Os Sofistas

Fazer download em doc, pdf ou txt
Fazer download em doc, pdf ou txt
Você está na página 1de 7

Os Sofistas

Reinério Simões

Os filósofos gregos do período considerado socrático ou


antropológico (séculos V a III a.C.) produziram as matrizes
conceituais da filosofia na cultura ocidental. O grupo dos
sofistas (Protágoras, Górgias, Crítias, Antifonte), a metafísica
idealista de Platão e o realismo de Aristóteles construíram os
primeiros alicerces teóricos da discussão filosófica.
O primeiro momento tem início com os sofistas, mestres de
retórica, que lançaram os debates em torno da lei, da justiça
e da natureza. Atacados por Platão e Aristóteles, a tradição
passou a considerá-los falsos sábios, ilusionistas do saber,
mercenários e interesseiros. Um lento trabalho de reavaliação
ocorrido nos últimos dois séculos tem reconhecido os méritos
dos sofistas, o verdadeiro papel que desempenharam na
construção da democracia ateniense.
A palavra sofista deriva do grego sophistés, com o sentido
original de habilidade específica em algum setor, ou homem
que detém um determinado saber (do grego sóphos, «saber,
sabedoria»). De início, vários profissionais eram «sofistas»:
carpinteiros, charreteiros, oleiros e poetas. Quando o domínio
de uma técnica era reconhecido por todos, o profissional era
dito «sofista», desde as atividades artesanais aos trabalhos
de criação artística. O termo era, portanto, um elogio.
A partir do século V a.C. surgiram os professores itinerantes
de gramática, eloquência e retórica, que ofereciam seus
conhecimentos para educar os jovens na prática do debate
público. A educação tradicional era insuficiente para preparar
o cidadão para a discussão política. Era preciso o domínio da
linguagem e de flexibilidade e agudeza dialética para derrotar
os adversários.
O êxito desses tutores foi extraordinário. Passaram a ser
então designados de sofistas, sábios capazes de elaborar
discursos fascinantes, com intenso poder de persuasão. Por
outro lado, foram recebidos com hostilidade e desconfiança
pelos partidários do antigo regime aristocrático e
conservador. Quando Atenas se envolveu na guerra do
Peloponeso, os sofistas foram responsabilizados pela
decadência moral e política da cidade. O julgamento de
Sócrates ocorreu neste clima de acusação e ressentimento.
Nos séculos IV e III a.C., pensadores como Platão, Xenofonte e
Aristóteles, dramaturgos como Aristófanes em sua comédia
As Nuvens, todos passaram a atacar sistematicamente os
sofistas. O termo adquire um sentido pejorativo e
desfavorável, marcando para sempre o vocabulário filosófico:
argumento sofístico ou sofisma é o mesmo que falso
argumento ou argumento intencionalmente falacioso; de
sofista deriva sofisticado, no sentido depreciativo de algo
1
muito elaborado ou excessivamente ornado, embora vazio de
conteúdo.
 Características gerais dos sofistas
A primeira dificuldade em se falar dos sofistas em geral
decorre do fato de não constituírem uma escola filosófica
como os pitagóricos e os platônicos. Como veremos adiante,
os sofistas seguem direções variadas e até mesmo opostas.
Agrupá-los pelo que têm em comum, serve apenas para
diferenciá-los dos filósofos anteriores, notadamente os pré-
socráticos e suas preocupações com o mundo físico.
Os sofistas marcam a passagem do período cosmotológico
para o período antropológico, centrado em questões
linguísticas, gramaticais, epistemológicas e jurídicas. De
acordo com Guillermo Fraile )História de la Filosofia, Volume I,
páginas 226/227), as características gerais dos sofistas são as
seguintes:
1. Relativismo – Tudo que existe é impermanente, mutável
e plural. Tudo muda, as essências das coisas são variáveis e
contingentes.
2. Subjetivismo – Não existe verdade objetiva. As coisas
são como aparecem a cada um. «O homem é a medida de
todas as coisas.» (Protágoras)
3. Ceticismo – Não podemos conhecer coisa alguma com
certeza absoluta. O conhecimento humano é limitado às
aparências.
