EtnoSemiotica PDF
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Parra, Aldo
Linguagem escrita e matemática: Um Viés Etnomatemático
Revista Latinoamericana de Etnomatemática, vol. 6, núm. 2, junio-septiembre, 2013, pp. 24-34
Red Latinoamericana de Etnomatemática
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www.redalyc.org
Projeto acadêmico não lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto
Parra, A. (2013). Linguagem escrita e matemática: Um Viés Etnomatemático. Revista Latinoamericana de
Etnomatemática, 6(2), 24-34.
Aldo Parra1
Resumo
Exploram-se algumas relações entre linguagem e matemática desde um olhar etnomatemático, discutindo-se
a presença de regras sintáticas dentro de diversas produções culturais, regras que são estritamente seguidas e
provem espaço para a criatividade. O referencial teórico é providenciado pelos trabalhos sobre linguagem de
André Cauty e sobre semiótica de Raymond Duval. Isto leva a perguntar sobre a necessidade de uma rigorosa
sintaxe como elemento distintivo na atividade matemática, ou seja, dentro do conjunto das ticas de matema
de um grupo particular. Este trabalho salienta a ampliação do conceito de texto matemático, para albergar
uma serie de praticas culturais não sempre reconhecidas.
Abstract
Some relations between Language and Mathematics are explored, using an ethnomathematical insight,
discussing the existence of syntactical rules in several cultural practices. Rules are followed in a strict order
and simultaneously bringing enough space to creative acts. The theoretical framework is provided by the
work of André Cauty on language and Raymond Duval on semiotics. The question about the necessity of a
strong syntax as a characteristic feature of mathematical practices is addressed, in other terms, inside the set
of mathematical practices in a specific human group. The article encourages the reader to look for a wider
concept of “mathematical text”, leading into the consideration of several cultural practices that often remain
unrecognized.
1
Pesquisador do Centro de Investigaciones Indígenas de Tierradentro (CIIIT). Coordenador para Colômbia da
Red Latinoamericana de Etnomatemática. Membro do GEPEtno da UNESP-Rio Claro em 2010-2011, Mestre
em Educação Matemática da UNESP – Rio Claro/SP. Bogotá, Colombia. aiparras@unal.edu.co
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INTRODUÇÃO
Uma das características mais marcantes na matemática acadêmica é a existência de uma
linguagem escrita, pensada frequentemente como se não tivesse semântica 2, embora esteja
provida de regras sintáticas muito rigorosas. Além disso, é comum escutar que a
matemática, mais que ter uma linguagem, é uma linguagem. Não esquecemos a frase3
atribuída a Galileo sobre as matemáticas como linguagem da natureza. Partindo dai, um
adequado manejo da sintaxe dos objetos a trabalhar, bem como o respeito pelas
propriedades deles, nos variados registros de representação, garantiriam a confiabilidade
dos resultados obtidos e fariam parte constitutiva e imprescindível do raciocinar
matemático. Em grande medida os adjetivos de “abstrata” e “simbólica” que recebe a
matemática, descansam neste tratamento da linguagem escrita.
2
Lembre-se o exemplo de Hilbert sobre mesa, cadeira e copo de cerveja para falar de geometria. Que
apontava, ao meu ver, a considerar as relações entre objetos, sem se preocupar pela entidade dos objetos em
si. Isto faz parte da “natureza simbólica” que Lins (2004) vê nos objetos da matemática acadêmica.
3
“.. [o] grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode
compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em
língua matemática..”Galilei (1999. p. 46)
4
Este pesquisador, atua na área da Semiótica e suas relações com a Educação matemática. Remetemos ao
leitor a essa obra, onde se define e desenvolve o conceito de representação semiótica. Neste artigo se
assumirão concepções básicas de semiótica, sintaxe, semântica e pragmática (estas três últimas fazem parte da
semiótica). Caso o leitor fique na duvida do significado destes quatro termos, no Dicionário de Filosofia de
Ferrater-Mora (2001) pode encontrar um apoio rápido consultando o verbete de Semiótica.
