Direito Do Trabalho:: Releituras, Resistência

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 18

Direito do Trabalho:

Releituras, Resistência
Organizadores
GERMANO SIQUEIRA
GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO
SILVANA ABRAMO ARIANO
JOSÉ APARECIDO DOS SANTOS
SAYONARA GRILLO

Direito do Trabalho:
Releituras, Resistência
EDITORA LTDA.
© Todos os direitos reservados

Rua Jaguaribe, 571


CEP 01224-003
São Paulo, SP — Brasil
Fone (11) 2167-1101
www.ltr.com.br
Maio, 2017

Produção Gráfica e Editoração Eletrônica: GRAPHIEN DIAGRAMAÇÃO E ARTE


Imagem de Capa: O QUARTO ESTADO, Giuseppe Pellizza da Volpedo, 1901
Finalização de Capa: FÁBIO GIGLIO
Impressão: ORGRAFIC GRÁFICA E EDITORA

versão impressa — LTr 5805.3 — ISBN 978-85-361-9272-7


versão digital — LTr 9175.0 — ISBN 978-85-361-9300-7

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Direito do trabalho : releituras, resistência / organizadores Germano Siqueira...


[et al.]. — São Paulo : LTr, 2017.

Vários autores.
Outros organizadores: Guilherme Feliciano, Silvana Abramo, José Aparecido
dos Santos, Sayonara Grillo.

Bibliografia.

1. Direito do trabalho 2. Direito do trabalho — Brasil I. Siqueira, Germano.


II. Feliciano, Guilherme. III. Abramo, Silvana. IV. Santos, José Aparecido dos. V.
Grillo, Sayonara.

17-04356 CDU-34:331

Índices para catálogo sistemático:


1. Direito do trabalho   34:331
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.................................................................................................. 7

1ª SEÇÃO. TEORIA GERAL DO DIREITO DO TRABALHO

O Capital. Crítica da Economia Política — O Processo de Produção do


Capital...................................................................................................................... 11
Comentários a “O Capital” de Karl Marx. Flávio Roberto Batista..................... 17

Carta Encíclica «Rerum Novarum» do Sumo Pontífice Papa Leão XII............. 33


A Contribuição da Cultura Social Cristã para o Direito do Trabalho. Jair
Aparecido Cardoso.............................................................................................. 35

El Derecho del Trabajo y la Equidad.................................................................... 51


A Compreensão da Equidade no Direito do Trabalho: Resgatando o Tema pela
Releitura de Mario de la Cueva. Rodolfo Pamplona Filho e Claiz Maria Pereira
Gunça dos Santos................................................................................................ 57

As Espécies Jurídicas Correspondentes às Formas de Sociabilidade................ 71


O Direito Social de Gurvitch e a Autonomia Coletiva. José Aparecido dos
Santos................................................................................................................... 77

Princípios de Direito do Trabalho......................................................................... 95


Dos princípios do Direito do Trabalho no Mundo Contemporâneo. Guilherme
Guimarães Feliciano........................................................................................... 115

A Legalização da Classe Operária......................................................................... 139


A Legalização da Classe Trabalhadora — Uma Releitura a Partir do Recorte da
Luta de Classes. Marcus Orione.......................................................................... 141
6 Direito do Trabalho: Releituras, Resistência

2ª SEÇÃO. DIREITO INDIVIDUAL DO TRABALHO


Apontamentos de Direito Operário....................................................................... 157
Ensaio para uma Releitura de Evaristo de Moraes em Apontamentos de Direito
Operário. Ericson Crivelli................................................................................... 165
Derecho del Trabajo................................................................................................ 183
Estabilidade no Emprego Segundo Manuel Alonso Olea e Maria Emilia Casas
Baamonde. Augusto César Leite de Carvalho..................................................... 185
Teoria e Prática do FGTS....................................................................................... 197
A Atualidade de Amaro Barreto e os Dilemas do Fundo de Garantia. Homero
Batista Mateus da Silva....................................................................................... 201
Manual de Direito do Trabalho. Direito Individual do Trabalho — Empregado
Doméstico................................................................................................................. 217
Um Reencontro Doméstico com o Professor Magano. Antonio Umberto de
Souza Junior........................................................................................................ 227

