticos. Analisa as teorias do
movimento da história e o significado das diferenças
culturais e históricas.
8 - Filosofia da arte ou estética – estuda as relações en-
tre arte e sociedade, arte e política, arte e ética, bem
como as diferentes formas de criação e compreensão
da arte.
9 - Filosofia da linguagem - estuda a linguagem como
expressão da humanidade do ser humano. Reflete os
fundamentos dos signos, dos significados e da co-
municação e analisa as diferentes modalidades de lin-
guagem e formas de expressão e comunicação.
10 - História da filosofia – estuda os diferentes perío-

Concepções de filosofia, atitude e campos filosóficos


dos, grupos e concepções filosóficos verificando suas
relações com as respectivas condições econômicas,
políticas, culturais e sociais.

Atividades
Questões.
1 - Qual o significado de philosophia e a quem é atribuí-
da a invenção dessa palavra?
2 - Conforme Roberto Gomes diferencie “filosofia racio-
nal séria” e “filosofia como enxergar um palmo diante do
nariz”.
3 - Explique, em breves palavras, cada um dos motivos
25
apontados por Ricardo Gomes para defender que a
filosofia brasileira seja concebida como “enxergar um
palmo diante do nariz”.
4 - Escreva um texto de 8 a 15 linhas expressando sua
compreensão da afirmação de Nelson Rodrigues: “o
mais grave defeito dos personagens de romance
brasileiro é serem incapazes de cobrar um escan-
teio”. Lembre de relacionar sua reflexão com a filo-
sofia como “enxergar um palmo diante do nariz”.
5 - Explique a “atitude filosófica”.
6 - Tente adotar a atitude filosófica diante de alguma
situação do dia-a-dia. Veja a diferença entre “eu acho”
e “eu penso”. Partilhe a experiência no próximo en-
contro.

Referências comentadas
Quem desejar ampliar e aprofundar o que foi abor-
Concepções de filosofia, atitude e campos filosóficos

dado nesse capítulo poderá ler:

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da


história da filosofia. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 1995. 555p.

A obra apresenta um romance que tem na Sofia (sa-


bedoria) sua personagem principal. Com um enredo es-
timulante, é possível percorrer os grandes períodos da
história da filosofia, encontrando-se com as principais
idéias dos principais filósofos de cada período. Logo,
todos os períodos da história da filosofia que serão abor-
dados nessa disciplina.

26
GOMES, Roberto. Crítica da razão tupiniquim. 10.ed.
São Paulo: FTD, 1994. 120p.

Nessa obra, Roberto Gomes faz uma discussão im-


portante sobre a natureza da filosofia não Brasil, discu-
tindo entre outras questões: os mitos da imparcialidade
e da concórdia atribuídos aos brasileiros; nossa origina-
lidade e nosso jeito; a razão ornamental; a razão afirma-
tiva; a razão dependente e a negação.

PRADO JÚNIOR, Caio. O que é filosofia. 23.ed. Co-


leção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1995.
104p.

Livro bom para ampliar a discussão em torno das


concepções de filosofia que trabalhamos nessa unidade.

Referências

Concepções de filosofia, atitude e campos filosóficos


ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Ma-
ria Helena Pires. Filosofando: introdução à filoso-
fia. São Paulo: Moderna, 2002.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13.ed. 6a.
reimpressão. São Paulo: Ática, 2006.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia – his-
tória e grandes temas. 16.ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
GOMES, Roberto. Crítica da razão tupiniquim. 10.ed.
São Paulo: FTD, 1994. 120p.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filo-
sofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 6.ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

27
Auto-avaliação
Marcar “V” quando for verdadeira a frase e “F” quan-
do for falsa.

1 - A palavra philosophia significa filho da sabedoria. ( )


2 - Platão foi o primeiro filósofo a usar a palavra
philosophia. ( )
3 - Para Roberto Gomes o “povo brasileiro assume sua
identidade, achando que filosofia não é só aquilo que
os gregos e romanos fizeram”. ( )
4 - Thomas Hobbes entendia que filosofia “é ciência da
relação do conhecimento à finalidade essencial da
razão humana, que é a felicidade universal”. ( )
5 - Filosofia como “visão de mundo de um povo, de uma
civilização ou de uma cultura” é um dos tipos gerais
de filosofia identificados por Marilena Chauí. ( )
6 - No entender da filósofa brasileira Marilena Chauí,
filosofia é a “fundamentação teórica e crítica dos acon-
Concepções de filosofia, atitude e campos filosóficos

tecimentos e das práticas”. ( )


7 - Filosofia passou a significar “contemplar uma ver-
dade com os olhos do espírito”. ( )
8 - A natureza crítica da atitude filosófica consiste em
“indagar” (perguntar): o que é?; como é?; por que é?
( )

Gabarito
F, F, F, F, V, V, V, V.

28
2
Gênese da
filosofia e a
filosofia antiga
Arno Vorpagel Scheunemann é assistente
social, mestre e doutor em Teologia,
professor de graduação e pós-graduação no
Serviço Social da ULBRA/Canoas. É autor
de todos os capítulos deste livro-texto.
Arno Vorpagel Scheunemann

Nesse capítulo abordaremos a gênese, o início da fi-


losofia e o primeiro período da sua história. Começare-
mos pelos motivos e razões para esse início. Depois, co-
nheceremos o primeiro período.

2.1 Gênese da filosofia


Há uma relativa concordância em fixar o início da
filosofia como “atitude crítica que indaga, que pergun-
ta” no século VI a.C., identificando Tales de Mileto (na
província da Anatólia, na atual Turquia) como o primei-
ro filósofo. Há uma grande razão (motivo) e diferentes
condições (circunstâncias históricas) que fizeram com
que a filosofia surgisse nesse período.
Geograficamente o local onde tudo começou: a cida-
de de Mileto (hoje Turquia).

Gênese da filosofia e a filosofia antiga

(Fonte: COTRIM, Roberto. Fundamentos de Filosofia, p.60) 31


A grande RAZÃO para o surgimento da filosofia é o
pensamento mítico que entra em declínio em função do
fortalecimento do pensamento racional.
O que é um pensamento mítico? Para responder, pre-
cisamos ver como, nessa época se entendia mythos (mito)
e logos (saber racional). O historiador Pierre Grimal, as-
sim descreve a diferença:

O mito se opõe ao logos como a fantasia à razão, como a


palavra que narra à palavra que demonstra. Logos e mito
são duas metades da linguagem, duas funções igualmente
fundamentais da vida do espírito. O logos sendo uma ar-
gumentação, pretende convencer. O logos é verdadeiro,
no caso de ser justo e conforme a “lógica”; é falso quando
dissimula alguma burla secreta (sofisma). Mas o mito tem
por finalidade apenas a si mesmo. Acredita-se ou não nele,
conforme a própria vontade, mediante um ato de fé, caso
pareça “belo” ou verossímil, ou simplesmente porque se
quer acreditar. O mito, assim, atrai em torno de si toda a
parcela irracional existente no pensamento; por sua natu-
reza, é aparentado à arte, em todas as suas criações. (A
mitologia grega. 3.ed. Coleção Primeiros Vôos. São Pau-
lo: Brasiliense, 1982, p.8-9)
Gênese da filosofia e a filosofia antiga

O pensamento mítico: é fruto da tradição e não pro-


dução de um indivíduo ou grupo; pressupõe a adesão e
aceitação (não admite questionamento); e, por fim, ape-
la ao sobrenatural para explicar a causa-primeira da ori-
gem de tudo. Os gregos antigos enxergavam vida em
quase tudo que os cercavam, e buscavam explicações
para tudo. A imaginação fértil desse povo criou perso-
nagens e figuras mitológicas das mais diversas. Heróis,
deuses, ninfas, titãs e centauros habitavam o mundo
material, influenciando suas vidas. Bastava ler os sinais
32 da natureza, para conseguir atingir seus objetivos. A
pitonisa (espécie de sacerdotisa) era uma importante
personagem nesse contexto. Os gregos a consultavam
em seus oráculos para saber sobre o presente e o futuro.
Agradar uma divindade era condição fundamental para
atingir bons resultados na vida material. Um trabalha-
dor do comércio, por exemplo, deveria deixar o deus
Hermes sempre satisfeito, para conseguir bons resulta-
dos em seu trabalho.
Dentre os seres mitológicos gregos destacam-se:

• Heróis: seres mortais, filhos de deuses com seres


humanos. Exemplos: Herácles ou Hércules e Aquiles.
• Ninfas: seres femininos que habitavam os campos e
bosques, levando alegria e felicidade.
• Sátiros: figura com corpo de homem, chifres e patas
de bode.
• Centauros: corpo formado por uma metade de ho-
mem e outra de cavalo.
• Sereias: mulheres com metade do corpo de peixe, que
atraíam os marinheiros com seus cantos.
• Górgonas: mulheres, espécies de monstros, com ca-
belos de serpentes. Exemplo: Medusa.
• Quimeras: mistura de leão e cabra, soltavam fogo
pelas ventas. Gênese da filosofia e a filosofia antiga

No que diz respeito aos deuses, os gregos acredita-


vam que eles habitavam o topo do Monte Olimpo, prin-
cipal montanha da Grécia Antiga (vale lembrar que 72%
do território grego é coberto por montanhas, a maioria
rochosas). Desse local, comandavam o trabalho e as re-
lações sociais e políticas dos seres humanos. Os deuses
gregos eram imortais, porém possuíam características
de seres humanos. Ciúmes, inveja, traição e violência
também eram características encontradas no Olimpo.
Muitas vezes, apaixonavam-se por mortais e com eles 33
tinham filhos. Dessa união entre deuses e mortais surgi-
am os heróis.
Na mitologia grega, os principais deuses são:

• Zeus - deus de todos os deuses, senhor do céu.


• Afrodite - deusa do amor, sexo e beleza.
• Poseidon - deus dos mares.
• Hades - deus dos mortos, dos cemitérios e do subter-
râneo.
• Hera - deusa dos casamentos e da maternidade.
• Apolo - deus da luz e das obras de artes.
• Artemis - deusa da caça.
• Ares - divindade da guerra.
• Atena - deusa da sabedoria e da serenidade. Proteto-
ra da cidade de Atenas.
• Hermes - divindade que representava o comércio e
as comunicações.
• Hefestos - divindade do fogo e do trabalho.

Um dos mitos mais conhecidos é o mito de Édipo. O


nome Édipo em grego significa “pés inchados”. Aconte-
ce que seu pai, Laio, fora avisado por um oráculo (res-
posta dos deuses a alguma consulta humana) que não
deveria ter filhos, mas, desobedecendo, gerou um filho
Gênese da filosofia e a filosofia antiga

com a bela Jocasta. Arrependido e com medo mandou


amarrar o recém-nascido através de furos feitos nos tor-
nozelos e abandoná-lo numa montanha. Acontece que o
menino foi salvo e, levado ao rei de Corinto, foi por ele
criado. Ao viajar a Tebas para descobrir quem era seu
verdadeiro pai, sem saber, matou o próprio pai ao
encontrá-lo no caminho. Mais adiante, decifrou o enig-
ma da Esfinje (monstro metade leão, metade mulher) que
atormentava o povo de Tebas. Em função disso foi acla-
mado rei de Tebas e casou com Jocasta, sem saber que
34 era sua mãe. Para livar-se de uma peste que assolava
Tebas, o assassino de Laio deveria ser castigado. A in-
vestigação mostrou que tratava-se de Édipo, que,
inconformado, cegou-se e deixou Tebas. Jocasta enfor-
cou-se. Sigmund Freud, criador da psicanálise, usa esse
mito para explicar um processo que se dá entre os 3 e 5
anos: desejo de morte do rival (progenitor do mesmo
sexo) e desejo sexual pelo progenitor do sexo diferente.
Na sua forma doentia se apresenta de maneira inversa.
A forma mítica de pensar apresentava-se sob duas
grandes maneiras: as Cosmogonias e a Teogonias.
Cosmogonia tem na sua raiz o verbo grego gennao (gerar,
fazer nascer e crescer) e o substantivo gennos (gênese,
nascimento, descendência, espécie). Assim, gonia expres-
sa “geração, nascimento a partir de uma concepção se-
xual e de um parto. Cosmos é a palavra grega para “caos/
mundo organizado”. Logo, cosmogonia é uma narrativa
que explica o surgimento e a organização do mundo a
partir de forças geradoras (personagens mitológicos/
deuses que, ao coabitarem, geraram os elementos e subs-
tâncias). Teogonia, composta por Theós (Deus) e gonia.
Trata-se de uma narrativa que explica a origem/gera-
ção dos deuses.
O declínio dessa forma de explicar a origem de tudo
aconteceu porque havia diferentes condições para tal. Gênese da filosofia e a filosofia antiga

1 - Com o declínio das cosmogonias e teogonias a reli-


gião e o pensamento mítico perdem a centralidade
na organização da vida;
2 - Decadência da civilização micênico-cretense na
Grécia (séc. XII a.C.) e a conseqüente queda da estru-
tura social baseada na monarquia divina hereditária;
3 - As viagens marítimas possibilitaram descobrir que
locais habitados por deuses, titãs e heróis (nos mi-
tos), na verdade eram habitados por seres humanos;
4 - Com a invenção do calendário, o tempo deixa de ser 35
algo incompreensível, passa a ser calculado e contro-
lado;
5- A invenção da moeda possibilitou uma nova abstra-
ção e generalização, superando o escambo e a troca
em espécie;
6- A partir das invasões dóricas na Grécia (900 a 750
a.C.) surgem as cidades-Estado, favorecendo a parti-
cipação cidadã e a secularização;
7- O surgimento da vida urbana gerou o predomínio
do comércio e do artesanato em relação ao prestígio
das aristocracias de terras e de sangue. O prestígio
das classes comerciais e artesanais dependia dos no-
vos conhecimentos, novas artes, novas técnicas, su-
plantando as explicações definidoras de sentido das
aristocracias;
8- A invenção da escrita alfabética aumentou a abstra-
ção. Foi a primeira vez que, na história da humani-
dade, se substituiu a “imagem da coisa que está sen-
do dita” por uma palavra abstrata.

...outras escritas, para cada sinal corresponde uma coisa


ou uma idéia, na escrita alfabética ou fonética as letras são
independentes e podem ser combinadas de formas varia-
das em palavras e estas podem ser distribuídas de formas
Gênese da filosofia e a filosofia antiga

variadas para exprimir idéias. (CHAUÍ, 2005, p.37)

9 - A invenção da política contribuiu para o surgimento


da filosofia porque: sua estrutura de legislar e regu-
lar serviu de base para a explicação filosófica orde-
nada do mundo; o espaço público fez surgir o dis-
curso racional em detrimento do mitológico; estimu-
lou discursos discutidos, ensinados e comunicados
(não revelados).

36
2.2 Filosofia antiga
Compreende o período que vai do século VI a.C. ao
século VI d.C. Esse período é composto pelos quatro
períodos da filosofia grega.

2.2.1 Período pré-socrático ou


cosmológico
Estende-se do século VII ao século V a.C. Essa filoso-
fia desenvolve-se na Jônia (Ásia Menor), destacando-se
nas cidades de Mileto, Éfeso, Samos e Clazômena, na
Grécia (sul da Itália e Sicília), destacando-se nas cidades
de Crotona, Tarento, Eléia e Agrigento. Na Abdera, na
Trácia, também se destaca. É importante lembrar que
aquilo que conhecemos como Grécia era um conjunto
de cidades-Estado, independentes umas das outras.
Muitas, inclusive rivais.
Nesse período, a filosofia se caracteriza por:

• explicar, de forma racional e sistemática, a origem, a


ordem e a transformação da natureza.
• buscar o princípio natural, eterno, imperecível e imor-
tal que gera a tudo e a todos e para onde tudo retorna. Gênese da filosofia e a filosofia antiga

Logo, não admitem a criação a partir do nada. Há


um princípio, elemento ou natureza primordial que
é a causa natural contínua e imperecível de todos os
seres: a physis (palavra grega que significa fazer sur-
gir, fazer brotar, fazer nascer, produzir).

Essa causa natural não pode ser percebida pela per-


cepção sensorial (os sentidos só percebem o que a maté-
ria revela), mas apenas pelo pensamento. “Ela é aquilo
que o pensamento descobre quando indaga qual é a cau-
37
sa da existência e da transformação de todos os seres
percebidos” (CHAUÍ, 2005, p.39).
Destacar que tudo o que essa physis imortal produz é
mutável, está em permanente transformação e é mortal.
Diferentes filósofos apresentavam diferentes physis
(elemento, princípio-primeiro eterno e imutável, subs-
tância primordial, ou seja, a arche = o princípio).
Tales de Mileto (623–546 a.C.) acreditava que era a
água ou o úmido, o elemento constante em todas as coi-
sas. Tales de Mileto foi astrônomo. Preveu o eclipse to-
tal do sol ocorrido em 28 de maio de 585 a.C. Na geome-
tria, mostrou que a soma dos ângulos internos de um
triângulo é igual a 180º.
Anaximandro (610–547 a.C.), discípulo de Tales, de-
fendia que era o apeíron (o ilimitado ou indeterminado),
sem qualidades definidas. Ou seja, nem água nem al-
gum dos elementos que compõe a matéria, mas uma
substância ilimitada e inalcançável pelos sentidos.
Anaxímenes de Mileto (588–524 a.C.) tinha o ar ou o
frio como physis, pois entendia que, como a alma que é
ar e nos mantêm unidos, o ar é a própria vida, a força
vital, a divindade que “anima” o mundo.
Pitágoras de Samos (570–490 a.C.) considerava o nú-
mero (estrutura e relação proporcional entre os elementos
Gênese da filosofia e a filosofia antiga

que compõem as coisas) como physis. Para ele os números


representam a ordem e a harmonia presente em todos os
seres. Assim, a essência de todos os seres teria uma estru-
tura matemática que define a unidade e a multiplicidade,
o par e o ímpar, o finito e o infinito, a reta e a curva, etc.
Para Heráclito de Éfeso (por volta de 500 a.C.) o que
estava em plena atividade era o fogo. Heráclito conce-
bia o mundo como uma realidade dinâmica e em per-
manente transformação. Por isso sua escola ficou conhe-
cida como mobilista. Para ele a “luta” (guerra) das for-
38 ças contrárias era a mãe de todas as coisas, pois conce-
bia a vida como um fluxo constante, impulsionado pela
luta entre a ordem e a desordem, o bem e o mal, o belo e
o feio, a justiça e a injustiça, a alegria e a tristeza, o raci-
onal e o irracional, etc. Em outras palavras, os contrári-
os não são excludentes, mas complementares entre si. É
atribuída a ele a célebre frase: “vivemos de morte e mor-
remos de vida”. Ou seja, graças à morte constante das
células a vida é possível e, por causa desse processo de
geração de vida, a morte é produzida.
As reflexões sobre os contrários, sobre o ser e o não-
ser deram início aos estudos sobre o conhecer (lógica) e
sobre o ser (ontologia).
Nesses estudos, Parmênides de Eléia (510–470 a.C.)
defendia que havia dois caminhos para se conhecer a
realidade: o da essência (filosofia e razão) e o da aparên-
cia enganosa, ou seja, da crendice e da opinião pessoal.
Para ele, Heráclito teria percorrido apenas o caminho
das aparências.
Parmênides defendeu que, em termos de essência,
na realidade existe o ser. Esse ser é eterno, único, imóvel
e imutável. Nele seria possível encontrar a verdade pura,
através da ciência e da filosofia. Compreender a realida-
de pelo caminho da aparência inviabilizaria a verdade
porque a aparência está em movimento, não é. Encon- Gênese da filosofia e a filosofia antiga

tra-se em permanente vir-a-ser (devir). É o não-ser, o qual


é incoerente e enganador. Exemplificando, a essência da
realidade não está naquilo que os sentidos captam e per-
cebem, mas naquilo que o pensamento consegue iden-
tificar para além de toda a realidade sensível. Ou seja, a
essência do ser humano é aquilo que o define para além
de todas as suas formas aparentes. Essa essência existe,
é o ser. Todo o resto é o não-ser, é apenas aparência, ma-
nifestação enganosa do ser.
Empédocles de Agrigento (490–430 a.C.) esforçou-se
para, por um lado, afirmar “o ser” de Parmênides e, por 39
outro, encontrar uma maneira de tornar racionais os
dados captados pelos sentidos. Entendia que a physis
apresentava quatro raízes: o fogo, a terra, a água e o ar.
Esses elementos seriam movidos e misturados pela atra-
ção (amor) e pela repulsão (ódio), originando tudo o que
existe.
Demócrito de Abdera (460–370 a.C.) afirmava que
todas as coisas são constituídas por partículas invisíveis
e indivisíveis, os átomos (a = negação; tomo = divisível).
O átomo seria equivalente ao ser de Parmênides. Na re-
alidade, além dos átomos existiria o vácuo, a ausência
de ser, o não-ser.
Tudo o que existe forma-se a partir das diferentes
composições dos átomos. Demócrito distinguia três fa-
tores básicos nessas composições:

• figura – a forma geométrica. Exemplo: X é diferente


de Y.
• ordem – a seqüência dos átomos na mesma figura.
Exemplo: XY é diferente de YX.
• posição - a localização dos átomos em termos de es-
paço.
Exemplo: X é diferente de
X
Gênese da filosofia e a filosofia antiga

Para Demócrito, tudo o que existe nasce do acaso ou


da necessidade. Logo, nenhuma coisa surge do nada,
tudo tem uma causa. Os átomos são a causa-última de
tudo.

2.2.2 Período socrático ou antropológico


Compreende o século V e o século IV a.C., quando
Atenas estava em destaque. Atenas como centro políti-
co, social e cultural da Grécia, afirmava a igualdade de
todas as pessoas diante da lei e do direito, implantou a
40
democracia participativa direta, instituindo as assembléi-
as como espaço para a defesa das idéias e interesses. A
necessidade de “defender” idéias e interesses revoluci-
onou a educação grega. O homem perfeito “o guerreiro
belo e bom” que a aristocracia instituíra valendo-se do
trabalho dos grandes poetas, passou a ser substituído
pelo cidadão. Belo, ou seja, corpo formado pela ginásti-
ca, jogos e danças, que imita os heróis de guerra como
Aquiles, Heitor, Ajax e Ulisses. Bom, ou seja, espírito
que, a partir dos grandes poetas, aprende as virtudes
admiradas pelos deuses. Entre elas destacava-se a cora-
gem de morrer na guerra, virtude própria dos superio-
res (do grego aristói – de onde vem aristocrata). Por isso
essa virtude dos superiores era chamada de Arete, que
significa superioridade e excelência. Isso aconteceu por-
que as novas classes ricas (artesanato e comércio), para
destituir a aristocracia e exercer o poder político, insti-
tuíram a democracia. Assim, os cidadãos passaram a
decidir os rumos das cidades. O que fez com que o ideal
de educação fosse o bom cidadão, superando o belo e
bom guerreiro. Para opinar, discutir, deliberar e votar, o
cidadão precisa ser um bom orador (padrão da nova
educação).
Para formar esse bom orador, surgem os sofistas (de Gênese da filosofia e a filosofia antiga

sofia = sabedoria). Esses encarregaram-se de mostrar que


as explicações cosmológicas não tinham utilidade para
a vida na pólis (cidade). Para sobreviver na cidade era
preciso saber persuadir (convencer) formulando os me-
lhores argumentos. Ensinar como fazê-lo foi o que se
propuseram os sofistas, dos quais destacam-se
Protágoras de Abdera (480–410 a.C.) e Górgias de
Leontini (487–380 a.C.).
Protágoras defendia que o “homem é a medida de
tudo o que existe, ou seja, o mundo é o que o ser huma-
no constrói e destrói. Logo, a verdade sempre seria rela- 41
tiva à determinada cultura, povo ou pessoa, não haven-
do verdades absolutas. Foi acusado de subjetivismo, pois,
assim, cada tese poderia ser vista tanto como verdadei-
ra quanto como falsa.
Górgias, por sua vez, aprofundou esse subjetivismo
a ponto de defender o cetismo absoluto, afirmando que
nada existia por si; que, mesmo que existisse, não pode-
ria ser conhecido e; se pudesse ser conhecido, não pode-
ria ser comunicado a ninguém. Em outras palavras, não
se pode acreditar em nada que não resulte da criação do
ser humano.
Sócrates de Atenas (469–399 a.C.) rebelou-se con-
tra os sofistas pois, para ele, defendiam qualquer idéia,
desde que fosse vantajosa para eles. Logo, não podiam
ser considerados filósofos. Assim, contrariando os po-
etas, os filósofos antigos e os sofistas, propunha que
antes de conhecer a natureza e persuadir os outros, é
necessário “conhecer-se a si mesmo”, pois entendia que
a essência do ser humano é a alma – sede da razão, o
eu consciente.
Em função de ser esse o centro das preocupações e
investigações de Sócrates, o período é denominado de
antropológico (ântropos - ser humano). Para isso, Sócrates
propunha perguntas sobre as idéias e valores que os gre-
Gênese da filosofia e a filosofia antiga

gos julgavam conhecer. Perguntava e negava-se a res-


ponder quando as pessoas esperavam que o fizesse. Pelo
contrário, dizia: “eu também não sei, por isso estou per-
guntando”. Daí atribuírem a ele a frase: “sei que nada
sei”. Esse reconhecimento, para ele, era o princípio da
filosofia.
Sócrates nada deixou escrito. O que se sabe dele vem
dos discípulos e adversários. Platão nos apresenta
Sócrates como um homem que, caminhando pelas pra-
ças e assembléias, questionava:
42
Você sabe o que é isso que você está dizendo?, “Você sabe o
que é isso em que você acredita?, “Você acha que está co-
nhecendo realmente aquilo em que acredita, aquilo em
que está pensando, aquilo que está dizendo?, “Você diz”,
falava Sócrates, “que a coragem é importante, mas o que é
a coragem?”, Você acredita que a justiça é importante, mas
o que é a justiça?, “Você diz que ama as coisas e as pessoas
belas, mas o que é a beleza?, “Você crê que os seus amigos
são a melhor coisa que você tem, mas o que é a amizade?.
(apud CHAUÍ, 2005, p.41)

A filosofia de Sócrates caracteriza-se pelos diálogos


críticos. Ele os concebeu com dois momentos básicos:

• a ironia, que no grego quer dizer interrogação, com-


preendia a fase de questionamento daquilo que os
interlocutores “pensavam saber”. Nessa fase, ataca-
va as respostas que recebia e, com habilidade de ra-
ciocínio, procurava mostrar as contradições presen-
tes em cada nova resposta que surgia. Sua intenção
era demolir o orgulho, a arrogância e a presunção do
saber, a ponto de levar o interlocutor a concluir: “sei
que nada sei”. Com isso queria levá-los a perceber
que suas respostas estavam repletas de conceitos va- Gênese da filosofia e a filosofia antiga

gos e imprecisos. O que, necessariamente, não os


poderia levar a ter certeza de nada.
• a maiêutica, ou a arte de dar à luz, a segunda fase
dos diálogos consistia em ajudar os interlocutores a
conceberem novas idéias. Assim, Sócrates traz para
a filosofia a profissão da sua mãe Fenareta, a qual era
parteira. O pai era escultor.

Procedendo assim, Sócrates buscava a essência real


e verdadeira das coisas, das idéias, dos valores. Essa es-
sência não podia ser dada pela percepção sensorial, ape- 43
nas pelo pensamento. E aquilo que o pensamento co-
nhece da essência foi chamado de conceito. Podemos
dizer que, ao perguntar, Sócrates queria ultrapassar a
mera opinião que se tem das pessoas, das coisas, das
idéias e dos valores, encontrando o conceito. Para ele,
uma opinião (doxa) é variável e instável, mudando de
pessoa para pessoa ou, em função de gostos e preferên-
cias. O conceito, pelo contrário, é imutável, atemporal e
universal. Por isso, não perguntava pela “opinião a res-
peito de”, mas “o que é?”.
Sócrates dialogava com ricos e pobres, com cidadãos
e escravos. Isso lhe rendeu a acusação de “subversivo e
corruptor da juventude”, uma vez que na democracia
ateniense os escravos, as mulheres e os estrangeiros não
podiam participar. Tornou-se uma ameaça à ordem vi-
gente, pois contrariava os valores dominantes daquela
sociedade. Contrariando essa ordem, além de corruptor
da juventude, foi acusado de ser “injusto com os deu-
ses”. A sentença foi “retratar-se ou morrer”. Como não
se retratou, foi obrigado a beber cicuta (veneno extraído
de uma planta com o mesmo nome).
Como características desse período destacam-se:

1 - filosofia prioriza as questões morais e políticas em


Gênese da filosofia e a filosofia antiga

detrimento da cosmologia (período anterior). Ocu-


pa-se com as virtudes morais (indivíduo) e as virtu-
des políticas (do cidadão);
2 - confiança na capacidade do ser humano conhecer-se
pelo pensamento e pela “reflexão”. Trata-se da volta
que o pensamento faz sobre si mesmo para conhe-
cer-se. Logo, o ser humano deixa de conchecer-se a
partir das cosmogonias e teogonias.
3 - busca pelos procedimentos que garantam o acesso à
verdade. O pensamento precisa construir/encontrar
44 os caminhos, critérios e meios para chegar ao verda-
deiro. Ou seja, não se tratava mais de descobrir o que
tinha sido revelado, mas descobrir a essência, o ser
das coisas.
4- a filosofia pergunta a respeito da justiça, da coragem,
da amizade, da piedade, do amor, da beleza, da pru-
dência, etc., ideais do verdadeiro sábio e cidadão,
superando o belo e o bom guerreiro.
5- estabelece uma separação clara e radical entre “a
opinão e as imagens das coisas” (hábitos, tradições e
o que é percebido pelos sentidos - doxa) e “os concei-
tos/idéias” (logos). Afirma que só se chega aos con-
ceitos/idéias superando os dados sensoriais (imagens
das coisas), os hábitos e as opiniões (considerados
falsos, mentirosos, mutáveis, inconsistentes e contra-
ditórios).
6- a reflexão e o pensamento são o caminho para a puri-
ficação intelectual, ou seja, conhecer a verdade invi-
sível, imutável e universal. Tudo o que é sensorial
dificulta e inviabiliza essa purificação.
7- Sócrates e Platão consideravam as opiniões e percep-
ções imperfeitas, falsas e fontes de erro que jamais
possibilitariam alcançar a verdade. Os sofistas cons-
truíam argumentos de persuasão com as opiniões e
percepções sensoriais, validando-as. Gênese da filosofia e a filosofia antiga

Essa diferença toda é expressa pelo “Mito da Caver-


na” de Platão (427–347 a.C.). Nascido em Atenas,
Arístocles, foi apelidado de Platão, que em grego sig-
nifica “ombros largos”. Depois da morte de Sócrates, a
quem considerava ser o mais sábio e o mais justo dos
homens (Platão, Fédon, p.120), realizou diferentes via-
gens. Em 387 a.C. retornou para Atenas, fundando sua
própria escola, a Academia (construída em jardins pelo
seu amigo Academus). Essa escola é reconhecida como
a primeira instituição permanente de ensino superior, 45
uma espécie de universidade. Daí, até hoje, a universi-
dade ser conhecida como academia.
Platão desenvolveu a chamada Teoria das Idéias,
cujo exemplo máximo é a alegoria ou Mito da Caverna.
No Mito da Caverna ele mostra que o processo de co-
nhecimento compreende a passagem progressiva do
mundo das sombras e aparências para o mundo das
idéias e essências.
Nesse processo, a primeira etapa compreende as im-
pressões ou sensações advindas dos sentidos. Elas pos-
sibilitam termos uma opinião (doxa) sobre a realidade.
Essa opinião é adquirida sem nenhuma busca metódica.
Nessa etapa podem ser identificados dois estágios: a ilu-
são, advinda das sombras e a crença, advinda dos obje-
tos sensíveis. Ou seja, é ilusória a opinião que se tem a
partir da aparência (sombra) das coisas. Também é in-
suficiente a crença que se adquire a partir da experiên-
cia sensível com os objetos existentes. Platão chamava a
ilusão de eikasia (visão de imagens das coisas concretas
pelo homem comum), a crença de pistis (fé = conheci-
mento dos objetos naturais a partir de como se apresen-
tam aos sentidos, sem implicar uma explicação racional
e lógica).
A segunda etapa compreende o conhecimento filo-
Gênese da filosofia e a filosofia antiga

sófico ou científico, produzido pelo pensamento no


mundo das idéias. Essa etapa também apresenta dois
estágios. Os conhecimentos matemáticos, adquiridos a
partir da análise lógica das formas do mundo e da natu-
reza. Platão os identificava como dianóia (conhecimento
dos objetos matemáticos pelo geômetra). O segundo es-
tágio (o mais alto e perfeito no processo de conhecimen-
to) compreende os conceitos. A noesis, ou seja, o conhe-
cimento das formas que a alma adquire pelo dialético.
Vejamos como ele mostra isso no Mito. Os seres hu-
46 manos estariam, desde o nascimento, numa caverna,
acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, virados para
uma parede. Nessa parede vêem a sombra de diferentes
objetos projetados por um fogo distante, que carregado-
res levam ao desfilarem à beira de um muro não muito
alto. Caso pudessem conversar, dariam nomes às som-
bras pensando se tratar de objetos reais. Além disso, iden-
tificariam as vozes como se fossem das sombras. Na hi-
pótese de um ser liberto, ficaria ofuscado pela luz e, so-
frendo com os movimentos, não identificaria os objetos,
cuja sombra estava habituado a ver. Caso fosse forçado
a subir o difícil caminho e olhar para a luz, tudo lhe do-
eria e seria incapaz de ver os objetos que os filósofos
identificam como reais. Por isso, é preciso que se habi-
tue aos poucos. Inicialmente será capaz de apenas dife-
renciar as sombras, depois as imagens e, por fim, os pró-
prios objetos. À noite, poderia até contemplar o céu, com
a lua e suas estrelas, mas o sol só poderia contemplar
mais tarde. E, ao contemplar o sol, teria condições de
conhecer inclusive a causa de tudo o que ele e seus com-
panheiros viam na caverna. A felicidade seria tamanha
que jamais trocaria essa vida pela anterior.
Na hipótese de voltar à caverna, a escuridão ofusca-
ria seus olhos. Caso emitisse, a partir da luz, um juízo
sobre a sombra, não só seria ridicularizado, mas tam- Gênese da filosofia e a filosofia antiga

bém morto pelos antigos companheiros.


