Por Uma Escrita Dos Restos
Por Uma Escrita Dos Restos
Por Uma Escrita Dos Restos
Produção Editorial
Coordenação Editorial: Gisele Moreira e Magno Carvalho
Revisão: Aline Canejo
Capa: Paulo Vermelho
Diagramação: Leonardo Paulino Santos
BOCA 13
Cidade macota de São Paulo 13
O silêncio da suçuarana e o canto das sereias 24
O silêncio e o sexo 37
A ciência que faz confessar 43
Em Brasília, as coisas se decidem 55
Forró Sacana 63
Anuncio as imagens 70
Silêncio. Assassinato. Jornal 74
PELE 79
Perigo no balcão 79
Programas de televisão 81
Unhas tingidas de graxa 85
Cacos. Restos. Pedaços. [Obra] 88
O Rio da missão 90
XIV Beatriz Adura Martins
O Sol 93
Cacos. Restos. Pedaços. [Catação] 94
Cacos. Restos. Pedaços. [Contação] 103
O rasgo de visão: fragmentos e jornais 116
A informação e o confinamento do presente 125
VÍSCERAS 135
Obstrução à luz do Sol 135
A ossatura vai ao baile 140
Ruas imundas, traços e destinos 149
Mortes. Pedras. Superfícies 159
Raiz e flores 163
CARTILAGEM 169
Elastina no pé 169
Carro branco importado 180
El relicário: um filme no celular 192
Saco preto cheio de musgo 201
EPÍLOGO 215
BIBLIOGRAFIA 217
Prefácio
***
***
16
ANDRADE (2013, p. 16-17).
17
“Sob os dedos do outro que nos percorrem, todas as partes invisíveis de nosso
corpo põem-se a existir”. (FOUCAULT, 2013, p. 16).
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 27
e os assassinatos de travestis
18
AGAMBEN (2008, p. 10).
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 29
e os assassinatos de travestis
simultaneamente ou em diferentes
períodos, durante a doença. Os tiques
ocorrem muitas vezes ao dia, de forma
recorrente, [100] ao longo de um
período superior a 1 ano (Critério B).
Durante este período, jamais houve
uma fase livre de tiques superior a 3
meses consecutivos. A perturbação
causa acentuado sofrimento ou prejuízo
significativo no funcionamento social,
ocupacional ou outras áreas importantes
da vida do indivíduo (Critério C). O
início do transtorno ocorre antes dos 18
anos de idade (Critério D). Os tiques
não se devem aos efeitos fisiológicos
diretos de uma substância (por ex.,
estimulantes) ou a uma condição médica
geral (por ex., doença de Huntington
ou encefalite pós-viral) (Critério E).19
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
[DSM] já está partindo para sua sexta versão e desempenha
papel crucial em nossas compreensões sobre o gesto. Mais
do que apresentar uma avalanche de possibilidades diag-
nósticas sobre movimentos corriqueiros do nosso dia a dia,
como piscar, por exemplo, o texto que se apresenta para
o garoto encerra qualquer possibilidade de seu movimento
ser extraordinário. Assim, o encarcera numa representação
de qual movimento tem aval para não ser rotulado pelo oni-
potente DSM. Todo o gesto passa a ser dirigido a um fim; o
gesto passa a ser destino finito ou finalizante. O gesto é fim.
Pode haver a presença de tiques moto-
res complexos envolvendo toques, aga-
19
Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – DSM-IV.
30 Beatriz Adura Martins
21
ANDRADE (2013, p. 31).
32 Beatriz Adura Martins
23
KAFKA (2014, p. 615).
24
Na tradução utilizada, Ulisses é Odisseu.
25
HOMERO (2014, p. 350).
26
HOMERO (2014, p. 350-351).
34 Beatriz Adura Martins
31
MONTEIRO (2012).
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 37
e os assassinatos de travestis
O silêncio e o sexo
Um canto é anunciado por Foucault.
Um rápido crepúsculo se teria seguido
à luz meridiana, até as noites monóto-
32
BLANCHOT (2005, p. 6).
38 Beatriz Adura Martins
37
FOUCAULT (1999, p. 149).
38
HOLLANDA, Chico Buarque de. O que será [à flor da pele], 1976.
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 41
e os assassinatos de travestis
39
FOUCAULT (1999, p. 23).
42 Beatriz Adura Martins
42
FOUCAULT (1999, p. 26).
