Contos de Grimm
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“The Book of Ephraim” faz parte de The Changing Light at Sandover: a Poem, de James Merr
Merrill. Reproduzido mediante permissão de Alfred A. Knopf, um selo de Knopf Doubleday P
Random House LLC. Todos os direitos reservados.
Título original
Capa
Imagem de capa
Cheong-ah Hwang
Revisão
Rita Godoy
Fatima Fadel
Ana Grillo
Editoração eletrônica
P983c
Pullman, Philip,
Contos de Grimm [recurso eletrônico]: para todas as idades / Philip Pullman; tradução José Ru
1. ed., reimpr. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
recurso digital
Formato: ePub
CDU: 821.111-3
Sumário
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Introdução
Bibliografia
João Fiel
Os doze irmãos
Irmãozinho e Irmãzinha
Rapunzel
João e Maria
O alfaiate valente
Cinderela
O enigma
Chapeuzinho Vermelho
Os músicos de Bremen
O osso cantor
Os elfos
O noivo ladrão
Padrinho Morte
O junípero
Rosa Silvestre
Branca de Neve
Rumpelstiltskin
O pássaro dourado
Desfazendeiro
Milpeles
Jorinda e Joringel
Hans Jogador
A pastora de gansos
Pele de urso
A pequena mortalha
Tostões roubados
O repolho de burro
Monte Simeli
Heinz Preguiçoso
Hans Forte
A lua
Os doze caçadores
A chave dourada
Introdução
Saciado
Quando Merrill menciona “Grimm”, não precisa dizer mais nada: nós
todos sabemos o que ele quer dizer. Para a maioria dos leitores e escritores
ocidentais dos últimos duzentos anos, o Kinder- und Hausmärchen (Contos para
crianças e famílias) dos irmãos Grimm é fonte e origem do conto de fadas
ocidental, a coleção maior e mais amplamente distribuída por um imenso
número de idiomas, morada de tudo o que sentimos ser único nesse tipo de
história.
Mas, se os irmãos Grimm não tivessem coletado todas essas histórias, sem
dúvida alguém mais o faria. De fato, outros já realizavam algo semelhante. O
verdade não existia Alemanha enquanto tal, mas sim trezentos e tantos estados
independentes — reinos, principados, grão-ducados, ducados, landgraviatos,
margraviatos, eleitorados, bispados e assim por diante, o detrito fragmentado do
Sacro Império Romano.
Os fatos da vida dos irmãos Grimm não são notáveis. Jacob (1785-1863) e
Wilhelm (1786-1859) eram os filhos sobreviventes mais velhos de Philipp
Wilhelm Grimm, um próspero advogado de Hanau, no principado de Hesse, e
de sua esposa Dorothea. Receberam educação clássica e foram criados dentro dos
preceitos da Igreja Calvinista Reformada. Inteligentes, empenhados e sérios,
planejavam seguir a carreira legal do pai, na qual, sem dúvida, teriam se
distinguido; mas sua morte súbita em 1796 fez com que a família, então com seis
filhos, tivesse de depender dos parentes da mãe. A tia deles, Henriette Zimmer,
dama de companhia na corte do príncipe em Kassel, ajudou Jacob e Wilhelm a
serem aceitos no Lyzeum ou escola secundária, onde ambos se formaram em
primeiro lugar de suas respectivas classes. Mas havia pouco dinheiro e enquanto
frequentavam a Universidade de Marburg tiveram de viver muito frugalmente.
contos de fadas não foi um fenômeno isolado, mas parte de uma preocupação
difundida na época.
As fontes com que eles contavam eram tanto orais quanto literárias. Algo
que não faziam era percorrer a zona rural em busca de camponeses em seus
chalés para anotar suas histórias palavra por palavra. Alguns de seus contos foram
tirados diretamente de fontes literárias; dois dos melhores, “O pescador e sua
mulher” (p. 108) e “O junípero” (p. 198), lhes foram enviados em forma escrita
pelo pintor Philipp Otto Runge e reproduzidas pelos Grimm no dialeto do
baixo alemão em que Runge as escreveu. Grande parte do resto veio em forma
oral, de pessoas de vários níveis da classe média, inclusive amigos de família, uma
das quais, Dortchen Wild, filha de um farmacêutico, acabou se casando com
Wilhelm Grimm. Depois de duzentos anos, é impossível dizer até que ponto
suas transcrições são exatas, mas o mesmo é verdadeiro para qualquer coletânea
de contos e canções folclóricas antes da era do gravador de fita. O que interessa é
o vigor e o entusiasmo das versões que eles publicaram.
Não existe psicologia num conto de fadas. Os personagens têm pouca vida
interior; seus motivos são claros e óbvios. Se as pessoas são boas, são boas, e se
más, são más. Mesmo quando a princesa de “As três folhas da cobra” (p. 102)
inexplicavelmente, ingratamente, se volta contra seu marido, ficamos sabendo
disso no momento em que acontece. Nada dessa natureza é escondido. Os
tremores e mistérios da consciência humana, os sussurros da memória, os
impulsos do remorso, da dúvida ou do desejo semicompreendidos que fazem
parte tão significativa do romance moderno estão inteiramente ausentes. Pode-se
quase dizer que os personagens de um conto de fadas não são efetivamente
conscientes.
Celeridade
“Era...” e viajamos:
Era uma vez um homem tão pobre que não conseguia mais sustentar seu único filho.
Quando o filho percebeu isso, disse: — Pai, não há por que eu continuar aqui. Sou um fardo
para o senhor. Vou sair de casa e ver se consigo ganhar a vida.
(“As três folhas da cobra”, p. 102)
O conto está muito mais interessado no que acontece com eles, ou no que eles
fazem acontecer, do que em sua individualidade.
Ao compor um conto desse tipo, nem sempre é fácil ter certeza de quais
eventos são necessários, quais são supérfluos. O melhor que pode fazer qualquer
pessoa que queira saber como contar uma história é estudar “Os músicos de
Bremen” (p. 157), ao mesmo tempo uma historinha sem sentido e uma obra-
prima, na qual a narrativa não tem nem um grama desnecessário. Cada
parágrafo faz avançar a ação.
Imagens e descrição
Nos contos de fada não existem imagens além das mais óbvias. Branco como a
neve, vermelho como o sangue: e é só. Tampouco há qualquer descrição
detalhada do mundo natural ou de indivíduos. Uma floresta é profunda, a
princesa é bonita, seu cabelo é dourado; não é preciso dizer mais. Quando o que
se quer é saber o que acontece em seguida, belos jogos de palavras descritivos só
irritam.
Numa história, há uma passagem que combina, com sucesso, uma linda
descrição com a relação de eventos de tal forma que determinada coisa não
Quatro meses passaram e todos os ramos de todas as árvores da floresta ficaram mais
fortes, se juntaram, os passarinhos cantaram tão alto que a floresta ressoou, e as flores caíram
das árvores.
Cinco meses passaram e a mulher parou debaixo de um junípero. O aroma era tão doce
que seu coração saltava no peito e ela caiu de joelhos de alegria.
Seis meses passaram e as frutas ficaram firmes, pesadas, e a mulher continuava ali.
Quando passou o sétimo mês, ela colheu os frutos do junípero e comeu tantos que se
sentiu mal e triste.
Era uma tarde adorável: o sol brilhava quente nos troncos das árvores contra o verde-
escuro da floresta profunda e pombos arrulhavam tristemente nas velhas faias.
De repente, essa história deixa de soar como um conto de fadas e começa a soar
como algo escrito à maneira literária, por um escritor romântico como Novalis
ou Jean Paul. A relação de eventos serena, anônima, deu lugar, no espaço de
uma frase, a uma sensibilidade individual: uma única mente sentiu essa impressão
da natureza, viu mentalmente esses detalhes e os registrou. O domínio que um
escritor tem das imagens e seu dom de descrição são coisas que o tornam único,
mas os contos de fadas não saem inteiros e inalterados das mentes de escritores
individuais, afinal de contas; ser únicos e originais não são de nenhum interesse
para os contos.
Mas um conto de fadas não é um texto desse tipo. É uma transcrição feita
em uma ou mais ocasiões das palavras ditas por uma de muitas pessoas que
contaram aquela história. E, é evidente, coisas de todo tipo afetam as palavras
que são finalmente escritas. Um contador pode contar a história com mais
riqueza, com mais extravagância num dia do que em outro, quando ele está
cansado ou não está inspirado. Quem transcreve pode estar com o próprio
equipamento deficiente: um resfriado que dificulta a audição ou faz a escrita ser
interrompida por espirros e tosses. Outro acidente pode também afetar o
processo: um bom conto pode estar na boca de um contador menos dotado.
Contar estas histórias é um prazer que seria uma pena estragar com ansiedade.
Por fim, eu diria a qualquer um que queira contar estas histórias que não
tenha medo de ser supersticioso. Se tiver uma caneta da sorte, use-a. Se fala com
acusação de que isso é bobagem, de que tudo o que se precisa para contar uma
história é da imaginação humana, eu respondo: “Claro, e é assim que minha
imaginação funciona.”
Mas podemos dar o máximo por essas histórias e descobrir que não é
suficiente. Desconfio que as melhores têm a qualidade que o grande pianista
Artur Schnabel atribuía às sonatas de Mozart: são fáceis demais para crianças e
difíceis demais para adultos.
Atendi o melhor que pude aos duendes que cuidam de cada uma, assim como
Dorothea Viehmann, Philipp Otto Runge, Dortchen Wild e todos os outros
contadores cuja obra está preservada pelos grandes Irmãos Grimm. Espero que
nós todos, contadores e ouvintes, vivamos felizes para sempre.
2 “Um conto não é bonito se não se aumenta nada nele” — provérbio toscano citado por Italo
sua introdução de Italian Folktales [Fábulas italianas] (Londres: Penguin Books, 1982).
Bibliografia
“ATU” ou “AT” para a edição anterior. Além disso, esta seção contém as obras
que achei mais interessantes e úteis.
Esopo, The Complete Fables, tradução para o inglês de Olivia Temple (Londres:
Penguin Books, 1998)
The Arabian Nights: Tales of 1001 Nights, tradução para o inglês de Malcolm C.
Briggs, Katharine M., Folk Tales of Britain (Londres: Folio Society, 2011)
Calvino, Italo, Italian Folktales, tradução para o inglês de George Martin
(Londres: Penguin Books, 1982)
Chandler Harris, Joel, The Complete Tales of Uncle Remus (Nova York:
Houghton Mifflin, 1955)
Grimm, Jacob e Wilhelm, Brothers Grimm: Selected Tales, tradução para o inglês
de David Luke, Gilbert McKay e Philip Schofield (Londres: Penguin Books,
1982)
____________. The Penguin Complete Grimms’ Tales for Young and Old,
Lang, Andrew, Crimson Fairy Book (Nova York: Dover Publications, 1967)
____________. Pink Fairy Book (Nova York: Dover Publications, 2008)
Perrault, Charles, Perrault’s Complete Fairy Tales, tradução para o inglês de A. E.
(http://mahlerfest.org/mfXIV/schmiesing_lecture.html)
Tatar, Maria, The Hard Facts of the Grimms’ Fairy Tales (Princeton: Princeton
University Press, 1987)
Uther, Hans-
Jörg, The Types of International Folktales: a Classification and
Bibliography Based on the System of Antti Aarne and Stith Thompson, vols. 1-
3, FF Communications Nº 284-
86 (Helsinki: Academia Scientiarum Fennica, 2004)
Warner, Marina, From the Beast to the Blonde: of Fairy Tales and their Tellers
(Londres: Vintage, 1995)
____________. Why Fairy Tales Stick: the Evolution and Relevance of a Genre
(Nova York: Routledge, 2006)
____________. (org.), The Great Fairy Tale Tradition: From Straparola and
Basile to the Brothers Grimm (Nova York: W. W. Norton and Company,
2001)
Nos tempos de antes, quando desejos ainda eram atendidos, vivia um rei cujas
filhas eram todas bonitas; porém a mais nova era tão linda que até o sol, que já
viu tantas coisas, ficava deslumbrado cada vez que brilhava no rosto dela. Não
longe do palácio do rei, havia uma profunda floresta escura, e debaixo de um
limoeiro na floresta havia um poço. No calor do dia, a princesa costumava
entrar na floresta e sentar à beira do poço, do qual parecia brotar um delicioso
frescor.
Para passar o tempo, a princesa tinha uma bola de ouro que jogava no ar e
pegava. Era sua brincadeira favorita. Ora, um dia aconteceu de ela se descuidar
um pouquinho ao jogar e não conseguiu pegar a bola, que rolou para longe, na
direção do poço, caiu lá dentro e desapareceu.
A princesa correu e olhou a água lá dentro, mas o poço era tão profundo
que não conseguiu ver sua bola. Não conseguia ver nem o fundo do poço.
Ela começou a chorar e chorou cada vez mais alto, inconsolável. Mas então
alguém falou com ela: — Qual é o problema, princesa? Está chorando tanto que
é capaz de comover as pedras.
Ela olhou em torno para ver de onde vinha a voz e viu um sapo que havia
posto sua cabeça grande e feia para fora da água.
— Não quero sua roupa; as suas joias e a sua coroa de ouro não servem para
mim, mas se me amar, me levar como seu companheiro de brincadeiras, se
deixar eu me sentar ao seu lado à mesa, comer de seu prato, beber de seu copo e
dormir em sua cama, então mergulho e trago a sua bola de ouro para você.
A princesa pensou: “O que esse sapo idiota está dizendo? Diga o que disser,
mas vai ter de ficar na água que é o elemento dele. Talvez ele consiga pegar
minha bola.” Mas claro que não disse isso. Falou assim: — Claro, claro.
Assim que o sapo ouviu a princesa dizer “claro”, mergulhou na água e foi
até o fundo. Um momento depois, estava nadando de volta com a bola na boca,
que atirou no gramado.
A princesa ficou tão contente que pegou a bola de ouro e saiu correndo na
mesma hora.
Mas ela nem ligou. Correu para casa e esqueceu completamente do coitado
do sapo, que teve de voltar para dentro do poço.
No dia seguinte, a princesa estava sentada à mesa com seu pai, o rei, e todos
os nobres da corte, comendo em seu prato de ouro, quando alguma coisa saltou
pelos degraus de mármore: plip plop, plip plop. Quando chegou ao alto, bateu na
porta e chamou: — Princesa! Princesinha! Abra a porta para mim!
Ela correu para ver quem era, abriu a porta, e era o sapo.
Assustada, ela bateu a porta na mesma hora e correu de volta para a mesa.
O rei viu que ela estava com o coração batendo depressa e perguntou: —
Então, veio uma segunda batida na porta e uma voz disse assim:
Princesa, princesa, mais nova de três,
O rei disse: — Se fez uma promessa, vai ter de cumprir. Vá e deixe ele
entrar.
Ela abriu a porta e o sapo entrou. Foi saltando até a cadeira dela.
Ela não queria, mas o rei disse: — Vamos. Faça o que ele diz.
Então ela ergueu o sapo. Assim que se viu na cadeira, ele pediu para subir à
mesa, a princesa teve de erguer o sapo outra vez, e ele disse: — Empurre seu
prato de ouro um pouco mais perto para eu poder comer com você.
Ela obedeceu, mas todo mundo percebeu que não estava gostando nem um
pouco. O sapo, sim, estava gostando: comeu a comida com grande prazer,
enquanto cada bocado parecia parar na garganta da princesa.
Por fim, o sapo disse: — Bom, já estou satisfeito, muito obrigado. Gostaria
de ir para a cama. Me carregue até seu quarto e prepare seus lençóis de seda para
podermos dormir neles.
A princesa começou a chorar porque sentia medo da pele fria do sapo. Ela
estremeceu só de pensar nele em sua cama macia. Mas o rei franziu a testa e
disse: — Não se deve desprezar alguém que nos ajudou num momento difícil!
Ela ergueu o sapo com a ponta dos dedos e o deixou diante da porta de seu
quarto, que trancou bem trancada.
Mas ele ficou batendo na porta e dizia: — Deixe eu entrar! Deixe eu entrar!
Ela abriu a porta e disse: — Tudo bem! Pode entrar, mas vai ter de ficar no chão.
Fez o sapo deitar no chão, ao pé de sua cama. Mas ele insistiu: — Me erga!
— Ah, mas será possível! — ela disse. Pegou o sapo, ergueu e colocou na
ponta mais longe do travesseiro.
Aquilo já era demais. Num ataque de raiva, ela pegou o sapo e atirou-o
contra a parede. Mas quando ele caiu na cama de volta, que surpresa! Não era
mais um sapo. Era um belo rapaz, um príncipe, com lindos olhos sorridentes.
príncipe então contou à princesa que tinha sido encantado por uma bruxa má e
que só ela, a princesa, podia resgatá-
lo do poço. Além disso, no dia seguinte, viria
uma carruagem para levar os dois para o reino do príncipe. Os dois
adormeceram lado a lado.
na frente do castelo, como o príncipe tinha dito. Era puxada por oito cavalos
com as cabeças enfeitadas por plumas de avestruz e correntes de ouro brilhando
nos arreios. Em cima da carruagem estava o Fiel Henrique. Era o criado do
príncipe que, quando soube que seu senhor havia sido transformado num sapo,
ficou tão chateado que foi direto ao ferreiro e mandou que pusesse três placas de
ferro em seu coração, para que não explodisse de tristeza.
E ouviu-se o mesmo estalo mais duas vezes, e a cada vez eles achavam que
era a carruagem, mas a cada vez se enganavam: era uma placa de ferro caindo do
coração do Fiel Henrique, porque seu senhor estava salvo.
***
Este é um dos contos mais conhecidos. A ideia central de um sapo repulsivo que se
príncipe é tão atraente e tão cheia de implicações morais que se torna uma metáfora para uma
humana capital. A lembrança mais comum é a do sapo que se transforma em príncipe quando
beija. Os contadores dos Grimm, porém, pensam diferente, assim como os contadores
Briggs, onde o sapo tem de ser decapitado pela donzela para mudar de forma. Mas o
porção de implicações. Afinal, hoje em dia se tornou um elemento do folclore e o que mais po
o desejo dele de dormir na cama com a princesa?
A figura de Henrique Ferro aparece do nada no final da história e tem tão pouca ligação com o
que acaba quase sempre esquecida, embora ela deva ter sido considerada importante a ponto d
do título. Suas placas de ferro são uma imagem tão poderosa que quase merecem uma história
Era uma vez um gato que fez amizade com uma rata. Ele falava tanto da afeição
que sentia por ela, de como ela era boa, do quanto era prudente, do jeito que
mexia o rabinho e tal que a rata finalmente concordou em ir morar com ele.
Podemos guardar o pote de creme debaixo do altar, e a gente não toca nele
enquanto não precisar de verdade.
— Não, claro que não — disse a rata. — Com certeza vai ter comida boa
depois. Se tiver coisas gostosas, não se esqueça de mim. Ia ser muito bom tomar
um pouco daquele vinho doce de batizado.
Claro que a história do gato era uma mentira só. Ele não tinha prima
nenhuma e ninguém ia querer aquele gato para padrinho de seu filho. O que ele
fez foi ir direto para a igreja, se enfiar debaixo do altar, abrir o pote de creme e
lamber toda a nata de cima.
Depois, saiu andando com aquela calma de sempre e subiu para o seu
esconderijo no alto do telhado. Lá ficou, ao sol, lambendo os bigodes e
lembrando da nata do creme. Já era noite quando voltou para casa.
— Bem-vindo de volta! — disse a rata. — Como foi seu dia? Que nome
deram ao gatinho?
— Não vejo nada de estranho — disse o gato. — Não é nada mais estranho
que o nome de seus afilhados, os Ladrões de Farelos.
Não demorou muito, o gato sentiu vontade de creme de novo e disse para a
rata: — Minha querida amiga, posso pedir um favor? Me pediram para ser
padrinho de outro gatinho, e como ele tem uma gola de pelo branco no
pescoço, seria errado eu recusar. Posso deixar você sozinha em casa mais uma
vez? Volto à noite.
— Pelame Tade? Que nome esquisito é esse? Nunca ouvi uma coisa dessas.
O creme estava tão gostoso e grosso que o gato logo sentiu água na boca
outra vez.
— Ah, que absurdo — disse o gato. — Você fica sentada em casa de manhã
até de noite revirando o rabo e deixa tudo quanto é bobagem revirar sua cabeça.
A rata não concordava, mas, enquanto o gato estava fora, trabalhou duro
para limpar a casa e deixar tudo bem arrumadinho.
Era tarde da noite quando voltou para casa. Assim que ele entrou, a rata
perguntou que nome tinham dado ao terceiro filhote.
— Acho que você não vai gostar desse também — disse o gato. —
Ela disse: — Vamos, Gato, vamos lá pegar o pote que nós guardamos. Que
delícia deve ser aquele creme.
— É — disse o gato —, você vai gostar tanto quanto botar essa linguinha
para tomar a fresca na janela.
E foram. Quando chegaram à igreja, o pote ainda estava lá, claro, mas é
óbvio que estava vazio.
— Ai! Ai! Ai! — disse a rata. — Aqui tem coisa, estou começando a
entender! Que tipo de amigo é esse? Você não foi padrinho de afilhado nenhum!
Você veio aqui e devorou todo o nosso creme. Primeiro a nata se foi...
— Estou avisando!
— Depois...
— ... já se acabou! — disse a rata, mas era tarde: o gato pulou em cima dela
e engoliu a rata com rabo e tudo.
Bem, o que você esperava? É o tipo de coisa que acontece neste mundo.
***
Histórias semelhantes: “O sr. Raposa e o sr. Lobo”, de Italo Calvino (Italian Folktales); “Sr. C
manteiga”, de Joel Chandler Harris (The Complete Tales of Uncle Remus).
Uma fábula simples e muito comum. Diversas variantes utilizam um materialismo escatológic
de verdade passa manteiga debaixo do rabo do amigo para mostrar a culpa dele. Tomei empres
do reflexo no fundo do pote do conto de tio Remus, que, assim como esta versão, term
ombros à injustiça do mundo: “Tribbalashun parece que tá esperano ali na esquina pra pegá nó
Quando precisava fazer algo, era sempre o menino mais velho que fazia.
Mas uma coisa o menino mais velho não fazia: se o pai lhe desse alguma tarefa
quando estava anoitecendo, ou quando já estava escuro, e se o caminho passava
pelo cemitério ou por algum lugar assim assustador, ele dizia: “Ah, não, pai, não
vou lá não, porque fico tremendo.”
Sentado num canto, o filho mais novo escutava e não entendia como era
tremer. — Todo mundo diz: “Fico todo tremendo, fico todo tremendo!” Não
sei o que é isso, não. Eu não tremi nada, e estava ouvindo tudo do mesmo jeito.
Um dia, o pai disse a ele: — Escute, menino, você está ficando grande e
forte. Está crescendo e é hora de começar a ganhar a vida. Olhe seu irmão! Ele
aprendeu a trabalhar duro, mas você, pelo que vejo, não aprendeu nada.
O irmão mais velho ouviu o que ele disse e deu risada. “Que cabeçudo!”,
pensou. “Nunca vai servir para nada. Não dá para se fazer uma bolsa de seda
com uma orelha de porco.”
O pai só deu um suspiro. — Bom, não vai fazer mal nenhum você
aprender a tremer — disse —, mas não vai ganhar a vida aprendendo a tremer.
— Se é isso que ele quer — disse o sacristão —, mande o rapaz para mim.
— Boa ideia — disse o pai, pensando: “Quem sabe com alguém de fora da
família seja melhor. Vai fazer bem para o menino.”
O sacristão levou o menino para sua casa e lhe deu a tarefa de tocar o sino
da igreja. Quando ele pegou o jeito, uma noite o sacristão o acordou à meia-
noite e mandou que subisse à torre da igreja para tocar o sino.
— Quem é? — perguntou.
Então o rapaz gritou de novo e, como não obteve resposta, berrou assim:
— Onde está meu marido? — perguntou. — Você não viu, não? Ele subiu
na torre antes de você.
— Eu não sei — disse o rapaz. — Não vi, não. Tinha alguém enrolado
num lençol branco parado perto do buraco das cordas, que não respondia, nem
ia embora, então achei que era alguém que ia aprontar alguma coisa e o joguei
do alto da escada. Vá e veja, decerto ainda está lá. Sinto muito se for ele. Ele caiu
— Aquele idiota do seu filho! — ela gritou. — Sabe o que ele fez? Atirou o
meu marido do alto do campanário! O pobre homem quebrou a perna e não
será de admirar que não tenha quebrado metade dos outros ossos também! Tire
aquele inútil da nossa casa antes que ele faça o teto cair sobre as nossas cabeças.
O pai ficou horrorizado. Foi correndo até a casa do sacristão e tirou o rapaz
da cama.
— Mas, pai — disse o rapaz —, eu sou inocente. Não fazia ideia de que
fosse o sacristão. Ele ficou lá parado na frente do buraco das cordas com um
lençol branco por cima do corpo. Não dava para eu saber quem era e eu avisei
três vezes.
— Tremer, pois sim! Faça o que quiser, para mim tanto faz. Aqui está:
cinquenta moedas de táler para você. Pegue e saia para correr mundo, mas não
ouse contar a ninguém de onde é, nem quem é seu pai. Eu ficaria
envergonhado.
— Tudo bem, pai, vou fazer o que o senhor manda. Se é isso que quer que
eu faça, consigo lembrar direitinho.
Um homem que seguia o mesmo caminho que o rapaz ouviu o que ele
estava dizendo. Não tinham andado muito quando avistaram uma forca.
— Olhe — disse o homem —, uma dica para você. Está vendo aquela
forca? Sete homens casaram com a filha do fabricante de corda lá e agora estão
aprendendo a voar. Se sentar debaixo da forca e esperar até a noite, com toda
certeza vai tremer.
— É mesmo? — disse o rapaz. — Fácil assim? Bom, então, nesse caso, vou
aprender. Se eu começar a tremer antes do dia clarear, você pode ficar com
minhas cinquenta moedas. Volte e me procure então.
Ele foi até a forca, sentou-se debaixo dela e esperou a noite cair. Sentiu frio,
então acendeu uma fogueira, mas à meia-noite soprou um vento e ele não
conseguiu se esquentar apesar dos troncos em chamas. O vento balançava os
enforcados para lá e para cá, os corpos deles se batiam, e o rapaz pensava: “Se eu
estou morrendo de frio aqui perto do fogo, aqueles coitados ali devem estar
ainda mais gelados.” Então pegou uma escada, subiu e foi soltando um por um,
até descer todos para o chão.
Isso fez o rapaz ficar bem zangado. — Falei para tomarem cuidado! —
disse. — Não quero que queimem só porque estão com preguiça de afastar as
pernas do fogo.
Um carroceiro estava indo para o mesmo lado e ouviu o que ele estava
O rapaz foi com ele e chegaram a uma estalagem onde resolveram passar a
noite. Quando entraram no salão, o rapaz disse de novo: — Se ao menos eu
soubesse tremer! Ah, se ao menos eu soubesse tremer!
O estalajadeiro ouviu o que ele disse e deu risada, dizendo: — Se é isso que
você quer, está com sorte. Vai poder aprender bem pertinho daqui.
— Mas eu quero aprender a tremer — disse o rapaz. — Foi para isso que
saí de casa. Do que estão falando? Onde eu posso aprender? Onde?
E ficou insistindo tanto que por fim o estalajadeiro contou que havia um
castelo assombrado perto dali, onde alguém que quisesse tremer podia aprender
depressinha se conseguisse passar três noites lá dentro.
Você pode ficar com os tesouros também se passar três noites lá dentro, basta
isso para ficar muito rico. Muitos rapazes já tentaram, mas nenhum saiu de lá
com vida.
O rei olhou bem para ele e gostou do jeitão do rapaz. Falou assim: —
Deixo você levar para o castelo três coisas, mas coisas que não sejam vivas.
O rei mandou levarem essas coisas para o castelo durante o dia. Quando
caiu a noite, o rapaz entrou e acendeu um fogo brilhante na lareira de um dos
quartos, arrastou a mesa e a faca para o lado do fogo e sentou no torno.
Quando era quase meia-noite, ele atiçou o fogo. Estava soprando as brasas
quando ouviu vozes num canto do quarto.
— O que estão dizendo? — ele falou. — Se estão com frio, venham para
perto do fogo.
No mesmo momento, dois enormes gatos pretos saltaram das sombras e
sentaram um de cada lado dele, olhando para o rapaz com seus olhos vermelhos
como brasas.
Pegou os gatos pelo pescoço, pôs em cima da bancada e apertou suas patas
no torno.
— Não estou gostando nada do jeito desses dois — disse. — Perdi toda a
vontade de jogar baralho.
Mas não conseguia manter os olhos abertos, então foi até a grande cama
que havia num canto do quarto.
E a cama continuava como se fosse puxada por seis bons cavalos, pelos
corredores, escada acima, escada abaixo, até que de repente — pof! Virou de
pernas para o ar, prendendo o rapaz embaixo. Ficou em cima dele como uma
montanha.
— Chega dessa cama agora — gritou. — Se alguém quiser, pode ficar com ela.
Quando o rei entrou de manhã e viu o rapaz dormindo ali, disse: — Ah,
que pena. Os fantasmas mataram mais um. E era um rapaz tão bonito!
— Ah! Você está vivo! — disse o rei. — Bom, fico contente por você.
— Muito bem, obrigado — respondeu o rapaz. — Uma noite já foi, faltam duas.
— Você está vivo! Pensei que nunca mais ia ver você. Aprendeu a tremer?
— Não, nem um pouquinho. Espero que alguém me faça tremer esta noite.
Mas, como a metade de homem não tinha olhos nem ouvidos, não
conseguia ouvir nada nem enxergar onde estava e saiu correndo pelo quarto
derrubando coisas, caindo no chão e levantando outra vez.
Daí, ouviu-se barulho outra vez e meia dúzia de mortos caiu pela chaminé,
um depois do outro. Traziam nove ossos da perna e dois crânios, e começaram a
jogar boliche.
— Bastante — ele respondeu. — Mas essas bolas não são bem redondas.
Pegou os crânios, pôs no torno e girou até eles ficarem bem redondos.
— Assim está melhor — disse. — Agora vão rolar direito. Vai ser divertido!
Jogou um pouco com os mortos e perdeu parte do seu dinheiro. Por fim,
quando soou a meia-noite, eles todos desapareceram. O rapaz deitou
tranquilamente e dormiu.
Na manhã seguinte, o rei entrou novamente para ver como ele estava.
— O que aconteceu dessa vez? — perguntou.
— E conseguiu tremer?
Quando era quase meia-noite, ouviu passos pesados vindo para o quarto e
entraram seis homens imensos carregando um caixão.
— Ah, então tem alguém morto aí? — disse o rapaz. — Deve ser o meu
primo. Ele morreu faz alguns dias.
como gelo.
Aqueceu as mãos na lareira e pôs no rosto do morto, mas o rosto continuou frio.
Ele então tirou o corpo do caixão, deitou ao lado do fogo, com a cabeça do
morto no colo, esfregou suas mãos para fazer o sangue circular. Mas isso
também não funcionou.
Então, pôs o morto na cama e deitou ao lado dele, puxando a coberta por
cima dos dois. Depois de alguns minutos, o morto começou a se mexer.
E tentou agarrar o pescoço do rapaz, mas o rapaz era rápido demais para
ele, e depois de uma luta o pôs de novo no caixão.
Assim que disse isso, um velho saiu das sombras de um canto do quarto. Era
ainda maior que os homens que carregavam o caixão, com uma barba comprida
e olhos que brilhavam de ruindade.
— Isso é o que vamos ver — disse o velho. — Se for mais forte que eu,
deixo você ir embora. Mas não vai, não. Agora, venha por aqui.
— Agora vamos ver quem é mais forte — ele disse. Pegou um machado e
com um só golpe cravou uma bigorna na terra.
— Faço melhor do que isso — disse o rapaz. Pegou o machado e bateu em
outra bigorna de tal forma que ela se abriu em duas por um momento. E nesse
momento o rapaz pegou a barba do velho e pôs na abertura da bigorna. A
bigorna se fechou e lá ficou o velho com a barba presa.
— Peguei o senhor — disse o rapaz. — Agora vamos ver quem é que vai morrer.
Pegou uma barra de ferro e bateu no velho sem piedade, cobrindo o velho
de pancadas até que ele chorou, gemeu e gritou: — Tudo bem! Pare! Eu desisto!
— Bom, não tem importância — disse ele —, sei encontrar o caminho de volta.
— Não — disse o rapaz. — Fico pensando, como será que é tremer? Deitei
na cama com meu primo morto, depois um velho de barba comprida veio e me
mostrou um tesouro, mas ninguém me ensinou a tremer.
Quando chegou a hora, ele herdou o reino. Mas por mais que amasse sua
mulher, por mais feliz que fosse, o jovem rei vivia dizendo: — Se ao menos eu
soubesse tremer! Se ao menos eu soubesse como é conseguir tremer!
Com isso, acabou irritando a jovem rainha. Ela reclamou com a dama de
companhia, que disse assim: — Deixe comigo, majestade. Vou fazer o rei tremer
direitinho.
A criada foi até o riacho e pegou um balde cheio de peixinhos. Nessa noite,
quando o jovem rei estivesse dormindo, a criada disse à rainha, ela devia puxar as
cobertas e despejar o balde em cima dele.
Assim foi feito. O jovem rei sentiu primeiro a água fria, depois os peixinhos
se retorcendo e pulando em cima dele.
— Ai, ai, ai! — ele gritou. — Aah! O que está me fazendo tremer? Ai, ai! É
verdade, estou tremendo! Consegui tremer afinal! Bendita seja, minha querida
esposa! Você conseguiu o que ninguém mais conseguiu. Você me fez tremer!
***
Tipo de conto: ATU 326, “O jovem que queria aprender o que era o medo”.
Fonte: uma versão mais curta deste conto foi publicada na primeira edição dos Grimm em 181
forma como aparece aqui foi publicado na segunda edição, de 1819, de acordo com u
enviada por Ferdinand Siebert, de Treysa, perto de Kassel.
Conto muito difundido, outra versão dele consta do volume de anotações dos Grimm p
crianças e famílias, que publicaram em 1856. “O braço do morto” de Calvino é a mais viva e d
suas quatro versões, mas como seu herói não partiu especificamente em busca de aprender o m
precisa da lição final do balde de peixinhos. Assim como a heroína de “A menina destemida”,
uma ótima história de Norfolk que também traz o triste destino do sacristão e a revelação do te
porão pelo fantasma. Acho a versão dos Grimm a melhor de todas.
Valentia colore a maioria das variantes dessa história; os fantasmas e mortos são mais cômicos
aterrorizantes. Marina Warner, em From the Beast to the Blond, sugere uma interpretaç
balde de peixinhos.
João Fiel
Era uma vez um velho rei que ficou doente e, deitado com sua dor, pensou
assim: “Esta cama em que estou será meu leito de morte.” E disse: — Tragam
João Fiel. Quero falar com ele.
João Fiel era seu criado favorito. Tinha esse nome porque havia sido fiel e
verdadeiro ao rei durante toda a sua vida. Quando ele chegou ao quarto real, o
rei mandou que se aproximasse da cama e disse: — Meu bom e fiel João, não
estarei mais neste mundo durante muito tempo. A única coisa que me perturba é
meu filho. É um bom rapaz, mas é jovem e não sabe o que é melhor para ele.
Não vou conseguir fechar os olhos em paz a menos que me prometa que será
como um pai adotivo para ele e ensinará tudo o que ele precisa saber.
— Será uma tranquilidade para mim — disse o rei. — Agora, posso morrer
em paz. Quando eu for embora, eis o que você deve fazer: mostre ao príncipe o
castelo inteiro, todas as catacumbas, as câmaras, os salões e todos os tesouros que
contém. Mas não deixe que ele entre na última sala do corredor comprido. Lá
está o retrato da princesa do Telhado de Ouro e, se ele descobrir o quadro, vai se
apaixonar por ela. Você saberá que isso aconteceu porque ele irá cair,
inconsciente. E depois enfrentará todo tipo de perigos por causa dela. Não
permita que isso aconteça, João: é a última coisa que peço a você.
João o levou a toda parte, escada acima e escada abaixo, subiu aos sótãos e
desceu aos porões. Todas as salas magníficas estavam abertas para ele — isto é,
todas menos uma, porque João Fiel manteve o jovem rei longe do último quarto
do longo corredor, onde estava pendurado o retrato da princesa do Telhado de
Ouro. O quadro estava exposto de tal forma que quem entrasse no quarto o
veria de imediato, e era tão bem pintado e tão vivo que a princesa até parecia
respirar. Ninguém podia imaginar nada mais bonito no mundo.
O rei notou que João Fiel sempre fazia com que evitasse essa porta, ou
tentava distraí-lo quando estavam por perto, e disse: — Ora, João, estou vendo
que você tenta me impedir de entrar ali. Por que nunca abre essa porta?
— Aí dentro existe uma coisa horrível, majestade. O senhor não vai querer ver.
E tentou abrir a porta à força, mas João Fiel o impediu. — Prometi ao rei,
seu pai, que não deixaria o senhor entrar nesse quarto — disse. — Aí só existe
má sorte para nós dois.
— Bom, você está enganado — disse o jovem rei. — Estou tão curioso para
ver o que existe aí dentro, que má sorte será se eu não conseguir. Não terei paz,
dia e noite, até saber o que existe aí. João, abra a porta!
João Fiel viu que não tinha escolha. Com o coração pesado e um suspiro
profundo, pegou a chave e abriu a porta. Entrou primeiro, achando que poderia
com seu corpo encobrir o retrato aos olhos do jovem rei, mas não adiantou: o
rei ficou na ponta dos pés e olhou por cima de seu ombro. E aconteceu
exatamente como o velho rei havia dito: o rapaz viu o retrato e imediatamente
caiu no chão, inconsciente.
João Fiel o carregou e levou para seu quarto. “Ah, meu Deus”, pensou, “é
um mau começo para o seu reinado. Que azar cairá agora sobre nós?”
O rei logo voltou a si, porém, e disse: — Que belo quadro! Que bela moça!
Quem é ela?
— Ah, estou apaixonado, João! Amo tanto essa princesa que se todas as
folhas de todas as árvores fossem línguas, não conseguiriam dizer o quanto.
Arriscaria minha vida pelo amor dela. João, meu fiel servidor, tem de me ajudar!
estranhos. Talvez ela goste das coisas e veremos se a sorte nos sorri.
O rei chamou todos os ourives e disse o que queria. Eles trabalharam noite e
dia e produziram um grande número de peças tão lindas que o jovem rei tinha
certeza que a princesa nunca tinha visto nada igual.
João Fiel disse ao rei: — Acho que deve esperar no navio, majestade. Eu
desço à terra e vejo se consigo interessar a princesa com nosso ouro. O melhor
seria o senhor escolher algumas coisas para ela olhar. Decorar um pouco o navio.
Animado, o rei se pôs a trabalhar; João Fiel desceu à terra com os menores
dos objetos de ouro em seu avental e foi direto ao palácio. No pátio, encontrou
uma linda moça tirando água de dois poços, com dois baldes de ouro, um para
água comum, outro para água espumante. Ela estava para se virar e entrar
quando viu João Fiel e perguntou quem era.
— Ah, que coisas lindas! — ela disse, pousando os baldes e pegando as peças
de ouro uma depois da outra. — Tenho de contar para a princesa. Ela adora
ouro, sabe? E tenho certeza de que vai comprar tudo o que tiverem.
Pegou João Fiel pela mão e o levou escada acima, pois era a própria dama
de companhia da princesa. Quando a princesa viu os objetos de ouro, ficou
deslumbrada.
— Nunca vi peças tão bem-feitas — disse ela. — Não posso resistir. Diga
seu preço! Eu compro todas.
João Fiel disse: — Bom, alteza, sou apenas um criado. Meu senhor é o
mercador. Geralmente é ele quem cuida desse lado. E essas pequenas amostras
que eu trouxe nem se comparam com o que ele tem no navio. São as coisas de
ouro mais lindas que já se fez.
— Ah, bom, eu gostaria de atender sua ordem, mas é tanta coisa. Levaria
dias para trazer tudo até aqui, e além disso, seria preciso tanto espaço para
espalhar todas as peças de ouro que acho que seu palácio não teria salas
suficientes, mesmo sendo tão maravilhoso como é. — João pensou que isso a
deixaria curiosa e tinha razão, porque ela disse: — Então, irei ao seu navio. Me
leve até lá agora, e verei todos os tesouros de seu senhor.
Muito satisfeito, João Fiel a levou ao navio. Quando o jovem rei viu a
princesa no cais, se deu conta de que ela era ainda mais linda que o retrato e seu
coração quase explodiu. Mas acompanhou-a a bordo e fez com que descesse ao
bojo do navio, enquanto João Fiel ficava no convés. — Solte as amarras e parta
com todas as velas — ele disse ao contramestre. — Voe como um pássaro no ar.
— Obrigada, meu senhor — disse ela. — Que bela coleção! Nunca vi nada
igual. Realmente especial! Mas é hora de eu voltar para casa.
— O que está fazendo? — exclamou. — Onde estamos? Fui traída! Caí nas
garras de um mercador. Mas você não pode ser um mercador! Deve ser um
pirata! Você me sequestrou? Ah, prefiro morrer!
O rei pegou sua mão e disse: — Não sou mercador. Sou um rei, tão bem-
nascido quanto você. Só atraí você para bordo porque estou dominado pelo
amor. Quando vi seu retrato em meu palácio, caí no chão, inconsciente.
O terceiro disse: — Conquistou, sim! Kraak! Olhe só, ela está sentando ao
lado dele.
— Não vai ser nada bom para ele — disse o primeiro corvo. — Assim que
pisarem em terra, um cavalo castanho vai correr para saudar os dois. O príncipe
vai tentar montar nele. Kraak! Mas, se montar, o cavalo vai saltar no ar, levar o
príncipe embora e ele nunca mais vai ver a princesa outra vez.
— Tem, claro que tem, mas eles não sabem. Se alguma outra pessoa saltar
para a sela, pegar a arma do coldre e matar o cavalo, o rei estará em segurança.
Kraak! Mas quem fizer isso não deve nunca contar ao rei por que fez isso,
porque se contar, vai se transformar em pedra até os joelhos.
— Eu sei mais que isso — disse o segundo corvo. — Mesmo que o cavalo
seja morto, o rei não estará em segurança. Quando ele entrar no palácio,
encontrará numa bandeja de ouro um lindo manto de casamento preparado
para ele. Parecerá ser feito de ouro e prata, mas é feito de enxofre e piche e, se ele
vestir, vai queimar sua pele até os ossos. Kraak!
— Sem dúvida, dessa ele não terá como escapar — disse o terceiro corvo.
— Ah, tem, sim, mas ninguém sabe como. Alguém usando luvas pode
pegar o manto e jogar no fogo, onde ele queimará em segurança e o rei nada
sofrerá. Kraak! Mas se a pessoa contar ao rei por que fez isso, se transformará em
pedra dos joelhos até o coração.
Mas acabou dizendo a si mesmo: — Bom, ele é o meu senhor e vou salvar a
vida dele mesmo que tenha de perder a minha.
Quando estava para saltar para a sela, João Fiel o empurrou e saltou no
— Calem a boca — disse o rei. — É de João Fiel que estão falando. Tenho
certeza de que ele teve uma boa razão para isso.
Mas o jovem rei disse: — Basta disso! Tenho certeza de que João Fiel teve
uma boa razão. Deixem João em paz.
O rei tinha visto tudo e, sem entender por que João havia se comportado
daquela forma, se zangou, ordenando que os guardas o levassem para a prisão
imediatamente.
Ao ouvir isso, o rei gritou: — Ah, meu fiel João Fiel! Um indulto! Um
Mas uma coisa estranha estava acontecendo com João: enquanto dizia suas
últimas palavras, seus pés, depois suas pernas, em seguida seu tronco e braços e
finalmente a cabeça se transformaram em pedra.
— Ah, que triste recompensa por sua lealdade a nós! — disse o rei. E
ordenou que a figura de pedra fosse levada ao seu quarto e colocada ao lado de
sua cama. Cada vez que olhava a imagem, lágrimas corriam por seu rosto e ele
dizia: — Ah, se ao menos eu pudesse trazer você de volta à vida, meu querido,
mais que fiel João Fiel!
O tempo passou e a princesa deu à luz gêmeos, que eram saudáveis e felizes
e se tornaram sua grande alegria. Um dia, quando a rainha estava na igreja, os
dois meninos brincavam no quarto de seu pai, o rei, que olhou a figura de pedra
e disse, como sempre dizia: — Ah, meu querido João Fiel, se ao menos pudesse
trazer você de volta à vida!
O rei ficou horrorizado. Matar seus próprios filhos amados! Que terrível
preço a pagar! Mas lembrou como João Fiel dera sua própria vida por aqueles
que servia e transformado em aço o próprio coração; tirou a espada e cortou
num instante a cabeça dos dois filhos. E, quando borrifou com seu sangue a
figura de pedra, ela se transformou em carne outra vez, a começar pela cabeça,
descendo até os pés, e ali estava João Fiel, são e salvo.
Ele disse ao rei: — O senhor foi fiel a mim, majestade, e não ficará sem
recompensa.
O rei ficou exultante. E quando ouviu a rainha voltando da igreja, fez João
e os filhos se esconderem dentro do guarda-roupa. Quando ela entrou, ele disse:
— Bom — disse o rei —, podemos trazer João Fiel de volta à vida, mas terá
um alto preço. Temos de sacrificar nossos dois filhos.
A rainha ficou pálida e o horror quase parou seu coração. Mas ela disse: —
O rei se alegrou porque sua resposta foi igual à dele. Abriu o guarda-roupa e
de dentro saíram João Fiel e os dois meninos.
— Deus seja louvado! — disse o rei. — João Fiel está salvo e nossos dois
filhos vivos também!
Ele contou à rainha o que havia acontecido. E depois disso viveram felizes
até o fim de suas vidas.
***
A história de Afanasiev não é firme e bem construída como a versão dos Grimm, que
grande rapidez e perícia de acontecimento a acontecimento. Assim como em outros co
se
neste a mão organizadora de Dorothea Viehmann (veja nota para “O enigma”).
Os doze irmãos
Era uma vez um rei e uma rainha que juntos viviam felizes e governavam bem o
seu reino. Tinham doze filhos e todos eram meninos.
Um dia o rei disse à esposa: — Você está grávida de nosso décimo terceiro
filho. Se dessa vez for uma menina, os outros doze devem morrer. Quero que
ela herde o reino e toda a minha fortuna.
E para mostrar que estava falando sério, mandou fazer doze caixões. Cada
um deles cheio com aparas de madeira e na cabeceira de cada um deles um
travesseiro de penas e uma mortalha dobrada. Ele trancou todos numa sala e deu
a chave à rainha.
A mãe chorava o dia inteiro, até que o filho mais novo, chamado Benjamin
por causa de um menino da Bíblia, perguntou: — Mãe, por que está tão triste?
Mas ele não ficou satisfeito com a resposta. Não a deixou em paz até ela
destrancar o quarto e mostrar para ele os doze caixões de defunto enfileirados,
com as aparas de madeiras, os travesseiros e as mortalhas dobradas.
Chorando ao falar, ela disse: — Meu querido Benjamin, estes caixões são
para você e seus irmãos. Se esta criança que estou esperando for uma menina,
vocês serão todos mortos e enterrados neles.
Benjamin abraçou a mãe e disse: — Não chore, mãe. Nós vamos fugir e
cuidar da nossa vida.
— Isso! — disse ela. — É uma boa ideia. Vão para a floresta e encontrem a
árvore mais alta que puderem. De lá vigiem a torre do castelo. Se eu der à luz
um menino, ergo uma bandeira branca; se der à luz uma menina, ergo uma
bandeira vermelha, e então vocês devem fugir o mais depressa possível. Que
Deus proteja a todos! Vou levantar toda noite e rezar por vocês. No inverno vou
rezar para que tenham sempre um fogo para se aquecer e no verão vou rezar
para que não sofram com o calor.
Depois de dar sua bênção aos doze irmãos, eles partiram para a floresta.
Vamos nos vingar! Toda menina que cruzar nosso caminho haverá de se
arrepender. Seu sangue vermelho correrá!
— Até que enfim chegaram! — ela disse. — Deixei o chalé bem limpo e
quentinho para vocês. Plantei doze lírios aqui debaixo da janela. Enquanto esses
lírios florescerem, vocês estarão seguros. Agora, tenho de ir embora.
E pegou a sua mala e desapareceu num caminho escuro antes que eles
pudessem dizer uma palavra.
Então os irmãos mais velhos saíam para a floresta todos os dias e caçavam
coelhos, veados, aves, tudo o que pudessem comer. Levavam para casa, Benjamin
cozinhava e servia a mesa para eles. Passaram dez anos no pequeno chalé, onde
estavam seguros e o tempo correu depressa.
— Esses caixões foram feitos para seus irmãos — explicou —, mas eles
fugiram antes de você nascer. — E contou a ela tudo o que havia acontecido.