A experiência de ver apenas as sombras na caverna é
a experiência sensível. Os prisioneiros são os homens
comuns. As correntes simbolizam os preconceitos, as
crenças e os hábitos. Os homens que do lado de fora car-
regam objetos são os sofistas e os políticos. A saída do-
lorosa em direção à luz (olhar as estrelas, depois as ima-
gens refletidas na água e, por fim, o sol, a fonte de toda
a vida) representa o processo de formação do filósofo
que é capaz de ver o ser, a realidade como ela é na sua
essência. O filósofo não só vê o sol, mas a totalidade da 47
realidade. O retorno à caverna representa o papel e com-
promisso político do filósofo em não permanecer na pura
contemplação.
Assim, Platão revela uma visão extremamente depreci-
ativa do mundo sensível e do ser humano comum. O úni-
co caminho admissível é libertar-se de tudo o que os senti-
dos captam, porque trata-se de uma aparência falsa e en-
ganosa. A verdade está apenas nas essências eternas (as
idéias). Essa essência é iluminada pelo sol (saber absoluto)
e pode ser percebida apenas pelo pensamento. Os sentidos
apenas captam sombras móveis da essência. Libertar as
pessoas destas sombras seria tarefa dos filósofos.

2.2.3 Período sistemático


Esse período se caracterizou por uma preocupação:
organizar sistematizando os saberes produzidos pelos
grandes filósofos anteriores. Daí ser chamado de perío-
do sistemático, que compreende os séculos IV e III a.C.
Aristóteles de Estagira (384–322 a.C.), discípulo de
Platão, é o principal nome desse período. Filho do mé-
dico do Rei da Macedônia, aos 18 anos ingressou na aca-
demia de Platão. Mesmo sendo o aluno mais destacado,
por ser estrangeiro não foi escolhido como sucessor de
Gênese da filosofia e a filosofia antiga

Platão. Decepcionado deixou academia, mas em 355 a.C.,


retornou para Atenas e fundou a sua escola.
Reafirmou a percepção platônica a respeito da reali-
dade sensível. Contudo, entendia que a partir dela é pre-
ciso conhecer as estruturas essenciais de cada ser. Ou
seja, a essência do ser precisa ser buscada a partir da
sua existência, caminhando do particular para o geral.
Deve-se partir da existência individual, mas o objeto deve
ser a compreensão universal. Logo, a indução é o pro-
cesso intelectual básico na aquisição do conhecimento.
Aristóteles retomou a questão do ser buscando re-
48
solver a contradição entre sua estaticidade (Parmênides)
e sua mobilidade (Heráclito). Propôs uma nova compre-
ensão, afirmando que em todo o ser precisamos distin-
guir: o ato (manifestação atual do ser; o que já existe) e a
potência (aquilo que ainda não é, mas pode vir a ser).
Exemplo: uma árvore frutífera (ato) pode encher-se de
frutas (potência). Isto é, torna-se aquilo que, em potên-
cia, já está no ato. Quando isso não acontece configura-
se uma qualidade não-essencial, o acidente.
A passagem do ato para a potência é causada, não
acontece por acaso. Causa é tudo aquilo que determina
a realidade de um ser. Assim, identifica quatro tipos de
causa na constituição da realidade de um ser:

1 - Causa Material: refere-se à materia que constitui uma


coisa. Exemplo: a farinha do pão. Responde a per-
gunta de que é o pão?
2 - Causa Formal: refere-se à configuração específica de
uma coisa. Exemplo: um pão retangular e não redon-
do. Responde a pergunta o que é o pão?
3 - Causa Eficiente: refere-se ao agente que produziu a
coisa. Exemplo: o padeiro que fez o pão. Responde a
pergunta por que o pão é pão?
4 - Causa Final – refere-se ao objetivo final, à razão de Gênese da filosofia e a filosofia antiga

ser da coisa. Exemplo: a finalidade do padeiro pode


ter sido a de saciar a fome de uma família. Responde
a pergunta para que é o pão?

Para Aristóteles, a potência presente na matéria não


é capaz de transformar o ser em ato. Para tanto, é neces-
sário um agente transformador (causa eficiente), guiado
por uma finalidade (causa final). Quem comanda a cau-
sa final é o movimento da realidade, pois é na existência
dos seres que estão os elementos necessários para des-
cobrir sua essência. 49
No geral, Aristóteles se preocupou em reunir todo o
saber produzido pelos gregos em todos os ramos do
pensamento e da prática, organizando-os dos mais sim-
ples aos mais complexos. Para ele, conhecer esta totali-
dade e diferenciar os diferentes conhecimentos era fun-
ção da filosofia. Assim, identificou diferentes campos de
investigação da filosofia com objeto e procedimentos de
investigação e demonstração específicos. Cada campo é
uma ciência (epistéme, em grego).
Contudo, antes de se identificar e diferenciar os dife-
rentes campos, para Aristóteles, era necessário conhecer
os princípios e leis gerais que governam o pensamento,
independente do conteúdo. Esse estudo ele chamou de
analítica. Por tratar-se de um processo que adota a lógi-
ca como instrumento, a partir da Idade Média, a analíti-
ca de Aristóteles passou a ser chamada de lógica.
Tomando como critérios lógicos de diferenciação a
ação e a contemplação, identifica três campos do saber:
ciências produtivas; ciências práticas; ciências teoréticas
ou contemplativas.
Ciências produtivas estudam as práticas produtivas,
isto é, ações humanas voltadas para a produção de al-
gum objeto ou obra distinta do produtor: arquitetura,
medicina, economia, pintura, escultura, poesia, arte, ora-
Gênese da filosofia e a filosofia antiga

tória, navegação, etc.


Ciências práticas estudam as práticas humanas que
têm por fim a realização do próprio agente que as reali-
za. O fim da prática está nela mesma, não em algum pro-
duto. Compreendem a ética, cuja finalidade é o bem do
indivíduo pela prática das virtudes morais e, a política,
cuja finalidade é o bem comum (da comunidade). A po-
lítica é superior à ética, pois a vida virtuosa ou ética de-
pende da liberdade que só na pólis pode ser construída.
Ciências teoréticas ou contemplativas estudam as
50 coisas que não foram feitas pelo ser humano. Trata-se
das coisas que existem por si e em si mesmas, indepen-
dente da atividade produtiva, moral e política.
Aristóteles concebeu quatro graus diferentes nessas ci-
ências, indo da inferior à superior:

• ciências das coisas naturais submetidas à mudança


no tempo: física, biologia, meteorologia e psicologia;
• ciências das coisas naturais que não mudam com o
tempo: matemáticas e astronomia (acreditava na eter-
nidade e imutabilidade dos astros);
• ciências da realidade natural pura, nem mutável, nem
imutável, nem é resultado da ação humana. Essa re-
alidade pura, presente em qualquer realidade,
Aristóteles chamou de ser ou substância. A ciência
que estuda essa realidade pura ele chamou de filo-
sofia primeira. Alguns séculos mais tarde, pelo fato
dos livros da filosofia primeira serem colocados (nas
bibliotecas) depois dos livros da física, passou a ser
chamada de metafísica (metá = depois de, além de);
• as ciências das coisas divinas que são a causa e a
finalidade de tudo. Trata-se da teologia (Theós =
Deus; theion = coisas divinas).

2.2.4 O Período helenístico ou greco- Gênese da filosofia e a filosofia antiga

romano
Compreende os séculos III a.C. ao século VI d.C. A
conquista da Grécia pelos Macedônios (Alexandre Mag-
no) em 322 a.C. marca o início do período helenístico.
Também conhecido como período cosmopolita ou filo-
sofia cosmopolita, porque os filósofos afirmavam que o
mundo (não a pólis) era a sua cidade. Isso aconteceu por-
que o domínio romano instituiu os imperador e os reis.
Esses passaram a decidir os rumos das cidades, não mais
o povo. Outra característica desse período é a substitui-
51
ção da vida pública pela vida privada (intimidade e vida
interior) nas reflexões filosóficas.
Esse período caracteriza-se por grandes explicações que
buscam entender a realidade como um todo, composto por
todas as relações entre os seres humanos e a natureza e
esses com a Divindade. As preocupações voltaram-se para
a ética, a física e a teologia, uma vez que ocupar-se com a
política dizia respeito apenas aos imperadores.
Três grandes sistemas destacam-se nesse período:
epicurismo, estoicismo e neoplatonismo.
O epicurismo, fundado por Epicuro (324–271 a.C.),
propunha que o ser humano precisa buscar o prazer, pois
é o início e o fim de uma vida feliz. Dividia os prazeres
em dois grandes grupos: os que encantam o espírito (boa
conversação, contemplação das artes, audição de boa
música) e os prazeres mais imediatos que, mais movi-
dos pela explosão das paixões, podem causar dor e so-
frimento. É importante não confundir o epicurismo com
a busca desenfreada de prazer mundano defendida pelo
hedonismo. Por isso, os epicureus exercitavam a
ataraxia, termo que designa a ausência de dor, a quie-
tude e a imperturbabilidade da alma.
O estoicismo, fundado por Zenão de Cício (336–263
a.C.), Ilha de Chipre, caracterizou-se por defender que
Gênese da filosofia e a filosofia antiga

toda a realidade existente é uma realidade racional. Deus


nada mais é que a fonte dos princípios que regem a rea-
lidade. Destacava que o ser humano não pode alterar
substancialmente a ordem universal do mundo. Por isso,
pela filosofia, deveria compreender sua ordem e viver
segundo ela. Assim, no lugar do prazer dos epicureus, o
estoicismo propõe o dever da compreensão como cami-
nho para a felicidade. Em termos estéticos, defendia aus-
teridade física e moral mediante a resistência ante ao
sofrimento, a coragem ante o perigo e a indiferença ante
52 os bens materiais. Em suma, compreender os princípios
universais que regem a vida, e de acordo com eles orga-
nizar a vida levaria ao estado de plena serenidade para
lidar com os sobressaltos da existência.
O neoplatonismo, tem em Plotino (205–270 d.C.) seu
maior representante. Defendia que o real consiste em três
estados de realidade (hipóstases). A primeira é o Uno -
eterno, imóvel e transcendente, fora do real, cuja perfei-
ção gera uma emanação (proodos = ir adiante no cami-
nho). Exemplo: o sol (o Uno) emana raios de luz. Esses
raios de luz emanam do sol, a fonte imóvel e eterna. A
segunda realidade é o Intelecto (nous) que contempla o
Uno e corresponde às Idéias ou formas por ele
construídas a partir dessa contemplação. A terceira rea-
lidade é a Alma do Mundo (psyche) que surge o intelec-
to e é a origem do movimento e da diversidade no mun-
do. Percebe-se que reproduz a idéia de que tudo o que
existe emana de uma realidade única e perfeita, a partir
da qual tudo deve ser compreendido.

Atividades
Questões. Gênese da filosofia e a filosofia antiga
1- Qual foi a grande razão para o surgimento da filoso-
fia?
2- Explique a diferença que Pierre Grimal vê entre
mythos e logos.
3- Defina “cosmogonia” e “teogonia”.
4- Por que a filosofia de Éfeso ficou conhecida como
mobilista?
5- Explique, com suas palavras, os dois caminhos con-
cebidos por Parmênides para se conhecer a realida-
de: essência e aparência.
6- Relacionando com os dias atuais, escreva um texto de
53
10 a 15 linhas sobre a importância dos dois momentos
do diálogo crítico de Sócrates: a ironia e a maiêutica.

Referências comentadas
LARA, Tiago Adão. Caminhos da razão no ocidente:
a filosofia nas suas origens gregas. Caminhos da ra-
zão. Petrópolis: Vozes, 1989, v.1. 231p.

Tiago Adão Lara tem como característica apresentar


os diferentes filósofos e saberes a partir de uma lógica
de sentido, literalmente, um caminho. Trata-se de um
caminho no qual põe em diálogo as idéias que vão sen-
do descobertas. Ótimo para complementar e aprofundar
o que estamos abordando.

Referências
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Ma-
ria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia.
Gênese da filosofia e a filosofia antiga

São Paulo: Moderna, 2002.


CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13.ed. 6a.
reimpressão. São Paulo: Ática, 2006.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia – his-
tória e grandes temas. 16.ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
GOMES, Roberto. Crítica da razão tupiniquim. 10.ed.
São Paulo: FTD, 1994, 120p.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filo-
sofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 6.ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

54
Auto-avaliação
Marcar com “X” apenas as questões corretas.

1 - O pensamento mítico é fruto da tradição e não pro-


dução de um indivíduo ou grupo, pressupõe a ade-
são e aceitação e apela ao sobrenatural para explicar
a causa-primeira da origem de tudo. ( )
2 - As viagens marítimas possibilitaram descobrir que
locais habitados por deuses, titãs e heróis (nos mi-
tos), na verdade eram habitados por seres humanos.
( )
3 - A filosofia pré-socrática caracteriza-se por buscar o prin-
cípio natural, eterno, imperecível e imortal que gera
a tudo e a todos e para onde tudo retorna. ( )
4 - Para Heráclito de Éfeso, a “luta” (guerra) das forças
contrárias é a mãe de todas as coisas. ( )
5 - Parmênides afirmava que todas as coisas são consti-
tuídas por partículas invisíveis e indivisíveis, os áto-
mos. ( )
6 - No período socrático, a filosofia passou a definir o
ser humano como “guerreiro belo e bom”. ( )
7 - Sócrates de Atenas defendia que “o homem é a me-
Gênese da filosofia e a filosofia antiga
dida de tudo o que existe, ou seja, o mundo é o que o
ser humano constrói e destrói”. ( )
8 - Para Sócrates, aquilo que se conhece pela percepção
sensorial é o conceito e o que se conhece pelo pensa-
mento é a opinião. ( )
9 - Platão concebeu a Teoria das Idéias para explicar a
diferença entre o conhecimento sensorial e o conhe-
cimento filosófico. ( )
10 - Aristótoles defendia que os fenômenos e objetos
apresentam quatro tipos de causa: material; formal;
eficiente; final. ( )
55
Gabarito
As questões verdadeiras são: 1, 2, 3, 4, 9, 10.
Gênese da filosofia e a filosofia antiga

56
3
Filosofia
patrística e
medieval
Arno Vorpagel Scheunemann é assistente
social, mestre e doutor em Teologia,
professor de graduação e pós-graduação no
Serviço Social da ULBRA/Canoas. É autor
de todos os capítulos deste livro-texto.
Arno Vorpagel Scheunemann

Compreende os primeiros 14 séculos da Era Cristã.


Tanto a filosofia patrística, quanto a medieval caracteri-
zam-se pela aproximação e interação com o cristianis-
mo. A patrística pela inclusão maciça de conceitos cris-
tãos e a medieval pela adoção das produções e docu-
mentos cristãos como autoridade na validação das idéi-
as no método da disputa, método criado pela filosofia
medieval.

3.1 Filosofia patrística


Patrística porque trata da obra do discípulo de Jesus,
João, do apóstolo Paulo e dos pais da Igreja, ou seja, os
primeiros dirigentes espirituais e políticos do cristianis-
mo a conciliar o cristianismo e a filosofia grega. Com a
filosofia cristã do século I ao século VII d.C., o primeiro
não-discípulo, nem apóstolo, nem cristão a se destacar
foi Fílon de Alexandria (25 a.C.–50 d.C.). Para ele, Deus
criou o cosmo (não Demiurgo como dizia Platão) a par-
tir das idéias em sua mente e não contemplando-as fora
dele. Essa seria a origem da concepção de que as idéias
Filosofia patrística e medieval

não existem como entidades independentes em um mun-


do próprio (pressuposto de Platão), mas são entidades
mentais que existem primeiro na “mente de Deus” e
depois na mente humana. Ponto alto da teoria de Des-
cartes no século XVII. O principal expoente da filosofia
patrística foi Aureliano Agostinho, o Santo Agostinho
(354–430 d.C.).
Agostinho defendeu a supremacia do espírito sobre
o corpo, pois subordinar a alma ao corpo, os Espírito à 59
matéria, seria submeter o eterno ao transitório, a essên-
cia à aparência. Sua concepção de que ser livre é servir a
Deus, pois o prazer do pecar escraviza, fomentou uma
concepção diferente de índivíduo e subjetividade. En-
quanto na filosofia grega o indivíduo era o cidadão, ser
político e social, Agostinho exalta a submissão a Deus, a
salvação pessoal e a responsabilidade individual pelos
atos.
Caracterizam ainda a filosofia patrística desse perío-
do, a afirmação da superioridade da fé em relação à ra-
zão, o dualismo entre bem e mal, alma e corpo, luz e
trevas, a desconfiança nos dados dos sentidos e, por
fim, a concepção de verdade como conhecimento eter-
no que precisa ser buscado em Deus.
Costuma ser dividida em patrística grega (Igreja
Bizantina) e patrística latina (Igreja Romana). A
patrística introduz idéias não contempladas na filosofia
grega: criação a partir do nada; pecado original, trinda-
de una, encarnação, morte, juízo final, ressurreição, ver-
dades sobrenaturais ou reveladas, verdades naturais ou
da razão humana.
De maneira geral, esse período caracteriza-se por
conciliar razão e fé. Destacam-se três posições: fé supe-
rior à razão e ambas irreconciliáveis; razão submissa à
fé e ambas irreconciliáveis; independência e
inconciliabilidade de ambas, destinando a vida tempo-
Filosofia patrística e medieval

ral à razão e a vida eterna futura à fé.

3.2 Filosofia medieval


Compreende do século VIII ao século XIV d.C., perí-
odo histórico da Idade Média. Por isso, medieval. Tam-
bém é conhecida como escolástica, porque, a partir do
60
século XII, era ensinada nas escolas como uma produ-
ção filosófico-teológica. Manteve os temas da patrística.
Teve como base o neoplatonismo (Platão na versão de
Plotino, século VI d.C.), Aristóteles e Santo Agostinho.
Nessa época a filosofia ocupou-se mais com temas como:
a existência de Deus; a imortalidade da alma; a separa-
ção entre o finito (ser humano e mundo) e o infinito
(Deus); diferença entre razão e fé (razão submissa à fé);
separação entre corpo (matéria) e alma (espírito); subor-
dinação do poder temporal ao poder espiritual.
Continuando a empreitada da patrística, a filosofia
medieval também caracterizou-se pela harmonização
entre fé cristã e razão. Nesse processo, a escolástica pode
ser dividida em três períodos:

1 - confiança na perfeita harmonia entre fé e razão (sé-


culo IX ao século XII);
2 - harmonização pode ser parcialmente obtida - elabo-
ram-se grandes sistemas filosófico-teológicos como
o de Tomás de Aquino (século XIII ao início do sécu-
lo XIV);
3 - disputas que realçam as diferenças entre fé e razão –
decadência da escolástica (século XIV ao século XVI).

Outra discussão que se destacou na escolástica foi a


existência ou não das idéias universais, para além da
Filosofia patrística e medieval

sua relação com as coisas. Exemplo: laranjeira é o nome


de uma árvore frutífera. Ao morrer a árvore, a palavra
laranjeira continua existindo e fala de uma coisa que não
existe. Surgiram duas posições. Os realistas defendiam
que idéias universais existem por si mesmas, como por
exemplo a bondade, a beleza, etc. Os nominalistas de-
fendiam que o universal não passa de um nome, de uma
convenção, de uma palavra sem existência real (realida-
de singular). 61
O método criado na escolástica ficou conhecido como
disputa. Compreendia a apresentação de uma tese/idéia
que deveria ser defendida ou refutada com argumentos
tirados da bíblia, de Aristóteles, de Platão e dos pais da
Igreja. Assim, o pensamento era subordinado ao princí-
pio de autoridade (para ser verdadeira a tese precisa apre-
sentar argumentos de uma autoridade reconhecida –
bíblia, Aristóteles, Platão, pais da Igreja, papa, santos).
Como pensadores destacam-se: Abelardo; Duns Scotus;
Santo Anselmo; Santo Tomás de Aquino; Guilherme de
Ocam; Avicena (árabe) e Maimônides (judeu).
Pedro Abelardo nasceu em Le Pallet, próximo de
Nantes, Bretanha, em 1079, e faleceu em 21 de abril 1142.
Ficou conhecido do público por sua vida pessoal e o re-
lacionamento com Heloísa, de quem fala em sua Histó-
ria das Minhas Calamidades.
A obra principal de Abelardo, chamada Dialética,
foi a obra de lógica mais influente até o final do século
XIII em Roma, onde foi usada como manual escolar. Na
filosofia ocupou uma posição importante por ter formu-
lado o conceitualismo, posição que não pertence pro-
priamente nem ao idealismo, nem ao materialismo. O
conceitualismo caracteriza-se por defender que os uni-
versais são apenas conteúdos de nossa mente, represen-
tações do intelecto que as deriva das coisas particulares
e dessas, guarda alguma semelhança. Ou seja, não exis-
Filosofia patrística e medieval

te verdade universal, nem ser universal, o que acontece


é que a mente forma um conceito a partir das experiên-
cias e manifestações particulares e os universaliza. Em
outras palavras, defendeu a idéia de que só existem rea-
lidades singulares, particulares, mas que pela abstração
poderia-se buscar as semelhanças entre essas realidades,
chegando aos universais. Isto é, identificava o real com
o particular e considerava o universal como o sentido
62 das palavras.
A questão era: os universais têm uma entidade gené-
rica real ou são coisas puramente pensadas? Enquanto
Guilherme de Occam os considerava reais e necessários,
João Roscelino só lhes atribuía o valor de palavras
(Roscelino era clérigo e pensador medieval (1050-1120),
tido tradicionalmente como representante do
nominalismo radical). Guilherme nasceu em Occam na
Inglaterra pouco antes do ano de 1300; franciscano, es-
tudou e lecionou na Universidade de Oxford. Processa-
do por heresia pela Santa Sé, refugiou-se junto do impe-
rador, então em luta contra o papa, e escreveu várias
obras para defender o imperador contra a Santa Sé. Fa-
leceu pelo ano 1350.
Para Occam, o conhecimento sensível é superior ao
conhecimento intelectual, porquanto o primeiro é intui-
tivo, ao passo que o segundo é abstrato; o primeiro dá-
nos a realidade, concreta e individual, ao passo que o
segundo nos dá apenas as semelhanças entre seres reais
(as idéias gerais), e, por conseguinte, um conhecimento
vago e confuso deles, que não nos permite distingui-los
um do outro. O conhecimento sensível dá-nos as rela-
ções reais entre as coisas reais (o nexo causal, que se co-
nhece só pela experiência), ao passo que o conhecimen-
to intelectual nos proporciona conhecer as relações lógi-
cas entre conceitos abstratos, sem nada nos dizer em tor-
no da realidade das coisas. Em conclusão, a sensação é o
Filosofia patrística e medieval

sinal de um objeto na alma; o conceito é sinal de mais


objetos percebidos como semelhantes. O conceito, pois,
é um sinal natural, representado pelo nome que é, po-
rém, um sinal artificial, variável segundo as diversas lín-
guas. Assim, os universais são reais e necessários. Estão
aí para a mente, não são construções da inteligência como
os conceitos.
Abelardo adotou uma posição intermediária: definia
como não sendo meras palavras, mas também não esta- 63
belecendo um saber real, visto que, sendo a sua signifi-
cação subjetiva, o que exprimem são tão-somente opini-
ões pessoais sobre o ser (sermones), que, contudo, pos-
sibilitam o entendimento entre os homens. As palavras
importantes tornam-se universais ao serem aceitas como
tal, e como tal usam-se para exprimirem as verdades
necessárias.
Tomás de Aquino (1226–1274), colocou a filosofia
aristotélica a serviço da religião. Enfatizou a importân-
cia da realidade sensorial, definindo princípios básicos
para conhecê-la:

• o princípio da não-contradição – nada pode ser e não


ser ao mesmo tempo;
• o princípio da substância – substância é a essência
do ser, o acidente é a qualidade acessória, não essen-
cial;
• o princípio da causa eficiente – ou seja, todos os se-
res que captamos pelos sentidos são contingentes
(não possuem em si mesmos a causa eficiente de sua
existência) e, para existir precisam de outro ser que
seja sua causa eficiente. Esse ser é chamado por ele
de necessário;
• princípio da finalidade – todo o ser existe em função
de uma finalidade, sua causa final.
• o princípio do ato e da potência – todo o ser contin-
Filosofia patrística e medieval

gente possui duas dimensões, o ato (o que é na exis-


tência atual) e a potência (o que pode vir a ser, sua
capacidade ainda não realizada). Toda e qualquer
mudança precisa ser explicada a partir dessa passa-
gem do ato para a potência.

Será o primeiro sistema filosófico a influenciar e fun-


damentar o serviço social. Fomentou um serviço social
64 que:
• não admitia contradição, ocupando-se em identificar
aquilo que é e aquilo que não é em cada realidade,
acontecimento e pessoa;
• combatia todos os aspectos e elementos diferentes e
distoantes como sendo “problemas”, que precisam
ser eliminados para que se possa conhecer e vivenciar
a verdadeira essência dos fatos e das pessoas;
• identificava as “pessoas desajustadas” como seres
contingentes que “precisam de uma causa eficiente”
(o assistente social) para que possam existir;
• considerando a não-contradição, defendeu como cau-
sa final a harmonia do todo e instituiu o “ajustamen-
to” do indivíduo ao todo como causa final, tanto da
existência do indivíduo quanto do trabalho do assis-
tente social;
• concebendo o ato e a potência como qualidades do
indivíduo, definiu a “melhora do indivíduo” (torná-
lo aquilo que por natureza ele pode ser) como seu
objeto. Logo, realizar a potência inerente em ato era
um processo individual-pessoal, não social, dispen-
sando a compreensão e articulação contextual-estru-
turais.

A escolástica pós-tomista conviveu com acontecimen-


tos históricos marcantes: a Guerra dos 100 Anos, entre
França e Inglaterra; a peste bubônica que matou cerca
Filosofia patrística e medieval

de três quartos da população européia; a divisão da Igreja


Católica em Ortodoxa Oriental e Romana (ocidental); e
a criaçção de novas universidades. Nesse período des-
tacou-se Guilherme de Ockham (1280–1349), proclaman-
do a absoluta distinção entre fé e razão. Para ele, a filo-
sofia não poderia ser serva da teologia, nem a teologia
poderia ser considerada ciência, pois não mantém sua
coerência pela razão, mas pela fé. Como empirista, com-
bateu a metafísica tradicional e iniciou o que conhece- 65
mos como método moderno. Essa posição definiu a re-
lação entre a filosofia, a teologia e a ciência até o final do
século XX.

Atividades
Questões.
1- A filosofia patrística se caracteriza por afirmar a su-
perioridade da fé em relação à razão. Você considera
isso certo? Por quê?
2- Explique com suas palavras o método da disputa, cri-
ado pela filosofia medieval.
3- Por que a filosofia medieval é conhecida como
escolástica?
4- Uma das influências do Tomismo no serviço social
foi o combate a todos os aspectos diferentes e desto-
antes como sendo “problemas” que precisam ser eli-
minados. No seu entender, esse é um princípio im-
portante para o trabalho do assistente social? Por quê?

Referências comentadas
Filosofia patrística e medieval

Quem desejar ampliar e aprofundar o que foi abor-


dado nesse capítulo poderá ler:

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da


história da filosofia. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 1995, 555p.

Ler a parte referente à filosofia patrística e medieval.

66
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Ma-
ria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia.
São Paulo: Moderna, 2002.

Ler o capítulo 4 da unidade 1, p.43-46.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13.ed. 6a.


reimpressão. São Paulo: Ática, 2006.

Ler capítulo 4 da unidade 1.

LIBERA, Alain De. A filosofia medieval. 1.ed. Rio


de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. 105p.

Visão panorâmica e sucinta da filosofia na Idade


Média. Traz o essencial para se compreender o que esta-
va em ebulição nesse período da filosofia e da história.

STRATHERN, Paul. Tomás de Aquino em 90 minu-


tos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

São Tomás de Aquino em 90 minutos estuda a vida e


a obra daquele que incorporou o pensamento aristotélico
à teologia cristã. A Era Medieval também produziu seu
monumento intelectual: a filosofia em grande parte es-
tática e cumulativa da escolástica. E o mestre consagra-
Filosofia patrística e medieval

do da escolástica foi Tomás de Aquino.

Auto-avaliação
1 - Marcar a alternativa correta.
a) A filosofia patrística tem esse nome por causa
da pátria romana. ( )
67
b) A filosofia patrística caracteriza-se por valori-
zar mais a fé que a razão, por estabelecer um
dualismo entre corpo e alma, por desconfiar dos
dados dos sentidos e, por conceber a verdade
como um conhecimento eterno a ser buscado em
Deus. ( )
c) A filosofia medieval caracteriza-se por estabe-
lecer a mais completa e definitiva separação
entre razão e fé. ( )

2 - O conceitualismo de Pedro Abelardo se caracteriza


por defender que os universais são apenas conteú-
dos de nossa mente, representações do intelecto que
as deriva das coisas particulares e dessas, guarda al-
guma semelhança.
( ) Verdadeiro ( )Falso

3 - Os nominalistas defendiam que o universal não pas-


sa de um nome, de uma convenção, de uma palavra
sem existência real (realidade singular).
( )Verdadeiro ( )Falso

4 – Para Tomás de Aquino a causa eficiente era neces-


sária.
( )Verdadeiro ( )Falso
Filosofia patrística e medieval

Gabarito
1- B
2- Verdadeiro
3- Verdadeiro
4- Verdadeiro

68
4
Filosofia
renascentista e
moderna
Arno Vorpagel Scheunemann é assistente
social, mestre e doutor em Teologia,
professor de graduação e pós-graduação no
Serviço Social da ULBRA/Canoas. É autor
de todos os capítulos deste livro-texto.
Arno Vorpagel Scheunemann

Em termos cronológicos abrange o final da Idade


Média e a primeira fase da Idade Moderna (do século
XIV ao século XVI d.C.). Em termos históricos destacam-
se: a passagem do feudalismo para o capitalismo; o
florescimento do comércio e a emergência da burguesia;
a formação dos Estados nacionais; a concentração do
poder nas monarquias absolutistas; o florescimento do
mercantilismo; o Movimento da Reforma Protestante; o
desenvolvimento da ciência natural e a invenção da im-
prensa. Tudo isso fomentou a passagem da visão
teocêntrica (Deus é o centro da compreensão) do mun-
do para a antropocêntrica (o ser humano é o centro da
compreensão).

4.1 Filosofia renascentista


Renascença compreende uma época ocupada em fa-
zer renascer, recuperar ou imitar obras de grandes auto-
res gregos e romanos. Na filosofia foram descobertas
obras de Platão e Aristóteles. Três linhas filosóficas des-
Filosofia renascentista e moderna

tacam-se nesse período:

1 - a linha que, a partir dos diálogos de Platão (Banquete,


Fédon e Fedro) e dos livros do hermetismo (ou magia
natural), escritos séculos antes de Moisés (acredita-
va-se terem sido ditados pelos deuses) concebia a
natureza como um grande ser vivo com uma alma
universal. Essa natureza era dotada de laços e víncu-
los secretos, unidos por simpatia e desunidos por
antipatia. O ser humano era visto como parte da na- 71
tureza e como um microcosmo que espelha o
macrocosmo. Esse espelhamento o habilita a agir so-
bre o mundo por meio da magia natural, da alqui-
mia e da astrologia.
2 - a linha que, na defesa da vida ativa (política) e da
liberdade contra os papas e imperadores, recuperou
a república livre tal qual existia nas obras dos gran-
des autores latinos clássicos e propôs a “imitação dos
antigos” (renascimento da república livre do impé-
rio eclesiástico).
3 - a linha propunha o homem como construtor do seu
próprio destino mediante os conhecimentos, a políti-
ca, as técnicas e a arte, exaltando atributos como a
razão e a liberdade. O que fomentou a mentalidade
racionalista da Modernidade.