44 Beatriz Adura Martins
***
60
Lampião da Esquina, 1981, p. 3.
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 63
e os assassinatos de travestis
Forró Sacana
“E eu ainda sou bem moço pra tanta tristeza / E
deixemos de coisa, cuidemos da vida, / Pois se não che-
ga a morte ou coisa parecida / E nos arrasta moço sem
ter visto a vida”.
As meninas cantavam bem alto, embaladas pelo for-
ró do Fagner. Nossa... Como gostavam dessas noites! Vir-
gínia era auxiliar de limpeza de uma terceirizada em São
Paulo. Agradecia todos os dias por ter saído das ruas, não
gostava nada daquela vida, mas ainda mantinha algumas
61
BENTO e PELÚCIO (2012), ao montarem os caminhos dos enfrentamentos exer-
cidos pelas “pessoas trans” à máquina diagnóstica, perguntam o que se pode consi-
derar um enunciado organizativo ao problema do excesso de palavras para falar do
sexo e fazê-lo falar. Sem dúvida, a discussão sobre a patologização das “identidades
trans” e o movimento “Pare a Patologização” são marcos importantes na tomada das
rédeas, ou no controle das velas das diversas embarcações que podem ser criadas
nesse povoado debate. Ressalta-se que este livro não abordará especificamente esse
problema, mas gostaria de fazer ondas nesse mar.
64 Beatriz Adura Martins
62
Disponível em: http://noticias.band.uol.com.br/primeirojornal/conteudo.as-
p?id=100000436160. Acesso em: 25 fev. 2015.
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 65
e os assassinatos de travestis
tuir. Aliás, as duas não queriam mais ter essa questão: falar
de suas vidas sexuais, afirmar o porquê de ser travestis; se
diziam travestis por conveniência.
– Que inoportuno tudo isso! Quem tem tanta
curiosidade?
O forró era a bênção dos fins de semana. Lá se
divertiam muito. Paqueravam e eram paqueradas. Am-
bas tinham vindo do Sergipe e, apesar de cidades pró-
ximas, foram se conhecer mesmo na imensidão pau-
lista. O forró de Fagner, além de adorarem o cantor,
trazia canções que faziam as meninas se emocionarem.
Naquela noite, a música que cantavam bem alto era
uma destas.
“Eu só queria ter do mato / Um gosto de fram-
boesa / Pra correr entre os canteiros / E esconder mi-
nha tristeza”
Estavam de saco cheio de serem reconhecidas
como “as travestis que deram certo” e cantavam mais
alto o forró, para lembrar que só queriam ter do mato
um gosto de framboesa. Acreditem que, uma semana
antes deste forró, as duas tinham participado de uma
pesquisa qualitativa para pesquisadoras psicólogas que
queriam que elas contassem como “se viam travestis”.
As psicólogas tiveram que insistir muito, pois elas não
queriam falar. Pediram para que as pesquisadoras fos-
sem conversar com Inara e Alê, ambas militantes LGBT
que teriam mais o que dizer, mas as psicólogas insisti-
ram e elas toparam. As perguntas iniciais:
– Como vocês se perceberam travestis?
– Como foi contar para a família?
66 Beatriz Adura Martins
63
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_816qlEP_ho.
Acesso em: 24 fev. 2015.
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 69
e os assassinatos de travestis
Anuncio as imagens
Lembro-me de uma tarde de janeiro de 2014 que me
atormentou. Do jornal, chegava a informação do aumen-
to no número de assassinatos motivados por sexualidade e
gênero. Provavelmente, Virgínia estava naqueles números
que me eram trazidos. “Morre um homossexual a cada 28
horas no Brasil”. Eu li. Lia e relia a matéria, passeava por
diversas páginas da internet.65 Não precisei sair de casa para
saber que morre, em média, um homossexual por dia no
Brasil.Tortura e violência são somadas ao ato de exterminar
os chamados LGBTs. Quem mapeou foi o Grupo Gay da
Bahia (GGB), que há alguns anos faz esse levantamento para
apresentar ao Estado brasileiro. Em sua metodologia, o GGB
conta como faz o levantamento desses crimes. Sua principal
fonte são matérias de jornais; dali, colaboradores saem em
busca de mais relatos, inclusive com contato policial em
busca de oficialidade aos números. Cria-se, a partir da busca
ativa de homicídios, uma rede com diversas organizações
não governamentais do país, para que todas possam ser
capazes de produzir o mesmo levantamento.66
Luiz Mott, coordenador da pesquisa, tem clareza da
subnotificação dos números de mortes. Chama a atenção
em: http://noticias.terra.com.br/brasil/travesti-morto-no-bras-foi-vitima-de-ho-
mofobia-diz-amiga,4ba56253b3894410VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.html.