A menina disse: — Não chore, mãe! Vou procurar meus irmãos. Tenho
certeza de que encontro.
Ele sabia que era uma princesa por causa das roupas finas, mas ficou
surpreso com a beleza dela e com a estrela dourada na testa.
— Sou uma princesa — ela disse — e estou procurando meus doze irmãos.
Prometi que andava até o fim do azul do céu para encontrar meus irmãos.
E mostrou a ele as doze camisas, cada uma um pouco menor que a outra.
Benjamin percebeu na mesma hora que aquela menina era sua irmã e disse: —
Você nos encontrou! Sou seu irmão mais novo e meu nome é Benjamin.
Mas quando ele se lembrou do voto de seus irmãos, disse: — Querida irmã,
tenho de avisar que meus irmãos juraram que toda menina que encontrassem
morreria, porque foi por causa de uma menina que perdemos nosso reino.
Ela disse: — De boa vontade entrego a minha vida se puder libertar meus
irmãos de seu exílio.
— Não — disse ele —, você não pode morrer. Não vou deixar que isso
aconteça. Entre aqui, debaixo deste barril, até nossos irmãos voltarem, e eu dou
um jeito em tudo.
— Saber o quê?
— Vou contar — disse ele —, mas só se vocês prometerem que não matam
a próxima menina que virem.
Eles já estavam tão curiosos que gritaram: — Nós prometemos, sim! Vamos
ser bonzinhos! Agora conte!
A princesa saiu, com suas roupas reais, tão linda com a estrela dourada na
testa, tudo nela era delicado, bom, perfeito.
— Bom, tem um jeito — disse a velhinha —, mas é tão difícil que ninguém
pode conseguir.
— Você tem de ficar calada durante sete anos inteiros, sem falar nunca,
nem rir. Se disser uma só palavra, mesmo que seja no último minuto do último
dia do último ano, será tudo inútil, porque seus irmãos serão todos mortos por
essa única palavra.
Mas em seu coração ela disse: “Eu consigo! Sei que consigo! Vou salvar meus
Escolheu uma árvore alta, subiu entre os galhos, onde sentou fiando e
pensando: “Não fale! Não ria!”
Ela não disse nem uma palavra, mas fez que sim com a cabeça e ele
entendeu que ela havia entendido. Ele subiu na árvore para ajudá-
la a descer, montou-a em seu cavalo e foram juntos para casa.
Essa infeliz que você trouxe para casa não é melhor que uma mendiga. Quem
pode saber as maldades que está pensando? Ela até pode ser muda, mas qualquer
boa pessoa pode rir de vez em quando. Quem não dá risada nunca tem algum
peso na consciência, pode ter certeza.
No começo, o rei não quis ouvir esse tipo de coisas, mas com o correr dos
dias a velha falava e falava, inventando todo tipo de maldades para acusar a
jovem rainha, e o rei finalmente começou a acreditar que ela devia ter razão. A
jovem rainha foi acusada num tribunal dominado pelos favoritos da velha e eles
não hesitaram em condená-la à morte.
Foi erguida uma grande fogueira no pátio, onde ela morreria queimada. O
rei ficou olhando de uma janela no alto, lágrimas correndo pelo rosto, pois ele
ainda a amava profundamente. Ela foi amarrada à estaca e o fogo vermelho já
estava subindo, lambendo sua roupa, quando no último momento os sete anos
se completaram.
Quanto à jovem rainha, ela estava rindo e falando melhor do que nunca. O
rei ficou muito surpreso. Agora que podia falar, ela contou por que havia ficado
tanto tempo em silêncio. Ele exultou ao ouvir que sua amada era inocente de
todas as coisas terríveis de que sua mãe a acusava.
Então foi a vez de a velha ser acusada, e o tribunal não teve nenhum
problema em considerá-
la culpada. Ela foi posta dentro de um barril cheio de
cobras venenosas e óleo fervendo e não durou muito depois disso.
***
Tipo de conto: ATU 451, “A donzela que sai em busca de seus irmãos”.
Fonte: história contada aos irmãos Grimm por Julia e Charlotte Ramus.
Esse conto tem muitos primos e é fácil ver por quê. O charme do coro de irmãos quase idêntic
transformam em aves; da irmã que sem saber provoca a transformação e é colocada d
proibição quase impossível de respeitar; de sua fidelidade e coragem e do destino terrí
ponto de vencê-
la, do timing perfeito da volta dos irmãos, do som de suas asas batendo — todo esse
charme constrói uma história muito bonita.
A versão dos Grimm é descuidada na questão do chalé mágico e dos lírios. Introduzi
antes do que ela aparece no original, por questão de ritmo.
Um detalhe interessante é que a mãe do rei é primeiro chamada de Mutter e poucas frases adia
de Stiefmutter, como corrigindo um equívoco anterior. O que ela é, afinal, mãe ou ma
única vez que essa questão surgirá. O contador tem de resolver; ninguém mais pode fazê-
lo.
Irmãozinho e Irmãzinha
— Escute — ele sussurrou —, desde que nossa mãe morreu não fomos
felizes nem uma hora. A madrasta bate na gente todo dia e a caolha da filha dela
nos chuta sempre que tentamos chegar perto dela. Além disso, só comemos
migalhas de pão velho. O cachorro debaixo da mesa come melhor do que nós;
ele sempre ganha um bom pedaço de carne. Deus nos guarde, se nossa mãe
pudesse ver como vivemos! Vamos fugir juntos para o mundo. Mesmo como
mendigos, a vida não pode ser pior.
A Irmãzinha concordou, porque cada palavra que seu irmão dizia era
verdade.
À noite, chegaram à floresta. Estavam tão exaustos, com tanta fome e tão
tristes, com tanto medo do escuro a baixar em torno deles, que tudo o que
conseguiram fazer foi subir em uma árvore oca e adormecer.
Ora, o problema era que a madrasta deles era uma bruxa. Conseguia
enxergar de olhos fechados e estava vigiando as crianças o tempo inteiro quando
saíram da casa na ponta dos pés. Ela foi atrás deles, como fazem as bruxas,
deitada rente ao chão, enfeitiçou todas as fontes da floresta e voltou para casa.
Mas Irmãzinha havia aprendido a ouvir o que a água corrente diz e ouvia a
Irmãozinho fez o que ela dizia, mesmo com muita sede. Foram andando e
logo encontraram outra fonte. Dessa vez, ela ajoelhou primeiro e escutou bem
perto da água.
— Lobos não cumprem promessas. Deve haver alguma fonte que não esteja
enfeitiçada. Vamos procurar.
Irmãzinha viu que olhava em torno, nervoso, pronto para fugir, e abraçou
o seu pescoço.
— Irmão, sou eu! Sua irmã! Não fuja, senão vamos nos perder para sempre!
Ah, o que você fez, meu pobre irmão? O que você fez?
Depois, trançou uns babados e fez uma corda, que amarrou no cinto. E, levando
assim seu irmão, ela seguiu, entrando mais e mais fundo na floresta.
Irmãzinha parou e olhou em torno. Estava tudo muito quieto. O jardim era
bem cuidado e a porta da casa estava aberta.
Ela falava com o gamo o tempo inteiro. Ele entendia bastante e obedecia
quando ela dizia: — Não coma as plantas do jardim e, quando quiser fazer xixi
ou a outra coisa, vá lá fora.
Com musgo macio e folhas secas, ela fez para ele uma cama na lareira. Toda
manhã ela saía e colhia comida para ele: frutinhas silvestres, nozes, raízes bem
gostosas. Na horta, havia cenouras, feijão, repolho e ela sempre cortava bastante
grama fresca para o gamo, que comia da sua mão. Ele ficava feliz de brincar em
torno dela e à noite, quando a Irmãzinha já havia se lavado e feito suas orações,
ela se deitava com a cabeça apoiada no gamo, como se fosse um travesseiro. Se
Irmãozinho ainda fosse humano, a vida deles seria perfeita.
Assim viveram durante algum tempo. Mas, um dia, aconteceu que o rei
promoveu uma grande caçada na floresta. As árvores ressoaram com o som das
trompas de caça, o latido dos cachorros, os gritos alegres dos caçadores. O gamo
espetou as orelhas e sentiu muita vontade de participar da caçada.
— Deixe eu ir, Irmã! — ele implorou. — Faço qualquer coisa para ir caçar
com eles!
— Mas tome todo cuidado para voltar hoje à noite — ela disse, abrindo a
porta. — Vou trancar a porta para o caso de algum caçador maluco vir para este
lado; então, para eu saber que é você, bata na porta e diga: “Irmã, pode abrir, seu
irmão está aqui.” Se não disser essas palavras, não abro a porta.
O jovem gamo saiu correndo como um raio pela porta aberta, saltando
entre as árvores. Nunca havia se sentido tão bem, tão feliz, tão livre, como na
hora que os caçadores o viram e começaram a correr atrás, sem conseguir pegá-
lo. Sempre que chegavam perto e achavam que dessa vez não iam errar o alvo,
ele saltava para os arbustos e desaparecia.
Irmãzinha abriu a porta, ele trotou alegremente para dentro e contou para
ela tudo o que havia acontecido na caçada. E dormiu profundamente a noite
inteira.
Quando chegou a manhã e ele ouviu ao longe a música das trompas de caça
outra vez, não conseguiu resistir.
Ele não respondeu, só saiu correndo para a caçada. Quando o rei e seus
caçadores viram o gamo com a coleira dourada, começaram de imediato a
perseguição. Por urzes e samambaias, por clareiras e matagais, o pequeno gamo
correu o dia inteiro, escapando da dura perseguição da caçada. Diversas vezes
quase o acertaram e, quando o sol estava se pondo, o tiro de uma espingarda
feriu a sua perna. Ele não podia mais correr tão depressa e um dos caçadores
conseguiu segui-lo até a casa, viu quando bateu na porta e ouviu quando disse as
palavras: “Irmã, pode abrir, seu irmão está aqui.”
Irmãzinha sentiu medo quando viu seu gamo ferido. Lavou o sangue de sua
perna e fez uma compressa de ervas para ajudar a sarar. Não era mesmo uma
ferida muito séria e, quando acordaram de manhã, o pequeno gamo já havia se
esquecido dela. Implorou para sair uma terceira vez.
— Irmã, nem sei como contar a paixão que sinto pela caçada! Tenho de ir
senão vou enlouquecer!
— Então vou morrer aqui na sua frente. Quando escuto o som das trompas
de caça, sinto cada átomo do meu corpo pular de alegria. Meu desejo é grande
demais para mim, Irmã! Eu suplico, abra a porta e me deixe ir.
Ela não conseguiu resistir aos seus apelos e com o coração pesado abriu a
porta. Sem olhar para trás, o gamo saltou para fora e galopou para a floresta.
O rei havia ordenado a seus caçadores que não ferissem o gamo de coleira
dourada. — Se encontrarem o animal, ergam as armas e segurem os cães. Dez
moedas de ouro para o primeiro que avistar o gamo!
— Quer vir para o meu castelo? — ele perguntou. — Aceita casar comigo?
— Pois ele virá também — disse o rei. — Viverá tanto quanto você e nada
lhe faltará.
Quanto a Irmãozinho, o gamo, ele tinha todo o jardim do palácio para brincar e
uma equipe de criados para cuidar dele: o Tratador da Grama, o Valete dos
Chifres e Cascos, e a Criada da Escova Dourada, cujo trabalho era escovar seu
pelo todos os dias quando ele ia dormir e tirar qualquer pulga ou percevejo que
ele pudesse ter pegado. Assim foram todos muito felizes.
Ora, durante todo esse tempo a madrasta malvada pensava que o irmão e a
irmã deviam ter sido despedaçados por animais selvagens. Mas, quando leu no
jornal que Irmãzinha havia se tornado uma rainha e que seu companheiro
constante era um gamo, não demorou muito para entender o que havia
acontecido.
— Aquele menino maldito deve ter bebido na fonte em que eu pus o feitiço
do gamo! — disse ela à filha.
— Não é justo — a filha choramingou. — Eu é que devia ser rainha, não ela.
— Pare de reclamar — disse a velha. — Quando chegar a hora, você vai ter
o que merece.
O tempo passou e a rainha deu à luz um bebê, um lindo menino. O rei saía
para caçar o tempo todo. A bruxa e sua filha foram ao palácio disfarçadas de
criadas e conseguiram chegar até o quarto da rainha.
A única coisa que não conseguiu disfarçar foi o olho que faltava.
Quando o rei voltou essa noite e soube que tinha um filho, ficou muito
contente. Foi até o quarto de sua mulher e ia abrir a cortina para ver como ela
estava, mas a falsa criada falou: — Não, majestade! Não abra a cortina de jeito
nenhum! Ela precisa descansar e não deve ser incomodada.
O rei saiu na ponta dos pés e não descobriu que uma falsa rainha estava
deitada na cama.
Nessa noite, o gamo não conseguia dormir em seu estábulo. Ele subiu a
escada até o quarto onde estava o bebê e se recusou a sair de lá. Teve de fazer isso
sem explicar nada, porque desde a morte da rainha havia perdido o dom da fala.
A babá ficou com tanto medo que não contou a ninguém. Achava que a
rainha ainda estava deitada, se recuperando do parto.
Mas na noite seguinte a mesma coisa aconteceu outra vez, só que dessa vez a
rainha parecia estar coberta de pequenas chamas e disse:
A babá achou que devia contar ao rei. Então, na noite seguinte, ele ficou
junto com o bebê no quarto. E quando soou a meia-
noite, mais uma vez a
rainha entrou. Dessa vez estava envolta em densa fumaça negra.
A rainha o ignorou, foi olhar o gamo e o bebê, como das outras vezes e
disse:
O gamo puxou a manga do rei e o levou até o lugar onde a tapeçaria estava
pendurada. Puxou a tapeçaria e bateu na parede com seus pequenos chifres. O
Curvou-se para abraçar seu corpo e pela graça de Deus ela voltou à vida.
Contou ao rei o crime horrível que havia sido cometido e o rei mandou seu
mensageiro mais veloz até o portão do castelo, bem a tempo de o vigia prender a
bruxa e sua filha quando tentavam escapar.
***
Uma das poucas histórias de fantasma da coleção e semelhante nisso a “Os três homenzinhos
.
Segundo David Luke, em sua introdução a Brothers Grimm: Selected Tales, a primeira transcr
história em 1812 tinha apenas um riacho enfeitiçado, de forma que o irmão se transfo
imediatamente, mas Wilhelm Grimm acrescentou, em edições posteriores, as outras dua
respeitar o número três, característico dos contos de fadas.
O conto narrado pelos Grimm começa bem e continua mal. A parte final tem vários v
insuperáveis e transições que deixam o leitor no mínimo intrigado: se a madrasta e a
Irmãzinha no banheiro da rainha, o que aconteceu com o corpo? Por que o gamo não
fantasma? De fato, por que o gamo não faz absolutamente nada? Por que a babá não
aparição da rainha até “muitas noites” terem se passado? A filha da bruxa ficou na cama esse t
Essas coisas não são apenas algo com que os contos de fada não se preocupam, e para as quais
bobagem esperar uma resposta. Essas coisas são mais do que isso: são má narrativa. Achei que
lidar com elas e melhorar a história.
Rapunzel
Era uma vez um casal que queria muito ter um filho, mas não conseguiu durante
um bom tempo. Por fim, um dia, a esposa notou os sinais inconfundíveis de que
Deus havia atendido seus pedidos.
Ora, na parede da casa deles, havia uma janelinha que dava para um
magnífico jardim, cheio de todo tipo de frutas e vegetais. Havia um alto muro
em torno desse jardim, e ninguém ousava entrar lá, porque pertencia a uma
bruxa muito poderosa que era temida por todos. Um dia, a mulher estava parada
à janelinha e viu um canteiro de rapôncio ou rapunzel. Estavam tão frescos e
verdes que ela ficou com vontade de comer uma salada deles; essa vontade foi
ficando mais forte a cada dia, a tal ponto que ela acabou doente de verdade.
O marido, alarmado com seu estado, disse: — Minha querida esposa, qual é
o problema?
Então, quando a noite estava caindo, ele pulou o muro alto e entrou no
jardim da bruxa, onde colheu um lindo pé de rapunzel. Voltou depressa e
entregou a sua mulher, que imediatamente fez uma salada e comeu com apetite.
Estava gostoso. De fato, estava tão gostoso que sua vontade de comer
rapunzel foi ficando mais e mais forte, e ela implorou a seu marido que fosse lá e
colhesse mais. Então, mais uma vez, quando estava escurecendo, ele pulou o
muro. Mas assim que pisou no chão e se virou para o canteiro de rapôncios,
levou um susto, porque ali estava a bruxa, parada na frente dele.
— Então é você o miserável que está roubando meu rapunzel! — ela disse,
fuzilando-o com o olhar. — Vai pagar por isso, ouviu bem?
A bruxa entendeu seus motivos. A raiva sumiu de seu rosto e ela balançou a
cabeça.
Mas com uma condição: a filha que sua mulher vai ter será minha. Ela ficará em
perfeita segurança; cuidarei dela como uma mãe.
— Vou chamar esta criança de Rapunzel — disse ela, e desapareceu com o bebê.
Rapunzel cresceu e se tornou a menina mais linda sobre a qual o sol jamais
brilhou. Quando tinha doze anos, a bruxa a levou até os confins da floresta e a
trancou numa torre sem portas, sem escada, sem janelas, a não ser uma janelinha
lá no alto. Quando a bruxa queria subir, gritava assim:
Rapunzel, Rapunzel,
Ela já estava na torre fazia alguns anos, quando o filho do rei foi, um dia,
cavalgar na floresta. Ao chegar perto da torre, ele ouviu um canto tão lindo que
parou e ficou escutando. Claro que era a solitária Rapunzel, cantando para
passar o tempo. E que linda voz tinha ela.
O príncipe queria subir para conhecer a dona de tão bela voz, mas não
conseguiu encontrar nenhuma porta. Ficou intrigado e voltou para casa
decidido a ver se havia um jeito de subir naquela torre.
No dia seguinte, o príncipe voltou, mas sem nenhum sucesso. Uma canção
tão bonita, e não se via quem cantava! Mas enquanto estava pensando, viu que
alguém se aproximava e se escondeu atrás de uma árvore. Era a bruxa. Quando
ela chegou embaixo da torre, o príncipe ouviu que dizia assim:
Rapunzel, Rapunzel,
Para surpresa dele, despencou pela janela um belo cabelo dourado. A bruxa
“Bom”, pensou o príncipe, “se é assim que se sobe, vou tentar subir
também.”
No dia seguinte, quando estava anoitecendo, ele foi até a torre e gritou:
Rapunzel, Rapunzel,
Rapunzel ficou apavorada. Nunca tinha visto um homem na vida. Ele não
era nada parecido com a bruxa, portanto era estranho, desconhecido, mas era
tão bonito que ela ficou confusa e não sabia o que dizer. Um príncipe, porém,
sempre sabe o que dizer, e pediu que ela não sentisse medo. Explicou que tinha
ouvido sua voz adorável cantando no alto da torre e não teve mais descanso
enquanto não conhecesse quem cantava. E agora que a tinha visto, achava que
era ainda mais bonita que sua voz.
Pegou o lindo cabelo de Rapunzel com a mão esquerda, uma tesoura com a
direita e snip-
snap! os fios dourados pelos quais o príncipe havia subido caíram ao chão.
Lá a pobre moça sofreu muito e depois de alguns meses deu à luz gêmeos, um
menino e uma menina. Viviam como mendigos: não tinham dinheiro, nem
casa, e só contavam com o que conseguiam mendigar quando Rapunzel cantava.
Rapunzel, Rapunzel,
gato pegou. O que acha disso, hein? E o gato vai arrancar seus lindos olhos antes
de terminar. Rapunzel sumiu, entendeu? Você nunca mais vai ver Rapunzel!
E a bruxa empurrou o príncipe para trás e para trás, até ele cair da janela.
Um arbusto de espinheiro amaciou sua queda, mas ao preço terrível de furar seus
olhos. Cego no corpo e arrasado no espírito, o príncipe foi embora.
Viveu como mendigo algum tempo, sem saber nem em que terra estava.
Mas, um dia, ouviu uma voz conhecida, uma voz que amava, e cambaleou até
ela. E, ao se aproximar, ouviu duas outras vozes também, vozes de crianças, que
de repente pararam de cantar, porque sua mãe, Rapunzel, havia reconhecido o
príncipe e saiu correndo para encontrá-lo.
Então, todos juntos voltaram para o reino do príncipe, onde foram bem
recebidos e viveram felizes suas longas vidas.
***
Fonte: história contada aos irmãos Grimm por Friedrich Schultz, baseada na “Persinette”, de C
Rose de Caumont de La Force, dos Les Contes des contes, 1698.
Histórias semelhantes: “Petrosinella”, de Giambattista Basile (The Great Fairy Tale Tradition,
Zipes); “Prezzemolina”, de Italo Calvino (Italian Folktales).
O que dizer dos pobres pais, por exemplo? Eles passam anos desejando ter uma filha e, quand
a bruxa a leva embora e não sabemos mais nada deles. Sem dúvida, esse é um dos pontos em q
de fadas são diferentes dos romances.
Em versões posteriores dos contos dos irmãos Grimm, Wilhelm Grimm expurgou a co
Rapunzel com a bruxa que existia em todas as versões anteriores, inclusive a primeira edição d
de 1812. Em vez de revelar sua gravidez dizendo que as roupas não servem mais, Ra
bruxa por que ela é tão mais difícil de puxar para cima do que o jovem príncipe. Essa mudanç
melhoria: a torna tonta, em vez de inocente. Além disso, a história é toda alusiva à g
Marina Warner, em From the Beast to the Blonde, a planta específica desejada pela esposa era
salsa, um conhecido abortivo. E também, “Persinette”, título da história de La Force em que “
Era uma vez um homem cuja esposa morreu e uma mulher cujo marido morreu;
o homem tinha uma filha e a mulher também tinha uma filha. As meninas se
conheciam, um dia foram dar um passeio juntas e chegaram à casa da mulher.
A mulher puxou a filha do homem de lado e, quando sua filha não estava
ouvindo, falou: — Sabe, eu gostaria de casar com seu pai. Diga isso para ele e
veja o que ele diz. Se ele disser sim, prometo que você vai ter leite para lavar o
rosto todos os dias, o que é muito bom para a pele, e vinho para beber.
Enquanto minha filha vai beber somente água. Para mostrar o quanto eu quero
casar com ele.
A moça voltou para casa e contou ao pai o que a mulher havia dito.
O homem disse: — Casar com ela? Ah, minha nossa. O que devo fazer?
Ele não conseguia se decidir. Por fim, tirou a bota e disse à filha: — Olhe,
pegue minha bota. Tem um buraco na sola. Pendure no sótão e encha de água.
Se ela segurar a água, eu me caso, se a água escorrer para fora, não caso.
A moça fez o que ele mandou. A água fez o couro inchar e fechou o buraco,
de forma que, quando ela encheu a bota, toda a água ficou lá dentro. A moça
contou ao pai e ele subiu ao sótão para ver.
— Ora, vejam só! Então, vou ter de casar com ela — falou. — Não se pode
voltar atrás no que se disse.
Vestiu sua melhor roupa, foi fazer a corte à mulher e acabaram casando.
A moça fez o que ela mandou. Vestiu a roupa de papel fino e saiu com o
cesto. Claro que havia neve por toda parte e nem uma folha verde à vista, muito
menos um morango. Ela não sabia nem onde procurar, então entrou na floresta
por um caminho que não conhecia. Logo chegou a uma casinha que era da sua
altura. Sentados num banco na frente da casa, havia três homenzinhos fumando
seus cachimbos. Não eram mais altos que os joelhos dela; os três se levantaram e
a cumprimentaram.
Deram a ela uma cadeirinha para sentar e os três se sentaram num banco
junto ao fogo. Ela estava com fome, então pegou seu pedaço de pão.
— O que é?
— Só um pedaço de pão.
— Claro — disse ela. E quebrou o pão em dois. Era tão duro que teve de
bater na beira da mesinha. Deu aos três homens o pedaço maior e começou a
roer o menor.
— Tenho de colher morangos — disse ela. — Não sei onde vou encontrar
morangos no inverno, mas não posso voltar para casa enquanto não encher o
cesto.
— Você varre o caminho para nós? — disseram. — Tem uma vassoura ali
no canto. Basta limpar um pouco a entrada perto da porta dos fundos.
E o primeiro disse: — Eu prometo que ela vai ficar cada dia mais bonita.
O segundo disse: — Eu prometo que cada vez que falar, uma moeda de
ouro cairá de sua boca.
O terceiro disse: — Eu prometo que ela vai encontrar um rei e se casar com ele.
Ela encheu o cesto e foi agradecer aos homenzinhos. Eles formaram uma
fila para apertar a mão dela e fazer uma reverência.
Claro que ela estava morrendo de inveja e assim que se viu sozinha disse à
mãe: — Deixe eu ir à floresta colher morangos! Eu quero! Quero mesmo!
— Não, querida — disse a mãe. — Está muito frio. Você pode morrer
congelada.
— Ah, deixe! Por favor! Se deixar, eu dou para a senhora metade das
moedas que saírem da minha boca! Deixe!
A mãe acabou deixando. Pegou seu melhor casaco de peles e reformou para
caber na filha, deu sanduíches de patê de fígado de galinha para ela levar e um
pedaço grande de bolo de chocolate para a viagem.
— De jeito nenhum.
Quando ela terminou de comer, eles disseram: — Pode varrer o caminho agora.
— Eu não vou varrer caminho nenhum — ela disse. — Acham que sou sua
empregada? Que audácia!
— Não chega nem perto daquela que veio antes — disse o terceiro. — O
que vamos dar para ela?
— Eu vou garantir que cada vez que ela fale, um sapo saia pulando de sua boca.
A moça não conseguiu encontrar nenhum morango, então voltou para casa
para reclamar. Cada vez que abria a boca, saía um sapo pulando e logo o chão
estava coberto de bichos que saltavam, se arrastavam, se encolhiam, e até sua mãe
achou que ela era repulsiva.
Depois disso, a madrasta não pensava em outra coisa. Era como se houvesse
um verme roendo seu cérebro. A única coisa em que pensava era transformar a
vida da enteada num inferno. E, para aumentar o tormento da madrasta, a moça
ficava mais bonita a cada dia.
Lave bem esta meada de fio e não demore o dia inteiro com isso.
A enteada fez o que ela mandou. Pegou o machado e a meada de fio, foi até
o rio e, quando ia pisar na água congelada, uma carruagem que passava parou a
seu lado. Na carruagem, viajava um rei.
— Pois eu estou procurando uma moça para casar — disse o rei. — Meus
conselheiros me disseram que está na hora de eu casar. Você não é casada, é?
— Não — disse a moça, e uma moeda de ouro caiu direitinho de sua boca
para seu bolso.
— Agora, deite na cama dela — a mulher disse à filha. — Não diga nada,
aconteça o que acontecer.
A mulher cobriu a cabeça da filha, porque, além dos sapos, ela realmente
estava ficando cada dia mais feia. Quando o rei voltou, a mulher explicou que a
rainha estava com febre. — Tem de ficar quieta — disse ela. — Nada de
conversa. Ela não pode falar nada. O senhor deve respeitar seu descanso.
— Não posso impedir — disse a filha. E outro sapo saiu pulando. — Não é
minha culpa. — Mais um sapo.
Mas ela vai sarar logo, contanto que não seja incomodada.
O pato disse:
O menino da cozinha não sabia o que dizer. Então, o pato falou de novo:
Então o pato tremulou e sua forma se transformou na rainha. Ela subiu até
o berço do filho, pegou-o no colo e o amamentou. Depois o deitou
carinhosamente, agasalhou bem e deu-lhe um beijo. Então flutuou para a
cozinha, nadou pela vala e voltou para o riacho.
O menino foi correndo procurar o rei e contou tudo para ele. O rei ficou
horrorizado. Entrou na ponta dos pés no quarto da rainha, ergueu as cobertas
que cobriam sua cabeça e quase perdeu o fôlego ao ver a filha feia ali deitada,
roncando, com um sapo por companhia.
rei passou a espada três vezes acima de sua cabeça. Mais uma vez ela tremulou e
se transformou num pato branco. Imediatamente o rei girou a espada e cortou
fora sua cabeça. Um momento depois, o pato desapareceu e em seu lugar estava
a rainha de verdade, viva outra vez.
O rei disse: — Que castigo merece alguém que arranca da cama uma vítima
inocente e a atira no rio para morrer afogada?
Mandou fazer um barril e assim que ficou pronto a mulher e a filha foram
postas ali dentro, a tampa pregada com pregos. O barril rolou barranco abaixo
***
Histórias semelhantes: “Belmiele e Belsole”, “O rei dos pavões”, de Italo Calvino (Italian Folk
“Irmãozinho e Irmãzinha”, “A noiva branca e a noiva negra”, de Jacob e Wilhelm Grimm (Ch
Household Tales).
João e Maria
Na beira da floresta morava um pobre lenhador com sua mulher e dois filhos: o
menino chamado João e a menina, Maria. Mesmo nos melhores momentos, a
família tinha muito pouco para comer, e o pior é que era um tempo de escassez.
Muitas vezes, o pai não conseguia fornecer nem o pão de cada dia.
Uma noite, deitado em sua cama, preocupado com sua pobreza, ele
suspirou e disse à mulher: — O que vai ser de nós? Como podemos alimentar as
crianças, se não temos nem para nós mesmos?
— Vou dizer uma coisa — ela falou. — Vamos fazer o seguinte: amanhã de
manhã, levamos as crianças para a parte mais fechada da floresta, acomodamos
bem os dois, acendemos uma fogueira para eles ficarem aquecidos, damos um
pouquinho de pão e deixamos os dois lá sozinhos. Não vão encontrar o caminho
de volta e nos livramos deles.
— Mas não gosto nada da ideia — ele disse. — Não consigo deixar de
sentir pena dos dois...
Assim que os adultos adormeceram, João saiu da cama, vestiu seu casaco
velho, abriu a parte de baixo da porta e saiu. A lua estava brilhando e as
pedrinhas brancas da frente da casa reluziam como moedas. João se abaixou e
encheu os bolsos com elas.
tenho um plano.
— Acordem, seus vagabundos! — disse ela. — Vamos até a floresta pegar lenha.
— Estou olhando meu gatinho branco — disse João. — Ele está em cima
do telhado. Quer se despedir de mim.
— Que menino bobo — disse a mulher. — Aquilo não é o seu gato, é o sol
brilhando na chaminé.
Na verdade, João estava derrubando as pedrinhas uma a uma no caminho
que percorreram. Ele olhava para trás para ter certeza de que estariam visíveis
depois.
As crianças pegaram uns ramos pequenos, uma pilha grande deles, e o pai
acendeu a fogueira. Quando as chamas estavam queimando bem, a mulher disse:
— Deitem aí bem quentinhos, meus queridos. Nós vamos cortar lenha agora e,
quando a gente terminar, voltamos para buscar vocês.
João e Maria sentaram-se diante do fogo. Quando acharam que devia ser
meio-dia, comeram suas fatias de pão. Dava para ouvir o barulho do machado
não muito longe dali, então acharam que o pai estava perto. Mas não era um
machado, era um galho que ele havia amarrado numa árvore morta. O vento
balançava o galho que batia no tronco.
Os dois ficaram sentados muito tempo e aos poucos foram sentindo sono. A
tarde passou, a luz começou a sumir, os dois se abraçaram apertado e dormiram
profundamente.
— Espere até a lua sair — disse João. — Aí você vai ver meu plano em
ação.
A porta estava trancada, então bateram com força. Quando a mulher abriu
a porta, seus olhos se abriram também, chocada. — Crianças malvadas! Ficamos
tão preocupados! — Abraçou os dois com tanta força que eles não podiam nem
respirar. — Por que dormiram tanto? Pensamos que vocês não queriam mais
voltar!
E beliscou o rosto deles como se estivesse realmente contente por vê-los.
Então, por essa vez eles estavam salvos. Mas não muito tempo depois, a
comida ficou escassa outra vez e muita gente passava fome. Uma noite, as
crianças ouviram a mulher dizer ao marido: — Não adianta. Só resta meio pão,
depois vamos todos morrer de fome. Temos de nos livrar das crianças e, dessa
vez, fazer direito. Da outra vez, eles devem ter feito algum truque, mas se dessa
vez a gente for bem longe dentro da floresta eles nunca vão encontrar o
caminho de volta.
— Ah, não gosto nada disso — o pai falou. — Na floresta não tem só
animais selvagens. Tem duendes e bruxas e sabe Deus o que mais. Não seria
melhor repartir o pão com as crianças?
— Não seja idiota — disse a mulher. — Não faz sentido. Você é muito
mole, esse é o seu problema. Mole e bobo.
Ela o arrasou com suas críticas e ele não tinha como se defender; se você
cede uma vez, tem de ceder sempre.
Quando seguiam pela floresta, João esfarelou o pão e foi derrubando as migalhas
pelo caminho, parando de vez em quando para ter certeza de que estavam
visíveis.
— João, vamos logo — disse o pai. — Pare de olhar para trás o tempo
todo.
João não olhou mais para trás, mas continuou esfarelando o pão dentro do
bolso e derrubando no caminho. A mulher fez os dois andarem depressa, e
entraram na floresta, indo mais longe do que jamais tinham ido.
Por fim, ela disse: — Aqui está bom — e mais uma vez fizeram uma
fogueira para aquecer as crianças.
As crianças ficaram sentadas ali até sentirem que era meio-dia e então
repartiram o pedacinho de pão de Maria, porque João tinha usado todo o seu.
Já era tarde da noite quando acordaram. — Shh, não chore — disse João.
num ramo próximo. Ele cantava tão bonito que João e Maria pararam para
ouvir; quando ele abriu as asas e voou um pouco mais longe, os dois foram atrás.
Ele pousou e cantou de novo, e de novo voou um pouco mais longe, sem pressa,
para eles poderem acompanhar, de forma que parecia mesmo que estava guiando
os dois.
E quanto às paredes...
As pobres crianças estavam com tanta fome que nem pensaram em bater na
porta e pedir licença. João pegou um pedaço do telhado, Maria partiu um
pedaço da janela e os dois se sentaram onde estavam e começaram a comer.
Depois de alguns bons bocados, ouviram uma voz muito suave dentro da casa:
As crianças responderam:
Mas a velha sacudiu a cabeça e disse: — Não tenham medo, meus queridos!
Quem trouxe vocês aqui? Entrem, entrem, meus amores, venham descansar na
minha caixinha de gostosuras. É tão protegida como uma casa!
Mas a mulher só estava fingindo ser boa. Na verdade, ela era uma bruxa má
e tinha construído sua casa deliciosa para atrair crianças. Quando capturava uma
criança, fosse menino ou menina, ela matava, cozinhava e comia. Sempre que
isso acontecia, era uma festa para ela. Assim como outras bruxas, essa tinha olhos
vermelhos e não conseguia enxergar muito bem, mas tinha o olfato muito bom
e sabia imediatamente quando havia humanos por perto. Assim que João e
Maria estavam acomodados na cama, ela riu e esfregou as mãos nodosas.
Então pegou João e, antes que ele pudesse dar um grito, o arrastou para fora
do chalé até um barracãozinho, onde o prendeu numa jaula. Ele gritou bastante,
mas não havia ninguém para ouvir.
Maria começou a chorar, mas não adiantou: teve de fazer tudo o que a
bruxa ordenou. João recebia um prato delicioso todos os dias, enquanto ela
tinha de sobreviver com as cascas dos lagostins que pegava no rio.
Mas João era muito esperto: ele punha um osso pequeno entre as barras da
jaula e a bruxa, espiando com seus olhos vermelhos, achava que era seu dedo.
Quatro semanas se passaram e ela achava que João ainda estava magro. Mas
aí lembrou de suas bochechas coradas e disse a Maria: — Ei! Menina! Vá buscar
bastante água. Encha o caldeirão e ponha para ferver. Gordo ou magro, osso ou
filé, vou abater aquele seu irmão amanhã e cozinhar para um ensopado!
Pobre Maria! Ela chorou e chorou, mas teve de ir buscar a água como a
bruxa ordenou. — Por favor, meu Deus, nos ajude! — soluçou. — Se os lobos
tivessem nos devorado na floresta, ao menos teríamos morrido juntos.
Claro que a bruxa queria fechar a porta quando Maria estivesse lá dentro
para cozinhar a menina também. Mas Maria percebeu o que ela estava querendo
e disse: — Não estou entendendo. Quer que eu entre no forno? Como posso
fazer isso?
fácil.
E ela se curvou e pôs a cabeça dentro do forno. Assim que fez isso, Maria a
empurrou com tanta força que ela perdeu o equilíbrio e caiu lá dentro. Maria
fechou a porta na mesma hora e prendeu com uma barra de ferro. Horríveis
gritos e berros saíram de dentro do forno, mas Maria tapou os ouvidos e correu
para fora da casa. A bruxa morreu queimada.
Maria foi direto para o barracão e gritou: — João, estamos salvos! A bruxa
velha morreu!
João saltou para fora, alegre como um passarinho que encontra a gaiola
aberta. Estavam tão felizes! Se abraçaram e se beijaram, pulando de alegria. Não
havia mais nada a temer, então entraram correndo na casinha e olharam em
volta. Por toda parte havia baús e arcas cheios de pedras preciosas.
— Vou levar algumas também — disse Maria, e encheu o avental com elas.
— Vai ser difícil atravessar — disse João. — Não vejo nenhuma ponte.
— E não tem barcos também. Mas olhe — disse Maria —, olhe lá um pato
branco. Vamos ver se nos ajuda a passar para o outro lado.
Então o bom patinho levou primeiro um, depois o outro. Quando estavam
em segurança na outra margem, continuaram caminhando, e logo a floresta
começou a ficar mais conhecida. Por fim, viram sua casa ao longe. Saíram
correndo, entraram depressa e pularam nos braços do pai.
O homem não tinha tido nem um momento de alegria desde que deixara
os filhos na floresta. A esposa tinha morrido pouco depois e ele estava
completamente sozinho, mais pobre do que nunca. Mas então Maria desdobrou
o avental e sacudiu as pedras preciosas de forma que se espalharam por toda a
sala. E João também jogou no chão um punhado atrás do outro.
O rato correu,
***
“João e Maria”, ou Hansel e Gretel no original, é um dos contos mais conhecidos, sem dúvida
em incontáveis antologias, livros ilustrados, adaptações teatrais (e, neste caso, ópera) at
familiaridade acaba por amortecer suas qualidades. Mas esse é um clássico grande e feroz. A m
Mãe ou madrasta? Na primeira edição dos Grimm, de 1812, a mulher é simplesmente “a mãe”
sétima edição, de 1857, ela se tornou a madrasta e assim permaneceu. É interessante o
Warner, em From the Beast to the Blonde, tem a dizer sobre as razões de os Grimm efetuarem
único jeito de preservar a visão ideal da mãe era bani-
la da história e substituí-la) e também a
interpretação freudiana de Bruno Bettelheim (a cisão mãe/madrasta permite que a criança lide
com a raiva pelo lado ameaçador da própria mãe). Do ponto de vista da narrativa, eu
simplicidade.
Em Why Fairy Tales Stick, Jack Zipes observa que por baixo deste conto, que para m
apenas uma questão de capricho, está a realidade infeliz da pobreza rural e a perspectiva de fo
muitas famílias. Tempos desesperados, soluções desesperadas, sem dúvida, mas a histór
condenar um pouco mais o pai? E a morte da madrasta é muito conveniente, principa
associação entre madrasta e bruxa que muitos contadores de histórias modernos construíram (i
mesmo). Seria um triste final as crianças voltarem para casa e encontrarem a madrasta ainda n
Talvez o pai a tenha matado. Se eu escrevesse este conto como um romance, ele mataria.
O episódio do pato é uma curiosa intervenção da última edição dos Grimm. Não exist
disso, pelo menos impressa, mas acho que funciona, então a incluí também. O lago é
intransponível entre uma floresta ameaçadora e a segurança do lar, e uma barreira é uma coisa
menos que se esteja do lado errado dela; mas ela pode ser atravessada com uma com
benevolência da natureza e engenho humano.
Era uma vez um homem tão pobre que não conseguia mais sustentar seu único
filho. Quando o filho percebeu isso, disse: — Pai, não há por que eu continuar
aqui. Sou um fardo para o senhor. Vou sair de casa e ver se consigo ganhar a
vida.
Ora, o rei tinha uma filha que era muito bonita, mas vítima de uma
estranha obsessão. Fizera a promessa de não casar com homem nenhum, a
menos que ele prometesse ser enterrado vivo com ela, caso ela morresse
primeiro. — Afinal, se ele me amar de verdade — dizia —, por que iria
continuar vivendo? — E ela disse que faria a mesma coisa e seria enterrada com
o marido se ele morresse primeiro.
— Se ela morrer antes de mim, tenho de ir para o túmulo com ela — disse
o soldado. — Mas amo tanto a princesa que estou disposto a enfrentar esse risco.
Durante algum tempo, os dois viveram felizes, mas um dia a princesa ficou
doente. Vieram médicos de todo o reino, mas nenhum conseguiu achar a cura, e
ela acabou morrendo. Então o jovem soldado lembrou da promessa que tinha
feito e estremeceu. Não havia como escapar, mesmo que quisesse quebrar a
promessa, porque o rei ia pôr sentinelas no próprio túmulo e em volta de todo o
cemitério se ele tentasse escapar. Quando chegou o dia do enterro da princesa,
levaram seu corpo até a tumba real, cuidaram para que o rapaz estivesse lá dentro
e o próprio rei trancou e travou a porta.
Deixaram lá dentro algumas provisões: sobre uma mesa havia quatro velas,
quatro pães e quatro garrafas de vinho. O soldado ficou ao lado do corpo da
princesa dia após dia; comia apenas um bocado de pão e um gole de vinho,
fazendo aquilo durar o máximo possível. Quando tomou o penúltimo gole e o
penúltimo bocado, quando a última vela estava bem pequenina, ele entendeu
que tinha chegado a hora.
Mas sentado ali, desesperado, viu uma cobra se esgueirar por um canto da
tumba e ir na direção do corpo. Achando que a cobra pretendia morder o corpo,
o rapaz puxou a espada. — Enquanto eu viver, você não toca na princesa! — ele
disse, e com três golpes despedaçou a cobra.
Pouco depois, uma segunda cobra veio se esgueirando pelo canto. Chegou
aos restos da primeira cobra, olhou bem, pedaço por pedaço, e foi embora. Logo
voltou e dessa vez trazia três folhas verdes na boca. Cuidadosamente, juntou os
pedaços da cobra outra vez, pôs uma folha em cima de cada ferida e um
momento depois a cobra voltou à vida, as feridas cicatrizaram e ela estava inteira
outra vez. E as duas foram embora juntas bem depressa.
Mas as folhas ficaram onde elas tinham deixado e o rapaz pensou que, se o
seu poder milagroso havia trazido a cobra de volta à vida, poderia fazer a mesma
coisa com um ser humano. Então pegou as folhas e colocou em cima do rosto
branco da princesa, uma na boca e uma em cada olho.
Assim que fez isso, o sangue dela voltou a correr. Um saudável rosado
apareceu em suas faces, ela respirou e abriu os olhos.
contou a ninguém como a princesa havia revivido. Mas tinha um criado honesto
e confiável, então entregou a esse criado as três folhas da cobra para que ele
guardasse. — Cuide bem disso — falou — e tenha o cuidado de levar sempre
com você, aonde quer que vá. Nunca se sabe quando vamos precisar delas outra
vez.
Ora, depois que voltou à vida, a princesa estava mudada. Todo o amor que
sentia pelo marido havia secado em seu coração. Mas ela ainda fingia amá-lo e,
quando ele sugeriu que fizessem uma viagem por mar para visitar seu velho pai,
ela concordou na mesma hora. — Que grande prazer será conhecer o nobre pai
de meu querido marido! — ela disse.
Mas uma vez no mar ela esqueceu a grande devoção do rapaz por ela,
porque começou a sentir dentro de si um desejo cada vez maior pelo capitão do
navio. Nada podia satisfazê-
la se não fosse para a cama com ele. E logo se
tornaram amantes. Uma noite, nos braços dele, ela sussurrou: — Ah, se meu
marido morresse! Que casal nós dois seríamos!
Mas o fiel criado tinha visto tudo o que eles fizeram e, assim que viraram as
costas, desamarrou um barquinho e remou em busca do corpo de seu senhor.
Logo o encontrou e depois de puxá-lo para o barco, soltou a corda do pescoço
do rapaz, pôs as três folhas da cobra em cima de sua boca e dos dois olhos e ele
voltou à vida imediatamente.
Então os dois remaram com toda a força. Dia e noite os dois remaram, sem
parar para nada, e o barco voou sobre as ondas tão depressa que chegaram à terra
um dia antes do navio e foram diretamente ao palácio. O rei ficou muito
surpreso.
— Não acredito que ela possa ter feito uma coisa tão terrível! — ele disse.
E assim foi. Pouco depois, o navio chegou ao porto, e ao saber disso o rei
fez o rapaz e seu criado esperarem num quarto escondidos, de onde poderiam
ouvir tudo o que dissessem.
— Por que voltou sozinha? — o rei perguntou. — Onde está seu marido?
— Ah, meu querido pai — disse ela. — Estou inconsolável! Meu marido
ficou doente com febre amarela e morreu. O capitão e eu jogamos seu corpo no
mar. Se ele não me ajudasse, não sei o que seria de mim. Mas o capitão é um
homem tão bom... Cuidou de meu querido marido quando a febre estava muito
alta, apesar do perigo de contágio. Ele mesmo pode contar como foi.
Quando a princesa viu o rapaz, caiu no chão como se tivesse sido atingida
por um raio. Tentou dizer que o marido devia estar tendo alucinações com a
febre, que devia ter entrado em coma tão profundo que eles acharam que tinha
morrido. Mas o criado mostrou a corda e diante dessa prova ela teve de admitir
sua culpa.
— É verdade, fizemos isso — ela chorou —, mas, por favor, pai, tenha
pena de nós!
***
Fonte: história contada aos irmãos Grimm por Johann Friedrich Krause e pela família Von Hax
Histórias semelhantes: “O capitão e o general”, “A erva do leão”, de Italo Calvino (Italian Fol
Um conto vivo e intrigante, que se divide em duas metades, sendo a primeira mágica
romântica/realista. A versão dos Grimm junta habilmente as duas metades por meio das folhas
Não fiz nenhuma alteração, a não ser na questão do assassinato do rapaz. No original, ele é sim
jogado pela amurada do navio, mas nas duas histórias semelhantes de Calvino o herói
um pelotão de fuzilamento no primeiro caso e na forca no segundo, e assim está inqu
morto antes de voltar à vida por meio das folhas mágicas. Achei que o rapaz desta h
inquestionável e dramaticamente morto também, daí o estrangulamento, que permite que o cri
a culpa da esposa ao mostrar a corda.
Mas em quantos pedaços a cobra foi cortada? Essa questão vital parece ter intrigado todo mun
inclusive os próprios Grimm. O texto diz, inequivocamente: “und hieb sie in drei Stücke” — “
em três pedaços” — e David Luke, Ralph Mannheim e Jack Zipes deixam assim em
história. No entanto, para isso acontecer bastariam dois golpes da espada do jovem e conseque
haveria apenas dois lugares para as folhas, não três. Temos de observar o que é essencial, e o e
número três (as três folhas, a boca e os olhos da princesa, o clássico “três” do conto de fadas),
que é preciso haver três lugares nos quais a segunda cobra aplica as folhas, portanto, três golpe
o que cortaria a cobra em quatro partes, não em três. Mas dizer isso introduziria indevidament
quatro na mente do leitor. Acho que a melhor solução foi a que utilizei.
Era uma vez um pescador que morava com sua mulher num barracão tão
imundo que parecia um penico. Todos os dias o pescador saía para pescar e
pescava e pescava. Um dia, ele ficou sentado olhando a água transparente, ficou,
ficou e deixou sua linha baixar até o fundo do mar. E, quando puxou a linha,
havia um grande linguado no anzol.
O linguado falou: — Olhe aqui, pescador, que tal me deixar viver, hein? Eu
não sou um linguado comum. Sou um príncipe encantado. O que você ganha
me matando? Meu gosto não vai ser nada bom. Me ponha de volta na água, seja
bondoso comigo.
— Tudo bem — disse o pescador. — Não precisa dizer mais nada. A mim
me basta a palavra de um peixe falante.
Devolveu o linguado à água e ele foi nadando para o fundo, deixando uma
longa trilha de sangue.
— Claro! — disse a mulher. — Por que não pediu alguma coisa para ele?
Olhe só este barraco. É fedido, tem goteiras quando chove, as prateleiras ficam
caindo das paredes; é um lugar horrível para se viver. Volte, chame o linguado e
diga que nós queremos um bom chalé, bem limpinho e arrumado. Vá.