4. Indiferentismo moral e religioso – Se as coisas são como
parecem a cada um, não há nada que seja bom ou mau em si
mesmo, pois não existe uma norma transcendente de
conduta. Em matéria de crença religiosa, devemos ser
indiferentes, isto é, tanto faz acatar estes ou aqueles deuses.
Alguns sofistas foram acusados, em conseqüência desta
postura, de ateísmo.
5. Convencionalismo jurídico – Acentuam a contraposição
entre lei e natureza (nómos –phýsis). Não existem leis
imutáveis, já que não possuem qualquer fundamento na
natureza e nem foram estabelecida pelos deuses, mas são
simples convenções dos homens para poderem viver em
sociedade.
6. Oportunismo político – Se não há nada justo e injusto em
si mesmo, todos os meios são bons para se atingir os fins que
cada um se propõe. O bom resultado justifica os meios
empregados para conseguí-lo. A eloquência é a arte da
persuasão e pode ser empregada indistintamente para o bem
e para o mal.
7. Utilitarismo – Mais do que servir ao Estado, os sofistas
ensinavam a empregar as habilidades retóricas a serviço dos
interesses particulares, manipulando, se necessário, os
sentimentos e as paixões.
8. Frivolidade intelectual – Mais do que autênticos
filósofos, os sofistas eram prestidigitadores intelectuais que
2
encobriam o vazio do seu pensamento com uma «pirotecnia
verbal» fascinante. Tinham uma confiança ilimitada no poder
da palavra, na capacidade do discurso.
9. Venalidade – Ao cobrarem por suas lições, os sofistas
sofreram a crítica mais severa por parte dos atenienses, que
não aceitavam fazer da atividade intelectual uma forma de
negócio. Platão qualificava os sofistas de «mercadores
ambulantes de guloseimas da alma». (Protágoras, 313c)
10. Humanismo – Ao centrar seus interesses nos problemas
humanos, os sofistas podem ser comparados aos humanistas
da renascença (século XV), preocupados com os problemas
práticos do homem político, da natureza humana inserida na
pólis e na vida do Estado.
O que se percebe nesta caracterização? Apenas o último item
é positivo, enquanto todo o restante é condenável.
 Condenação e reabilitação dos sofistas
No diálogo Sofista, Platão mostra Sócrates a debater diversas
definições para os sofistas:
 caçador interesseiro de jovens ricos (223b);
 comerciante do ensino e das virtudes (224d);
 pequeno comerciante de mercadorias de primeira ou de
segunda-mão(224e);
 mercenário da arte da erística, da contradição,do
combate (226a);
 arte do simulacro, da ilusão (236c).
A erística é a arte de batalhar com palavras (logomaquia, para
os gregos), ou seja, a arte de vencer nas discussões. Como se
vê, Platão reduz o sofista á condição de comerciante do saber,
mercenário do espírito, mero ilusionista sem conteúdo.
Na peça As Nuvens, Aristófanes diz que o sofista possui a
habilidade de pronunciar um discurso justo e um discurso
injusto sobre o mesmo tema. No caso de um homicídio, por
exemplo, o sofista poderia argumentar com igual brilhantismo
como advogado de defesa e como promotor de acusação.
Outro discípulo de Sócrates e contemporâneo de Platão,
Xenofonte escreve nos Ditos e Feitos Memoráveis de
Sócrates, que os sofistas eram comerciantes da sabedoria, e
como tais comparáveis à venalidade da prostituição.
E Aristóteles, na obra Argumentos Sofísticos, acusa os
sofistas de «traficantes de uma sabedoria aparente, não
real». (Arg. Sof., I, 165a). Como se não bastasse, ainda o
mesmo Platão em diálogos como Ménon e Crátilo, dirige aos
sofistas as mesmas denúncias de vendedores caros de uma
ciência não real, mas aparente.
Não se pode esquecer a origem aristocrática de Platão a
Aristóteles. Este último era filho de um médico da corte de
Felipe da Macedônia, tendo sob seu encargo a educação do
filho do rei, o jovem Alexandre, posteriormente Alexandre
Magno (O Grande). Acostumados a frequentar palácios e
imersos numa cultura que despreza o trabalho manual,
3
enxergaram apenas os aspectos venais e as habilidades
verbais dos sofistas, como se fossem a ameaça contra o