65
Disponível em: http://www.brasilpost.com.br/2014/02/13/assassinatos-gay-
-brasil_n_4784025.html. Acesso em jan. 2015.
66
MOTT (2000).
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 71
e os assassinatos de travestis
67
Em 2011, no Rio de Janeiro, uma rede de cafetinagem foi denunciada pelas tra-
vestis e transexuais que faziam ponto em Copacabana. Indianara Siqueira (militante
protegida pelo programa de defensores de direitos humanos) fez este relato em seu
Facebook, o que nos apresenta um pouco mais a atmosfera do debate: “Vingança de
cafetões e cafetinas presos após denúncias das travestis/transexuais de Copacabana,
rede de cafetinagem que foi liberada novamente (pois já foram presos outras vezes)
e alguns que nem sequer foram presos, nem julgados. Após várias denúncias e entra-
rem e saírem da prisão, cafetões e cafetinas voltam a pressionar e ameaçar travestis
que trabalham como profissionais do sexo em Copacabana... Pedimos socorro, não
queremos ser as próximas vítimas por negligência do Estado que não sabe ou não
tem intenções nenhuma de nos proteger. Cadê a proteção prometida pelo Centro
de Referência LGBT do Rio De Janeiro e pela Secretaria de Direitos Individuais
Coletivos e Difusos?! Ah é, esqueci que na realidade virou Centro e Secretaria de
Arquivamento, ao menos para nós, travestis e transexuais, já que nossos boletins de
ocorrências de discriminação e expulsão de comércios em geral nunca são acom-
panhados. Rio de Janeiro, o melhor destino gay do mundo... Infelizmente essa é a
nossa realidade”. Disponível em: https://www.facebook.com/indianara.siqueira/
posts/284400541598011. Acesso em: 06 mar. 2015. Logados no Facebook.
72 Beatriz Adura Martins
Perigo no balcão
Metrô carioca. Atravesso a Avenida Rio Branco e
sigo. Lojas de roupas se misturam a vendedores de milho.
Tudo vai ficando muito quente. É possível viver no Rio
de Janeiro sem sofrer com o calor? Compro um milho;
alguém me avisou que é a coisa mais saudável para se co-
mer na rua. Nem me lembro quem, mas certamente foi a
mesma pessoa que disse para nunca consumir água de coco
resfriada por aqueles carrinhos verdes, os queridos “Gela-
coco”, mas sempre consumir o coco in natura. Eu insistia
em obedecer aos conselhos, adoro conselhos. Esses não
refrescavam tanto. Calor.
Em frente, andando, comendo milho, bebendo água
de coco. Estava atrasada para alguma reunião que decidiria
80 Beatriz Adura Martins
Programas de televisão
Senta. Liga. Olha. Ouve. Zapeando...
Canal 1 – O pastor evangélico esbravejava. A re-
pórter enfurecida defendia os direitos civis. Diz daqueles
direitos que são para qualquer um e que, de certo modo,
atestam a condição de cidadão e de pertencimento a um
dado território. Na Baixada Fluminense, mais um corpo
82 Beatriz Adura Martins
85
FOUCAULT (1993, p. 1999).
86
DONOSO (2013, p. 16).
86 Beatriz Adura Martins
lembrar que ele era psicólogo. Nunca esse título foi tão
poderoso. Mas pedia menos ódio ao “parças”, pois os “vea-
dos” eram pessoas problemáticas, precisavam de uma se-
gunda chance, ainda que achasse muito complicado esse
negócio de travesti. “Esse pessoal tem dupla personalidade
e é tudo bandido”. Lembrou-se de um amigo que foi se
meter com essa gente e acabou mal. “O cara era lutador
de jiu-jítsu, morava na Zona Sul, tinha tudo de bom, es-
tudante de Direito, mas foi se envolver com isso aí...”. O
amigo abriu um pouco mais a camisa, pediu mais uma ge-
lada, estava muito curioso com o fim da história. “Acabou
matando a bicha, foi preso, mas isso porque inventaram
que ele era usuário de crack”.87
Já com a camisa escancarada – não o culpo, é muito
calor na Cidade Maravilhosa –, àquelas mãos que bateram
no balcão, a raiva parecia muita pela prisão do jiujiteiro ex-
torquido. Eles mostraram os dentes, sorriram para a raiva.
