Gell - Encantamento
Gell - Encantamento
Gell - Encantamento
a antropologia social é antiarte … [pois] a atitude do público amante da arte, no que diz respeito
ao que está contido na National Gallery, no Museum of Mankind e em outros – e assim por diante (e
com um assombro estético que beira o religioso), é uma atitude irredimivelmente etnocêntrica, não
obstante ser louvável em todos os outros aspectos.
antropologia da arte, o objetivo definitivo da qual deve ser a dissolução da arte; da mesma
maneira que a dissolução da religião, da política, do parentesco e de todas as outras formas sob as
quais a experiência humana é apresentada à mente socializada deve ser o objetivo definitivo da
antropologia em geral.
Parece-me incontestável que a teoria antropológica da religião dependa do que tem sido chamado
por Peter Berger de ‘ateísmo metodológico’ … As conseqüências da possibilidade de haver
verdades genuinamente religiosas repousam fora do campo de referências da sociologia da religião.
… a estética é um ramo do discurso moral, que depende da aceitação dos artigos iniciais da fé: de
que no objeto esteticamente valorizado reside o princípio da Verdade e do Bem, e de que o estudo
de objetos esteticamente valorizados constitui-se em caminho rumo à transcendência. Na medida
em que almas modernas possuam religião, essa religião é a religião da arte …
O filistinismo metodológico consiste em assumir uma atitude de indiferença resoluta no que diz
respeito ao valor estético das obras de arte – o valor estético que elas possuem, seja do ponto de
vista local ou do esteticismo universal. … o primeiro passo a ser tomado no projeto de uma
antropologia da arte é efetuar uma completa ruptura com a estética
o sociologismo de Bourdieu (e.g. 1968), que nunca olha realmente o objeto de arte mesmo como
um produto concreto do engenho humano, mas apenas o seu poder de marcar distinções sociais; ou
a abordagem iconográfica (e.g. Panofsky, 1962), que trata a arte como uma espécie de escrita e
que falha, igualmente, em levar antes o objeto apresentado em consideração que seus significados
simbólicos representados.
Reconhecemos obras de arte, como uma categoria, porque elas são o resultado de processo técnico,
a espécie de processo técnico no qual os artistas são peritos. A principal deficiência da abordagem
estética é a de que os objetos de arte não são os únicos objetos esteticamente valorizados: há belos
cavalos, belas pessoas, belos ocasos, e assim por diante; mas os objetos de arte são os únicos que
são belamente produzidos ou feitos belos .
Como sistema técnico, a arte é orientada na direção da produção das conseqüências sociais que
decorrem da produção desses objetos. O poder dos objetos de arte provém dos processos técnicos
que eles personificam objetivamente: a tecnologia do encanto é fundada no encanto da tecnologia.
O encanto da tecnologia é o poder que os processos técnicos têm de lançar uma fascinação sobre
nós, de modo que vemos o mundo real de forma encantada.
estímulos particulares de percepção … Penso que há todos os motivos para acreditar que os seres
humanos possuem sensibilidade inata a padrões como os dos ocelos … Esses elementos sensitivos
podem ser experimentalmente demonstrados em crianças e no repertório comportamental de
macacos e outros mamíferos.
Há inúmeros exemplos de desenhos, nos cânones da arte primitiva, que podem ser
interpretados como sendo ‘exploradores’ de tendências características da percepção visual
humana, e que nos enredam em reações involuntárias, algumas das quais podem ser
comportamentalmente significantes.
A tábua de proa é uma arma psicológica poderosa, mas não por conseqüência dos efeitos visuais
que produz. Sua eficácia pode ser atribuída ao fato de que essas perturbações, por si só tenras, são
interpretadas como evidência do poder mágico que emana da tábua. Esse poder mágico é que pode
privar o espectador de sua razão.
o fato de processos técnicos, como a escultura de tábuas de proa para canoas, serem pensados como
elaborados magicamente de modo que, nos encantando, façam com que os produtos desses
processos técnicos pareçam ser portadores encantados de poder mágico. … a tábua de proa não é
ofuscante como objeto físico, mas como uma amostra da vocação artística só explicada mediante
termos mágicos …
Simmel sugere que o valor de um objeto dá-se na proporção da dificuldade que nós pensamos que
enfrentaremos para obter aquela coisa em particular mais do que qualquer outra. … a troca é o
primeiro meio empregado no sentido de sobrepujar a resistência oferecida pelos objetos desejados,
o que os torna desejáveis, e que o dinheiro é a forma pura do meio, tendo como objetivo empenhar-
se na troca e realizar o desejo.
objetos valorizados apresentam-se para nós rodeados por uma espécie de resistência de efeito-halo,
e que é essa resistência a nós que é a fonte de seu valor.
Seu poder [dos objetos de arte] reside nos processos simbólicos que eles provocam no admirador, e
esses possuem características sui generis que são independentes dos próprios objetos e do fato de
que eles são possuídos e trocados. … A resistência que elas oferecem, e que cria e sustenta esse
desejo, é a de serem possuídas num sentido antes intelectual que material: a dificuldade que
tenho em abarcar mentalmente seu vir-a-ser como entes, em um mundo acessível a mim, por
meio de um processo técnico que, uma vez que transcende meu entendimento, sou forçado a
explicar como sendo mágico.
o virtuosismo técnico é intrínseco à eficácia das obras de arte em seu contexto social …
Não importa qual escola vanguardista leve-se em conta, sempre há o caso de os materiais, e as
idéias associadas a esses materiais, serem tomados e transformados em alguma outra coisa …
alquimia essencial da arte, que é a de fazer o que não existe do que existe, e fazer o que existe do
que não existe.
há uma homologia entre os processos técnicos envolvidos na arte e os processos técnicos de forma
geral … Só temos tendência a negar isso porque temos tendência a depreciar a significância do
domínio técnico na nossa cultura, a despeito de sermos expressamente dependentes da tecnologia
em todos os departamentos da vida. Supõe-se que a tecnologia seja embotada e mecânica, oposta à
verdadeira criatividade e aos tipos de valores autênticos que se supõe que a arte represente. Mas
essa visão distorcida é um subproduto do status semi-religioso da arte em nossa cultura, além do
fato de que o culto da arte, assim como os outros cultos, está, tanto quanto possível, sob uma
forçosa necessidade de esconder suas reais origens.
Relações sociais são aquelas geradas por processos técnicos os quais, pode-se dizer amplamente,
constituem a sociedade, ou seja, de maneira lata, os processos técnicos de produção de
subsistência e outros bens, e de produção (reprodução) de seres humanos, os socializando e
alimentando.