verdadeiro saber.
Podemos reconhecer aos sofistas gregos os seguintes
méritos:
Iniciaram uma reflexão sistemática sobre os problemas
humanos, ao invés das questões naturais e cosmológicas dos
filósofos pré-socráticos;
Aperfeiçoaram a dialética e a discussão crítica sobre as
limitações e o valor do conhecimento;
Destacaram o caráter diverso e relativo das leis, próprias de
cada cidade, enfatizando a contraposição entre natureza
(phýsis), lei (nómos) e pacto (thésis), em que se baseiam o
direito natural e o direito positivo. Ver a respeito o fragmento
«A Verdade» de Antifonte;
Defenderam o conceito de natureza comum a todos os
homens, o que serviu para fundamentar a lei de modo mais
igualitário e universalista;
Desenvolveram princípios educativos para o ensino de
gramática e retórica; Protágoras considerava-se um mestre
da sabedoria e da virtude política (politiké areté), formando
os jovens para o debate público e o governo do Estado. O
ideal sofístico de uma natureza humana que pode ser educada
e constantemente aperfeiçoada deu início à ciência
pedagógica e à formação humanista na antiguidade.
Não é pouca coisa, mas não se iguala, sem dúvida alguma, às
contribuições de Sócrates, Platão e Aristóteles. Ao menos seja
reconhecida a influência positiva dos sofistas no debate
jusfilosófico: a defesa do naturalismo permite assentar o
direito numa perspectiva mais cosmopolita e equânime.
 Protágoras (490-420a.C.) e Górgias (485-380a.C.)
O mais eminente dos sofistas foi Protágoras, tratado com
respeito por Platão no diálogo que leva seu nome. Atribui-se o
primeiro estudo sistemático de gramática, distinguindo os
gêneros masculino, feminino e neutro e as partes da oração
em substantivo, adjetivo e verbo. Em retórica distinguiu as
partes componentes do discurso: preâmbulo, disposição,
exposição, discussão, refutação e conclusão. Ensinou durante
quarenta anos e tornou-se muito rico, pois cobrava caro por
suas lições.
Protágoras defendia o relativismo do conhecimento, através
do famoso dito «O homem é a medida de todas as coisas». Se
não há uma razão ou um bem imutável, se todas as
percepções são subjetivas, a habilidade retórica deve
prevalecer para que meu argumento seja vencedor. A posição
relativista conduz ao dilema da verdade e do discurso
verdadeiro: vence a discussão quem tem razão ou tem razão
quem vence a discussão?
Górgias é famoso por seu niilismo exacerbado. Levando as
teses relativistas ao extremo, nega a possibilidade de
4
qualquer conhecimento, seja do espaço e do tempo, das
coisas particulares ou mesmo do ser em geral. Conserva-se de
Górgias os três princípios: a) Nada existe (o ser e o não-ser
não existem); b) Se algo existisse, não poderia ser conhecido,
ou seja, seria incompreensível para nós; c) Se algo existe e
pode ser conhecido, não pode o conhecimento ser
comunicado a alguém (este conhecimento seria totalmente
subjetivo).
É possível que as teses de Górgias fossem um exercício de
retórica, para provocar os oponentes ou exercitar os alunos.
Um jogo dialético para questionar as afirmações dogmáticas
ou pretensamente absolutas de muitos filósofos. O fato é que
ambos, Protágoras e Górgias, compartilham das mesmas
teses céticas e reduzem o conhecimento ao jogo das
aparências.
Outros sofistas de destaque foram Hípias, Pródicos, Cálicles,
Crítias e Antifonte. Chegaram até nós alguns fragmentos de
suas obras e referências às suas façanhas de oratória.
No que interessa à filosofia do direito, a contribuição dos
sofistas foi questionar os valores éticos e jurídicos da pólis
ateniense, pondo em causa a forma de governo, combatendo
a injustiça da economia escravista, embasando o direito
natural a partir da ordem humana e não divina. Os sofistas
forneceram os argumentos contra as distorções do direito
positivo vigente nas diversas pólis gregas. O indivíduo é o
criador da cidade e vale sempre mais que a coisa criada: sua
consciência, sua lei interior é mais valiosa que o decreto do
democrata Péricles ou do tirano de Tebas.