Ao lado, um sujeito franzino com as costas curvadas lança-
va uma cusparada no chão. O corcundinha embebedado da
água marvada balbuciava para deixar as “meninas” em paz.
Outros homens, com camisas abertas e cordões que tra-
ziam Jesus no peito, também pediram calma ao PanchoVega
brasileiro. A assembleia estava armada. O balconista era o
coordenador. O balcão era a arena: todos em volta. Apres-
sei-me em pedir mais uma Coca-Cola. O ovo cor-de-rosa
era descascado por um moço jovem que pedia apenas para
que as bichas não mexessem com ele. Não se importava
com o que faziam a quatro paredes. O corcundinha con-
87
Disponível em: http://extra.globo.com/noticias/rio/estudante-e-preso-acusa-
do-de-matar-travesti-132023.html. Acesso em: 10 jan. 2015.
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 87
e os assassinatos de travestis
***
O Rio da missão
Toca pra Glória. Cabelos ao vento e aquele sacode
que só a cidade do Pão de Açúcar tem. No meu colo, já
segurava duas bolsas, mais a minha e uma outra que ia
esbarrando na minha cara. Quando chegou na Presidente
Vargas, as coisas se acalmaram e o ar entrou pelas janelas
semiabertas, pois abrir por completo é pedir muito àque-
le transporte público que não passava por uma vistoria há
tempos – ao menos assim aparecia aos nossos sentidos.
Já chegávamos à Central do Brasil. Aquela do filme que
levou o país ao Oscar também é responsável por trazer
muitos cariocas do subúrbio ao Centro. E encarrega-se de
levá-los de volta – aliás, para a logística do cartão-postal,
isso é fundamental. Desceu muita gente naquela estação.
O ônibus ficou mais quieto e mais branco. Seguíamos
para a Zona Sul.
A pasmaceira durou pouco. No Rio de Janeiro, se
quiser respirar tranquilamente e apreciar as “verdes ma-
tas”, é preferível ir direto a elas. Certamente convidarão o
visitante a ser acompanhado por guias turísticos; se for gay,
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 91
e os assassinatos de travestis
91
Disponível em: http://www.ebc.com.br/noticias/2015/02/publico-lgbt-asse-
gura-30-das-receitas-do-carnaval-do-rio. Acesso em: 07 abr. 2015.
92
Mochilas azuis, verdes e amarelas foram distribuídas para os fiéis que faziam suas
inscrições na Jornada Mundial da Juventude. Os preços das inscrições variavam de
acordo com o pacote que podia ser R$ 100,00 a R$ 600,00 por fiel.
93
“Visita do Papa Francisco ao Brasil deverá custar quase R$ 120 milhões aos co-
fres dos governos federal, estadual e municipal. Por outro lado, Igreja pretende
arrecadar cerca de R$ 300 milhões.” (http://www.pragmatismopolitico.com.
br/2013/05/visita-do-papa-ao-brasil-custara-r-118-milhoes-aos-cofres-publicos.
html. Acesso em: 15 out. 2013).
92 Beatriz Adura Martins
O Sol
96
BAUDELAIRE (1985, p. 319).
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 95
e os assassinatos de travestis
97
BENJAMIN (1997, p. 73).
98
SILVA (2012, p. 186-187).
96 Beatriz Adura Martins
***
102
GAGNEBIN (2012, p. 33 e 34).
103
MELENDI (2012).
104
“O profano é um antidoto tanto contra a iluminação religiosa quanto contra a
mitologia capitalista” (GATTI, Luciano. “Walter Benjamin e o Surrealismo: escrita e
iluminação profana”. Artefilosofia. Ouro Preto, n. 6, p. 90, abr. 2009).
100 Beatriz Adura Martins
108
SÁ-CARNEIRO. Fim.
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 105
e os assassinatos de travestis
109
BANDEIRA (2010, p. 20).
110
BRECHT apud RÖHRIG (2010, p. 13).
111
BENJAMIN (996, p. 79).