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exige para considerá-los constituintes de uma língua; ainda que, para este autor ambos
sejam reconhecidos como representações semióticas. A necessária existência de múltiplos
registros semióticos de representação (RSR) para um mesmo objeto (com a possibilidade de
fazer transformações/passagens entre estes registros), e a impossibilidade de acessar os
objetos pela percepção material (exigindo uma representação) são duas características que
para Duval definem de forma exclusiva a atividade cognitiva própria dos procedimentos
matemáticos e que determinam seu aprendizado.
5
O texto original é: “no existe ningún pensamiento en estado puro, independientemente de una forma que lo
expresa, lo representa y permite, sobre todo, comunicarlo a los otros” (2001, p. 75).
6
Parte do trabalho de Barton(2008) na sua obra The Language of Mathematics é evidenciar esse papel.
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O pensador espanhol Javier de Lorenzo afirma: “o fazer matemático é algo mais do que
linguagem: precisa da linguagem, mas não é resolvido por ele” De Lorenzo ( 2000 citado
por Zalamea, 2007, 11). Zalamea (2008) também se pronuncia contra o intento de reduzir
“matemática” à “gramática”, tomando inúmeros exemplos de desenvolvimentos
matemáticos do século XX, em que o tratamento da linguagem escrita é insuficiente para
explicar o seu desenvolvimento conceitual. Igualmente na revisão feita por Ariza (2007) se
evidencia que, dentro da matemática acadêmica, outras abordagens críticas já tinham sido
feitas por Poincaré quando fala de intuição e criatividade, e primariamente por Peirce, ao
negar que a matemática seja um ramo da lógica, indicando que esse conhecimento envolve
uma problemática semiótica que excede por muito a temática da escrita notacional.
Em resumo, procuro evidenciar alguns limites da linguagem matemática escrita na forma
canônica, seja pelo viés da escrita, quanto da matemática. Esta digressão permite esclarecer
que não é pretensão deste artigo negar a potencialidade da língua natural, eminentemente
oral, e dona de riquíssimas e variadas estruturas em que se desenvolve o conhecimento.
Também não há interesse em elevar a escrita como o núcleo duro (core) do fazer
matemático8. Simplesmente quero apontar algumas características distintivas da linguagem
escrita, que acho úteis para desenvolver trabalhos em Etnomatemática.
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O texto original é: “los esquemas especialmente producidos por la matemática tienen una semántica interna
que trasciende cualquier simple reducción a la lógica formal. (…) [La matemática] es un pensamiento en
permanente labor constructiva y la naturaleza de su despliegue excede cualquier posible reducción a una
‘situación de lengua simbólico-formal. Es decir, ningún lenguaje formal es suficiente para dar cuenta en su
totalidad de la ‘naturaleza del hacer matemático’, ya que es su carácter ‘diagramático’ lo que articula
manifiestamente su propia lógica interna.” (p. 3)
8
No improvável caso de que esse núcleo exista ou possa ser descrito.
9
Não utilizo “escrita” porque essa palavra refere também a um processo de geração de uma representação, ou
ao ato de gerá-la. Poderia ser dito também que texto é o resultante da escrita.
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texto poderia ser uma cadeia aceita de sinais/símbolos/signos que pertencem a uma
linguagem compartilhada. Vou acrescentar uma condição de materialidade física, que o
registro seja percebido visualmente, e faço isto porque um tratamento sério de textos
“olfativos”, “sonoros” ou “tácteis” requereria artigos independentes, o que naturalmente
escapa dos limites desta pesquisa e possivelmente da minha capacidade 10. Uma motivação
adicional para o recorte é a quantidade de material disponível sobre as relações entre
linguagem e matemática11. Note-se que nesta definição de texto é visível um campo de
práticas conveniadas por um grupo humano, que impõe regras sintáticas mutáveis,
temporárias e em função dos interesses do grupo, para que possa dar-se o ato semiótico de
conhecer. Desse modo, um texto pressupõe uma gramática e um grupo de leitores.
10
Um motivo mais pessoal que me leva a focar no texto visual, é a enigmática relação da escrita com a
morte, essa vontade que o humano tem de gerar alguma coisa que fique depois de que ele desapareça
corporalmente, embora ele como autor não conheça os futuros receptores do que produz.
11
Em Meaney, Fairhill & Trinick (2008) se encontra um estudo sobre estas relações, além de referenciar uma
mostra de trabalhos de diferentes países.