O pescador não estava com muita vontade de ir, mas por outro lado sabia o
que acontecia se não fizesse o que a mulher mandava, então voltou para a beira
do mar. Quando chegou, a água não estava mais transparente, e sim verde-
escuro e amarelo turvo.
— Ah, aí está você. Bom, a ideia não foi minha, você sabe, mas o que ela
disse é que eu devia pedir para você realizar um desejo. E me disse o que desejar.
Disse que está cansada de viver num barraco que parece um penico e quer morar
num chalé.
Havia um jardim na frente, uma linda saleta, um quarto com uma boa
cama de penas, uma cozinha e uma despensa. Todos os cômodos tinham lindos
móveis; as tigelas de metal e as panelas de cobre eram tão limpas que brilhavam.
Nos fundos, havia um quintalzinho com uma lagoa, galinhas e patos, uma horta
e um pomar de árvores frutíferas.
— Ah, claro — disse o pescador. — É tudo tão bonito. Podemos viver bem aqui.
— Vamos ver — disse a mulher.
Ficou tudo bem durante uma ou duas semanas. Então a esposa falou: —
Escute aqui. Este chalé é muito pequeno. Mal consigo me mexer na cozinha, e o
jardim em seis passos se atravessa. Não está bom assim, não. Aquele linguado
podia ter nos dado um lugar maior se quisesse, para ele é tudo a mesma coisa.
Quero viver num palácio todo feito de mármore. Volte e peça um palácio.
— Ah, mulher — disse o homem —, isto já está bem bom. Nós não
queremos um palácio. O que vamos fazer com um palácio?
— Ah, não sei, não... Ele acaba de nos dar o chalé. Não quero incomodar
de novo. Ele pode ficar zangado.
— Não seja frouxo. Ele pode tudo. Não vai ligar nem um pouco. Vá logo.
“Não está certo”, disse para si mesmo, mas foi mesmo assim.
Quando chegou à beira do mar, a água tinha mudado de cor outra vez.
— Bom, sabe, ela disse que o chalé é meio pequeno. Ela gostaria de morar
num palácio.
O pescador foi para casa e quando chegou não havia mais chalé, mas um
grande palácio todo de mármore. A esposa estava parada no alto da escada e ia
abrir a porta.
— Venha! — ela disse. — Não arraste os pés! Venha dar uma olhada!
Ele foi com ela. A primeira sala era enorme, com piso de quadrados pretos e
brancos. Havia grandes portas em cada parede e ao lado de cada porta um criado
que fazia uma reverência e abria a porta. Dava para ver salas em todas as
direções, e todas as paredes eram pintadas de branco e cobertas com belas
tapeçarias. As cadeiras e mesas em cada sala eram feitas de ouro puro e de todos
os tetos pendia um lustre de cristal com mil diamantes brilhando em cada um.
Os tapetes eram tão macios que o pescador e sua mulher afundavam até o
tornozelo; na sala de jantar estava servido um banquete tão grandioso que as
mesas tiveram de ser reforçadas com troncos de carvalho para não caírem. Fora
do palácio, havia um pátio imenso coberto de cascalho branco puro, as
pedrinhas muito bem polidas uma a uma e nele uma fila de carruagens escarlates
de todo tamanho, puxadas por cavalos brancos; quando o pescador e sua mulher
saíram, todos os cavalos baixaram as cabeças e fizeram uma reverência. Depois
do pátio, havia um jardim de beleza indescritível, com flores cujo aroma
perfumava o ar por quilômetros em torno e árvores frutíferas carregadas de
maçãs, peras, laranjas e limões; além do jardim um parque de pelo menos um
quilômetro, com alces, gamos, lebres e todo tipo de animais decorativos.
— Ah, é, sim — respondeu o pescador. — Isto está bom demais para mim.
perguntou.
— Bom, temos um jardim. Está tudo muito bem. Temos um parque. Que
é muito bom e grande. Mas olhe lá longe! Montanhas! Quero ser rei, assim
podemos ter as montanhas também.
— Ah, mulher — disse o pescador —, eu não quero ser rei. Por que haveria
de querer ser rei? Ainda nem vimos todas as salas deste palácio.
— Esse é o seu problema — ela falou —, não tem ambição. Mesmo que
você não queira ser rei, eu quero ser rei.
— Ah, mulher, não posso pedir isso. Ele já foi muito generoso. Não posso
dizer para ele que quero ser rei.
O pescador disse:
Ele voltou. Quando chegou, o palácio estava duas vezes maior que antes e
na entrada havia uma alta torre com uma bandeira escarlate tremulando no alto.
eles o saudaram com uma barulheira de rifles tão forte que ele quase pulou fora
dos sapatos. Tambores tocaram um repique, trombetas soaram e grandes portas
se abriram.
Ele entrou na ponta dos pés e descobriu que tudo havia sido pintado de
dourado e era duas vezes maior que antes. Cada almofada era coberta de veludo
carmesim com bordados de ouro. Havia pingentes dourados pendendo de tudo
o que tinha cabo, todas as paredes exibiam, em belas molduras douradas, retratos
do pescador e sua esposa vestidos como imperadores romanos, rainhas ou deuses
e deusas, e todos os relógios tocavam boas-
vindas quando ele passava. Então duas
grandes portas se abriram e havia toda uma corte à espera dele.
— Fico contente de ouvir isso — disse ele. — É muito bom. Agora não
temos de pedir mais nenhum desejo.
— Hum — ela disse, batendo os dedos no braço do trono. — Não tenho
tanta certeza. Já sou rei faz tanto tempo que estou ficando meio chateada. Volte
ao linguado e diga que eu quero ser imperador.
— Ah, mulher, pense um pouco — disse o pescador. — Ele não pode fazer
de você um imperador. Já existe um imperador e só pode existir um de cada vez.
— Não ouse falar assim comigo! Eu sou o rei, esqueceu? Faça o que eu
mando. Vá falar com o linguado. Se ele pode fazer de mim um rei, pode me
fazer imperador. Para ele é tudo a mesma coisa. Vá, vá de uma vez!
Lá foi ele, mas estava muito inquieto. Aquilo não ia acabar nada bem,
pensou; o linguado ia ficar farto de tantos pedidos.
Quando chegou à beira do mar, a água estava preta, grossa e fervendo desde
o fundo. Um vento forte fazia as ondas espumarem. O pescador parou e disse:
Ele então voltou para casa e dessa vez encontrou o palácio ainda mais alto
que antes, com torres em cada esquina, uma fileira de canhões na frente e todo
um regimento de soldados marchando de um lado para outro com uniformes
escarlates. Assim que o viram, pararam em posição de sentido, bateram
continência e os canhões dispararam uma salva de tiros que fez doer seus
ouvidos. O portão se abriu, ele entrou e descobriu que toda a parte interna do
palácio agora era dourada e que havia estátuas dele e de sua mulher em poses
heroicas ao longo das paredes. Por onde quer que fosse, duques e príncipes
corriam para abrir portas e fazer profundas reverências. Na sala principal,
encontrou a mulher sentada num trono feito de um único bloco de ouro maciço
com dois quilômetros de altura e ele só conseguia vê-
la porque a esposa estava
usando uma coroa de três quilômetros de altura e dois metros de largura. Era de
ouro maciço também, cravejada com carbúnculos e esmeraldas. Numa das mãos
ela segurava um cetro, e na outra o globo imperial. Duas fileiras de soldados
formavam sua guarda pessoal, cada um pouco menor que o anterior, começando
por gigantes da mesma altura do trono até homenzinhos que não eram maiores
que meu dedo, todos eriçados de armas. Príncipes, duques, condes e barões todos
à disposição.
— Isso é bem a sua cara. Pobreza de aspiração. Isto não basta ainda, pode crer.
— Mas você não pode ser papa! Só existe um papa em toda a cristandade!
O pescador ficou com medo. Sentiu-se mal, seus joelhos estavam tremendo
e o vento soprava tão forte que arrancava as folhas das árvores. Caía a escuridão.
Quando ele chegou ao mar, as ondas rugiam e batiam nas rochas com explosões
que pareciam tiros de canhão. No mar, os navios disparavam foguetes de
emergência, rodando no arremesso das ondas. Havia um restinho de azul no
céu, mas estava cercado por nuvens vermelhas cor de sangue e lampejos de
relâmpagos.
Quando voltou para casa, ele encontrou uma imensa igreja onde antes
ficava o castelo. Era cercada por palácios de todo tamanho e estilo, mas a torre
da igreja era a mais alta de todas. Uma vasta multidão tentava entrar pelas portas,
mas a multidão lá dentro era ainda maior, de forma que o pescador teve de
empurrar, dar cotoveladas e lutar para entrar. A igreja era iluminada por
centenas de milhares de velas e em cada nicho havia um confessionário onde um
padre ouvia confissões. No centro de tudo, um vasto trono dourado, no qual
estava sentada sua esposa, com três coroas na cabeça, uma em cima da outra, e
sapatos carmesins nos pés. Uma fileira de bispos esperava para se deitar no chão e
beijar os pés dela. Na mão direita, ela usava um anel do tamanho de um frango,
na mão esquerda um anel do tamanho de um ganso, uma longa fila de cardeais
esperava para beijar seu anel direito e uma longa fila de arcebispos esperava para
beijar o esquerdo.
— Não parece?
Os dois foram para a cama e o pescador dormiu bem, porque tivera um dia
ocupado. Mas a esposa ficou virando e revirando a noite inteira. Não conseguia
resolver se estava satisfeita ou não, nem pensar em nada para ser depois de papa,
de modo que passou uma noite ruim.
Finalmente, o sol surgiu e, quando ela viu a luz, sentou na cama na mesma hora.
— Quero ser Deus. Quero fazer o Sol e a Lua surgirem. Não suporto ver
eles subirem no céu e eu não ter nada a ver com isso. Mas, se eu for Deus, posso
fazer tudo acontecer. Posso fazer o Sol e a Lua girarem ao contrário se eu quiser.
Ele esfregou os olhos, olhou para ela, mas ela parecia tão louca que ele ficou
com medo e saiu da cama bem depressa.
—, pense bem, meu amor, pense de novo. O linguado fez de você imperador,
fez de você papa, mas não pode fazer você virar Deus. É realmente impossível.
A mulher pulou da cama e bateu nele, o cabelo todo espetado na cabeça, os
olhos rolando nas órbitas. Ela rasgou a camisola, gritou e bateu os pés, berrando:
O pescador enfiou a calça, saltando pelo quarto e correu até a beira do mar.
Havia uma tal tempestade que ele mal conseguia ficar em pé. A chuva chicoteava
seu rosto, as árvores eram arrancadas do chão, as casas tombavam em todas as
direções quando grandes pedras vinham voando no ar, arrancadas dos
penhascos. O trovão rugia, os raios brilhavam, as ondas do mar eram mais altas
que igrejas, castelos e montanhas, com lençóis de espuma voando de seus topos.
***
Essa versão é cheia de energia e detalhes inventivos. Assim como “O junípero” (p. 198), é frut
pena do pintor romântico Philipp Otto Runge (1777-
1810) e foi escrita em plattdeutsch, ou baixo-
alemão, o dialeto de sua Pomerânia natal:
Dar wöör maal eens en Fischer un syne Fru, de waanden tosamen in’n Piβputt, dicht an der Se
Chegou às mãos dos irmãos Grimm com a ajuda de Clemens Brentano e Achim von Arnim, au
que também tinham grande interesse nos contos folclóricos. Como provam essas duas história
ao menos tão dotado com a pena quanto com os pincéis. O clímax se constrói com v
brilhantes, com a tempestade funcionando como um comentário celeste à progressiva obsessão
A maioria dos tradutores traduz Piβputt como “chiqueiro” ou algum termo semelhante. Não ac
nada melhor que “pisspot”, penico.
O alfaiate valente
A velha carregou seu cesto até lá em cima, três lances de escada. Quando
chegou, o alfaiate fez com que desembrulhasse vidro por vidro e examinou
detalhadamente cada um, pesando na mão, olhando contra a luz, cheirando a
geleia e coisa e tal. Por fim, disse: — Esta aqui parece bem boa, este vidro de
morango. Pese uns cem gramas para mim, minha boa senhora, e se chegar a
cento e cinquenta, tanto melhor.
— Bom, Deus abençoe esta geleia e que ela possa dar força e saúde para
quem comer! — disse o alfaiate e pegou um pão e uma faca. Cortou um bom
pedaço e cobriu com geleia.
— Deve estar gostosa — disse —, mas vou terminar este paletó antes de
comer.
Subiu à mesa outra vez e pegou a agulha, costurando cada vez mais
depressa. Enquanto isso, o doce aroma da geleia subiu no ar e, flutuando pela
sala, saiu pela janela. Um esquadrão de moscas que estava se banqueteando com
o corpo de um cachorro morto lá fora na rua sentiu o cheiro, subiu e entrou
voando para olhar. Passaram pela janela e pousaram no pão.
Pegou um pedaço de pano e partiu para cima delas, furioso. Quando parou para
respirar e olhou, havia nada menos que sete moscas mortas com as patas para
cima.
— Nossa, que herói eu sou! — disse ele. — Melhor contar para toda a
cidade agora mesmo.
Pegou a tesoura, depressa cortou uma faixa de seda carmesim e bordou nela
grandes letras de ouro: “SETE DE UMA VEZ!”
Ele era leve e ágil, de forma que não se cansava com facilidade. Seguiu a
estrada até o alto de uma montanha e lá encontrou um gigante sentado numa
pedra sem fazer nada, admirando a vista.
O pequeno alfaiate foi até ele e disse: — Bom dia, amigo! Você vai correr o
mundo? Isso é o que eu vou fazer. Que tal se juntar comigo e a gente viajar
juntos?
Ele pegou uma pedra e apertou com tanta força que sua mão começou a
tremer, seu rosto ficou muito vermelho e as veias saltaram em sua cabeça. Ele
apertou a pedra com tanta força que até conseguiu fazer pingar um pouco de
água dela.
Pegou outra pedra e jogou o mais alto que conseguia. A pedra foi tão alto
que quase desapareceu.
— Nada mau — disse o pequeno alfaiate —, mas olhe só, ela está caindo de
volta. Eu faço melhor que isso.
— Quando eu jogo uma coisa no ar, ela não cai de volta — disse. — O que
acha disso, meu amigo supergrande?
— Hum — fez o gigante. — Bom, você espreme forte e joga longe. Mas
agora é que vem o teste verdadeiro: vamos ver o que você consegue carregar.
Vendo que o gigante não podia olhar para trás, o pequeno alfaiate saltou e
sentou-se confortavelmente entre as folhas, assobiando uma canção, enquanto o
gigante cambaleava pelo caminho, carregando todo o peso da árvore nos
ombros.
O gigante não conseguiu ir muito longe, porque era uma árvore enorme, e
logo parou.
— Ei, escute aqui! Não consigo ir mais longe — disse. E o alfaiate logo
saltou das folhas, antes que ele se virasse, e agarrou um punhado de ramos e
folhas com ambos os braços, como se estivesse carregando.
— Um sujeito grande como você — disse — não consegue levar nem meia
árvore? Ah, você está precisando fazer exercício.
gigante pegou um dos ramos mais altos e puxou para baixo, mostrando ao
— Segure isso aqui um pouco para mim enquanto tiro uma pedra do meu
sapato — disse ele, e o alfaiate segurou o ramo. Assim que o gigante soltou, o
ramo voltou para cima e, como o alfaiate não tinha força para segurá-
lo, foi jogado no ar.
Mas ele era ágil e teve a sorte de cair num gramado alto onde rolou sem se
machucar. Conseguiu até dar uma boa cambalhota e acabar em pé.
Aposto que você não é capaz de saltar tão alto como eu saltei. Vamos ver.
Experimente.
O gigante deu uma corrida e tentou, mas tinha de levantar muito peso do
chão, caiu em cima da cerejeira e acabou preso em seus galhos. Então o pequeno
alfaiate ganhou esse concurso também.
O pequeno alfaiate deu uma boa olhada. — Aqui é bem maior que a minha
oficina de trabalho — disse. — Onde eu vou dormir?
Os gigantes mostraram para ele uma cama gigantesca. O alfaiate subiu nela
e deitou, mas não conseguia se acomodar, então, enquanto os gigantes
conversavam em voz baixa em volta do fogo, ele desceu da cama e se acomodou
num canto da caverna.
— Socorro!
E saíram correndo.
Seguindo seu faro, andou por aqui e por ali durante vários dias, até chegar a
um esplêndido palácio. Havia bandeiras tremulando ao vento, os soldados
estavam trocando a guarda e o alfaiate sentou-se no gramado para admirar
aquilo tudo. Sentindo sono, deitou-se, fechou os olhos e um instante depois já
estava dormindo profundamente.
Enquanto dormia, várias pessoas que passavam viram a faixa carmesim com
as letras douradas que diziam: SETE DE UMA VEZ! E começaram a falar:
— Tenho certeza de que ele deve ser um duque ou alguma coisa assim.
— Imagine se ele nos der ordens que nós não gostamos e tentarmos discutir
com ele?
— É! Ele pode matar sete de nós de uma vez. Somos soldados comuns. Não
podemos combater alguém assim.
Ele ficou chateado com a situação. Perder todos aqueles soldados leais por
causa de um homem só! Mas, se tentasse se livrar do pequeno alfaiate, quem sabe
o que podia acontecer? O alfaiate podia matar a ele e a todo o exército e assumir
o trono.
Quando chegaram à beira da floresta, ele disse aos cavaleiros: — Esperem aqui.
O pequeno alfaiate desceu do carvalho. “Que bom que não arrancaram esta
árvore”, ele pensou. “Eu teria de pular feito um esquilo. Mas minha família
sempre foi esperta de corpo.”
Tirou a espada, fez alguns cortes no peito de cada gigante e voltou até os
cavaleiros, que esperavam fora da floresta.
— Não, nem um arranhão. Bom, meu paletó está meio rasgado, olhem só.
Vão dar uma olhada nos corpos dos gigantes se não acreditam em mim.
— Antes de lhe dar minha filha e metade do meu reino — disse o rei —,
uma outra tarefa precisa de um herói. Na floresta existe um rinoceronte
assustador que está causando todo tipo de estrago e gostaria que ele fosse
capturado.
— Bom, meu belo rinoceronte — disse o alfaiate —, está bem preso agora,
não está?
agradou muito aos caçadores, porque eles já haviam encontrado o javali algumas
vezes e não tinham nenhuma vontade de encontrar de novo. Mas foram com
ele, só pela exibição, e ficaram do lado de fora da floresta, jogando dados até ele
estar pronto para conduzir todos de volta.
Havia uma pequena capela na floresta. O alfaiate foi até lá e esperou até o
javali se aproximar, sabendo que ele ia sentir o seu cheiro e atacar. Logo o
grande bicho veio abrindo caminho pelo mato e pulou em cima dele,
espumando pela boca e exibindo as presas afiadas. Assim que viu o animal, o
caçador entrou na capela e é claro que o javali entrou atrás.
Mas o alfaiate pulou por uma janela, deu a volta correndo e fechou a porta
antes que o javali se desse conta de onde tinha ido. E lá estava ele, preso. Os
caçadores aplaudiram o alfaiate, tocaram suas trompas e foram com ele de volta
ao palácio.
O herói entrou e contou tudo ao rei, que teve de cumprir sua promessa
afinal, querendo ou não. Então, celebrou-se o casamento com muito esplendor,
mas pouca alegria, e o alfaiate se tornou rei.
Pouco depois, a jovem rainha ouviu seu marido falar durante o sono:
“Vamos, rapaz! Depressa com esse paletó e remende essa calça senão te bato com
o metro.”
Na manhã seguinte, foi falar com o rei. — Papai — disse ela —, acho que
meu marido não passa de um simples alfaiate. E contou o que tinha ouvido o
alfaiate falar durante a noite.
Vamos fazer o seguinte: deixe a porta do quarto aberta esta noite e meus criados
ficarão do lado de fora. Assim que ele dormir, você sai na ponta dos pés. Os
criados entram, amarram seu marido e o colocam num navio que o levará até a
China.
A jovem rainha achou que era um bom plano. Porém, o pequeno portador
da espada do rei, que era grande admirador do alfaiate, ouviu tudo e foi contar a
ele toda a intriga.
À noite, foi para a cama na hora de sempre e, quando sua esposa achou que
estava dormindo, foi pé ante pé até a porta. Mas o alfaiate, que só estava
fingindo dormir, gritou bem alto: “Vamos, rapaz! Depressa com esse paletó e
remende essa calça senão te bato com o metro. Matei sete de uma vez, acabei
Então o pequeno alfaiate foi rei e continuou rei pelo resto de seus dias.
***
História popular, com muitos primos em várias línguas. O personagem pequeno, ágil e esperto
um favorito das plateias quando confrontado com o gigante grande e bobo: Davi e Golias são
mais conhecido. Esta versão dos Grimm é uma das mais vivas.
“Nove alfaiates fazem um homem”, diz um ditado, mas não dá bem para entender por quê.
Cinderela
Era uma vez um homem rico, cuja mulher ficou doente. Quando sentiu que
estava perto da morte, ela chamou sua única filha para perto de si.
— Minha filha querida — disse —, seja sempre boa como ouro e dócil
como um cordeiro, e então terá sempre a proteção do Senhor. Além disso, eu
estarei sempre olhando por você, estarei sempre a seu lado.
Era boa como ouro e dócil como um cordeiro. Quando chegou o inverno, a
neve cobriu o túmulo com um manto branco; e quando, depois, veio o sol da
primavera e levou embora a neve, o homem se casou com outra mulher.
A nova esposa tinha duas filhas. Elas eram bonitas, mas tinham o coração
duro, egoísta e arrogante. Depois do casamento, as três se mudaram para a casa e
foi então que as coisas começaram a ir mal para a enteada.
— Por que essa idiota tem de sentar na sala conosco? — diziam as irmãs. —
Caçoavam dela, faziam piada com suas amigas tolas, e havia um tormento com
que sempre se divertiam: espalhavam ervilhas secas ou lentilhas nas cinzas do
fogão, de forma que ela precisava sentar no chão e catar uma por uma. E
quando estava cansada no fim do dia, podia pensar numa cama confortável?
Nada disso. Tinha de dormir no borralho, sobre as cinzas. E nunca tinha tempo
de se lavar e limpar, de forma que estava sempre empoeirada e encardida.
— Bumbum Cinzento?
— Cinzadela?
— Cinderela. Isso!
— Pai, me traga o primeiro ramo que roçar seu chapéu quando voltar para casa.
Então ele voltou da cidade com lindos vestidos para uma, joias preciosas
para a outra. E, passando por um matagal ao voltar, um ramo de aveleira roçou
seu chapéu, de forma que ele o arrancou da árvore e trouxe para Cinderela.
Ela agradeceu e plantou o ramo no túmulo de sua mãe. Regou a terra com
suas lágrimas e o ramo cresceu, virou uma linda árvore. Ela cuidava da planta
três vezes por dia e era a favorita das aves; pombos e rolinhas pousavam em seus
ramos.
Um dia chegou um convite do palácio real. O rei ia dar uma grande festa
que duraria três dias e todas as moças do reino estavam convidadas, para o
príncipe escolher sua noiva. Quando as duas irmãs souberam disso, ficaram
animadas e começaram imediatamente a se aprontar.
— Cinderela! Venha cá. Depressa, menina! Escove meu cabelo. Não puxe!
Cuidado! Agora dê brilho nas fivelas de nossos sapatos. Alargue um pouco o meu
vestido debaixo dos braços. Me dê aquele colar da sua mãe. Prenda meu cabelo
igual ao da mulher no quadro. Não, assim não, sua idiota! — E assim por diante.
— Você? Ir ao baile? Quem você pensa que é? Não passa de uma relaxada
suja, isso sim. E como acha que vai fazer para ir a um baile da alta sociedade sem
charme, sem beleza, sem conversa? Volte para a cozinha, menina.
— Se conseguir catar todas dentro de duas horas e separar as boas das ruins,
pode ir ao baile conosco.
Cinderela saiu correndo pela porta dos fundos, atravessou o jardim. Parou
passarinhos a voar,
ajudem-me com as lentilhas
A moça levou a tigela para sua madrasta, achando que agora poderia ir ao baile.
— Nada feito — disse a mulher. — Você não tem o que vestir e não sabe
dançar. Quer que todo mundo dê risada de você? — Jogou duas tigelas de
lentilhas nas cinzas e disse: — Cate essas, agora. Se conseguir catar tudo em
menos de uma hora, pode ir ao baile.
Cinderela saiu pela porta dos fundos outra vez. Ficou embaixo da aveleira e
disse:
na aveleira pousar!
Primeiro, ela se lavou dos pés à cabeça, escovou o cabelo até não restar nada
de cinza e fuligem. Aí, saiu pela porta dos fundos e sussurrou para a aveleira:
Ah, tenha pena de mim!
Serviu tudo perfeitamente em seu corpo. Ela não tinha espelho, então não
podia saber como estava bonita. Quando chegou ao baile, ficou surpresa com o
tratamento que recebia, todo mundo abria caminho para ela, as damas a
convidavam para sentar e tomar chá, os cavalheiros a tiravam para dançar. Pouca
gente havia sido boa com ela e não estava acostumada a ser admirada e
convidada.
Mas não dançou com nenhum dos nobres, moços ou velhos, ricos ou
bonitos. Só quando o príncipe fez uma reverência e a tirou para dançar foi que
ela se levantou e o acompanhou até o meio do salão. Os dois dançaram com
tanta leveza e elegância que todo mundo parou para ficar olhando os dois, até as
suas irmãs. Elas não a reconheceram, achando que Cinderela estava em casa no
meio das cinzas e que aquela linda estranha era uma princesa de alguma terra
estrangeira. De fato, sua beleza teve um estranho poder sobre elas, pois afastou
durante algum tempo toda a inveja que existia em seus pequenos e duros
corações e as fizeram admirá-la com sinceridade.
Mas Cinderela não ficou muito tempo. Depois que dançou com o príncipe
e ele a fez prometer que não dançaria com mais ninguém, ela aproveitou um
O príncipe foi atrás, mas Cinderela correu tão depressa que ele não
conseguiu alcançá-la e quando chegaram à casa ela havia desaparecido. O
Cinderela havia saído pelos fundos do pombal, tirado o vestido cor de luz
das estrelas e os sapatos de seda, colocado no cabide e pendurado na aveleira.
Cinderela teve de dar cem escovadas no cabelo de cada uma, de apertar ainda
mais seus espartilhos e lustrar seus sapatos até elas poderem enxergar seu reflexo
neles.
— Obrigada! — ela sussurrou e correu para vestir a roupa; foi depressa para
o baile.
Dessa vez, o príncipe estava à sua espera; assim que ela apareceu, correu e
pediu que dançasse com ele. Quando qualquer outro cavalheiro a tirava para
dançar, o príncipe dizia: — Esta dama é minha parceira em todas as músicas.
Quando o pai de Cinderela voltou para casa, encontrou o príncipe ainda lá.
Aveleira do jardim,
inteira e ele não deixava que ela saísse do seu lado. Quando ela disse que estava
na hora de ir embora, ele quis acompanhá-
la, mas ela escapou antes que ele pudesse detê-
la. Dessa vez, porém, ele havia preparado uma armadilha. Disse aos
criados para espalhar piche na escadaria, de forma que, quando ela desceu
correndo, um dos sapatos ficou preso e ela teve de deixá-lo para trás.
O príncipe pegou o sapato e não deixou ninguém mais tocar nele. Limpou
o piche e descobriu que era de ouro puro.
A mãe disse à segunda irmã: — Se o sapato não servir, corte o dedão do pé.
Não vai doer muito, só arder um pouco, e você casa com o príncipe.
do sapato ensanguentado!
Comprido é o pé da malvada.
— Bom, tenho só a Cinderela — disse o pai —, mas não pode ser ela, não.
Então foram buscar Cinderela na cozinha. Ela não queria ir enquanto não
se lavasse e claro que tiveram de lavar o sapato de ouro, de forma que o príncipe
precisou esperar. Mas finalmente Cinderela entrou na sala e fez uma reverência.
O coração do príncipe bateu muito forte quando a viu. Ela se sentou, ele calçou
o sapato em seu pé e serviu perfeitamente.
E assim sua maldade e falsidade foram castigadas com a cegueira até o fim
de seus dias.
***
Fonte: um contador de histórias anônimo do Hospital Elizabeth em Marburg, com material adi
Dorothea Viehmann.
Histórias semelhantes: “A gata borralheira”, de Giambattista Basile (The Great Fairy Tale Tra
A história de Cinderela deve ser uma das mais profundamente estudadas de todo o corpo dos c
fadas. Livros inteiros foram escritos a respeito do conto e de suas variantes. É a pantomima m
da Grã-Bretanha. O mais importante é que parece funcionar sempre.
Grande parte da popularidade da história se deve a Charles Perrault, cuja inventividade e enca
deliciaram leitores desde o momento em que seu livro Histoires ou contes du temps p
contos do tempo antigo), mais conhecido em inglês por seu subtítulo, Histórias da mam
publicado em 1697. A coisa que todo mundo sabe a respeito de Perrault é que ele tra
pele, por verre, vidro, mas não acredito nisso. Perrault era suficientemente inventivo pa
sapato de vidro, coisa que é impossível, mágica e infinitamente mais memorável do que pele.
Perrault quem transformou o princípio auxiliador da história (que é sempre uma mãe s
aveleira crescendo no túmulo da mãe verdadeira, ou cabra, ou vaca, ou pomba) em madrinha,
é imediatamente fácil de entender.
Uma interpretação errada e comum é que se trata simplesmente de uma história de pobre que f
rica. Há pobreza e há riqueza, mas segundo Bruno Bettelheim em The Uses of Enchantment, o
importante é a rivalidade entre irmãos, que compreende a chegada da menina à maturi
simbolizada pelo casamento. Por isso a função encarnada pela fada madrinha é tão im
representa a mãe fazendo o que uma boa mãe faria, e ajudando a menina a parecer tão bela por
por dentro.
Para esta versão tomei emprestada a ideia dos vestidos de cores diferentes da “Casaco
Na primeira versão dos Grimm, publicada em 1812, não há castigo nenhum para as ir
criação. A história termina com pombos dizendo que essa é a esposa certa. O castigo
acrescentado em sua versão de 1819 e mantido em versões posteriores. A cegueira vai
conto, mas seria difícil de colocar no palco. A peça não é nenhum Rei Lear. Nenhuma irmã fei
na pantomima, nem na ópera. Cendrillon, de Massenet (1899), e La Cenerentola, de R
ambas têm final feliz. Em Perrault, onde impera a doçura, as irmãs acabam casadas com nobre
Ela tem muitos nomes. Os Grimm a chamam de Aschenputtel, mas ela é definitivamen
Cinderella em inglês e outras línguas ocidentais. Em nossas casas com aquecimento central ho
em que poucas crianças jamais viram cinder, cinza, ou sabem do que se trata, Cinderela soa ap
um nome bonito, mas achei que era preciso algum contexto.
O enigma
Era uma vez um príncipe que meteu na cabeça que ia correr o mundo, sem levar
ninguém com ele além de um criado fiel. Um dia, chegaram a uma grande
floresta e quando escureceu não conseguiram encontrar nenhum lugar para se
abrigar. Não sabiam onde passar a noite.
Então o príncipe viu uma casinha. Indo na direção da casa, havia uma
moça, e quando chegaram perto, ele viu que ela era jovem e bonita.
— Podem — respondeu ela com a voz triste —, mas eu não acho que seja
uma boa ideia. Eu não faria isso se fosse você.
O príncipe entendeu que era a casa de uma bruxa. Mas estava escuro e eles
não podiam continuar. Além disso, ele não tinha medo de nada, de forma que
bateu e entraram.
A velha estava sentada numa poltrona diante do fogo e quando olhou para
o príncipe seus olhos brilharam como duas brasas.
— Boa noite, meus jovens — disse ela com sua voz mais gentil. — Sentem
e descansem.
Enquanto ela voltava para a casa, o príncipe se afastou, mas o criado teve de
apertar o cinturão da sela e ainda estava lá quando a velha trouxe algo para ele
beber.
— Aí está você — disse ela. — Leve isso para o seu patrão.
Mas ele não teve tempo de obedecer porque assim que pegou o copo da
mão dela, o vidro se quebrou e a bebida se espalhou em cima de seu cavalo. Era
um veneno, claro, e tão forte que o pobre animal caiu morto na hora. O criado
saiu correndo atrás do príncipe e contou o que tinha acontecido. Teriam ido
embora dali mesmo, mas ele não queria abandonar sua sela, então voltaram para
pegá-la. Quando chegaram ao cavalo morto, encontraram um corvo já
empoleirado em sua cabeça, bicando seus olhos.
— Quem sabe a gente não encontra mais nada para comer hoje — ele
pensou, então matou o corvo e levou com ele.
Vagaram pela floresta o dia inteiro, mas não conseguiam achar a saída.
Quando a noite caiu, chegaram a uma estalagem e o criado deu o corvo para o
estalajadeiro preparar o jantar deles.
Ora, o que eles não sabiam é que tinham caído num antro de malfeitores
Viajaram por longo tempo e um dia chegaram a uma cidade onde havia
uma princesa que era tão bonita quanto orgulhosa. Ela havia anunciado que só
se casaria com um homem que lhe fizesse uma pergunta que não conseguisse
responder. Porém, se doze sábios resolvedores de enigmas aprovassem sua
resposta, a cabeça dele seria cortada. Ela teria três dias para pensar, mas era tão
inteligente que sempre resolvia o enigma antes desse prazo. Nove homens já
tinham tentado vencê-la, mas todos haviam perdido a cabeça.
Isso, porém, não preocupava o príncipe. Ficara tão fascinado com sua
grande beleza que estava disposto a arriscar a vida. Foi ao palácio e apresentou
seu enigma.
Ela não fazia ideia do que podia ser. Pensou e pensou, mas não lhe veio
nada à cabeça. Consultou seus livros de enigmas, mas não encontrou nada
semelhante em toda a história dos enigmas. Parecia que finalmente havia
encontrado alguém à sua altura.
Mas não estava disposta a ceder, de forma que, quando veio a noite, sua
criada entrou sorrateiramente no quarto do príncipe. Lá teria de ouvir com
cuidado qualquer coisa que o príncipe falasse dormindo, no caso de ele revelar a
resposta ao enigma em seu sono. Mas não deu certo, porque o criado do
príncipe havia tomado seu lugar e quando a criada entrou ele arrancou o manto
com que ela havia se coberto e a espantou com uma vara. Então isso não deu
certo.
Na terceira noite, o príncipe resolveu esperar e vigiar ele mesmo. Dessa vez,
veio a princesa em pessoa. Estava vestindo um lindo manto cinza-névoa; sentou-
se suavemente na cama ao lado dele e esperou até ter certeza de que estava
dormindo.
Então ela perguntou: — Mesmo assim matou doze. O que quer dizer isso?
Parecia que o príncipe estava condenado, mas ele pediu para falar.
***
Tipo de conto: ATU 851, “A princesa que não conseguiu resolver o enigma”.
Histórias semelhantes: “A princesa que queria resolver enigmas”, de Alexander Afanasiev (Ru
Tales); “O jovem príncipe”, de Katharine M. Briggs (Folk Tales of Britain); “O filho
Milão”, de Italo Calvino (Italian Folktales).
Este conto é de um tipo bem distribuído; uma variação dele aparece, por exemplo, na ópera Tu
Puccini (1926). A versão dos Grimm é muito melhor que a maioria, por sua organizaç
estrutura em três partes. Organização e clareza são grandes virtudes quando se conta uma histó
dos Grimm para esse conto foi Dorothea Viehmann, uma vendedora de frutas de Zwehrn, não
Kassel, onde moravam os Grimm. Ela forneceu a eles vários contos, dos quais alguns
coleção, e possuía a rara qualidade de não só contar uma história com vivacidade e fluência, m
la frase por frase para eles poderem anotar com precisão. Os irmãos prestaram este tri
prefácio da primeira edição:
“Quem acredita que as narrativas orais são sempre falsificadas, que não são cuidadosam
preservadas, e que longas narrativas são, em geral, impossíveis, devia ter a chance de ouvir a p
que ela mantém em cada história e como se aplica em narrá-
las corretamente; quando ela conta
uma coisa, nunca muda o conteúdo e corrige um erro assim que o nota, mesmo que isso exija q
interrompa.”
— Como assim?
— Bom, quem é que faz o trabalho mais pesado? Você. Tem de voar para lá
e para cá levando a lenha no bico, enquanto os outros dois vivem na folga. Estão
se aproveitando de você, não se iluda.
— Chega de ser escravo — declarou. — Vocês devem ter achado que eu era
bobo. Já está na hora de experimentar um arranjo melhor.
para a salsicha, a cozinha para o ratinho e buscar água e acender o fogo para o
pássaro.
O que aconteceu?
A salsicha saiu para catar lenha, o pássaro acendeu o fogo e o ratinho pôs a
panela no fogão. Então, ficaram esperando a salsicha voltar com a primeira carga
de lenha. Ela demorou tanto, que os dois começaram a ficar preocupados, então
o pássaro foi ver se estava tudo bem.
— Como assim? Não pode fazer isso! Que coisa horrível! Vou denunciar
você para as autoridades!
— Não fiz nada de errado. Que eu saiba não é proibido caçar salsichas.
— Claro que está errado! Ela estava tranquilamente fazendo seu trabalho!
Isso é assassinato!
— Aí que você se engana, meu amigo. Ela estava com documentos falsos e
isso é um crime muito sério.
Cadê a prova?
— Comi também.
— Foi comida? — o ratinho falou. — Ah, que horror! Vou sentir muita
falta dela.
— É muito triste. Vamos ter de nos virar sem ela — disse o pássaro.
Quando o pássaro viu o caldo de legumes fervendo com um rato morto ali
dentro, entrou em pânico. Estava cuidando do fogo e, no susto, espalhou a
lenha em brasa por todo lado e tocou fogo na casa. Foi correndo até o poço,
pegar água para apagar, mas prendeu a pata na corda. E quando o balde cheio
despencou para dentro do poço, lá se foi o passarinho junto. Então ele morreu
afogado, e foi esse o fim de todos.
***
Fonte: uma história de Wunderliche und Wahrhafftige Gesichte Philanders von Sittewal
história verdadeira de Philander von Sittewald), de Hans Michael Moscherosch1650.
Essa é a única moral desta história, mas ela é uma espécie de fábula, assim como o conto do g
de forma que se espera mesmo uma moral.
Alguns leitores curiosos poderão sentir vontade de saber de que tipo era a salsicha. Afinal, seg
internet, a Alemanha tem mais de 1.500 tipos de salsichas: de qual delas se pode espe
domesticidade altruísta? Bom, a salsicha era uma bratwurst. Mas por alguma razão a palavra b
é tão engraçada como “salsicha”. Segundo um famoso comediante cujo nome me escapa, saus
é a palavra mais engraçada da língua inglesa. Esta história sem dúvida causaria outro tipo de c
fosse sobre um ratinho, um pássaro e uma costeleta de carneiro.
Chapeuzinho Vermelho
Era uma vez uma menina tão delicada e boa que todo mundo a adorava. Sua
avó, que a amava mais que todo mundo, deu de presente para ela uma capinha
feita de veludo vermelho que lhe caía tão bem que ela queria usar o tempo todo.
— Vovó não está muito bem, estou levando para ela um bolo e uma garrafa
de vinho. Fizemos o bolo ontem, cheio de coisas boas, farinha e ovos, e vai fazer
bem a ela, vai se sentir melhor.
— Bom, tenho de seguir este caminho até chegar a três carvalhos bem
grandes. Lá fica a casa dela, atrás de uma cerca de aveleiras. Não é muito longe,
uma caminhada de uns quinze minutos, acho. O senhor deve conhecer o lugar
O lobo pensou: “Ora, esta coisinha gostosa parece um bom bocado. Deve
ser ainda mais gostosa do que a velha, mas se eu for bem cuidadoso, posso comer
as duas.”
Então saiu do caminho, correu pelo meio das árvores, colhendo flores; mas
a cada uma que pegava via outra ainda mais linda um pouco adiante, então
corria para pegar essa também. E foi indo cada vez mais longe para dentro da
floresta.
Enquanto ela fazia isso, o lobo correu diretamente para a casa da vovó e
bateu na porta.
— Quem é?
— É só levantar o trinco — disse a vovó. — Estou tão fraca que não posso
sair da cama.
Depois, vestiu a roupa dela, pôs a touca de dormir na cabeça, fechou bem as
cortinas e deitou na cama.
Então ela foi até a cama e abriu a cortina. Lá estava sua avó, com a touca
enfiada na cabeça e parecendo muito estranha.
“A velhinha está fazendo tanto barulho”, ele pensou. “Melhor eu dar uma
olhada para ver se está tudo bem.”
“Lobo maldito!”, pensou. “Estou procurando você faz muito tempo. Até
que enfim encontrei!”
Ergueu a espingarda, mas abaixou outra vez, porque pensou que o lobo
podia ter comido a velhinha e ele talvez pudesse salvá-la. Então largou a
espingarda, pegou uma tesoura e começou a cortar, abrindo a barriga do lobo.
Logo depois de dois cortes, viu o chapeuzinho vermelho e depois de mais dois
cortes a menina saltou para fora.
— Ah, foi horrível! — disse ela. — Eu fiquei tão assustada! Estava tão
escuro dentro da barriga do lobo!
Então a vovó começou a sair, um pouco sem fôlego, mas não muito pior
por causa da experiência. Enquanto o caçador a ajudava a sentar numa cadeira,
Chapeuzinho Vermelho saiu e pegou umas pedras pesadas. Encheu o corpo do
lobo com elas. Depois, Chapeuzinho Vermelho costurou a barriga dele
direitinho e o acordaram.
Vendo o caçador ali com sua arma, o lobo entrou em pânico e saiu
correndo para fora, mas não foi muito longe. As pedras eram tão pesadas que ele
logo caiu morto.
Os três ficaram muito contentes. O caçador tirou a pele do lobo e levou
embora para casa. Vovó comeu o bolo e tomou o vinho, enquanto
***
Fonte: história contada aos irmãos Grimm por Jeanette e Marie Hassenpflug.
Histórias semelhantes: “A vovó falsa”, “O lobo e as três meninas”, de Italo Calvino (Italian F
Acho que este e “Cinderela” (p. 131) são os dois contos de fadas mais conhecidos (pelo meno
Unido), e os dois devem muito de sua popularidade a Charles Perrault (veja nota a “
). Sua
versão é diferente da dos Grimm, principalmente porque termina com o lobo comendo
Vermelho. Não existe salvamento pelo valente caçador; em vez disso, um verso moralista aler
todos os lobos são maus — alguns são sedutores de fala mansa.
O caçador é um detalhe interessante. As florestas alemãs não eram apenas espaços sel
não pertenciam a ninguém: geralmente pertenciam a príncipes e depois da grande demanda po
para a construção de barcos e da destruição da vegetação para abrir caminho para plan
maior parte das florestas era para prazer e recreação: em resumo, para caçadas. Como
Gardiner em seu trabalho sobre J. S. Bach: “Em termos de influência sobre o manejo de suas f
dos nobres proprietários), o caçador eclipsava o lenhador (assim como hoje, tantas vezes, o ca
mantenedor da caça predominam sobre o lenhador).”
Talvez um lenhador, menos seguro diante de animais selvagens do que um caçador, e com men
probabilidade de portar uma arma, tivesse fugido na ponta dos pés do lobo adormecid
Chapeuzinho Vermelho e sua avó serem digeridas.
Mesmo que isso fosse provável, tanto Perrault quanto os Grimm reforçam a respeitabil
burguesa. Na versão dos Grimm, Chapeuzinho Vermelho não precisa de um lembrete moralist
afastar do caminho — ela aprendeu a lição. (Durante o pânico com a pedofilia, era co
história usada para lembrar as crianças do “estranho perigoso”.) Ela nunca mais se afastará do
A famosa gravura de Gustave Doré, publicada em 1863 como ilustração da versão de
mostrando Chapeuzinho Vermelho na cama com o lobo, nos lembra de parte da força desta his
são sexy. Assim como raposas, como Beatrix Potter bem sabia ao criar e desenhar o gentil “ca
bigodes cor de areia” de The Tale of Jemima Puddle-
Duck (1908), sua própria variante da história de
Chapeuzinho Vermelho. Perrault o teria reconhecido de imediato.
Talvez o comentário de Charles Dickens resuma a atração da heroína com maior vivac
“Chapeuzinho Vermelho foi meu primeiro amor.” Bruno Bettelheim cita o que ele teria dito: “
se tivesse casado com Chapeuzinho Vermelho, conheceria a felicidade perfeita.” (The U
Enchantment.)
Os músicos de Bremen
Era uma vez um homem que tinha um burro e durante anos esse burro carregou
sacos de grão para o moinho sem uma palavra de queixa; mas agora suas forças
estavam se acabando, então não podia mais trabalhar tão duro como antes, e seu
dono achou que estava na hora de parar de alimentá-
lo. O burro notou isso e
não gostou nem um pouco, então fugiu e procurou a estrada para Bremen. Seu
plano era se tornar um músico na cidade.
— Bom, vou te dizer uma coisa — disse o burro —, estou mais ou menos
na mesma situação, mas tenho um plano. Vou para Bremen, porque lá eles
pagam bem os seus músicos. Venha comigo e seja músico. Eu vou tocar alaúde,
não parece muito difícil, e você pode tocar bateria.
O gato achou que era muito boa ideia e seguiram todos juntos. Então,
chegaram a uma fazenda. Em cima do telhado havia um galo, cantando com
toda força.
Estou dizendo à família que vai ser um dia seco e ensolarado. Você acha que eles
agradecem? Nem um pouco. Vão receber convidados amanhã e estão querendo
me comer, então a mulher do fazendeiro disse que hoje à noite vai cortar fora
minha cabeça. Eu vou cantar e cantar enquanto tiver ar nos meus pulmões.
— Nossa, que coisa triste — disse o burro. — Por que não vem conosco
para Bremen? Vamos ser músicos. Você tem uma linda voz e quando tocarmos
juntos, vamos ser irresistíveis.
— Bom, vamos lá — disse o burro. — Não pode ser pior do que aqui.
— E, se tem uma casa — disse o cachorro —, pode haver uns ossos com
um pouco de carne ainda grudada neles.
Foi ficando maior e maior e de repente estavam diante dela. O burro, como era
o mais alto, foi até a janela e olhou para dentro.
— Estou vendo uma mesa coberta com coisas boas para comer e beber,
mas...
— Mas o quê?
Discutiram entre si como fazer para afastar os ladrões e por fim chegaram a
— A gente não devia ter deixado que nos assustassem assim — disse o chefe.
— Não foi muito valente, foi? Agora, Esquerdinha, volte e dê uma olhada. Veja
o que está acontecendo.
Cocoricó!
E o juiz sentado no teto gritou: “Corram com o preso para cá!” Então saí
correndo.
***
Fonte: história contada aos irmãos Grimm pela família Haxthausen e por Dorothea Viehmann.
Os pobres animais aposentados, com sua ideia querida de tocar música na cidade de Bremen, a
dando bem, e isso é bom. Gosto desse conto por causa da simplicidade e potência de sua form
um conto é tão bem composto que a linha narrativa parece não ser capaz de tomar nenhum out
quando ele toca cada evento importante encaminhando para o final, só se pode curvar
respeito ao contador.
O osso cantor
Num certo país, numa certa época, muita gente andava preocupada com um
javali selvagem que estava destruindo os campos dos fazendeiros, matando o
gado e estraçalhando a vida de pessoas com suas presas. O rei proclamou que
quem livrasse a terra daquele monstro receberia uma grande recompensa, mas o
animal era tão grande e forte que ninguém ousava chegar perto da floresta em
que vivia. Por fim, o rei anunciou que quem o matasse ou capturasse receberia
sua única filha em casamento.
Ora, nesse país havia dois irmãos, filhos de um homem pobre, e eles
declararam que iam assumir essa arriscada tarefa. O irmão mais velho, que era
malandro e esperto, resolveu isso por arrogância, porém o mais novo, que era
simples e puro, foi movido pela bondade de seu coração.
O rei disse: — Se querem ter certeza de encontrar a fera, devem entrar na
floresta por lados opostos.
começou a tentá-lo.
Ele gritou: — Irmão! Que grande feito o seu! Parabéns! Agora venha e sente
aqui, vamos brindar a sua vitória.
— Eu matei — disse ele —, mas não vi meu irmão mais novo. Espero que
esteja bem.
Depois de algum tempo, como seu irmão não havia voltado, ele disse: — Meu
medo é que o javali tenha estraçalhado meu irmão. Ah, meu pobre irmão!
Mas nada se esconde aos olhos de Deus. Depois de muitos anos, um pastor
estava levando seus carneiros pela ponte quando viu alguma coisa branca
brilhando na margem abaixo. Pensou que podia fazer algo com aquilo, desceu
para pegar e encontrou um osso branco como a neve, que levou para casa e
esculpiu como bocal para sua trompa.