Essas três linhas têm no humanismo seu traço co-


mum. Essa valorização do ser humano como centro do
universo fomentou as grandes descobertas marítimas
que impulsionaram uma visão mais crítica de tudo. Essa
visão crítica fomentou a crítica profunda das estruturas
e da Igreja da época, culminando na Reforma Protestan-
te. A estrutura oficial, por sua vez, reage com a Contra-
Reforma e a Inquisição. O Tribunal da Inquisiçaõ foi cri-
ado em 1232 pelo papa Gregório IX. Suas ações foram
Filosofia renascentista e moderna

reativadas em meados do século XVI, diante do avanço


do protestantismo. Um exemplo marcante foi a perse-
guição a Giordano Bruno (1548–1600) que acabou con-
denado à morte na fogueira por contestar a idéia de que
a Terra era o centro imóvel do universo, defendendo a
teoria heliocêntrica.
O filósofo francês Michel Montaigne (1523–1592), ba-
seado no cetismo epicureu e estoico, defendeu que cada
pessoa precisa construir sua sabedoria e consciência con-
72 forme suas possibilidades e disposições individuais, pois
não se poderia estabelecer preceitos válidos para todos.
Na educação propôs que nada deveria ser imposto com
base na autoridade da tradição. Pelo contrário, tudo de-
veria ser submetido à reflexão do aluno. Afirmou:

Que nenhum princípio de Aristóteles, dos estóicos ou dos


epicuristas, seja seu princípio. Apresentem-lhe todos, sem
sua diversidade e que ele (a aluno) escolha se puder. E se
não o puder fique na dúvida, pois só os loucos têm certeza
absoluta em sua opinião. (Ensaios, p.78)

Nicolau Maquiavel (1469–1527) ocupou-se com o


exercício do poder político pelo Estado. Em O Príncipe,
desvinculando completamente razões políticas e razões
morais, busca identificar as causas do sucesso e do fra-
casso no exercício do poder. Defendeu que o ser huma-
no é mau por natureza. Por isso, o Estado é necessário
para coibir os maus instintos humanos mediante o uso
da força.
Destacam-se ainda: Dante; Erasmo; Tomas Morus;
Johann Kepler; e Nicolau de Cusa.

4.2 A filosofia moderna Filosofia renascentista e moderna

A filosofia moderna vai do século XVII até a metade


do século XVIII d.C. Nesse período, diante das lutas en-
tre católicos e protestantes, da descoberta de novos po-
vos, “o sábio já não podia admitir que a razão humana
fosse capaz de conhecimento verdadeiro e que a verda-
de fosse universal e necessária. Ao contrário, diante da
multiplicidade de opiniões em luta, o sábio tornou-se
cético” (CHAUÍ, 2005, p.48). Daí esse período do Gran-
de Racionalismo também ser conhecido como Cetismo
73
(dúvida a respeito da capacidade da razão conhecer a
realidade exterior e o ser humano). Assim, esse período
se caracteriza pela preocupação com a formulação de
teorias e fundamentos para o processo de compreensão
do ser e da realidade pelo próprio ser humano.
Para superar o cetismo referido, a filosofia moderna
propôs três mudanças teóricas:

1 - surgimento do sujeito do conhecimento, ou seja, em


vez de começar por Deus, pela natureza, começa pela
reflexão do próprio sujeito do conhecimento. Esse,
apenas depois de conhecer a si mesmo, se voltaria
para as coisas ou objetos do conhecimento.

O sujeito do conhecimento é o intelecto ou a inteligência


que, juntamente com a vontade, existe numa substância
espiritual, a alma, cuja natureza é completamente diferen-
te da natureza de uma outra substância, a corpórea, que
constitui a natureza do nosso corpo e dos corpos exterio-
res. (CHAUÍ, 2005, p.49)

O desafio é responder: como o sujeito espiritual pode


conhecer os objetos corporais? Para responder, a filoso-
fia moderna operou uma segunda mudança teórica.
Filosofia renascentista e moderna

2 - as coisas exteriores (instituições, organizações, natu-


reza, etc.) são conhecidas apenas quando o sujeito
as representa intelectualmente, apreendendo-as ape-
nas por operações cognitivas realizadas pelo próprio
sujeito do conhecimento. Nada pode ser conhecido
pelos dados que a realidade sensível apresenta, pois
esses dados podem ser enganosos. Por isso, a filoso-
fia moderna defendeu a necessidade de, pelas idéias,
se representar o mundo como caminho para se atin-
74 gir outra concepção dele.
Isso seria possível porque as coisas exteriores são
racionais em si mesmas. Isto é, apresentam uma ló-
gica racional na sua constituição, organização e di-
nâmica. Cabe ao intelecto do sujeito apreender/de-
cifrar essa lógica e representá-la em idéias. Essa re-
presentação em forma de idéia precisa ser clara, dis-
tinta, demonstrável. Vê-se, assim, que a filosofia
moderna operou uma clara separação entre conheci-
mento sensível e conhecimento racional, deixando
espaço apenas para as idéias, para o que é racional e
racionável.

3 - o pressuposto de que a realidade é racional e pode


ser captada pelas idéias, possibilitou a Galileu Galilei
conceber “a natureza como um sistema ordenado de
causas e efeitos necessários cuja estrutura profunda
e invisível é matemática” (CHAUÍ, 2005, p.49), isto é,
a causa de tudo é sempre um movimento e esse mo-
vimento segue leis universais perfeitas que podem
ser representadas matematicamente.
Considerando o sujeito ser capaz de representar in-
teiramente a realidade no mundo das idéias, acredi-
tava-se ser possível esse sujeito intervir e alterar essa
realidade. Assim, nasceram os primeiros experimen-
tos científicos e a expectativa de dominar tecnicamen-
Filosofia renascentista e moderna

te a natureza e a sociedade.

Existe também a convicção de que a razão humana é capaz


de conhecer a origem, as causas e os efeitos das paixões e
das emoções e, por meio da vontade orientada pela razão, é
capaz de governá-las e dominá-las, de sorte que a vida éti-
ca pode ser plenamente racional. (CHAUÍ, 2005, p.49)

Percebe-se, assim, que não só se privilegia a razão,


mas que se submete todas as demais dimensões do ser e 75
da existência a ela. Fato que determinará a relação do
ser humano consigo mesmo, com os outros e com a na-
tureza, na sociedade ocidental, até os dias atuais.
Destacam-se como pensadores desse período: Francis
Bacon, René Descartes, Galileu Galilei, Thomas Hobbes,
Espinosa, John Locke e Isaac Newton. Buscavam, de al-
guma forma, responder a pergunta: qual seria o méto-
do que possibilitará a razão produzir uma representa-
ção fiel do real? Diferentes propostas surgiram. Um pri-
meiro grupo (racionalistas) ocupa-se com o estabeleci-
mento das bases racionais do método: Galilei, Bacon,
Descartes e Espinosa. Um segundo grupo (empiristas)
preocupa-se em afirmar a experiência sensível como fun-
damental no processo de conhecimento.
Galileu Galilei (1564–1642), nasceu em Pisa, na Itá-
lia. Defendeu a tese de que em termos científicos a bíblia
não é um manual que pode ser seguido. Isso lhe rendeu
a condenação à morte em fogueira pelo Tribunal da
Inquisição. Para permanecer vivo, retratou-se, contudo,
permaneceu fiel às suas idéias como mostra a publica-
ção clandestina (em 1638), quatro anos antes de sua
morte. Em 1983 a Igreja Católica reviu o processo e ab-
solveu-o.
Inovando em relação à tradição grega, Galileu Galilei
defendeu a necessidade de se estudar experimentalmen-
Filosofia renascentista e moderna

te a natureza (até então bastava observá-la). Aplicou a


matemática em estudos experimentais da natureza, pro-
pondo um método matemático-experimental que se ba-
seava:

• na observação calma e minuciosa dos fenômenos


naturais;
• na realização de experimentações para comprovar
uma tese;
76
• no uso da matemática para evidenciar regularidades
observadas mediante os experimentos.

Francis Bacon, filho de família nobre, nasceu em Lon-


dres, em 1561, e faleceu em 1626. Para ele, a ciência de-
veria valorizar a pesquisa experimental como caminho
para o ser humano se libertar dos ídolos, quais sejam, os
preconceitos, as falsas noções e os maus hábitos men-
tais.
No Novum Organum, uma de suas principais obras,
identifica quatro tipos de ídolos que bloqueiam a men-
te:

1 - ídolos da tribo – falsas noções resultantes da própria


limitação da espécie humana, pois a mente humana
é incapaz de refletir perfeitamente a realidade;
2 - ídolos da caverna – falsas noções do ser humano
como indivíduo, pois cada indivíduo, para além das
limitações da espécie, tem sua própria caverna que
corrompe ou intercepta a luz da natureza (Caverna
de Platão);
3 - ídolos do mercado ou do foro - falsas noções decor-
rentes da linguagem e da comunicação, isto é, as pa-
lavras e discursos usados na interação e associação
dos indivíduos são concebidas na vulgaridade da
Filosofia renascentista e moderna

vida, logo podem produzir inúmeras e inúteis con-


trovérsias e fantasias;
4 - ídolos do teatro – falsas noções decorrentes da filo-
sofia, ciência e cultura vigentes as quais se parecem
com fábulas e representações de mundos fictícios e
teatrais.

Esses ídolos poderiam ser combatidos através do


método indutivo de investigação, com as seguintes eta-
pas: 77
• observação para a coleta de informações;
• organização racional dos dados da observação;
• explicações gerais (hipóteses) formuladas para me-
lhor compreender o fenômeno;
• experimentações repetidas para comprovar as hipó-
teses em novas circunstâncias, até chegar à
universalização.

A lógica desse método predominou nas pesquisas


científicas até o final do século XX.
O principal representante da filosofia moderna foi
René Descartes (1596–1650), filho de prósperos burgue-
ses, ocupou-se em racionalmente representar a realida-
de através de idéias claras e distintas. Defendia que para
se chegar à verdade, antes de mais nada, é preciso colo-
car em dúvida todos os conhecimentos que se tem. Tra-
ta-se da chamada dúvida metódica ou dúvida
cartesiana.
No que diz respeito ao ser humano, entendeu que
ele era composto pela res cogitans (coisa que pensa, ser
pensante) e a res extensa (coisa extensa, o corpo). A es-
sência desse ser humano estaria no ser pensante, não na
sua corporeidade ou mundo sensível.
Descartes pôs tudo em dúvida, inclusive o conteúdo
dos próprios pensamentos, até chegar a uma única ver-
Filosofia renascentista e moderna

dade livre de qualquer dúvida, firme, segura e certa: meus


pensamentos existem. Como concluiu que os pensamen-
tos se confundiam com a existência do próprio ser
pensante, pois sua existência acontece no mundo dos pen-
samentos e das idéias, formulou a conhecida conclusão:
cogito ergo sum (latim), ou seja, penso, logo existo.
Assim, tudo o que não é idéia ou pensamento fica
em segundo plano quando se trata de descobrir a essên-
cia dos seres e fenômenos, pois o pensamento é mais
78 certo que a existência corporal. Nesse aspecto, Descar-
tes caracteriza-se como idealista. Contudo, é um dos
grandes nomes do racionalismo, pois entendia que é
necessário desconfiar de todas as sensações e percepções
sensíveis. O verdadeiro conhecimento das coisas exter-
nas só poderia ser conseguido através do trabalho lógi-
co da mente – o raciocínio.
Formulou quatro regras para um método capaz de
conhecer a essência dos seres e fenômenos.

1 - Regra da evidência – só aquilo que está absolutamen-


te evidente por causa de sua clareza e distinção pode
ser aceito como verdadeiro.
2 - Regra da análise – cada dificuldade que surgir pre-
cisa ser dividida em tantas partes quantas for neces-
sário para compreendê-la.
3 - Regra da síntese – o raciocínio precisa ser ordenado
indo do mais simples ao complexo.
4 - Regra da enumeração – realizar numerosas verifica-
ções completas e gerais para se ter certeza e confian-
ça absoluta de que nada ficou de fora.

A semelhança da lógica do método indutivo de Bacon,


as regras do método científico de Descartes definiram a
pesquisa científica experimental até o final do século XX.
Outro nome importante dessa época é Baruch
Filosofia renascentista e moderna

Espinosa (1632–1677). Ele absolutizou o racionalismo,


criticando as superstições religiosas, políticas e filosófi-
cas. A fonte de toda a superstição estaria na imaginação
que é incapaz de compreender a verdadeira ordem do
universo. Nessa incapacidade, diz que a verdadeira or-
dem do universo está em um Deus que está acima da
capacidade humana. Surge, assim, a superstição religio-
sa. Dela decorrem as superstições políticas e filosóficas.
O filósofo francês Blaise Pascal (1623–1662) remou
contra essa corrente racionalista absoluta. É dele a céle- 79
bre frase: “o coração tem razões que a própria razão des-
conhece”. Isto é, a vida humana não cabe no raciocínio
lógico-matemático. Defendia que o coração, e não a ra-
zão, sentia a Deus.
Um dos primeiros a se destacar entre o grupo que
afirma que a origem fundamental do conhecimento está
na experiência sensível (empiristas) foi Thomas Hobbes
(1588–1679). Ele desenvolveu uma visão materialista-
mecanicista da realidade. Em outras palavras, tudo pode
ser explicado a partir de dois elementos: o corpo, ele-
mento material que existe independente do pensamen-
to; o movimento que pode ser determinado matemática
e geometricamente. Logo, para tudo seria possível e ne-
cessário se estabelecer a causa. Chegaria-se a ela através
da análise dos corpos materiais e dos movimentos que
produzem ou estão envolvidos. Nessa ótica, nada acon-
tece por acaso, pois tudo o que se percebe, sente e pensa
é resultado dos movimentos dos corpos. Exemplificando:
a violência é resultado da interação dos corpos materi-
ais e dos movimentos que desenvolvem ou estão envol-
vidos.
John Locke (1632–1704), filósofo inglês, radicalizou
a idéia empirista de que tudo o que existe em nossa mente
é fruto das nossas experiências sensíveis. Logo, não há
idéias inatas, como queria Descartes, mas a mente hu-
Filosofia renascentista e moderna

mana, na hora do nascimento é uma tábua rasa. É uma


tábua lisa na qual ainda não foi escrito nada.
Locke diferenciava experiência sensorial, sensação e
reflexão. Exemplo: tenho a experiência sensorial de ver
uma laranja. A partir das qualidades da laranja, posso
ter a sensação de que ela está verde ou amarela. Através
da reflexão posso chegar a uma série de idéias que não
poderiam ser obtidas a partir dos objetos externos. As-
sim, a reflexão possibilita perceber, raciocinar, pensar,
80 crer, duvidar, etc.
Dessa forma, destinou as coisas materiais externas
como objeto da sensação e as operações da mente como
objeto da reflexão.
David Hume (1711–1776), escocês que chegou a ocu-
par cargos na diplomacia inglesa, formulou uma teoria
do conhecimento dividindo o que percebemos em im-
pressões e idéias. Impressões referem-se aos dados ob-
tidos pelos sentidos, idéias são as representações men-
tais daquilo que é percebido.
Em termos de método, destacou que o método indutivo
não tem fundamento lógico porque a universalização das
conclusões se daria pela crença ou pelo hábito, e, ambos
estão sujeitos à percepções distorcidas, não lógicas. Por
isso, o método confiável seria o dedutivo.
Essa proposta de colocar a razão em primeiro lugar,
ganhou força com uma outra perspectiva filosófica, a que
colocou a idéia em primeiro lugar – o chamado
Iluminismo. As idéias dessas duas correntes impulsio-
naram o desenvolvimento tecnológico que produziu a
industrialização.

Atividades Filosofia renascentista e moderna

Questões.
1- Comente a frase do filósofo renascentista Montaigne
“e se não o puder, fique na dúvida, pois só os loucos
têm certeza absoluta em sua opinião”.
2- Apresente, em breves palavras, as três mudanças te-
óricas propostas pela filosofia moderna.
3- Segundo Francis Bacon, o ser humano precisa livrar-
se de quatro tipos de ídolos. Quais são eles?
4- Galileu Galilei propôs um método matemático-expe-
rimental. Explique-o.
81
5 - Quais são as quatro regras do método científico se-
gundo René Descartes?
6 - Na sua percepção, que importância pode ter para o
serviço social o pressuposto de John Locke de que o
ser humano ao nascer é uma tábua rasa?

Referências comentadas
LARA, Tiago Adão. Caminhos da razão no
Ocidente: a filosofia ocidental do Renascimento aos
nossos dias. 5.ed. Coleção Caminhos da razão.
Petrópolis: Vozes, 1999. v.3.

Tiago Adão Lara com maestria traça uma espécie de


“linha do tempo” da trajetória da filosofia ocidental, fa-
cilitando a articulação e as conexões entre os diferentes
filósofos e correntes filosóficas. Logo, ajudará na com-
preensão das idéias de diferentes filósofos que estuda-
remos na seqüência. Este livro é o volume 3 da coleção
“Caminhos da Razão”.

Referências
Filosofia renascentista e moderna

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Ma-


ria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia.
São Paulo: Moderna, 2002.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13.ed. 6a.
reimpressão. São Paulo: Ática, 2006.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia – his-
tória e grandes temas. 16.ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
GOMES, Roberto. Crítica da razão tupiniquim. 10.ed.
82 São Paulo: FTD, 1994, 120p.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filo-
sofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 6.ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

Auto-avaliação
Marcar com “X” apenas as questões falsas.

1 - A filosofia renascentista caracteriza-se pela preocu-


pação em fazer renascer, recuperar ou imitar as obras
dos grandes autores gregos e romanos. ( )
2 - O renascimento da república livre do império eclesi-
ástico era uma das preocupações do Renascentismo.
( )
3 - Para a filosofia moderna, as coisas externas apenas
são conhecidas quando o sujeito as representa inte-
lectualmente. ( )
4 - A filosofia moderna defendia que a realidade é irra-
cional. ( )
5 - Para a filosofia moderna, todas as coisas precisam
sujeitar-se à razão. ( )
6 - A terceira linha filosófica que se destacou na Renas-
cença propunha que o homem não poderia ser o cons-
Filosofia renascentista e moderna

trutor de seu próprio destino. ( )


7 - Giordano Bruno contestou a idéia de que a Terra era
o centro imóvel do universo. ( )

Gabarito
V, V, V, F, V, F, V.

83
5
Filosofia
iluminista e
contemporânea
Arno Vorpagel Scheunemann é assistente
social, mestre e doutor em Teologia,
professor de graduação e pós-graduação no
Serviço Social da ULBRA/Canoas. É autor
de todos os capítulos deste livro-texto.
Arno Vorpagel Scheunemann

A filosofia iluminista ou da ilustração estende-se da


metade do século XVIII ao começo do século XIX. Iluminista
porque acreditava que a luz para compreender o ser hu-
mana não está nem em Deus, nem no império, mas na ra-
zão. Os poderes da razão foram chamados de luzes. Por
isso, Ilustração ou Iluminismo. A filosofia contemporânea
pode ser dividida em seis grandes fases, cada uma com
suas ênfases e particularidades: a romântica, a iluminista,
a materialista, a existencialista e filosofia da linguagem.
Nessa última estaríamos entrando na pós-modernidade.

5.1 A filosofia iluminista


Essa filosofia, basicamente, afirma que:

1 - a liberdade e a felicidade, sociais e políticas, podem


ser conquistadas pela razão (deixam de ser dádivas
dos deuses ou resultado das meditações metafísicas);
2 - o ser humano pode, pela razão, tornar-se perfeito, li- Filosofia iluminista e contemporânea

bertando-se dos preconceitos morais, sociais e religi-


osos e, assim, aperfeiçoar-se e progredir;
3 - através do progresso das civilizações, a razão se aper-
feiçoa (de “selvagem” à “adiantada e perfeita”, isto
é, “racional”);
4 - a natureza é o reino da necessidade (os acontecimen-
tos e coisas não podem ser diferentes daquilo que são
– não há outra possibilidade) e a civilização é o reino
da liberdade (a vontade humana pode fazer com que
os fatos e acontecimentos sejam diferentes daquilo
que são). 87
A partir desses pressupostos desenvolveu-se grande
interesse pelas ciências como alternativa de transformar
a natureza e progredir, bem como pela compreensão
racional das bases da vida econômica e social como ne-
cessidade para a construção da civilização perfeita.
O jurista francês Charles-Louis de Secondat, barão
de Montesquieu (1689 -1755), em sua principal obra O
Espírito das leis, defendeu a separação do poder em
Legislativo, Executivo e Judiciário, pois acreditava que
toda a pessoa investida de poder é tentada a abusar dele.
A divisão do poder inibiria esse abuso.
O poeta, dramaturgo e filósofo francês François-Marie
Arouet, conhecido como Voltaire (1694–1778), destacou-
se pelas críticas à prepotência dos poderosos, particu-
larmente o clero católico e à intolerância religiosa. Em
termos de política, defendeu uma monarquia, governa-
da por um soberano esclarecido, que respeitasse as li-
berdades individuais, bem como a liberdade de pensa-
mento. Dizia: “posso não concordar com nenhuma das
palavras que você diz, mas defenderei até a morte o di-
reito de você dizê-las”. Além disso, entendia que “deve-
mos julgar um ser humano mais pelas suas perguntas
que pelas respostas”.
Denis Diderot (1713–1784) e Jean de Rond
Filosofia iluminista e contemporânea

D’Alembert (1717–1783) destacaram-se por organizar


os conhecimentos científicos e filosóficos em uma enci-
clopédia de 33 volumes.
Jean-Jacques Rousseau (1712–1778), um suíço radi-
cado na França, defendeu que o Estado precisa ser con-
duzido por um soberano, mas de acordo com a vontade
geral de seu povo, buscando o bem comum. Seus elogi-
os à liberdade dos selvagens constituem-se em funda-
mentos do mito do bom selvagem.
Adam Smith (1723–1790), economista e filósofo es-
88 cocês, tornou-se o principal representante do liberalis-
mo econômico, pois, em sua obra Ensaio sobre a riqueza
das nações, defendeu que a economia deveria ser dirigida
pelo livre jogo da oferta e da procura no mercado. O
próprio mercado deveria regular-se, dispensando as re-
gulamentações do Estado. Assim, partilhou da crença
iluminista de que se as pessoas pudessem agir com li-
berdade, a racionalidade e a ordem se efetivariam dian-
te do caos.
Immanuel Kant (1724–1804), o maior filósofo do
Iluminismo alemão, entendia que a filosofia deveria res-
ponder quatro perguntas fundamentais:

1- o que posso saber?


2- como devo agir?
3- o que posso esperar?
4- o que é o ser humano?

O processo de iluminação ou ilustração do ser hu-


mano implica na saída dele da menoridade (estado em
que depende da doutrinação ou tutela de alguém) para
a independência e autonomia. Para isso, o ser humano
precisa conhecer a realidade através da razão crítica. Na
sua obra Crítica da razão pura, Kant identifica duas for-
mas diferentes do ato de conhecer: Filosofia iluminista e contemporânea

1 - o conhecimento empírico (a posteriori – depois) –


posterior à experiência, isto é, resulta dela. Ex: a afir-
mação “esta maçã é vermelha” só é possível se antes
o sujeito teve a experiência de ver a maçã.
2 - o conhecimento puro (a priori – antes) – anterior à
experiência, não depende de nenhum dado da expe-
riência. Exemplo: “duas linhas paralelas jamais se
encontram no espaço”. Essa afirmação (juízo) é a
priori porque não se refere a nenhuma linha específi-
ca e, ao mesmo tempo, a todas as linhas paralelas que 89
possam vir a existir. Por isso, é puro. Como não de-
pende de nenhuma condição específica para ser ver-
dadeiro, esses juízos puros são chamados de conhe-
cimento necessário (basta-se a si mesmo, não tem
necessidade de nenhuma coisa ou experiência sen-
sorial).

Além dos dois tipos de conhecimento, Kant concebe


dois tipos de juízos (afirmações):

1 - juízo analítico – o sujeito já traz em si o predicado.


Exemplo: o triângulo de três lados. Ou seja, o sujeito
triângulo em si já deixa claro que se trata de três la-
dos. Nesses casos, o predicado apenas elucida o que
já está no sujeito. Por isso, os juízos analíticos tam-
bém são chamados por Kant de juízos de elucidação.
2 - juízo sintético - são sintéticos porque é necessário
acrescentar algo ao sujeito. Isto é feito com o
predicado. Como o predicado amplia o sujeito, tam-
bém são chamados de juízos de ampliação. Exem-
plo: “a bola se movimenta”. Por mais que analise-
mos o conceito bola, ele não nos mostrará que ela se
movimenta. O movimento não está na bola, mas na
força que a move.
Filosofia iluminista e contemporânea

Outro pressuposto de Kant é a existência no ser hu-


mano de estruturas a priori da sensibilidade (que pos-
sibilitam a experiência) e estruturas a priori do enten-
dimento (que determinam o entendimento). Traduzin-
do, Kant afirmava que as noções de tempo e espaço exis-
tem na nossa sensibilidade antes mesmo de qualquer
experiência sensível de tempo e espaço. Da mesma for-
ma, existiriam, em nosso entendimento, categorias bási-
cas que permitem organizar os dados captados pela sen-
90 sibilidade. Essas categorias existem antes mesmo de ter-
mos qualquer experiência nesse sentido. Os principais
são: conceito de causa, necessidade, relação.
Nessa lógica, o conhecimento resulta da interação do
sujeito que conhece com o objeto. Para Kant não conhece-
mos as coisas em si mesmas, mas, tal como as percebe-
mos. Em outras palavras, conhecemos de acordo com as
nossas próprias estruturas mentais. Dessa forma Kant jul-
gava superar tanto o racionalismo quanto o empirismo.
Ou seja, a sensibilidade capta os dados dos objetos e o
entendimento determina as condições nas quais os da-
dos e os objetos serão pensados. Logo, o sujeito é
determinante de tudo no conhecer, o “objeto” precisa en-
caixar-se na estrutura lógico-racional desse sujeito.

5.2 Filosofia contemporânea


A Revolução Francesa de 1789 costuma ser vista como
marco de início dos tempos contemporâneos. A perspec-
tiva idealista-racional e iluminista de que o ser humano
seria capaz de, pela razão, realizar-se plenamente, pro-
gredir e ser feliz, fundamentou o lema dessa revolução:
“Igualdade, Fraternidade e Liberdade”. No entanto, o Filosofia iluminista e contemporânea
que se viu no século seguinte, sob a lógica do capital,
que esse ser humano degradou o ser humano, a vida, a
natureza e as relações. Pouco ou nada de “Igualdade,
Fraternidade e Liberdade” podiam ser vistos no dia-a-
dia, como mostrou o filme há pouco.
Diante dessa extrema racionalização e degradação da
vida e do trabalho resultante do processo de industriali-
zação, surge, no final do século XIX, o chamado Roman-
tismo. Esse movimento teve maior expressão nas artes e
na filosofia. Na filosofia buscou re-valorizar a intuição e
a emoção diante da supremacia da razão. Assim, exal-
91
tou as paixões e os sentimentos valorosos, valorizou a
sensibilidade e a subjetividade. Como reação à urba-
nização fria e racional retomou a idéia da natureza como
força vital. A natureza foi romanticamente exaltada e
idealizada.
Em termos racionais, o Romantismo fomentou o de-
senvolvimento do nacionalismo, das tradições nacio-
nais e estimulou o anseio pela liberdade individual.
Contudo, a “máquina capitalista” encarregou-se de
inviabilizar alguns aspectos do Romantismo e, incorpo-
rou outros na sua lógica.
Ao final do século XIX, diante do otimismo científi-
co, a própria filosofia chegou a defender que no futuro
as ciências dariam conta de tudo e que a filosofia desa-
pareceria. Contudo, no século XX, a filosofia passou a
mostrar que os princípios da ciência não são totalmente
certos. Assim, reafirmou-se no seu papel de discussão e
reflexão dos fundamentos, princípios e procedimentos
da pesquisa científica. Além disso, passou a ocupar-se
com a própria linguagem científica.
Igualmente, no final do século XIX, a própria filoso-
fia, orgulhosamente, afirmava que, pela razão, os seres
humanos haviam se livrado da superstição e da magia.
Contudo, na mesma época, Marx mostrou que temos a
Filosofia iluminista e contemporânea

ilusão de pensar com a própria cabeça e agir por nossa


própria vontade, pois desconhecemos a realidade eco-
nômica e social pela qual a classe dominante exerce po-
der sobre a mente de todos. Essa classe especializa-se
em fazer as pessoas acreditarem que suas idéias são a
idéia de todos. A isso chamou de ideologia. Freud, em
outra área do saber, mostrou que é ilusão o ser humano
pensar que tudo o que pensa, faz, sente e deseja está sob
o completo controle de nossa consciência. Mostrou que
há um poder invisível que é psíquico e social, o incons-
92 ciente.
Diante dessas descobertas, a filosofia reabriu a dis-
cussão sobre o que é e o que pode a razão, o que é e o
que pode a consciência reflexiva, bem como, sobre o que
é e o que podem as aparências e as ilusões.
Vejamos alguns autores que se destacaram nessa pri-
meira fase da filosofia contemporânea.
Georg Wilhelm Friderich Hegel (1770–1831) foi o
principal filósofo do Idealismo Alemão. Compreendê-
lo é fundamental, pois é uma das fontes de Marx, cuja
filosofia e teoria social embasaram o serviço social bra-
sileiro a partir dos anos 1960.
Hegel desenvolveu sua reflexão a partir de dois pon-
tos básicos. Primeiro: a realidade é o Espírito. Em ou-
tras palavras, a realidade é a materialização do Espírito.
Essa materialização dá-se sob a forma de processo. Logo,
a realidade não é só substância (uma coisa), é movimen-
to. Segundo: a realidade, como Espírito, possui uma vida
própria, um movimento dialético. Ou seja, ela acontece
através de momentos sucessivos e contraditórios.

O botão desaparece no desabrochar da flor, e pode-se dizer


que é refutado pela flor. Igualmente, a flor se explica por
meio do fruto como um falso existir da planta, e o fruto
surge em lugar da flor como verdade da planta. Essas for- Filosofia iluminista e contemporânea

mas não apenas se distinguem mas se repetem como in-


compatíveis entre si. Mas, a sua natureza fuida as torna,
ao mesmo tempo, momentos da unidade orgânica na qual
não somente entram em conflito, mas uma existe tão ne-
cessariamente quanto a outra; e é essa igual necessidade
que unicamente constitui a vida do todo. (HEGEL, G. W.
F. Fenomenologia do Espírito, p.6)

Assim, Hegel mostra que o desenvolvimento se dá


através do embate e da superação das contradições, isto
é, mediante um movimento dialético. 93
Enquanto Platão via a dialética no movimento da
idéia, Hegel a vê no movimento da realidade, que ele
identifica com o movimento do Espírito. Esse movimen-
to do Espírito (ou do real) se processa em três momen-
tos que podem ser assim exemplificados. A semente é
em-si a planta (a planta está nela). Mas, a semente preci-
sa morrer como semente, saindo fora-de-si, a fim de tor-
nar-se a planta para-si.
Esses momentos são chamados de tese, antítese, sín-
tese e, sucessivamente acontecem em movimento espi-
ral, logo, nunca se repetem, há um progresso contínuo.
Hegel rompe com o Romantismo, proclamando a
superioridade do Espírito. Esse Espírito também têm três
momentos:

1 - o Espírito subjetivo – refere-se ao indivíduo e à cons-


ciência individual;
2 - o Espírito objetivo – refere-se aos costumes e insti-
tuições produzidas socialmente;
3 - o Espírito absoluto - se manifesta na arte, na religião e
na filosofia. É o Espírito que compreende a si mesmo.