A crítica dos sofistas trouxe problemas. Com relação à
escravidão, diziam: os deuses nos fizeram livres e a ninguém
fez escravo. Ironizavam, na prática, a justiça da cidade,
ensinando a quem quisesse pagar como vencer uma causa,
independentemente da tese a ser defendida. Às leis
decretadas pelo poder governante (nómos), opunham o
conceito de uma natureza ou princípio natural (phýsis)
presente no cosmo e no homem, assinalando, desse modo, a
diferença entre as normas jurídicas convencionais e que
quase sempre se identificam com os interesses do grupo mais
forte.
Para ilustrar o tema, um texto de Antifonte, O Sofista.
 Antifonte
Antifonte de Atenas (480-411 a.C.) é uma figura controversa.
Menciona-se na antiguidade um Antifonte famoso pela
oratória e que teria sido o primeiro logógrafo, ou seja, o
primeiro a escrever discursos sob encomenda. Do orador
restam discursos importantes. Não se tem certeza se o orador
e o sofista são os mesmos. Dúvidas históricas à parte,
Antifonte, o Sofista, representa melhor que todos a
contraposição entre a natureza (phýsis), na qual se baseia o
direito natural, considerado inato e absoluto, e as leis da
5
cidade (nómos), nas quais se apoia o direito positivo,
puramente convencional e imposto pela força ou pela
necessidade.
A verdadeira justiça baseia-se na lei natural, que corresponde
à verdade. As leis civis não passam de opinião. A separação
em classes sociais é convenção social. Fomos todos feitos
pela natureza do mesmo modo. Se a lei é apenas uma
convenção, podemos transgredi-la, desde que ninguém o
saiba. Mas não podemos transgredir de maneira alguma uma
lei natural. Muitas leis e costumes não escritos são contrários
à natureza, diz Antifonte, como honrar aos nascidos de berço
nobre e desprezar os comuns. Todos os homens são iguais por
natureza, sejam gregos ou bárbaros (não gregos).
Leia-se a seguir trechos selecionados de A Verdade, de
Antifonte:
«Justiça é não transgredir as leis (nómos) da cidade, em que
alguém é cidadão. Desse modo, um homem poderá melhor
conduzir-se em harmonia com a justiça se na presença de
testemunhas respeita as leis e, quando está só, sem
testemunhas, respeita os decretos da natureza (phýsis). O
que pertence às leis é imposto artificialmente, enquanto o
que pertence à natureza é compulsório. Aquilo que se
conforma às leis, se permanece oculto aos que estão de
acordo com elas, escapa da vergonha e da punição; se não
permanece oculto, não escapa; em contrapartida, se algo
conatural à natureza (phýsis) é forçado, ultrapassando o que
é possível, ainda que permaneça oculto a todos os homens, o
mal não é menor, nem muito maior se todos o vêm, pois nesse
caso não há transgressão segundo a aparência (doxa), mas
segundo a verdade (alétheia)».
«A maior parte do justo segundo a lei é contrário à natureza.
Com efeito, está legislado – estabelecido por nómos – para os
olhos o que devem e não devem ver; para os ouvidos, o que
devem ou não devem ouvir; para a língua, o que devem ou
não devem dizer; para os pés, onde devem ou não devem
caminhar; para o ânimo, o que deve ou não deve desejar. As
proibições da lei não estão em acordo com a natureza. (…) A
vida pertence à natureza, assim como a morte; a vida deriva
do que é proveitoso, a morte que é nocivo.»
«Respeitamos e veneramos os nascidos de pais nobres, mas
não respeitamos nem veneramos os que não se originam de
casa nobres. (…) Tratamo-nos uns aos outros como bárbaros,
embora todos por natureza tenhamos nascidos iguais,
bárbaros e gregos. E é permitido a todos os homens observar
as leis da natureza, que são obrigatórias. (…) Todos nós
respiramos pela boca e pelo nariz, e comemos com as mãos…»
 Temas para discussão
1. Explique os diversos significados do termo sofista. Por
que a consideração depreciativa em relação aos sofistas? De

6
exemplos de profissões ou situações onde a retórica é
importante.
2. Natureza, Costumes e Lei: contraditórios ou
complementares?

Você também pode gostar