Mas para sua surpresa, quando soprou o osso, ele começou a cantar sozinho:
Pastor, sopre a trompa para eu cantar,
como antes. O rei não era nada bobo: entendeu muito bem o que havia
acontecido e mandou cavar a terra embaixo da ponte. O esqueleto inteiro do
morto estava ali, menos um osso.
O irmão perverso não tinha como negar. Por ordem do rei, ele foi
costurado dentro de um saco e afogado no mesmo ribeirão ao lado do qual seu
irmão havia sido enterrado. Quanto ao irmão mais novo, seus ossos descansam
agora num lindo túmulo vizinho a uma igreja.
***
Removam-
se os únicos elementos sobrenaturais, o homenzinho que dá ao irmão mais novo a lan
matar javalis e o osso que canta, e o conto poderia facilmente fazer parte das história
antologia imensamente popular, Schatzkästlein des Rheinischen Hausfreundes (A arca do teso
Peter Hebel, publicada em 1811, um ano antes da primeira edição dos Grimm. A especialidade
eram os contos da vida cotidiana com um caráter divertido, sensacional ou moral, e o assassin
por acaso figura em mais de uma de suas anedotas.
Era uma vez uma mulher pobre que teve um filho, e o bebê tinha uma
membrana na cabeça. Era um sinal de boa sorte, e, quando a vidente da aldeia
ficou sabendo disso, profetizou que aos catorze anos o menino se casaria com a
filha do rei.
Poucos dias depois, o rei em pessoa foi até a aldeia. Estava viajando
incógnito, de forma que ninguém o reconheceu, e quando perguntou o que
estava acontecendo, quais eram as notícias, sobre o que as pessoas falavam na
aldeia etc., contaram que havia nascido um menino com uma membrana na
cabeça. Ao que parece, disseram, isso quer dizer que ele vai ter sorte, e se casar
com a filha do rei quando tiver catorze anos.
Ora, o rei era um homem mau e não ficou nada satisfeito com essa profecia.
Procurou os pais do menino e disse: — Meus amigos, vocês têm aqui um filho
de sorte e eu sou um homem rico. Este é o primeiro sinal da sorte dele: confiem
o menino a mim e eu me encarrego da sua criação.
O rei pôs o bebê numa caixa e foi embora, até chegar a um rio profundo.
E foi para casa. Se tivesse ficado para olhar, teria visto que a caixa não
afundou como ele queria, mas flutuou como um barquinho e nela não entrou
nem uma gota de água. Foi flutuando rio abaixo até três quilômetros da capital,
num ponto em que havia um moinho, e parou na barragem do moinho. O
aprendiz de moleiro estava pescando ali naquela hora e puxou a caixa com um
gancho, achando que tinha encontrado um grande tesouro. Quando abriu a
caixa, porém, ficou perplexo de encontrar um bebezinho, limpo e cor-de-rosa.
Como não tinha o que fazer com um bebê, levou-o para o moleiro e sua esposa.
Eles ficaram deslumbrados com o bebezinho, porque não tinham filhos. — Foi
Deus quem mandou esse menino para nós — disseram.
O tempo passou e alguns anos depois o rei estava caçando quando se viu no
meio de uma tempestade e foi se abrigar nesse mesmo moinho. Perguntou ao
moleiro e sua esposa se aquele belo rapaz era filho deles.
— Não — disseram. — Ele foi encontrado. Catorze anos atrás, veio
flutuando dentro de uma caixa até a barragem e nosso aprendiz trouxe o bebê
para nós.
O rei entendeu que aquele menino não era outro senão o menino de sorte
que ele mesmo havia jogado na água e disse: — Minha boa gente, deixariam esse
menino levar uma carta à rainha? Pago duas moedas de ouro.
— Vim do moinho — ele falou — e estou levando uma carta para a rainha.
que estava escrito: que o rapaz devia ser morto assim que entregasse a carta.
chefe pegou um pedaço de papel e escreveu outra carta, dizendo que o rapaz
devia casar com a filha do rei assim que chegasse. Deixaram que ficasse
dormindo no banco até de manhã e quando ele acordou devolveram-lhe a carta
e mostraram o caminho para o palácio.
Quando chegou lá, entregou a carta à rainha e ela, claro, mandou preparar
um casamento magnífico e o rapaz se casou com a princesa. Como ele era
bonito, bondoso e gentil com todo mundo, ela ficou contente com a escolha.
A rainha mostrou a carta a ele. O rei leu e entendeu o que havia acontecido.
Mandou chamar o rapaz e disse: — O que significa isso? Não foi essa a carta que
eu dei para você. Foi outra bem diferente. Como você explica, hein?
— Bom, nem precisa pensar que vai conseguir se safar dessa — o rei rugiu.
— Quem casou com minha filha terá de ir até o inferno e trazer os três fios de
cabelo dourado da cabeça do Diabo.
— Ah, posso fazer isso — disse o rapaz. — Trago os cabelos dourados para
o senhor. Não tenho medo do Diabo.
Assim disse adeus e partiu. O primeiro lugar a que chegou foi uma grande
cidade com um vigia no portão.
— Eu sei tudo o que sei — disse o rapaz —, e o que não sei posso descobrir.
— Bom, então pode nos fazer um favor. Na praça do mercado tem uma
fonte que costumava jorrar vinho e agora não jorra nem água. O que aconteceu
com ela?
Seguiu seu caminho e logo chegou a uma cidade em que o vigia fez a
mesma pergunta: — Qual é a sua profissão? E o que você sabe?
— Eu sei tudo o que sei — disse o rapaz —, e o que não sei posso descobrir.
— Então me diga: no parque tem uma árvore que dava maçãs de ouro. Mas
alguma coisa deu errado e ela agora não dá nem folhas.
— Eu sei tudo o que sei — disse o rapaz —, e o que não sei posso descobrir.
— Bom, uma pergunta para você. Por que eu tenho de ficar atravessando o
rio sem ninguém para revezar comigo?
— O rei disse que, se eu não levar os três fios de cabelo dourado da cabeça
do Diabo, não vou poder continuar casado com a princesa.
— Isso não vai ser fácil — disse a avó. — Se ele descobrir você aqui,
provavelmente vai te comer. Mas você é um rapaz bonito e fiquei com pena de
você, então vou fazer tudo o que posso. Primeiro, transformo você numa
formiga.
Ela fez isso e pegou-o do chão com a ponta dos dedos para ter certeza de
que podia ouvi-la.
— Tem mais uma coisa — disse a formiga. — Preciso saber a resposta para
algumas perguntas. Por que a fonte da praça do mercado não dá mais nem água
quando antes costumava jorrar vinho? Por que a árvore do parque, que dava
maçãs de ouro, não produz nem folhas mais? E por que o barqueiro tem de ficar
transportando as pessoas pelo rio?
— Isso não é tão fácil — ela disse. — Não posso prometer nada. Mas fique
quieto e escute com cuidado o que ele diz.
das saias dela. E bem na hora, porque o Diabo voltou para casa naquele
momento e começou a vociferar.
— Que diabo! — disse a avó. — Acabei de arrumar a sala, não está vendo?
Vai desarrumar tudo outra vez. Sente e coma seu jantar, pare de fazer confusão
por nada.
— Só que estou sentindo — o Diabo resmungou —, estou sentindo cheiro
de humano.
Mas sentou-se à mesa e devorou seu jantar. Depois, deitou com a cabeça no
colo da avó.
Ela começou a catar, então ele adormeceu e começou a roncar. Assim que
ouviu aquilo, a velha pegou um fio de cabelo dourado e arrancou.
— Uma fonte — ela disse. — Era na praça do mercado. Anos atrás, jorrava
vinho e todo mundo podia beber à vontade, mas agora não jorra nem água.
Basta tirar o sapo que está debaixo da pedra da fonte. Se matarem o sapo, o
vinho jorra de novo.
A avó voltou a catar piolhos e mais uma vez ele começou a roncar.
— Desculpe, meu bem — disse ela. — Tive um outro sonho e não sabia o
que estava fazendo.
— No meio do pátio tinha uma árvore e ela não dá nem folhas mais. Anos
atrás, dava maçãs de ouro.
— Não entendem nada nessa cidade. Se cavarem em volta do tronco, vão
descobrir o rato que está roendo as raízes. Se matarem o rato, vão ter maçãs de
ouro outra vez.
— Pronto, pronto — disse ela. — Se eu fosse tão esperta quanto você, não
te acordava de novo. Volte a dormir, meu querido.
— Ai-ai! A senhora fez de novo! O que significa isso, sua velha idiota?
— Pronto, pronto — disse ela. — Foi aquele queijo que comi no jantar.
— Ah. Essa gente não entende nada? O que ele tem de fazer é entregar a
vara de empurrar o barco para a primeira pessoa que for atravessar o rio. E essa
pessoa vai ter de ficar no lugar dele.
— Pronto, pronto — disse ela —, volte a dormir, meu lindo. Não vou ter
mais sonho nenhum.
Sendo um rapaz bem-educado, ele agradeceu e foi embora, feliz por ter
conseguido tudo o que precisava.
— Matem o rato que está roendo as raízes e a árvore dará maçãs de ouro
outra vez — disse o rapaz.
Levando seus quatro burros, ele voltou para casa. Todo mundo ficou muito
contente ao vê-
lo, principalmente a esposa. E quando o rei viu os burros e a
carga que traziam, ficou exultante.
— Meu caro rapaz! — disse ele. — Que maravilha ver você de volta! E esses
cabelos da cabeça do Diabo, esplêndidos! Ponha em sua mesa de cabeceira. Mas
onde conseguiu todo esse ouro?
— Um barqueiro me levou para o outro lado do rio. Em vez de areia, a
margem do outro lado era toda de ouro, a pessoa pode pegar o quanto quiser.
O rei era tão intensamente ambicioso que partiu de imediato. Correu o dia
inteiro até chegar ao rio e apressou o barqueiro, impaciente.
Claro que o rei segurou e o barqueiro saltou para a terra imediatamente. Ele
deu risada, cantou e pulou de alegria, foi-se embora dali. E o rei foi obrigado a
ficar para sempre no barco, transportando as pessoas para um lado e outro como
castigo por seus pecados.
***
Tipo de conto: ATU 930, “A profecia”, continuando como ATU 461, “Os três pelos da barba d
Assim como “As três folhas da cobra” (p. 102), esta história se divide em duas partes. Em algu
relacionados acima, depois da profecia sobre a criança (geralmente uma menina) que nasceu p
com um homem rico, vem um teste de outra espécie: em vez de conseguir três cabelos do Diab
penas de um ogro, ou qualquer outra coisa), ela precisa encontrar o anel que o noivo relutante
mar, e o casamento não pode se realizar enquanto o anel não aparecer, o que acaba acontecend
barriga de um peixe. Gosto desta versão porque a recompensa é pela coragem, não mera sorte.
Era uma vez um moleiro que foi pouco a pouco mergulhando na pobreza, até
não ter mais nada além de seu moinho e de uma boa macieira atrás do moinho.
Um dia, ele foi à floresta recolher lenha quando um velho que nunca tinha visto
antes apareceu na frente dele.
“O que tem atrás do meu moinho?”, pensou o moleiro. “Só pode ser a
macieira.”
— Ah, marido — disse ela —, não imagina o que aconteceu! Caixas e arcas
de tesouros por toda a casa, tudo de uma vez, cheias até a borda, moedas de
ouro, todo tipo de dinheiro, joias, tudo, de onde pode ter vindo tudo isso? Será
que o bom Deus está nos abençoando afinal?
— Ah, marido! O que foi que você fez? Deve ter sido o Diabo! Ele não
estava falando da macieira. Falava da nossa filha! Ela está lá atrás, varrendo o
caminho!
A filha do moleiro, que era uma linda moça, viveu os três anos seguintes
rezando piedosamente a Deus. Quando chegou o dia em que o Coisa Ruim viria
buscá-la, ela se lavou da cabeça aos pés, pôs um vestido branco e desenhou um
círculo de giz à sua volta, no chão. O Diabo apareceu logo de manhã e descobriu
que não conseguia chegar perto dela.
Ele disse ao moleiro: — Por que deixou ela se lavar, seu velho idiota? Não
deixe ela chegar nem perto da água, nem uma gota, senão não consigo nem
tocar nela.
— Olhe! As mãos dela estão limpas! Por que deixou que ela lavasse as mãos?
Acontece que ela havia chorado a noite inteira e suas lágrimas tinham
lavado suas mãos. O Diabo ficou furioso, mas ainda não conseguia tocá-la.
— Certo — disse ele —, agora você vai ter de cortar as mãos dela.
Aquilo foi demais para o moleiro. Ele foi até a moça e disse: — Minha
querida filha, vou ter de cortar suas mãos, senão o Diabo vai me levar e tenho
muito medo. Me perdoe, minha querida! Me ajude com isso, e me perdoe!
A moça disse: — Querido pai, eu sou sua filha. Pode fazer comigo o que
quiser. — Estendeu as mãos e deixou que o pai as cortasse.
O Diabo voltou mais uma vez, mas a pobre moça tinha chorado de novo e
cobriu de lágrimas os cotos, de forma que estava perfeitamente limpa. Ele teve
de desistir, porque havia tentado três vezes e esse era o limite.
O moleiro disse: — Minha querida, é por sua causa que somos assim tão
ricos. Nada lhe faltará. Garanto que viverá no luxo o resto da vida.
Mas ela disse: — Não posso mais viver aqui. Vou embora. Dependerei da
bondade de estranhos para tudo o que preciso.
Ela pediu que ele amarrasse seus braços mutilados nas costas e partiu. Andou
o dia inteiro e não parou até escurecer. A lua estava brilhante e à luz do luar ela
viu, do outro lado de um rio, um jardim real no qual as árvores estavam cobertas
com lindos frutos. Queria muito comer alguma coisa, mas não conseguia chegar
lá, por causa da água.
Não havia comido nada o dia inteiro e estava sentindo muita fome. Pensou:
A moça entrou no jardim com o anjo atrás dela. Viu uma árvore coberta de
lindas peras maduras, todas numeradas, de forma que não se podia roubar
nenhuma, mas não conseguiu resistir: foi até a árvore e comeu uma pera, apenas
uma, o suficiente para satisfazer sua fome, nada mais. Depois de comer, ela foi se
deitar entre os arbustos.
O jardineiro estava vendo tudo, mas viu o anjo com ela e pensou que ela
também fosse um espírito. Não ousou fazer nenhum barulho.
O padre foi até eles e perguntou: — De onde vem, minha filha? De Deus
ou do mundo? É um espírito ou um ser humano?
— Não sou espírito — disse ela. — Sou uma pobre mulher, abandonada
por todos, a não ser Deus.
O rei ouviu o que ela disse e replicou: — Mesmo que o mundo inteiro
tenha te abandonado, eu não abandonarei.
Ele a levou para o castelo. Ela era tão bonita e boa que ele se apaixonou e se
casou com ela. Mandou fazer mãos de prata para ela e viveram felizes.
Depois de um ano, o rei foi para a guerra. Deixou a jovem rainha aos
cuidados de sua mãe. — Se ela tiver um bebê — disse ele —, cuide bem da mãe
e da criança, e me escreva imediatamente, contando a notícia.
Pouco depois, ela deu à luz um lindo menino. A mãe do rei escreveu como
ele havia mandado, contando a alegre notícia.
a destruir sua felicidade. Então pegou a carta e trocou por outra, dizendo que a
rainha havia dado à luz um monstro.
Quando o rei leu isso, ficou horrorizado e muito triste, mas escreveu de
volta dizendo que deviam cuidar bem do bebê até ele voltar. Mais uma vez o
mensageiro se deitou para dormir e mais uma vez o Diabo veio e trocou a carta
que o mensageiro estava levando. A nova carta dizia que deviam matar a rainha e
o bebê.
Um anjo apareceu, como antes, e dessa vez a levou a uma casinha. Uma
placa acima da porta dizia: “Aqui todos são bem-vindos e vivem livres.”
Da casa, saiu uma donzela tão branca como o anjo e disse: “Majestade,
entre.”
Desamarrou o bebê de suas costas e o pôs ao seio da rainha para que pudesse
mamar. Depois, os levou a uma cama muito bem arrumada.
— Sou um anjo, enviado pelo céu para cuidar de você. Não se preocupe
com nada.
E durante sete anos ela viveu naquela casinha, ela e seu filho, muito bem
tratados. Nesse tempo, pela graça do céu e por sua própria piedade, suas mãos
cresceram de volta.
O rei finalmente voltou da guerra, e a primeira coisa que quis foi ver sua
esposa e filho.
O rei ficou perplexo, mas ela mostrou para ele as cartas que o Diabo havia
falsificado. — Fiz o que você mandou! — disse a mãe. — Aqui está a prova: os
olhos e a língua dela.
O rei começou a chorar ainda mais amargamente que sua mãe. Por fim, a
velha teve pena dele e disse: — Algo muito mau aconteceu aqui. Mas não precisa
chorar, porque sua mulher ainda vive. Estes são os olhos e a língua de uma corça.
Amarrei o bebê às costas da mãe e mandei que saísse pelo mundo, prometendo
nunca mais voltar aqui, porque você estava furioso com ela.
— Tem razão — disse o rei. — Isto é obra do Diabo. Mas vou sair à
procura dela e não vou comer, nem beber, nem dormir numa cama, enquanto
não encontrar minha querida esposa e meu filho.
O rei viajou por todo o mundo durante quase sete anos, procurando em
toda caverna e choupana, em toda vila e aldeia, e não encontrou nem sinal dela.
— Viajei pelo mundo durante sete anos — disse ele. — Estava em busca de
minha esposa e meu filho, mas não encontrei em parte alguma.
O anjo lhe ofereceu comida e bebida, mas ele recusou, dizendo que só
queria descansar um pouco. Deitou-se e cobriu o rosto com um lenço.
O anjo foi ao quarto ao lado, onde a rainha estava sentada com seu filho,
que ela chamara de Tristonho.
O anjo disse: — Venha para a sala e traga seu filho. Seu marido veio
procurar vocês.
Ela correu até onde ele estava deitado e o lenço caiu do rosto dele.
— Pegue o pano, Tristonho — disse ela —, e cubra de novo o rosto de seu pai.
O menino pegou o lenço e cobriu o rosto do rei. O rei ouviu isso em seu
sonho e deixou o pano cair de novo de propósito.
no céu, aquele a quem rezo ao dizer: “Pai nosso, que estais no céu.” Como pode
este homem maltratado ser meu pai?
Mas ele olhou suas mãos e viu que eram mãos vivas de verdade.
O anjo serviu a todos algo de comer e voltaram para casa, para a boa mãe
do rei. Quando essa notícia correu pelo reino, todos ficaram felizes. O rei e a
rainha comemoraram seu casamento mais uma vez e viveram felizes para
sempre.
***
Fonte: histórias contadas aos irmãos Grimm por Marie Hassenpflug, Dorothea Viehmann e Jo
Bauer.
Esse tipo de história é bem difundido. Os elementos são vívidos e cruentos, e o resultado satis
a família real restaurada, inclusive as mãos. E a imagem da linda moça sem mãos, toda vestida
acompanhada por um anjo, comendo uma pera no jardim enluarado, é muito comovente e estr
No entanto, o conto em si é repulsivo. O aspecto mais repelente é a covardia do moleiro, que n
punido. O inabalável tom piedoso é enjoativo, e a restauração das mãos da pobre mul
absurda.
Mas contos de fadas não devem mesmo ser cheios de coisas absurdas?
Não. A ressurreição do menino em “O junípero”, por exemplo, é verdadeira e correta. Esta par
apenas tola: em vez de sermos tocados por deslumbramento, aqui apenas damos risada. Porém
e outros como ele, deve ter falado muito profundamente a muitas plateias para ter se
amplamente, ou talvez muita gente goste de histórias de mutilação, crueldade e religiosidade s
Os elfos
Primeira história
Era uma vez um sapateiro que havia ficado tão pobre (não por culpa dele) que
mal lhe sobrava couro para trabalhar — na verdade, tinha o suficiente para fazer
um par de sapatos apenas. Ele cortou os dois pés à noite, pensando começar a
trabalhar neles na manhã seguinte, e foi dormir. Estava com a consciência
tranquila, então dormiu serenamente.
Pegou o par e examinou bem de perto, por todos os ângulos. Cada ponto estava
bem-feito e correto; nada fora do lugar. Ele próprio não teria feito melhor.
Isso deu ao sapateiro dinheiro suficiente para comprar couro para dois pares
de sapatos. Ele comprou e, como antes, cortou os dois pares, pensando
continuar o trabalho de manhã, com toda a disposição. Mas nem precisou disso:
quando se levantou, os sapatos já estavam prontos, como antes, costurados como
que por um mestre sapateiro. Logo encontrou compradores para eles, o que
gerou lucro suficiente para comprar couro destinado a quatro pares; na manhã
seguinte, estavam prontos e ele os vendeu, e assim foi. Toda noite, ele cortava o
couro para os sapatos, na manhã seguinte estavam prontos, de forma que logo
estava ganhando um bom dinheiro e não demorou muito para se tornar um
homem rico.
Uma noite, não muito antes do Natal, cortou diversos sapatos, como
sempre, e quando estava indo para a cama, disse a sua mulher: — Por que não
ficamos um pouco acordados hoje para ver se descobrimos quem está nos
ajudando?
É um progresso verdadeiro:
Saltaram por todo lado como dois gatinhos, pelas cadeiras, pela bancada,
pela lareira, pelo peitoril da janela e por fim se esgueiraram por baixo da porta e
sumiram.
Nunca mais voltaram, mas o sapateiro prosperou. Todo o seu trabalho foi
bem dali em diante, e ele e sua mulher viveram ricos e felizes até o fim de seus
dias.
Segunda história
Era uma vez uma pobre criada que sempre trabalhava duro, era empenhada e
caprichosa em tudo que fazia. Todo dia, ela varria a casa e empilhava o lixo na
frente da porta.
Uma manhã, quando ia começar o trabalho, viu uma carta no meio do lixo.
Como não sabia ler, encostou a vassoura num canto e levou a carta à sua patroa.
Era um convite dos elfos, para a moça ser madrinha no batismo de um bebê
elfo.
— É difícil mesmo, Maria — disse a patroa. — Mas ouvi dizer que não é
direito recusar um convite dos elfos. Acho que deve aceitar.
A mãe do bebê estava deitada numa cama feita do ébano mais preto,
engastado com madrepérola. O painel da cabeceira era bordado com fios de
ouro, o berço era de marfim, e a banheirinha, de ouro maciço. O bebê não era
maior que a unha do dedinho dela.
A moça foi madrinha, depois pediu para voltar para casa porque precisava
trabalhar no dia seguinte; mas os elfos insistiram que ficasse com eles apenas três
dias. Foram tão convincentes e gentis que ela cedeu e se divertiu bastante;
fizeram todo o possível para que ficasse contente.
Depois de três dias, ela disse que realmente precisava voltar para casa. Eles
encheram seus bolsos de ouro e a levaram para fora. Ela partiu para casa, onde
chegou no fim da manhã e encontrou a vassoura no canto em que havia
deixado. Pegou-a e começou a varrer, mas ficou perplexa quando alguns
estranhos saíram da casa e perguntaram o que estava fazendo. Acontece que sua
velha patroa tinha morrido e ela não havia passado três dias na montanha, como
pensava, mas sete anos.
Terceira história
Em sua aflição, a mãe foi à casa de uma vizinha e pediu seu conselho. A
vizinha falou para ela levar o bebê à cozinha, colocá-lo no berço diante da lareira
e acender o fogo. Depois, devia pegar duas cascas de ovo e ferver água dentro
delas. Isso faria o monstrinho rir e, assim que desse risada, ficaria tudo bem com
ele.
A mulher fez tudo o que a vizinha mandou. E quando pôs as cascas de ovo
no fogo, o cabeção cantou:
E rolou de rir. Assim que ele deu risada, apareceu uma multidão de
pequenos elfos trazendo o bebê da mãe. Puseram o bebê no berço diante da
lareira, levaram embora o monstrengo e a mulher nunca mais os viu.
***
Tipo de conto: Primeira história: ATU 503, “Os presentes do povo pequeno”; segunda
Fonte: as três histórias foram contadas aos irmãos Grimm por Dortchen Wild.
Estes contos fazem parte do grupo muito reduzido de contos dos irmãos Grimm que têm fadas
Independentemente de como chamemos esse ser sobrenatural, elfo, fada ou (nome dado usualm
no Reino Unido) brownies, existe uma etiqueta que tem de ser levada em conta ao lid
A segunda e a terceira histórias são pouco mais que anedotas, como chegaram a nós, embora,
pudessem ser elaboradas. A primeira é a mais conhecida: alguns leitores podem reconhecer ne
semelhança com O alfaiate de Gloucester (1902), de Beatrix Potter.
O noivo ladrão
Era uma vez um moleiro que tinha uma linda filha. Quando ela chegou à idade
de casar, ele pensou que devia procurar um marido adequado para ela. “Se
aparecer alguém respeitável”, ele disse a si mesmo, “dou minha filha a ele.”
Mas a filha não o aceitou de jeito nenhum. Havia nele algo em que ela não
confiava e, além disso, sempre que pensava nele ou ouvia seu nome, sentia o
coração se contrair de horror.
Um dia, o futuro noivo disse a ela: — Minha querida, sabe que estamos
noivos para casar, mas você nunca me fez uma visita. Por que não vem à minha
casa? Afinal, logo será a sua casa.
— Não, não, você deve vir no domingo. Já convidei algumas pessoas que
estão querendo conhecer você. Vou fazer uma trilha de cinzas, para você seguir
pelo meio das árvores.
Ela olhou para o pássaro e perguntou: — Não pode me dizer mais nada
além disso, passarinho?
A noiva foi de quarto em quarto, mas não encontrou ninguém, até que
desceu ao porão. Lá encontrou uma velha sentada à luz do fogo, sacudindo a
cabeça.
— Por favor, pode me dizer se meu noivo mora aqui? — ela perguntou.
— Ah, pobre menina — replicou a velha —, por que veio a esta casa? É um
covil de assassinos. Você fala de um noivo, mas o único noivo com quem vai se
casar é a Morte. Está vendo esse grande caldeirão no fogo? Me mandaram pôr
para ferver. Quando aparecerem, vão cortar você em pedacinhos e jogar no
caldeirão, cozinhar até ficar macia e comer você inteira. São um bando de
canibais. Mas senti pena de você, porque é uma pobre moça inocente, e além
disso tem um lindo rosto. Venha aqui.
Assim que disse isso, o bando de assassinos voltou para casa, arrastando com
eles outra moça que tinham capturado. Ela gritava e chorava, mas eles estavam
bêbados e não davam atenção a seus pedidos de misericórdia. Forçaram a moça a
beber um copo de vinho tinto, um copo de vinho branco, depois um copo de
vinho amarelo, e esse terceiro foi demais para ela, seu coração explodiu.
Então tiraram sua linda roupa, a puseram deitada em cima da mesa antes de
a cortarem em pedaços e temperar com sal. A pobre noiva estava atrás do barril,
tremendo dos pés à cabeça, pensando que destino os assassinos reservavam para
ela.
Outro assassino falou: — Olhe atrás do barril grande. Acho que caiu lá.
Mas a velha chamou: — Venham comer seu jantar. O dedo não vai fugir,
podem procurar de manhã.
Quando a noiva ouviu seus roncos, saiu de trás do barril. Teve de passar por
cima dos assassinos que dormiam espalhados pelo chão do porão. Morria de
medo de pisar em algum e acordá-lo.
Então, ela disse: — Tudo bem. Vou contar um sonho que eu tive. Estava
andando numa floresta quando cheguei a uma casa escura. Não havia ninguém à
vista, só um passarinho numa gaiola que cantava assim: “Volte! Não entre! Vá
embora! Alerta! É a casa do assassino! Seja esperta!”
— Cantou isso duas vezes, mas era apenas um sonho, querido do meu
coração. Passei por todas as salas e embora não houvesse ninguém ali, havia
alguma coisa estranha no lugar. Acabei descendo para o porão e lá encontrei
uma velha sacudindo a cabeça. Perguntei: “Meu noivo mora nesta casa?” Ela
respondeu: “Ah, minha pobre menina, você está na casa de um assassino. Seu
noivo mora aqui, sim, mas vai cortar você em pedaços, cozinhar e comer.”
— Querido do meu coração, fique onde está: foi apenas um sonho. Então
um dos ladrões viu um anel de ouro no dedo da pobre moça. Pegou um
machado, cortou fora o dedo que voou no ar e caiu no meu colo. E aqui está o
dedo com o anel.
Dizendo isso, ela ergueu o dedo e o anel para todo mundo ver.
O noivo, que tinha ficado branco como um papel, deu um pulo e tentou
escapar, mas os convidados o pegaram, seguraram com força e o levaram à
justiça. Mandaram soldados para capturar o resto do bando e foram todos
condenados à morte por seus malfeitos.
***
Histórias semelhantes: “O porão sangrento”, “Dr. Forster”, “Sr. Raposo”, de Katharine M. Bri
Tales of Britain); “O casamento de uma rainha com um bandido”, de Italo Calvino (Italian Fol
Não há nada minimamente sobrenatural neste conto: é uma boa história sanguinolenta
bem situada em nosso próprio mundo que não surpreende que em uma de suas varian
sangrento”, de Katharine M. Briggs, os pais da moça valente telefonem para a Scotland Yard p
mandem detetives à narradora.
Por alguma razão, o Reino Unido é especialmente fecundo em variantes desta história.
interjeições do noivo ladrão na sequência do sonho da noiva eu tomei emprestadas de uma out
Padrinho Morte
Um homem pobre tinha doze filhos e precisava trabalhar dia e noite para
conseguir um pouco de comida para eles. Então, quando sua mulher deu à luz o
décimo terceiro filho, ele não sabia mais o que fazer e saiu correndo pela estrada,
pensando que podia pedir à primeira pessoa que encontrasse para ser o padrinho.
A primeira pessoa com quem cruzou foi o próprio Deus. Como Deus sabe
tudo, o homem nem precisou pedir o que tinha em mente.
— Meu pobre homem — disse ele —, sinto muito por você. Ficarei
contente de carregar seu filho no batismo. Cuidarei dele, não se preocupe com
nada.
— Eu sou Deus.
— Bom, siga seu caminho. Não quero o senhor para padrinho. O senhor
dá aos ricos que não precisam, e deixa os pobres morrerem de fome.
Claro que ele só disse isso porque não sabia o propósito de Deus ser tão
bondoso com os ricos e tão cruel com os pobres.
— Ficarei contente de ajudar — disse ele. — Faça seu filho meu afilhado e
eu lhe dou todas as riquezas do mundo e garanto uma vida divertida para ele
também.
— E quem é o senhor?
— Sou o Diabo.
— Sábia decisão — disse a Morte. — Farei seu filho ser rico e famoso.
O rapaz seguiu seu padrinho pela floresta, onde o velho lhe mostrou uma
determinada erva.
O rapaz fez o que o padrinho mandou e não demorou muito para ser o
médico mais famoso do mundo. As pessoas ficavam maravilhadas com sua
capacidade de saber se um paciente ia viver ou morrer. Vinha gente do país
inteiro para se consultar e pagavam tanto dinheiro que ele logo se tornou um
homem muito rico.
Ora, aconteceu que o rei desse país ficou doente. O médico famoso foi
chamado e os cortesãos perguntaram se o paciente real ia sobreviver. Porém, ao
entrar no quarto, ele viu que seu padrinho estava parado ao lado dos pés da
cama. O rei estava condenado. Claro que não era isso que a família do rei queria
ouvir.
“Ele vai se zangar, sem dúvida, mas sou afilhado dele, afinal de contas. Talvez ele
deixe passar. Vou arriscar.”
melhor.
Porém, assim que o médico ficou sozinho, a Morte veio a ele, a testa
franzida, o dedo apontado.
— Você me enganou! — disse. — Não vejo isso com bons olhos. Vou
deixar passar dessa vez porque você é meu afilhado, mas se tentar mais uma vez,
vai se arrepender, porque levo você comigo quando sair.
Não muito depois, a filha do rei caiu gravemente doente. Era filha única e o
rei chorava dia e noite até seus olhos estarem tão inchados que mal podia
enxergar. Ele anunciou a todo o mundo que quem curasse sua filha podia se
casar com ela e herdar o reino.
mais uma vez, quando entrou no quarto da doente, lá estava a Morte parada aos
pés da cama. Dessa vez, porém, o rapaz mal enxergou seu padrinho, porque
depois do primeiro olhar ao rosto da princesa ficou apaixonado: ela era tão
bonita que ele não conseguia pensar em mais nada. A Morte franziu a testa,
contraiu a boca, sacudiu o punho, e o rapaz nem notou: virou a princesa, deu-
lhe dois comprimidos e imediatamente ela se sentou e a cor voltou a suas faces.
Mas a Morte, enganada pela segunda vez, não estava disposta a esperar.
Pegou o médico pela mão e disse: — Certo, meu rapaz, você sabia.
E o puxou do lado da cama da princesa, tirou-o do palácio, da cidade, e sua
mão gelada era tão firme que o jovem médico não conseguia se soltar, por mais
que tentasse. A Morte o levou a uma grande caverna debaixo das montanhas,
onde milhares e milhares de velas brilhavam, algumas altas, outras de tamanho
médio, algumas tão curtas que estavam a ponto de se apagar. De fato, a cada
momento algumas velas se apagavam e outras de repente se acendiam, de forma
que as pequenas chamas pareciam pular de um ponto a outro em constante
movimento.
— Ah, padrinho, meu bom padrinho, acenda outra para mim, eu imploro!
Quero tanto casar com a princesa. O senhor sabe por que virei a cama: me
apaixonei por ela à primeira vista, não pude evitar! Por favor, padrinho, me
deixe viver minha vida!
— Ah, eu imploro, por favor, use essa vela para acender uma vela nova para
eu poder continuar brilhando quando a primeira se apagar!
A Morte fingiu que ia fazer isso, pegou uma vela nova e grande e colocou
em pé, depois pegou o toco que estava quase se apagando. Mas estava decidida a
ter sua vingança; então, ao virar a vela pequena para acender a grande, deixou
que a velha chama se apagasse. O médico caiu morto na mesma hora, pois era
igual a todo mundo: havia caído nas mãos da Morte.
***
Tipo de conto: ATU 332, “Padrinho Morte”.
Fonte: história contada aos irmãos Grimm por Marie Elizabeth Wild.
Histórias semelhantes: “A terra em que ninguém nunca morre”, de Italo Calvino (Italian Folkt
O outro conto dos Grimm desse tipo, “O padrinho”, é curto e espirituoso, sem a força desta his
conto de Calvino é semelhante apenas na conclusão — que ninguém escapa das mãos da mort
inúmeras variações dessa ideia; “O conto do que perdoa”, de Geoffrey Chaucer, é um
conhecidos.
O junípero
Há dois mil anos, ou numa época muito antiga, vivia um homem rico com sua
esposa boa e bela. Os dois se amavam profundamente. Só faltava uma coisa para
completar sua felicidade: filhos. Mas por mais que quisessem um filho, por mais
que a mulher rezasse dia e noite, não vinha filho nenhum, nenhum filho vinha.
Ao dizer isso, seu coração ficou leve e ela se sentiu feliz. Voltou para dentro
de casa, com a certeza de que tudo acabaria bem.
Ela se sentiu reconfortada com a promessa dele e mais um mês passou. Ela
então teve um filho vermelho como sangue e branco como a neve; quando ela
viu o menino, seu coração não suportou de alegria e ela morreu.
novo.
Teve uma filha com a segunda esposa, mas o de sua primeira mulher,
vermelho como sangue e branco como a neve, era um filho. A segunda esposa
amava sua filha, mas sempre que olhava o menino sentia o coração retorcer de
ódio, porque sabia que ele herdaria a riqueza do marido e temia que sua filha
ficasse sem nada. Vendo isso, o Diabo entrou nela e não deixava que pensasse
em outra coisa. Desse momento em diante, ela não deixava o menino em paz:
batia nele, amarrava suas mãos, gritava com ele e o fazia ficar parado no canto,
até o pobre menino sentir tanto medo que mal ousava voltar para casa depois da
escola, porque não havia como encontrar paz.
Por acaso, ela olhou pela janela e o menino estava chegando em casa. Foi
como se o próprio Diabo tivesse entrado em sua cabeça, porque ela pegou a
maçã da menina e disse: — Você não pode comer antes de seu irmão. — Jogou
a maçã na arca e fechou, e Marlene subiu para seu quarto.
Ela então ficou com muito medo e pensou: — O que eu posso fazer?
— Bom, volte lá e fale com ele outra vez — disse a mãe. — Se ele não
responder, dê um tapa no rosto dele.
Ele ficou imóvel e não disse nada, então ela deu um tapa no rosto dele e a
cabeça do menino caiu. A pobre Marlene ficou apavorada. Deu um grito, correu
para sua mãe e chorou: — Ah, mãe, mãe, arranquei a cabeça de meu irmão! —
— Ah, Marlene, que menina má! — disse a mãe. — O que você fez? Mas
fique quietinha, não diga nem uma palavra. Não se pode fazer nada. Não vamos
contar a ninguém. Vamos pôr seu irmão no ensopado.
O pai tornou a perguntar: — Onde está meu filho? Por que não está
sentado conosco?
— Ele queria ir. Disse que vai ficar seis semanas. Não se preocupe, vão
cuidar bem dele.
— Bom, estou preocupado com isso — disse o pai. — Não devia ter ido
sem pedir minha permissão. Fico chateado de ele não estar aqui. Devia ter se
despedido de mim. — Começou a comer e disse: — Marlene, por que está
chorando? Seu irmão vai voltar, não se preocupe.
Ele comeu um pouco mais do ensopado e disse: — Mulher este é o melhor
ensopado que já comi. Está delicioso! Me dê um pouco mais. Vocês duas não
estão comendo. Tenho a sensação de que é tudo para mim. — Ele comeu toda a
tigela, cada pedacinho, e jogou os ossos debaixo da mesa.
Marlene foi à sua cômoda, pegou o melhor lenço de seda. Juntou todos os
ossos de debaixo da mesa, amarrou no lenço e levou para fora. Seus pobres olhos
haviam chorado tanto que não restavam mais lágrimas e ela só podia chorar
sangue.
Marlene ficou feliz outra vez, feliz como se seu irmão ainda estivesse vivo.
Enquanto isso, o pássaro voava para longe. Voou para uma cidade, pousou
no telhado da casa de um ourives e começou a cantar:
Então se levantou e saiu apressado, para ver que tipo de pássaro era aquele. Saiu
de casa tão depressa que esqueceu um dos chinelos e parou no meio da rua com
seu avental de couro e o chinelo num só pé, a torquês de ourives numa das
mãos, a corrente de ouro na outra. Olhou para o alto para ver o pássaro,
protegeu os olhos com a mão e chamou: — Ei, pássaro! Que lindo o seu canto!
— Ah, não — disse o pássaro —, não canto duas vezes por nada. Me dê essa
corrente de ouro e canto de novo para você.
— Pode pegar, é sua — disse o ourives. — Venha, leve, mas por favor cante
de novo!
— Ah, não — disse o pássaro —, não canto duas vezes por nada. Me dê
aquele sapato vermelho que estou vendo em sua bancada.
E voou embora, para longe da cidade, seguindo o rio; na pata direita levava
a corrente de ouro, na esquerda, os sapatos vermelhos. Voou e voou e chegou a
um moinho. E a roda do moinho fazia clipeti-clap, clipeti-clap, clipeti-clap. Fora
do moinho, vinte aprendizes estavam sentados, cinzelando uma nova mó, hick-
hack, hick-hack, hick-hack e o moinho fazia clipeti-clap, clipeti-clap, clipeti-
clap.
O pássaro circulou em cima dele, pousou no alto de uma tília que ficava na
frente do moinho e começou a cantar:
Quatro pararam.
— Ah, não — disse o pássaro —, não canto duas vezes por nada. Me dê essa
mó que vocês estão cinzelando e canto de novo.
— Se fosse minha, daria para você na mesma hora! — disse ele. — Mas...
— Ah, o que é isso? — disseram os outros. — Se ele cantar de novo, pode
levar a mó e tudo bem.
O pai disse: — Sabe, estou feliz por alguma razão. Me sinto melhor do que
todos esses dias.
Foi nesse momento que o pássaro chegou. Ele sobrevoou a casa, pousou no
telhado e nesse momento o pai disse: — Não, acho que nunca me senti tão bem.
O sol está brilhando lá fora e sinto como se fosse encontrar um velho amigo.
Ela abriu o corpete com mãos trêmulas. Marlene sentou-se num canto,
chorando, chorando tanto que seu lenço ficou encharcado.
Então o pássaro saiu do telhado e voou para o junípero, onde todos podiam vê-
lo, e cantou:
A madrasta apertou as mãos nos ouvidos e fechou os olhos com toda força.
Marlene pousou a cabeça nos joelhos, chorou e soluçou, mas o pai disse: —
— Não! Não suporto! Queria afundar cem metros na terra para não ouvir
esse canto!
— Não! Não! — gritou a mulher. Ela se pôs de pé e seu cabelo estava todo
arrepiado na cabeça, como chamas de fogo. — Não aguento mais! Sinto que o
mundo está se acabando! Não aguento!
Ele pegou o pai pela mão, Marlene pela outra e os três estavam muito
felizes; então, entraram em casa e sentaram-se para jantar.
***
Na beleza, no horror, na perfeição da forma, esta história é sem igual. Assim como “O
mulher”, é obra do pintor Philipp Otto Runge e chegou aos Grimm em manuscrito no dialeto p
de plattdeutsch ou baixo-alemão.
é uma obra-prima.
O prelúdio, com sua adorável evocação das estações mudando enquanto se desenvolve a gravi
mulher, associa a criança em seu ventre ao poder regenerativo da natureza, especialme
junípero. Depois da morte da mãe, vem a primeira parte da história propriamente dita, a histór
da madrasta e do menino até a aparição do pássaro, o que poderia ser simples Grand Guignol s
a rara profundidade de maldade mostrada pelo personagem da mãe. São interessantes também
com o drama grego (Atreu alimentando Tieste com seus próprios filhos) e com Shakes
Andrônico fazendo Tamora comer os seus). O pai que come o filho está aberto a muitas interp
uma vez, um aluno meu sugeriu que o pai inconscientemente registra o perigo que a madrasta
para o filho e o coloca num lugar onde estará absolutamente seguro. Acho essa possibilidade e
Depois do horror da primeira parte da história propriamente dita, tudo é sol e luz. Primeiro, nã
conseguimos entender o que o pássaro está fazendo, mas a corrente de ouro e os sapa
bonitos e a comédia do ourives saindo da casa e perdendo o chinelo é divertida. Por
moinho e termina a segunda parte da história com o pássaro, de maneira improvável,
voando com uma mó de moinho além de sapatos e corrente. Então começamos a entender.
A parte final da história lembra o clímax de “O pescador e sua mulher”, a tempestade fazendo
paralelo com o ápice de culpa e loucura da mulher. Dessa vez, a tempestade é interna: o pai e M
não sentem nada além de prazer e alívio quando o menino volta para eles, enquanto a mãe enlo
terror.
Há um ponto interessante referente à narrativa oral dessa história, que realça sua natureza liter
Rosa Silvestre
Era uma vez um rei e uma rainha que todo dia diziam um para o outro: — Não
seria ótimo ter um filho? — Mas apesar de tanto desejarem, de tanto rezarem, de
todos os remédios caros e dietas especiais, não vinha filho nenhum.
— Que erro cometeram! Aqui está minha resposta a esse insulto: no dia em que
completar quinze anos, a princesa espetará o dedo numa roca de fiar e cairá
morta.
Todo mundo estava em choque. Mas a décima segunda Sábia, que ainda
não havia anunciado o seu dom, deu um passo à frente e disse: — Não posso
desfazer inteiramente o mal que está feito, mas posso abrandar o mau voto. A
princesa não morrerá, mas dormirá por cem anos.
O rei, querendo proteger a filha, baixou uma ordem para que queimassem
todas as rocas de fiar do reino. Enquanto a princesa crescia ficou claro que todos
os dotes das Sábias nela se encontravam em abundância: nunca se vira uma
moça mais gentil, mais bonita, mais inteligente e alegre. Era amada por todo
mundo que a conhecia.
Seu sono era tão profundo que se espalhou por todo o castelo. O rei e a
rainha tinham acabado de voltar e assim que entraram no salão caíram onde
estavam. Seus criados e atendentes também caíram, como dominós enfileirados,
assim como os cavalos nas cavalariças, os tratadores que cuidavam deles, os
pombos no forro, os cachorros no pátio. Um cachorro estava se coçando e
adormeceu assim mesmo, com a pata traseira atrás da orelha. As moscas na
parede dormiram. Uma gota de gordura que estava para cair de um assado ficou
onde estava, não se moveu. A cozinheira estava a ponto de bater no ajudante de
cozinha; sua mão parou a centímetros da orelha dele e seu rosto ficou franzido
esperando o golpe. Lá fora, o vento parou de soprar; nem uma folha se mexeu;
as próprias ondas do lago se imobilizaram como se fossem feitas de vidro.
estavam o rei, a rainha e sua linda filha. Mas havia algumas pessoas que tinham
estado na festa do nascimento da princesa e que se lembravam das Sábias e de
seus dons, além da maldição da única que ficara de fora.
Acontece que o dia seguinte era o último dos cem anos da maldição. Claro
que o príncipe não sabia nada disso, mas partiu com o coração cheio de
coragem. Chegou ao grande espinheiro e descobriu que não era nada parecido
com o que o velho havia dito, porque, além de espinhos, o espinheiro estava
abrindo lindas flores rosadas, milhares e milhares delas. Apesar disso, porém,
podia ver os esqueletos de muitos outros jovens nos ramos emaranhados. Havia
no ar um doce aroma igual ao de maçãs, e quando o príncipe chegou perto do
espinheiro os ramos se abriram sozinhos para deixá-lo passar, fechando-
se em seguida.
Ele chegou ao pátio e viu pombos dormindo, o cachorro com a pata ainda
atrás da orelha, as moscas dormindo na parede; entrou na cozinha e viu o rosto
do ajudantezinho todo franzido esperando o tapa da cozinheira, as chamas
imóveis no fogão, a gota de gordura ainda pendurada do boi que estava assando;
ele vagou pelos quartos do andar de cima e viu criado após criado adormecido
no meio do que estava fazendo, e o rei e a rainha dormindo no chão do salão,
exatamente onde haviam caído.
Ele se inclinou sobre ela, beijou seus lábios e Rosa Silvestre abriu os olhos,
deu um pequeno suspiro de surpresa e sorriu para o príncipe, que se apaixonou
por ela imediatamente.
casamento foi celebrado com grande esplendor e os dois viveram felizes para
sempre, juntos até o fim de suas vidas.
***
Histórias semelhantes: “Sol, Lua e Talia”, de Giambattista Basile (The Great Fairy Tale Tradit
Jack Zipes); “O soldado napolitano”, de Italo Calvino (Italian Folktales); “O caixão de vidro”,
Wilhelm Grimm (Children’s and Household Tales); “A bela adormecida na floresta”, de
(Perrault’s Complete Fairy Tales).
Bruno Bettelheim faz, como era de se esperar, uma interpretação absolutamente freudia
Segundo ele, o sono de cem anos que se segue a uma inesperada perda de sangue não é “nada
um silencioso crescimento e preparação do qual a pessoa despertará madura, pronta para a uni
Além disso, não adianta nada tentar prever o que deverá acontecer com uma criança que cresc
rei tenta destruir todas as rocas do reino para impedir o fatal sangramento da princesa
puberdade, aos quinze anos, como a fada má previu. Apesar de todas as precauções do pai, qu
está pronta, a puberdade virá.
E a princesa precisa de seus cem anos e do espinheiro. Aos quinze anos, ela ainda não é adulta
como Louis Jordan costumava cantar: “Essa franguinha ainda é muito nova para fritar.”
Branca de Neve
Num dia de inverno, quando os flocos de neve caíam como penas, uma rainha
estava sentada a costurar à janela, cuja moldura era do ébano mais negro. Ela
abriu a janela para olhar o céu e, ao fazê-lo, picou o dedo e três gotas de sangue
caíram na neve do peitoril. O vermelho e o branco ficaram tão bonitos juntos
que ela disse a si mesma: “Queria ter uma filha branca como a neve, vermelha
como o sangue e preta como a moldura da janela.”
Logo depois, a rainha teve uma filhinha e ela era branca como a neve,
vermelha como o sangue e preta como o ébano, de forma que foi chamada de
Branca de Neve. Assim que o bebê nasceu, a rainha morreu.
Um ano depois, o rei se casou com outra mulher. Ela era linda, mas
orgulhosa e arrogante, e não suportava pensar que ninguém fosse mais bonita
que ela. Tinha um espelho mágico e toda manhã parava na frente dele, olhava
seu reflexo e perguntava:
Ela ficava satisfeita então porque sabia que o espelho só podia falar a
verdade.