Assim, a moral, a ética, o direito, a família, a socieda-


de e o Estado são realizações do Espírito objetivo. E, o
Filosofia iluminista e contemporânea

Espírito absoluto produz, no plano racional, a compre-


ensão dos fundamentos e da essência daquilo que reali-
za o Espírito objetivo. Em última análise, tanto a reali-
dade quanto a compreensão dela, o conhecimento tem
sua origem na idéia, no Espírito.
Pressupondo que o real é a materialização do Espíri-
to, para Hegel “tudo o que é real é racional, tudo o que é
racional é real.”
Como falei no início, o pensamento de Hegel, princi-
palmente a dialética, retornará quando estudarmos o
94 materialismo dialético.
Não demorou muito para essa perspectiva que vê a
origem de tudo na idéia receber críticas sérias. Uma das
primeiras, Ludwig Feuerbach (1804–1872) chamou a
proposta de Hegel de “especulação vazia”, pois, para
ele, não tratava dos seres humanos reais, nem dos seres
e das coisas reais. No entender de Feuerbah, o ser hu-
mano precisa ser visto, o ser natural e social, ou seja, o
ser concreto, produto da sua existência material. Essa
perspectiva filosófica tornou-se conhecida como Mate-
rialismo.
O filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788–1860)
defendeu que Hegel era uma “charlatão”, porque de-
senvolveu sua filosofia segundo os interesses do Estado
prussiano, legitimando estruturas nefastas.
Tal como Hegel, Schopenhauer entendia que o mun-
do e tudo o que existe depende do sujeito, não existe
sem ele. Em suma, o mundo é representação do sujeito.
No entanto, enquanto Hegel via nessa representação a
manifestação do Espírito objetivo e do Espírito absolu-
to, Schopenhauer a entendia como “ilusão”, pois, na pro-
posta de Hegel, o objeto estaria sendo condicionado pelo
sujeito.
O ser humano é essencialmente vontade, não razão. Essa
vontade de sempre desejar mais levaria o ser humano a Filosofia iluminista e contemporânea

uma permanente insatisfação. Assim, a essência do ser


humano e do mundo seriam essa vontade insaciável. Essa
vontade seria a origem das lutas, da dor e do sofrimento.
Compreender a realidade e o mundo implica conhecer a
essência dessa vontade insaciável. O caminho preferencial
não seria a razão, mas a arte, pois é nela que o ser humano
se desprende da individualidade, para fundir-se no objeto,
numa entrega plena e pura. Em outras palavras, a essência
do ser humano precisa ser procurada na sua existência (seu
mundo) e não na razão pura. É emblemática nesse sentido
a principal obra de Schopenhauer: O mundo como vontade e 95
representação. Essas reflexões, aliadas as de Kierkegaard,
formarão o ponto de partida das filosofias existencialistas
do início do século XX.
O filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard (1813–
1855) destacou que Hegel não considera a subjetividade
humana e contestou a supremacia da razão afirmando
que a existência humana possui três dimensões:

1 - a dimensão estética – na qual se procura o prazer;


2 - a dimensão ética – na qual vive a contradição entre o
prazer e o dever, entre a liberdade e a contradição;
3 - a dimensão religiosa – definida pela fé, superior à
razão.

O ser humano deveria escolher em qual delas quer


viver. Em termos de importância, a estética seria a me-
nos e a religiosa a mais importante dimensão da vida.
Tomando por base essas dimensões Kierkegaard ocu-
pou-se com a análise da relação do ser humano com o
mundo, consigo mesmo e com Deus. A relação do ser
humano com o mundo (seres humanos e natureza) se-
ria regida pela angústia de, diante das instabilidades e
possibilidades dos acontecimentos, nunca termos certe-
za da realização de nossas expectativas. A relação do
Filosofia iluminista e contemporânea

ser humano consigo mesmo seria marcada pela inqui-


etação e pelo desespero, ou o ser humano está satisfeito
com suas realizações, ou não consegue realizar o que
deseja. A relação do ser humano com Deus seria o úni-
co caminho para a superação da angústia e do desespe-
ro, contudo, aqui o ser humano vive o paradoxo de com-
preender pela fé o que a razão não entende.
Augusto Comte (1789–1857), filósofo francês, foi se-
cretário de um dos “pais” do socialismo Saint Simon.
Discordou da perspectiva idealista de Hegel defenden-
96 do que “não pode haver qualquer conhecimento real
senão aquele baseado em fatos observáveis”. Sua filoso-
fia é conhecida como Positivismo, da qual é considera-
do fundador. É a corrente filosófica que mais se fez pre-
sente nas primeiras décadas do serviço social brasileiro.
Não nos deteremos nela agora, porque, mais adiante,
teremos uma aula específica para ela.
Outra reação, a que mais suscitou debates e contro-
vérsias na filosofia contemporânea, foi a do alemão Karl
Marx (1818-1883). Marx inverte a lógica dialética de
Hegel. À semelhança de Feuerbach, para ele a origem
de tudo também não está no Espírito, na idéia, mas na
realidade concreta, na materialidade da vida. Por isso,
sua filosofia é conhecida como Materialismo Dialético.
A teoria social de Marx é conhecida como Materialismo
Histórico. Ambas, a filosofia e a teoria social, são conhe-
cidas como marxismo.
Essa corrente filosófica é que a mais determina a com-
preensão da realidade, a produção de conhecimento e a
reflexão da prática no serviço social a partir do chama-
do Movimento de Reconceituação, ocorrido nos anos
1960 e 1970. Como faremos com o Positivismo, o Materi-
alismo terá uma aula específica mais adiante.
Na chamada segunda fase da filosofia contemporâ-
nea, diante da pobreza, das guerras e das incertezas pro- Filosofia iluminista e contemporânea

duzidas pela razão iluminista-idealista, surge o chama-


do Existencialismo, filosofias que se propõem a com-
preender o ser humano e o mundo a partir da existên-
cia. O foco desloca-se do “ser” (em alemão Sein - ser),
defendido pela razão, para a “existência” (em alemão
Dasein – estar aí). Além das filosofias da existência, sur-
ge uma nova perspectiva na filosofia: a que busca co-
nhecer a realidade, nem a partir do ser, nem a partir da
existência, mas a partir da linguagem como caminho de
constituição do ser, da existência e das relações. Estamos
falando da filosofia analítica ou filosofia da linguagem. 97
Voltemos nossa atenção às filosofias da existência, e,
em seguida, à filosofia da linguagem.
Diante da existência trágica de duas guerras mundi-
ais, de miséria, de fome e de pobreza na esfera do traba-
lho, as filosofias existencialistas caracterizam-se como
uma visão dramática da existência e da condição huma-
na. Albert Camus (1913–1960), filósofo francês, chegou
a afirmar que a única questão filosófica séria é o suicí-
dio.
O Existencialismo, nessas condições, entendeu o ser
humano como imperfeito, aberto e inacabado, viven-
do sob permanente risco e ameaça. A liberdade jamais
seria plena, pois encontra-se condicionada pelas circuns-
tâncias históricas. A vida humana não tem condições de
ser um caminho seguro em direção ao crescimento, ao
êxito e ao progresso, como queria o racionalismo-idea-
lista.
Além dos já citados Schopenhauer e Kierkegaard,
Nietzsche e Husserl podem ser arrolados como fontes
das filosofias existencialistas.
Friederich Nietzsche (1844–1900), filósofo alemão,
filho de pastor protestante, dedicou-se a desconstruir a
filosofia ocidental. Defendia a tese de que, a partir de
Sócrates, a filosofia ocidental negou a intuição criadora
Filosofia iluminista e contemporânea

presente nas filosofias anteriores.


A partir dos deuses gregos Apolo (deus da razão, da
clareza e da ordem) e Dionísio (deus da aventura, da
música, da fantasia e da desordem), formula as metáfo-
ras: apolíneo e dionisíaco. Entende-as como princípios
e dimensões complementares presentes em tudo. Segun-
do ele, ao optar pelo culto à razão, lá na Grécia, a filoso-
fia ocidental mutilou a compreensão da vida eliminan-
do a dimensão dionisíaca.
Essa mutilação teria criado as condições para a im-
98 posição de valores morais não construídos socialmente.
Nietzsche acreditava que não existem noções absolutas
de bem, nem de mal. Ambas as noções são produtos
histórico-culturais. O problema, segundo ele, é que o
culto à razão gerou a “moral de rebanho”, isto é, sub-
missão irrefletida aos valores dominantes cristãos e bur-
gueses. A sociedade ocidental deixou de “produzir” seus
valores de acordo com as suas condições históricas.
De maneira geral, a obra de Nietzsche mostra-se como
uma profunda crítica à civilização ocidental, particu-
larmente a massificação da vida e das pessoas, a visão
burguesa de vida, ser humano, sociedade e mundo, bem
como, o conservadorismo cristão que, por excelência,
produziu a moral de rebanho. A obra mais famosa e con-
trovertida nesse sentido é Assim falava Zaratrusta,
publicada em 1894.
As críticas de Nietzsche produziram o chamado
Niilismo. Literalmente significa “nadificar, transformar
em nada”. Isso, porque, segundo ele, ao se acabar com o
culto à razão e com o conservadorismo que produziu a
moral de rebanho, nada restou. Atestou, inclusive, a
morte de Deus. Assim, o niilismo se caracteriza pelo
processo no qual se produz um sentimento de que tudo
o que dava sentido para a vida (em termos culturais,
sociais, políticos, religiosos e econômicos) perdeu o sen- Filosofia iluminista e contemporânea

tido, já não pode mais doar sentido e fundamento para a


vida, o conhecimento e a ação humana.
Edmund Husserl (1859–1938), filósofo alemão, mor-
reu aos 79 anos proibido de lecionar e perseguido pelos
nazistas por causa da sua origem judaica. É uma das fon-
tes do existencialismo pois pesquisou a experiência hu-
mana que está antes de todo o pensamento formal.
Assim, enquanto a razão ocidental ocupou-se com a ex-
periência formal de pensar e produzir idéias mediante o
raciocínio, Husserl buscou encontrar a essência da ex-
periência sensível, anterior ao pensamento. Nas palavras 99
de Maurice Merleau-Ponty, tentou a “reabilitação
ontológica do sensível”. Em outras palavras, Husserl fez
a filosofia voltar para a existência, para as coisas como
elas são. De onde, na sua percepção, ela havia se afasta-
do cultuando a razão.
Husserl construiu um método para se conhecer a es-
sência do sensível, das coisas como elas são. Sua relfexão
filosófica e método compõe a Fenomenologia, corrente
filosófica que também marcou o serviço social a partir
de 1970. Adiante, dedicaremos uma aula específica a ela.
Martin Heidegger (1889-1976), filósofo alemão, dis-
cípulo e sucessor de Husserl na Universidade de
Freiburg, rompeu com a tendência da filosofia moderna
de estar voltada para a teoria do conhecimento.
Heidegger retomou a questão da ontologia, isto é, a in-
vestigação do ser. Essa, seria para ele, a questão central
da filosofia. Nesse sentido, diferenciou ente e ser. Ente
seria a existência, a manifestação do ser. Ser seria a es-
sência que fundamenta a existência.
Em Ser e Tempo investigou o sentido do ser a partir
do modo de ser do ser humano, ou seja, a partir do Dasein
(ser-aí, estar-aí). Nessa caminhada pontuou a existência
de três etapas na existência humana, sendo que, normal-
mente, conduzem a uma existência inautêntica. Primei-
Filosofia iluminista e contemporânea

ra, o ser humano nasce sem ter podido escolher, é lança-


do na existência em si sem saber o porquê. Segunda, o
desenvolvimento da existência é um processo no qual
o ser humano busca permanentemente realizar aquilo
que ainda não é. Logo, existir é construir um projeto.
Contudo, tanto a existência em si quanto o projeto de
existir podem gerar uma existência inautêntica, porque,
na maioria das situações o homem comum tem seu eu
destruído na banalidade do cotidiano, nas preocupações
da massa humana. Ele não consegue tornar-se si-mes-
100 mo. Torna-se o que os outros são. Seu eu é absorvido no
com-o-outro e para-o-outro. O único sentimento capaz
de fazê-lo sair dessa existência inautêntica seria a an-
gústia por perceber o quanto é impessoal, o quanto foi
banalizado, o quanto anulou seu eu para inserí-lo no
mundo do outro. Resta sentir-se como um ser-para-a-
morte.
O mais expressivo filósofo existencialista é Jean-Paul
Sartre (1905–1980), cuja obra caracteríza-se pela crítica
a teoria da potência de Sócrates e pela reflexão do ser
humano e de sua existência, mediante o ente em-si (a
plenitude do ser) e o ente para-si (ser humano na exis-
tência). Essa existência é nada porque está em perma-
nente movimento e mudança, nunca chega a estatizar-
se numa coisa. Não é por acaso que sua principal obra é
“O Ser e o Nada”.
No século XX surgiu a filosofia analítica ou da lin-
guagem que preocupou-se com a linguagem e suas re-
lações com o real, pois entendiam esses filósofos que
muitos problemas filosóficos no fundo não passavam de
mal-entendidos produzidos pelo uso ambíguo da lin-
guagem.
É possível identificar fases nessa filosofia. Na primei-
ra fase buscou-se, a partir dos princípios da lógica e da
matemática, eliminar as ambiguidades criando uma lin- Filosofia iluminista e contemporânea

guagem mais clara e lógica. O filósofo alemão Johann


Gottlob Frege (1848-1925) propôs a criação de uma lin-
guagem formal que diminuísse as imprecisões na lin-
guagem comum.
Outra fase pode ser identificada no trabalho do filó-
sofo e matemático inglês Bertrand Russel (1872–1970).
Ele acreditava que a filosofia da linguagem deveria in-
vestigar, em termos lógicos, as proposições lingüísticas
para saber o que está realmente sendo dito quando se
está afirmando ou questionando algo. Assim, a filosofia
analítica (ou da linguagem) faria uma espécie de terapia 101
lingüística, visualizando as armadilhas ocultas na lin-
guagem.
Ludwig Wittgenstein (1889–1951), filósofo austría-
co inaugurou uma nova fase na filosofia da linguagem.
Na primeira fase da sua obra, manteve-se fiel à “terapia
da linguagem” defendendo a estrutura da linguagem
deveria corresponder à realidade dos fatos. Ou seja, ela
deveria produzir um figura da realidade. Isso seria pos-
sível se os pensamentos fossem verdadeiros, ou seja, não
apresentassem ambiguidades em relação à realidade que
estão apresentando.
Na segunda fase de sua obra ele defendeu que a lin-
guagem jamais poderá expressar fielmente uma reali-
dade. Em outras palavras, “a linguagem não seria a cap-
tura conceitual da realidade, isto é, não seria a reprodu-
ção do objeto, mas sim uma atividade, um jogo. E os
jogos de linguagem adquirem seu significado no uso
social, nos diferentes modos de ser e de viver no qual a
fala está inserida” (COTRIM, 2006, p.206). Assim, a lin-
guagem deixa de ser vista como uma pintura da reali-
dade, mas como um jogo, cujo sentido não se encontra
através de uma análise lógica, mas através do estudo de
seu uso social.
A chamada Escola Crítica de Frankfurt (Alemanha),
Filosofia iluminista e contemporânea

fundada nos anos 1920, inaugurou outra fase (quase que


outra forma) no estudo da linguagem. A partir do teoria
marxiana (as formulações originais de Marx) e da teoria
freudiana (Sigmund Freud – criador da Psicanálise)
buscou formular uma teoria crítica da sociedade como
um todo (não só como um sistema de produção). Para
tal, centrou sua atenção na sociedade de massa, isto é, a
sociedade que coloca o avanço tecnológico e a lingua-
gem a serviço da lógica do capital, anestesiando as pes-
soas com consumo e diversão. Theodor Adorno, Max
102 Horkheimer, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Jürgen
Habermas e Erich Fromm são autores que se destaca-
ram nessa escola.
Max Horkheimer (1895–1973) e Theodor Adorno
(1906–1969) defenderam a tese de que a razão iluminista
não produziu igualdade, fraternidade e liberdade, mas,
dominação e exclusão, pois transformou-se numa razão
controladora e instrumental, que domina o ser huma-
no e a natureza. Não só domina, mas é instrumento da
lógica do capital. Isso teria produzido a morte da razão
crítica, transformada em razão instrumental à serviço
da indústria cultural que homogeiniza os comportamen-
tos e massifica as pessoas.
Walter Benjamin (1892–1940) partilha dessa percep-
ção, mas defende que a arte pode ser caminho e instru-
mento de politização.
Herbert Marcuse (1898-1979) destacou-se por reto-
mar o princípio freudiano da necessidade de repressão
dos instintos para a manutenção e o desenvolvimento
da civilização. Em outras palavras, as pessoas precisam
adiar o princípio do prazer para atender ao princípio
da realidade (trabalho, produção da vida e das relações).
Marcuse concordou com o princípio, mas mostrou que
a repressão do princípio do prazer estava sendo
gerenciado pela lógica do capital (não seria um proces- Filosofia iluminista e contemporânea

so natural da civilização). A partir disso, destacou que


seria possível uma civilização menos repressiva dentro
do próprio desenvolvimento tecnológico, desde que cri-
asse condições de libertação diante das imposições do
trabalho e ampliasse o tempo livre. Para tanto, seria
necessário reorientar o desenvolvimento que
homogeiniza e massifica.
Jürgen Habermas (1929) retomando a centralidade
do trabalho e a identificação do proletariado como o
agente capaz de transformar a estrutura vigente, de-
fende a ação comunicativa e a verdade intersubjetiva 103
como caminho de emancipação social e individual. Para
ele as pessoas realmente mudam de opinião quando fa-
lam entre si, e não quando ouvem, lêem ou assistem os
meios de comunicação de massa.
Habermas propõe a razão dialogal, que brota do di-
álogo e da argumentação no mundo da vida. Ele dife-
rencia entre mundo da vida (esfera não regida pela lógi-
ca da estrutura) e mundo do sistema. No mundo da vida,
razão (forma de conceber algo como verdadeiro) não
surge do ser, nem da lógica, nem da idéia, nem do raci-
ocínio puro, mas da ação comunicativa. Assim, a verda-
de deixa de ser vista como uma adequação do pensa-
mento à realidade e passa a ser concebida como fruto da
ação comunicativa. Logo, verdade intersubjetiva (en-
tre sujeitos diversos e diferentes).
Dessa forma, tanto a razão quanto a verdade são
construídas socialmente mediante o consenso. Verdadei-
ro e legítimo é aquilo que se estabeleceu pelo consenso.
Há relativo consenso de que as mudanças ocorridas
na compreensão do mundo, da sociedade e do ser hu-
mano, bem como, na produção de conhecimento a par-
tir das descobertas da Teoria Sistêmica, da Física
Quântica, da Física e Biologia Sub-atômicas, da Teoria
do Caos e da Geometria dos Fractais figuram como uma
Filosofia iluminista e contemporânea

espécie de superação da Modernidade. Alguns falam em


Pós-Modernidade, outros em Sobre-Modernidade, e, ain-
da outros, em Intensificação da Modernidade.
Fato é que nos defrontamos com filosofias qualifica-
das como pós-modernas, cuja característica principal
estaria na aceitação da pluralidade de caminhos e cultu-
ras como legítimos. Ou seja, há vários caminhos verda-
deiros para se chegar a verdade, há vários caminhos para
se conhecer os fatos e a realidade.
Nessa perspectiva Michel Foucault (1926–1984), fi-
104 lósofo e sociólogo francês, faz uma desconstrução mi-
nuciosa da sociedade moderna a partir das relações de
poder. Foucault defende a tese da microfísica ascenden-
te do poder. Um poder que se caracteriza pela
invisibilidade do seu detentor/fonte e pela visibilidade
dos subjugados. Essa invisibilidade do detentor é cons-
tituída e preservada mediante a configuração duma so-
ciedade que se organiza excluindo e subjugando pesso-
as e corpos, mediante “práticas de divisão” e de “classi-
ficação científica”. Tais práticas e classificações prescre-
vem a identidade das pessoas, privilegiando a persona-
lidade individual e individualista, voltada para a
“autoposseção” e a “autocontenção”. Assim, na verda-
de, a perpetração do poder trilha um caminho ascen-
dente, pois a origem de suas técnicas é local: as pessoas
subjugam-se a si mesmas.
O filósofo argeliano, radicado na França, Jacques
Derrida (1930–2004), um dos principais pensadores da
“geração de 68”, critica o desenvolvimento da razão oci-
dental afirmando que ela sempre impôs um centro
(Deus, homem, verdade, essência são alguns exemplos).
Derrida chama esse processo de logocentrismo e
destaca que ele constituiu-se unicamente numa lógica
de oposições - Deus-diabo; bem-mal; verdadeiro-falso,
cuja origem estaria na oposição grega entre logos (razão) Filosofia iluminista e contemporânea

e mythos (mito).
A filosofia ocidental sempre teria atribuído um valor
absoluto a um dos elementos da oposição, analisando o
outro a partir desse. Isso, segundo ele, fomentou conceitos
e concepções absolutos. Esses conceitos precisam ser
desconstruídos e compreendidos na cultura em que foram
produzidos mediante a análise da linguagem, porque a
linguagem seria a estrutura essencial de uma cultura.
Jean Baudrillard (1929-2004), filósofo e sociólogo
francês, defende a tese da espetacularização da realida-
de. Em outras palavras, a mídia teria o poder de criar 105
uma hiper-realidade e convencer as pessoas de que ela
é mais real que a própria realidade. Ou seja, simula uma
realidade e “fecha” as pessoas dentro dela. Esse proces-
so ele denomina de simulacro.

Atividades
Questões.
1- Por que filosofia Iluminista?
2- Comente as quatro afirmações básicas do Iluminismo.
3- Relacione com o trabalho do assistente social a frase
de Voltaire: “devemos julgar um ser humano mais
pelas suas perguntas que pelas respostas”.
4- Explique as duas formas de conhecimento concebi-
das por Immanuel Kant: conhecimento puro e co-
nhecimento empírico.
5- Quais foram os dois pontos básicos da filosofia de
Hegel?
6- Construa ou busque em livros e na Internet um exem-
plo da dialética hegeliana: tese – antítese – síntese.
Filosofia iluminista e contemporânea

Referências comentadas
OLIVEIRA, Manfredo; ALMEIDA, Custódio. O Deus
dos filósofos contemporâneos. 1.ed. Coleção Cristi-
anismo e Libertação. Petrópolis: Vozes, 2003. 247p.

O autor considera a questão de Deus como uma ques-


tão que, de algum modo, atinge a todos. Para ele, é des-
sa dimensão que se deve partir para qualquer outra con-
sideração ulterior do que seria Deus. O livro enfoca o
106
lugar central ocupado por Deus na vida humana na pers-
pectiva da filosofia moderna.

Referências
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Ma-
ria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia.
São Paulo: Moderna, 2002.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13.ed. 6a.
reimpressão. São Paulo: Ática, 2006.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia – his-
tória e grandes temas. 16.ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filo-
sofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 6.ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

Auto-avaliação
Assinale “V” (Verdadeiro) ou “F” (Falso).

Filosofia iluminista e contemporânea


1 - Para o Iluminismo, a liberdade e a felicidade, sociais
e políticas, podem ser conquistadas pela razão. ( )
2 - Adam Smith afirmou: “posso não concordar com
nenhuma das palavras que você diz, mas defenderei
até a morte o direito de você dizê-las”. ( )
3 - Jean-Jacques Rousseau fundamentou o mito do bom
selvagem. ( )
4 - Conforme Immanuel Kant, não conhecemos as coi-
sas em si mesmas, mas tal como as percebemos. ( )
5 - O Romantismo buscou re-valorizar a intuição e a
emoção diante da supremacia da razão. ( )
107
6 - Para Shopenhauer a vontade insaciável do ser hu-
mano seria a origem das lutas, da dor e do sofrimen-
to. ( )
7 - Segundo Kierkegaard, a existência humana tem três
dimensões: a estética, a ética e a política.
8 - No entender de Marcuse, na Modernidade as pesso-
as precisam adiar o princípio do prazer para atender
o princípio da realidade. ( )

Gabarito
V, F, V, V, V, V, F, V.
Filosofia iluminista e contemporânea

108
6
Correntes
filosóficas:
positivismo e
neotomismo
Arno Vorpagel Scheunemann é assistente
social, mestre e doutor em Teologia,
professor de graduação e pós-graduação no
Serviço Social da ULBRA/Canoas. É autor
de todos os capítulos deste livro-texto.
Arno Vorpagel Scheunemann

Iniciaremos pelo Positivismo, pois a neutralidade e


objetividades científicas positivistas tornaram-se carac-
terísticas do Neotomismo no Brasil.

6.1 O Positivismo
O pai e criador do Positivismo é Augusto Comte
(1789–1857), nascido em Montpellier, na França. Ele cons-
truiu um sistema filosófico com a intenção de superar a
incerteza e os aspectos vagos, presentes na filosofia ide-
alista. Defendia que o espírito humano é incapaz de ob-
ter noções absolutas, por isso deveria abandonar a bus-
ca pela origem e destino do universo e suas causas ínti-
mas, e dedicar-se a, pelo raciocínio e pela observação,
descobrir suas leis de funcionamento, suas relações in-
variáveis de sucessão e semelhança. Essa deveria ser a

Correntes filosóficas: positivismo e neotomismo


preocupação da filosofia porque a necessidade básica da
inteligência é conhecer as leis dos fenômenos
Em 1844 Augusto Comte, após separar-se da primei-
ra mulher com quem manteve um casamento de 18 anos,
conhece a irmã de um de seus alunos, Clotilde de Vaux,
esposa abandonada de um cobrador de impostos (que
fugira para a Bélgica após algumas irregularidades fi-
nanceiras). Em 1845, aos 47 anos, declara a esta mulher
de 30 seu amor fervoroso. “Eu a considero como minha
única e verdadeira esposa não apenas futura, mas atual
e eterna”. Clotilde oferece-lhe sua amizade e morre em
6 de abril de 1846.
Comte sente então sua razão vacilar, mas entrega-
se corajosamente ao trabalho. Entre 1851 e 1854 escre- 111
ve os enormes volumes do Sistema de política positiva
ou Tratado de sociologia que institui a religião da humani-
dade. O último volume sobre o futuro humano prevê
uma reformulação total da obra sob o título de Síntese
Subjetiva.
Desde 1847, Comte proclamou-se grande sacerdote
da religião da humanidade. Institui o “Calendário
Positivista”, funda numerosas Igrejas Positivistas (ain-
da existem algumas como exemplo no Brasil). Ele mor-
reu em 1857.
Mas, o que é Positivismo? Positivismo é o nome dado
a uma corrente filosófica porque aceitava unicamente
como fundamento da verdade os dados positivos obti-
dos pelo método científico. Ou seja, a verdade não esta-
va no ser, nem no Espírito, nem na experiência sensível
(ou sensorial), mas nos dados positivos. Nada além dos
fatos observáveis poderia ser aceito como base para o
conhecimento.
Positivos são os dados da experiência que confirmam
uma hipótese como verdadeira. Positivo também indica
tudo aquilo que não é ocioso, tudo o que é útil ao aper-
Correntes filosóficas: positivismo e neotomismo

feiçoamento individual e coletivo. Positivo, igualmente,


indica a característica da filosofia que deve guiar o ser
humano para a certeza (que é positiva), eliminando o
vago (que é negativo). Por fim, designa o contrário de
negativo, sinalizando que o objetivo da filosofia não é
destruir (negativo), mas organizar (positivo).
Para Comte, antes da humanidade chegar à forma
positivista de conhecer os fenômenos, ela passou por
estágios inferiores. Ao todo, ele concebeu três estágios:

1 - estágio teológico ou fictício – no qual os fenômenos


do mundo são vistos como produção de seres sobre-
naturais. Nessa fase, o espírito humano procurou
112 descobrir a natureza íntima dos seres, suas causas
primeiras e finais. Contudo, não a partir dos fenôme-
nos, mas a partir de agentes sobrenaturais.
2 - estágio metafísico ou abstrato - no qual as forças
sobrenaturais do estágio teológico foram substituí-
das por forças abstratas presentes na natureza mais
íntima dos seres do mundo. Ou seja, idéias, pensa-
mentos, convicções, o Espírito, a razão capazes de
produzir e trazer sentido para os fenômenos. Comte
defendia que é necessário deixar de lado toda a espe-
culação metafísica e limitar-se tão-somente ao positi-
vamente dado, aos fatos imediatos da experiência.
3 - estágio científico ou positivo – no qual o espírito
humano, deixando de lado a preocupação com a ori-
gem, causas e destino do universo e dos fenômenos,
mediante a observação e raciocínio, descobre e expli-
ca as leis que efetivamente, na prática, constituem os
fenômenos, com vistas à elaboração das leis gerais
que regem os fenômenos naturais.

Essa busca pelas leis gerais distingue o Positivismo


do Empirismo, pois não reduz o conhecimento aos fatos

Correntes filosóficas: positivismo e neotomismo


observados. Comte defendia que com essas leis gerais o
ser humano seria capaz de prever os fenômenos natu-
rais. Seu lema era ver para prever.
Esse Positivismo tem o amor por princípio, a ordem
por base e o progresso por fim. Trata-se da confiança
iluminista no permanente progresso, mas, um progres-
so submetido à ordem. Isto é, para haver progresso pre-
cisa, antes, existir ordem. Base do lema que define a ban-
deira nacional brasileira.
Na sua obra Discurso dobre o Espírito positivo, Comte
destaca seis características que definem o Positivismo,
diferenciando-o das demais ciências.

113
1 - Realidade - positivismo preocupa-se apenas com a
pesquisa de fatos concretos, deixando de lado as es-
peculações sobre causas e origens dos fenômenos.
2 - Utilidade - busca conhecimentos que positivamente
contribuem para o aperfeiçoamento individual e co-
letivo.
3 - Certeza - os conhecimentos positivos possibilitariam
o estabelecimento da harmonia lógica (certeza) na
mente dos indivíduos. Essa certeza produziria a har-
monia em toda a espécie humana.
4 - Precisão - a certeza produzirá a precisão, isto é, enun-
ciados rigorosos, sem ambigüidades, opondo-se ao
vago das especulações metafísicas.
5 - Organização - conhecimento positivo, preciso e cer-
to é um conhecimento que é produzido mediante um
processo organizado, metódico e sistematizado.
6 - Relatividade - o conhecimento positivo não é um
conhecimento absoluto, pois é relativo aos dados
obtidos em relação aos fatos. Ou seja, é um conheci-
mento que defende o aperfeiçoamento e ampliação
contínuos dos conhecimentos já estabelecidos.
Correntes filosóficas: positivismo e neotomismo

A objetividade científica, tão defendida pelo


racionalismo moderno, constituiu-se numa das caracterís-
ticas fundamentais da relação sujeito-objeto no Positivismo,
uma vez que os únicos dados aceitos como fundamento
do conhecimento e da verdade eram os dados positivos
obtidos através do método científico. Disso decorre outra
característica, a neutralidade da ciência, do sujeito e do
conhecimento. A ciência positiva ocupava-se com a expli-
cação dos fatos, sem preocupar-se com as causas ou finali-
dades. Dessa forma, dizia-se neutro em relação às políticas
vigentes. A neutralidade do sujeito deveria ser tamanha
que nem na primeira pessoa do singular ele poderia ex-
114 pressar o resultado da investigação científica.
Essa objetividade seria tamanha que o fato social
deveria ser considerado uma coisa. Isto é, um objeto que,
à semelhança das ciências biológicas, se coloca sobre a
mesa para dissecar suas partes. Daí a máxima de Émile
Durkheim (1858-1917), pai da sociologia funcionalista
moderna: “o fato social é uma coisa”. Ao chegar-se a sua
parte menor, onde se encontra a lógica simples do seu
funcionamento, tería-se condições de explicar a comple-
xidade do todo.
Essa lógica de compreensão fez com que o
Positivismo não se interessasse pelo movimento
diacrônico dos fatos e fenômenos. Em outras palavras,
como a causa dos fatos não lhe parecia ser objeto da filo-
sofia, não haveria razão para decifrar o processo históri-
co de constituição dos fatos. Para o Positivismo, as leis
inerentes aos fenômenos explicariam os próprios fenô-
menos e fatos. Assim, seu interesse estava no movimen-
to sincrônico de todas as partes que compõem determi-
nado fenômeno.
Partindo do conhecimento assim caracterizado, defen-
deu a reforma da sociedade a fim de restabelecer as idéi-

Correntes filosóficas: positivismo e neotomismo


as (opiniões) e as ações (costumes) das pessoas. Tratava-
se de uma reestruturação intelectual das pessoas e não
uma reestruturação das relações e instituições sociais.
Essa reestruturação deveria começar pela reorganização
intelectual, passando pela moral, para chegar na política.
Defendeu essa ordem na reestruturação porque en-
tendia que a Revolução Francesa tinha deixado de lado
conhecimentos e valores importantes da sociedade tra-
dicional européia, sem conseguir colocar outros no lu-
gar. Essa seria uma das grandes tarefas da filosofia
positivista. Daí a necessidade de se começar a
reestruturação pela reforma intelectual e moral.
Em relação aos trabalhadores, Comte defendia que
deveria receber uma doutrinação positiva para fazê-los 115
gostar do trabalho, pois “a felicidade real é compatível
com todas e quaisquer condições, desde que sejam de-
sempenhadas com honra e aceitas convenientemente”
(COMTE, Augusto. Discurso sobre o espírito positivo,
p.85).
Nos últimos anos Comte criou a religião positivista,
a qual chamou de religião da humanidade. Nessa reli-
gião Clotilde de Vaux, mulher por quem Comte apaixo-
nou-se profundamente depois de separar-se após 18
anos de casamento, virou a deusa. Os santos eram gran-
des pensadores como Dante, Shakespeare, Galileu,
Adam Smith e outros.
O Positivismo balizou a pesquisa, a produção de
conhecimento e a prática profissional nos séculos XIX e
XX. No serviço social brasileiro não foi diferente. A com-
preensão da realidade e a prática realizadas pelo servi-
ço social no Brasil, da origem (1930) a 1960 foram deter-
minadas pelo Positivismo.
Em termos de compreensão da realidade, partia-se
do princípio positivista da harmonia universal. Ou seja,
o todo, por natureza, tende à harmonia e ao equilíbrio.
Correntes filosóficas: positivismo e neotomismo

Logo, se algo não está bem é porque uma ou mais partes


do todo devem estar fora da ordem do todo.
A partir dessa perspectiva o objeto do serviço social,
de 1930 a 1945 (mais ou menos) era a ordem, a higiene e
a moral. Buscava-se melhorar o indivíduo através de
uma doutrinação positiva a respeito da pessoa, da vida,
do trabalho, da higiene, da ordem e da moral. Essa me-
lhora do indivíduo proporcionaria sua harmonização
com o todo da sociedade, isto é, instauraria a ordem ne-
cessária para se ter progresso.
A busca dessa ordem e progresso, aliados ao princí-
pio positivista de que a ciência é neutra pois explica os
fatos a partir das regras de interação de suas partes, bem
116 como o pressuposto de que o fato social é uma coisa,
fomentou uma prática profissional que se dizia neutra
politicamente. Essa neutralidade inviabilizou qualquer
análise crítica dos processos e relações sociais.
De 1945 a 1960 a perspectiva positivista continuou
definindo a compreensão da realidade, a produção de
conhecimento e a prática profissional. Contudo, o foco
mudou da melhora do indivíduo para a busca da har-
monia social, melhorando as relações implicadas na
chamada situação social problema. Ampliou o foco da
intervenção, mas permaneceu a neutralidade e a pers-
pectiva da harmonização ao todo. Ou seja, mesmo que a
parte não seja mais o indivíduo, a lógica de adaptá-la ao
todo, que é harmônico, permaneceu.
A objetividade da racionalidade positivista fomen-
tou a estanque separação entre sujeito e objeto no traba-
lho profissional no serviço social. Em nome da objetivi-
dade científica, o assistente social estava proibido de
proximidades relacionais, afetivas ou emocionais com o
usuário, que na época, em função da influência da psi-
cologia, era chamado de cliente.