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Figura 2: Ideograma que representa em detalhe o mundo físico e o mundo espiritual unidos pelo
conhecimento. Foto tomada por Carlos A. Guegia, 2007. Chumbe.
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12
Não é usual encontrar pesquisas etnomatemáticas onde o estudo das regras sintáticas das representações de
um povo sejam o elemento central. A grande maioria esta voltada ao problema szemântico, desconhecendo
que a semiótica também compreende a sintaxe e a pragmática.
13
Existem variadas posturas sobre a possibilidade e pertinência de ditas articulações. Para obter uma visão
mais ampla destas posturas, remetemos ao leitor a Scandiuzzi (2002) e a Rosa & Orey (2003) por ser duas
colocações contrarias.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Perante a presença de diversas escritas nos povos, fica aberta a questão da
possibilidade/impossibilidade, necessidade e dificuldade de gerar trânsitos, traduções e
14
Que mesmo dentro da matemática está sendo desafiada faz pelo menos 100 anos, como bem lembram Ariza
ou Zalamea.
15
Este enfoque sociológico da matemática, que é proposto para a etnomatemática por Baldino (1996) recebe o
aporte de Lins (2004), quando este afirma que, embora os objetos matemáticos sejam definidos
relacionalmente pelos matemáticos, podem se encontrar algumas características (internalismo e natureza
simbólica) que diminuem a arbitrariedade ao explicá-la.
16
O texto original é “The metaphor of a braid of many strands and fibres, is more appropriate than that of a
river with tributaries”(p.106)
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transformações entre linguagens matemáticas escritas de diferentes povos, cenário onde não
se pode abrir mão das línguas naturais, tal como foi avistado de formas diferentes por
Cauty (1998) e Barton (2008). Lembrando que cada texto traz consigo gramáticas e
leitores, estas interações entre textos são na verdade interações entre povos, tendo que levar
em conta as relações de poder envolvidas em todo encontro de diferentes. Mesmo assim,
vejo o debate desta questão como um imperativo da atitude transcultural. Como Welsch
explica: “A tarefa básica não está concebida como um entendimento das culturas
estrangeiras, mas de uma interação com a estranheza. O entendimento pode ser útil, mas
nunca é suficiente sozinho, ele tem que envolver progresso na interação”(citado por Barton
2008, 38). Tradução minha.17 Desde o reconhecimento da possibilidade de diálogo, não é
aceito que a inexperiência que possa ter um grupo cultural em lidar com os símbolos
classicamente definidos pela disciplina acadêmica constituída possa envolver uma
incapacidade de compreender os objetos matemáticos representados por esses símbolos.
Também se discorda com que a impossibilidade que apresentam alguns conceitos próprios
de um grupo cultural para ser traduzidos de forma simples à linguagem codificada aceita
pela comunidade matemática, signifique que eles estejam desprovidos de conhecimento
racional. Concordar com isso só conduziria a manter as nefastas relações hegemônicas
entre os povos, que tem demonstrado seu poder etnocida.
Com esta reflexão espero ter estruturado desde o campo da etnomatemática, um
questionamento à pretensa exclusividade de uso de representação simbólica que teria a
matemática acadêmica, pela observação de diversas práticas de escrita, providas de regras
de sintaxe tão rigorosamente respeitadas e que proporcionam tanto espaço para a
criatividade, quanto a linguagem disciplinar historicamente privilegiada.18
17
O texto original é: “The basic task is not to be conceived as an understanding of foreign cultures, but as an
interaction with foreignness. Understanding may be helpful, but is never sufficient alone, it has to enhance
progress in interaction.”(p. 38)
18
Quero agradecer aos professores Armando Aroca e Luis Carlos Arboleda pelas valiosas sugestões que
deram para este escrito, e que me foram muito úteis para esclarecer intenções e entendimentos. Também aos
meus colegas do GEPEtno-Rio Claro, pelo mesmo motivo e pelas abundantes correções do meu portunhol.
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REFERÊNCIAS
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Publications Inc.
Baldino, R. R. (1996). O “Mundo-Real” e o Dia-a-Dia na Produção de Significados
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Cauty, A. (1998) Etnomatemáticas: El Laboratorio Kwibi Urraga de la Universidad de la
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http://etnomatematica.org/articulos/cauty4.pdf
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