Mas Branca de Neve estava crescendo o tempo todo. Quando tinha sete
anos, era mais linda que um dia de primavera. Na verdade, mais bonita até do
que a rainha.
e o espelho respondeu:
Por fim, mandou chamar um dos caçadores do rei e disse assim: — Leve
essa menina até o fundo da floresta. Não quero que ela apareça nunca mais na
minha frente. Mate Branca de Neve e como prova traga para mim seus pulmões
e o fígado.
O caçador fez o que foi ordenado. Quando estava com Branca de Neve no
coração da floresta, tirou sua faca e estava a ponto de penetrar o coração da
inocente quando ela exclamou: — Ah, não me mate, caçador, eu imploro pela
minha vida! Fujo para bem longe na floresta e nunca mais volto para casa,
prometo!
Ela era tão bonita que o caçador ficou com pena e disse: — Pobre menina,
vá então... fuja!
“De qualquer forma os animais ferozes da floresta vão acabar com ela”, ele
pensou, mas saber que não precisava matá-
la aliviou um grande peso de seu coração.
caçador a matou, tirou seus pulmões e fígado e levou para a rainha como prova
da morte de Branca de Neve. O cozinheiro recebeu ordem de temperar bem os
pedaços, passar na farinha e fritá-
los e a rainha malvada comeu tudo. E esse,
pensou ela, era o fim de Branca de Neve.
Mas, enquanto isso, Branca de Neve estava sozinha na grande floresta, sem
a menor ideia do que fazer ou de onde ir. Olhou em torno, mas nada que via
entre as folhas e arbustos ajudava. Estava assustada e começou a correr, sem dar
atenção às pedras afiadas, aos galhos e aos pequenos animais que saltavam diante
dela. Correu e correu, e quando o dia estava se apagando e a noite estava
próxima, viu uma casinha. Bateu, mas não havia ninguém, então ela entrou,
esperando descansar.
Branca de Neve estava com muita fome e sede, de forma que comeu um
pouco do ensopado da panela, deu uma mordida em cada fatia de pão e tomou
um gole de vinho de cada caneca. Então se deu conta do quanto estava cansada e
deitou numa das camas, mas era muito grande; ela experimentou outra, mas era
muito curta; a sétima cama era do seu tamanho. Então ela fez suas orações,
deitou-se, fechou os olhos e um minuto depois estava dormindo.
Quando escureceu, os donos da casinha voltaram para casa. Eram sete anões
e ganhavam a vida extraindo metal precioso da mina debaixo das montanhas.
Eles entraram, acenderam os lampiões e viram que as coisas não estavam como
haviam deixado.
— E a minha...
— E a minha...
— E a minha...
— E a minha...
— E a minha...
— Ah, olhem!
O sétimo anão encontrou Branca de Neve dormindo. Todos foram até ela,
na ponta dos pés, e olharam, admirados. A luz do lampião iluminava seu rosto
no travesseiro muito branco.
— Até pode ser, mas está na minha cama, onde é que eu vou dormir?
— E lavar a roupa...
Então eles concordaram e Branca de Neve ficou cuidando da casa para eles.
Toda manhã, eles iam para a montanha cavar em busca de ouro e prata e,
quando voltavam à noite, seu jantar estava pronto, a casa limpa e arrumada,
tudo em ordem.
A rainha encolheu-se de horror, pois sabia que o espelho não podia mentir e
então compreendeu que o caçador a enganara. Branca de Neve ainda estava viva!
Todos os seus pensamentos giravam em torno de uma única coisa: como matar
Branca de Neve? Se ela, a rainha, não era a mulher mais bela de todo o país,
sabia que a inveja ia atormentá-la dia e noite.
Tirou uma renda feita de seda trançada. Branca de Neve achou que era
mesmo muito linda e a velha senhora tinha uma cara honesta. Não tinha perigo
deixar que entrasse.
Desceu correndo, destrancou a porta e olhou a renda.
Branca de Neve ficou ali parada, sem desconfiar de nada, enquanto a velha
enrolava e enrolava a renda em seu corpete e depois puxou, puxou, puxou tão
apertado que Branca de Neve não podia mais respirar. Os olhos da pobre
menina tremularam, seu lábios se moveram e ela caiu, sem sentidos.
— Não é tão bonita agora que está morta — resmungou a velha. E foi
embora depressa.
Enquanto isso, a rainha voltava depressa para casa. Assim que se viu em
segurança em seu quarto, perguntou ao espelho:
Quando a rainha ouviu isso, sentiu tamanho aperto no coração que seu
sangue correu com mais força e seus olhos quase explodiram.
— Ainda viva! Ainda viva! Vamos cuidar disso! — disse ela. — Não vai
viver muito mais, prometo.
— Tudo bem, minha querida — disse a velha. — Não vou entrar na casa.
Tenho certeza de que ninguém vai se importar se você der uma olhada. Que tal
este lindo pente, olhe!
Era mesmo muito bonito e Branca de Neve achou que não fazia mal dar
uma olhada. Então desceu correndo e abriu a porta.
— Ah, que lindo cabelo! — disse a velha. — Tão preto, forte e brilhante!
Ah, mas tão embaraçado. Quando foi que escovou direito seu cabelo, meu bem?
Não cuidam de você aqui?
— Deixe eu desembaraçar um pouco com este lindo pente. Você vai gostar,
não vai? Estou vendo. Venha aqui, querida...
— Agora acabou-se para você, mocinha! Vamos ver se fica bonita quando
começar a apodrecer! — disse a rainha e voltou correndo para casa antes que os
anões aparecessem.
Por sorte, era quase noite e não muito depois de a rainha má deixar Branca
de Neve caída ali, os anões voltaram e a encontraram.
— Tire, depressa!
— Cuidado... cuidado...
— Ah, anões, que boba eu fui! Ela não parecia nada com a velha de antes e
achei que não fazia mal...
Disseram então que só não faria mal se ela tivesse juízo e fizesse o que eles
mandavam. Não podia abrir a porta para ninguém.
E o espelho respondeu:
Foi ao seu quarto mais secreto e trancou a porta. Ninguém podia entrar ali,
nem os criados. Então, com a ajuda de um livro de feitiços e vários frascos
escuros, começou a preparar uma maçã envenenada. Era branca de um lado e
vermelho-
rosado do outro; quem a visse ia querer dar uma mordida; mas se
mordesse, mesmo um pedaço minúsculo, cairia morto imediatamente.
Então, a rainha se disfarçou pela terceira vez, pôs a maçã no bolso e partiu
para a casinha dos anões.
— Não posso deixar ninguém entrar — ela disse. — Não tenho permissão.
— Tudo bem, minha querida — disse a rainha que parecia uma velha
camponesa. — Só pensei que você gostaria de uma maçã. A colheita foi tão
grande este ano que não sei o que fazer com tanta maçã.
— Não, não posso aceitar nada — disse Branca de Neve.
— Ah, que pena! — disse a velha. — Elas são tão gostosas. Olhe, vou dar
uma mordida se você está desconfiada.
Parecia tão deliciosa que a pobre menina não conseguiu resistir. Estendeu a
mão pela janela, pegou a maçã e deu uma grande mordida na parte vermelha.
agora morta como uma pedra! Esses macaquinhos não vão conseguir acordar
você dessa vez.
E o espelho respondeu:
Tinham a intenção de enterrá-la, mas ela parecia ainda tão viçosa e bonita, como
Disse aos anões: — Deixem que eu leve o caixão comigo. Pago quanto
quiserem.
E o espelho respondeu:
A rainha quase sufocou de horror. Ficou tão assustada, tão apavorada, que
não sabia o que fazer. Não queria ir ao casamento e não queria ficar de fora. No
entanto, sentia que tinha de ir e ver a jovem rainha; acabou indo. E quando viu
Branca de Neve, ela a reconheceu imediatamente e foi tomada de horror. Só
conseguiu ficar ali parada, tremendo.
Mas um par de sapatos de ferro já estava no fogo. Quando ficaram
vermelhos em brasa, foram trazidos com pinças e colocados no chão. A rainha
má foi obrigada a calçá-los e dançar com eles até cair morta.
***
A atração gravitacional do filme de Walt Disney Branca de Neve e os sete anões sempre será e
este conto, a menos que o contador simplesmente decida ignorar o filme, o que não é tão difíc
seguindo a orientação dos Grimm.
E sou a favor de roubar tudo o que funcione. O que funciona numa mídia não funcio
necessariamente em outra, porém, e não acho que caracterizar em separado cada anão
tela. Eles não funcionam assim no conto dos Grimm: aí eles são um bando de pequenos espírit
Tanto em Disney como nos Grimm, eles podem chorar por Branca de Neve, mas não trazê-
la de
volta à vida. Só um feliz incidente, engendrado pelo príncipe, pode fazer isso.
Na primeira edição dos Grimm, em 1812, a rainha má é a mãe de Branca de Neve. Ela só pass
ser a madrasta na segunda edição, de 1819, quando a mãe de Branca de Neve morre
aconteceu com o pai? Vago, tênue, esquemático, como muitos personagens masculinos dos Gr
simplesmente obliterado pelo poder da monstruosa rainha.
Rumpelstiltskin
Era uma vez um pobre moleiro que tinha uma filha linda. Um dia, ele estava
conversando com um rei e, para impressioná-lo, disse: — Sabe, majestade, tenho
uma filha capaz de fiar ouro da palha.
O rei disse ao moleiro: — Gostei do que ouvi. Se a sua filha é tão esperta
como diz, venha com ela ao castelo amanhã e vamos ver o que ela pode fazer.
Quando a menina foi levada ao rei, ele a pôs num quarto todo cheio de
palha, até o teto. Deu a ela uma roca de fiar, vários carretéis e disse: — Pronto.
Trabalhe o dia e a noite inteiros e, se não tiver fiado toda essa palha em ouro até
amanhã de manhã, será executada.
A pobre menina sentou num canto, sem saber o que fazer. Claro que não
sabia fiar palha em ouro e quanto mais o tempo passava mais assustada ficava, até
que finalmente começou a chorar.
— Tenho de fiar essa palha em ouro e não sei fazer isso. Vão me matar!
— Meu colar!
— Fie tudo isso em uma noite, senão perderá a vida! — ele disse. E trancou
a porta.
Mais uma vez a moça começou a chorar e mais uma vez a porta se abriu e lá
estava o anãozinho.
— O meu anel!
Ele olhou bem o anel e pôs no bolso. Então começou a fiar. E a roda fez
vuir! vuir! vuir! a noite inteira e de manhã toda a palha estava transformada em
ouro.
O rei ficou ainda mais contente, mas ainda não bastava aquele ouro. Levou
a filha do moleiro para um quarto ainda maior, todo cheio de palha, como os
outros, e disse: — Fie isso tudo em ouro e será minha esposa. — E o rei estava
pensando: “Ela é só a filha do moleiro, mas nunca vou encontrar esposa mais
rica no mundo.”
Quando a moça estava sozinha, o anão abriu a porta uma terceira vez.
“Bom, quem pode saber o que vai acontecer no futuro?”, ela pensou, e
prometeu o que o anãozinho pedia.
Um ano depois, ela deu à luz um belo bebê. Tinha tirado da cabeça o
anãozinho, mas de repente lá estava ele.
— Ah, não, não, por favor, qualquer coisa menos isso! Dou toda a riqueza
do reino.
— Para que vou querer isso se sei fiar palha em ouro? Quero um bebê vivo,
isso que eu quero.
A rainha começou a chorar e chorou tanto que o anãozinho ficou com pena dela.
— Tudo bem, eu te dou três dias — disse ele. — Se descobrir o meu nome
dentro de três dias, pode ficar com seu filho.
— É Gaspar?
— É Melchior?
— É Baltazar?
— É Rompicles?
— É Roquemofo?
— É Mostardureira?
— Não ouvi mais nenhum nome como aqueles que encontrei ontem,
majestade, mas quando estava perto do topo da montanha, na parte mais
fechada da floresta, vi uma casinha. Tinha uma fogueira acesa na frente e um
anãozinho, a senhora devia ter visto!, um absurdo!, dançando em volta do fogo,
pulando numa perna só, cantando assim:
— É Tomás?
em sua fúria bateu o pé direito com tanta força que afundou no chão até a
cintura. Então agarrou o pé esquerdo com as duas mãos e se rasgou em dois.
***
Histórias semelhantes: “Duffy e o Diabo!”, “Perrifool”, “Titty Tod”, “Tom Tit Tot”, “W
Stoorie”, de Katharine M. Briggs (Folk Tales of Britain).
Nenhuma seleção de contos dos Grimm estaria completa sem “Rumpelstiltskin”. Os irmãos re
conto depois da primeira edição de 1812, sobretudo em função de maior elaboração. P
primeira edição, Rumpelstiltskin simplesmente fugia, raivoso, quando seu nome era des
de se bisseccionar da maneira engenhosa descrita aqui, que vem da edição de 1819. A
natureza repetitiva podem assumir uma boa dose de elaboração.
Fiar era uma ocupação doméstica de grande importância econômica antes que a Revolu
Industrial eliminasse esse meio de subsistência. Uma esposa que soubesse fiar bem era um prê
mesmo (pelo menos numa história) para um rei. Ainda usamos a expressão fio da meada quan
de contar histórias, embora a conexão tenha se perdido há muito.
A versão inglesa “Tom Tit Tot” (de Folk Tales of Britain), com sua heroína sexy, rela
ambiciosa é, a meu ver, uma versão ainda melhor deste conto.
O pássaro dourado
Nos velhos tempos, havia um rei que tinha um lindo jardim dos prazeres atrás
do palácio, e nesse jardim havia uma árvore que dava maçãs de ouro. Todo ano,
assim que as maçãs estavam maduras, o rei mandava contá-las e numerá-las, mas
um ano, na mesma manhã em que foi feita a contagem, descobriu-se que estava
faltando uma. O jardineiro-
chefe informou ao rei e o resultado foi que o rei
mandou vigiar a árvore todas as noites.
Tão importante era essa tarefa que ele a deixou a cargo de seus três filhos.
Na noite seguinte, o rei mandou o segundo filho, mas ele não foi nada
melhor. Quando o relógio bateu meia-
noite, seus olhos estavam fechados e de manhã mais uma maçã desaparecera.
Então foi a vez do terceiro filho. O rei não confiava inteiramente nele, e
relutou em permitir que montasse guarda, mas o rapaz o convenceu e o rei
acabou concordando. Assim como seus irmãos, o terceiro filho deitou-se
embaixo da árvore e se acomodou para a longa vigília, decidido a combater o
sono.
Brilhava tanto que era como se todo o jardim estivesse iluminado por mil luzes.
O jovem príncipe olhou com cuidado, fez pontaria com seu arco e flecha e,
quando o pássaro bicou uma maçã, atirou uma flecha na árvore. O pássaro voou
embora imediatamente, mas uma de suas penas douradas flutuou até a grama.
— Bom, se é assim tão preciosa — disse o rei —, não se pode esperar que
eu me satisfaça com só uma pena. Quero o pássaro inteiro e vou conseguir isso,
vocês vão ver!
Então o filho mais velho partiu para procurar o pássaro, convencido de que
era esperto o bastante para encontrá-lo e trazê-lo de volta. Não tinha avançado
muito quando viu uma raposa sentada na borda da floresta olhando para ele. O
príncipe fez pontaria com sua arma, mas a raposa exclamou: — Não atire! Eu
lhe dou um bom conselho. Está procurando o pássaro dourado, não está? Bom,
se continuar por aqui vai encontrar uma aldeia com duas hospedarias, uma de
cada lado da estrada. Uma estará muito iluminada, cheia de música e risos, mas
não entre lá de jeito nenhum: vá para a outra, mesmo que não goste do aspecto
dela.
O príncipe pensou: “Ela acha que isso é um bom conselho? Como pode um
bicho idiota desses me dar um conselho?” E puxou o gatilho. Mas a raposa era
muito rápida: em um momento sumiu por entre as árvores escuras, o rabo
esticado para trás.
O príncipe seguiu seu caminho e quando a noite caía chegou a uma aldeia,
exatamente como a raposa descrevera. Duas hospedarias, uma brilhantemente
iluminada, cheia de sons alegres, a outra tristonha e escura.
Passou algum tempo e o filho mais velho não dava sinal de voltar, então o
segundo filho partiu em busca do pássaro dourado. Assim como seu irmão,
encontrou a raposa, ouviu seu conselho, não deu atenção e chegou às duas
hospedarias. Lá estava seu irmão, chamando por ele. Não conseguiu resistir:
entrou e se divertiu, esquecendo-se de tudo, menos de seu prazer.
Mais tempo passou e então o príncipe mais novo pediu para ir tentar a
sorte. O pai, porém, tinha outras ideias. — É inútil — disse ao primeiro-
ministro. — Ele tem ainda menos chance de encontrar o pássaro do que seus
irmãos. E se encontrar algum perigo não vai saber se cuidar. Francamente, não
acho que ele esteja à altura.
Mas o príncipe ficou pedindo, pedindo, e por fim o rei cedeu. O rapaz
partiu como seus irmãos tinham feito e encontrou a raposa sentada no mesmo
lugar, dando o mesmo conselho. O príncipe era um rapaz de bom coração e
disse: — Obrigado, raposinha. Não se preocupe, não vou te machucar.
— Como você teve juízo e seguiu meu conselho — disse a raposa —, vou te
ajudar com a próxima parte da viagem. Vamos agora a um castelo, que tem toda
uma tropa de soldados do lado de fora. Não preste nenhuma atenção a eles,
porque estarão deitados no chão, dormindo e roncando. Passe pelo meio deles e
entre no castelo. Atravesse diretamente todas as salas até a última, onde vai
encontrar o pássaro dourado. Ele estará numa gaiola de madeira. Perto haverá
uma gaiola dourada, mas não dê atenção a isso: é apenas decoração. Lembre-se:
faça o que fizer, não tente tirar o pássaro da gaiola simples e colocar na de ouro.
Assim que fez isso, o pássaro soltou um grito agudo que acordou de repente
todos os soldados lá fora. Eles entraram correndo, prenderam o jovem príncipe
e o levaram para o calabouço.
O príncipe partiu, mas sem muita esperança. De fato, ele não fazia ideia de
onde encontrar o cavalo, nem por onde começar a procurar e teve bastante pena
de si mesmo. Porém, assim que pegou a estrada, viu sua amiga raposa outra vez.
Ao olhar em torno procurando a sela, achou ridículo usar a sela de couro velha e
gasta, quando havia uma sela de ouro tão bonita esperando para ser usada.
Então pôs a sela de ouro, o cavalo relinchou tão alto que os tratadores
acordaram, pegaram o príncipe e ele foi condenado à morte. O rei desse castelo
também poupou sua vida. A condição, dessa vez, era que ele trouxesse a princesa
dourada do castelo dourado.
E partiu o príncipe com o coração pesado outra vez e mais uma vez
encontrou a fiel raposa.
que você tem de fazer é correr assim que ela o vir e dar um beijo nela. Feito isso,
ela irá com você e pode levá-la para qualquer lugar. Mas não pode permitir que
ela se despeça dos pais. Se permitir, vai dar tudo errado.
A raposa esticou o rabo, o príncipe montou em suas costas e partiram, o
vento assobiando nos cabelos do príncipe. Logo chegaram ao castelo dourado,
onde tudo era como a raposa havia dito. O príncipe se escondeu até a meia-noite
e quando todos foram dormir, a princesa foi ao banheiro. O príncipe correu e a
beijou; ela disse que iria a qualquer lugar do mundo com todo prazer, mas
primeiro tinha de se despedir do pai e da mãe. Ela implorou, suplicou, chorou, e
embora ele tenha resistido a seus pedidos no começo, ela era tão bonita e seu
sofrimento tão grande que ele acabou cedendo.
Assim como todo mundo no palácio. O príncipe foi preso e na manhã seguinte
foi levado à presença do rei.
— Sua vida não vale nada, rapaz — disse o rei. — Terei de mandar que seja
executado imediatamente, mas preciso que uma tarefa seja cumprida e, se você
cumprir, pouparei sua vida. Na frente da minha janela há uma montanha que
tapa a vista. Remova a montanha dentro de sete dias e a princesa será sua. Senão,
perde a cabeça.
Porém continuou cavando durante todo o sétimo dia, até a noite. Nessa
altura, a raposa apareceu outra vez.
— Nem sei por que me dou ao trabalho — disse ela. — Você não merece
ajuda, mas tenho um fraco por você. Vá para a cama e eu removo a montanha.
Na manhã seguinte, quando o príncipe acordou, olhou pela janela e viu que
a montanha havia desaparecido. Cheio de alegria, correu para o rei.
O rei olhou pela janela e não podia negar: a montanha havia desaparecido.
— Muito bem — disse ele. — Goste ou não, tenho de cumprir minha palavra.
— Vou contar, mas você vai me dar ouvidos dessa vez — disse a raposa. —
Primeiro, você leva a princesa ao rei que mandou você ir buscá-la. Haverá uma
grande festa e alegremente vão deixar que você pegue o cavalo dourado. Quando
trouxerem o cavalo você tem de montar nele imediatamente, apertar a mão de
todo mundo e se despedir. Tome o cuidado de apertar a mão da princesa
dourada por último e, quando a mão dela estiver na sua mão, você a puxa para
cima do cavalo e saem galopando depressa. Ninguém vai conseguir alcançar
vocês porque esse cavalo é mais rápido que o vento.
deixe a princesa descer do cavalo. Eu cuido dela enquanto você faz o resto. Tem
de cavalgar pelo pátio, todo mundo vai se alegrar quando você aparecer e trarão
o pássaro de ouro para você. Assim que tiver a gaiola nas mãos, parta depressa
como o vento e volte para pegar a princesa.
Seguiu seu caminho com a linda princesa. Não passou muito tempo,
chegaram à aldeia onde seus dois irmãos haviam ficado. Lá encontrou uma
multidão muito ruidosa e agitada. Perguntou o que estava acontecendo e
contaram que dois homens iam ser enforcados. Ele abriu caminho entre as
pessoas e descobriu que os dois homens eram seus irmãos. Tinham gastado todo
o seu dinheiro e feito todo tipo de maldade.
— Bom, você pode comprar a liberdade deles — disseram —, mas por que
gastar dinheiro bom salvando gente tão ruim?
Ele não hesitou. Pagou o dinheiro e comprou a liberdade dos dois. Tiraram
as algemas de seus irmãos com severos alertas para nunca mais visitarem aquela
aldeia. Então partiram e depois de uma marcha puxada durante toda a manhã
chegaram à floresta onde haviam encontrado a raposa. O sol estava quente, e
como era tão fresco e agradável debaixo das árvores, os irmãos disseram: —
O rei ordenou uma grande celebração, mas cortesãos atentos notaram que o
cavalo se recusava a comer, o pássaro a cantar e a princesa não fazia nada além de
chorar.
E o que aconteceu com o irmão mais novo? Ele não se afogou, porque o
poço estava seco; e não quebrou nenhum osso porque estava cheio de musgo.
— O que foi que eu disse? — falou. — Bom, acho que devia esperar por
isso. Não importa, não vou deixar você aqui no fundo. Segure na minha cauda e
segure forte.
— Ora, você não está fora de perigo ainda — disse a raposa. — Seus irmãos
não tinham certeza de você ter morrido no poço, então colocaram guardas em
torno de toda a floresta com ordens para atirar em você assim que te virem.
Ela contou ao rei tudo o que havia acontecido, desafiando os irmãos que
ameaçaram matá-
la se revelasse a verdade. O rei ordenou que toda a corte se
reunisse e o jovem príncipe também estava lá, vestindo os trapos que tinha
trocado com o mendigo. A princesa o reconheceu imediatamente e correu para
abraçá-
lo. Os irmãos maus foram presos e executados. O jovem príncipe se casou
com a princesa e foi nomeado herdeiro do trono.
Mas o que aconteceu com a pobre raposa? Um dia, muito tempo depois, o
príncipe estava passeando na floresta quando encontrou sua velha amiga que
disse: — Você agora tem tudo o que queria, mas eu não tenho nada além de má
sorte há anos. Você se recusou a me libertar quando eu pedi.
E mais uma vez a raposa pediu que ele a matasse e cortasse fora suas patas e
sua cabeça. Dessa vez, o príncipe atendeu o pedido e assim que o fez, a raposa se
transformou em ninguém menos que o irmão da princesa, finalmente libertado
do encanto que havia sido lançado sobre ele.
***
Gretchen Wild e os Grimm realizaram um trabalho excepcional com este conto, que pode se d
com a maior facilidade. Com isso fizeram com que ficasse parecendo bastante com uma narrat
ou esotérica de busca e salvação, não muito distante do gnóstico “Hino da pérola”, do século I
bodas alquímicas de Christian Rosenkreutz, de 1616. Seria fácil construir uma interpretaç
jovem príncipe seria o indivíduo em busca de si mesmo, a princesa dourada sua metade femin
termos junguianos, sua anima, que tem de ser conquistada dos poderes invisíveis do m
porque a montanha tapa a vista do rei, claro. Quando a montanha é removida, o rei s
suficiente para ver e permite que a jovem noiva siga seu destino verdadeiro. O cavalo dourado
príncipe, que não pode ser submetida aos arreios fáceis da lisonja e da presunção, ma
dignidade do trabalho honesto. O pássaro dourado é a alma do príncipe: só ele pode
vê-lo no jardim do rei, só ele pode persegui-lo e conquistá-
lo afinal. Os dois irmãos são os eus inferiores
do príncipe, dominados por fim por sua bondade inocente; e ele é ajudado pela raposa
sabedoria. A sabedoria está associada de perto ao self do próprio buscador (ele é irmão da prin
que não pode ser visto pelo que é, a não ser através do sacrifício. As maçãs douradas do jardim
fragmentos da verdade que precisam ser distribuídos gratuitamente com mão generosa,
cego por uma estreiteza de entendimento, trata como posses que precisam ser contadas e nume
E assim por diante. Não acredito nem por um momento nessa interpretação, assim com
acredito nas tolices subjunguianas, mas é uma leitura possível, que pode ser sustentada
mostra? Que o sentido precede a história, que é composta para ilustrá-
lo como uma alegoria, ou que a
história se encaixa acidentalmente numa forma interpretável?
Evidentemente a última hipótese. Interpretações muito engenhosas de histórias são pouco mai
enxergar padrões agradáveis nas fagulhas de uma fogueira, mas não fazem mal nenhum.
Desfazendeiro
Era uma vez uma aldeia na qual cada fazendeiro era rico, a não ser um que
chamavam de Desfazendeiro. Ele não tinha dinheiro nem para comprar uma
vaca, embora ele e a mulher quisessem muito ter uma.
Um dia, ele disse a ela: — Escute, tive uma boa ideia. Sabe nosso primo, o
carpinteiro? Vamos pedir a ele que faça para nós uma novilha de madeira e pinte
com a cor exata, de forma que pareça verdadeira. É capaz de ela acabar
crescendo e então teríamos uma vaca. O que acha?
Então foram até o carpinteiro e explicaram o que queriam. Ele tinha uns
bons pedaços de pinho, fez um desenho, depois serrou, projetou, esculpiu e
pregou; com tinta marrom pintou até ninguém poder dizer que não era de
verdade. Fez a novilha com a cabeça baixa como se estivesse pastando e lhe deu
longos cílios pretos também.
— Ainda está lá pastando. Chamei, mas ela nem se mexeu. Não posso
esperar o dia inteiro. Estas vacas precisam ser ordenhadas.
Estavam felizes, mas não tinham com que alimentá-la, nem dinheiro para
comprar feno, então tiveram de matá-
la. Salgaram a carne, curtiram o couro,
que era um bom couro, e Desfazendeiro foi à cidade com ele, tentando vendê-lo
para comprar um bezerro.
— Ah, acho que está chovendo um pouco. Tudo bem, entre. Pode deitar
na palha ali.
— Bom, parece que a chuva vai durar a noite inteira — ela disse.
Logo depois, ouviu-se uma batida suave na porta e a mulher atendeu com
um dedo nos lábios. Desfazendeiro abriu os olhos o suficiente para ver o padre
entrar.
Desfazendeiro pensou: “Festejar é? Então por que ela me enganou com pão
e queijo?”
— Ah, graças a Deus você voltou! — disse ela. — Estava ficando assustada.
— Porco assado? Não acredito... Ora, pois não é mesmo? Tem, sim! Um
belo pedaço de carne, olha só! O que mais ele diz?
— Não — disse ela. — Estou com dor de cabeça. Acho que vou para a
cama.
— Então esse vidente — disse o moleiro — não conta a quinta coisa que
prevê, é?
— Pode ser qualquer coisa. Mas vamos comer primeiro, porque tenho a
impressão de que a quinta coisa é bem ruim.
— Quatrocentos táleres.
— Minha nossa!
— Bom, como eu disse, é muito valiosa. Mas como o senhor foi tão
generoso, acho que consigo convencer o vidente a deixar por trezentos.
— Trezentos, é?
— Isso mesmo.
— Trezentos.
— Ah, meu Deus — Desfazendeiro falou. — Ele disse que o Diabo está
dentro do seu armário.
Correu para destrancar a porta da frente, que deixou bem aberta. E disse:
— Ele estava certo, o seu vidente! — disse. — Era o Diabo, sem dúvida! Vi
o desgraçado com meus próprios olhos!
O que queriam dizer é que não acreditavam que tivesse conseguido aquele
dinheiro honestamente. Desfazendeiro foi chamado a se explicar para o prefeito.
Assim que ouviram isso, as pessoas de toda a aldeia começaram a matar suas
vacas e curtir os couros, se preparando para ir vender na cidade e conseguir esse
preço incrível.
E mandou sua criada ir vender o primeiro couro. Ela conseguiu três táleres
e os outros aldeões não conseguiram nem propostas desse valor.
— Bom, o que querem que eu faça com todos esses couros? — perguntou o
comerciante de couros. — Não há demanda hoje em dia.
Foi chamado um padre para rezar uma missa por sua alma e os aldeões
deixaram os dois sozinhos durante a celebração. Por sorte, Desfazendeiro
reconheceu o padre.
Tinha visto o pastor descendo a estrada com seu rebanho de ovelhas. Por
acaso, sabia que o pastor desejava uma coisa mais que tudo no mundo: era ser
prefeito.
Então Desfazendeiro gritou o mais forte que pôde: — Não, não vou fazer
isso! O mundo inteiro pode me pedir, que não faço. Eu me recuso!
O pastor parou e perguntou: — O que está acontecendo? O que você não faz?
O padre foi ao conselho da aldeia, disse que a missa estava rezada e o barril
estava pronto. O prefeito seguiu na frente de todos, chegaram depressa e rolaram
o barril para dentro da lagoa.
Claro que vai gostar! Mas primeiro pode dar uma olhada lá no fundo!
Rolaram o barril para dentro da água e voltaram para casa. O padre ficou
para trás e com a batina levantada tentou erguer o barril para que o pastor não
morresse afogado. Enquanto isso, os aldeões tiveram a surpresa de sua vida
porque quando chegaram à praça da aldeia lá estava Desfazendeiro com um
rebanho de ovelhas.
Então, eles todos viraram e saíram correndo para a lagoa, cada um decidido
a trazer de volta um rebanho. Bem naquele momento, o céu por acaso estava
com aquelas nuvens brancas que parecem carneirinhos, e os aldeões ficaram tão
excitados vendo o reflexo das nuvens na água que não notaram o pastor
encharcado na outra margem, espancando o padre. Só conseguiam exclamar de
admiração com as nuvens, se acotovelando pela melhor posição na margem.
***
Tipo de conto: AT 1535, “O camponês rico e o camponês pobre”, inclusive um episódio de tip
Fonte: histórias contadas aos irmãos Grimm pela família Hassenpflug e Dorothea Viehmann.
Mas até que ponto idiotas devem ser punidos por terem as ideias curtas? Parece justo que os a
que queriam matar Desfazendeiro morressem afogados, porque isso vem como resultado
ambição, mas é um pouco duro demais com o pastor, que nunca desejou mal nenhum a Desfaz
No original, o pastor morre afogado e o padre sai ileso, o que também não parece justo. Nesta
padre salvar o pastor e depois ser castigado por seu esforço, o que parece um pouco mais equi
Padres não são frequentes nos contos de Grimm, mas, quando surgem, sua função parece ser q
sempre envolver-
se com a mulher dos outros. No conto “O velho Hildebrando”, por exemplo, há um
padre que engana um camponês e o faz ir à Itália, para que ele e a mulher do camponês possam
bom momento juntos. Ele é desmascarado e espancado no final, e com toda a razão.
Milpeles
Era uma vez um rei cuja esposa, com seus cabelos dourados, não tinha igual em
todo o mundo.
Acontece que ela adoeceu e, sentindo que estava para morrer, disse ao rei:
— Se você se casar de novo quando eu morrer, não deve ser com ninguém
menos bonita que eu, ou com o cabelo menos dourado que o meu. Prometa.
Ora, o rei tinha uma filha cujo cabelo era tão dourado como o de sua mãe
havia sido, e que prometia ser tão bonita quanto ela. Durante sua infância, o rei
nem notou isso, mas um dia, quando ela chegou à idade certa, ele notou no
cabelo dela o brilho do sol que entrava pela janela. De repente, o rei viu que ela
era tão bela quanto sua mãe havia sido, e se apaixonou por ela na mesma hora.
um dos piores pecados. Nada de bom resultará disso e a nação cairá em ruínas!
além disso, preciso de um manto feito com mil tipos de pele diferentes, uma
para cada tipo de animal do reino.
Ela pensou que isso seria impossível e o impediria de realizar seu plano
perverso. Mas o rei estava tão loucamente apaixonado que nada o detinha.
Contratou os tecelões mais hábeis do país para tecer os três tipos de tecido, os
melhores costureiros para cortar e costurar os três vestidos magníficos. Enquanto
isso, mandou caçadores trabalharem na floresta e dia após dia eles traziam seus
troféus de couros e peles. Os melhores preparadores de peles cortaram mil
pedaços e costuraram uns nos outros, e não demorou muito ficou claro para a
moça que seu pai ia fornecer tudo o que ela havia pedido.
Então, um dia, ele disse assim: — Minha querida, está quase tudo pronto.
Ela viu que não havia como escapar, que o único jeito era fugir. Quando
estavam todos dormindo no palácio, ela pegou três pequenas coisas de seus
tesouros: um anel de ouro, uma pequena roca de fiar e um pequeno carretel de
ouro. Dobrou os três vestidos tão bem que couberam dentro de uma casca de
noz, vestiu seu manto de peles e escureceu o rosto e as mãos com fuligem.
O sol surgiu e ela continuava dormindo. Com a luz plena do dia, ela
continuava dormindo. Ora, aconteceu que um rei que era dono daquela floresta
estava caçando por ali essa manhã. Seus cães de caça farejaram algo estranho,
correram para a árvore e a circundaram, latindo e latindo.
— Tem algum animal escondido ali — o rei disse a seus caçadores. — Vão
ver o que é.
Não me machuquem! Sou uma pobre moça, só isso! Minha mãe e meu pai me
— Bom, Milpeles, não está perdida agora. Você é um troféu. Agora é nossa.
Vendo que não se tratava de uma fera rara, o rei perdeu o interesse. Os
caçadores a puseram no carro e foram embora, sacudindo pela estrada
esburacada até o castelo, onde os criados a levaram e puseram em um quartinho
escuro e empoeirado debaixo da escada.
Milpeles ficou curiosa e disse ao cozinheiro: — Será que posso subir e dar uma
olhada? Fico na porta.
Quando o rei a viu, sentiu como se um raio atingisse seu coração. Nunca
tinha visto tamanha beleza em toda a sua vida. Dançou com ela, meio tonto e,
quando a dança terminou, ela fez uma reverência e desapareceu tão depressa que
ele não viu para onde foi. Interrogou todos os guardas, todas as sentinelas: ela
havia saído do castelo? Alguém tinha visto para onde fora?
Mas ninguém viu nada, porque ela saiu muito depressa e voltou para seu
quartinho. Dobrou o vestido, vestiu seu manto de peles, sujou o rosto e as mãos,
e mais uma vez era Milpeles, a criada da cozinha.
fio de cabelo cair no caldo, senão fica sem comer de hoje em diante.
O cozinheiro subiu e Milpeles começou a fazer uma sopa de pão, o melhor
que podia. Quando estava pronta, ela pegou seu anel de ouro e pôs na tigela do
rei.
Quando o baile terminou, o rei pediu sua sopa. Estava tão boa que ele
achou que nunca tinha comido nada melhor. E quando chegou ao fundo da
tigela...
— O que é isto? Um anel de ouro? Como isto veio parar aqui? Chame o
cozinheiro!
— Você deve ter deixado cair um cabelo na sopa. Não falei para tomar cuidado?
O cozinheiro foi falar com o rei, tremendo, enrolando o avental nas mãos.
— Foi você quem fez esta sopa? — o rei perguntou. — Pare de tremer.
Endireite o corpo.
— Não está falando a verdade. Esta sopa é diferente da que você faz
sempre. E está muito melhor. Quem fez, hein?
— Desculpe, majestade, o senhor tem razão, não fui eu. Foi uma criadinha
peluda.
— Mande-a subir.
Algum tempo depois, houve outro baile e, como antes, Milpeles pediu ao
cozinheiro para ir dar uma olhada no salão.
— Bom, tudo bem — disse ele. — Meia hora só. E quando voltar aqui,
faça aquela sopa de pão de que o rei tanto gosta.
Milpeles correu ao seu quartinho, lavou-se depressa, pôs o vestido que era
de prata como a lua. Subiu e entrou no salão. O rei a viu no meio da multidão
de dançarinos, porque ela estava ainda mais bela que antes. Dançaram e o tempo
Enquanto o cozinheiro estava olhando o salão, ela colocou sua pequena roca de
fiar de ouro na tigela e despejou a sopa por cima.
— Devo confessar que estou intrigado com você — disse ele. — Me conte
de novo de onde veio.
Não, ele pensou, a pobre moça deve ser fraca da cabeça. Que pena, ela pode
até ser bonita debaixo dessa sujeira. Mas evidentemente não sabia nada sobre a
pequena roca de fiar dourada, então ele a mandou embora.
Ela colocou seu vestido que cintilava como as estrelas e correu para o salão.
O rei nunca tinha visto ninguém tão adorável e mandou a orquestra tocar uma
música bem longa para poder conversar com ela. Ela era leve em seus braços,
como o próprio brilho das estrelas, mas falou muito pouco. No entanto, ele
conseguiu colocar no dedo dela um anel, sem que ela percebesse.
Quando a música terminou, a meia hora havia passado, e ela tentou escapar.
O rei tentou detê-la, mas ela era rápida demais para ele e conseguiu fugir.
Depois de lavar o rosto e as mãos, ninguém podia negar que era mais bela que
qualquer outro ser vivo.
***
Tipo de conto: ATU 510 B, “Peau d’Asne” [Pele de asno].
Histórias semelhantes: “O urso”, de Giambattista Basile (The Great Fairy Tale Traditio
Zipes); “Maria de Madeira”, de Italo Calvino (Italian Folktales); “Pele de asno”, de Ch
(Perrault’s Complete Fairy Tales); “Tebaldo”, de Giovanni Francesco Straparola (The G
Tradition, org. Jack Zipes).
A história começa muito bem: o rei promete à esposa não se casar com ninguém men
quando morrer, depois se apaixona pela própria filha... Mas no meio do caminho, quando a pri
não sabemos mais nada do pai obcecado; a história muda totalmente de rumo e se torna uma v
“Cinderela”
. O que aconteceu com o tema do incesto? Me parece que fugir não é jeito de uma
resolver algo tão dramático. A questão merece solução melhor.
A versão de Straparola se dá conta disso e faz o rei, Tebaldo, perseguir a filha incans
Seguindo essa pista, eu continuaria o conto que os Grimm nos legaram contando que
noiva viveram felizes e tiveram dois filhos. Um dia, um mercador chegou ao palácio com uma
de lindos brinquedos. Daria um brinquedo ao menino e outro à menina, dizendo: — Falem de
mãe. — Eles iriam correndo até ela para mostrar uma pequena roca de fiar de ouro e um carret
Perturbada, ela ordenaria que o mercador fosse trazido à sua presença, mas ele teria desaparec
O dia seguinte seria domingo, e ela o veria no meio da multidão quando a família re
catedral. Ele olharia para ela, daria um sorriso e ela não teria dúvida: seu pai. Pela p
confessaria ao marido o horror que a fizera fugir de casa e se transformar em Milpeles. Ele fic
e ordenaria que o mercador fosse encontrado e preso.
Nessa noite, a rainha iria confessar, temendo ser de alguma forma culpada pelo desejo abomin
do pai. O padre garantiria que ela era inocente, mas que estava julgando errado o pai, cujo amo
era puro e sagrado. Além disso, o amor entre pais e filhas é santificado nas Escrituras, como n
Nesse momento, ela reconheceria a voz dele e sairia correndo, pedindo socorro, e desc
estava trancada dentro da igreja com seu pai. Os gritos da rainha alertariam a guarda, que arro
porta para encontrar o falso padre a ponto de violentá-la.
Por ordem do rei, o vilão seria levado embora e enforcado. Depois de morto, seus braços e per
seriam cortados e enterrados separadamente em solo não consagrado.
Nessa noite, a rainha acordaria de um pesadelo e encontraria dedos sujos de terra toca
lábios: o braço direito do pai. Louca de terror, ela gritaria por seu marido e o encontraria a seu
cama a ponto de ser estrangulado: o braço esquerdo do pai. Ninguém pode fazer nada
mesma. A rainha afasta o braço do rosto e o joga no fogo. Depois faz a mesma coisa com o ou
está na garganta de seu marido, empilha mais lenha por cima até que se queime e se transform
Jorinda e Joringel
Era uma vez um antigo castelo no meio de uma densa floresta, onde morava
uma velha completamente sozinha. Era uma bruxa poderosa. Todo dia ela se
transformava num gato ou numa coruja e toda noite retomava a forma humana.
Sabia capturar pássaros e outros animais, que ela matava, assava e comia. Se
algum homem chegava a cem passos do castelo, ela lançava sobre ele um
encantamento que o deixava imóvel até que o libertasse. Se uma garota inocente
chegava perto, porém, a velha a transformava num pássaro e a prendia à força
dentro de um cesto. Depois, levava o cesto para uma sala do castelo, onde
mantinha mais de sete mil outros pássaros desse tipo.
Ora, naquela época havia uma moça chamada Jorinda, que as pessoas
diziam ser a moça mais bonita de todo o reino. Estava noiva de um rapaz muito
bonito chamado Joringel. Não faltava muito para o casamento e o que eles mais
gostavam era estar um na companhia do outro.
Uma tarde, quiseram ficar sozinhos; então foram dar um passeio na floresta.
— Precisamos tomar cuidado para não chegar muito perto do castelo — disse
Joringel.
Era uma tarde adorável: o sol brilhava quente nos troncos das árvores
contra o verde-escuro da floresta profunda e os pombos arrulhavam tristemente
nas velhas faias. De vez em quando, Jorinda chorava sem saber por quê. Sentou-
se ao sol, suspirou e Joringel suspirou também. Estavam tristes como se
estivessem perto da morte. Na intensidade de sua emoção, perderam a noção de
onde estavam e não conseguiram encontrar o caminho de volta.
Quando o sol estava quase se pondo, ainda metade acima e metade abaixo
das montanhas, Joringel, procurando o caminho certo, afastou as folhas de um
arbusto e viu o muro do castelo a poucos metros. Foi tamanho o choque que ele
quase desmaiou. No mesmo momento, ouviu Jorinda cantando:
Não demorou muito a velha voltou de mãos vazias. Com voz rouca disse:
Ele implorou, gritou, chorou, mas nada a fazia mudar de ideia. Nem parou
para ouvir e o deixou dizendo: — Ah, o que será de mim?
Ele foi embora dali até uma aldeia onde não era conhecido. Lá encontrou
trabalho de pastor, que conservou durante longo tempo. Muitas vezes voltava
para olhar o castelo, mas nunca se aproximava.
Uma noite, teve um sonho estranho: sonhou que havia encontrado uma
linda flor vermelha com uma pérola aninhada entre as pétalas. No sonho, ele
colhia a flor e levava ao castelo, onde conseguia abrir qualquer porta e qualquer
cesto que tocasse com a flor e libertava Jorinda.
Ele entrou e parou no triste pátio, tentando escutar o som dos pássaros.
Não foi difícil de ouvir. Seguiu o canto e logo se viu numa grande sala onde
estavam todos presos em seus sete mil cestos.
Ele atravessou a sala num salto, tocou o cesto com a flor e o cesto se abriu.
ali estava Jorinda, linda como sempre. Ela passou os braços por seu pescoço e os
dois trocaram um abraço apertado.
Ele soltou todos os outros pássaros e logo Joringel e Jorinda voltaram para
casa, onde se casaram e viveram felizes por muitos e muitos anos.
***
Este conto é estranho, na medida em que não tem nada de folclórico. Por um lado, é o único co
Grimm em que existe uma descrição da natureza (“Era uma tarde adorável: o sol brilhava quen
nenhuma função, só pela descrição em si; por outro lado, o comportamento dos amant
apresentar um excesso de sensibilidade que só pode pertencer ao romantismo literário. Simple
dá a sensação de um conto folclórico.
A fonte dos Grimm para esse conto é, em parte, a autobiografia de Johann Heinrich J
1817), um médico, amigo de Goethe, mais conhecido por seu pseudônimo, Heinrich Stilling. O
busca da flor vista em sonho lembra a obra arquetípica do romantismo alemão Heinric
(1802), de Novalis. Esse tipo de coisa estava no ar na época dos irmãos Grimm. “Jor
poderia ser trabalhada para ficar mais extensa, mas isso afastaria ainda mais a história
folclore e a definiria claramente como um romance de fantasia. Por mais que se faça
jamais desaparecerá o sabor literário com que nasceu.
O anel vermelho dos versos se refere ao olho da pomba, cuja íris parece mesmo ter u
vermelho.
Era uma vez um homem que tinha jeito para tudo. Havia lutado na guerra e
agido com bravura, mas, quando a guerra terminou, ele foi dispensado com três
tostões e mais nada.
Furioso, ele marchou para a floresta. Não tinha ido muito longe quando
viu um homem arrancar seis árvores como se fossem espigas de trigo. O soldado
disse a ele: — Quer ser meu criado e vir comigo?
— Claro — o homem respondeu —, mas primeiro tenho de levar estes
gravetos para minha mãe.
Então, pegou uma árvore e amarrou em torno das outras, pôs o maço
inteiro no ombro e levou embora. Pouco depois voltou e foi embora junto com
seu senhor, que disse: — Nós dois com certeza vamos nos dar bem no mundo.
— Ah, venha comigo — disse o soldado. — Se nós três formos juntos, com
certeza vamos nos dar bem no mundo.
— Bom, sabe, sou corredor. Vou depressa, não tenho como evitar. Com as
duas pernas corro mais depressa do que um pássaro.
— Por que está usando seu boné desse jeito? — o soldado perguntou. —
Está maluco?
— Ah, tenho uma boa razão — disse o homem. — Se puser o boné direito,
vai cair uma geada tão forte, de repente, que os passarinhos vão morrer gelados
no ar.
— Bom, não podemos deixar um dote desses ficar sem uso — disse o
soldado. — Junte-se a nós que vamos nos dar bem no mundo.
Ele então foi com o resto e logo chegaram a uma cidade onde o rei tinha
acabado de fazer uma proclamação. Quem disputasse uma corrida com sua filha
e vencesse casava com ela e herdava o reino. Se perdesse a corrida, porém, perdia
a cabeça também.
O soldado achou que valia a pena arriscar, então foi até o rei e disse: — Eu
aceito o desafio, majestade, com a condição de que um dos meus criados corra
em meu lugar.
— Como quiser — disse o rei —, mas com uma condição também. Se ele
perder, vocês dois vão para a forca.
Eles concordaram: cada corredor recebia uma caneca com a qual tinha de
trazer água de uma fonte que ficava muito longe. Quem chegasse de volta
primeiro vencia. Quando estava tudo pronto, o soldado prendeu a perna do
criado no lugar e disse: — Não se distraia no caminho. É a sua cabeça que está
em jogo, lembre bem.
O corredor e a filha do rei pegaram suas canecas e partiram. Depois de
Enquanto isso, a filha do rei, que era muito melhor na corrida do que as
pessoas comuns, chegou à fonte. Encheu sua caneca e partiu imediatamente para
o trajeto de volta e logo passou por seu oponente dormindo profundamente.
— A filha do rei não deve nos vencer! — ele exclamou e carregou sua arma,
fez pontaria e atirou no crânio de cavalo debaixo da cabeça do corredor,
acordando-o com um tranco.
O corredor se sentou, piscou os olhos, viu que sua caneca estava vazia e que
a filha do rei o tinha ultrapassado. Sem nem se preocupar, correu de volta à
fonte, encheu a caneca outra vez e voltou depressa à cidade, conseguindo vencer
a filha do rei por dez minutos.