Correntes filosóficas: positivismo e neotomismo


6.2 O Neotomismo
Para falarmos do Neotomismo, é importante
revisitarmos a filosofia de Tomás de Aquino – o
Tomismo.
Tomás de Aquino (1226–1274), colocou a filosofia
aristotélica a serviço da religião. Enfatizou a importân-
cia da realidade sensorial, definindo princípios básicos
para conhecê-la:

• o princípio da não-contradição – nada pode ser e não


ser ao mesmo tempo;
117
• o princípio da substância – substância é a essência
do ser, o acidente é a qualidade acessória, não essen-
cial;
• o princípio da causa eficiente – ou seja, todos os se-
res que captamos pelos sentidos são contingentes
(não possuem em si mesmos a causa eficiente de sua
existência) e, para existir precisam de outro ser que
seja sua causa eficiente. Esse ser é chamado por ele
de necessário;
• princípio da finalidade – todo o ser existe em função
de uma finalidade, sua causa final.
• o princípio do ato e da potência – todo o ser contin-
gente possui duas dimensões: o ato (o que é na exis-
tência atual) e a potência (o que pode vir a ser, sua
capacidade ainda não realizada). Toda e qualquer
mudança precisa ser explicada a partir dessa passa-
gem do ato para a potência.

Tomás de Aquino destacou-se também pela sua Suma


teológica, na qual propõe cinco provas racionais da exis-
tência de Deus:
Correntes filosóficas: positivismo e neotomismo

1 - Deus é o primeiro motor - Tudo o que existe é movi-


do por algo ou por outro ser. O primeiro ser movente,
o primeiro motor é Deus.
2 - Deus é a causa primeira - Tudo o que existe possui
uma causa eficiente, isto é, algo que a produziu. Deus
é a causa-primeira a partir da qual tudo existe.
3 - Deus é o ser necessário (que sempre existiu) - Todo
o ser contingente pode existir e deixar de existir. Se
tudo pode deixar de existir, alguma vez, nada exis-
tiu. Isso seria impossívvel, pois tudo o que existe pas-
sa a existir a partir de algo que já existia. Logo, preci-
sa haver um ser que sempre existiu, a causa de todos
118 os seres. Esse ser necessário é Deus.
4 - Deus é o ser máximo e pleno - Entre os seres perce-
be-se diferentes graus de perfeição. Se é possível en-
contrar mais ou menos perfeição nos seres contingen-
tes, é necessário admitir um ser de perfeição máxi-
ma e plena. Esse ser é Deus.
5 - Deus é o ser inteligente que dirige todas as coisas
da natureza para que cumpram sua finalidade de ser.
Tudo o que existe sem inteligência própria, existe para
uma finalidade. Deus é o ser inteligente que cuida
do cumprimento da finalidade de ser de todos os
outros seres.

Neotomismo é uma corrente filosófica do século XIX


que defendia o retorno da filosofia e da teologia de san-
to Tomás de Aquino, o Tomismo. Trata-se de uma em-
preitada que buscou justificar racionalmente a revela-
ção divina do cristianismo, baseando-se em Aristóteles.
As primeiras idéias neotomistas surgiram no Collegio
Alberoni, de Piacenza, Itália, na segunda metade do sé-
culo XVIII. O movimento, no entanto, afirmou-se com o
grupo fundador da revista Civilitá Cattolica, publicada

Correntes filosóficas: positivismo e neotomismo


em Nápoles, a partir de 1850 e, posteriormente, também
em Roma.
Com a encíclica de Leão XIII Aeterni patris (1879) que
defendia a filosofia como a base da fé cristã, surgem dife-
rentes centros de estudo e difusão do tomismo, como o Ins-
tituto Superior de Filosofia, na Universidade de Louvain,
os institutos católicos de Paris, Lyon, Madri e Washington,
a Universidade de Friburgo, na Suíça, e outros.
O papa Pio XII declarou a inviolabilidade da doutri-
na de santo Tomás de Aquino com a encíclica Doctor
Angelici, em 1914, fundamento de toda ciência das coi-
sas naturais e divinas. Na encíclica Studiorum ducem
(1925), além de o doutor Angélico, foi declarado doutor
comum ou universal da Igreja. 119
Alceu Amoroso Lima, conhecido como Tristão de
Ataíde, e o padre Leonel Franca foram os mais destaca-
dos representantes do neotomismo no Brasil. Esse mo-
vimento perdeu força após a Segunda Guerra Mundial.
Será o primeiro sistema filosófico a influenciar e funda-
mentar o serviço social. Fomentou um serviço social que:

• não admitia contradição, ocupando-se em identificar


aquilo que é e aquilo que não é em cada realidade,
acontecimento e pessoa;
• combatia todos os aspectos e elementos diferentes e
distoantes como sendo “problemas” que precisam ser
eliminados para que se possa conhecer e vivenciar a
verdadeira essência dos fatos e das pessoas;
• identificava as “pessoas desajustadas” como seres
contingentes que “precisam de uma causa eficiente”
(o assistente social) para que possam existir;
• considerando a não-contradição, defendeu como cau-
sa final a harmonia do todo e instituiu o “ajustamen-
to” do indivíduo ao todo como causa final, tanto da
existência do indivíduo quanto do trabalho do assis-
Correntes filosóficas: positivismo e neotomismo

tente social;
• concebendo o ato e a potência como qualidades do
indivíduo, definiu a “melhora do indivíduo” (torná-
lo aquilo que por natureza ele pode ser) como seu
objeto. Logo, realizar a potência inerente em ato era
um processo individual-pessoal, não social, dispen-
sando a compreensão e articulação contextual-estru-
turais. Tratava-se de desenvolver as potencialidades
do indivíduo, como se sua fragilização fosse resulta-
do de algum desajuste nesse desenvolvimento;
• não buscava as causas sociais e estruturais das desi-
gualdades e desajustes pois, ou eram da vontade de
Deus que os permitia (se aconteceu ou está nessa si-
120 tuação é porque Deus quer), ou as providenciava (era
a causa delas). Se Deus permitia é porque como o ser
máximo e pleno, de alguma forma, estava dirigindo
esse indivíduo para realizar a finalidade de seu ser.
O trabalho do assistente social seria uma das ativida-
des que o ajudariam a perceber essa finalidade últi-
ma de seu ser.

Assim, a concepção de ser humano dos primeiros


assistentes sociais era metafísica. Concebiam a pessoa
humana como portadora de “valor soberano a qualquer
outro valor temporal” (FERREIRA, T.P, 1939, p.28). De-
fendiam que sua existência era regulada por duas ins-
tâncias, uma temporal e outra determinante sobre a pri-
meira, a atemporal, a instância na qual a pessoa cami-
nha para a vida eterna. A partir dessa concepção, esses
assistentes sociais vinculavam o exercício profissional a
princípios não submetidos ao movimento histórico.
Igualmente, recusavam o comunismo porque estaria
defendendo um projeto societário fundamentado em
uma compreensão materialista de ser humano que se
choca com o conceito de pessoa humana constituído de

Correntes filosóficas: positivismo e neotomismo


corpo e alma, portanto, com uma instância material e
outra espiritual.
Os primeiros assistentes sociais acreditavam que uma
das maneiras possíveis para alcançar o bem comum era
o retorno aos antigos modelos associativos das
corporações medievais, identificados como formas de
preservar o princípio natural da vida associativa neces-
sária para que o homem, ser incompleto sem a socieda-
de, possa atingir seu fim último.
A idealização do modelo medieval não se limita às
corporações. Os assistentes sociais criticavam os valores
morais e as diretrizes políticas e econômicas nascidas
no mundo moderno, entendiam que esse mundo sofria
uma crise na vida espiritual. A partir disso, o trabalho 121
do assistente social junto aos trabalhadores consistia em
“orientar vocações, prevenir acidentes de trabalho, me-
lhorar as condições de vida do empregado e, ao mesmo
tempo, garantir o rendimento da empresa, estabilizar as
condições de trabalho, implementar medidas de prote-
ção à saúde, etc.” (RIBERA, 1940, p.6). Esse trabalho de-
veria girar “em torno da situação física e moral do tra-
balhador” (RIBERA, 1940, p.6) Assim, no desempenho
de suas tarefas, o assistente social intervém na esfera da
preservação da dignidade humana e do desenvolvi-
mento da personalidade.
A família era outra instância fundamental sobre a qual
deve recair o trabalho do serviço social. Entendia-se que
a família é um meio através do qual o ser humano se
desenvolve para viver em harmonia na sociedade. Vista
como a instância intermediária entre o ser humano e a
sociedade, deveria ser a base da educação para a ordem
social. Sem cumprir esse papel, “a família gera proble-
mas de natureza individual e social”. A causa dessa fa-
lha está no laicismo que “na sua marcha destruidora da
ordem social [...] culminou na destruição da família”
Correntes filosóficas: positivismo e neotomismo

(JUNQUEIRA, H.I. Ação social e serviço social. Revista


de Serviço Social: São Paulo, Ano 2, n.20, 1940, p.9).
Outra concepção de família revela a intencionalidade
da ordem e da moral positivista e neotomista presentes
no trabalho das assistentes sociais. A família é o “ambien-
te natural à formação dos homens”. Em “ambientes pro-
míscuos e sem formação moral”, os quais, muitas vezes,
devem-se à “precariedade de habitações” como os corti-
ços, “situações como a de concubinato, abandono do lar
pelo chefe, mãe solteira, separação de cônjuges, menores
pervertidos e alcoolismo” (TELLES, 1940b, p.9), a família
e o seu papel são comprometidos, corrompidos.
O trabalho sobre a família que vive nessas condições
122 deve começar pelo próprio homem, o qual, para viver
dignamente, precisa “possuir o mínimo de bem-estar”
(TELLES 1940b, p.9). Assim, conclui a autora, o trabalho
educativo como o “gosto pela ordem e o asseio” deve
ser acompanhado da viabilização de uma “habitação
aconselhável” (TELLES 1940b, p.9).

Atividades
Questões.
1 - No seu entender, o amor, a ordem e o progresso do
Positivismo deveriam fundamentar o trabalho do (a)
assistente social? Por quê?
2 - Comente a frase: “a neutralidade não é possível no
trabalho do assistente social”.
3 - Relacione as principais influências no Neotomismo
no serviço social.

Referências comentadas

Correntes filosóficas: positivismo e neotomismo


RIBEIRO JÚNIOR, João. O que é Positivismo. 10.ed.
São Paulo: Brasiliense, 1991. 77p.

Ótimo livro para uma primeira “navegada” no


Positivismo. Fácil de ler, e, ao mesmo tempo, suficiente-
mente profundo para compreender os pressupostos e a
lógica do Positivismo.

COMTE, Auguste. Discurso sobre o Espírito positi-


vo: ordem e progresso. Porto Alegre: Globo, 1976.
129p.

123
“Beber na fonte” é imprescindível para se compreen-
der uma corrente filosófica ou um filósofo. Essa obra é
um clássico que traz os pressupostos do Positivismo na
ótica de seu criador.

Referências
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Ma-
ria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia.
São Paulo: Moderna, 2002.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13.ed. 6a.
reimpressão. São Paulo: Ática, 2006.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia – his-
tória e grandes temas. 16.ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filo-
sofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 6.ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
Correntes filosóficas: positivismo e neotomismo

Auto-avaliação
Assinale com “X” apenas as alternativas verdadei-
ras.

1- Conforme Comte, as características do Positivismo


são: realidade, utilidade, certeza, precisão, organiza-
ção e relatividade. ( )
2- A partir do Positivismo o serviço social brasileiro ti-
nha como objeto a ordem, a higiene e a moral. ( )
3- Ao trabalhar a ordem, a higiene e a moral, os assis-
tentes sociais buscavam a transformação da estrutu-
ra da sociedade. ( )
124
4- Ainda com base no Positivismo, o serviço social bus-
cou a harmonia social nos anos 1945 a 1960. ( )
5- Baseados no Neotomismo, os assistentes sociais cos-
tumavam identificar as “pessoas desajustadas” como
seres contingentes que precisam de uma causa efici-
ente para que possam existir. ( )
6- A partir da idealização dos modelos medievais, o tra-
balho dos assistentes sociais brasileiros consistia em
“orientar vocações, prevenir acidentes de trabalho,
melhorar as condições de vida do empregado e, ao
mesmo tempo, garantir o rendimento da empresa;
estabilizar as condições de trabalho, implementar
medidas de proteção à saúde, etc.” ( )

Gabarito
V, V, F, V, V, V.

Correntes filosóficas: positivismo e neotomismo

125
7
Correntes
filosóficas:
materialismo
dialético –
princípios e leis
Arno Vorpagel Scheunemann é assistente
social, mestre e doutor em Teologia,
professor de graduação e pós-graduação no
Serviço Social da ULBRA/Canoas. É autor
de todos os capítulos deste livro-texto.
Arno Vorpagel Scheunemann

O Racionalismo e o Idealismo afirmavam que tudo


se originava do espírito e da idéia. O Empirismo defen-
dia que a experiência, o experimento científico deveria
ser a base para a compreensão da vida e a produção do
conhecimento. O Positivismo destacou que os dados
positivos da experiência científica possibilitariam um
conhecimento tal que se poderia explicar as regras ge-
rais de funcionamento do mundo e dos fenômenos. O
Materialismo, por sua vez, defendeu que a matéria é a
base e a origem de tudo. Ou seja, tudo se origina da ex-
periência concreta, real, inclusive as idéias e a consciên-
cia. Dito de outra forma quer compreender a história real
do ser humano a partir das condições materiais em que
vive. Friederich Engels, amigo e colaborador de Marx,
chamou isso de Materialismo Histórico.

Correntes filosóficas: materialismo dialético – princípios e leis


7.1 Karl Marx: vida e obra
Apresentarei aqui a biografia construída por Lênin.
Ela pode ser encontrada nas Obras Escolhidas, Alfa
Omega.
Karl Marx nasceu em 5 de maio de 1818, em Trier
(Prússia renana). O pai, advogado, israelita, converteu-
se em 1824 ao protestantismo. A família, abastada e cul-
ta, não era revolucionária. Marx entrou na Universida-
de de Bona e depois na de Berlim; aí estudou direito e,
sobretudo história e filosofia. Em 1841 defendeu uma
tese de doutorado sobre a filosofia de Epicuro. Em
Berlim, aderiu ao círculo dos “hegelianos de esquerda”
(Bruno Bauer e outros) que procuravam tirar da filoso- 129
fia de Hegel conclusões ateias e revolucionárias.
Hegelianos de esquerda ou jovens hegelianos: corrente
idealista na filosofia alemã dos anos 30-40 do século XIX,
que procurava tirar conclusões radicais da filosofia de
Hegel e fundamentar a necessidade de transformação
burguesa da Alemanha. O movimento dos jovens
hegelianos era representado por D. Strauss, B. e E. Bauer,
M. Stirner entre outros. Durante certo tempo, também
L. Feuerbach partilhou as suas idéias, bem como K. Marx
e F. Engels na sua juventude.
Ao sair da universidade, Marx fixou-se em Bona, onde
contava tornar-se professor. Mas, a política reacionária
de um governo que, em 1832, tinha tirado de Ludwig
Feuerbach a cadeira de professor, recusando-lhe
nova-mente o acesso à universidade em 1836, e que proi-
bira o jovem professor Bruno Bauer de fazer conferênci-
as em Bona em 1841, obrigou Marx a renunciar a uma
carreira universitária.
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Nessa época, o desenvolvimento das idéias do


hegelianismo de esquerda fazia, na Alemanha, rápidos
progressos. A partir, sobretudo de 1836, Ludwig
Feuerbach começa a criticar a teologia e a orientar-se para
o materialismo, ao qual, em 1841, adere completamente.
Nessa altura os burgueses radicais da Renânia, que
tinham certos pontos de contacto com os hegelianos de
esquerda, fundaram em Colônia um jornal de oposição,
a Gazeta Renana Rheinische Zeitung (für Politik), Handel
und Gewerbe (Gazeta Renana de Política, Comércio e
Indústria), diário publicado em Colônia entre 1º de ja-
neiro de 1842 e 31 de março de 1843. A partir de abril de
1842, K. Marx colaborou na Gazeta Renana, e a partir de
outubro do mesmo ano tornou-se um dos seus redato-
res, passando o jornal a revestir-se de um caráter demo-
crático revolucionário. Em janeiro de 1843, o governo
130 da Prússia decretou o encerramento da Gazeta Renana.
Marx e Bruno Bauer foram os seus principais colabora-
dores e, em outubro de 1842, Marx tornou-se o redator-
chefe, mudando-se então de Bona para Colônia. Sob a
direção de Marx, a tendência democrática revolucioná-
ria do jornal acentuou-se cada vez mais e o governo co-
meçou por submetê-lo a uma dupla e mesmo tripla cen-
sura e acabou por ordenar a sua suspensão completa a
partir de 1º de janeiro de 1843. Marx viu-se obrigado a
deixar o seu posto de redator, mas a sua saída não sal-
vou o jornal que foi proibido em março de 1843.
Em 1843, Marx casou-se, em Kreuznach, com Jenny
von Westphalen, amiga de infância, de quem já era noi-
vo desde o tempo de estudante. A sua mulher pertencia
a uma família nobre e reacionária da Prússia. O irmão
mais velho de Jenny von Westphalen foi ministro do in-
terior na Prússia numa das épocas mais reacionárias, de
1850 a 1858.
Em setembro de 1844, Friedrich Engels esteve em

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Paris por uns dias, e desde então tornou-se o amigo mais
íntimo de Marx. Ambos tomaram uma parte muito ati-
va na vida agitada da época dos grupos revolucionários
de Paris (especial importância assumia então a doutrina
de Proudhon, uma corrente anticientífica do socialismo
pequeno-burguês, hostil ao marxismo). Criticando a
grande propriedade capitalista a partir de posições pe-
queno-burguesas, Proudhon sonhava em perpetuar a
pequena propriedade privada, propunha que fossem
organizados os bancos “do povo” e de “troca”, que, se-
gundo ele, permitiriam aos operários obter meios de
produção próprios e de tornarem-se artesões, e garantir
a venda “justa” dos seus produtos.
Em 1845, a pedido do governo prussiano, Marx foi
expulso de Paris como revolucionário perigoso. Foi para
Bruxelas, onde fixou residência. Na primavera de 1847,
Marx e Engels filiaram-se numa sociedade secreta de 131
propaganda, a “Liga dos Comunistas”, tiveram papel
destacado no II Congresso dessa Liga (Londres, novem-
bro de 1847) e por incumbência do congresso redigi-ram
o célebre Manifesto do Partido Comunista, publicado em
fevereiro de 1848. Essa obra expõe, com uma clareza e
um vigor geniais, a nova concepção do mundo, o mate-
rialismo conseqüente aplicado também ao domínio da
vida social, a dialética como a doutrina mais vasta e mais
profunda do desenvolvimento, a teoria da luta de clas-
ses e do papel revolucionário histórico universal do pro-
letariado, criador de uma sociedade nova, a sociedade
comunista.
Quando eclodiu a revolução de fevereiro de 1848,
Marx foi expulso da Bélgica. Regressou novamente a
Paris, que deixou depois da revolução de março para
voltar à Alemanha e fixar-se em Colônia. Foi aí que apa-
receu, de 1º de junho de 1848 até 19 de maio de 1849 a
Nova Gazeta Renana, na qual Marx foi o redator-chefe. A
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nova teoria foi brilhantemente confirmada pelo curso dos


acontecimentos revolucionários de 1848-1849 e posteri-
ormente por todos os movimentos proletários e demo-
cráticos em todos os países do mundo. A contra-revolu-
ção vitoriosa arrastou Marx ao tribunal (foi absolvido
em 9 de fevereiro de 1849) e depois expulsou-o da Ale-
manha (em 16 de maio de 1849). Voltou então para Pa-
ris, de onde foi igualmente expulso após a manifestação
de 13 de junho de 1849, e partiu depois para Londres,
onde viveu até o fim dos seus dias.
As condições dessa vida de emigração eram extre-
mamente penosas. Marx e a família viviam literalmente
esmagados pela miséria; sem o apoio financeiro cons-
tante e dedicado de Engels, Marx não teria terminado O
Capital, e teria, fatalmente, sucumbido à miséria.
Marx desenvolveu numa série de trabalhos históri-
132
cos (ver bibliografia) a sua teoria materialista, dedican-
do-se, sobretudo ao estudo da economia política com
Contribuição para a Crítica da Economia Política (1859) e O
Capital (r. i, 1867).
A época da reanimação dos movimentos democráti-
cos, no final dos anos 1850 e nos anos 1860, levou Marx a
voltar ao trabalho prático. Foi em 1864 (em 28 de setem-
bro) que se fundou em Londres a célebre I Internacional,
a “Associação Internacional dos Trabalhadores”. Marx foi
forjando uma tática única para a luta proletária da classe
operária nos diversos países. Depois da queda da Comuna
de Paris (1871) - a qual Marx analisou (em A Guerra Civil
em França, 1871) de uma maneira tão penetrante, tão jus-
ta, tão brilhante, tão eficaz e revolucionária - e depois da
cisão provocada pelos bakuninista, a Internacional não
pôde continuar a subsistir na Europa. Depois do Congres-
so de 1872, em Haia, Marx conseguiu a transferência do
Conselho Geral da Internacional para Nova lorque.

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A sua atividade intensa na Internacional e os seus tra-
balhos teóricos, que exigiam esforços ainda maiores, aba-
laram definitivamente a saúde de Marx. Prosseguiu a sua
obra de transformação da economia política e de acaba-
mento de O Capital, reunindo uma massa de documentos
novos e estudando várias línguas (o russo, por exemplo),
mas a doença impediu-o de terminar O Capital.
Em 2 de dezembro de 1881, morre a sua mulher.
Em 14 de março de 1883, Marx adormecia pacificamen-
te, na sua poltrona, para o último sono. Foi enterrado
junto da sua mulher no cemitério de Highgate, em Lon-
dres. Vários filhos de Marx morreram muito jovens, em
Londres, quando a família atravessava uma grande mi-
séria. Três das suas filhas casaram com socialistas ingle-
ses e franceses: Eleanor Aveling, Laura Lafargue e Jenny
Longuet; um dos filhos dessa última é membro do Parti-
do Socialista Francês. 133
Além de centenas de artigos, publicados em revistas
de diferentes países, Marx publicou:

• Sobre as diferenças entre a filosofia natural de


Demócrito e Epicuro, em 1841;
• A questão judaica, em 1844;
• Crítica à filosofia do direito de Hegel, em 1844;
• Manuscritos econômicos e filosóficos, em 1844;
• A sagrada família, em 1845;
• A ideologia alemã, em 1846;
• A miséria da filosofia, em 1847;
• O manifesto comunista, em 1848;
• A luta de classes na França, em 1850;
• O 18 Brumário de Luis Bonaparte, em 1852;
• O julgamento dos comunistas de Colônia, em 1853;
• Uma contribuição à crítica da economia política, em
1859;
• Salário, preço e lucro, em 1865;
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• A guerra civil na França, 1871;


• O Capital, volumes I e II em 1867 e 1885. O volume
III foi publicado após a sua morte, em 1894.

7.2 Visão materialista de


história
A concepção materialista histórica apresenta três ca-
racterísticas importantes:

1 - Materialidade do mundo - tudo o que existe – fenô-


menos, objetos e processos sociais – é matéria, pois
são aspectos diferentes da matéria em movimento.
2 - Matéria é anterior à consciência – a consciência e a
134 idéia são reflexos da matéria que existe objetivamen-
te e não o contrário. Matéria compreende toda a re-
alidade que existe independente das idéias ou von-
tade individuais e subjetivas dos seres humanos. Ou
seja, todos os fenômenos da natureza têm existência
própria. Todos têm uma existência própria, indepen-
dente daquilo que deles pensamos e se neles pensa-
mos. Matéria “é qualquer objeto ou fenômeno natu-
ral com existência e características próprias que ocu-
pa um lugar no tempo e no espaço” . Em outras pala-
vras, matéria compreende tudo aquilo que causa sen-
sações em nossos órgãos sensoriais. Isto é, “a maté-
ria é uma realidade objetiva que nos é dada pelas sen-
sações” (V. I. Lênin). Esta matéria pode ser refletida
pela consciência.
3 - O mundo é conhecível – ou seja, pela razão, o ser
humano pode conhecer a essência e a causa de todos
os fenômenos e objetos que compõem o movimento
histórico da matéria.

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A visão materialista já existia antes de Marx realizar
suas reflexões. Ludwig Feuerbach foi um dos principais
formuladores dessa compreensão de mundo. Uma das
coisas que Marx criticou em Feuerbach foi o aspecto
mecanicista de sua visão, pois dizia que a natureza per-
manece sempre igual, apenas muda em quantidade. Essa
visão era decorrente das grandes descobertas dos sécu-
lo XVII e XVIII na matemática e na mecânica, as quais
atestavam que o mundo funciona como uma enorme
máquina. Marx, no entanto entendia que o mundo é so-
cialmente construído, logo ele pode e deve ser transfor-
mado superando as desigualdades e injustiças. Para com-
preender essa realidade socialmente construída, propôs
a dialética. Não a dialética de Hegel, que partia do prin-
cípio de que tudo o que existe e acontece é produzido
pela idéia. Idéia que, não se sabe certo como, mas já exis- 135
tia antes de o mundo existir. De Hegel, Marx aproveitou
as idéias do eterno movimento, do desenvolvimento
do Espírito (pensamento) universal e, principalmente,
seu método dialético.
A contradição mais séria que Marx denunciou no
método dialético de Hegel é que, mesmo reconhecendo
que nada é eterno e imutável, nega o desenvolvimento
da natureza e da sociedade, limitando-o ao movimento
do espírito. Nesse Espírito, que é independente e livre
das limitações da realidade, estaria a essência da reali-
dade. Dessa forma, a essência da opressão, por exem-
plo, é espiritual, não material, concreta. Significa que,
mesmo sendo oprimido materialmente, o trabalhador
não deveria se preocupar com essa opressão, mas com a
espiritual. Hegel chegou a essa conclusão pois pensava
que a ausência de escravidão no Estado prussiano era
sinônimo de liberdade absoluta, de ausência de explo-
ração.
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Marx inverteu essa lógica de compreensão. Hegel


entendia que ricos e pobres formam uma luta de contrá-
rios, pois estão intimamente ligados e, ao mesmo tem-
po, se excluem. Da interação dialética dos dois seriam
possíveis mudanças quantitativas que, ao final, produ-
ziriam uma nova qualitativa: uma sociedade harmonio-
sa. Marx deixou claro que isso jamais seria possível. A
estrutura precisaria ser transformada produzindo uma
nova, na qual não houvesse mais pobres e ricos.
Feuerbach materializou o idialismo de Hegel. Con-
tudo, ao conceber o movimento da história, permane-
ceu metafísico, pois dizia que a natureza e a sociedade
encontravam-se em sono e imóveis, sem possibilidade
de mudança.
Para Marx, o ser humano não poderia ser compreen-
dido de forma abstrata como queria Hegel, nem de for-
136 ma isolada como queriam Feuerbach e Prudhon. O ser
humano deveria ser compreendido nas relações sociais,
pois são elas que formam o ser humano. Nas suas teses
contra Feuerbach afirmou: “A essência humana (...) é o
conjunto das relações sociais” (MARX, Karl. Teses con-
tra Feuerbach. 2.ed. Coleção Os Pensadores. São Paulo:
Abril Cultural, 1978).
O jeito de sentir, pensar, agir e se comportar é produ-
to dessas relações sociais. Essas relações, por sua vez,
são determinadas pela maneira como as pessoas traba-
lham e produzem os meios necessários para a vida, ou
seja, pelo seu modo de produção. No prefácio de Para a
crítica da economia política, Marx afirmou: “O modo de
produção da vida material condiciona o processo geral
da vida social, política e espiritual”.
O que é um modo de produção na concepção de
Marx? Modo de produção é a maneira pela qual os se-
res humanos obtêm os bens que necessitam para viver
(seus meios de existência material). Compreende as for-

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ças produtivas e as relações de produção. Relações de
produção são as relações que as pessoas estabelecem
entre si durante o seu processo de produção, troca e con-
sumo dos seu meios de existência material. Ou seja, são
as relações sociais no processo produtivo. Os meios de
produção compreendem tudo o que os seres humanos
empregam para originar bens materiais (máquinas, fer-
ramentas, energia). As forças produtivas compreendem
os meios de produção, os seres humanos e sua experiên-
cia acumulada na produção.
A estrutura social de um modo de produção, para
Marx, é constituída por dois níveis:

• a infra-estrutura ou base econômica e material;


• a superestrutura, ou seja, o conjunto das instituições,
das idéias, da cultura de uma sociedade, que com-
porta duas instâncias: 137
• a jurídica (o direito e o Estado);
• a ideológica (religião, moral, política, etc.).

A infra-estrutura condiciona a superestrutura, e não


a determina. Olhando de forma dialética a relação entre
infra-estrutura e a superestrutura, podemos afirmar que,
se por um lado a infra-estrutura condiciona a superes-
trutura, essa, por sua vez, também condiciona a infra-
estrutura. Dessa forma, se a produção material
condiciona determinada ideologia ou determinado tipo
de consciência, por outro lado, esse mesmo determina-
do tipo de consciência condiciona a realização daquele
determinado tipo de produção material.
Marx, partindo da perspectiva materialista de
Feuerbach, mostrou que não há liberdade nem no Es-
tado prussiano, pois o próprio trabalho não livre (como
acontecia no Estado prussiano) aliena o trabalhador.
Ou seja, no trabalho não livre há o pagamento pelo
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trabalho realizado, mas uma parte do que deveria ser


pago, fica no bolso de quem paga pelo trabalho. As-
sim, o trabalhador é alienado de algo que lhe perten-
ce por direito.
Alienação significa passar de uma coisa a outra sem
perceber, privar alguém de algo que lhe pertence. Com-
preender e explicar esse processo histórico-social dessa
alienação na sociedade capitalista é a primeira grande
empreitada de Marx, publicado como Manuscritos Eco-
nômicos e Filosóficos, em 1844. Nessa obra Marx explicita
o processo de diferentes tipos e formas de alienação:
política, religiosa e econômica.
A primeira alienação denunciada por Marx é a alie-
nação do ser-genérico do ser humano. Ou seja, todos os
seres humanos formam uma unidade, uma espécie de
ser-genérico que engloba todos. Esse ser genérico frag-
138 menta-se a partir do momento em que se divide em gru-
pos restritos e egoístas com a intenção de monopolizar o
conhecimento, a riqueza, etc.
A segunda forma é a alienação do objeto. Como Marx
a explica? Ele mostra que ao produzir algo, o trabalha-
dor coloca sua força, suas emoções, seus projetos nos
objetos produzidos. Assim, os objetos contêm uma par-
te do ser humano que os produziu. Se o objeto voltasse
para ele, tudo o que saiu dele voltaria. Contudo, não é o
que acontece, pois o trabalhador, cada vez menos, con-
segue usufruir daquilo que produz. O ser humano pro-
duz sem ter acesso ao valor de uso daquilo que produ-
ziu. Assim, cada vez mais é separado, alienado dos ob-
jetos que produz, essa é a alienação do objeto.
Acontece que, além de separar o ser humano do objeto
que produziu, o objeto produzido vira mercadoria. Vira
um produto com valor de mercado, isto é, com valor de
troca. Esse valor de troca é superior ao custo de produção.
Assim, ao vender, o dono da mercadoria lucra pela segun-

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da vez. Na primeira, não pagou o quanto devia, fazendo
com que o pagamento do trabalhador seja inferior àquilo
que produziu, impossibilitando seu poder de compra. Na
segunda vez, ele coloca um valor superior ao custo de pro-
dução, dificultando ainda mais o acesso do trabalhador ao
produto do seu trabalho. Esse processo duplo de apropria-
ção é chamado por Marx de processo de mais-valia.
A terceira forma é a alienação de si, isto é, o fruto do
trabalho pode voltar ao ser humano que o produziu sem
que ele reconheça na mercadoria a parte de si objetivada
nela. Como se dá esse processo? O objeto produzido
entra no anonimato do mercado através de mãos estra-
nhas. E, ao voltar, retorna como algo estranho, como algo
que o oprime, fazendo com que o ser humano torne-se
estranho a si mesmo. Nesse processo, o ser humano, além
de perder o controle sobre sua obra, torna-se escravo de
si próprio, ou seja aliena-se de si mesmo. 139
A quarta forma é a alienação do homem. Ou seja, se
um ser humano teve o produto do seu trabalho apropri-
ado por outro, deixou de ser humano e foi transformado
num animal que trabalha sem usufruir aquilo que pro-
duziu. O apropriador agiu como uma animal predador,
também alienando-se. Assim, na sociedade capitalista,
todos, exploradores e explorados, só existem sob forma
alienada. A sociedade é alienada.
A quinta é a alienação do trabalho. Para Marx, o ser
humano se humaniza através do trabalho. É o único ani-
mal que transforma a natureza para atender suas necessi-
dades. Contudo, na sociedade alienada, o trabalho dei-
xou de ser um meio de humanização. Limita-se a ser um
meio para sobreviver. No trabalho alienado surge uma
inversão trágica. Isto é, quando o ser humano não traba-
lha de forma consciente, deixa de ser humano. Foi trans-
formado em animal, em apêndice da máquina e do capi-
tal. Hoje, o capitalismo se especializou em alienar, espe-
Correntes filosóficas: materialismo dialético – princípios e leis

cialmente, a vida fora do trabalho.