106 Beatriz Adura Martins
***
que passou, mas como uma história por vir. Opera-se uma
inclinação ao passado. O burro, os amigos e o moribundo
inauguraram um movimento, ou certo deslocamento para
a experiência do fim. Longe do exercício confessional ou
de extrema-unção, não buscaram ser fiéis à verdade do pe-
dido, mas se aproveitaram da experiência do amigo. Hou-
ve uma necessidade de não encerrar o parceiro no leito de
morte. Houve uma força que procurou apresentar à histó-
ria contada pelo moribundo outro tecido de acontecimen-
to. Como trazido por Blanchot, “[...] a narrativa começa
aonde o romance não vai, mas para onde conduz, por sua
recusa e sua rica negligência. A narrativa é heroica e pre-
tensiosamente, o relato de um único acontecimento”.119
A história não é extraordinária porque consta de
grandes fatos, mas convida a imagens violentas que con-
duzem a momentos que não podem ser verificados. Até
a morte se sabe pelo relato. O relato não mais imediato,
mas contado, é o episódio. Não raro, há esforços para que
o gesto de contar seja transformado em mentira, disse-
cando seu poder de acontecimento e o adjetivando como
ficção. O relato contado, assim, ganha apetrechos e firulas
e se confunde com um pararrelato, aquilo que serve como
adereço ao fato verdadeiro. Blanchot alertará que a nar-
rativa escapa ao mundo da verdade habitual e afirma esse
desgosto da narrativa de ser confundida com uma ficção.
O mundo da verdade habitual tem medo da falta de efeito.
A distância que se anima a partir do relato, de modo
épico, estranha o drama, seu ponto exclamativo. Abre-se
uma jornada incrível, exige-se o extraordinário. A aposta
119
BLANCHOT (2005, p. 6).
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 113
e os assassinatos de travestis
125
SILVA (2012).
126
WISNIK (1992).
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 117
e os assassinatos de travestis
me metem medo, das quais tenho horror. Escrevo sobre artistas, inevitavelmente de
que gosto muito, e escrevo muitas vezes sobre imagens que me aterrorizam” (DIDI-
-HUBERMAN, 2010).
120 Beatriz Adura Martins
131
ARTAUD (2006, p. 8).
132
“Ele então carrega consigo um fragmento de céu, de paisagem ou do apartamento
– um rasgo de visão – com o qual o rosto se compõe” (PEIXOTO, 1992).
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 121
e os assassinatos de travestis
133
PEIXOTO (1992, p. 315).
122 Beatriz Adura Martins
138
HERKENHOFF (1998, p. 146).
139
PEIXOTO (1992, p. 319).
140
DIDI-HUBERMAN (2013).
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 125
e os assassinatos de travestis
143
“[...] a informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela pre-
cisa ser compreensível em si e para si” (BENJAMIN, 1996, p. 203).
144
Disponível em: http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/corpo-de-travesti-e-en-
contrado-em-saco-dentro-de-rio-no-maracana-12082013. Acesso em: 07 fev 2014.
145
Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/policia/mt-travesti-e-assassi-
nado-em-frente-a-motel-em-varzea-grande,cf076a26367a1410VgnVCM5000009cc-
ceb0aRCRD.html. Acesso em: 12 out 2013.
146
Disponível em: http://g1.globo.com/sp/piracicaba-regiao/noticia/2012/08/
travesti-e-encontrada-morta-com-tres-tiros-em-rodovia-de-piracicaba-sp.html.
Acesso em: 12 out. 2013.
128 Beatriz Adura Martins
151
Um dos representantes midiáticos da igreja católica no Brasil, que ficou mui-
to querido da “população LGBT” depois de afirmar que o problema da união civil
homossexual não é um problema religioso. Disponível em: http://globotv.globo.
com/rede-globo/altas-horas/v/padre-fabio-de-melo-comenta-sobre-o-casamen-
to-entre-pessoas-do-mesmo-sexo/3088108/. Acesso em: 21 abr. 2015.
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 131
e os assassinatos de travestis
157
BENJAMIN (1997, p. 18-19).
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 139
e os assassinatos de travestis
contorno, que, por sua vez, não isola a parte interna, mas
a perfura. A escrita ganha poros.