O rei não ficou nada satisfeito de perder sua filha para um soldado plebeu, e
a filha dele gostou ainda menos da história. Então, os dois se puseram a pensar
juntos para encontrar um jeito de se livrar do soldado e de seus companheiros.
Por fim, o rei falou: — Ah! Já sei. Não se preocupe, vamos fazer com que eles
nunca mais voltem para casa.
Foi até os seis e disse: — Quero ter a certeza de que vocês estão se
divertindo. Comam, bebam, alegria!
Então os levou a uma sala que tinha o piso de ferro, as portas eram feitas de
ferro também e as janelas tinham pesadas grades de ferro. No meio da sala, havia
uma mesa com um esplêndido banquete, e o rei disse: — Entrem e aproveitem!
Assim que estavam todos dentro, ele mandou trancar as portas. Depois
chamou o cozinheiro, mandou que acendesse um fogo na sala abaixo daquela e
ficasse alimentando a fogueira e continuasse alimentando, até o ferro ficar
— Bom, ele que tente — disse o homem com o boné de lado. — Vou
trazer uma geada que vai fazer esse fogo ir embora se arrastando de vergonha.
Então pôs o boné direito e veio uma geada tamanha que o calor diminuiu
de imediato e a comida na mesa começou a congelar. Depois de umas duas
horas, o rei achou que eles já deviam estar torrados e mortos, então mandou
abrir a porta para ver. Mas encontrou todos com plena saúde. Na verdade,
disseram, queriam sair e esquentar um pouco porque a sala estava tão fria que a
comida havia congelado nos pratos.
— Achei que tinha mandado você fazer o fogo ficar mais e mais quente!
Quando o rei viu a fogueira crepitando, entendeu que ele ainda não tinha
levado a melhor sobre os seis companheiros e teria de tentar alguma coisa mais
esperta da próxima vez.
— Um criado só?
de uma cas...
De repente, percebeu quem era o homem. “Ah, não!”, o rei pensou. “Esse é
o criado que vai pegar o ouro... e esse é o saco para carregar! Não acredito!”
Pouco a pouco, o tesouro do rei foi trazido para fora e o homem forte o
jogava dentro do saco.
— Ainda não está nem na metade! — disse ele. — Até agora foram só
migalhas. Vamos logo!
Então tiveram de enviar sete mil carroças cheias de ouro de todo o reino e o
homem forte jogou tudo dentro do saco, junto com os bois que puxavam as
carroças.
— Bom, ainda não está bem cheio, mas vai ter de bastar assim — disse ele.
— Melhor não ser ambicioso.
O rei ficou olhando isso tudo e, quando viu que a riqueza de seu reino
estava desaparecendo nos ombros de um homem, perdeu as estribeiras.
— O que é isso que ele está querendo dizer? — disse o soprador. — Mãos
ao alto? Cortar em tiras? Vamos ver se vocês gostam de rodar pelo ar.
Ele tampou uma narina, soprou com a outra e em poucos momentos todos
os cavalos e cavaleiros estavam rodando no ar como se um furacão os jogasse
para cá, para lá, por todo lado. Alguns foram muito alto, outros se espalharam
pelos arbustos e um sargento gritou: — Misericórdia! Misericórdia!
Ele era um sujeito valente que tinha sido ferido nove vezes a serviço do rei,
de forma que o soprador e seus companheiros não queriam humilhá-
lo e o fizeram descer suavemente.
— Agora volte e diga para o rei mandar quantos regimentos quiser — disse
o soprador —, que eu faço todos voarem até as nuvens como fiz com os seus
soldados.
Quando o rei recebeu a mensagem, disse: — Ah, deixe que vão embora.
***
Tipo de conto: ATU 513A, “Seis que correm o mundo”.
Histórias semelhantes: “Os sete Semyon”, de Alexander Afanasiev (Russian Fairy Tales
vigaristas”, de Italo Calvino (Italian Folktales); “Os seis criados”, de Jacob e Wilhelm Grimm
and Household Tales).
A história também funciona muito bem no cinema, onde tramas que envolvem o recrutamento
um grupo de especialistas em alguma tarefa impossível sempre são populares. Onze homens e
(Steven Soderbergh, 2001) foi uma versão de sucesso. Da mesma forma, o foram tamb
condenados (Robert Aldrich, 1967). O filme francês Micmacs — Um plano complicado (Jean
Pierre Jeunet, 2009) é mais inventivo e sedutor que ambos.
Hans Jogador
Era uma vez um homem chamado Hans que era louco por jogo, a tal ponto que
todo mundo o chamava de Hans Jogador. Ele não conseguia parar de jogar
cartas ou dados e acabou perdendo todas as suas posses, tigelas, panelas, mesas e
cadeiras, a cama e todo o resto da mobília e por fim a própria casa.
Na véspera do dia em que os credores iam tomar posse de sua casa, Nosso
Senhor e São Pedro apareceram na porta e pediram acomodação para a noite.
Nosso Senhor disse que não se importava e que além do mais trariam sua
própria comida. São Pedro deu a Hans três moedas e pediu que fosse à padaria
comprar um pão. Ele saiu com boa vontade, mas no caminho passou pela casa
onde jogava um bando de malandros que havia ganhado a maior parte de suas
posses. Quando o viram passando, chamaram: — Ei! Hans! Estamos jogando!
— Não posso — disse ele. — Não me sobrou nada. E estas três moedas
nem são minhas.
— Não tem importância. Valem mesmo assim. Entre!
Claro que ele não conseguiu resistir. Esse tempo todo Nosso Senhor e São
Pedro estavam esperando e, quando Hans não voltou, foram à procura dele. O
dinheiro já tinha ido embora e, quando ele viu os dois chegando, fingiu que
estava procurando as moedas numa poça de água e ficou lá, curvado, cutucando
a água com uma vara. Não adiantou nada, porém: Nosso Senhor sabia que ele
tinha perdido o dinheiro na mesa de jogo.
São Pedro lhe deu mais três moedas e como ele sabia que estavam vigiando,
dessa vez não jogou e comprou o pão como tinham mandado. Depois, voltaram
para casa, sentaram no chão e comeram um jantar de pão seco.
— Hans, será que tem um pouco de vinho em casa? — disse Nosso Senhor.
— Não, Senhor, sinto dizer. Foi uma das primeiras coisas que apostei no
jogo. Os barris no meu porão estão secos.
— Bom, vá dar uma olhada — disse Nosso Senhor. — Acho que vai
encontrar vinho lá embaixo.
— Acho que vale a pena dar uma olhada — insistiu Nosso Senhor.
Por educação, Hans desceu e fez o que Nosso Senhor mandou. Ficou
assombrado ao descobrir que não só havia vinho, como era da melhor qualidade.
Olhou em torno, em busca de alguma coisa para levar o vinho, tirou as teias de
aranha de uma velha jarra esmaltada e encheu até em cima. Os três passaram a
jarra entre si, conversando até sentirem sono, e dormiram nas tábuas nuas do
chão.
— Ah, tudo bem — disse Nosso Senhor e fez surgir o baralho e os dados
com um estalar de dedos.
Depois disso, Hans começou a apostar como nunca antes. Ganhava todas as
apostas que fazia e não demorou muito para ser dono de meio mundo. São
Pedro ficara de olho nele e disse ao Senhor: — Senhor, desse jeito não é possível.
Qualquer dia ele vai ganhar o mundo inteiro. Temos de mandar a Morte buscar
Hans Jogador.
Acontece que Hans estava com uma ótima cartada na mão; quando sentiu
os dedos ossudos agarrando seu ombro, olhou para cima, viu a Morte e disse: —
Ah, é você. Eu já vou. Faça um favor: tem uma árvore lá fora, cheia de lindas
Então, a Morte trepou na árvore e é claro que não podia descer. Hans a
deixou lá por sete anos e durante todo esse tempo ninguém morreu.
Por fim, São Pedro disse a Nosso Senhor: — Senhor, isso já foi longe
demais. Vamos ter de fazer alguma coisa.
Nosso Senhor concordou e disse a Hans que tinha de deixar a Morte descer
da árvore. Hans teve de obedecer, claro, e a Morte foi para cima dele
imediatamente e o estrangulou.
E assim partiram para o outro mundo. Quando chegaram lá, Hans foi
diretamente para o portão do céu e bateu.
— Quem é?
— Hans Jogador.
Então Hans não tinha mais para onde ir senão para o inferno e, quando
bateu na porta de lá, deixaram que entrasse na mesma hora. Não havia ninguém
em casa, além do próprio Diabo e todos os diabos feios, porque os diabos
bonitos tinham ido para a terra tratar de negócios. Logo que Hans entrou,
sentou-se para jogar. O Diabo não tinha nada para apostar além de seus diabos
feios, e logo todos pertenciam a Hans, porque ele estava jogando com as cartas
que nunca perdiam.
Quando ganhou os diabos feios, ele os levou todos para Hohenfurt, onde
plantam lúpulo. Eles arrancaram todas as estacas de lúpulo, subiram até o céu e
começaram a usá-las como alavancas nas pedras da muralha.
As pedras estavam começando a ceder, então São Pedro falou: — Vamos ter
de deixar ele entrar. Não temos escolha.
Então deixaram que entrasse. Mas, assim que entrou, Hans começou a jogar
de novo e logo havia tantos gritos e discussões entre os cidadãos que os anjos não
conseguiam escutar nem o próprio pensamento.
São Pedro foi a Nosso Senhor outra vez.
Então o pegaram e jogaram para fora do portão, lá de cima até a terra. Sua
alma se espatifou em pedaços e os cacos voaram para todo lado; de fato, existem
até hoje na alma de cada jogador vivo.
***
Simon Sechter, que registrou originalmente este conto, era um compositor e professor
Weitra, na Baixa Áustria, e os Grimm a transmitiram no dialeto da versão que chegou a eles:
Is is emohl e Mon gewön, der hot ninx us g’spielt, und do hobend’n d’Leut nur in ‘Spielhansl’
und wal er gor nit afg’hört zen spielen, se hot e san Haus und ullss vespielt.
Um dos primeiros impulsos dos Grimm para colecionar contos folclóricos era, claro, seu inter
pescador e sua mulher” e “O junípero” , em alguma variante dialetal para tentar imitar o jeito d
alemão. Minha sensação é de que se alguém estiver realmente interessado nesse aspect
provavelmente procurar no original em vez de fazer qualquer laboriosa tentativa de replicar se
também que a maioria dos leitores que escolhem uma versão iria preferir ler a que apresentass
de obstáculos possível.
A outra coisa a dizer sobre este conto é que ele é vivo, rápido e engraçado.
Era uma vez um homem que ia partir para uma longa viagem. Antes de ir, ele
perguntou a suas três filhas o que gostariam que trouxesse de presente. A mais
velha queria pérolas, a segunda pediu diamantes e a mais nova disse: — Pai, eu
gostaria de uma cotovia cantante e saltitante.
O pai disse: — Se encontrar uma, eu trago.
gritou o leão.
— Ouro não me serve para nada — disse o leão. — Quero a primeira coisa
que encontrar quando voltar para casa. Me prometa isso e pode ficar com sua
vida. E sua filha pode ficar com a cotovia também.
— Mas pode não ser ela — disse o criado, que estava assustado. — Pode ser
um cachorro ou um gato!
E quando chegou em casa e entrou, a primeira a vir saudá-lo não foi outra
senão a filha mais nova, a mais querida. Ela veio correndo, deu-lhe um beijo e
um abraço e, quando viu que ele havia trazido uma cotovia cantante e saltitante,
ficou transbordante de alegria.
— Minha filha querida — disse —, esse pássaro me custou muito caro. Para
consegui-lo tive de prometer você a um leão feroz e, quando você for até ele, vai
ser dilacerada e devorada.
Ele contou a ela tudo o que havia acontecido e implorou para que não fosse
para o leão, de jeito nenhum.
Um dia, o marido disse a ela: — Amanhã, sua irmã mais velha vai se casar e
vai haver uma festa na casa de seu pai. Se quiser, os leões levam você até lá.
Ela disse que gostaria de ver o pai novamente e partiu, acompanhada pelos
leões. Foi uma grande alegria quando ela chegou, porque todos acharam que ela
havia sido dilacerada e estava morta havia muito tempo, mas ela contou tudo
sobre seu lindo marido e a vida que levavam. Ficou com sua família até o fim da
comemoração do casamento e depois voltou para a floresta.
Quando a segunda filha se casou, ela foi convidada de novo e disse ao leão:
— Ah, por favor, venha! — ela pediu. — Eu protejo você. Não deixo
nenhum raio de luz te tocar, prometo.
O casamento foi realizado com grande alegria e o cortejo saiu da igreja para
a casa do pai da noiva. Ardiam tochas e brilhavam lanternas e quando passaram
pelo quarto do príncipe, um único raio de luz, não maior que um fio de cabelo,
passou pela fresta e o tocou. E quando sua esposa veio procurá-
lo, não o viu: tudo o que encontrou foi um pombo branco.
O pombo disse: — Tenho de voar pelo mundo durante sete anos. Mas a
cada sete passos, vou derrubar uma pena branca e uma gota de sangue para você
saber onde estou. Se seguir a trilha, poderá me salvar.
O pombo saiu voando pela porta e ela foi atrás dele imediatamente. Como
ele havia dito, a cada sete passos caía uma pena branca e uma gota de sangue para
mostrar o caminho.
Ela o seguiu cada vez mais longe, por todo o vasto mundo, longe de casa.
Não pensava em mais nada além de segui-lo, não olhava de lado, não descansou,
até os sete anos estarem quase esgotados. Esse tempo todo ela esperava que logo
pudesse salvá-
lo, mas estava errada, porque um dia, quando estava andando,
nenhuma pena caiu, nenhuma gota de sangue. Ela olhou para o alto e o pombo
tinha desaparecido.
— Ah, nenhum ser humano pode me ajudar agora — disse ela. E ao dizer
isso, subiu direto para o Sol.
— Sol — disse —, você brilha sobre montanhas, sobre cada fenda e fresta.
— Não — disse o Sol —, não vi o seu pombo, mas vou te dar este cesto.
Ela agradeceu ao sol e seguiu seu caminho até chegar a noite e a Lua brilhar.
Ela disse à Lua: — Lua que brilha toda a noite sobre campos e florestas. Será que
viu meu pombo branco passar voando?
— Não — disse a Lua —, não vi seu pombo, mas vou te dar este ovo.
Ela agradeceu à Lua e seguiu. O vento da noite soprou sobre ela e ela
— Não — disse o vento da noite —, eu mesmo não vi, mas vou perguntar
aos outros ventos. Eles podem ter visto.
Mas antes que a esposa do leão conseguisse dar um passo, a princesa que
tinha sido serpente pegou a mão do príncipe, puxou-o para as costas do grifo e
saíram voando.
Ela disse: — Deus ainda vai me ajudar — e abriu o cestinho que o Sol havia
lhe dado. Dentro havia um vestido dourado que brilhava como o próprio Sol.
A moça pediu para passar a noite no quarto onde o noivo dormia. A noiva
não gostou daquilo, mas queria tanto o vestido que concordou. Porém disse ao
criado do príncipe para dar a ele uma poção para dormir.
Segui você durante sete anos. Fui ao Sol, à Lua, aos quatro ventos perguntando
por você, ajudei você a vencer a serpente. Vai esquecer de mim completamente?
Quando amanheceu, ela foi levada para fora do quarto e teve de entregar o
vestido dourado. Vendo que seu truque não havia adiantado, ela ficou muito
triste e foi para um campo, onde sentou e chorou. Mas então se lembrou do ovo
que a Lua havia lhe dado. Decerto estava agora em grande necessidade, então o
quebrou.
De dentro dele saiu uma galinha com sete pintinhos, todos feitos de ouro.
O príncipe disse: — Bom, esta noite pode jogar a poção pela janela.
Logo encontraram o grifo, subiram nas costas dele e partiram voando para
casa. No meio do mar Vermelho, a esposa lembrou de derrubar a noz.
***
Histórias (um tanto) semelhantes: “As três penas”, de Katharine M. Briggs (Folk Tales
Se fôssemos dar à cotovia mais funções do que ela tem na história (o que não seria nada difíci
podia acompanhar a esposa em seu vagar, podia voar ao Sol e à Lua para ela, podia
serpente a olhar pela janela e ver a galinha de ouro e os pintinhos, por exemplo), teríamos de e
em nossas mentes a relação entre a mulher, o leão e a cotovia. No conto existem poucas pistas
A pastora de gansos
Havia uma velha rainha, cujo marido morrera muitos anos antes. Tinha uma
linda filha, e quando a filha cresceu ficou noiva de um príncipe que morava
muito longe. Logo chegou o momento do casamento, e a filha teve de partir
para a terra estrangeira onde morava o príncipe. A velha rainha embalou todo
tipo de coisas preciosas, ouro e prata, belos cálices e joias raras de todo tipo, tudo
o que era apropriado para um dote real, porque amava sua filha de todo o
coração.
A princesa estava com tanta sede que fez exatamente isso. A criada não
deixou nem que usasse o cálice.
“Ai, ai!”, a princesa pensou. E as três gotas de sangue responderam: “Se sua
mãe soubesse disso, ia partir seu coração.”
Mas a princesa era humilde. Não disse nada, montou de volta no cavalo.
Seguiram mais alguns quilômetros, mas o dia estava quente, o sol escaldante, e
logo ela ficou com sede outra vez. Quando chegaram a outro regato, ela disse à
criada: — Pode me trazer um pouco de água no cálice dourado?
mais arrogante: — Já disse, não estou aqui para servir a senhora. Se está com
sede, desça e beba sozinha.
Então, quando a princesa quis montar Falada outra vez, a criada disse: — O
que pensa que está fazendo? Esse não é seu cavalo. Eu vou ficar com ele agora. E
pode ir tirando essas roupas bonitas também e passar para mim. Pode usar meus
trapos. Vamos, depressa.
A princesa teve de fazer o que ela mandava, e então a criada a fez jurar pelos
céus não dizer uma palavra sobre isso na corte. Se não jurasse, a criada a mataria
no ato.
O velho rei olhou pela janela e notou que ela estava esperando no pátio.
Achou que era muito bonita, de traços finos e delicados. Então saiu
imediatamente dos aposentos reais e perguntou à noiva quem era a moça que
estava com ela, aquela que estava parada lá embaixo no pátio.
Então, a noiva verdadeira foi posta a cuidar dos gansos junto com o
menino dos gansos, cujo nome era Conrado.
O fato, claro, é que ela estava com medo de que Falada pudesse contar a
verdade sobre seu comportamento com a princesa. Quanto mais tempo ficasse
vivo, maior o risco de a verdade vir à tona.
Então a ordem foi dada e o fiel cavalo tinha de morrer. A princesa real
ficou sabendo disso e, secretamente, prometeu ouro ao abatedor se ele lhe fizesse
um pequeno favor. Na muralha da cidade havia um grande portal escuro pelo
qual ela precisava levar os gansos todas as manhãs. Ela pediu ao abatedor se
poderia pendurar lá a cabeça de Falada, onde ela pudesse vê-
lo ao passar. O
E a cabeça respondeu:
trançado seu cabelo, e prendido num coque, sem nenhum fio solto para
Conrado puxar. Ele então ficou amuado e não disse mais nem uma palavra o dia
inteiro. Quando começou a entardecer, os dois levaram os gansos de volta.
E a cabeça respondeu:
O rei viu tudo e retornou ao palácio. Quando a moça dos gansos voltou ao
entardecer, ele a chamou e perguntou por que fazia essas coisas.
— Não posso contar — disse ela. — É um segredo. Não posso contar para
ninguém. Tive de jurar aos céus que jamais diria uma palavra a respeito. Se não
tivesse jurado, teriam me matado.
O velho rei tentou convencê-la a contar, mas ela não se deixou abalar.
Mas finalmente ele disse: — Vou dizer uma coisa. Não conte seus
problemas para mim; conte para a estufa de ferro ali no canto. Assim você estará
respeitando sua promessa e ao mesmo tempo aliviando o peso de seu coração.
Ela então entrou na velha estufa de ferro, começou a chorar e logo abriu
seu coração.
Então o velho rei chamou seu filho e explicou que sua noiva o iludira, que
não era nenhuma princesa, apenas uma criada. Sua verdadeira noiva estava ali,
aquela que tinha sido pastora de gansos. Quando o filho do rei viu como era
linda a sua noiva verdadeira, e soube que ela havia se portado com virtude, ele se
encheu de alegria.
A falsa noiva disse: — Mereceria nada melhor que ser colocada nua dentro
de um barril cheio de pregos afiados. Depois, ser atrelada a dois cavalos brancos
e arrastada pelas ruas até morrer.
— Pois essa é você — disse o rei. — Você pronunciou sua própria sentença
de morte. Tudo o que descreveu será feito a você.
***
Histórias semelhantes: “Os dois bolos”, de Giambattista Basile (The Great Fairy Tale Traditio
Zipes); “Roswal e Lilian”, de Katharine M. Briggs (Folk Tales of Britain).
Pobre Falada! Merecia melhor sorte. Podemos pensar que ele merecia um papel maior na histó
se ele falasse antes, sua dona não precisasse sofrer tanto.
E embora boa e bela, como era sem dúvida, quanto a empreendimento e vigor, a princesa/pasto
gansos tem de ficar em segundo lugar diante da criada má, que merece uma história mais long
para um contador de histórias tornar atraente um personagem que é uma vítima fraca
discute nem reage. Porém, não se trata de um romance.
O nome “Falada”, com um "L" a mais, foi usado pelo romancista alemão Rudolf Ditz
1947), autor de Jeder stirbt für sich allein (Todo homem morre só, 1947) em seu pseu
Fallada.
Pele de urso
Era uma vez um rapaz que se alistou como soldado, lutou bravamente e estava
sempre no fronte quando as balas vermelhas em brasa choviam. Enquanto
durou a guerra tudo foi bem, mas quando a paz foi assinada, ele foi dispensado.
O capitão disse que ele podia ir embora se quisesse. Seus parentes tinham
morrido e ele não tinha mais casa, de forma que foi até seus irmãos e perguntou
se podia morar com eles até haver nova guerra.
Mas seus irmãos tinham o coração duro e disseram: — O que nós temos a
ver com seus problemas? Não precisamos de você aqui. Vá embora, suma.
Tudo o que restou ao soldado foi seu mosquete, que ele pôs ao ombro e saiu
pelo mundo. Logo chegou a um matagal onde não havia nada para ver além de
um círculo de árvores. Sentou-
se debaixo delas pensando em seu destino e
sentindo muita pena de si mesmo.
“Não tenho dinheiro, nem futuro”, pensou. “Só sei guerrear, mas, se tudo o
que querem é paz, eu sou inútil. Acho que vou morrer de fome.”
— Sei o que você quer — ele disse ao soldado —, e você pode conseguir
tudo, todo o ouro e propriedades que quiser, mas primeiro tem de me mostrar
até que ponto vai sua valentia. Não vou dar o meu dinheiro para alguém que sai
correndo ao primeiro sinal de perigo.
— Bom, sou um soldado e minha profissão é não ter medo de nada. Então,
pode me testar se quiser.
— Ah, não — disse o soldado —, vou fazer cócegas no seu focinho, feioso.
Fez pontaria com o mosquete e deu um tiro no urso. Atingiu seu focinho, e
ele caiu imediatamente.
— Estou vendo que não lhe falta coragem — disse o estranho —, mas
ainda não acabei. Tem mais uma condição.
Então, o Diabo tirou a pele do urso e disse: — Você tem de usar esta pele
de urso como manto e dormir em cima dela também, não pode deitar em
nenhuma outra cama. E vai se chamar Pele de Urso.
Ia aonde bem entendia, fazia o que queria e gastava tudo o que achava no bolso.
Durante o primeiro ano, ele até que estava bem, mas no segundo ano,
começou a parecer um monstro. Seu rosto estava quase inteiramente coberto
por uma longa barba áspera, o cabelo opaco e embaraçado, as unhas como
garras, e tão sujo que, se semeassem agrião em seu rosto, teria brotado. Ao vê-lo,
todo mundo estremecia e saía correndo. Porém, sempre dava dinheiro aos
pobres e pedia que rezassem para que ele ficasse vivo durante sete anos, e como
pagava à vista e em dinheiro tudo o que queria, sempre encontrava abrigo.
num abrigo no pátio, com a condição de que não aparecesse para ninguém.
Pele de Urso falou com bondade; o velho sentou de novo e contou para ele
os seus problemas. Pouco a pouco, o velho havia perdido todo o dinheiro que
tinha e agora ele e as filhas estavam à beira de passar fome. Não podia pagar a
conta da estalagem e tinha certeza de que seria mandado para a prisão.
Pele de Urso gostou de ouvir falar de filha, então foi junto com o velho.
Porém, quando a filha mais velha o viu, deu um grito e saiu correndo. A
segunda filha olhou Pele de Urso de alto a baixo e disse: — Quer que eu case
com uma coisa dessas? Ele nem parece um homem. Prefiro casar com aquele
urso que esteve aqui uma vez, lembra? Tinham raspado todo o pelo dele, usava
farda de hussardo e luvas brancas. Com ele eu até podia me acostumar.
A filha mais nova, porém, disse: — Querido pai, ele deve ser um homem
bom se ajudou o senhor desse jeito. E se prometeu a ele uma noiva, estou pronta
para cumprir sua palavra.
Era uma pena o rosto de Pele de Urso estar coberto de pelos e sujeira
porque senão pai e filha teriam visto como o coração dele saltou de alegria ao
ouvir essas palavras. Ele tirou um anel do dedo, quebrou em dois, deu um
pedaço a ela e guardou a outra metade para ele. Escreveu o nome dela na sua
metade e o nome dele na dela, e pediu que ela cuidasse bem daquilo.
— Melhor tomar cuidado — disse a irmã mais velha. — Se ele pegar sua
mão, pode esmagar com a pata.
— E é melhor você obedecer. Eu não queria estar no seu lugar quando ele
começar a rosnar.
A futura noiva não dizia nada e não deixava que isso a perturbasse. Quanto
a Pele de Urso, ele vagou por todo o mundo, fazendo o bem sempre que podia e
dando generosamente aos pobres para que rezassem por ele.
Finalmente, ao amanhecer do último dia dos sete anos, foi uma vez mais ao
matagal e sentou debaixo do círculo de árvores. Logo o vento começou a uivar e
lá estava o Diabo de novo, carrancudo com ele.
— Aqui está seu paletó — disse, atirando o velho paletó de Pele de Urso
para ele. — Agora me dê o verde.
— Não tão depressa — disse Pele de Urso. — Primeiro você vai me limpar.
um coronel, no mínimo, e o levou para a sala de estar onde suas filhas estavam
sentadas.
Ele se sentou entre as duas mais velhas. Elas ficaram muito agitadas com ele.
Serviram-
lhe vinho, escolheram os melhores pedaços para pôr em seu prato,
flertaram, deram sorrisos afetados e acharam que nunca tinham visto homem
mais bonito. Mas a filha mais nova ficou sentada diante dele na mesa, sem
levantar os olhos, sem dizer uma palavra.
Assim que se viu a sós com sua futura noiva, o visitante pegou a sua metade
do anel e pôs dentro do copo de vinho que entregou a ela do outro lado da
mesa. Ela pegou o vinho, bebeu e quando encontrou a metade do anel no fundo
do copo, seu coração bateu mais depressa. Ela pegou a sua metade, que usava
pendurada numa fita no pescoço, e juntou as duas. E as duas metades se
encaixavam perfeitamente.
O estranho disse: — Sou seu noivo, que você conheceu como Pele de Urso.
Pela graça de Deus, retomei minha forma humana e limpa outra vez.
Nessa noite, ouviu-se uma batida na porta. Pele de Urso abriu e lá estava o
Diabo com seu paletó verde.
— Vim só agradecer. Agora tenho duas almas para brincar, em vez de uma só.
***
Fonte: história contada aos irmãos Grimm pela família Von Haxthausen e uma história de
Christoffel Grimmelshausen, “Vom Ursprung des Namens Bärnhäuter” (A origem do nome Pe
1670).
Parece uma curiosa barganha com o Diabo. Sem dúvida deveria haver jeitos mais fáceis e men
para conseguir a alma do soldado. Por outro lado, o soldado é um sujeito piedoso e caridoso e
fosse fácil de seduzir com as maneiras diabólicas usuais. A danação das duas irmãs parece dur
elas têm de prestar contas de todos aqueles longos anos de gozação.
A versão de Calvino é generosa e inventiva. Dela tomei emprestada a sugestão de que apenas
não seria capaz de remover sete anos de sujeira.
Os dois companheiros de viagem
A montanha e o vale nunca se encontram, mas os filhos dos homens, tanto bons
como maus, se encontram o tempo todo. Assim foi que um sapateiro e um
alfaiate um dia se encontraram em suas viagens. O alfaiate era um sujeitinho
bonito, sempre alegre e cheio de animação. Ele viu o sapateiro vindo na direção
dele do outro lado da rua e pela forma da mochila sabia qual era sua profissão,
então começou a cantar uma pequena canção provocadora:
Mas o sapateiro não era do tipo que aceitasse uma piada. Ralhou com o
alfaiate e sacudiu o punho para ele. O alfaiate riu e passou para ele sua garrafa de
schnapps.
— Olhe, tome um gole disso aqui — disse. — Sem ofensa. Tome um gole
e engula a sua raiva.
— Por mim, tudo bem — disse o alfaiate —, contanto que você não se
importe de ir para as grandes cidades, onde há muito trabalho.
— Era isso mesmo que eu tinha em mente. Não se ganha nada nas cidades
pequenas e o pessoal do campo prefere mesmo andar descalço.
Tinham muito tempo e pouca comida. Sempre que chegavam a uma cidade,
procuravam trabalho e, como o alfaiate era um sujeito envolvente com
bochechas rosadas, encontrava trabalho com bastante facilidade. E se tinha sorte,
ganhava um beijo da filha do patrão quando ia embora, desejando uma boa
viagem.
Sempre que encontrava de novo o sapateiro, era sempre o alfaiate que tinha
mais dinheiro no bolso. O sapateiro, mal-humorado, fazia uma cara feia e dizia:
— Quanto mais malandro, mais sorte.
Então cada um levou o pão que estava disposto a carregar e partiram para
dentro da floresta. Debaixo das árvores, o silêncio era como o de uma igreja.
O alfaiate, porém, não podia estar mais alegre. Ria, cantava, seguia na
frente com agilidade nos passos, assobiando com uma folha de grama entre os
lábios. Ele pensou: “Deus no céu deve estar contente de me ver tão feliz.”
vendo aonde isso te levou. Passarinho que canta de manhã, o gavião pega antes
da noite.
De fato, foi impiedoso. Na quinta manhã, o pobre alfaiate mal podia ficar
em pé e sua voz era um coaxar. Todo o rosado das bochechas havia desaparecido;
estava branco como papel, os olhos vermelhos.
Então, o sapateiro disse: — Bom, você está encrencado e é tudo culpa sua.
Vou dizer uma coisa: te dou um pedaço de pão. Mas, em troca, arranco seu olho
direito.
Comeu a fina fatia de pão que o sapateiro lhe deu e sentiu-se um pouco
melhor, foi capaz de se levantar. E ao continuar andando, pensou que ainda
podia enxergar bastante bem com o olho esquerdo, afinal.
Mas no sexto dia a fome tomou conta dele outra vez e mais forte que antes.
Nessa noite ele simplesmente caiu e ficou caído. Na sétima manhã estava tão
fraco que não conseguia se levantar. Sua morte não estava longe.
O sapateiro disse: — Vou ter pena de você. Não aguento ver o estado em
que está e vou te dar mais uma fatia de pão. Mas não a troco de nada. Você
ainda tem um olho e eu quero esse igual ao primeiro.
O pobre alfaiate sentiu que ia perder toda a sua vida. O que tinha feito de
errado para passar por isso? Devia ter ofendido a Deus de algum jeito, então
rezou, pedindo perdão, e disse ao sapateiro: — Tudo bem, então. Arranque meu
outro olho. Mas lembre bem, Deus vê tudo o que você faz e virá o dia em que
ele castigará você por essa má ação. Nos bons momentos, não reparti com você
tudo o que eu tinha? A costura é um ponto depois do outro, e eu sabia costurar
muito bem, mas se não tiver meus olhos, não vou poder costurar, terei de virar
mendigo. Pelo menos não me deixe aqui sozinho quando eu estiver cego, ou
morrerei de fome.
O sapateiro não ligou a mínima para essa conversa de Deus. Tinha tirado
Deus de seu coração fazia muito tempo. Pegou a faca e arrancou o outro olho do
alfaiate. Depois lhe deu um pedacinho de pão, estendeu uma vareta para o
alfaiate segurar e assim o foi guiando pelo caminho.
— Bom, vou te contar uma coisa que vale a pena saber. O orvalho que cai
em cima da gente durante a noite e depois pinga na grama abaixo de nós tem
uma propriedade especial. Se um cego lavar o olho com esse orvalho, recupera a
visão. Se algum cego soubesse disso, quantos você acha que iam se juntar em
volta da forca toda manhã?
O alfaiate mal podia acreditar em seus ouvidos. Mas pegou o lenço, apertou
na grama até ficar o mais molhado possível e lavou suas órbitas vazias.
Olhe, sou muito novo ainda e mesmo um alfaiate pequeno e magro como você
é demais para mim. Vai quebrar minha espinha se tentar montar em mim.
Deixe eu ficar maior e mais forte e talvez possa retribuir a você algum dia.
— Ah, então vá, pode ir embora — disse o alfaiate. — Estou vendo que
você é moleque como eu. — Deu um tapa no traseiro do potro e o filhote
escoiceou de prazer e foi embora galopando, saltando moitas e valas até sumir na
distância.
O pequeno alfaiate não comia nada desde o magro pedaço de pão que o
sapateiro havia lhe dado no dia anterior. — A luz do sol enche os meus olhos —
ele disse —, mas não tenho nada para encher minha barriga. A próxima coisa
que eu encontrar, mesmo que seja só meio comestível... Ah! O que é isso?
Era uma cegonha que caminhava, delicada, pelo campo na direção dele. O
— Não sei que gosto tem — disse —, mas vou descobrir. Agora fique
quieta enquanto corto sua cabeça e asso você no fogo.
— Não, por favor, não faça isso — disse a cegonha. — Não é uma boa
ideia. Sabe, eu sou sagrada. Sou amiga de todo mundo e ninguém me faz mal.
Se poupar minha vida, certamente poderei fazer bem a você de algum jeito
diferente.
Minha fome maior e maior, e minha barriga mais e mais vazia. Bom, a próxima
coisa que me aparecer não vai escapar.
Nesse momento, estava passando por uma lagoa onde uma dupla de jovens
patos nadava ao amanhecer. Um deles chegou um pouco perto demais e o
alfaiate o agarrou depressa.
— Poupe meu filho! — ela gritou. — Pode imaginar como a sua pobre mãe
ia se sentir se alguém quisesse comer você?
— Ah, calma — disse o bondoso alfaiate. — Pode ficar com seu filho.
abelhas.
“Mel!”, ele logo pensou. “Graças a Deus! É a minha recompensa por salvar
o patinho.”
Mas mal havia dado um passo para a árvore e a abelha-rainha saiu voando
da colmeia.
— Se tocar no meu povo e destruir nosso ninho — disse ela —, vai se
arrepender. Vai sentir dez mil agulhas em brasa entrando na pele. Mas nos deixe
sozinhas e siga seu caminho e um dia faremos um favor em troca.
O alfaiate não tinha como dizer não. — Três pratos vazios e nada no
quarto prato — ele disse a si mesmo —, é um jantar bem miserável.
Era um mestre em sua profissão, de forma que não demorou muito para ser bem
conhecido e todas as pessoas elegantes queriam um casaco ou um paletó novo
feito pelo jovem alfaiate. E dia a dia sua fama crescia.
— Não dá para ficar mais inteligente — disse —, então só posso ficar mais
realizado.
O auge do seu sucesso veio quando o rei o nomeou Alfaiate Real da corte.
Mas neste mundo acontecem coisas estranhas. No mesmo dia em que foi
nomeado pelo rei, seu antigo companheiro foi também nomeado Sapateiro
Real. Quando o sapateiro viu o alfaiate e percebeu que tinha dois olhos sadios,
ficou assombrado e alarmado. E sentiu a consciência pesar. “Antes que se vingue
de mim”, pensou o sapateiro, “vou cavar um buraco para ele.”
Mas quem cava um buraco para os outros acaba caindo dentro dele. Uma
noite, quando estava escurecendo, o sapateiro foi até o rei e disse,
humildemente: — Majestade, não gosto de falar mal de ninguém, mas esse
alfaiate anda dizendo que é capaz de encontrar a coroa de ouro que foi perdida
há tanto tempo.
— Soube que você está dizendo por aí que pode encontrar minha coroa de
ouro — falou o rei. — Bom, é melhor que seja verdade, senão você pode sair da
“Ah, não”, pensou o alfaiate, “estou vendo para que lado sopra o vento.
Não há por que continuar aqui se ele quer que eu faça o impossível. Vou
embora agora mesmo.”
Fez a sua trouxa e se encaminhou para o portão da cidade. Assim que saiu,
porém, não conseguiu deixar de lamentar ter de abandonar aquela cidade onde
havia se dado tão bem. Estava andando e pensando nisso quando chegou à lagoa
onde havia encontrado os patos. Naquele momento, a velha mãe pata cujo filho
ele havia poupado estava na grama cuidando das penas e o reconheceu
imediatamente.
— Bom dia — disse ela. — O que houve? Por que está assim tão
desanimado?
— Ah, pata — ele disse —, não vai achar estranho quando eu contar tudo o
que aconteceu. — E contou tudo o que tinha acontecido.
— Cuidado agora — ela disse aos patinhos. — Uns deste lado, outros do outro...
Quando o sapateiro viu que seu primeiro plano havia falhado, pensou em
outro. Foi ao rei e disse: — Majestade, sinto dizer que o alfaiate anda se gabando
de novo. Ele agora diz que é capaz de fazer uma maquete de cera do palácio real,
com cada sala, cada detalhe, móveis e tudo, por dentro e por fora.
O rei mandou chamar o alfaiate e mandou que fizesse uma maquete assim,
com cada detalhe, móveis e tudo.
O alfaiate pensou: “A coisa está ficando cada vez pior. Quem aguenta uma
coisa assim?”
Pôs a mochila nas costas e foi embora de novo. Chegou até a árvore oca e
estava tão deprimido que se deixou cair no chão e baixou a cabeça. As abelhas
que entravam e saíam da colmeia devem ter contado à rainha, porque logo ela
saiu e pousou num ramo ao lado dele.
— Volte para a cidade agora — ela disse —, e venha aqui de novo amanhã
de manhã. Traga um pano bem grande. Não se preocupe. Vai dar tudo certo no
fim.
Ele então virou e foi embora. Enquanto isso, as abelhas voaram até o
castelo, entraram pelas janelas, zumbiram por toda parte, observando cada
detalhe. Voaram todas de volta para a colmeia, onde começaram a modelar o
palácio em cera. Trabalhavam tão depressa que quem olhasse acharia que a
maquete estava crescendo sozinha. À noite, estava pronta. Quando o alfaiate
voltou na manhã seguinte, mal podia acreditar no que viu. O edifício todo
estava ali, das telhas do telhado aos ladrilhos do pátio, não faltava nem um único
detalhe, nem um simples prego da parede. E além disso, era tudo branco e
delicado como um floco de neve, com um delicioso aroma de mel.
O sapateiro se viu vencido mais uma vez, mas não desistiu. Foi ao rei e
falou: — Sinto ter de contar isto ao senhor, majestade, mas o alfaiate anda
falando de novo. Ouviu falar que não há água debaixo do pátio do castelo, mas
disse que isso não é nada para uma pessoa como ele. Que se quiser pode fazer
— Fiquei sabendo que você falou que é capaz de fazer jorrar uma fonte no
pátio. Se não fizer isso, eu vou parecer um idiota e não aceito uma coisa dessas.
Então faça surgir uma fonte de água cristalina lá como prometeu, senão haverá
uma fonte é do seu sangue quando o carrasco real cortar fora sua cabeça.
O pobre alfaiate saiu correndo pelo portão da cidade, o mais depressa que
podia. Dessa vez, sua vida estava em risco e ele não conseguiu impedir as
lágrimas que rolavam pelo rosto.
Vagou pelos campos e não fazia a menor ideia de como cumprir essa última
ordem. Ao passar por um pasto todo verde, o potro que ele havia libertado
algum tempo antes veio galopando. Havia se tornado um belo cavalo castanho.
O alfaiate então foi para o livro de ouro do rei outra vez, mas não durou
muito. Dessa vez, o malvado sapateiro deu uma olhada bem calculista na família
real. O rei tinha muitas filhas, cada uma mais bonita que a outra, mas nenhum
filho, e sabia-se que Sua Majestade queria muito um príncipe para ser seu
sucessor no trono. Então o sapateiro foi até ele e falou: — Majestade, acho que
não vai gostar do que vou contar agora, mas não posso esconder. O alfaiate
insolente anda dizendo que, se quisesse, poderia fazer trazerem do ar um filho
Aquilo foi demais para o rei. Mandou chamar o alfaiate outra vez.
— Você anda falando sobre a minha sucessão. Soube que disse que pode me
trazer um filho. Bom, você tem nove dias. Me traga um filho dentro desse prazo
e pode casar com a princesa mais velha.
Fez sua trouxa e partiu novamente. Quando chegou ao campo, viu sua
amiga cegonha caminhando lentamente para um lado e outro, parecendo um
filósofo. De vez em quando ela parava, olhava fixamente para um sapo, pegava-
o e engolia.
— Estou vendo que está levando tudo o que tem. Vai deixar a cidade?
O pequeno alfaiate voltou para casa muito animado e no dia marcado foi
ao palácio. Assim que chegou, ouviu uma batida na janela e lá estava a cegonha.
Antes de voar embora, a cegonha pegou outra trouxa das costas e entregou
ao rei. Nela havia pentes, espelhos, fitas e mil outras coisas, presentes para todas
as princesas, menos para a mais velha, porque seu presente era o alfaiate para
marido.
***
Tipo de conto: ATU 613, “Os dois viajantes”, continuando como ATU 554, “Os animais agrad
Fonte: história contada aos irmãos Grimm por um estudante chamado Mien, de Kiel.
Este conto só aparece na quinta edição da coleção dos Grimm, em 1843. É uma das
vigorosamente deliciosas; progride sem uma pausa, nem falha, e os dois tipos de conto
costurados que não se percebe a junção. O próprio pequeno alfaiate ficaria orgulhoso d
Tal como muitos alfaiates de contos, este é pequeno, alegre e sortudo. Tem muito em comum c
outros protagonistas dos Grimm que, como aponta Jack Zipes, “vinham em grande par
camponeses, artesãos e comerciantes. Ao final desses contos, tais protagonistas, homens
passam por um aumento de fortuna que lhes permite conquistar uma esposa ou marido, juntar
poder... A aquisição de poder por figuras da classe mais baixa é legitimada por suas qualidade
de industriosidade, esperteza, oportunismo e franqueza” (The Brothers Grimm, p. 114-
115).
Isso sem dúvida descreve o pequeno alfaiate, embora a sorte desempenhe um grande papel em
destino também. Quanto ao sapateiro, ele é um vilão desde o começo. Azar dele.
Era uma vez um fazendeiro que tinha todo o dinheiro e terras que podia desejar,
mas apesar de sua fortuna faltava uma coisa em sua vida. Ele e a esposa nunca
tiveram filhos. Quando encontrava outros fazendeiros na cidade ou no mercado,
sempre caçoavam dele e perguntavam por que ele e a mulher não conseguiam
fazer o que seu gado conseguia regularmente. Não sabiam como? Um dia, ele
acabou perdendo a paciência e, quando voltou para casa, jurou assim: — Vou
ter um filho, nem que seja um ouriço.
Não muito depois, sua esposa realmente teve um bebê, um menino, como
se podia ver pela parte de baixo. A parte de cima, porém, era de ouriço. Quando
ela o viu, ficou horrorizada.
— Não se pode fazer nada — disse ele. — Temos de ficar com ele. Vai ter
de ser batizado como um menino normal, mas não sei quem podemos chamar
para padrinho.
— E o único nome que pode dar a ele — disse ela — é Hans Meu Ouriço.
Quando foi batizado, o padre disse: — Não sei que cama vão dar para ele.
Então Hans Meu Ouriço falou: — Pai, vá ao ferreiro e peça para ele fazer
ferraduras para o galo. Depois que fizer isso, vou embora montado nele e nunca
mais volto aqui.
Quando chegaram à floresta, ele esporeou o galo que voou com ele até o
alto de uma árvore. Lá ficou de olho nos porcos, aprendendo a tocar a gaita de
foles. Passaram-se anos e o pai não fazia ideia de onde ele estava; mas a manada
de porcos crescia mais e mais, e ele tocava cada vez melhor. Na verdade, a
música que fazia era muito bonita.
Um dia, um rei estava passando por ali. Perdeu o rumo na floresta e ficou
tão deslumbrado com aquela música bonita que parou para ouvir. Não fazia
ideia de onde vinha, então mandou um criado procurar o músico. O criado
procurou por toda parte e voltou ao rei.
O criado foi e gritou para o alto da árvore. Hans Meu Ouriço parou de
tocar e desceu para o chão. Fez uma reverência ao rei e perguntou: — Em que
posso ajudar, majestade?
O rei olhou para ele e pensou: “Isso é fácil de prometer. O monstro não
deve saber ler, então posso prometer qualquer coisa.”
Hans Meu Ouriço pegou o papel e ensinou o caminho. O rei partiu e logo
estava em casa de novo.
Ora, o rei tinha uma filha e quando ela viu o pai voltando para casa, se
encheu de alegria e correu para encontrá-lo e dar-lhe um beijo. Ela foi a
primeira pessoa que ele encontrou ao chegar, e claro que o rei pensou em Hans
Meu Ouriço e contou à filha que tinha quase prometido entregá-la a um
estranho animal montado num galo e tocando gaita de foles.
— Mas não se preocupe, filha — disse ele. — Escrevi uma coisa bem
diferente. E aquele ouriço não deve saber ler.
— Muito bom, porque eu não iria mesmo com ele — disse a princesa.
Isso feito, Hans Meu Ouriço seguiu na frente, montado no galo, para levá-
los até o limiar da floresta, onde se despediu do rei e voltou para seus porcos. E
assim o rei chegou em casa em segurança, para alegria dos cortesãos. Esse rei
também tinha uma filha, que era muito bonita e que foi a primeira a correr e
saudar seu amado pai.
Ela o abraçou, beijou e perguntou onde tinha estado e por que demorara
tanto.
— Nós nos perdemos, meu bem — disse ele. — Mas no meio da floresta
encontramos uma coisa estranha: um sujeito metade ouriço, metade menino,
montado em cima de um galo, tocando gaita de foles. E tocando muito bem.
Ele nos mostrou o caminho, sabe, e... Bom, querida, tive de prometer dar a ele a
primeira pessoa que me recebesse. Ah, minha querida, como estou arrependido.
Mas a princesa amava seu pai e disse que não faria com que quebrasse uma
promessa. Iria embora com Hans Meu Ouriço se viesse buscá-la.
Enquanto isso, na floresta, Hans Meu Ouriço cuidava de seus porcos. Esses
porcos tiveram mais porcos, e esses tiveram mais porcos, até que eram tantos que
a floresta estava cheia de porcos de um lado a outro. Nessa altura, Hans Meu
Ouriço resolveu que tinha vivido na floresta tempo suficiente. Mandou um
recado a seu pai, dizendo que devia esvaziar todos os chiqueiros da cidade porque
ele estava indo com uma manada de porcos tão grande que todo mundo que
quisesse carne de porco ou bacon podia pegar de graça.
O pai ficou um pouco incomodado com isso. Achava que Hans Meu
Ouriço tinha morrido. Mas lá veio seu filho, tocando todos aqueles porcos com
ele, e na aldeia foi tamanha matança de porcos que se podiam ouvir os guinchos
a três quilômetros.
Quando estava tudo acabado, Hans Meu Ouriço disse: — Pai, meu galo
precisa de ferraduras novas. Se levar o galo ao ferreiro para trocar as ferraduras,
vou embora e nunca mais volto aqui, enquanto viver.
Então o fazendeiro foi e ficou aliviado porque finalmente ia ver Hans Meu
Ouriço pelas costas.
Quando o galo estava pronto, Hans Meu Ouriço montou nele e foi-se
embora. Andou, andou até chegar ao reino do primeiro rei, o rei da promessa
quebrada. O rei havia dado ordens rigorosas para que qualquer pessoa que se
aproximasse do castelo montada num galo e tocando gaita de foles fosse recebida
com tiros, facadas, bombas, fosse espancada, explodida, estrangulada, tudo para
impedir sua entrada.
Então quando Hans Meu Ouriço apareceu, uma brigada de guardas recebeu
ordem de atacá-lo com baionetas. Mas ele era rápido demais. Esporeou o galo,
que subiu voando e passou por cima dos soldados, por cima da muralha do
palácio, direto pela janela do rei.