Nesse processo de sucessivas e simultâneas aliena-
ções, produz-se a apropriação privada dos meios de pro-
dução socialmente inventados e construídos. A riqueza
social (os meios de produção da vida) que deveria ser
de todos, acaba na mão de poucos. Essa é a forma máxi-
ma de alienação, pois a mais profunda essência do ser
humano, seu ser, sua criatividade, é transformada em
propriedade daquele para quem o ser humano vendeu
a si mesmo para comprar o que é produzido pelo pró-
prio processo que o alienou dos objetos, de si e do traba-
lho. Exemplificando, para sobreviver, o trabalhador ven-
de sua essência (aquilo que o torna humano) sua força
de trabalho. Mas, não a vende para qualquer um. Ven-
de-a justamente para aquele que já o alienou de todo o
resto, o dono do capital. E a alienação maior, vende a si
140 mesmo para comprar o que ele mesmo produziu, mas
que lhe foi alienado de tal forma que não se percebe na
mercadoria. Por fim, a contradição máxima, ao fazê-lo
(vender-se) está materializando a única forma capaz de
dar continuidade ao seu processo de alienação. Ou seja,
o trabalhador alienado, ao trabalhar, cria e mantém as
condições da sua própria alienação.
Marx expressou isso nos Manuscritos Econômicos e
Filosóficos de 1844:
Enquanto o homem não tiver se reconhecido como
ser humano e, conseqüentemente, não organize o mun-
do humanamente, a sua natureza social se manifestará
somente sob a forma de alienação e o seu sujeito, o ho-
mem, será um estranho para si mesmo.
Antes de continuarmos é preciso destacar o que é uma
categoria fundamental no Materialismo Dialético. Tra-
balho é toda a atividade na qual o ser humano usa sua
energia para satisfazer suas necessidades ou atingir al-
gum objetivo. Assim, trabalho é a atividade de funda-

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dor do ser humano. Isto é, o trabalho o torna humano. O
trabalho diferencia-o dos animais. Ao se degradar o tra-
balho, degrada-se a natureza do ser humano.
É através do trabalho que o ser humano se relaciona
com a natureza e dela se apropria, bem como, constrói
um novo mundo – o da cultura. Nas disciplinas de Pro-
cesso de Trabalho esta categoria será aprofundada.

7.3 Princípios e leis do


materialismo dialético
Antes de abordarmos esse tema é importante clarifi-
carmos, materialismo histórico, materialismo dialético
e marxismo.
141
Marxismo compreende o Materialismo Histórico e o
Materialismo Dialético, conforme concebidos por Marx.
De maneira simplificada podemos dizer que materi-
alismo dialético é a filosofia marxista que compreende
todos os fenômenos, seres, relações e idéias como refle-
xos, como produtos do movimento dialético da matéria.
Logo, nada pode ser compreendido fora desse movimen-
to da matéria.
O materialismo histórico é a teoria social marxista
que estuda as leis sociológicas que caracterizam e deter-
minam a vida da sociedade. Essa teoria social busca fun-
damento no movimento dialético da matéria, e na cons-
tituição material da vida e da sociedade, demonstrar
como a sociedade, os seres humanos e os objetos são
produzidos e se produzem. Para isso formulou princí-
pios, leis e categorias. É o que vamos conhecer agora.

Princípios e leis da dialética


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O Materialismo Dialético apresenta dois princípios


fundamentais e três leis, e a partir delas trabalha com
diferentes categorias, das quais se destacam seis.
Os dois princípios fundamentais são:

1 - Princípio da conexão universal de objetos e fenô-


menos, ou seja, tudo se relaciona.
Essencialmente, a matéria se caracteriza pela
interconexão de todos os fenômenos e objetos. Ne-
nhum elemento existe isoladamente. Essa interligação
é determinada por leis objetivas. Por exemplo, a Re-
volução Francesa não existe sem a revolução e, por
sua vez, a revolução não existe sem a Revolução Fran-
cesa. Em outras palavras, a Revolução Francesa (par-
te) está interligada com o processo revolucionário
universal (todo) e vice-versa. Nessa perspectiva, qual-
142
quer mudança, desenvolvimento ou transformação
somente será possível em interligação e movimento.

2 - Princípio do movimento e do desenvolvimento, isto


é, tudo se transforma pelo movimento e pelo desen-
volvimento.
Nada está estático. Como dizia Heráclito (por volta
de 500 a.C.), não podemos nos banhar duas vezes no
mesmo rio. A fonte do movimento são as contradi-
ções internas, presentes em todos os objetos e fenô-
menos. Por exemplo, uma criança já traz em si o seu
contrário (a contradição). Ao tornar-se 100% criança,
deixará de ser criança.
Nessa perspectiva, a causa do desenvolvimento e da
transformação está nos próprios objetos e fenômenos
da natureza, e da sociedade, não em alguma força
externa ou sobrenatural. O desenvolvimento é pro-
duzido através do acúmulo de mudanças quantita-

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tivas. Havendo as mudanças quantitativas necessá-
rias, produzir-se-á a mudança qualitativa. Por exem-
plo, à medida que alguém cursa as disciplinas vai
realizando mudanças quantitativas no seu processo
de formação. Ao realizar todas as mudanças quanti-
tativas necessárias como aluno, surgirá uma nova
qualidade: não mais será aluno, será graduado.

A partir do primeiro princípio surgiu a primeira Lei


da Dialética Materialista: a lei da unidade e luta dos
contrários. A partir do segundo princípio formularam-
se as outras duas leis. A lei da transformação da quanti-
dade em qualidade e vice-versa, a segunda. E a lei da
negação da negação, a terceira.
A lei da unidade e luta dos contrários mostra que os
aspectos, elementos e forças internas dos fenômenos e
objetos são contrários, excluem-se mutuamente. Contu- 143
do, ao mesmo tempo, um não pode existir sem o outro.
Voltando ao exemplo da formação acadêmica, as disci-
plinas cursadas e as não cursadas excluem-se mutua-
mente. Contudo, umas são necessárias às outras e vice-
versa. E, ao mesmo tempo, formam uma unidade. Marx
mostrou que essa é a lógica entre os donos do capital e
os trabalhadores. São opostos. Lutam entre si, mas for-
mam uma unidade: a sociedade capitalista.
A lei da transformação da quantidade em qualida-
de e vice-versa mostra que nenhuma nova qualidade
pode ser produzida sem mudanças na quantidade. Ou
seja, uma transformação dialética compreende um pro-
cesso sucessivo de mudanças quantitativas. Quando se
transforma algo sem as mudanças quantitativas neces-
sárias, nega-se o processo dialético. Nesse caso, estaria
se usando uma força externa que impõe uma nova qua-
lidade. Isso seria dominação, pois não permitiu que as
contradições internas, dialeticamente, produzissem a
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transformação. Por exemplo, querer impor o título de


bacharel em Serviço Social, sem antes ter cursado todas
as disciplinas (mudanças quantitativas). A contradição,
a luta entre as disciplinas cursadas e aquelas a cursar
produzirá a nova qualidade: bacharel. Outro exemplo,
um grupo impor uma nova forma de ser, sem permitir
que todos os sentimentos, idéias e forças contraditórias
possam ser mobilizadas. A transformação qualitativa
dialética sempre haverá de ser produzida pela luta de
seus contrários, ou será instaurado um processo de do-
minação.
O materialismo dialético diferencia qualidade e pro-
priedade. Qualidade compreende as características in-
ternas que expressam a natureza de um fenômeno ou
objeto. Exemplo: uma pessoa pode apresentar a quali-
dade de aluna, ou a qualidade de bacharel. Assim a qua-
144 lidade de bacharel compreende tudo o que a faz ser uma
bacharel, isto é, ter a qualidade de bacharel. A proprie-
dade “é a manifestação externa de uma qualidade em
sua interação com outro fenômeno” (RICHARDSON,
1999 , p.48). Em outras palavras, a qualidade de bacha-
rel em Serviço Social interagindo em uma situação de
maus tratos apresenta algumas propriedades, isto é, al-
gumas coisas que lhe são próprias, que fazem parte do
seu ser bacharel ao defrontar-se com uma situação de
maus tratos. Assim, a qualidade de bacharel em Serviço
Social se manifesta, se mostra:

• no acolhimento da vítima;
• na análise do conteúdo e da forma do mau trato;
• na descoberta das suas causas e da sua essência;
• na identificação do individual, do particular e do
geral;
• na articulação das possibilidades e recursos para a
superação do mau trato.

Correntes filosóficas: materialismo dialético – princípios e leis


Poderíamos relacionar mais propriedades da quali-
dade de bacharel em Serviço Social ao interagir com o
fenômeno dos maus tratos, mas esses já mostram o que
é próprio de uma assistente social ao interagir com esse
fenômeno. Tudo o que é próprio do seu ser assistente
social nessa interação, constitui o conjunto de suas pro-
priedades.
A lei da negação da negação. A transformação
dialética, além de negar todas as contradições internas
(disciplinas não cursadas), nega as próprias negações (as
disciplinas cursadas). Exemplificando, um grão de mi-
lho é negado e em seu lugar nasce uma planta. A planta
é negada e, em seu lugar nasce uma espiga (um conjun-
to de grãos). Esses grãos são negados ao nascer outra
planta e assim, sucessivamente, num processo em espi-
ral (nenhum ciclo repete o anterior, sempre reedita). 145
Outro exemplo, ser aluna de serviço social traz consi-
go contradições de luta, de contrários internos: as disci-
plinas cursadas e as não cursadas. Durante a primeira
negação (1ª disciplina) já é aluna, mas só será plenamente
aluna quando cursar todas as disciplinas. Cada discipli-
na cursada é uma negação do fato de “não ser aluna” (cada
disciplina cursada afirma que é aluna). No entanto, ao
negar todos os elementos (disciplinas) que me fazem não-
aluna, transforma-a plenamente em aluna. Ser 100% alu-
na nega todas as outras negações porque deixa de ser alu-
na e torna-se bacharel (a nova qualidade, a negação da
negação). De forma resumida: a não-aluna foi negada pela
aluna (negação) e a aluna foi negada pela bacharel (nega-
ção da negação). Novamente não-aluna. Contudo, dife-
rente, transformada em relação à primeira não-aluna.
Percebe-se assim, o processo dialético da tese, antí-
tese e síntese. A tese “não-aluna” traz consigo uma tese
contrária (antítese) que nega a anterior: “aluna”. A
Correntes filosóficas: materialismo dialético – princípios e leis

interação dialética entre a “não-aluna” e a “aluna” pro-


duz uma síntese “bacharel”. Essa síntese não é simples
“resumo” das teses anteriores, mas é algo distinto e novo
que resulta da interação das duas teses anteriores. É uma
nova tese.

Atividades
Questões.
1 - Como você entende o pressuposto materialista de que
“a matéria é anterior à consciência”?
2 - Explique a compreensão marxista de Modo de Pro-
dução.
3 - Busque ou formule um exemplo para cada um dos
tipos de alienação concebidos por Marx.
146
Referências comentadas
Quem desejar ampliar e aprofundar o que foi abor-
dado nesse capítulo poderá ler:

NETO, José Paulo. O que é marxismo? 9.ed. São Pau-


lo: Brasiliense, 1994, 84p.

Trata-se de um livro pequeno, mas coerente e pro-


fundo. Uma espécie de primeiros passos bem ampara-
dos na compreensão do que é marxismo.

COLLIN, Denis. Compreender Marx. Petrópolis:


Vozes, 296p.

Para ler Marx e tentar compreendê-lo, é preciso aban-


donar todas as reconstruções: não se trata de um siste-

Correntes filosóficas: materialismo dialético – princípios e leis


ma acabado, mas de níveis de reflexão e de argumenta-
ção diferentes, longe de serem sempre coerentes entre
eles. Marx é um crítico virulento das filosofias sistemá-
ticas, dessas representações do mundo que pretendem
ter resposta para tudo; ele não deixou sistema. Por con-
seguinte, compreender Marx não é resumi-lo em algu-
mas teses prontas para a vulgarização, mas seguir passo
a passo um procedimento essencialmente crítico. Essa
obra, literalmente, contribui, de forma didaticamente
coerente, a compreender Marx.

Referências
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Ma-
ria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia.
São Paulo: Moderna, 2002. 147
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13.ed. 6a.
reimpressão. São Paulo: Ática, 2006.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia – his-
tória e grandes temas. 16.ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filo-
sofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 6.ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
RICHARDSON, Roberto Jarry. Pesquisa social: méto-
dos e técnicas. 3.ed. São Paulo: Atlas, 1999. 334p.
ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxis-
mo ocidental nas trilhas do materialismo histórico.
São Paulo: Boitempo, 2004, 239p.

Auto-avaliação
Assinale com “X” apenas as alternativas Falsas.
Correntes filosóficas: materialismo dialético – princípios e leis

1 - Marx, ao refletir sobre a alienação, identificou cinco


tipos ou estágios de alienação: alienação do ser - ge-
nérico do ser humano; alienação do objeto; alienação
de si; alienação do homem; alienação do trabalho. ( )
2 - A mais-valia, no entender de Marx, refere-se ao salá-
rio que o patrão paga a mais para o trabalhador. ( )
3 - No marxismo, o trabalho é visto como a atividade de
fundador do ser humano, ou seja, sem trabalho a pes-
soa deixa de ser humana. ( )
4 - O Materialismo Dialético é a filosofia marxista. ( )
5 - O princípio marxista da conexão universal de obje-
tos e fenômenos afirma que tudo o que existe se arti-
cula subjetivamente. ( )
6 - A lei marxista da unidade e luta dos contrários mos-
tra que todos os objetos e fenômenos já trazem em si
a sua própria negação. ( )
148
7 - Para o marxismo a qualidade de um objeto ou fenô-
meno compreende as características internas que ex-
pressam sua natureza. ( )

Gabarito
V, F, V, V, F, V, V.

Correntes filosóficas: materialismo dialético – princípios e leis

149
8
Correntes
filosóficas:
materialismo
dialético –
exigências, cuidados
e categorias
Arno Vorpagel Scheunemann é assistente
social, mestre e doutor em Teologia,
professor de graduação e pós-graduação no
Serviço Social da ULBRA/Canoas. É autor
de todos os capítulos deste livro-texto.
Arno Vorpagel Scheunemann

Além de abordar as exigências, cuidados e categori-


as dialéticas, traçarei a trajetória do marxismo depois de
Marx.

8.1 Exigências e cuidados no


Método Dialético
Para compreender essa estrutura e os indivíduos, os

Correntes filosóficas: materialismo dialético – exigências,cuidados e categorias


fenômenos e objetos que a compõem, o Materialismo
Dialético faz algumas exigências:

• 1ª exigência: objetividade da análise. A prioridade é


o estudo da essência objetiva do fenômeno. Para isso,
estuda-se todas as conexões, elementos e aspectos que
o compõem. A análise dialética deve mostrar um
quadro objetivo das tendências de desenvolvimento
e das forças que determinam um fenômeno.
No exemplo da surra, significa mostrar as forças e as
tendências (possibilidades) de desenvolvimento ten-
do como base a essência, as causas, a forma e a reali-
dade objetivas da surra. A vontade, desejos, esperan-
ças e sentimentos subjetivos serão vistos como pro-
dutos, como resultados, como aparência dessa reali-
dade objetiva profunda, determinou a surra. Logo,
não entram como elementos que poderiam ser a cau-
sa de possíveis desenvolvimentos. Isso significa que,
por exemplo, se o pai dissesse: “Sei que a surra não
vai se repetir”; essa afirmação teria que ser vista como
elemento da aparência. As condições reais dela se
153
realizar (essência), constituirão os argumentos para
a análise materialista dialética objetiva mostrar se essa
afirmação apresenta-se como uma possibilidade ou
não.
Toda a manifestação subjetiva, para o Materialismo
Dialético, é produto da realidade material objetiva
da sociedade. Logo, a essência e a forma dos fenôme-
nos não podem ser procurados nela.

• 2ª exigência: análise completa dos elementos e pro-


cessos que integram os fenômenos. Equivale a cla-
rificar as propriedades, conexões e qualidades de cada
elemento e processo. Para visualizar essas proprie-
dades, conexões e qualidades é necessário descobrir:
Correntes filosóficas: materialismo dialético – exigências,cuidados e categorias

- o que é de individual, particular e geral;


- a essência e a aparência, as causas e os efeitos;
- o conteúdo e a forma;
- a realidade e as possibilidades;
- se é uma necessidade ou se trata-se de mera ca-
sualidade.

• 3ª exigência: procurar as causas e os motivos. Essas


nunca serão produto exclusivo da vontade pessoal
dos indivíduos envolvidos. Logo, ninguém poderá
ser responsabilizado individualmente por nada. A
causa, que sempre é objetiva e estrutural, indicará a
natureza do fenômeno em questão.

• 4ª exigência: análise historicamente concreta dos


fenômenos e processos sociais. Ou seja, considerar o
espaço (o lugar), o período e a duração (tempo) do
fenômeno. Articular o fenômeno com a história pes-
soal e a história social dos indivíduos envolvidos.

154
Além das exigências, é importante sinalizar alguns
cuidados fundamentais:

1ª - consciência metódica que considera as categorias e


exigências acima. Logo, vai além da percepção sensí-
vel dos fenômenos;
2ª - trânsito entre o individual e o geral e vice-versa para
compreender a unidade dialética do fenômeno. Sem
esse trânsito é impossível identificar a interação
dialética entre a estrutura, superestrutura e o cotidi-
ano dos sujeitos históricos.
3ª - análise da totalidade e de suas partes. Essa análise
compreende tanto o movimento diacrônico (através
do tempo, da história) quanto o sincrônico (interação

Correntes filosóficas: materialismo dialético – exigências,cuidados e categorias


dos elementos num determinado momento históri-
co).

8.2 Categorias do Método


Dialético
Abordarei as categorias, exigências e cuidados, por-
que a intenção não é me limitar à compreensão teórico-
filosófica do Materialismo Dialético, mas articular co-
nhecimentos que possibilitem transformar o mundo,
como queria Marx. E, para que essa transformação se
torne possível, preciso, além de compreender a visão
Materialista Dialética de mundo e a compreensão Mate-
rialista Histórica da sociedade capitalista, preciso
“instrumentalizar-me” para intervir nessa realidade.
Para isso preciso descobrir categorias, exigências e cui-
dados importantes para uma intervenção baseada nesse
materialismo. Richardson apresenta-os de forma clara e
155
didática. Logo, será minha principal referência nessa aula
(RICHARDSON, Roberto J. Pesquisa social: métodos e
técnicas. 3.ed. São Paulo: Atlas, 1999. 334p.).
Categorias articulam os conceitos básicos que refle-
tem os aspectos essenciais e as relações dos objetos e fe-
nômenos. No Materialismo Dialético, as categorias têm
duas funções básicas: interpretar o real e indicar uma
estratégia política. Nesse sentido, são instrumentos
metodológicos para analisar os fenômenos da natureza
e da sociedade. Não é necessário usar todas elas, pois
todas estão relacionadas entre si. Cada categoria sinali-
zará particularidades e peculiaridades de diferentes as-
pectos. Logo, o importante não é usar todas, mas “ir a
fundo” em cada uma delas. Pode-se compreender um
Correntes filosóficas: materialismo dialético – exigências,cuidados e categorias

fenômeno com apenas uma categoria, claro que não


abrangerá todos os aspectos.

• 1ª categoria: individual – particular – geral


Nada na sociedade ou na natureza é igual. Igualmen-
te, não há nenhum objeto ou fenômeno que não te-
nha traços em comum com outros. Por exemplo, to-
das as folhas de plantas são diferentes, mas todas têm
traços em comum. Assim, o individual e o geral es-
tão ligados. Um não existe sem o outro. Essa catego-
ria contribui na compreensão da natureza, do mun-
do e da sociedade como uma unidade.
Exemplificando:

Natureza Individual Particular Geral

Inanimada Ferro Metal Elemento Químico

Animada Rosa Flor Planta

Social Revolução Revolução Revolução


Cubana Socialista Social

Social Surra Violência Física Violência


156
Em termos sociais, essa categoria possibilita verifi-
car a abrangência, a interconexão essencial de cada
fenômeno e objeto.

• 2ª categoria: causa – motivo – efeito


Literalmente, causa é aquilo que produz um fenôme-
no. Efeito é o resultado da ação da causa, ou seja, o
fenômeno produzido. Exemplo: no capitalismo a apro-
priação privada dos meios de produção é a principal
causa da exploração do assalariado e do desemprego.
Causa não pode ser confundida com motivos. Esses
são impulsos imediatamente anteriores aos efeitos.
São impulsos que precipitam o efeito, mas não são
sua causa. Exemplo: os acontecimentos de 11 de se-

Correntes filosóficas: materialismo dialético – exigências,cuidados e categorias


tembro de 2001 foram os motivos para a invasão do
Afeganistão, contudo as causas estão ligadas ao mo-
nopólio do petróleo.
A causalidade sempre é objetiva, inerente à realidade e
revelada ao ser humano pela prática ou pelo conheci-
mento. A descoberta da causa é necessária para a clari-
ficação da natureza de um fenômeno. Por exemplo, um
pai ou uma mãe espanca um filho (fenômeno), o que
gera dor, sofrimento, angústia, ódio, internação hospi-
talar, ausência nos estudos (efeitos). A violência acon-
teceu porque o filho não diminuiu o volume do vídeo-
game quando um dos pais fez um pedido nesse senti-
do, pois queria assistir ao noticiário.
Verificando a existência de outros motivos percebeu-
se que o filho deixara de ir à aula naquele dia e vinha
apresentando baixo rendimento. Além disso, havia
queixas da mãe de que o filho não obedecia mais.
À primeira vista, a natureza dessa violência é domés-
tica e física. No entanto, sua natureza será indicada
pela causa que ainda precisa ser descoberta. Para o
Materialismo Dialético a causa sempre está na estru- 157
tura objetiva, na matéria. Nesse caso, para descobri-
la precisou-se verificar qual é a estrutura familiar,
cultural, econômica e política que esta família inte-
gra. Percebeu-se que se trata de uma família de ope-
rários. O pai e a mãe realizam um trabalho extrema-
mente repetitivo durante o ano todo. O que ganham
não dá para pagar todas as contas. Assim, além de
biscates aos finais de semana, costumam “vender”
as férias para cobrir o custo de vida. Isso faz com que
não consigam “sair” aos finais de semana, nem via-
jar nas férias. Além do mais, suas férias coincidem
com as férias escolares e, como moram em conjunto
habitacional sem espaços privativos, o “barulho” das
crianças inviabiliza descansos ou momentos pesso-
Correntes filosóficas: materialismo dialético – exigências,cuidados e categorias

ais. Em termos de trajetória familiar, verificou-se que


tanto o pai quanto a mãe são oriundos de famílias
rígidas que tinham a surra como recurso “normal”
no processo educativo.
A partir desses dados estruturais pode-se perceber que
a natureza da violência é econômica-cultural. Ela ex-
pressa-se sob a forma de violência física doméstica.

• 3ª categoria: necessidade – casualidade


Essa categoria possibilita verificar se o acontecido (o
fenômeno) foi mera casualidade ou se, dentro das
circunstâncias, era o que “tinha que acontecer”.
Necessidade é o que deve acontecer em determina-
das condições. Isto é, seria quase que uma “anorma-
lidade” não acontecer o que aconteceu. Voltando ao
exemplo da violência contra o filho. Naquelas circuns-
tâncias “era necessário” acontecer aquela violência.
Declarar sua necessidade não significa concordar com
ela ou justificá-la, mas reconhecê-la como produto
daquelas condições. Possivelmente, se esses pais vi-
158
vessem em contexto e condições menos violentas e
opressoras, essa violência não teria acontecido. Tal
percepção evita a culpabilização moral do indivíduo
que praticou a violência, pois entende que a violên-
cia ou a não-violência não dependem apenas da von-
tade pessoal. Percebe-se a violência como produto de
um processo histórico material. Nesse caso a violên-
cia é vista como necessidade porque a materialidade
contextual reúne todas as condições necessárias para
e erupção de processos violentos.
Em tal contexto, não haver violência nas relações pes-
soais familiares seria uma casualidade. Casualidade
expressa os fenômenos que acontecem quando o con-
texto histórico material reúne todas as condições para

Correntes filosóficas: materialismo dialético – exigências,cuidados e categorias


que o contrário do ocorrido aconteça. Voltando ao
exemplo anterior. No contexto da violência familiar,
cultural, econômica e habitacional, seria uma casua-
lidade não haver violência doméstica.

• 4ª categoria: essência – aparência


Essência está oculta sob a superfície das aparências,
é a parte mais profunda da realidade objetiva. Seus
elementos compõem a estrutura social, cultural, eco-
nômica e política da realidade.
A aparência é uma manifestação da essência, é a
parte superficial e mutável do fenômeno. Aparência
é aquilo que é possível perceber e refletir sem os ele-
mentos estruturais.
No exemplo acima, na superfície, a aparência é vio-
lência física. Contudo, essa é uma forma mutável de
se manifestar uma violência social, econômica e cul-
tural estruturais (essência) que “não possibilitam”
formas de interação não-violentas. Ou seja, a essên-
cia é a causa da aparência.
159
• 5ª categoria: conteúdo – forma
O conteúdo é o conjunto de interações, mudanças,
características e elementos que compõem a essência
e a aparência do fenômeno. No exemplo da violência
doméstica, o conteúdo compreende a violência fami-
liar que os pais sofreram, a exploração deles no tra-
balho, o trabalho repetitivo e degradante, o salário
baixo, a habitação sem privacidade, a surra, a não-
obediência do filho.
A forma é o sistema relativamente estável de rela-
ções entre os elementos que compõem um objeto ou
fenômeno. Em outras palavras, compreende o con-
junto de interconexões dos diferentes elementos en-
tre si e com totalidade social, econômica, política e
Correntes filosóficas: materialismo dialético – exigências,cuidados e categorias

cultural. A forma diz respeito a como os elementos


se ligam para produzir o fenômeno em questão. Por
exemplo, eu posso ter um amontoado de peças, mas
dependendo da forma como as disponho, elas podem
tornar-se um automóvel.
Vê-se, assim, que para o Materialismo Dialético, um
paradigma que por excelência procura clarificar as
relações entre os elementos e os fenômenos, a forma
é mais importante que o conteúdo em si. O sentido
de um fenômeno não está no conteúdo em si, mas na
sua forma. No exemplo, a forma compreende a ex-
plicação das conexões entre os elementos da essência
e da aparência. É essa forma que explicitará o senti-
do/significado dessa violência.

• 6ª categoria: possibilidade – realidade


A realidade é aquilo que já aconteceu. É o que já se
materializou. No exemplo, compreende tudo o que
já aconteceu e que tem conexões com o fenômeno em
questão, a surra.
160 A possibilidade é aquilo que ainda não aconteceu,
mas que poderá acontecer, considerando o conjunto
de condições que compõem a realidade. Isso signi-
fica que só posso visualizar uma possibilidade se,
na realidade, encontro elementos e inter-relações
que poderão compôr a causa dessa possibilidade.
No exemplo, poderíamos dizer que existe a possi-
bilidade de a surra não se repetir se, a partir da-
quela realidade familiar, pudéssemos indicar ele-
mentos e inter-relações que tornariam isso uma
realidade.

8.3 Marxismo depois de

Correntes filosóficas: materialismo dialético – exigências,cuidados e categorias


Marx
Depois de conhecer a visão, a filosofia e a teoria soci-
al marxista, bem como seus princípios, leis, conceitos e
categorias; quero finalizar falando do marxismo depois
de Marx.
Sem dúvida, nos últimos 200 anos, não há obra que
tenha provocado mais polêmicas do que a obra de Marx.
Os principais protagonistas dessa trajetória de polêmi-
cas precisam ser conhecidos.

Por país de origem


Na Alemanha destacaram-se os seguintes:
Eduard Bernstein (1850–1932) é considerado um
revisionista, pois substituiu a revolução proletária (as-
pecto fundamental na obra de Marx) pelas reformas po-
líticas, as quais levariam à democracia.
Karl Kautsky (1854–1938) não aceitou as reformas
de Bernstein. No entanto, via como determinação natu-
ral o processo de derrocada do capitalismo em direção
161
ao socialismo. Para Marx teria que haver condições his-
tóricas objetivas para que a revolução socialista se tor-
nasse possível.
Rosa de Luxemburgo (1870–1919), pensadora polo-
nesa de origem judaica, uma das primeiras mulheres a
concluir doutorado em ciências políticas, foi assassina-
da aos 49 anos por paramilitares a serviço da social-de-
mocracia alemã. Ela discordava tanto de Berstein quan-
to de Kautsky. Reafirmou o socialismo como uma possi-
bilidade histórica que só poderia ser realizada pela ação
consciente e organizada do proletariado. Para ela nenhu-
ma proposta socialista poderia aniquilar o sonho e o belo
na vida dos sujeitos históricos.
Ernest Bloch nasceu a 8 de julho de 1885, em
Correntes filosóficas: materialismo dialético – exigências,cuidados e categorias

Ludwigshafen, Alemanha. Filho de uma família de ori-


gem judaica viveu intensamente o drama dos judeus ale-
mães no século XX. Estudou música, filologia, física e
filosofia, de 1908 a 1911, em Berlim, onde foi colega de
Georg Simmel; de 1911 a 1914, em Heidelberg, onde foi
aluno de Max Weber e colega de Karl Jaspers e Georg
Lukács.
Humanista e socialista, pois durante a Primeira Guer-
ra Mundial, Bloch se recusou a lutar, exilando-se na Su-
íça. Após a República de Weimar e com o advento do
nazismo na Alemanha, em 1933, começou longo perío-
do de exílio – em Zürich, Viena, Praga e, finalmente, em
1938, nos EUA.
Depois da Segunda Guerra Mundial, em 1949, Bloch
voltou à Universidade Karl Marx, em Leipzig. Após a re-
pressão da rebelião da Hungria, em 1956, quando se ma-
nifestou solidário com o povo húngaro e contra a inter-
venção autoritária, o filósofo e seus discípulos passaram
a ser vigiados, impedidos de falar e perseguidos, por isso,
em 1961, por ocasião de uma licença para visitar amigos
162 na Alemanha Ocidental, a família Bloch não retornou a
Leipzig, iniciando-se o período de Tübingen, Sul da Ale-
manha Ocidental. Morreu em 4 de agosto de 1977.
Seus mais ilustres alunos foram os jovens Hegel,
Hoelderlin e Schelling.
Também os filósofos da Escola Crítica de Frankfurt
– Max Horkheimer, Theodor Adorno, Walter Benjamin
e Jürgen Habermas – destacaram-se como pensadores
marxistas na Alemanha.