A superfície perfurada é dentro e fora,
côncavo e convexo ao mesmo tempo. E
assim o gesto que perfura o texto é o
mesmo que faz manifestar a escrita com
seus traços trêmulos, papel enrugado,
que porta doravante as marcas do pró-
prio gesto que as faz surgir.164
Com poros, o texto respira e é impelido a abrir
mão de buscar a verdade apaziguadora das diferenças e
dos conflitos. Nada é mediado pela palavra. Arranha-se
o que pretende representar o mundo e afirmá-lo em
um conhecimento único. Essa condição é uma aposta de
atenção entre mundo e texto. Animados nessa atenção
ou exatidão – como prefere Calvino –, perseguem-se
as coisas e, a partir delas, pensa-se o mundo em suas in-
finitas possibilidades. Com corpo poroso, que já se dis-
tancia do Eu sufocante do criador pedante, apreende a
existência em sua profundidade, ali onde ela nos é mais
cara: na superfície.
O chão, em sua branquitude, não convida a comple-
tá-lo com teorias gloriosas, mas a destruí-lo. Nesse gesto,
a pesquisa superficial é riscada, manchada, estriada. A essa
destruição Artaud se alia, pois:
O que ele busca destruir do texto seria
seu relevo psicológico prenhe de inte-
rioridades, para justamente apresentar
um trabalho que perfura as superfícies,
incluindo os suportes materiais do tex-
164
KIFFER (2005, p. 44).
148 Beatriz Adura Martins
165
KIFFER (2005, p. 44).
166
BENJAMIN (1997, p. 237).
167
BENJAMIN (1997, p. 236).
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 149
e os assassinatos de travestis
Sentir o pó. Tocar a rua. Não para deixar suas marcas iden-
tificadas ou definir novos caminhos. Longe da deriva irra-
cional e distante da certeza da racionalidade, a questão se
faz entre o pó deixado pelos movimentos de crescimento
urbano e os resíduos de atos cortantes e abruptos da re-
tirada constante de corpos da cidade. No paradoxo entre
vida e morte, que não mais são polos antagônicos, a escrita
mergulha para encontrar fluxos que abram cursos, inter-
rompendo o estado limite que nos é imposto pelo finito.
Agora era ver caminhos por toda parte.
Levanta-se não sem perceber os pontos de apoio,
utilizando partes do corpo para pensar. Recolhe-se com
as marcas de um caráter destrutivo que não vive “do sen-
timento de que a vida é digna de ser vivida, mas de que o
suicídio não compensa”.168
Escrever, então, passa a ser uma respon-
sabilidade terrível. Invisivelmente, a es-
crita é convocada a desfazer o discurso
no qual, por mais infelizes que nos acre-
ditamos, mantemo-nos, nós que dele
dispomos, confortavelmente instalados.
Escrever, desse ponto de vista, é a maior
violência que existe, pois transgride a
Lei, toda lei e sua própria lei. 169
168
BENJAMIN (2013, p. 99).
169
BLANCHOT (2010, p. 9).
150 Beatriz Adura Martins
***
***
174
“PERLONGHER (2008, p. 63) “Summer 77”. Texto de F.
175
KIFFER (2005, p. 39).
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 157
e os assassinatos de travestis
176
CALVINO (1990, p. 107).
177
RODRIGUES (2006, p. 12).
178
ARTAUD (2007, p. 91).
158 Beatriz Adura Martins
Raiz e flores
“A cabeça é a flor, e não as raízes”. Montaigne –
contado por Starobinski, em sua fala de agrado ao re-
ceber o Prêmio Europeu do Ensaio – parece ter res-
pondido às críticas de ser um autor superficial, dizendo
que das matérias que escolhia pretendia apenas aflorar e
agarrar pela cabeça. Sabe-se que Montaigne sofreu gran-
des penas no mundo erudito-acadêmico por ser fiel à
prática de ensaiar. Difícil definir o que é ser fiel a um
ensaio, pois se trata de um exercício de escrita que não
se submete a nenhuma regra. Neste sentido, Starobinski
foi preciso ao dizer que a
[...] universidade, no apogeu de seu pe-
ríodo positivista, tendo fixado as regras
e os cânones da pesquisa exaustiva sé-
ria, repelia o ensaio para as trevas ex-
teriores, correndo o risco de banir ao
mesmo tempo o brilho do estilo e as
audácias do pensamento.
164 Beatriz Adura Martins
homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90: um estudo a partir da cidade
de São Paulo (2002).