O rei disse à filha que era melhor fazer o que Hans Meu Ouriço queria. Ela
colocou um vestido branco e com toda pressa o rei ordenou que aprontassem
uma carruagem com seis cavalos brancos, empilhou dentro dela ouro, prata e as
escrituras de várias belas fazendas e florestas, juntamente com uma dúzia de seus
melhores criados.
Estava errado, porém. Assim que saíram da cidade, Hans Meu Ouriço
mandou a princesa descer da carruagem, mandou os criados recuarem vários
passos e olhar para o outro lado. Depois, rasgou o vestido branco da princesa e a
espetou toda com seus espinhos até ela estar coberta de sangue.
— É isso que ganha por tentar me enganar — disse ele. — Agora suma.
E ela voltou para casa com os criados, com o ouro, a carruagem e tudo,
desonrada. Pior para ela.
Quanto a Hans Meu Ouriço, ele pegou sua gaita de foles, montou no galo e
foi embora para o segundo reino, cujo rei havia se comportado muito diferente
do primeiro. Tinha dado ordens para que qualquer pessoa parecida com um
ouriço que chegasse montada num galo devia ser saudada, recebida com uma
escolta de cavalaria, vivas da multidão, bandeiras acenando, e levada com todas
as honras até o palácio real.
O rei tinha contado à filha qual era a aparência de Hans Meu Ouriço, claro,
mas, quando ela o viu, levou um choque mesmo assim. Porém não se podia
fazer nada: seu pai havia dado a palavra, ela havia dado a palavra. Deu boas-
vindas a Hans Meu Ouriço de todo o coração, casaram-
se imediatamente e sentaram-se lado a lado no banquete.
Então, chegou a hora de ir para a cama. Ele percebeu que ela estava com
medo de seus espinhos.
— Não tenha medo — disse. — Eu faria qualquer coisa, menos machucar você.
— Vou tirar minha pele de ouriço assim que entrar no quarto — explicou.
— Os homens devem pegar a pele, jogar no fogo e ficar vigiando até tudo virar
cinzas.
Quando o relógio bateu onze horas, Hans Meu Ouriço entrou no quarto,
tirou sua pele e pôs em cima da cama. Imediatamente os homens entraram,
pegaram a pele espinhosa, jogaram no fogo e ficaram vigiando até ela queimar
totalmente; e no momento em que o último espinho foi consumido pela última
chama, Hans estava livre.
qualquer jovem normal, só que mais bonito que a maioria. A princesa ficou
exultante.
Na manhã seguinte, levantaram da cama real cheios de alegria e depois do
desjejum comemoraram o casamento outra vez. Com o tempo, Hans Meu
Ouriço sucedeu ao rei e herdou o reino.
Alguns anos depois, levou a esposa até a casa de seu pai. Claro que o
fazendeiro não fazia ideia de quem era ele.
— Ah, não, não, não está certo — disse o fazendeiro. — Eu tinha um filho,
sim, mas ele era igual a um ouriço, todo coberto de espinhos, e saiu pelo mundo
faz muito tempo.
Mas Hans disse que era ele mesmo e contou tantos detalhes de sua vida que
o fazendeiro finalmente se convenceu. O velho chorou de alegria e voltou com
o filho para o seu reino.
***
Histórias semelhantes: “O rei Crina”, de Italo Calvino (Italian Folktales); “O rei porco”, de G
Francesco Straparola (The Great Fairy Tale Tradition, org. Jack Zipes).
A história é descendente distante da antiga história de Cupido e Psique, como as duas variante
deixam claro. Esta versão, porém, adquiriu uma porção de detalhes intrigantes até cheg
Grimm. Tem a característica agilidade e economia de movimentos da narrativa de Doro
(veja nota a “O enigma”
) e um herói maravilhosamente absurdo, cuja galanteria, paciência e charme, sem
falar do talento musical, fez dele um dos personagens mais memoráveis de toda a coleção.
A pequena mortalha
Era uma vez um menino de sete anos, tão bom e bonito que ninguém conseguia
olhar para ele sem amá-
lo. Quanto a sua mãe, ela o amava acima de qualquer
coisa no mundo. Um dia, inesperadamente, ele ficou doente e morreu. Nada
conseguia consolar sua mãe, que chorava noite e dia.
Logo em seguida, não muito depois de ele ser enterrado, o menino
começou a aparecer toda noite nos lugares onde costumava ficar e brincar
quando vivo. Se a mãe chorava, ele chorava também, e quando vinha a manhã,
ele desaparecia.
Mas sua mãe não parava de chorar, e uma noite o menino apareceu com a
mortalha branca com a qual havia sido enterrado e na cabeça uma pequena
guirlanda que tinha sido colocada no caixão com ele.
Ele se sentou na cama e disse: — Ah, mãe, por favor, pare de chorar senão
não vou poder dormir! Minha mortalha está toda molhada com as lágrimas que
você fica derramando em cima dela.
***
Fonte: história da Bavária, contada aos irmãos Grimm por informante desconhecido.
Tostões roubados
Uma vez, o pai, a mãe e os filhos estavam sentados em torno da mesa almoçando
com um amigo da família, convidado deles. Quando o relógio bateu meio-dia, o
visitante viu a porta se abrir e uma criança mortalmente pálida, vestida com
roupas brancas como a neve, entrar na sala. O menino não olhou de lado, não
disse nem uma palavra, mas foi diretamente para a sala vizinha. Um momento
depois, saiu, ainda sem dizer nada, e foi embora pela porta.
No dia seguinte, e no outro, a criança voltou da mesma forma. Por fim, o
visitante perguntou ao pai quem era a linda criança que entrava e saía da sala
todos os dias ao meio-dia.
— Eu não vejo nada — disse o pai. — Não faço ideia de quem possa ser.
Por isso, não tinha paz em seu túmulo e voltava todo dia ao meio-dia para buscá-
las. Os pais deram o dinheiro a um pobre e depois disso a criança nunca
mais apareceu.
***
As duas histórias são diretas e piedosas. São histórias de fantasma puras, mas sua inte
provocar arrepios, e sim fornecer uma moral simples. O sistema de crenças de onde provêm é
Pode-
se atribuir a elas o caráter de histórias de fantasmas do tipo “verdadeiro” tradicional como as
que foram reunidas no bem conhecido Lord Halifax’s Ghost Book (1934) e mais recen
English Ghost (2010), de Peter Ackroyd. Para torná-
las idênticas a esse tipo de histórias basta pôr nomes
nos personagens e nos locais onde ocorreram os eventos. Para completar a ilusão, pod
se inventar uma
fonte habilmente disfarçada por meio de uma inicial e reticências, assim: “Herr A..., u
respeitado da cidade de D..., estava viajando pelo ducado de H... quando ouviu a seguinte histó
O repolho de burro
Era uma vez um jovem caçador que foi para o seu esconderijo na floresta. Estava
contente, com o coração leve e ao caminhar assobiava com uma folha de grama
na boca.
De repente, encontrou uma velha pobre. Ela disse: — Bom dia, meu jovem
e bom caçador. Estou vendo que está de bom humor, mas eu estou com fome e
sede. Pode me dar uma moedinha?
O caçador sentiu pena da velha, então pôs a mão no bolso e deu a ela as
poucas moedas que tinha. Estava para seguir seu caminho quando a velha
agarrou seu braço.
— Escute, meu bom caçador — disse —, você foi bom para mim, então
vou te dar um presente. Siga sempre em frente e dentro de algum tempo vai
encontrar uma árvore com sete passarinhos pousados. Eles estarão com um
manto nas garras, brigando por causa dele. Vão derrubar o manto, com toda
certeza, e um dos passarinhos vai cair morto a seus pés. Pegue o manto e leve
com você, porque é um manto que realiza desejos. Assim que colocar o manto
nos ombros, só precisa desejar estar em algum lugar que chegará lá num
relâmpago. E você deve pegar o coração do passarinho morto também. Corte o
peito dele, tire o coração e engula inteiro. Se fizer isso, vai encontrar uma moeda
de ouro embaixo de seu travesseiro todas as manhãs de sua vida.
Não tinha andado nem cem metros quando ouviu muitos piados e agitação
nos ramos acima dele. Olhou para o alto e viu um bando de passarinhos
puxando um pedaço de pano com as garras e os bicos, como se cada um quisesse
ficar com aquilo.
Pegou sua arma e deu um tiro bem no meio do bando. A maior parte dos
passarinhos piou e voou embora, mas um caiu no chão, morto, e o manto caiu
também. O caçador fez exatamente o que a velha havia aconselhado. Cortou o
passarinho com sua faca, tirou o coração e engoliu inteiro. E foi embora com o
manto.
Quando acordou na manhã seguinte, a primeira coisa que lhe veio à cabeça
foi a promessa da velha. Procurou embaixo do travesseiro e ali estava mesmo
uma moeda de ouro brilhando. No dia seguinte, encontrou outra, e outra, e
assim continuou cada vez que ele acordava. Logo, tinha uma boa quantidade de
ouro e pensou: “Tudo bem guardar essa fortuna assim, mas de que me adianta
aqui? Acho que vou sair e correr o mundo.”
Despediu-se dos pais, pôs a arma no ombro, a mochila nas costas e partiu.
Depois de andar alguns dias, estava saindo de uma densa floresta quando viu um
lindo castelo no meio de um campo aberto entre as árvores. Chegou mais perto
e viu duas pessoas paradas numa das janelas, olhando para ele.
Uma delas era uma velha feiticeira. Ela falou para a outra, que era sua filha:
— Esse homem que está saindo da floresta tem um grande tesouro dentro dele.
Precisamos pegar para nós, querida, porque vamos saber usar muito melhor do
que ele. Está vendo, ele engoliu o coração de certo passarinho e por isso
encontra uma moeda de ouro debaixo do travesseiro todas as manhãs. — Então,
contou à filha a história inteira do caçador e da mulher sábia e terminou
dizendo: — E se não fizer exatamente o que eu mandar, querida, vai se
arrepender.
O caçador chegou mais perto do castelo e viu as duas com mais clareza.
Pensou: “Estou andando já faz bastante tempo e tenho muito dinheiro. Talvez
deva passar um ou dois dias neste castelo para descansar.”
A velha preparou uma poção e despejou num copo que a moça deu para o rapaz.
Não fazia ideia de que estavam aparecendo debaixo do travesseiro da moça e que
a bruxa as recolhia toda manhã e escondia. Estava tão apaixonado que tudo o
que queria era passar seu tempo ao lado da moça.
Não existem muitos no mundo, entenda bem. Preciso dele e vou conseguir.
Disse à filha o que devia fazer e falou que se não obedecesse ia se
arrepender. Então a moça fez o que a bruxa mandou: ficou parada na janela,
olhando ao longe, como se estivesse muito triste.
Só os pássaros, que podem voar. Tenho certeza de que nenhum ser humano
nunca chegou lá.
A bruxa, porém, havia feito um feitiço para deixar o caçador com sono e ele
disse à moça: — Vamos sentar um pouco e descansar. Estou tão cansado que
minhas pernas nem aguentam meu peso.
o tinha enganado.
Ficou ali sentado, aborrecido demais para se mexer. Não conseguia nem
pensar no que fazer.
Ora, a montanha pertencia a alguns gigantes ferozes, grandes brutamontes
trovejantes e não demorou muito para o caçador ouvir três deles se
aproximando. Ele se deitou depressa e fingiu estar dormindo.
Mas o terceiro falou: — Não se dê ao trabalho. Aqui não tem nada para ele
comer, vai morrer logo de qualquer jeito. Além disso, se ele subir até o pico,
acaba levado pelas nuvens.
Nem é preciso dizer que o gosto do repolho ficou muito melhor. Ele
continuou comendo com prazer e mudou para um repolho redondo. Tinha
dado duas mordidas e viu que estava acontecendo tudo de novo, só que ao
contrário, e em menos tempo que leva para contar isso, era um ser humano
outra vez.
Quando a bruxa ouviu falar do repolho delicioso, mal podia esperar para
experimentá-lo.
— Eu trouxe dois. Não vejo por que não possam ficar com um, já que está
sendo tão bondosa me deixando passar a noite aqui.
Abriu a mochila e deu a ela o repolho de burro. Ela o pegou, ansiosa, correu
para a cozinha, já com água na boca. Pôs a panela no fogo, cortou o repolho
com capricho e cozinhou com um pouco de sal e manteiga. O cheiro era tão
bom que ela não resistiu e antes de levar à mesa mordeu uma pontinha de uma
folha, depois outra, e claro que assim que engoliu começou a se transformar. Em
questão de segundos era um burro completo e saiu correndo para o pátio,
escoiceando com as patas.
a tigela com os cascos novos, então a derrubou onde estava e correu para fora.
— Não sei por que estão demorando tanto — disse ela. — O cheiro está bom.
Pegou o repolho que tinha caído no chão, pôs de volta na tigela e levou
para a moça. Ela comeu um pouco; na mesma hora também se transformou em
burro e correu para fora.
Amarrou as três com a corda e levou com ele para fora do castelo, pela
estrada, até chegarem a um moinho. Bateu na porta.
— Bata no mais velho três vezes por dia e dê comida uma vez (era a bruxa).
O do meio, dê comida três vezes por dia e bata uma vez (era a criada). E o mais
novo não trate mal. Dê comida três vezes por dia e não bata nenhuma vez. —
Mas os outros dois ficam tão tristonhos que não sei mais o que fazer com eles.
— Ah, tudo bem — disse o caçador. — Acho que já foram bem castigados.
A filha da bruxa se pôs de joelhos e disse: — Ah, meu querido, perdoe todo
o mal que eu te fiz! Fui forçada por minha mãe. Não quis nunca trair você,
porque te amo de todo o coração. O manto dos desejos está no armário do
corredor e quanto ao coração do passarinho, eu tomo alguma coisa para
devolver a você.
— Não precisa — disse ele, porque tinha descoberto que estava apaixonado
por ela afinal. — Pode ficar com ele. Não vai fazer diferença com quem está,
porque quero casar com você.
O casamento foi celebrado logo depois e viveram muito felizes até a sua
morte.
***
Tipo de conto: ATU 567, “O coração de pássaro mágico”, continuando em ATU 566, “Os três
mágicos e as frutas maravilhosas”.
Fonte: história da Boêmia, contada aos irmãos Grimm por informante desconhecido.
Como é bastante comum com os Grimm, temos aqui dois tipos de histórias ligados. Assim que
coração do passarinho e o manto dos desejos, ele pode, teoricamente, continuar qualqu
aventura. A história do repolho (às vezes traduzido por “alface”) que transforma em burro que
não tem ligação lógica com a primeira parte da história, mas as duas se encaixam muito bem.
Na versão russa de Afanasiev, a comida (dois tipos de maçã) faz crescer ou desaparec
cabeça de quem a come. Menos inconveniente do que transformá-
los em burro, sem dúvida, mas ainda não muito fácil de explicar.
Era uma vez uma mulher que tinha três filhas. Ela chamava a mais velha de Um
Olho, porque tinha um olho no meio da testa. A segunda era chamada Dois
Olhos, porque tinha dois olhos como todo mundo, e a mais nova, Três Olhos,
porque tinha três olhos, o terceiro no meio da testa como a irmã mais velha.
Como Dois Olhos não parecia nada diferente de todo mundo, porém, sua
mãe e irmãs não paravam de criticá-la.
— Seu monstro de dois olhos — diziam —, quem você pensa que é? Você
não tem nada de especial, menina. Não tem nada a ver conosco.
Davam a ela as roupas mais feias e nada além de restos da mesa para comer.
Um dia, Dois Olhos teve de sair para procurar a cabra. Estava com fome,
como sempre, porque não tinha comido nada no café da manhã além das raspas
da panela em que cozinharam o mingau de aveia que, além de tudo, estava
queimado. Ela sentou na grama da encosta e começou a chorar. Quando o
primeiro soluço morreu, ela ficou surpresa ao ver uma mulher sábia e de aspecto
bondoso parada ali perto.
— Porque tenho dois olhos como todo mundo — respondeu Dois Olhos.
— Bom, Dois Olhos, pode parar de chorar agora — disse a sábia. — Vou
te contar um segredo e você não vai mais sentir fome. Diga à cabra:
Bale, cabrita, o quanto puder,
e uma bela mesa com todo tipo de comida gostosa vai aparecer na sua frente.
Você pode comer quanto quiser. Quando não quiser mais, é só dizer:
Bale, cabrita, o quanto puder,
e a mesa desaparece.
Assim que disse isso, a própria mulher sábia desapareceu. Dois Olhos achou
melhor experimentar imediatamente, antes que esquecesse, e além disso estava
com muita fome para esperar.
Então disse:
e assim que disse essas palavras, ali na sua frente apareceu uma mesa com uma
toalha branca como neve. Havia um prato com garfo, faca, colher de prata e um
guardanapo branco como neve também, e, claro, uma cadeira para sentar; mas a
comida! Havia pratos quentes e pratos frios, guisados e carne assada, vegetais de
todos os tipos, além de uma grande torta de maçã, saída do forno, ainda
fumegando.
Dois Olhos mal podia esperar. Fez a prece de agradecimento mais curta que
conhecia: “Senhor, seja nosso convidado agora e para sempre, amém.” Depois,
sentou-se e comeu o quanto quis. Estava tão delicioso que ela provou um pouco
de tudo e, quando estava farta, falou:
“Bom, gostei desse arranjo”, pensou Dois Olhos, e estava mais contente do
que se sentia havia anos.
Quando voltou para casa com a cabra essa noite, encontrou uma velha
tigela de barro com um pouco de cozido gorduroso no fundo que as irmãs
tinham deixado para ela, mas não tocou naquilo. E de manhã tudo o que havia
para ela eram as migalhas das torradas que haviam feito, mas ela não comeu
também. Das primeiras vezes em que isso aconteceu, as irmãs não notaram
porque geralmente ignoravam tudo o que ela fazia, mas quando aconteceu no
dia seguinte e no outro, não havia como não perceber.
Acharam que era melhor descobrir o que estava acontecendo, então quando
Dois Olhos foi levar a cabra ao pasto, Um Olho disse a ela: — Acho que vou
com você. Estou achando que não trata da cabra direito.
Um Olho estava cansada, porque ao andar pelo campo havia feito mais
exercício do que fazia havia semanas e além disso o sol quente a deixava com o
corpo mole. Então ela se deitou na sombra e Dois Olhos começou a cantar:
Um Olho, está acordada?
A pálpebra única de Um Olho ficou pesada e foi baixando mais e mais, até
que finalmente ela começou a roncar. Assim que Dois Olhos teve certeza de que
sua irmã estava dormindo, disse:
e a mesa desapareceu.
Dois Olhos acordou Um Olho e disse: — Você não falou que ia me ajudar
a cuidar da cabra? Ficou dormindo o dia inteiro! A cabra podia ter fugido e caído
no rio. Ainda bem que eu estava aqui. Venha, vamos para casa.
Voltaram para casa e mais uma vez Dois Olhos nem tocou nos restos de
comida. Dessa vez, eram umas cascas queimadas de torta. Três Olhos e a mãe
mal podiam esperar para saber o que havia acontecido no campo, mas tudo o
que Um Olho disse foi: — Não sei. Eu dormi. Bom, estava calor.
— Que inútil! — disse a mãe. — Amanhã, você é que vai, Três Olhos.
Lá se foram com a cabrita. Dois Olhos percebeu logo que Três Olhos tinha
a mesma intenção que Um Olho havia tido, então assim que se viram no campo
em segurança e Três Olhos se acomodou junto a uma touceira, ela começou a
cantar:
cantou:
E continuou cantando:
Quando Dois Olhos pensou que Três Olhos estava dormindo, cantou:
Bale, cabrita, o quanto puder,
A mesa logo apareceu. Dessa vez, havia sopa de beterraba, uma grande torta
de carne e um bolo delicioso. Dois Olhos comeu e bebeu alegremente até estar
farta e depois cantou:
e a mesa desapareceu.
Três Olhos estava vendo tudo, mas fechou o terceiro olho bem depressa
quando Dois Olhos veio acordá-la.
— Vamos, Três Olhos! — disse Dois Olhos. — Você dormiu o dia inteiro.
Ainda bem que eu estava aqui para cuidar da cabra. Venha, vamos para casa.
Quando voltaram para casa, Dois Olhos outra vez recusou a comida que lhe
deram. Era a água em que haviam cozido o repolho.
Você viu?
— Vi, sim. Ela tentou me fazer dormir, mas meu terceiro olho continuou
acordado. O que ela faz é cantar para a cabra, assim:
e do nada aparece uma mesa coberta com ótima comida e ela come o quanto
quer. Depois canta:
e a mesa desaparece. Verdade! Juro mesmo! Eu vi. Ela fez dois dos meus olhos
dormirem, mas o terceiro ficou acordado.
Bom, a mãe ficou furiosa quando ouviu isso. Gritou: — Dois Olhos! Venha
cá imediatamente! O que faz você pensar que é melhor que nós, hein? Fazendo
truques com a cabra! Como ousa! Vou fazer você se arrepender, pode esperar!
Pegou a maior faca da cozinha e atravessou com ela o coração da cabra, que
caiu morta no chão.
Dois Olhos saiu correndo de casa e foi até o campo, onde caiu em prantos.
Chorou e chorou pelo pobre animal que nunca tinha feito nada errado e por si
mesma também.
— Não posso evitar — disse Dois Olhos. — Minha mãe esfaqueou a pobre
cabra no coração, ela morreu e eu nunca mais vou poder pedir a mesa de
comida.
E desapareceu. Dois Olhos voltou para casa devagar e falou para as irmãs:
— Bom, se é só isso que você quer — disse Um Olho. E Três Olhos falou:
Dois Olhos pôs as vísceras da cabra na bacia de lavar roupa e levou para o
jardim da frente, onde as enterrou num canteirinho de grama.
Na manhã seguinte, havia ali uma linda árvore. Suas folhas eram de prata e
entre elas havia dezenas de frutas do tamanho de maçãs, feitas de ouro maciço.
Ninguém nunca tinha visto árvore mais linda, e claro que ninguém fazia ideia
de como havia nascido da noite para o dia. Só Dois Olhos sabia, porque havia
nascido no lugar onde enterrara as vísceras da cabra.
Assim que sua mãe viu a árvore, disse: — Vamos lá, Um Olho, já para cima.
Um Olho subiu, bufando, ofegando e tentou, mas cada vez que esticava a
mão para pegar uma maçã de ouro, o galho se afastava para fora de seu alcance.
Tentou pegar esta e aquela, mas não conseguiu tocar nenhuma, por mais que
tentasse.
— Inútil! — disse a mãe. — Ela não enxerga o que está fazendo. Três
Olhos, suba você. Quem sabe enxerga melhor que ela.
Um Olho desceu e Três Olhos subiu, mas, apesar de enxergar três vezes
melhor, não conseguiu melhor resultado que sua irmã. Toda vez que tentava
pegar uma maçã, o galho se afastava o suficiente para ficar fora de seu alcance, e
por fim ela teve de desistir.
— Você, idiota?
Debaixo do barril! Se ele vê alguém como você aqui, vai pensar que somos todas
horríveis!
Mas quando ela tentou aconteceu a mesma coisa de antes. E Um Olho não
conseguiu melhor resultado. Por mais depressa que tentasse pegar um ramo, ele
sempre escapava de suas mãos.
— Só está tímida — disse Três Olhos. — Talvez porque você está olhando.
— E você pode partir um ramo para mim, Dois Olhos? — ele perguntou.
— Posso, sim — disse Dois Olhos —, porque a árvore é minha.
Depois que Dois Olhos foi levada pelo belo cavaleiro, suas duas irmãs se
consumiram de inveja. “Mas ao menos a bela árvore ainda é nossa”, pensaram,
“e mesmo que a gente não possa colher as maçãs de ouro, as pessoas vão parar
para admirar e quem sabe a boa sorte não pode brotar daí?”
Dois Olhos viveu feliz durante muitos anos. Um dia, muito tempo depois,
duas mulheres pobres bateram na porta do castelo, porque eram vítimas da fome
e tinham de correr o mundo implorando pão de porta em porta. Dois Olhos as
recebeu bem e as tratou com tanta bondade que elas se arrependeram por todo o
mal que haviam lhe feito. E o mais estranho foi que, apesar de tantos anos terem
se passado, Dois Olhos reconheceu Um Olho e Três Olhos imediatamente.
***
Tipo de conto: ATU 511, “Um Olho, Dois Olhos, Três Olhos”.
Esta é “Cinderela”
, claro, com o acréscimo de absurdos. A presença da mulher sábia, da cabra, das vísceras
e da árvore confirma isso fora de qualquer dúvida: são todos aspectos da necessária mas ausen
que aparecem em “Cinderela” de uma forma ou de outra.
Na versão russa de Afanasiev, Dois Olhos convida suas irmãs ruidosas a deitar a cabeça em se
para tirar seus piolhos. Esse ótimo detalhe higiênico aparece também em "O Diabo co
cabelo dourado".
Era uma vez um rei que tinha doze filhas, cada uma mais bonita que a outra.
Elas dormiam todas juntas num quarto, as camas enfileiradas, e toda noite,
quando estavam acomodadas, o próprio rei fechava e trancava a porta. Porém,
quando abria a porta de manhã, descobria que os sapatos delas tinham sido
usados até se esfarraparem e ninguém sabia como aquilo podia ter ocorrido. As
princesas não diziam nada a respeito.
O rei anunciou que quem conseguisse descobrir onde suas filhas iam dançar
todas as noites poderia escolher uma delas para casar e com o tempo vir a ser o
rei. Por outro lado, se não conseguisse descobrir a verdade depois de três noites,
perderia a própria vida.
Foi muito bem recebido e instalado num quarto ao lado do quarto das princesas,
de onde podia vigiar e ver aonde elas iam dançar. Foi preparada uma cama para
ele e, para facilitar ainda mais as coisas, a porta do quarto das princesas foi
mantida destrancada.
Mas sabe de uma coisa? Gostaria de descobrir onde essas princesas vão dançar até
acabar com os sapatos. Podia casar com uma delas e virar rei.
— Não é difícil — disse a velha. — Quando for para a cama, vão levar para
você um cálice de vinho, mas você não deve beber de jeito nenhum.
Ela então tirou de sua trouxa um manto e disse: — Quando vestir isso aqui,
— Não seja boba — disse a mais velha. — Você tem medo de tudo! Pense
em todos os príncipes que já tentaram nos vigiar e não conseguiram. Aposto que
nem precisava dar uma poção de dormir para esse soldado. Ele ia dormir de
qualquer jeito.
Quando estavam todas prontas, a princesa mais velha foi dar uma olhada no
soldado outra vez, mas ele parecia estar dormindo profundamente, e acharam
que estava tudo bem. Então a princesa mais velha foi até sua cama e bateu como
numa porta. Na mesma hora, a cama afundou no chão e uma a uma as doze
princesas desceram pela abertura. O soldado estava vigiando em segredo e, assim
que elas desceram, pôs o manto da invisibilidade e foi atrás delas. Para não as
perder de vista, seguia tão de perto que pisou na cauda do vestido da mais nova.
Ela sentiu isso e perguntou: — Quem está aí? Quem puxou o meu vestido?
— Ah, não seja boba — disse a mais velha. — Deve ter ficado preso num
prego ou alguma outra coisa.
Desceram a escadaria até chegar a uma bela avenida entre fileiras de árvores.
As folhas das árvores brilhavam, cintilavam como o luar, porque eram feitas de
prata, e o soldado pensou: “Melhor levar alguma coisa como prova.” E arrancou
um ramo.
O estalo da madeira foi tão forte que a princesa mais nova se assustou outra vez.
— Você é uma boba — disse a mais velha. — Devem ser os fogos saudando
a nossa chegada.
O príncipe disse: — Não sei por que o barco hoje está tão pesado. Quase
não consigo avançar.
— Deu tudo certo — elas disseram. Tiraram seus lindos vestidos, puseram
os sapatos gastos debaixo das camas e foram dormir.
Na manhã seguinte, o soldado não disse nada. Queria ver o lindo castelo e
as avenidas de árvores preciosas outra vez. Seguiu com elas uma segunda noite, e
uma terceira, e viu tudo acontecer como antes. E toda noite os sapatos delas
ficavam esfarrapados. Na terceira noite, ele trouxe um cálice como mais uma
prova.
Na última manhã, tinha de dar uma resposta. Então pegou os três ramos e o
cálice e foi falar com o rei. As princesas ficaram atrás da porta para ouvir.
O rei disse: — Bom, passaram suas três noites. Aonde minhas filhas vão
dançar até seus sapatos virarem farrapos?
— Acho que ouviram o que este homem acaba de me contar — disse ele.
— Bom, não sou mais tão jovem como era — disse o soldado —, então
acho que a mais velha combinaria melhor comigo.
— Pois vai ficar com ela — disse o rei. E o casamento foi realizado no
mesmo dia.
O rei prometeu ao soldado que ele seria seu sucessor no trono. E quanto aos
príncipes do subsolo, eles foram enfeitiçados por tantas noites quantas haviam
dançado com as doze princesas.
***
Fonte: história contada aos irmãos Grimm por Jenny von Droste-Hülshoff.
Conhecido também como “As doze princesas dançarinas”, este conto tem o encanto qu
maravilhas que ficam no subsolo, principalmente as que compreendem barquinhos, luzes boni
de folhagem preciosa, música e dança. A história se presta, claro, a belas ilustrações. Alterei p
nela, a não ser os presentes da velha (o conselho e o manto) como recompensa pela caridade d
Hans Ferro
Era uma vez um rei que tinha uma grande floresta perto de seu castelo, onde
viviam todos os tipos de animais selvagens. Um dia, ele mandou seu caçador
principal matar um veado, mas o caçador não voltou.
No terceiro dia, ele reuniu todos os caçadores e disse: — Procurem por toda
a floresta e não desistam até encontrarem os três.
Mas nenhum dos caçadores voltou, nem os cachorros da matilha que tinha
ido com eles. Desse dia em diante, ninguém mais ousava entrar na floresta sobre
a qual baixou um profundo silêncio e solidão. A única vida que se via nela era
uma ou outra águia ou falcão voando entre as árvores.
Durante muitos anos, as coisas ficaram assim, até que um dia um caçador
que ninguém conhecia, um estranho, apresentou-se ao rei dizendo que
procurava um trabalho e se propunha a entrar na floresta perigosa. O rei,
porém, não permitiu que ele fosse.
— Existe alguma coisa muito estranha nessa história — disse ele. — O lugar
deve estar sob algum encantamento. Não vejo como você possa se dar melhor
do que os outros. Acho que vai se perder como eles.
Mas o caçador disse: — Estou disposto a arriscar, majestade. Não sei o que é
medo.
Então o caçador partiu com seu cachorro para a floresta. Não demorou
muito e o cachorro farejou um rastro e começou a segui-
lo. Mas não avançou
muito e chegou à beira de uma lagoa profunda, não pôde mais prosseguir.
que fosse posto numa jaula de ferro no pátio e proibiu que a porta fosse aberta,
sob pena de morte. Entregou a chave aos cuidados da própria rainha. A partir
desse momento, as pessoas podiam ir à floresta em segurança outra vez.
Ora, o rei tinha um filho de oito anos. Um dia, ele estava brincando no
pátio quando sua bola de ouro rolou entre as grades para dentro da jaula do
homem selvagem.
No terceiro dia, quando o rei saiu para caçar, o menino foi até a jaula e
disse: — Mesmo que eu quisesse, não posso abrir sua jaula. Não tenho a chave.
Quando o rei voltou e notou a jaula vazia, foi logo perguntar à rainha o
que havia acontecido. Ela não sabia de nada, então procurou a chave e descobriu
que havia sumido. Perceberam que o menino havia desaparecido, chamaram,
mas ninguém respondeu. O rei e a rainha mandaram criados procurarem no
parque real em torno do castelo, nos campos e prados adiante, mas não
encontraram o menino. Então os pais adivinharam o que havia acontecido e a
corte caiu em luto profundo.
Ele colheu musgo e fez uma cama para o menino, que logo adormeceu. Na
manhã seguinte, o selvagem o levou a uma fonte e disse: — Está vendo isso? É a
minha fonte dourada. É transparente e brilhante e quero que continue assim.
Você sente aqui e tome conta dela. Não deixe cair nada dentro dela, porque não
quero que fique suja com nada, entendeu? Vou voltar aqui toda noite para ver se
fez as coisas como mandei.
Tirou-o imediatamente, mas viu que tinha se transformado em ouro. Por mais
que tentasse limpar a pele, seu dedo era todo de ouro.
Nessa noite, Hans Ferro voltou para casa, olhou o menino e disse: — O
— Nada, nada — o menino falou, escondendo o dedo nas costas para que
Hans Ferro não visse.
Mas o homem disse: — Você enfiou o dedo na água. Bom, vou deixar
passar dessa vez, mas tome cuidado para não deixar mais nada cair na fonte.
Logo de manhã, o menino se aprontou e foi vigiar a fonte. Seu dedo ainda
doía e dessa vez passou na cabeça; mas ao fazê-lo um fio de cabelo infelizmente
caiu na água. Ele o tirou o mais depressa possível, mas já estava todo coberto de
ouro.
Quando voltou para casa, Hans Ferro já sabia o que tinha acontecido. —
Você deixou um fio de cabelo cair na fonte — ele disse. — É a segunda vez. Foi
descuidado outra vez, mas, se acontecer de novo, a fonte estará poluída e você
não vai mais poder ficar aqui.
No terceiro dia, o menino sentou ali com todo o cuidado, sem mexer o
dedo, por mais que doesse. Mas o tempo passava muito devagar e por falta do
que fazer ele se curvou e olhou seu reflexo na água. Foi se inclinando mais e
mais, tentando ver seus olhos e então o cabelo comprido caiu para a frente e foi
para dentro da água. Ele tirou a cabeça imediatamente, mas era tarde demais:
todo o seu cabelo havia se transformado em ouro, que brilhava como o sol. Dá
para imaginar como o pobre menino ficou assustado. A única coisa em que
conseguiu pensar foi amarrar um lenço na cabeça para que Hans Ferro não visse
o ouro.
Mas é claro que, assim que voltou para casa, foi a primeira coisa que ele
notou.
— Você não passou no teste — disse Hans Ferro. — Não pode mais ficar
aqui. Vai ter de sair pelo mundo e aprender como é ser pobre. Mas você não é
um mau menino e desejo o seu bem, então vou lhe fazer um favor: sempre que
estiver num verdadeiro aperto, entre na floresta e chame “Hans Ferro”, e eu vou
em seu socorro. Tenho grandes poderes, muito maiores do que você pensa, e
ouro e prata mais que suficientes.
Os funcionários do palácio não sabiam o que fazer com ele, mas era um
menino agradável, então o deixaram ficar. Por fim, o cozinheiro disse que ia
encontrar coisas para ele fazer e o pôs para trazer lenha e água e rastelar as cinzas
do fogo.
O rei mandou chamar o cozinheiro e ralhou com ele por deixar um rapaz
nessas condições servir a mesa real. Ele teve de ser despedido imediatamente.
Porém, o cozinheiro ficou com pena do menino e deixou que ele trocasse de
lugar com o ajudante do jardineiro.
Ora, o trabalho era para plantar e regar, podar e carpir, e suportar o vento e
a chuva. Num dia de verão, quando estava trabalhando sozinho no jardim, o
calor era tanto que ele tirou o chapéu para se refrescar com a brisa. Quando o sol
tocou seu cabelo dourado, ele brilhou e cintilou tanto que os reflexos
Ela deu um pulo para ver o que era aquilo, viu o rapaz e chamou: — Rapaz!
— Ah, não — disse o rapaz —, aquela rosa não tem perfume. Mas estas
flores silvestres são tão perfumadas, tenho certeza de que ela vai gostar.
Quando ele entrou no quarto da princesa, ela disse: — Tire o boné. Não é
educado ficar com a cabeça coberta na minha presença.
— Não posso fazer isso, alteza — disse ele. — Minha cabeça está coberta de
caspa.
Não muito depois, o país se viu em guerra. O rei reuniu seus conselheiros,
mas eles não conseguiam decidir se combatiam ou se se rendiam, porque o
inimigo tinha um grande e poderoso exército.
Então, ele esperou que saíssem e foi procurar seu cavalo no estábulo.
Mesmo assim, ele o montou e foi para a densa floresta. Quando chegou ao
limiar das árvores, parou e chamou: — Hans Ferro! — três vezes, tão alto que
ecoou por toda parte.
O selvagem logo apareceu e disse: — Do que você precisa?
Quando a batalha terminou, ele não voltou até o rei. Em vez disso, levou
seu exército de ferro por um desvio para dentro da floresta e mais uma vez
chamou Hans Ferro.
Hans Ferro fez o que ele pedia, e o rapaz voltou para casa com o cavalo
capenga.
Quanto ao rei, assim que voltou ao palácio foi saudado pela filha, que lhe
deu os parabéns pela grande vitória.
A princesa quis saber quem era o misterioso cavaleiro, mas o rei não sabia dizer.
— Tudo o que sei — disse ele — é que ele pôs o inimigo em fuga, depois
marchou embora.
— Ele acaba de voltar com seu cavalo de três patas — disse ele. — Os
outros estão caçoando dele. “Olhe o pangaré dele”, eles dizem. E perguntam:
“Debaixo de que moita você estava dormindo?”, e ele responde: “Fiz mais que
qualquer um de vocês. Se não fosse por mim, teriam perdido a batalha.” E eles
morrem de rir.
O rei disse à filha: — Vou anunciar um grande torneio. Vai durar três dias
e você pode atirar uma maçã de ouro para os cavaleiros pegarem. Talvez o
cavaleiro desconhecido apareça. Nunca se sabe.
— Do que precisa?
— Feito — disse Hans Ferro. — Além disso, vai usar uma armadura
vermelha e montar um valente cavalo castanho.
Quando começou o torneio, o rapaz galopou pela pista, tomou seu lugar
entre os cavaleiros e ninguém o reconheceu. Então a princesa veio, atirou uma
maçã de ouro entre os cavaleiros e foi ele que a pegou. Assim que estava em
segurança, ele foi embora galopando.
No dia seguinte, Hans lhe deu uma armadura branca e um cavalo branco
como a neve. Mais uma vez ele pegou a maçã e mais uma vez foi embora
imediatamente.
Mas então o rei perdeu a paciência. — Se esse cavaleiro for embora outra
vez sem dizer seu nome — anunciou —, todo mundo deve ir atrás dele e, se não
voltar por sua livre vontade, podem usar lanças e espadas. Não admito esse tipo
de atitude.
No terceiro dia, Hans Ferro lhe deu uma armadura preta com um cavalo
preto como a noite e mais uma vez ele pegou a maçã. Dessa vez, porém, os
outros cavaleiros o perseguiram e um deles chegou perto o suficiente para feri-lo
na perna. Deve ter ferido o cavalo também, porque ele deu um salto tão grande
que para controlá-lo o rapaz perdeu o elmo. O elmo caiu no chão e todos viram
que ele tinha o cabelo de ouro. Mas foi tudo o que viram, porque ele conseguiu
escapar. E os cavaleiros voltaram e contaram para o rei.
— Rapaz, é você o cavaleiro que compareceu ao torneio cada dia com uma
armadura de cor diferente e que pegou as três maçãs?
— Pode, sim — disse o rapaz. — Pode me dar sua filha por esposa.
A princesa riu e disse: — Ele não perde tempo! Mas eu sabia assim que o vi
que não era um ajudante de jardineiro.
***
Fonte: história contada aos irmãos Grimm pela família Hassenpflug e “Eiserne Hans” (Hans F
conto do Hundert neue Mährchen im Gebirge gesammelt (Cem novas histórias das mo
Friedmund von Arnim.
“Três por um pote”, de Katharine M. Briggs (Folk Tales of Britain); “O homem peludo”, de A
(Crimson Fairy Book).
Esta história adquiriu grande fama na década de 1990 como resultado do livro de Robert Bly, J
um livro sobre homens (1990), texto central do setor do movimento masculino das pra
Corpo e Espírito das livrarias. Bly afirma que o homem moderno se feminilizou, que os padrõ
contemporâneos o exilaram dos padrões autênticos de desenvolvimento psíquico e que
modelo de masculinidade que envolvesse a iniciação na verdadeira virilidade por aqueles que
verdadeiros. Aparentemente, nesta história, o homem selvagem em seu centro constitui esse m
Pode haver aí alguma coisa, sim, mas o meu palpite é que, se essas coisas funcionam, seria mu
melhor se você não soubesse que as está fazendo. Nada afasta mais um ouvinte do qu
interpretação de alguma coisa com a qual você acabou de ficar maravilhado. A históri
independentemente do que signifique.
Quanto ao som dos cascos do velho pangaré nas versões inglesas, podemos escolher entre higg
hop (A Guide to Folktales in the English Language, de D. L. Ashliman), clippety clop (The Pe
Grimms’ Tales for Young and Old, de Ralph Mannheim), hobblety jig (The Complete Grimm
de Margaret Hunt), hippety-
hop (Brothers Grimm: the Complete Fairy Tales, de Jack Zipes) e hobbledy-clop
(Brothers Grimm: Selected Tales, de David Luke). Esta versão de Luke é a vencedora;
dela.
Monte Simeli
Era uma vez dois irmãos, um rico, outro pobre. O primeiro irmão, rico como
era, não ajudava o pobre, que mal conseguia ganhar a vida como comerciante de
trigo. As coisas não iam nada bem para ele e muitas vezes só tinha um pedaço de
pão duro para alimentar sua esposa e filhos.
Um dia, o irmão pobre estava empurrando sua carroça pela floresta quando
notou um alto monte rochoso de um lado do caminho. Como nunca o tinha
visto antes, parou para olhar, um tanto surpreso e, enquanto estava parado ali,
viu uma dúzia de homens rústicos se aproximando. Eles ainda não o tinham
visto e, pensando que pudessem ser ladrões, ele jogou sua carroça entre os
arbustos e subiu numa árvore longe das vistas.
Assim que estavam todos à luz do dia, gritaram: — Monte Semsi, monte
Semsi, feche!
Depois de olhar cuidadosamente para fora, saiu na ponta dos pés e gritou:
Durante algum tempo depois, ele foi feliz, porque tinha ouro suficiente
para comprar pão para sua família, carne e vinho também. Além disso, podia dar
dinheiro aos pobres, e deu; viveu feliz e honestamente e fez o bem. Quando o
dinheiro acabou, pegou emprestado de seu irmão um medidor de grãos e voltou
ao monte Semsi, onde o encheu com moedas de ouro. Como antes, deixou as
joias para trás.
Quando quis buscar uma terceira carga de moedas de ouro, pediu outra vez
o medidor emprestado a seu irmão. Seu irmão ficou muito curioso dessa vez;
não podia imaginar onde o comerciante de grãos podia ter arrumado dinheiro
para mobiliar sua casa tão ricamente e para viver tão bem, de forma que
preparou uma armadilha. Cobriu o fundo do medidor com piche. E, quando o
irmão o devolveu, havia uma moeda de ouro presa ali.
O comerciante de grãos teve de contar tudo a seu irmão. E assim que ele
ouviu falar do tesouro dentro do monte Semsi, o homem rico atrelou seu burro
à carroça e foi até lá, com a intenção de pegar mais ouro do que seu irmão havia
levado, além de uma grande quantidade daquelas joias.
E claro que aquele era o nome errado. A montanha não se mexeu nem um
Claro que nenhum deles funcionou. Quanto mais confuso ficava, mais
assustado, e quanto mais assustado, mais confuso.
Todos os tesouros que tinha nos bolsos de nada lhe valiam: sua contadoria,
sua propriedade, suas contas no banco, suas ações e cotas, nada disso podia ajudá-
lo.
Então, para seu horror, ouviu uma voz lá fora gritar: — Monte Semsi!
— Não fui eu! Foi meu irmão! Sério! Ele roubou estas joias! Eu vim para
devolver! Juro!
Mas por mais que falasse, por mais que implorasse e insistisse, nada
adiantou. Naquela manhã, tinha ido à montanha inteiro. Naquela noite, saiu de
lá aos pedaços.
***
Fonte: história contada aos irmãos Grimm por Ludowine von Haxthausen.
Histórias semelhantes: “A história de Ali Babá e os quarenta ladrões mortos por uma escrava”
uma noites); “Os treze bandidos”, de Italo Calvino (Italian Folktales).
Muito claramente, é a primeira parte da conhecida história de As mil e uma noites. Esta, ao me
tradução francesa dos contos originais feita por Antoine Galland (1646-
1715), o que não é exatamente a
mesma coisa porque, na ausência de manuscritos árabes de “Ali Babá” e “Aladim” anteriores
Galland, estudiosos suspeitam que Galland as tenha inventado ele próprio. A versão italiana d
semelhante a este conto.
Mas onde está a segunda metade? Sinto falta do corpo do irmão cortado em pedaços
costurado, dos ladrões se escondendo nas ânforas de óleo e do fiel escravo a fervê-
los até a morte. Ou
Ludowine von Haxthausen não conhecia essa parte (e então a fonte de Calvino também não), o
possivelmente os Grimm, resolveu que era melhor prescindir dela. Mas não é. E não s
germanizar os elementos exóticos do maravilhoso conto de Galland e dar-
lhe um acabamento devido.
Heinz Preguiçoso
Heinz era muito preguiçoso. Embora não tivesse nada a fazer além de levar a
cabra para pastar todos os dias, ele reclamava à noite quando voltava para casa.
Sentou-se e se pôs a pensar. Não era difícil porque seus pensamentos não
eram muitos e versavam todos sobre a mesma questão: o peso da vida. Durante
um longo tempo ficou sentado olhando o nada, então de repente se levantou e
bateu as mãos.
— Já sei o que vou fazer! — exclamou. — Vou casar com a Grande Trina.
Ela também tem uma cabra, pode levar a minha junto com a dela e me poupar o
trabalho. Brilhante ideia!
Então a Grande Trina tornou-se mulher de Heinz e todo dia levava as duas
cabras ao pasto. Heinz passava muito bem, sem nada para fazer. De fato, ia com
ela algumas vezes, mas só pelo prazer de gozar ainda mais o dia seguinte parado.
Pensar era um esforço tão grande para ela como para ele, então ele sabia
muito bem o que ela havia passado e prestou toda atenção.
— Sobre o quê?
— Sobre as cabras — disse ela. — Elas nos acordam tão cedo todo dia, com
seus balidos.
— Então pensei se a gente não podia pedir ao vizinho para trocar as cabras
pela colmeia dele. Dá para pôr naquele canto ensolarado do quintal e esquecer
das abelhas. Ninguém precisa levar abelhas para pastar, não é mesmo? Elas voam
e encontram as flores e voltam para casa, tudo sozinhas. E recolhendo mel o
tempo todo, não temos de fazer nada.
— Bom, acho uma ideia brilhante. Acho mesmo. Vamos fazer isso agora,
já. Bom, melhor deixar para amanhã. E vou te dizer mais uma coisa — ele falou,
quase entusiasmado —, mel é muito mais gostoso do que leite de cabra.
— É. Tudo bem.
Ele e Trina puseram a jarra numa prateleira acima da cama. Trina estava
preocupada que ladrões pudessem entrar e roubar o mel, ou camundongos o
encontrassem e fizessem uma sujeira, então encontrou uma boa vara de aveleira
e deixou embaixo da cama. Assim podia pegá-la e espantar os camundongos ou
os ladrões sem ter de levantar.
Heinz achou que era outra boa ideia. Tinha grande admiração pela
capacidade de previsão de sua esposa; pensar nas coisas que ainda não tinham
acontecido o deixava cansado e ele nunca levantava antes do meio-dia mesmo.
usando esse mel, não vai sobrar nada. O que eu pensei foi que a gente devia
trocar esse mel por um ganso e um gansinho antes que você coma tudo.
— Ele tem de cuidar do ganso, claro! Eu é que não vou cuidar. Onde vou
arrumar tempo para correr atrás de um ganso?
— Ah — disse Heinz. — É. Não tinha pensado nisso. Mas você acha que
ele vai fazer o que a gente mandar? As crianças de hoje não fazem. Não têm
respeito pelos pais. Isso se vê o tempo todo.
— Vou te mostrar o que faço com ele se não me respeitar — disse Trina e
pegou a vara de debaixo da cama. — Pego esta vara e bato nele. Dou-
lhe um couro se não respeitar. Assim!
E bateu na cama uma vez e mais uma com golpes tão cheios de energia que
voaram penas e migalhas de pão pelo ar. Infelizmente, quando levantou a vara
pela última vez, bateu no jarro de mel na prateleira acima da cama. A jarra
quebrou em vários pedaços, o mel escorreu pelas paredes e pelo chão.
Como a lesma que foi convidada para o casamento, ela saiu bem cedo e chegou a
tempo do batizado do primeiro filho do casal. “Pressa com calma”, a lesma disse
quando caiu da cerca.
***
Fonte: uma história do Proverbiorum copia; 1601 (Muitos provérbios), de Eucharius Eyering.