Na União Soviética destacaram-se Lênin, Trotsky e


Stálin. Vladimir Illich Ulianov, conhecido como Lênin
(1870–1922) foi o líder maior da Revolução Russa. Inves-
tiu na construção da consciência da classe operária, pois
entendia que seu processo não se daria ao natural. Defen-

Correntes filosóficas: materialismo dialético – exigências,cuidados e categorias


deu que a classe deveria ser dirigida por um partido polí-
tico, cujos componentes teriam como profissão a ação re-
volucionária e seriam responsáveis pela orientação teóri-
ca e prática do proletariado. Lamentavelmente esse parti-
do se burocratizou distante da classe operária.
Leon Trotsky (1879–1940) assumiu a liderança do
exército vermelho durante a guerra civil que se seguiu à
revolução socialista. Defendia a revolução permanente
como forma de evitar a burocratização do partido. De-
fendeu a expansão socialista para outros países.
Josef Stálin (1878–1953) fortaleceu e dogmatizou o
projeto marxista-leninista. Agiu como ditador, perse-
guindo e matando até mesmo companheiros marxistas,
como foi com Trotsky, assassinado sob seu comando.

Na Itália, o principal nome foi Antônio Gramsci (1891–


1937). Destacou-se por aprofundar a concepção de ideo-
logia e contribuir de forma original na compreensão do
Estado como um espaço contraditório, da consciência e
da hegemonia como processos históricos. Sua obra influ-
enciou em muito o Movimento de Reconceituação no Ser- 163
viço Social e a Reforma Sanitária na área da saúde. Ao
estudarem os fundamentos teórico-metodológicos do SS
aprofundarão suas categorias.

Na Hungria destacou-se Gyögy (Georg) Lukács


(1885–1971), considerado idealista por muitos devido à
ênfase que deu à consciência da classe trabalhadora. De-
fendia que a consciência de classe era o único elo entre a
teoria e a prática capaz de fazer uma análise da sociedade
em totalidade. Em sua última obra Ontologia do ser social,
retoma a originalidade de Marx, apontando, inclusive,
equívocos em suas formulações teóricas, anteriores.
Agnes Heller nasceu em Budapeste, em 1929, hún-
gara, judia, o pai morreu em Auschwitz. Marxista, dei-
Correntes filosóficas: materialismo dialético – exigências,cuidados e categorias

xa partido em 1977 e emigra para os EUA. Membro da


Escola de Budapeste. Obras: A ética de Aristóteles; O
homem do Renascimento; A vida cotidiana. Preocupa-
ções: vida cotidiana, a ética e a moral, e a reflexão sobre
a condição humana.
István Meszáros, um dos maiores marxistas vivos,
autor do clássico “Para além do capital”, esse pensador
criativo se impõe com uma obra que não faz concessões,
não recusa a polêmica - como reza a boa tradição de sua
estirpe. É respeitado mundo afora como exemplo de
radicalidade - seus escritos ultrapassam, ano a ano, os
muros da academia e dão mostras de espantosa vitali-
dade; e sua história de vida fala por si.
Nascido em Budapeste no dia 19 de dezembro de
1930, estudou no Liceu Clássico e começou a trabalhar
já aos 12 anos, primeiro como operário numa fábrica de
aviões de carga e depois em vários outros empregos, até
terminar a escola.
A leitura desse estudo fez ainda Lukács nomear
Mészáros seu assistente no Instituto de Estética da Uni-
164 versidade de Budapeste.
Depois de deixar a Hungria, Mészáros trabalhou na
Universidade de Turim, na Itália, na Grã-Bretanha, na
Escócia, no Canadá. Em janeiro de 1977 retornou à Uni-
versidade de Sussex, onde, em 1991, recebeu o título de
Professor Emérito de Filosofia. Permaneceu nessa uni-
versidade até 1995, quando se afastou das atividades
docentes. Atualmente vive em Rochester, a uma hora de
Londres.
É autor de extensa obra, destaco as publicadas no
Brasil: “Para além do capital”, 2002; “O século XXI: soci-
alismo ou barbárie?”, 2003; “O poder da ideologia”, 2004;
“A educação para além do capital”, 2005; “A teoria da
alienação em Marx”, 2006.

Correntes filosóficas: materialismo dialético – exigências,cuidados e categorias


Na França destacou-se Louis Althusser (1918–1990).
Nasceu em Biermandreis, Argélia, em 1918. Passou a
Segunda Guerra Mundial em um campo de concentra-
ção na Alemanha e, embora católico na juventude, em
1948 ingressou no Partido Comunista Francês. Na Esco-
la Normal Superior, de Paris, formou uma equipe de
grande importância para a discussão do pensamento de
Marx. Ele via dois momentos na obra de Marx. A pri-
meira marcada pelo humanismo e pela autoconstrução
humana. A segunda, a “científica” que se caracteriza
como anti-humanista. Louis Althusser publicou, em
1965, “Em defesa de Marx” e “Leitura do Capital”.
Exerceu explosiva influência no movimento estudan-
til de março de 1968. Seus últimos anos foram marcados
pela tragédia. Tomado por crises de psicose maníaco-
depressiva estrangulou a mulher em 1980 e foi interna-
do em um hospital psiquiátrico. Morreu em Paris em 22
de outubro de 1990. Sua obra também marcou o Serviço
Social brasileiro, como vocês verão ao estudar os funda-
mentos teórico-metodológicos.
165
Na Inglaterra, destacam-se Eric Hobsbawm, historia-
dor britânico, nascido em 1917, tem pelo menos quatro con-
tribuições fundamentais para o entendimento dos fenôme-
nos históricos contemporâneos em obras indispensáveis:
Ecos da Marselhesa; Era dos extremos; O novo século; So-
bre história. E Perry Anderson, nascido em 1938, é um dos
mais influentes pensadores socialistas da atualidade, inte-
grante da Nova Esquerda inglesa, no final dos anos 50. Das
obras publicadas no Brasil destacam-se: Considerações sobre
o marxismo ocidental nas trilhas do materialismo histórico. São
Paulo: Boitempo, 2004 (original: Considerations on Western
Marxism, 1976); Zona de Conflito (1992), que inclui o en-
saio “O fim da história”, de Hegel a Fukuyama”.
Outros nomes que precisam ser arrolados são: Henri
Correntes filosóficas: materialismo dialético – exigências,cuidados e categorias

Lefèbvre e Ernest Mandel.

Na América Latina destacaram-se Luis Emilio


Recabarren (Chile), José Carlos Mariátegui (Peru). No
Caribe destacou-se Julio Antonio Mella (Cuba).

No Brasil, destacam-se: Caio Prado Jr.; Carlos Nel-


son Coutinho e Leandro Konder; Fernando Henrique
Cardoso (enquanto professor universitário); José Arthur
Giannotti; Marilena Chauí; Roberto Schwartz; Francis-
co Welffort; Ruy Fausto; Emir Sader; Rui Mauro Marini;
Gunder Frank; Theotônio dos Santos; Vânia Bambirra e
Florestan Fernandes.

Atividades
Questões.
1 - Relate brevemente uma situação, depois a analise
atendendo as quatro exigências do Método Dialético.
166
2 - Leia a crônica abaixo e responda as questões.
A lâmpada mágica da democracia
(Título original: Mande um anjo! de Rubem Alves)
Toninho: no próximo dia dez vão se completar três
meses da sua partida. Você sabe que eu não votei em você.
Mas poderia. Eu confiava em você. Eleito, fiquei à sua
disposição para ajudar no que fosse possível. Tínhamos
sonhos comuns. Gostávamos de jardins. Foi sobre jardins
que conversamos na última vez em que estivemos juntos.
Inspirado naquele artigo meu “Sobre política e jardina-
gem” você me revelou que estava planejando começar
um projeto de formação de jardineiros em Campinas. E
me convidou para cooperar. Mas é claro! Pois eu acho
que a jardinagem é a melhor escola da política. Cidada-

Correntes filosóficas: materialismo dialético – exigências,cuidados e categorias


nia é isso: quando todos se sentem jardineiros, cuidadores
do espaço da cidade. Na jardinagem o poder fica bonito
porque ele se dedica a fazer um mundo melhor.
Meu pai morreu pobre. Não deixou herança. Por isso
eu e meus irmãos nunca brigamos. Não havia uma he-
rança a ser disputada. Existindo uma herança os irmãos
se tornam inimigos. A se acreditar no que dizem os jor-
nais, sua partida está criando problemas: uma briga so-
bre a terrível herança que você deixou. Se, de onde você
está, você leu a estória sobre “Os ratos, o gato e o quei-
jo”, você entendeu. Esta estória, eu a escrevi faz muitos
anos. Mas a sua verdade é permanente. Os ratos eram
irmãos enquanto não tinham o queijo. Bastou ter o quei-
jo para que os ratos virassem gatos...
Sua herança terrível: o poder. O poder é a lâmpada
mágica de Aladim que, uma vez esfregada, um gênio
todo poderoso sai de dentro dela para realizar aquilo
que o seu dono determina. Com a sua morte a lâmpada
ficou sem dono. E surge, então, a inevitável pergunta:
Quem vai ficar com a lâmpada? Quem vai poder dar
ordens ao gênio? 167
A sociologia é uma ciência cruel. Ela mostra que, em
todas as instituições, sem exceção, existe uma briga pela
posse da lâmpada. Não importa que sejam cooperativas
de plantadores de rosas, sindicatos de prostitutas, or-
dens religiosas, instituições médicas, times de futebol,
asilos de velhinhos... Tão diferentes umas das outras, não
é? Mas, no fundo, lá no fundo, há uma briga pelo poder.
Essa briga fica mais clara em dois tipos de institui-
ções: as empresas e os partidos políticos. Nas empresas
o nome da lâmpada é lucro, independentemente daqui-
lo que elas produzem. Uma empresa pode produzir ro-
sas ou armas: independentemente do que produzem, elas
precisam de lucro. O dinheiro é a vida das empresas.
Nos partidos políticos o nome da lâmpada é poder.
Correntes filosóficas: materialismo dialético – exigências,cuidados e categorias

O objetivo primeiro de um partido é a tomada do poder.


Aquilo a que se dá o nome de processo democrático é a
luta para se apossar da lâmpada mágica.
Mas é claro que nem as empresas e nem os partidos
falam abertamente sobre isso. As empresas, quando se
dirigem aos seus clientes, só falam sobre coisas que dão
beleza, coisas que dão saúde, coisas que poupam o tra-
balho, coisas de amor... E os partidos políticos, ao se di-
rigirem aos eleitores, vão como a Banda, cantando coi-
sas de amor: educação, saúde, segurança, proteção aos
velhinhos, emprego para todo mundo, justiça... Todos
tocando a mesma música.
O que vou dizer aprendi de Santo Agostinho, em suas
meditações sobre a política. É assim: tudo na vida se faz
com uma mistura de poder e amor. Para fazer um jar-
dim eu tenho de ter um sonho de amor, o jardim que
amo; e poder para plantá-lo. Para fazer uma casa eu te-
nho de ter amor – a casa dos meus sonhos – e poder para
construí-la. O poder é bom quando está a serviço do
amor. Mas, de vez em quando, acontece um revertério:
168 o poder se esquece do amor e fica solto. Solto, sem obje-
to, o poder se apaixona por ele mesmo. Quando isso acon-
tece é o pandemônio, é a luta, é a possessão demoníaca.
O poder se esquece do amor, os políticos se esquecem
do povo, os jardineiros se esquecem dos jardins...
Aí, acontece o inverso da Banda. Ao invés de cantar
coisas de amor, os partidos começam a cantar coisas de
poder. E o povo não é bobo. Percebe. Ouvindo coisas de
amor o povo marcha alegremente na avenida. Ouvindo
os ruídos da briga pelo poder o povo fica triste, perde a
esperança e debanda...
(Correio Popular, Caderno C, 02/12/2001)

Questões.
a) Conforme o texto acima, respaldando-se no Materi-

Correntes filosóficas: materialismo dialético – exigências,cuidados e categorias


alismo Dialético, qual é a aparência e qual é a essên-
cia do processo democrático nas empresas e nos par-
tidos?
b) A partir da crônica, a briga pelo poder nas empresas
é uma necessidade ou uma casualidade?
c) Considerando as informações presentes na crônica,
deixar de existir luta pelo poder nas empresas é uma
possibilidade?

Referências comentadas
CODO, Wanderley. O que é alienação. Coleção Pri-
meiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1985. 96p.

Esse livro traça a trajetória da concepção de aliena-


ção, com ênfase especial na alienação em Marx. Bom
para ser lido antes mesmo de ler o próprio Marx, pois
contribui para uma visão da obra de Marx na ótica da
alienação.
169
SANDRONI, Paulo. O que é mais-valia. 4.ed. Cole-
ção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1984.
112p.

A partir da concepção de “alienação do objeto” Marx


desenvolve um dos conceitos fundamentais para a com-
preensão da exploração capitalista: a mais-valia, isto é,
aquilo que, por direito, é do trabalhador, mas o dono
do capital apropria-se dele. Trata-se daquilo que é pago
a menos ao trabalhador a fim de gerar lucro para o ca-
pital.

Referências
Correntes filosóficas: materialismo dialético – exigências,cuidados e categorias

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Ma-


ria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia.
São Paulo: Moderna, 2002.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13.ed. 6a.
reimpressão. São Paulo: Ática, 2006.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia – his-
tória e grandes temas. 16.ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filo-
sofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 6.ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
RICHARDSON, Roberto Jarry. Pesquisa
social: métodos e técnicas. 3.ed. São
Paulo: Atlas, 1999. 334p.
ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxis-
mo ocidental nas trilhas do materialismo histórico.
São Paulo: Boitempo, 2004, 239p.

170
Auto-avaliação
Relacione a coluna superior com a inferior.

(1) Cuidados fundamentais na análise dialética.


(2) Aparência.
(3) Necessidade.
(4) É uma exigência do Método Dialético.
(5) Casualidade.
(6) Individual-Particular-Geral.
(7) Causa.
(8) Possibilidade.
(9) Essência.

Correntes filosóficas: materialismo dialético – exigências,cuidados e categorias


(10) Realidade.

( )Objetividade da análise.
( )Consciência metódica, trânsito entre o individual e
o geral, análise da totalidade e de suas partes.
( )É a categoria que possibilita verificar a abrangência
e a interconexão essencial em cada fenômeno ou ob-
jeto.
( )É aquilo que produz um fenômeno.
( )É o que acontece sem haver condições para tal.
( )É o que deve acontecer em determinadas condições.
( )É a parte superficial e mutável do fenômeno.
( )É a parte mais profunda da realidade objetiva.
( )É aquilo que já se materializou.
( )É aquilo que ainda não aconteceu.

Gabarito
4, 1, 6, 7, 5, 3, 2, 9, 10, 8.
171
9
Correntes
filosóficas:
filosofia da
libertação
Arno Vorpagel Scheunemann é assistente
social, mestre e doutor em Teologia,
professor de graduação e pós-graduação no
Serviço Social da ULBRA/Canoas. É autor
de todos os capítulos deste livro-texto.
Arno Vorpagel Scheunemann

Uma corrente filosófica construída na América Lati-


na, tendo como ponto de partida e base o núcleo ético-
mítico dos povos que habitaram esse continente antes
da ocupação do europeu.
Inicialmente apresentarei brevemente a vida e a obra
do seu principal representante. Em seguida trarei a com-
preensão que essa filosofia tem das formulações dos prin-
cipais sistemas e autores filosóficos que conhecemos ao
estudarmos os períodos da história da filosofia.
Por fim, apresentarei a “Ontologia da Totalidade”
como expressão da lógica do Ego Cogito e a “Metafísica
da Proximidade” como expressão da lógica que liberta
o outro da Totalidade do Ego Cogito.
Essa filosofia, conhecida como filosofia da libertação,
não exerceu influência direta sobre o serviço social bra-
sileiro. Contudo, devido à sua originalidade, sensibili-
dade e proximidade com a constituição social do ser la-
tino-americano, bem como, sua contribuição na concep-
ção e constituição dos processos e movimentos de liber-

Correntes filosóficas: filosofia da libertação


tação latino-americanos dos anos 1950 a 1970, contexto
no qual foi gestado o Movimento de Reconceituação do
Serviço Social. Imprescindível para o nosso conhecimen-
to essa concepção filosófica que propõe a superação da
lógica dialética pelo movimento anadialético.
Pretende-se aqui olhar de perto a descoberta e a com-
preensão da dialética de Dussel, pois é mediante ela que
ele constrói a sua proposta de libertação.

175
9.1 Síntese da vida e da
obra de Enrique Dussel
Sua vida pode ser dividida em quatro períodos: 1934
- 59; 59 - 69; 69 - 75; e de 75 até hoje. Nasceu em La Paz,
Argentina, perto dos Andes argentinos, em 1934. Embo-
ra sendo filho de médico, conviveu com a pobreza des-
de criança entre os índios e os mestiços empobrecidos
do campo. Em 42 entrou para a Ação Católica, onde per-
maneceu por 15 anos. Chegou a tornar-se presidente da
Federação de Estudantes da Universidade de Mendoza,
bem como de toda a diocese. Lutou contra o peronismo
entre 54 e 56. De 53 a 57 estudou belas artes e, especial-
mente, filosofia tomista.
Em 57 foi para a Espanha fazer doutorado em filoso-
fia, onde, na tese de 1.200 páginas, a partir da concepção
de bem comum de Maritain, defende os direitos da pes-
soa diante do bem comum. Nas férias de 57 e 58 foi para
a Terra Santa, onde conheceu um padre operário fran-
cês. Convidado, voltou em 59 e permaneceu por dois
anos, durante os quais trabalhou como carpinteiro e pes-
Correntes filosóficas: filosofia da libertação

cador, morando num Kibbutz. Foi nessa época que apren-


deu o hebraico e teve longas reflexões sobre o significa-
do de pobreza evangélica. O resultado dessa trajetória
de dois anos encontra-se em sua primeira grande obra
El Humanismo Semita.
Em 61 voltou para a Europa para estudar teologia na
França. Em 65 concluiu o curso e em 67 o doutorado em
História, dedicando sua tese à defesa dos ameríndios.
Pouco depois escreveu El Humanismo Helênico, a fim de
contrastar a visão helenista de mundo com a semita. Da
mesma forma, escreveu El dualismo en la antropologia de
la cristandad. Em 69 voltou para a Argentina, tornando-
176 se professor de ética filosófica em Cuyo. No mesmo ano,
conheceu a teoria da dependência e descobriu a catego-
ria do outro em Levinas. A partir disso, viu a possibili-
dade de articular uma ética de libertação baseada na
analética do outro e escreveu o primeiro volume da Éti-
ca. Em 71 trabalhou em forma de conferências, que fo-
ram editadas, a história e a teologia da libertação. Até 74
publicou em torno de 20 livros e artigos.
Como a política cada vez mais fazia parte de suas
reflexões, sofreu um atentado a bomba em sua casa, o
que o levou a exilar-se no México, onde trabalha até hoje.
Lá escreveu Filosofia de la liberación. Releu Marx, desco-
brindo a presença da alteridade em seus escritos.
Dussel leu a tradição intelectual do ocidente e perce-
beu que, no que se refere à dialética, essa inicia fechada
e termina aberta. Essa leitura começa com os pré-
socráticos e estende-se até Levinas. Passa por Platão,
Aristóteles, Plotino, Descartes, Kant, Fichte, Sheling,
Nietsche, Hegel, Feuerbach, Marx, Kierkegaard, Husserl,
Heidegger, Sartre, Zubiri.
Assim como nos pré-socráticos, em Platão,
Aristóteles e Plotino, a dialética conduz ao Ser (uno)
que se impõe, pois é unificadora e subversiva. A partir

Correntes filosóficas: filosofia da libertação


de Descartes dá-se a mesma imposição do mesmo, só
que não em direção ao Ser, mas à consciência. É a cons-
ciência do mesmo (Ego) que é absolutizada através de
uma dialética intra-subjetiva.

A modernidade, de Descartes em diante,... ao negar o Ou-


tro, absoluto - o Outro que, neste caso, é o Deus dá Idade
Média -, fica somente com o ego. E, ao ficar com o ego, o
mais grave não é ficar sem Deus, mas instituir o mesmo
como totalidade. No ego cogito cartesiano, ... o homem
permanece só como um ego solipsista. (DUSSEL, Cami-
nhos de libertação latino-americana. vol.IV, p.202)
177
Com a dialética em Kant dá-se o mesmo, no entanto
o Ego de Kant é ativo, pois ele inclui a praxis como ine-
rente à dialética egocêntrica. Em Fichte, para Dussel,
aparece pela primeira vez o movimento dialético enquan-
to tal. No entanto ele para na negação da negação. A
nova síntese não existe, prefigurando o Ser Absoluto de
Hegel.
Schelling, por sua vez suspeitou que há algo além
do horizonte ontológico, mas eliminou a coisa-em-si e o
não-eu e, conseqüentemente, o cotidiano. Dussel assim
resume essa evolução da dialética:

Da coisa conhecida na idéia de Descartes, passamos para a


coisa acreditada em Kant, e de lá ao seu desaparecimento
no não-eu puramente antitético interior ao Eu mesmo, até
sua aniquilação como não-Eu na pura imanência do Eu
absoluto, que se conhece como autoconsciência. A involução
é completa. (apud GOIZUETA, 1993, p.76)

Em Hegel, plenamente se totaliza o ego solipsista


(enquanto sujeito - O mesmo - que constitui o ser das
coisas).
Correntes filosóficas: filosofia da libertação

Em Hegel se dá a plena totalização moderna. O ser é o


Saber e a Totalidade é o Absoluto; um Absoluto que não
pode ser considerado senão como um deus irrefutável, não
já physis, mas Sujeito. (DUSSEL, Caminhos de liber-
tação latino-americana. vol.IV, p.203)

Na dialética de Hegel, a tensão sujeito-objeto é dis-


solvida, pois o ser da consciência é conhecer e do objeto,
é ser conhecido. Além do mais, a dialética hegeliana pre-
tende elevar a consciência à uniformidade com o Abso-
luto através do autoconhecimento. Essa uniformidade
178 com o Absoluto é tanto o início quanto o fim de sua
dialética. Por isso, não passa de “eterna reversão do ab-
soluto a si mesmo” (GOIZUETA, 1993, p.79).
Na dialética de Feuerbach, o primado da razão dá
lugar à existência humana material. O cotidiano passa a
ser o ponto de partida e o humano, seu fundamento. A
dialética deixa de pensar apenas a ontologia do ser. Marx
avança mais ainda, como descreve Dussel:

Para Hegel, o real é o pensar e aquilo que é pensado;


Schelling propõe a superação da ontologia da identidade
do ser e do pensar e descobre o caráter transversal da reve-
lação; Feuerbach vai além da ontologia do ser como pen-
sar, e se abre para o âmbito do sensorial, da afetividade... o
relacionamento do eu-tu, de pessoa a pessoa. Ora, Marx
vai além do âmbito feuerbachiano... descrevendo o real como
o produzido, o trabalhado, e a relação abstrata eu-tu, de
pessoa, como a do mestre (capitalista) e explorado. (apud
GOIZUETA, 1993, p.81)

Em Marx, além do horizonte da totalidade dialética,


aparece o outro (enquanto não-ser).

Correntes filosóficas: filosofia da libertação


Marx indica explicitamente que, para a economia política,
a pessoa enquanto tal, isto é, o trabalhador antes de traba-
lhar, e acima de tudo, antes de ser um trabalhador assala-
riado, não é nada. (apud GOIZUETA, 1993, p.82)

Kierkegaard também trabalha com uma dialética


aberta, só que teologicamente, a nível existencial (não
racional). Husserl, por sua vez, está limitado ao hori-
zonte da ontologia hegeliana e, sua dialética é involutiva.
A dialética de Heidegger parte do cotidiano, mas o
extrapola até chegar ao horizonte supremo (ontológico)
do ser. Para Dussel, Heidegger consegue perceber que
há algo além do horizonte da totalidade. No entanto, 179
esse algo, para ele, permanece um mistério. Isso porque
Heidegger não teria permanecido preso na Totalidade
irrefutável.

...Heidegger tem ainda uma experiência da Totalidade


irrefutável e, embora ele tente ultrapassá-la, fica entretan-
to, preso nela. Agora, o que lhes proponho é a tentativa de
dar nome ao mistério que está mais além do horizonte
ontológico e superar então o tó autó, ‘o mesmo’. (DUSSEL.
Caminhos de libertação latino-americana. vol.IV,
p.205)

É Sartre, no entanto, quem dá um passo mais decisi-


vo em direção a uma dialética com fim aberto, pois, se a
dialética está localizada na historicidade humana, é im-
possível fechá-la, porque essa história é aberta, está em
andamento.
Zubiri, um existencialista espanhol, abre mais ainda
o horizonte da dialética, ao incluir em seu movimento a
realidade físico-biológica.
Dussel, por sua vez, a partir da descoberta da cate-
goria da exterioridade (do Outro) em Theunissem e em
Correntes filosóficas: filosofia da libertação

Levinas, amplia esse movimento dialético aberto, com o


que ele chama de momento anadialético.

9.2 O método anadialético


de libertação do Outro
O método anadialético (inicialmente denominado
analético) fundamenta-se numa ética metafísica, que vai
além da metafísica na Totalidade européia. Trata-se de
uma ética na qual o metafísico é entendido como reali-
180 dade realíssima além do mundo e do ser.
O método analético compreende basicamente duas
categorias-chave: a Totalidade; e o Outro.
A Totalidade é o lugar onde as coisas-sentido, os entes
se apresentam numa ordem; estão postos-com, compos-
tos (systema em grego). Essa composição dá-se em dois
níveis: ôntico e ontológico. Ôntico é o nível das entidades
individuais, dos entes (cosmos). Ontológico é o nível da
totalidade, do todo ordenado (mundo), cujo horizonte
supremo estabelece o significado das entidades indivi-
duais, “que são definidas dedutivamente, em sua relação
com o todo, ou a “Totalidade”, e no contexto do seu pa-
pel, ou posição que lhe foi atribuída nessa Totalidade
que abrange a tudo” (GOIZUETA, 1993, p.108).
Para Dussel, essa Totalidade não é estática, constitui
um movimento dialético entre os dois níveis de signifi-
cado. No entanto, se a negação da negação desse movi-
mento dialético é definida pelo seu papel no interior da
Totalidade, então a novidade e o mistério estão excluí-
dos. Tudo é previsível, porque o horizonte ontológico é
quem determina o movimento. Tudo o que não se en-
quadra no seu interior, é sem sentido, não existe, é
destruído para garantir a permanência da Totalidade.

Correntes filosóficas: filosofia da libertação


Isso faz com que não haja, em termos temporais, um fu-
turo imprevisível. Tudo já está dado no horizonte da
totalidade. Ou seja,

O mesmo que já se é, é o que em última análise se intenta.


O projeto, por mais utópico que temporalmente futuro se
queira..., é somente a atualização daquilo que está em po-
tência no mundo vigente. (DUSSEL. Filosofia da Liber-
tação, p.30)

Essa forma de conceber a totalidade fundamenta-se


na experiência grega. Para os gregos, respaldados em
Parmênides: o Ser é, o não-ser não é. “...o ser é o grego, a 181
luz da própria cultura grega. O ser chega até as frontei-
ras da helenicidade. Para além, além do horizonte está o
não-ser, o bárbaro (filho do inimigo), a Europa, a Ásia
(DUSSEL, 1977, p.12). A cultura e a filosofia tornaram-
se a luz, o parâmetro para a compreensão e o julgamen-
to de tudo o mais. Nessa perspectiva, dominar o outro é
visto como um ato libertador, já que pela dominação esse
outro passa a ser alguém. Claro que mero outro, para
que o dominador possa ser Dominador.
A lógica desse fundamento pode ser assim represen-
tada.

9.2.1 A ontologia da totalidade do Eu


vejo/penso
Correntes filosóficas: filosofia da libertação

O outro apenas existe como parte da totalidade do


EU, que define e estabelece o que ele foi, é e o que pode-
rá ser.
A priori elimina-se a possibilidade de conhecer o ou-
tro como ele realmente é, porque acredita-se que, de fato,
ele não é. Por exemplo, fecha-se a possibilidade de co-
nhecer a família como ela realmente é, porque acredita-
se que apenas será família conforme a percepção e con-
cepção do (a) profissional.
182
O fundamento dessa ética é: ser conforme a
racionalidade do Ser, isto é, do (a) profissional. A lógi-
ca é a da diferenciação (em relação ao Ser). Tal perspec-
tiva, por mais democrática que seja a relação entre o Eu
(profissional) e o outro (família), nunca será verdadeira-
mente libertadora porque carrega consigo a incapacida-
de de escutar o grito do outro (da alteridade) a partir de
sua exterioridade. Ela só consegue ouvir o outro confor-
me a sua própria percepção. Ela não abre a possibilida-
de de olhar para o Eu e o outro como duas totalidades
distintas, contudo ética e valorativamente iguais. Dis-
tinta indica uma totalidade com matiz (com essência,
configuração e expressão próprias) próprio. Isto é, tem
sua história, cultura e exterioridade próprias, peculia-
res. Enquanto diferente (diferido) alguém que é o refe-
rente diferenciado do Ser. Isto é, é uma referência dife-
rente do Ser. Se não fosse o Ser, não seria, não existiria.
Por isso, a filosofia da libertação de Dussel fixa sua
atenção no passado temporal e espacial do mundo, res-
gatando-o dialeticamente na perspectiva do presente.

Por isso nossa filosofia da libertação fixará sua atenção no

Correntes filosóficas: filosofia da libertação


passado e na espacialidade, para detectar a origem, a ar-
queologia de nossa dependência, debilidade, sofrimento,
aparente incapacidade, atraso. (DUSSEL. Filosofia da
Libertação, p.31)

O Outro é a categoria que possibilita pensar a Totali-


dade de fora de seu horizonte. O Outro compreende o
ente que aparece no mundo e se manifesta como exteri-
or ao nosso mundo. O ser humano é o ente por excelên-
cia, que tem essa capacidade. Normalmente ele aparece
em torno de nós como simples coisa-sentido (algo): mo-
torista, operário, sem-terra, etc, integrante do nosso sis-
tema. No entanto, a partir do momento em que ele, além 183
de aparecer, nos interpela: “Uma ajuda, por favor!” ou
“Estou com fome; dê-me de comer!” (DUSSEL, Filosofia
da Libertação, p.46) revela-se como exterioridade, como
Outro.

O rosto do homem se revela como outro quando se apre-


senta em nosso sistema de instrumentos como exterior,
como alguém, como uma liberdade que interpela, que pro-
voca, que aparece como aquele que resiste à totalização ins-
trumental. Não é algo; é alguém. (DUSSEL. Filosofia da
Libertação, p.47)

O que Dussel mostra com isso é que existe “realida-


de também além do ser” (DUSSEL. Filosofia da Liberta-
ção, p.47). Essa nova perspectiva ontológica requer uma
nova epistemologia, na qual o ponto de partida, o locus
do julgamento da Totalidade, está localizado fora, é o
Outro.

A lógica da Totalidade estabelece seu discurso desde a iden-


tidade ou fundamento para a diferença... A lógica da
exterioridade ou da alteridade, pelo contrário, estabelece
Correntes filosóficas: filosofia da libertação

seu discurso a partir do abismo da liberdade do outro. Essa


lógica tem outra origem, outros princípios: é histórica e
não evolutiva; é analética e não meramente dialética, ou
científico-fáctica, embora assuma ambas. (DUSSEL. Filo-
sofia da Libertação, p.48)

O momento analético é necessário para que a


exterioridade da pessoa (cuja história é irredutível à histó-
ria da Totalidade, pois não é essa que dá o significado àque-
la) em relação à Totalidade dialética seja reconhecida.

Seu (do outro) direito absoluto, por ser alguém, livre, sa-
184 grado, funda-se em sua própria exterioridade, na consti-
tuição real de sua dignidade humana” (...) A provocação,
a interpelação do outro sempre traz consigo a história de
um povo. “O rosto do outro... revela realmente um povo,
mais do que mera pessoa singular... é o rosto de um sexo,
de uma geração, de uma classe social, de uma nação, de
um. (DUSSEL. Filosofia da Libertação, p.49-50)

A percepção da originalidade dessa interpelação é


impossível dentro do horizonte da Totalidade do Ser.
Tornar-se-á possível somente na Proximidade do outro
como Outro. Ou seja, abrir-se para a auto-revelação do
outro como centro e sujeito de seu mundo, de sua totali-
dade. Na Proximidade, a referência da compreensão é o
mundo revelado do Outro, não os pressupostos da To-
talidade do Ser. A revelação desse Outro é a Epifania.
Epifania do outro ou Metafísica da alteridade enten-
de que entre todos os elementos que compõem o mundo
de qualquer pessoa há um ente sui generis (gênero pró-
prio, peculiar, inalienável) o outro ser humano1. Epifa-
nia vem do grego epifaneia = aparição, manifestação (epi
= sobre, em cima de, através (de si mesmo) + faino =
brilhar, dar a luz, aparecer, tornar-se visível, mostrar-

Correntes filosóficas: filosofia da libertação


se). Metafísica vem do grego meta = depois, após, atrás
+ physis = natureza, criatura, gênero, espécie humana,
ser humano (unidade bio-sócio-mental). Alteridade tem
na sua raiz o termo grego alter (outro). Logo, alteridade
é a qualidade de ser outro. O outro ser humano não como
indivíduo isolado, sozinho, mas como rosto de uma fa-
mília, de um grupo, de uma comunidade, de um povo,
de uma nação.
Por mais que queiramos transformar o outro em mera
coisa-sentido do nosso mundo, ele sempre se apresenta-

1
O outro ser humano não como indivíduo isolado, sozinho, mas como
rosto duma família, dum grupo, duma comunidade, dum povo, duma
nação. 185
rá diante de nós de forma provocante, questionadora e
denunciante. Ele não aceita ser “algo”, pois é “alguém”.
É alguém “exterior” ao nosso mundo, centro de seu pró-
prio mundo e de sua liberdade.
Liberdade aqui não é somente uma certa possibilida-
de de escolher entre diversas mediações que dependem
do projeto cotidiano. Liberdade agora é a
incondicionalidade do outro com relação ao mundo no
qual sou o centro. O outro como outro, isto é, como cen-
tro de seu próprio mundo (embora seja um dominado
ou oprimido), pode dizer o impossível, o inesperado, o
inédito em meu mundo, no sistema. Todo o homem, cada
homem, enquanto é outro é livre, e enquanto é parte ou
ente de um sistema é funcional, profissional ou membro
de uma certa estrutura, mas não é outro. É-se outro na
medida em que se é exterior à totalidade, e nesse mes-
mo sentido se é rosto (pessoa) humano interpelante. Sem
exterioridade não há liberdade nem pessoa (DUSSEL,
1977, p.51).