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 165
e os assassinatos de travestis
***
Elastina no pé
Voou. Foram quase oito horas de avião para chegar
na capital paulista. Veio a convite de uma amiga recente,
170 Beatriz Adura Martins
ano, das oito meninas que moravam com ela, duas tinham
sumido e ninguém sabia do paradeiro. Ninguém pergun-
tava nada; era dúvida que não se criava. Mas uma tinha
sido morta por um cliente; alegaram legítima defesa. As
travestis sabiam que tinham de se cuidar, nunca saíam de-
sarmadas: uma faca ou uma tesoura serviam para se prote-
ger, mas também para aproveitar e garantir um extra com
algum desavisado. Soraya dificilmente queria o extra.
A noite estava quente, era verão em São Paulo;
as coxas já bombadas e o nariz afinado partiam para os
18 anos e não sossegavam, queriam bombar cada vez
mais. Lembrava-se dos concursos de Miss, da Bianca que
gastou quase 25.000 reais só com a bunda. Queria ser
bombada, boneca das melhores. Tomava uma cachaça no
carro improvisado como bar que servia com frequência
as meninas. O carro-bar estava sempre estacionado na
esquina da Alameda Araés. Tomou o Caxiri Temível e tirou
um pouco mais da roupa; afinal, estava muito quente.
Com seu potente peitoral, logo se aproximou um Audi;
ela conhecia de longe a marca desse carro. De dentro,
um rapaz jovial com mãos de veludo acariciava seus seios
e pedia para ter uma mostra do resto. Salivava o rapaz
da alta classe média paulista. O som do carro era muito
alto, uma barulheira excitante que penetrava na carne de
Soraya. Elétrica, perguntou se o cara tinha pó, a farinha
paulista. Ele, sem, demora disse: “Sobe, a gente pega”.
“Demorô”. O carro alemão tremia com a energia do som.
Estava bem alto. Pegaram bastante pó. Ela não queria pa-
rar; ele se divertia. Soraya não podia ficar somente em
um programa e pediu para o rapaz que a deixasse em seu
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 175
e os assassinatos de travestis
***
I–
II –
III –
IV –
V–
***
I–
motivação homofóbica
Rafael da Silva Tavares foi visto
pela última vez em quiosque
em Magé
IV –
V–
VI –
I–
Na Avenida Nordestina pouco se via de movimento.
Na via, localizada na zona leste da capital paulistana, ela ten-
tou correr, mesmo muito castigada. Um transeunte chegou
a filmá-la com um celular. Ela cambaleava pela rua. Laura
Vermont estava muito machucada. Eles eram incansáveis,
seu cabelo todo arrancado; a maquiagem que ela nunca se
separava já estava toda invadida pela dor. Alguém consegue
avisar ao pai da menina de 18 anos que ela estava perambu-
lando pelas ruas, desorientada. O comerciante não demo-
rou a chegar. Como havia prometido, não a deixaria sozinha.
A promessa fora feita enquanto Laura redesenhava seu cor-
po. A menina de 18 anos tombou na noite paulistana.
I–
Versão desmontada
(http://www.revistaforum.com.br/
blog/2015/06/a-policia-que-e-para-
-proteger-acabou-de-matar-diz-pai-de-
transexual-assassinada-em-sp/)
II –
III –
***
I–
Corpo de travesti é encontrado em
saco dentro de rio no Maracanã
III –
IV –
V–
Ao entrar no Recife,
não pensem que entro só.
Entra comigo a gente
que comigo baixou
por essa velha estrada que vem do in-
terior;
entram comigo rios
a quem o mar chamou,
entra comigo a gente
que com o mar sonhou,
e também retirantes
em quem só o suor não secou;
e entra essa gente triste,
e mais triste que já baixou,
a gente que a usina,
depois de mastigar, largou.
[…]
[…]
anúncios luminosos
com muitas palavras inglesas;
passa ainda a cadeia,
passa o palácio do Governo,
ambos robustos, sólidos,
plantados no chão mais seco.
[…]
[…]
Já deixo o Recife
Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 213
e os assassinatos de travestis
Ao partir companhia
desta gente dos alagados
que lhe posso deixar,
que conselho que recado?
Somente a relação
de nosso comum retirar;
só esta relação
tecida em grosso tear.
VI –
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Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia 225
e os assassinatos de travestis