Existem muitas variações da velha ideia da sonhadora que especula o que vai fazer co
levando ao mercado, imagina o lindo vestido que vai comprar, inclina a cabeça para mostrar c
elegante e ao fazê-
lo derruba o jarro que levava na cabeça e perde todo o leite. Pode ter qualquer cenário e
ser narrada de um número infindável de maneiras; mas o que gosto aqui é a ternura recíproca d
vagabundos e a profunda satisfação que têm com seu comportamento desleixado.
Hans Forte
Um homem e sua mulher moravam num vale remoto, sozinhos, a não ser por
seu filhinho. Um dia, a mulher foi à floresta colher uns ramos de pinheiro para o
fogo e levou o pequeno Hans, que tinha apenas dois anos. Era primavera e,
como o menininho gostava das cores vivas das flores, a mãe foi indo com ele
cada vez mais longe na floresta.
— Pare de chorar — disse. — Não tem do que ter medo, contanto que
cuide da casa para nós. Varra o chão, mantenha tudo limpo e arrumado. Vamos
tratar você bem.
Terminou de dizer isso, deu pão e carne aos dois e mostrou a cama onde ela
e o filho iam dormir.
Passaram alguns anos com os ladrões, e Hans cresceu até ficar grande e
forte. Sua mãe lhe contava histórias e o ensinou a ler com a ajuda de um velho
livro sobre cavaleiros e cavalaria que encontrou na caverna.
Quando Hans tinha nove anos, com um galho que roubou da lenha dos
ladrões, fez um porrete pesado. Escondeu-
o atrás da cama, foi até sua mãe e
disse: — Mãe, você deve saber e precisa me dizer: quem é meu pai?
A mulher não disse nada. Não contava a ele nada de sua vida antes da
caverna, porque ele podia ficar com saudade de casa e ela sabia que os ladrões
nunca deixariam que o menino fosse embora. Mas partiu seu coração pensar que
Minha mãe não me conta, então estou perguntando a você e se não me contar
arrebento sua cabeça.
O chefe riu e deu tamanho murro em Hans que ele caiu e rolou para
debaixo da mesa. Não chorou, não fez um som; apenas pensou: “Deixe o tempo
passar e quando eu for maior, ele que se cuide.”
Mais um ano veio e passou e Hans pegou seu porrete, tirou a poeira, girou
para cá e para lá e pensou: — É, é um porrete bem forte.
Hans estava esperando por isso. Pegou seu porrete, se pôs na frente do chefe e
perguntou de novo: — Quem é meu pai?
Como havia feito antes, o chefe deu-lhe um soco na cabeça e mais uma vez
Hans caiu. Mas, dessa vez, se pôs de pé imediatamente, segurou firme o porrete e
deu no chefe e em todos os ladrões uma surra que os deixou tão tontos e
arrasados que não podiam se mexer. Sua mãe estava assistindo de um canto da
caverna e ficou surpresa com sua força e sua coragem.
Quando terminou, ele se virou para ela e disse: — Está vendo que falo sério
sobre esse assunto? Quero saber quem é meu pai.
— Bom, meu valente Hans — disse a mãe —, vamos procurar por ele.
Com toda a sua juventude, Hans era uma cabeça mais alto que o pai e
muito mais forte que ele. Quando entraram na casa, Hans pôs o saco no banco
— Nossa, rapaz, o que você fez? — perguntou o pai. — Vai demolir a casa
inteira?
— Não precisa se preocupar, pai — disse Hans. — Nesse saco tem ouro e
riquezas suficientes para construir outra casa.
Claro que Hans e o pai logo começaram a construir uma boa casa nova.
Além disso, compraram parte da terra em torno, algum gado e começaram uma
fazenda. Quando Hans conduzia o arado, empurrando a lâmina fundo no chão,
os bois quase não precisavam puxar.
Quem o retorcia era um sujeito imenso que segurava a árvore com ambas as
mãos e a torcia com facilidade, como se fosse um feixe de varas.
O homem grande desceu. Era uma cabeça mais alto que Hans. E Hans não
era nada baixo.
— Bom dia para você, parceiro — disse Hans. — Por que está fazendo isso?
— Ah, certo — disse Hans. — Mas eu tenho uma ideia melhor. Esqueça a
casa e venha comigo e com Torce Pinho.
No primeiro dia, foi a vez de Hans e Racha Rocha saírem para caçar,
enquanto Torce Pinho ficava no castelo para cozinhar. Ele estava ocupado
fazendo um molho quando um homenzinho todo enrugado entrou na cozinha.
— Sai fora, velho pidão — disse Torce Pinho. — Você não precisa de
carne.
O homenzinho não parava de bater nele, socando e chutando, até esgotar toda a
sua raiva. Torce Pinho nunca tinha visto uma coisa assim.
pancada em troca. Quando os outros voltaram, Torce Pinho olhou bem na cara
de Racha Rocha e viu que ele havia passado pela mesma experiência. Mas os dois
ficaram quietos, porque queriam ver como Hans ia se virar.
No dia seguinte, os dois foram caçar e Hans ficou no castelo para cozinhar.
Estava parado junto ao fogo retirando a gordura de uma grande panela de caldo,
quando o homenzinho entrou e pediu um pedaço de carne.
“É um pobre diabo”, Hans pensou. “Vou dar para ele um pouco da minha
parte, assim não fica faltando para os outros.” Cortou um bom pedaço de carne,
que o homenzinho engoliu de uma vez. Assim que o pedaço sumiu, o
homenzinho pediu mais e Hans, bondoso como era, cortou mais uma fatia e
falou: — É um bom pedaço. Deve bastar para você.
— Bem feito para vocês que foram tão mesquinhos — disse. — Deviam se
envergonhar, dois sujeitos grandes como vocês, apanharem de um macaquinho
daqueles. Não tem importância, vamos dar uma lição nele.
Acharam uma cesta e uma corda e foram até a pedra na floresta, onde o
homenzinho havia desaparecido. O buraco era muito fundo. Amarraram a corda
na cesta e deixaram Hans com seu cajado de cinquenta quilos descer primeiro.
estava o homenzinho, com expressão maliciosa alisando seu cabelo e seu rosto
com os dedinhos cascudos.
Assim que viu Hans, ele deu um guincho e pulou como um macaco. Hans
bateu a porta para ele não escapar, depois tentou pegá-
lo, mas o homenzinho
saltou pelas paredes, rebatendo para cá e para lá, uivando e resmungando, e
Hans não conseguiu nem tocar nele. Era como tentar pegar uma mosca com um
lápis. Enfim, Hans conseguiu encurralá-
lo, girou o cajado acima da cabeça e
desferiu no diabinho um golpe que arrasou com ele.
— É, bom, não importa agora — disse Hans. — Ainda temos de tirar você
dessa caverna. Tenho aqui um cesto e dois sujeitos para puxar você para cima.
Suba aí.
Mas Hans não tinha certeza de poder confiar em seus companheiros. “Eles
não me contaram que tinham levado uma surra do homenzinho”, pensou. “Não
sei o que podem estar planejando agora.” Então, em vez de entrar no cesto, pôs
seu cajado de ferro ali dentro e puxou a corda mais uma vez. O cesto subiu, mas
não chegou nem à metade da subida e os outros dois o deixaram cair com um
estrondo no fundo. Se Hans estivesse sentado nele, teria morrido
instantaneamente.
“Bom, eu tinha razão sobre esses dois”, ele pensou, “mas o que vou fazer
agora?”
Ficou andando de um lado para outro no pequeno espaço no fundo da
fenda, mais e mais desesperado. Não conseguia pensar num jeito de escapar.
“Será um fim miserável morrer aqui no fundo deste maldito buraco”, pensou.
— Está, sim, senhor. E amarraram a moça para evitar que ela pule na água.
— Ah, coitadinha! O que ela está passando! Bom, logo vou cuidar desses
bandidos. Para que lado fica o mar?
— Por ali, meu senhor.
Hans partiu, correndo o mais depressa que podia e não demorou muito
para chegar ao mar. Pisando na ponta dos pés e protegendo os olhos contra o sol
que se punha, Hans conseguiu ver na penumbra a forma de um pequeno navio.
— São eles?
— Sim, senhor.
De fato, arrastou-
o para o fundo do mar, causando grande agitação entre os
polvos e estrelas-do-mar.
— Para sudeste — ela disse, e Hans pediu aos espíritos do ar que soprassem
as velas. Com o belo vento que eles providenciaram, o navio logo chegou ao
porto, onde Hans devolveu a princesa a seu pai e sua mãe.
Ela contou sobre a valentia de Hans e naturalmente não havia nada a fazer
senão se casarem. O rei e a rainha ficaram encantados com seu genro e todos
viveram felizes para sempre.
***
Histórias semelhantes: “O homenzinho ruivo e peludo”, “Tom e o gigante bobo”, “Tom Hicka
de Katharine M. Briggs (Folk Tales of Britain); “A bola dourada”, de Italo Calvino (Italian Fo
Esta história é uma colcha de retalhos, não muito bem combinados. Os ladrões em sua caverna
para que se escape deles; Torce Pinho e Racha Rocha, os dotados companheiros, não
oportunidade de usar seus dons; e quanto ao nobre selvagem que raptou a princesa, el
história como agente que põe a princesa na caverna, e não se fala mais dele. Será que esqueceu
morto em algum outro negócio selvagem? Ele não podia reaparecer, assim Hans vence
tremenda e seria ainda mais heroico?
Por outro lado, por que o homenzinho mau não é, na história, o sequestrador da princesa em v
apenas seu guarda? Teria sido uma forma simples de esclarecer o assunto.
E então há o anel que invoca os espíritos do ar. Encontrar uma coisa assim numa caverna da q
não há meios de escapar lembra muito fortemente “Aladim”. E por que o homenzinho mau nã
para derrotar Hans?
E assim por diante. Quando se começa a “melhorar” o conto desse jeito, ele pode fac
desmanchar em nossas mãos.
A lua
Muito tempo atrás, havia um país onde a noite era sempre escura. Depois do pôr
do sol, o céu cobria o mundo como um manto negro, porque a lua nunca surgia
e nenhuma estrela brilhava na escuridão. Muito tempo antes, quando o mundo
foi criado, tudo brilhava delicadamente e havia luz suficiente para se ver, mas
depois tudo se apagou.
Um dia, quatro rapazes desse país partiram numa viagem e chegaram a um
reino bem no momento em que o sol estava se pondo atrás das montanhas.
— Ah, é a lua, é, sim — disse ele. — Foi nosso prefeito que comprou.
Pagou três táleres por ela. Tem de encher de óleo todo dia e deixar bem
limpinha para ela brilhar bonito assim, e pagamos um táler por semana para
fazer esse serviço.
De volta a sua terra, amarraram a lua num carvalho bem alto. Todo mundo
ficou assombrado quando a nova lâmpada lançou sua luz por todos os campos e
brilhou através de todas as janelas. Até os anões saíram de suas cavernas nas
montanhas para dar uma olhada, e os pequenos elfos com seus paletós vermelhos
saíram dos campos e dançaram ao luar.
Os quatro amigos cuidavam da lua. Eles a mantinham sempre limpa,
aparavam o pavio e não deixavam faltar óleo para queimar. Recebiam um táler
por semana, recolhido entre a população.
Quando o segundo morreu, outro quarto da lua foi enterrado com ele e a
luz ficou ainda mais fraca. A mesma coisa aconteceu com o terceiro e, quando o
quarto morreu, não havia mais luz nenhuma e as pessoas tinham de sair com
uma lanterna, batendo nas coisas como no tempo antigo.
Ficaram impressionados de poder ver de novo; o luar era bem forte para eles
porque seus olhos estavam fechados havia tanto tempo que o sol teria sido claro
demais. Sua alegria não tinha fim, saíram de suas tumbas e começaram a se
divertir. Jogavam cartas, dançavam, iam a tavernas, se embebedavam, discutiam
e brigavam, erguiam suas bengalas e se batiam, e a briga entre eles foi se
tornando mais e mais barulhenta até que chegou lá em cima, no céu.
São Pedro, que guarda os portões lá no alto, pensou que tinha começado
uma revolução e convocou uma legião celestial para afastar o Diabo e sua turma
infernal. Porém, quando os diabos não apareceram, ele montou seu cavalo
sagrado e foi ao mundo inferior para ver o que estava acontecendo.
não sobrar quase nada, depois devolve de novo ao longo de um mês, para
ninguém esquecer quem é que manda.
Mas não leva para o mundo inferior os pedaços que tira. Tem um armário
especial para guardá-los. Entre os mortos, continua escuro como sempre foi.
***
Fonte: história de Märchen für die Jugend (Tales for the Young; 1854), de Heinrich Pröhle.
Wilhelm Grimm incluiu esta história na sétima e última edição de Die Kinder- und H
1857, e é de tipo um pouco diferente da maioria dos outros contos, constituindo uma espécie d
criação que logo se transforma em um conto de ridículo. Tem um brilho irresistível, embora te
tanto abruptamente, com São Pedro pendurando a lua no céu. Achei que isso merecia certa ela
Era uma vez uma mulher muito velha que vivia com seu bando de gansos num
lugar solitário entre as montanhas, onde sua casinha era cercada por uma densa
floresta. Toda manhã ela pegava sua muleta e ia mancando até a floresta, onde se
ocupava colhendo mato para seus gansos e as frutinhas silvestres que conseguia
alcançar. Punha tudo nas costas e levava para casa. Se encontrava alguém no
caminho, sempre cumprimentava, simpática: — Bom dia, vizinho! Lindo dia! É
grama, sim, o que eu levo aqui, o quanto posso carregar. Nós todos temos de
levar nosso fardo.
Mas por alguma razão as pessoas não gostavam de se encontrar com ela.
Quando a viam vindo, pegavam outro caminho e, se um pai com seu filhinho
cruzava com ela, o pai sussurrava: — Cuidado com essa velha. Ela é cheia dos
truques. Não me admira nada se for uma bruxa.
Uma manhã, um rapaz muito bonito estava dando um passeio pela floresta.
O sol brilhava, os pássaros cantavam, uma brisa fresca agitava as folhas e ele
estava alegre e feliz. Não tinha visto ninguém naquela manhã, mas de repente
encontrou a velha bruxa ajoelhada no chão, cortando mato com uma foice.
Tinha já um grande fardo de mato bem cortado e dois cestos cheios de maçãs e
peras selvagens.
— Nossa! — disse ele. — A senhora não vai carregar tudo isso, vai?
— Ah, vou, sim, senhor — disse ela. — Gente rica não precisa fazer essas
coisas, mas nós pobres temos um ditado: “Não olhe para trás, tudo o que vai ver
é como está curvado.” Será que o senhor poderia me ajudar? Tem as costas bem
retas e pernas bem fortes. Tenho certeza de que consegue com toda facilidade.
Não é muito longe a minha casinha, não dá para ver, mas é daquele lado.
O rapaz sentiu pena dela e disse: — Bom, eu sou uma dessas pessoas ricas,
devo confessar, meu pai é um nobre, mas fico feliz de mostrar que não são só
vocês, camponeses, que são capazes de carregar coisas. Levo, sim, o seu fardo até
sua casa.
— Muita bondade sua, meu senhor — disse ela. — Deve levar uma hora de
caminhada, mas tenho certeza de que o senhor não se importa. Pode carregar as
maçãs e peras para mim também.
— Mas é bem pesado — disse o rapaz. — Este mato... é grama, não é? Pesa
como tijolos! E as peras podiam ser blocos de pedra. Mal consigo respirar!
Ele gostaria de deixar tudo no chão, mas não queria que a velha caçoasse
dele. Ela já o provocava cruelmente.
Enquanto o chão estava plano, ele até que conseguia levar o peso, mas assim
que o caminho virou uma subida, seus pés rolavam nas pedras, que escorregavam
como se estivessem vivas e ele mal conseguia se mexer. Surgiram gotas de suor
em seu rosto, que escorreram quentes e frias por suas costas.
— Ah, não, não vai parar, não! — disse a velha. — Pode parar e descansar
quando a gente chegar, mas até lá tem de continuar caminhando. Nunca se sabe.
— Não adianta ficar bravo, meu jovem senhor — disse ela. — Está com a
cara mais vermelha que um peru. Leve sua carga pacientemente e quando chegar
em casa, posso te dar uma gorjeta.
Então, de repente, ela deu um pulo e pousou em cima da trouxa nas costas
dele, e lá ficou. Era magra como um caniço, mas pesava mais que a mais robusta
— Onde estava, mãe? — ela perguntou. — Demorou tanto que achei que
tinha acontecido alguma coisa com a senhora.
— Ah, não, minha linda — disse a velha. — Encontrei este cavalheiro que
se ofereceu para carregar minha trouxa para mim. E olhe, ele até se ofereceu para
me levar nas costas quando fiquei cansada. A conversa foi tão agradável que nem
sentimos o tempo passar.
Por fim, a velha desceu das costas do jovem conde e pegou a trouxa e as
cestas.
— Pronto, meu senhor — disse ela —, agora sente e descanse. Merece uma
pequena recompensa. Quanto a você, meu tesouro precioso — disse à outra
mulher —, melhor entrar em casa. Não seria adequado ficar sozinha com um
rapaz assim tão sensual. Sei como são os rapazes. Ele pode se apaixonar por você.
O conde não sabia se ria ou chorava. Mesmo que fosse trinta anos mais
nova, pensou, aquele tesouro nunca acenderia seu coração.
A velha se ocupou com os gansos como se fossem seus filhos, antes de entrar
atrás da filha. O rapaz deitou-se num banco debaixo de uma macieira. Era uma
linda manhã; o sol brilhava, quente, o ar estava agradável e a toda volta se
estendia um campo verde coberto de prímulas, tomilho silvestre e mil outras
flores. Um riacho transparente tremulava ao sol correndo pelo meio do campo,
e os gansos brancos nadavam para lá e para cá.
“Que lugar adorável”, o rapaz pensou. “Mas estou tão cansado que nem
consigo ficar de olhos abertos. Acho que vou dormir um pouco. Espero que o
vento não leve embora minhas pernas; estão mais fracas que gravetos.”
— Hora de acordar — disse ela. — Não pode ficar aqui. Admito que não
foi fácil para o senhor, mas ainda está vivo e aqui está sua recompensa. Eu disse
que ia te dar alguma coisa, não disse? O senhor não precisa nem de dinheiro,
nem de terras, então leve isto aqui. Cuide bem e trará sorte ao senhor.
O que ela deu a ele foi uma caixinha feita com uma única esmeralda. O
Então seguiu seu caminho sem olhar para trás para ver o “tesouro precioso”.
Durante um longo tempo, ainda conseguia ouvir pela estrada o alegre ruído dos
gansos.
Ficou vagando na floresta pelo menos três dias antes de encontrar a saída.
Acabou chegando a uma grande cidade, onde o costume era que todo estranho
comparecesse perante o rei e a rainha; então foi levado ao palácio, onde o rei e a
rainha estavam sentados em seus tronos.
Era branca como a neve e rosada como a flor de maçã, o cabelo brilhava como
os raios de sol. Quando chorava, não eram lágrimas que corriam por seu rosto,
mas pérolas e pedras preciosas.
“O rei disse: ‘Minhas filhas, como não sei quando chegará o meu último
dia, vou decidir hoje mesmo o que cada uma de vocês receberá depois de minha
morte. Vocês todas me amam, mas a que me amar mais terá a maior parte de
meu reino.’
“Cada uma das meninas disse que o amava, mas ele queria mais que isso.
“‘Me diga exatamente o quanto me ama’, ele falou. ‘Então saberei o que
quer dizer.’
“A filha mais velha disse: ‘Amo o senhor como se fosse o açúcar mais doce.’
A segunda falou: ‘Amo o senhor como amo meu vestido mais bonito.’
“Mas a terceira filha não disse uma palavra. Então, o pai perguntou: ‘E
“Mas ele continuou e continuou exigindo uma resposta até que ela
encontrou alguma coisa com que comparar o seu amor e disse: ‘Por melhor que
seja a comida, não terá gosto de nada sem sal. Então amo meu pai como amo o
sal.’
“Quando o rei ouviu isso, ficou furioso e disse: ‘Se é assim que me ama, é
assim que seu amor será recompensado.’
“Então, dividiu o reino entre as duas filhas mais velhas e mandou que
amarrassem um saco de sal nas costas da mais nova, que dois criados deviam
levar para o coração da floresta. Nós todos imploramos misericórdia, mas ele
não mudou de ideia. Ah, como ela chorou quando foi forçada a ir embora! O
caminho ficou coberto de pérolas. Não muito depois, o rei se arrependeu do que
tinha feito e mandou procurar na floresta de um lado a outro, mas ela nunca foi
encontrada.
“Quando penso que pode ter sido devorada por animais selvagens, mal
consigo suportar a dor. Às vezes, me consolo pensando que ela deve ter
encontrado abrigo em uma caverna, ou que encontrou gente boa para cuidar
dela, mas...
O jovem conde contou como havia lhe sido dada por uma velha na floresta,
que ele acreditava ser uma bruxa, porque tudo nela o deixava inquieto. Porém,
disse, era a primeira vez que ouvia falar da filha da rainha. O rei e a rainha
resolveram partir imediatamente para encontrar a velha, na esperança de que ela
pudesse lhes dar notícias de sua filha.
Nessa noite, a velha estava sentada em sua casinha, fiando com sua roca. Caía a
noite e a única luz vinha de um tronco de pinho queimando na lareira. De
repente, ouviram-
se altos gritos do lado de fora, com os gansos voltando da
A filha sentou ao lado dela, pegou a sua roca e torceu o fio com a mesma
habilidade de qualquer moça nova. As duas ficaram sentadas lado a lado durante
duas horas, sem trocar uma palavra.
A velha disse: — Bom, minha filhinha, está na hora de você sair e fazer seu
trabalho.
A filha se levantou. Aonde foi? Atravessou o regato e desceu para o vale, até
chegar a três velhos carvalhos junto a uma fonte. A lua estava cheia e tinha
acabado de surgir de trás da montanha. Estava tão claro que dava para encontrar
um alfinete no chão.
A filha desprendeu a pele no pescoço, tirou o rosto por cima da cabeça antes
de se ajoelhar junto à fonte para se lavar. Feito isso, mergulhou na água a pele do
rosto falso, torceu e pôs para secar e clarear na grama. Mas que mudança
ocorrera com ela! Não dava para acreditar! Depois que o rosto sem graça e a
peruca grisalha saíram, seu cabelo se espalhou como sol líquido pelos ombros. Os
olhos cintilavam como estrelas, suas faces eram rosadas como a flor de maçã mais
recente.
Mas essa moça, tão linda, era triste. Sentou-se junto à fonte e chorou
amargamente. Lágrima após lágrima rolava por seu cabelo comprido e caía na
grama. Lá ficou ela, e teria ficado por um longo tempo se não ouvisse um
farfalhar entre os ramos de uma árvore próxima. Como uma corça assustada
com o som do rifle do caçador, ela deu um salto. Ao mesmo tempo, uma nuvem
escura passou sobre a face da lua e na repentina escuridão a donzela vestiu sua
velha pele e desapareceu como a chama de uma vela soprada pelo vento.
Tremendo como uma folha, ela correu para a casinha, onde a velha estava
parada na porta.
Levou a moça para a sala e pôs mais uma acha de lenha na lareira. Mas não
voltou à roca de fiar; pegou uma vassoura e começou a varrer o chão.
— Mas, mãe, por que está fazendo isso? É tarde! O que está acontecendo?
— Não passa da meia-noite — disse a moça —, mas deve passar das onze.
— E você não se lembra que no dia de hoje, três anos atrás, você veio para
mim? O prazo acabou, querida. Não podemos mais ficar juntas.
A moça ficou assustada. — Ah, mãe — disse —, você não vai me mandar
embora, vai? Para onde eu vou? Não tenho amigos, não tenho casa. Fiz sempre
tudo o que me pediu, a senhora sempre ficou satisfeita com meu trabalho... Por
favor, não me mande embora!
disse ela. — Mas, antes de ir embora, a casa tem de estar impecável. Então, não
me atrapalhe e também não se preocupe muito. Vai encontrar um teto para se
abrigar e vai ficar bem satisfeita com as quantias que vou te dar.
— Já disse uma vez e vou dizer de novo: não interrompa meu trabalho. Vá
para seu quarto, tire a pele de seu rosto e ponha o vestido de seda que estava
usando quando chegou aqui. Depois, espere até eu chamar.
Enquanto isso, o rei e a rainha continuavam sua busca pela velha que havia dado
ao jovem conde a caixa de esmeralda. Ele tinha ido com os dois, mas se separara
deles no coração da floresta, precisava seguir sozinho. Pensou que tinha
encontrado o caminho certo, mas quando a luz do dia se apagou, achou melhor
não seguir em frente pelo risco de se perder de verdade. Então subiu numa
árvore, pensando em passar a noite ali em segurança entre os galhos.
Mas, quando a lua surgiu, ele viu alguma coisa se movimentando no campo
e ao luar reconheceu a moça dos gansos que tinha visto na casa da velha. Ela
estava saindo do meio das árvores e ele pensou: “Aha! Se eu pegar uma das
bruxas, logo vou ter a outra na mão.”
Mas ela parou na fonte e removeu a pele; o conde quase caiu da árvore de
surpresa. Quando seu cabelo dourado se espalhou sobre seus ombros e ele a viu
claramente à luz da lua, percebeu que era mais bonita que qualquer pessoa que
tinha visto na vida. Mal ousava respirar. Mas não conseguiu resistir e inclinou-se
para ver mais de perto. E ao fazê-lo, apoiou-
se demais num ramo seco, que
estalou e assustou a moça. Ela se levantou depressa, vestiu a outra pele e então
uma nuvem passou diante da lua. Na repentina escuridão, ela desapareceu.
O conde desceu da árvore imediatamente e correu atrás dela. Não tinha ido
muito longe pelo campo quando viu dois vultos chegando à casa. Eram o rei e a
rainha, que tinham avistado a luz da lareira acesa pela janela. Quando o conde os
alcançou e contou o milagre que havia visto na fonte, eles tiveram certeza de que
a moça era sua filha.
Cheios de alegria e de esperança, correram até chegar à casinha. Os gansos
estavam dormindo, com as cabeças debaixo das asas, e nenhum deles se moveu.
A princesa foi correndo para sua mãe e seu pai, abraçou e beijou os dois.
Eles choravam de alegria, não conseguiam evitar. O jovem conde estava ali ao
lado, e quando ela o viu, seu rosto ficou vermelho como uma rosa, e ela não
sabia por quê.
O rei disse: — Minha filha querida, o meu reino eu já dei. O que posso te dar?
— Ela não precisa de nada — disse a velha. — Darei a ela as lágrimas que
derramou por causa de vocês. Cada uma é uma pérola mais preciosa que
qualquer pérola encontrada no mar e valem mais que o seu reino inteiro. E
como recompensa por ter cuidado dos gansos, darei a ela a minha casa.
Quando a velha acabou de dizer isso, desapareceu. As paredes da casa
rangeram e tremeram, e quando o rei, a rainha, a princesa e o conde olharam
em torno, viram que havia se transformado em um lindo palácio. Havia uma
mesa posta digna de um imperador e criados correndo para todo lado, fazendo o
que pedissem.
A história não termina aí. O problema é que minha avó, que me contou
essa história, está perdendo a memória e esqueceu o resto.
Mas acho que a bela princesa se casou com o conde, que ficaram juntos e
viveram felizes. Quanto aos gansos brancos como a neve, alguns dizem que na
verdade eram meninas que a velha havia pegado para cuidar, e é provável que
tenham retomado a forma humana e ficado no castelo para servir à jovem
rainha. Não seria surpresa.
Quanto à velha, ela não pode ter sido uma bruxa, como as pessoas achavam,
mas sim uma mulher sábia e bem-
intencionada. Por que ela tratou o jovem
conde daquele jeito quando se encontraram? Bem, quem pode saber? Ela pode
ter enxergado a personalidade dele e descoberto ali duas ou três sementes de
arrogância. Se assim foi, soube lidar com isso.
***
Este é um dos mais sofisticados de todos os contos. No coração dele está a velha história da pr
diz amar o pai como sal e é castigada por sua sinceridade. Há muitas variações desse conto, in
Lear.
Mas veja o que esta narrativa muito literária faz. Em vez de começar com a princesa boa e infe
a esconde até bem avançada a história e começa com outra figura completamente dife
mulher sábia; e não com um único acontecimento também, mas com um esboço do que ela faz
o que seu modo de vida habitual a levou a fazer e a reação que despertava nos outros. Mas ela
não? Contos de fadas geralmente nos revelam isso diretamente; este, em vez disso, nos mostra
pessoas pensavam dela e permite que a questão continue equívoca, indeterminada. A alma da
já está flertando com o modernismo, no qual não existe nenhuma voz com autoridade
temos nenhuma visão a não ser uma que passa através de um par específico de olhos (o pai e s
mas todos os pontos de vista humanos são parciais. O pai pode estar certo, pode não estar.
Mas então, nas palavras da rainha (a alma da história outra vez, se certificando de que só pode
saber algo que alguém da história saiba), chegamos ao cerne do conto, a história da m
verdade sobre amar o pai tanto quanto o sal. Ela chorava lágrimas que eram pérolas,
caixa está uma dessas pérolas. Agora vemos a relação que o contador de histórias esta
acontecimentos misteriosos e daqui em diante o conto se desenvolve rapidamente até o
dos gansos tira a pele ao luar (e mais uma vez só vemos isso porque o conde está observando)
beleza oculta; a velha a trata com grande ternura, diz para vestir o vestido de seda; o
chegam juntos e a verdade é revelada.
E então vem mais um lembrete da parcialidade do conhecimento: o narrador diz que a história
termina ali, mas que a velha que originalmente a contou está perdendo a memória e e
Mesmo assim, pode ser que... e assim por diante. Este conto maravilhoso mostra como se pode
uma estrutura complexa com a base mais simples e mesmo assim continuar imediatamente com
Era uma vez um moleiro e sua mulher, que viviam felizes, com dinheiro
suficiente e um pedaço de terra, ficando confortavelmente mais ricos a cada ano.
Mas a infelicidade vem até mesmo para pessoas como eles, e tiveram um azar
atrás do outro, de forma que sua fortuna foi ficando menor e menor até terem
apenas o moinho em que moravam. O moleiro estava muito aborrecido; não
conseguia dormir e a noite inteira se virava e revirava na cama enquanto suas
ansiedades cresciam e cresciam.
Primeiro, o moleiro não conseguia falar, mas quando ouviu a voz dela tão
doce criou coragem e contou que havia sido rico um dia, mas que a fortuna fora
diminuindo pouco a pouco e agora estava tão pobre que não sabia o que fazer.
— Não se preocupe — disse a ninfa. — Vou tornar você mais feliz e mais
rico do que jamais foi. Só tem de prometer me dar o que acaba de nascer em sua
casa.
coração pesado, foi até a cama da mulher. Ela disse: — Por que está tão triste?
Ele contou a ela o que tinha acontecido e como a ninfa o havia enganado.
— Eu devia ter adivinhado! — ele disse. — Nada de bom vem de criaturas
como essas. E o que adianta o dinheiro, afinal? O que adianta ouro, tesouros, se
temos de perder nosso filho? Mas o que podemos fazer?
Tudo o que ele fazia dava certo; as colheitas eram boas, então havia muito grão
para moer e os preços se mantinham estáveis; parecia não haver nada errado, e
sua caixa se enchia quase que sozinha, o cofre cheio até estourar. Bem depressa
estava mais rico do que jamais havia sido.
Mas não aproveitava nada. Seu trato com a ninfa o atormentava. Não
gostava de andar perto do tanque do moinho no caso de ela emergir e cobrar sua
dívida. E claro que nunca deixou o filho chegar nem perto da água.
Mas os anos passaram e não havia sinal da ninfa, e pouco a pouco o moleiro
começou a se tranquilizar.
Quando chegou a noite e o caçador não voltou para casa, a esposa ficou
ansiosa. Foi procurar por ele e lembrando quantas vezes ele havia lhe dito que
tinha de tomar cuidado com o tanque do moinho, adivinhou o que havia
acontecido. Correu para lá e, assim que encontrou sua sacola de caça caída no
gramado da margem, não teve mais dúvida. Chorou alto e torceu as mãos,
chamou o nome dele muitas e muitas vezes, tudo em vão. Deu a volta até o
outro lado do tanque do moinho e chamou de lá, amaldiçoou a ninfa com toda
a paixão de seu coração, mas não teve nenhuma resposta. A superfície da água
estava lisa como um espelho no entardecer e tudo o que ela podia ver era o
reflexo da meia-lua.
A pobre mulher não saiu de perto do tanque. Circundou mais de uma vez a
margem, às vezes depressa quando pensava ter visto alguma coisa se agitar do
outro lado, às vezes devagar, olhando cuidadosamente o fundo da água bem a
seus pés, mas não parava nem um momento. Algumas vezes, gritava alto o nome
do marido, outras vezes chorava. E depois de passada uma boa parte da noite,
quando ela estava no fim de suas forças, deixou-
se cair na grama e adormeceu em um instante.
O dia já havia raiado. Como nada exigia sua presença em casa, ela decidiu
realizar o sonho. Sabia onde ficava aquela montanha e partiu imediatamente.
— Entre, minha filha — disse a velha —, e sente comigo. Vejo que está
vivendo um momento muito infeliz. Deve ter sofrido para procurar minha
cabana solitária.
Ao ouvir essas palavras gentis, a jovem esposa começou a chorar, mas logo
se controlou e contou toda a história.
A jovem esposa voltou para casa e os dias seguintes passaram muito devagar.
Finalmente a lua cheia subiu acima das árvores, ela foi ao tanque do moinho,
sentou na relva da margem e começou a pentear o cabelo com o pente de ouro.
A jovem esposa voltou para casa com o coração apertado. Mas nessa noite
teve o sonho outra vez, de forma que mais uma vez partiu para encontrar a
cabana no campo florido. Dessa vez, a velha lhe deu uma flauta de ouro.
— Espere até a próxima lua cheia — disse ela — e leve a flauta até a água.
Sente na margem e toque uma linda melodia. Depois de fazer isso, deixe a flauta
na relva e veja o que acontece.
“Ah, isto vai partir meu coração!”, ela pensou. “Ver duas vezes o meu
amado, só para perdê-lo de novo. É demais para suportar!”
Mas, quando dormiu, teve o sonho outra vez. Então partiu para a
montanha uma terceira vez e a velha a consolou.
— Não fique muito aflita, querida. A coisa ainda não terminou. Você tem
de esperar mais uma lua cheia e levar esta roca de fiar para o tanque do moinho.
Sente na margem e fie. Quando o fuso estiver cheio, deixe a roca e veja o que
acontece.
A jovem esposa fez exatamente o que ela disse. Quando a lua estava cheia,
teceu todo um fuso de linha à margem da água; depois deixou a roda dourada e
se afastou. A água se agitou, borbulhou e atacou a margem com mais violência
que nunca, uma grande onda arrebatou a roca de fiar para dentro do tanque. E
no mesmo momento uma outra onda se ergueu e trouxe com ela primeiro a
cabeça e os braços do caçador, depois seu corpo inteiro, e ele saltou para a
margem, pegou a mão da esposa e correram para se salvar.
Mas atrás deles uma grande convulsão estava esvaziando toda a água do
tanque do moinho. A água correu para a margem, atravessou o campo atrás do
casal com força terrível, derrubando árvores e arbustos, de forma que eles
temeram pela vida. Em seu terror, a esposa chamou a velha e imediatamente
esposa e marido foram transformados em rã e sapo. Quando a água os cobriu,
não conseguiu afogá-
los, mas separou um do outro e levou ambos para bem longe.
— Ah — disse ela —, a lua estava cheia assim quando toquei essa mesma
melodia numa flauta e a cabeça de meu amado apareceu acima da água...
Ele olhou para ela e foi como se um véu caísse de seus olhos, pois
reconheceu sua querida esposa. E quando ela olhou o rosto dele ao luar,
reconheceu-o também. Caíram nos braços um do outro, se beijaram, se
abraçaram e se beijaram de novo e ninguém precisa perguntar se foram felizes.
***
Fonte: uma história de Moritz Haupt, publicada em Zeitschrift für Deutsches Alterthum
antiguidades alemãs), vol. 2 (1842).
Nixies [aqui traduzida por “ninfa”], selkies, sereias, rusalki, seja lá como forem chama
problema. Esta não é exceção à regra, mas ela é vencida no fim: a fiel esposa ama mais que ela
do reconhecimento mútuo do marido e da esposa no final é muito tocante, e o padrão da imagé
estabelecido antes exige que a descoberta seja feita à luz da lua cheia, que cria assim
artístico como ocular. Em qualquer outra noite, eles não conseguiriam se ver com clareza.
Eu gostaria de saber a melodia que foi tocada na flauta. A “Canção da lua”, da ópera
Dvořák, de 1901, serviria muito bem.
Os doze caçadores
Era uma vez um príncipe que estava noivo de uma princesa a quem amava com
todo o carinho. Um dia, enquanto namoravam alegremente, chegou uma
mensagem dizendo que o pai dele estava muito doente e queria vê-
lo antes de morrer.
Então foi embora e, quando chegou ao palácio de seu pai, descobriu que ele
estava mortalmente doente. Na verdade, estava à beira da morte.
O rei disse: — Meu filho querido, queria mesmo ver você mais uma vez
antes de morrer. E quero que me faça uma promessa.
O príncipe estava tão triste que não pensou duas vezes e respondeu: —
Naturalmente a notícia correu por toda parte e não demorou muito para
sua primeira noiva ficar sabendo da história. Ela ficou tão chocada com a
infidelidade dele que quase definhou, e o pai dela disse assim: — Minha querida,
o que está acontecendo com você? Posso fazer alguma coisa para te deixar mais
feliz? É só dizer que eu faço.
Ela então pensou um pouco e disse: — Pai, o que eu mais quero são onze
moças muito parecidas comigo.
mas poucas eram bem parecidas. No fim, porém, ela acabou satisfeita e depois de
selecionar as onze mais parecidas em todos os aspectos, mandou fazer doze trajes
de caçadores e ela usaria o décimo segundo.
O rei não a reconheceu. As doze, porém, tinham tão bom aspecto com suas
roupas de caça que ele disse que contratava todas; então ficaram a seu serviço e
passaram a ser conhecidas como Caçadores do Rei.
— Bonitos podem ser. Mas não são caçadores. Na verdade, nem homens
são. São mulheres.
— Prove!
— Muito bem — disse o leão. — Pegue umas ervilhas secas e espalhe no
chão de sua antessala. Se forem homens, vão pisar em cima delas com passo
firme. Mas, se forem mulheres, vão andar nas pontas dos pés, afastar e chutar as
ervilhas para os lados. Fique observando e veja se estou errado.
Porém, uma das criadas do rei gostava muito dos doze caçadores e, sabendo
que iam ser testados desse jeito, contou para eles.
— Devem ter descoberto que iam ser testados — disse o leão. — Tenho
uma ideia melhor. Dessa vez, ponha doze rocas de fiar na antessala. O negócio é
que moças e mulheres conseguem disfarçar o jeito de andar, mas não conseguem
esconder o que sentem de fato, e todas adoram rocas de fiar. Quando virem as
rocas, vão parar para admirar e experimentar. Pode crer, não vão conseguir
resistir.
Ele mandou arrumar as rocas de fiar na antessala e mais uma vez a criada
que gostava dos caçadores contou para eles o que o leão havia aconselhado.
— Não aguento mais os seus conselhos — disse. — Eles não valem nada.
— Mas elas devem ter sido avisadas! — disse o leão. — Alguém entregou o
plano.
Cada vez que o rei ia caçar, levava junto seus doze caçadores e, quanto mais
tempo passavam a seu lado, mais o rei gostava deles. Ora, um dia, quando
estavam caçando, veio um mensageiro a galope contar para o rei que sua noiva
estava a caminho. A noiva verdadeira ouviu isso, o coração se agitou em seu
peito e ela caiu desmaiada.
Achando que seu caçador favorito tinha sofrido um acidente, o rei correu e
tirou a luva do caçador para sentir o seu pulso. E lá estava o anel que ele tinha
dado à sua amada para que se lembrasse dele. Perplexo, olhou o seu rosto e a
reconheceu na mesma hora.
Sem pensar, beijou-a e quando ela abriu os olhos, ele disse: — Você é
minha e eu sou seu. Nada nem ninguém poderá mudar isso.
Mandou um recado, dizendo para a outra noiva voltar para seu reino, pois
já tinha uma noiva, e tendo encontrado uma chave antiga, não precisava de uma
nova.
Então o casamento dos dois foi celebrado com grande alegria e o leão
recuperou seus favores, porque, afinal de contas, estava certo a respeito dos
caçadores, mesmo que seu conselho não tivesse conseguido revelar o segredo.
***
O irmão mais novo, porém, que se alistou um ou dois anos depois, não era
menos valente, mas teve menos sorte. A guerra tinha acabado e não havia nada
para um soldado honesto fazer além de servir de sentinela, marchando de um
lado para outro, parecendo esperto. Só que, por mais esperto que parecesse, não
havia chance de promoção para ele.
— Não acredite nesse patife — disse o general. — Ele está mentindo e vou
mandar que seja chicoteado.
Então ensinou seu truque ao rapaz e logo depois, vendo que esse era o
único benefício que sua carreira no exército ia lhe dar, o jovem soldado pediu
dispensa e seguiu seu caminho. Não tinha nada além de uma capa de lã e um par
de botas de couro de búfalo e como nunca havia aprendido nenhuma profissão,
teve de enfrentar muitas dificuldades.
— Lindas botas — disse o soldado. — Deve ter levado um bom tempo para
elas ficarem brilhando desse jeito. Estas minhas velhas botas de couro de búfalo
nunca foram engraxadas, mas me serviram em tempos bons e ruins e ainda vão
servir por muitos anos. Para onde está indo, amigo?
— Confesso que estou perdido — disse o caçador. — Sabe para onde vai
essa estrada?
— Ah, de jeito nenhum — disse ela —, aqui não posso, não. Esta casa é de
um bando de ladrões e, se vocês sabem o que é melhor para vocês, vão embora
depressa antes que eles cheguem. Se encontrarem vocês aqui, matam vocês dois.
— Sinceramente — disse o soldado —, para mim tanto faz morrer de fome
na floresta ou levar a facada de um ladrão no coração. Faz dois dias que não
como nada e meu estômago não consegue aguentar mais. A senhora parece
boazinha, tenha pena de um soldado e do meu amigo aqui.
O caçador não queria entrar, mas o soldado o puxou pela manga. — Venha
— disse —, vamos comer alguma coisa antes de eles acabarem com a gente.
— Não aguento — cochichou para o caçador. — Vou sentar à mesa com eles.
Os ladrões nunca tinham visto nada igual. O chefe ficou tão impressionado
com a audácia do soldado que disse: — Tudo bem, venha e sente aqui. Pode
comer um pouco da carne. Mas assim que terminar de jantar, acabou-se. Vamos
fazer você achar que seria melhor ter passado fome.
— Comida muito boa — disse ele, com a boca cheia. — Mas eu ia gostar
de beber alguma coisa. Me passe a garrafa. Ah, olhe só, está vazia. Que pena.
Ergueram a mão direita, abriram a boca e assim ficaram. Não podiam se mexer.
Eram como estátuas de pedra.
— Não enquanto ainda houver comida na mesa. Faz meses que não vejo
um banquete assim. Venha, sente e coma o quanto puder. Esses passarinhos só
vão se mexer quando eu mandar.
A velha trouxe mais uma garrafa do melhor vinho, uma boa torta de maçã
e, o melhor de tudo, uma jarra de creme. O soldado não se levantou até ter
comido por três.
— Volte comigo — ele disse ao caçador. — Quero ver a cara deles quando
acordarem.
Assim que ele tirou a rolha e tomou um gole, agitou a garrafa acima da
cabeça dos ladrões e gritou: — À saúde de todos vocês!
Mas o rei estendeu a mão para ele e disse: — Você é um bom soldado e
salvou a minha vida. Vou cuidar para que tenha o melhor tratamento de agora
em diante.
— Então é isso que vai ter — disse o rei. — E a hora que quiser comer, é só
chegar até a porta da cozinha real e sempre haverá uma fatia de carne para você.
Mas, se quiser beber à saúde de alguém, vai ter de pedir minha permissão
primeiro.
***
Fonte: Friedmund von Arnim, Hundert märchen im Gebirge Gesammelt (Cem histórias
1844).
Neste conto, a “magia” é produzida por hipnotismo ou, como provavelmente seria cham
tempo, mesmerismo, devido a Franz Mesmer (1734-
1815), criador da prática. Grimm (ou sua fonte,
Friedmund von Arnim) não fornece explicação de como o soldado adquiriu sua capaci
mesmerismo, então eu sugiro uma. Sem dúvida o hipnotismo, como fenômeno da moda e intri
conhecido dos leitores de Grimm, da mesma forma que os feitos de Derren Brown
público da televisão britânica hoje. E, de qualquer modo, é engraçado.
O hipnotismo aparece em outro conto de Grimm, A viga da galinha, no qual um mágico leva u
multidão a acreditar que uma galinha está carregando uma viga pesada quando tem em seu bic
uma haste de palha. O personagem de quadrinhos Mandrake, o mágico, que começou
desvendando crimes em 1934, convencia criminosos, cientistas loucos e outros indesejáveis, q
transformado em pedra através de um “gesto hipnótico”. Tentei fazer isso quando era
funcionou.
A ideia do irmão que se torna general vem da história de Afanasiev, que é uma narrativa preci
bem construída, mas não tem hipnotismo. Em vez disso, o soldado corta as cabeças dos ladrõe
e bate no rei por dormir na guarda.
4 Derren Brown é um mágico, mentalista e artista múltiplo famoso na televisão britânica. (N.T
A chave dourada
Num dia de inverno, quando a neve estava alta no chão, um menino pobre foi
mandado à floresta buscar lenha para o fogo. Ele recolheu alguns ramos caídos e
carregou em seu trenó, mas em seguida sentiu tanto frio que pensou em fazer
uma fogueira para se aquecer um pouco antes de ir para casa.
— Onde tem uma chave — disse para si mesmo — tem uma fechadura por
perto.
***
Esta é uma das várias histórias que não têm fim. Muitas delas são a respeito de um
levar um grande rebanho de carneiros por uma ponte pequena, um de cada vez: “Entã
primeiro, depois o segundo, depois o terceiro...” Ou então é uma formiga enchendo um
milho: “Ela levou o primeiro grão, depois o segundo...”
Outro jeito de apresentar uma história dessas é com a famosa frase de abertura: “Era
escura de tempestade.” Nessa variação, alguém está contando uma história sobre alguém
contando uma história sobre alguém que... — e assim por diante.
“A chave dourada” não depende da repetição, mas de terminar antes do fim, por assim dizer. E
padrão aparece em diversos romances, filmes ou peças de teatro incômodos nos quais,
solução depende de uma carta dizendo se X conseguiu ou não a vaga na universidade, ou qual
de um teste de gravidez, ou qual o veredito de um júri. Um carteiro chega à porta, a heroína co
abrir a mão para revelar a cor do teste, o júri volta da sala de reunião e então aparece o letreiro
O que faz a gente desconfiar que o autor simplesmente não sabia como terminar a his
desleal.
Neste caso, porém, o cenário é um pouco mais interessante. A partir da segunda edição dos Gr
(1819), esse conto sempre aparece por último, sugerindo que talvez existam ainda histórias ma
serem descobertas. Dados os tesouros que eles já revelaram em sua magnífica coleção,
confiar.
Mossy e Tangle estão procurando a terra para onde vão as sombras: “E nesta altura, acho que d
chegado lá.”
Document Outline
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Sumário
Introdução
Bibliografia
O rei sapo ou Henrique Ferro
O gato e a rata vão morar juntos
O menino que saiu de casa para aprender a tremer
João Fiel
Os doze irmãos
Irmãozinho e Irmãzinha
Rapunzel
Os três homenzinhos na floresta
João e Maria
As três folhas da cobra
O pescador e sua mulher
O alfaiate valente
Cinderela
O enigma
O rato, o pássaro e a salsicha
Chapeuzinho Vermelho
Os músicos de Bremen
O osso cantor
O Diabo com os três fios de cabelo dourado
A moça sem mãos
Os elfos
O noivo ladrão
Padrinho Morte
O junípero
Rosa Silvestre
Branca de Neve
Rumpelstiltskin
O pássaro dourado
Desfazendeiro
Milpeles
Jorinda e Joringel
Seis que se deram bem no mundo
Hans Jogador
A cotovia cantante e saltitante
A pastora de gansos
Pele de urso
Os dois companheiros de viagem
Hans Meu Ouriço
A pequena mortalha
Tostões roubados
O repolho de burro
Um Olho, Dois Olhos, Três Olhos
Os sapatos que dançaram até virar farrapos
Hans Ferro
Monte Simeli
Heinz Preguiçoso
Hans Forte
A lua
A menina dos gansos na fonte
A ninfa do tanque do moinho
Os doze caçadores
As botas de couro de búfalo
A chave dourada