Para a Metafísica da alteridade, assim como o mundo não


abarca todo o cosmos, também o ser não abarca toda a rea-
Correntes filosóficas: filosofia da libertação

lidade. Há sempre um outro que fica para além do sistema.


Um outro que não pode ser conhecido a menos que se reve-
le (epifania) a partir e como centro do seu próprio mundo.

O ethos que funda-se na exterioridade do outro, para


Dussel, é o ethos semita.

O beduíno e pastor do deserto experimenta o ser não já


como a luz, mas como a proximidade, Rosto-a-rosto, junto
ao irmão da mesma raça, do estrangeiro a quem se dá hos-
pedagem. (...) o ser como a liberdade que irrompe diante do
ouvido atento que escuta... (DUSSEL, 1977, p.13)
186
Em outras palavras, um usuário não experimenta o
outro (o profissional) como a Luz que vem para clarifi-
car e trazer sentido, mas como alguém que na proximi-
dade amplia as possibilidades da sua totalidade-senti-
do e vice-versa. Na proximidade a relação não prioriza
as máscaras atribuídas pelo sistema, mas o rosto das
pessoas implicadas. A relação não é profissional – usuá-
rio, mas pessoa – pessoa. Não que tenhamos que negar a
formação profissional. Apenas não a colocamos a nossa
frente na relação com o outro. Na relação pessoa – pes-
soa nossa formação (epistemologia, teoria, metodologia,
axiologia) serão nosso “pano de fundo”, no qual respal-
da-se nosso ser pessoa. O ser profissional amplia o ser
pessoa.

9.2.2 A metafísica da alteridade ou


epifania libertadora do Outro
A metafísica da alteridade ou epifania libertadora do
Outro

Correntes filosóficas: filosofia da libertação

a = Interpelação alterativa do outro


b = Pulsão alterativa, amor-justiça

Aqui o Outro é originariamente distinto, exterior que


se aproxima no rosto-a-rosto, na proximidade (não na
187
percepção do Ser). Distinto, isto é Eu e o Outro somos
centro e sujeito de nossas totalidades-sentido. Ambas
igualmente legítimas. Ambas com seu horizonte aberto
(linha tracejada).
Rosto-a-rosto indica a experiência que vai além do
ver, do perceber e do compreender racionais e objetivos.
Rosto-a-rosto extrapola a compreensão racional a partir
da luz do Ser. Rosto-a-rosto contempla o que está além
do racional, isto é, o irracional. E, “além do racional (...)
está a exterioridade do outro que não pode ser compre-
endido de todo por nenhum mundo nem sistema”
(DUSSEL, 1977, p.52).

Assim sendo, a exterioridade é sempre o irrupção do novo,


do surpreendente e do caótico na totalidade. É o surgimento
do não previsto, da atitude não previamente pensada, por-
que sempre se trata de alguém fundamentalmente Outro,
distinto, e que, a rigor, não posso conhecer. Dele só saberei
o que se me revelar pela sua palavra (e presença Rosto-a-
rosto)2. A exterioridade não pode ser compreendida como
propriamente “exterior” à totalidade. Ela surge (manifes-
ta-se, revela-se) no seu interior como um questionamento,
Correntes filosóficas: filosofia da libertação

como uma convulsão dentro do todo. Dussel a define como


transcendentalidade interior. (BOUFLEUER, 1991,
p.63)

Trabalho profissional que queira ser libertador ha-


verá de ouvir esse Outro. Sua base será a manifestação
(epifania) alterativa desse Outro. Sua essência consisti-
rá em explicitar esse além-ser, o outro, para que, a partir
da sua revelação, possam ser construídos valores, nor-
mas e princípios éticos. Assim, tanto a filosofia quanto a
ética libertadoras são “metafísica da alteridade”. São

188 Parêntese é acréscimo meu.


2
alterativas porque acreditam que toda a sua força
libertadora, revolucionária e transformadora emerge
dessa exterioridade. Tal filosofia e ética somente tornam-
se possíveis através da existência de seres humanos/
profissionais alterativos, essencialmente abertos ao Ou-
tro (BOUFLEUER, 1991, p.63-64).
Essa abertura ao Outro é uma abertura ética, porque
implica uma opção de justiça. Contudo,

o ético não se impõe como decorrência da compreensão ra-


cional do ser. Abrir-se ou não ao apelo do Outro não resul-
ta de uma dedução lógica a partir de premissas ontológicas,
mas de uma opção por amor-de-justiça àquele que me in-
terpela desde sua exterioridade. (BOUFLEUER, 1991,
p.64)

Para contemplar a metafísica da alteridade o traba-


lho profissional terá que contemplar a dinâmica
transontológica do Outro, a qual encontra-se além dos
limites da Totalidade. Logo seu movimento não poderá
dialético, uma vez que a dialética move-se dentro da to-
talidade (mundo) do ser, do sujeito.

Correntes filosóficas: filosofia da libertação


Para Dussel, abrir um campo de reflexão a partir da
exterioridade, da alteridade do Outro, implicará num
movimento anadialético, que seria a verdadeira dialética
(aberta ao essencialmente diferente). Termo inicialmen-
te cunhado por Dussel como “analético”. Ana + dialético
= Ana – além de, acima do horizonte. De onde surgem
termos como: anóo (a + on = sem + essência, oposto/
contrário + essência); anoigo = estar aberto, abrir-se.
Curioso é que anoia (tolice, insensatez, fúria) tem a mes-
ma raiz, ou seja, “a on”. Somente a anadialética abre a
possibilidade de questionar a totalidade a partir da
exterioridade. Somente a anadialética abrirá a possibili-
dade de questionar nossa ação e nossa ética na Interven- 189
ção Sócio-familiar a partir do Outro (pessoas, famílias).
“Trata-se da disposição de dar voz a quem nunca foi
ouvido; de afirmar o novo, o imprevisível para o siste-
ma. O que surge a partir da liberdade incondicionada
do Outro” (BOUFLEUER, 1991, p.64).
A proximidade do Outro apresenta diferentes níveis
de concreção. A proximidade originária é a proximida-
de mãe-filho. “A proximidade-primeira, a imediatez
anterior a toda a imediatez, é o mamar” (DUSSEL, 1997,
p.24). O ser humano não nasce dos astros, nem da rela-
ção entre seres mitológicos, nem dos vegetais. Ele nasce
de alguém, não de algo e alimenta-se de alguém, não de
algo. Boca e mamilo formam a proximidade que alimen-
ta, acalenta e protege. Essa proximidade é anterior à pro-
ximidade do trabalho, à proximidade econômica, à pro-
ximidade erótica, à proximidade pedagógica e à proxi-
midade política.
A proximidade erótica compreende a relação homem-
mulher e mulher-homem, experiência sexual, tato e con-
tato com a intenção de sensibilizar o corpo do outro.

A erótica, a autêntica metafísica, avança no âmbito das


Correntes filosóficas: filosofia da libertação

sombras onde o outro habita. O outro, sexuado de tal ma-


neira que chama o eu à realização da ausência, nunca pode
ser tomado como mero objeto, coisa; do contrário, ao per-
der sua alteridade, perde também a capacidade plena do
éros, gratuidade, a entrega, a liberdade e a justiça.
(DUSSEL, 1977, p.87)

A proximidade pedagógica compreende as relações


pai/mãe-filhos/as, mestre-discípulo. A proximidade do
trabalho ou poiética (fazer e fazer-se) compreende a
produção material, a relação ser humano-natureza; o tra-
balho em seus mais diferentes modos (técnica, tecnologia,
190 desenho, arte, música, etc). A proximidade econômica
compreende a relação prático-produtiva, a relação do
ser humano com o “outro”, mediada pelo produto da
ação ser humano-natureza. Logo, ocupa-se com os me-
canismos da produção concreta, do intercâmbio, da dis-
tribuição e do consumo em determinada estrutura, bem
como, com as interdependências entre os mecanismos e
a referida estrutura. A proximidade política compreen-
de a relação irmão-irmão, irmã-irmã, irmã-irmão, irmão-
irmã englobando toda a ação social prática que não seja
erótica ou pedagógica.
Abrir-se para a interpelação do outro requer dois atos:
um de libertação e outro de fé. De libertação, pois o outro
é outro porque é incondicionalmente livre em relação
ao meu mundo, no qual sou o centro. Não permitir que
permaneça nessa liberdade e, que enquanto tal me in-
terpele, é destruir a sua liberdade, o seu ser, a sua pes-
soa. O Outro é aceito como livre, não liberdade da mi-
nha Totalidade, mas enquanto livre e “centro” do seu
mundo. De fé, pois o outro não pode ser analisado, in-
terpretado, ou estudado racionalmente, porque a razão
“é simplesmente a “razão” da Totalidade, além da qual
existe somente irracionalidade” (GOIZUETA, 1993,

Correntes filosóficas: filosofia da libertação


p.113). A razão não pode explicar o outro; somente o
Outro pode revelar-se a nós. Somente a fé pode adentrar-
se no mistério, na irracionalidade do outro enquanto
outro, pois ela aceita a palavra do outro porque ela re-
vela o outro (não requer que o conteúdo dessa interpe-
lação faça sentido, ou seja, correto segundo a totalidade
de quem ouve).

Crer é lançar-se no vazio porque o outro afirmou que no


abismo há água e não se corre perigo. Relação metafísica
por excelência, proximidade, revelação, fé, racionalidade
histórica suprema, humana. (DUSSEL. Filosofia da Li-
bertação, p.53) 191
O método anadialético compreende cinco momentos:
a origem no cotidiano; a demonstração ontológica das
entidades; o analético enquanto tal; a auto-revelação ética
do Outro; e o serviço em justiça.
O método anadialético tem a sua origem no cotidia-
no. Seu a priori é histórico, fundamenta-se na experiên-
cia, mas, já de início, requer um distanciamento crítico a
fim de descobrir as distorções promovidas pela razão
da Totalidade. O que possibilitará a abertura para o ho-
rizonte, tanto ontológico quanto metafísico, a fim de que
a gente se perceba, não como um prolongamento do co-
tidiano da Totalidade, mas como centro do próprio mun-
do.
Esse movimento, através dos diferentes horizontes
em direção ao horizonte ontológico e metafísico, possi-
bilitará a demonstração ontológica das entidades atra-
vés da interpretação sistemática delas, umas em relação
às outras e em relação ao horizonte ontológico de signi-
ficado. Ou seja, o cotidiano é colocado contra a tela de
fundo do horizonte de significado.
O extrapolar da totalidade do relacionamento
dialético entre o horizonte ontológico e as entidades dá-
Correntes filosóficas: filosofia da libertação

se mediante o -movimento analético enquanto tal, que


compreende a passagem do horizonte ontológico (que é
dialético) para o mistério do Outro que não pode ser
compreendido dentro desse horizonte dialético. Essa
passagem contém dois momentos: um negativo e um
positivo. Negativo, porque se acredita da impossibili-
dade de pensar no outro positivamente a partir da mes-
ma Totalidade. Positivo, porque se pensa na possibili-
dade de interpretar a revelação do Outro na perspectiva
do Outro (GOIZUETA, 1993, p.117). Nesse momento a
ontologia da dialética é superada em detrimento da
metafísica a exterioridade. A característica distintiva e
192 diferencial entre a dialética e a analética é que aquela
depende exclusivamente da minha iniciativa, enquanto
essa da iniciativa do outro, pois só se pode avançar em
direção ao Outro “na medida em que o Outro me rece-
be, ou pede a minha ajuda” (DUSSEL, apud GOIZUETA,
1993, p.118). Assim, aquilo que me interpela e desagre-
ga meu cotidiano, encontra-se localizado fora da minha
Totalidade.
O quarto momento consiste na auto-revelação ética
do Outro. Ou seja, o Outro, ao questionar o meu hori-
zonte ontológico, possibilitou a recriação desse horizonte
sob outro âmbito (a partir da ótica do Outro), o que faz
com que eu me perceba não fechado em meu próprio
horizonte de significado, mas aberto para outros hori-
zontes que estão fora do meu mundo. Em outras pala-
vras, faz com que eu descubra “que a empatia é possí-
vel” (GOIZUETA, 1993, p.118). Conseqüentemente, nego
o meu mundo como Totalidade. Nesse caso, diz Dussel,
“o filósofo, antes de ser uma pessoa inteligente, é uma
pessoa eticamente justa, uma boa pessoa; um discípulo
(do Outro)” (apud GOIZUETA, 1993, p.118).
Essa ética justa possibilita a praxis anadialética ou o
serviço em justiça, pois, segundo essa ética, a perfeição

Correntes filosóficas: filosofia da libertação


do ser humano não consiste no seu ser, mas num “amor-
em-justiça”, que ama primeiro ao outro. E, aquele que
encarna esse amor, torna-se profeta, pois torna-se porta-
voz dos sem-voz diante da Totalidade. Não substituindo
ou cooptando o Outro, mas por meio do Outro. Isso é
possível, porque o ser-como-estando-além-da-Totalida-
de e o ser-como-o-fundamento-da-Totalidade não são
absolutamente diferentes, são distintos, mas semelhan-
tes. Essa semelhança torna possível a comunicação e a
compreensão. No entanto, como ela implica em distin-
ção, elimina a possibilidade de comunicação ou de com-
preensão completas (o que fecharia ambos na Totalidade
de um deles). A distinção requer a analogia, que possibi- 193
lita o serviço por meio “da confiança, da fé, no Outro:
porque ele ou ela assim o diz” (GOIZUETA, 1993, p.121).
Segundo a lógica anadialética, o profeta, antes de ser
mestre, é um discípulo do Outro, pois o ouvir vem antes da
articulação que dará à voz do Outro perante a Totalidade. É
um processo que sempre estará aberto, com vistas à liberta-
ção do Outro, da opressão da Totalidade do Mesmo.

Atividades
1 - Ao longo da semana, permitir que um “outro”, na
Proximidade, se manifeste como “Outro” diante da
minha Totalidade.

Referências comentadas
DUSSEL, Enrique. 1423: o encobrimento do outro.
Petrópolis: Vozes, 1993.
Correntes filosóficas: filosofia da libertação

Compreende as palestras de Dussel proferidas na


Escola Crítica de Frankfurt por ocasião dos 500 anos de
“descobrimento” da América. É muito interessante, pois
desconstrói os fundamentos da filosofia européia, mos-
trando sua lógica dominadora.

DUSSEL, Enrique. Filosofia da Libertação. São Pau-


lo: Loyola/Unimep, 1977.

Esse livro traz uma fundamentação ampla dos prin-


cipais elementos e aspectos que compõem a Filosofia da
Libertação. Possibilita uma visão de totalidade.
194
DUSSEL, Enrique. Caminhos de libertação latino-
americana. São Paulo: Paulinas, 1985, v.IV, 194p.

Essa obra, além dos fundamentos, reflete a realidade


a partir dos fundamentos estabelecidos. Trata-se de uma
construção prático-teórica que em muito facilitará a com-
preensão da Filosofia da Libertação.

Referências
DUSSEL, Enrique. Filosofia da Libertação. São Pau-
lo: Loyola/Unimep, 1977.
DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro.
Petrópolis: Vozes, 1993.
DUSSEL, Enrique. Caminhos de libertação latino-
americana. São Paulo: Paulinas, 1985, V.IV, 194p.
BOUFLEUER, José P. Pedagogia Latino-americana:
Freire e Dussel. Ijuí: UNIIJUÍ, 1991, 135p.

Auto-avaliação
Correntes filosóficas: filosofia da libertação

Assinale “V” (Verdadeiro) ou “F” (Falso).


1 - Na concepção da Filosofia da Libertação a “Ontologia
da Totalidade” é a expressão da lógica do Ego Cogito
e a Metafísica da Proximidade expressa a anadialética
de libertação do Outro. ( )
2 - Na Ontologia da Totalidade o outro apenas existe
como objeto do Ego Cogito. ( )
3 - A lógica na Totalidade do Ego Cogito é a da diferenci-
ação, a da Metafísica da Proximidade é a da distin-
ção. ( )
195
4 - Para a Filosofia da Libertação, liberdade é a
incondicionalidade do outro com relação ao mundo
no qual sou o centro. ( )
5 - Na Metafísica da Proximidade, a relação privilegia
as máscaras em detrimento do rosto. ( )
6 - A Proximidade do Outro apresenta diferentes níveis
de concreção: proximidade originária (mãe-filho);
proximidade erótica; proximidade pedagógica; pro-
ximidade poiética; proximidade econômica; e proxi-
midade política. ( )
7 - O Método Anadialético de Libertação do Outro com-
preende cinco momentos: a origem no cotidiano; a
demonstração ontológica das entidades; o analético
enquanto tal; a auto-revelação ética do Outro; e, o
serviço em justiça. ( )

Gabarito
V, V, V, V, F, V, V.
Correntes filosóficas: filosofia da libertação

196
10
Correntes
filosóficas:
fenomenologia
Arno Vorpagel Scheunemann é assistente
social, mestre e doutor em Teologia,
professor de graduação e pós-graduação no
Serviço Social da ULBRA/Canoas. É autor
de todos os capítulos deste livro-texto.
Arno Vorpagel Scheunemann

O principal filósofo e criador dessa corrente filosófi-


ca é Edmund Husserl (1859–1938). Suas principais fon-
tes são Platão (idéia), Descartes (racionalidade e a dúvi-
da - meditação cartesiana) e o filósofo idealista subjeti-
vo, o austríaco Franz Brentano (1838–1917), em quem
encontrou o conceito de intencionalidade.
Houve diferentes grupos de pensadores na
fenomenologia. Na França destacaram-se Jean Paul Sartre,
Maurice Merleau-Ponty e Paul Ricoeur. Na Alemanha,
Martin Heidegger e Max Scheler. Nos anos 1970 constitu-
íram-se grupos na Inglaterra e nos Estados Unidos.
Hoje, os dois principais centros que dão continuida-
de a fenomenologia são: a Universidade Católica de
Lovaina, na Bélgica, e a Sociedade Fenomenológica In-
ternacional de Búfalo, nos Estados Unidos.
No Brasil destaca-se a Sociedade Brasileira de
Fenomenologia, com sede na Pontifícia Universidade
Católica do RS. Essa sociedade está organizada em
secções regionais: no Nordeste, através da profa. dra.
Acylene Maria Cabral Ferreira (UFBA); no Rio de Janei-
ro, através da profa. dra. Nelci Gonçalves (UERJ); em Correntes filosóficas: fenomenologia

São Paulo, através do prof. dr. José Carlos Michelazzo; e


na Região Sul, através do prof. dr. Róbson R. dos Reis
(UFSM). O principal meio de publicação e divulgação é
a Revista Internacional de Filosofia e Práticas Psicoterápicas,
cujo primeiro número foi publicado em 1999.
Fenomenologia é o estudo das essências. Mas, quais es-
sências são essas? Para responder é importante clarificar-
mos o termo fenomenologia. É formada por fenômeno e
logia (estudo). Logo, estudo dos fenômenos. Fenômeno
vem do grego phainomenon particípio presente de
phainesthai aparecer, manifestar, brilhar. Assim, 199
fenomenologia é uma investigação que busca a essência
da aparência, que se manifesta ao ser humano. Em outras
palavras, a essência do sentido que está na mente da pes-
soa. Logo, o foco da fenomenologia não são os objetos e
fenômenos em si, mas como eles são intuitivamente (pos-
tura pré-reflexiva) percebidos pela consciência.
Para Husserl, no entender de Chauí:

O que chamamos de mundo ou realidade é um conjunto de


significações ou de sentidos que são produzidos pela cons-
ciência ou pela razão. A razão é ‘doadora de sentido’ e ela
constitui a realidade não enquanto existência de seres,
mas enquanto sistema de significações que dependem da
estrutura da própria consciência. (2006, p.81)

Inicialmente, pela forte influência racionalista de


Descartes, Husserl queria, através da redução
fenomenológica, transformar a filosofia fenomenológica
em uma ciência rigorosa, em termos lógico-racionais.
Mais para o final da vida, passou a defender que não se
pode conhecer a essência de nenhum fenômeno
desconectando o sujeito da sua existência, do mundo, da
vida. Ou seja, o ser humano e a vida precisam ser com-
preendidos na sua facticidade.
Correntes filosóficas: fenomenologia

Assim, a fenomenologia se constitui tanto como uma


filosofia transcendental que coloca em suspenso (redução
fenomenológica) as percepções da atitude natural, quan-
to como uma filosofia imanente e existencial, pois para
ela o mundo está sempre aí, antes de qualquer percepção
ou reflexão. Merleau-Ponty destacou: “Todo o universo
da ciência é construído sobre o mundo vivido e, se quisermos
pensar na própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu
sentido e seu alcance, convém despertarmos primeiramente
esta experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda”
200 (apud TRIVIÑOS, 2006, p.43).
A fenomenologia se propõe a revelar os dados da
experiência pré-reflexiva na relação com a existência e o
mundo. Trata-se de um “ensaio de uma descrição direta
de nossa experiência tal como ela é, sem nenhuma conside-
ração com sua gênese psicológica e com as explicações cau-
sais que o sábio, o historiador ou o sociólogo podem for-
necer” (TRIVIÑOS, 2005, p.43).
A partir disso Husserl questionou “como pode o co-
nhecimento estar certo de sua consonância com as coi-
sas que existem em si, de as ‘atingir’?” (apud TRIVIÑOS,
2006, p.43). Ou seja, Husserl perguntava como pode al-
guém dizer que aquilo que ele conhece de um fenôme-
no ou objeto expressa realmente aquilo que o fenômeno
ou objeto são? Só poderia ter certeza disso quem tivesse
dados absolutos, inquestionáveis a respeito dos fenôme-
nos e objetos. Para ele, as “vivências são os primeiros
dados absolutos” (apud TRIVIÑOS, 2006, p.44), porque
esse conhecimento é imanente (expressão pura da reali-
dade) enquanto o conhecimento das ciências naturais e
da matemática seriam transcendentes (uma representa-
ção, construção mental da realidade).
Husserl defendia que o conhecimento da essência não
seria possível no transcendente, pois esses conhecimen-
tos são “fenômenos da ciência”, não da natureza, da exis- Correntes filosóficas: fenomenologia

tência.

A realidade constituída pela consciência transcendental ou


pela razão transcendental não se refere à existência de se-
res e sim a essências, isto é, a significações. As essências
são verdadeiras, universais e necessárias porque são cons-
tituídas a priori pela própria razão. As significações ou
essências são o conteúdo que a própria razão oferece a si
mesma para doar sentido, pois a razão transcendental é
doadora de sentido e o sentido é a única realidade exis-
tente para a razão. (CHAUÍ, 2006, p.82) 201
Como, então, seria possível conhecer a essência da-
quilo que existe e acontece, sem recorrer aos fenômenos
da ciência? Husserl responde que isso é possível através
do método fenomenológico. Esse método compreende
dois momentos:

1 - A Suspensão – Consiste em colocar entre parênteses


todas as crenças e proposições que existem sobre o
mundo natural. Também chamada de epoché (suspen-
der o juízo sobre alguma coisa de que não se tem cer-
teza) corresponde à atitude de separar, limpar para
fazer uma descrição mais pura possível. Os dados
dessa descrição não são empíricos (experimento fei-
to com o fenômeno), nem resultado do uso de algu-
ma categoria através da qual se descreve o fenôme-
no, mas resultado da presença intuitiva e intencional
da consciência perante o objeto. Exemplificando, na
abordagem de um fenômeno de violência, a suspen-
são compreende: separar o fenômeno dos demais fe-
nômenos e experiências vivenciadas pelos indivídu-
os em questão; diferenciar sentimentos, impressões
e percepções que não seja pura evidência do fenôme-
no (da violência) em questão; diferenciar todas as
informações, trabalhando apenas com aqueles que
Correntes filosóficas: fenomenologia

resultaram da presença intuitiva direta dos indiví-


duos diante da violência.
Ao realizar essa suspensão, inicia-se a clarificação da
essência do fenômeno. Através da redução
fenomenológica, conclui-se essa clarificação/descri-
ção. Trata-se do segundo passo, contudo não requer
uma separação cronológica estanque em relação ao
anterior.

2 - A Redução Fenomenológica que compreende a re-


202 dução eidética e a redução transcendental - O pri-
meiro momento da redução fenomenológica é a re-
dução eidética (essência). Trata-se da continuidade
do processo de descrição da essência do fenômeno
iniciada com a suspensão.
Husserl assim explica:

O dado absoluto não é a vivência que eu tenho como ser


humano. Não é o que eu percebo (mas aquilo que cogito,
ou seja, o sentido que, pela intuição, a vivência me propor-
ciona do fenômeno). A existência da cogitatio é garantida
pelo seu absoluto dar-se a si mesma, pelo seu caráter de
pura evidência. Sempre que temos evidência pura, puro
intuir e apreender de uma objetividade, diretamente em si
mesma, temos então os mesmo direitos, a mesma
inquestionabilidade. Este passo forneceu-nos uma nova
objetividade como dado absoluto, a objetividade da es-
sência... (apud TRIVIÑOS, 2006, p.44)

Ou seja, essa redução consiste em “cogitar” (pensar,


refletir) tudo o que foi posto em suspenso por ser de-
corrente da presença intuitiva diante da violência. As
referências e categorias desse cogitar são tiradas dos
dados revelados pela vivência intuitiva do fenôme-
no. Esse cogitar revelará a essência que é universal, Correntes filosóficas: fenomenologia

ou seja, todas as pessoas poderão viver essa essên-


cia, desde que sejam rigorosas na suspensão e na re-
dução eidética. Assim, a essência do mundo que eu
conheço pode ser conhecida por todos.
Esse princípio revela a fenomenologia como uma fi-
losofia que estuda o universal intersubjetivo. Ao con-
trário dos que a acusam de subjetivismo solipsista.

O segundo momento da redução fenomenológica é a


redução transcendental. Essa Husserl passou a defen-
der ao final de sua trajetória. Compreende o processo de 203
questionamento da consciência que elimina o que a ela
é dado e se dirige a sustentar sua pureza intencional. Em
outras palavras, é preciso se perguntar: “que consciên-
cia é essa que intuitivamente revela os dados da essên-
cia dos fenômenos?”. Responder essa pergunta implica
colocá-la e conhecê-la na existência, no mundo vivido. Ao
colocá-la na existência perceber-se-á que a
intencionalidade da consciência que percebe, suspende
e cogita, é condicionada pela existência.
Intencionalidade é o conceito básico na
fenomenologia. Com ela a fenomenologia quer superar
a dicotomia entre razão e experiência/prática. Para ela
a consciência sempre é intencional, pois toda a consciên-
cia é consciência de algo, logo, não há consciência pura
como queriam os racionalistas. Não é possível nenhum
conhecimento se o entendimento não se sente atraído
por algo, por um objeto. Da mesma forma, não há objeto
em si, pois ele só existe para o sujeito que lhe dá o signi-
ficado.
Apesar da contextualização da consciência, perma-
necem contra a fenomenologia as críticas de a-
historicidade e subjetivismo-solipsista. Em relação à
historicidade, em nenhum momento se percebe inte-
resse pela história dos fenômenos. Pelo contrário, a
Correntes filosóficas: fenomenologia

busca pela essência pressupõe o completo isolamento


do fenômeno. Isso lhe rendeu a acusação de ser conser-
vadora, de mantenedora do sistema. Os conhecimen-
tos por ela produzidos em pouco contribuiriam na su-
peração das estruturas opressoras e excludentes que
limitam e inviabilizam a existência livre da maioria das
consciências.
Outro questionamento diz respeito à desreificação do
conhecimento (deixar de transformá-lo numa coisa).
Com sua ênfase na subjetividade dos atores envolvidos
204 nos fenômenos, a fenomenologia desreificou o conheci-
mento, mas apenas em nível da consciência, mantendo
a reificação histórico-existencial.
Contudo, para além desses questionamentos, é ne-
cessário afirmar a importância das seguintes contribui-
ções da fenomenologia:

• considerando a intencionalidade da consciência, não


existe realidade ou mundo absolutamente objetivos;
• considerando a experiência intuitiva pré-reflexiva, é
impossível afirmar que é possível chegar à essência
da realidade exclusivamente pela razão;
• a essência dos fenômenos e objetos é dada pela intui-
ção, não pela razão, pois essa trabalha com elemen-
tos construídos por ela mesma, não com os dados da
coisa como é;
• a neutralidade e objetividade absolutas são impossí-
veis na relação com os fenômenos, objetos e pessoas;
• por fim, o questionamento da razão reflexiva como
único caminho para se chegar à verdade e a essência
dos fenômenos, abrindo caminho para a afirmação
das demais dimensões do ser como importantes no
processo de compreensão dos fenômenos e objetos.

Resumindo, a essência dos fenômenos e objetos não Correntes filosóficas: fenomenologia

está na idéia, porque ela é construção da razão e da cons-


ciência. A essência dos fenômenos e objetos não está nos
dados positivos da experiência científica, porque esses
dados são obtidos mediante categorias a priori
construídas na razão, logo não revelam a realidade como
ela é. Até porque antes de qualquer atividade da razão a
realidade já se deu a si mesma, pela intuição, à consciên-
cia. A essência dos fenômenos e objetos não está na ma-
téria objetiva em si, porque ela só existe para a consciên-
cia através da intencionalidade intuitiva. Ou seja, a es-
sência da violência não está no processo dela na realida- 205
de, mas no sentido que a consciência percebe ao vivenciá-
la pré-reflexivamente (intuitivamente).

Atividades
1 - Realizar uma entrevista com 3 a 5 pessoas pergun-
tando:
a) O que é mais importante: os acontecimentos em
si (como acontecem na realidade) ou o sentido
que esses acontecimentos têm para você (aqui-
lo que você pensa e sente a respeito)?
b) Suas decisões no dia-a-dia baseiam-se mais nos
acontecimentos em si ou naquilo que você sen-
te e pensa a respeito dos mesmos?
OBS: Relatar as respostas relacionando-as com a “es-
sência dos fenômenos” da fenomenologia.

Referências comentadas
SCHÜTZ, Alfred. Fenomenologia e relações sociais.
Correntes filosóficas: fenomenologia

Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 319p.

Trata-se de um clássico que, além de apresentar os


fundamentos, busca compreender as relações sociais na
perspectiva fenomenológica. Alfred Schütz é, depois de
Husserl, o autor fenomenológico com maior influência
no Serviço Social.

206
Referências
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Ma-
ria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia.
São Paulo: Moderna, 2002.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13.ed. 6a.
reimpressão. São Paulo: Ática, 2006.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia – his-
tória e grandes temas. 16.ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filo-
sofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 6.ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
RICHARDSON, Roberto Jarry. Pesquisa social:
métodos e técnicas. 3.ed. São Paulo: Atlas, 1999.
334p.
ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxis-
mo ocidental nas trilhas do materialismo histórico.
São Paulo: Boitempo, 2004, 239p.

Auto-avaliação
Assinale “V” (Verdadeiro) ou “F” (Falso).
Correntes filosóficas: fenomenologia

1 - Fenomenologia é o estudo das aparências. ( )


2 - Para Husserl, o que chamamos de realidade é um
conjunto de significações ou de sentidos produzidos
pela consciência ou pela razão. ( )
3 - A Fenomenologia se propõe a revelar os dados da
experiência reflexiva. ( )
4 - A descrição fenomenológica é um ensaio de uma des-
crição direta de nossa experiência tal como ela é. ( )

207
5 - O segundo momento do método fenomenológico
compreende: a suspensão e a redução transcenden-
tal. ( )
6 - Para a Fenomenologia não existe consciência pura,
pois para qualquer conhecimento é necessário que o
entendimento se sinta atraído por algo. ( )
7 - Para a Fenomenologia a essência dos fenômenos e
objetos não está na idéia, porque ela é construção da
razão e da consciência, mas na experiência pré-refle-
xiva. ( )
8 - Considerando a intencionalidade da consciência,
não existe realidade ou mundo, absolutamente ob-
jetivos. ( )

Gabarito
F, V, F, V, F, V, V, V.
Correntes filosóficas: fenomenologia

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