3ª SEÇÃO. MEIO AMBIENTE DO TRABALHO


A Loucura do Trabalho. Estudo de Psicopatologia do Trabalho........................ 247
A Loucura do Trabalho — Estudo de Psicopatologia do Trabalho — Christophe
Dejours. Sebastião Geraldo de Oliveira................................................................... 259

4ª SEÇÃO. DIREITO COLETIVO E SINDICAL DO TRABALHO


A Proteção Contra os Atos Antissindicais............................................................. 289
Revisitando Oscar Ermida Uriarte: A Proteção Contra os Atos Antissindicais à
Luz do Conteúdo Histórico-Institucional da Liberdade Sindical. Paulo Roberto
Lemgruber Ebert.................................................................................................. 295

5ª SEÇÃO. DIREITOS HUMANOS E DIREITO DO TRABALHO


A Condição Jurídica e os Direitos dos Migrantes Indocumentados................... 313
Trabalhador Imigrante, Direitos Fundamentais e o Parecer Consultivo OC-
18/03 da Corte Americana de Direitos Humanos. Ana Paula Sefrin Saladini.... 321
APRESENTAÇÃO

Caro leitor;
No momento em que no Brasil vive a triste realidade de uma forte desconstrução
legislativa dos princípios e fundamentos do Direito do Trabalho, no contexto de uma
chamada reforma trabalhista, que na verdade inverte todos os balizamentos desse
ramo do conhecimento jurídico, é com grande orgulho que, ainda por ocasião dos atos
comemorativos dos 40 anos da ANAMATRA, apresento esta obra, que tem a finalidade
de simbolizar e traduzir, ao mesmo tempo, ato de resistência, conclamando todos os
operadores jurídicos a revisitar textos clássicos da doutrina estruturante do Direito do
Trabalho no Brasil e no mundo, campo de reflexão sobre a necessidade de reposicionar o
enfoque dos legítimos fundamentos juslaborais. 
Sem preconceito ou sectarismo, o projeto contempla o resgate da leitura de autores da
maior importância para a compreensão do papel histórico dessa disciplina, identificando
com clareza o papel de cada sujeito na complexa relação capital e trabalho. 
Neste volume, os seguintes autores históricos: Alonso Olea, Amaro Barreto, Américo
Plá Rodriguez, Bernard Edelman, Cançado Trindade, Casas Baamonde, Christophe
Dejours, Evaristo de Morais, Georges Gurvitch, Karl Marx, Mario de la Cueva, Oscar
Ermida Uriarte, Octavio Bueno Magano e Papa Leão XIII. Foram convidados para
comentar seus preciosos textos: Ana Paula Sefrin Saladini, Antonio Umberto de Souza
Júnior, Augusto César Leite de Carvalho, Claiz Maria Pereira Gunça dos Santos, Ericson
Crivelli, Flávio Roberto Batista, Guilherme Feliciano, Homero Batista Mateus da Silva, Jair
Aparecido Cardoso, José Aparecido dos Santos, Marcus Orione, Paulo Roberto Lemgruber
Ebert, Rodolfo Pamplona Filho e Sebastião Geraldo de Oliveira, tornando-se essencial a
leitura.
Em um país marcado pela desigualdade, a centralidade do Direito do Trabalho
é indiscutível. Não um Direito do Trabalho que tutele interesses dos economicamente
abonados, mas daqueles desprotegidos socialmente.
Compreendendo que o Direito do Trabalho é um legítimo instrumento de civilidade
nos domínios da sociedade capitalista, é importante considerar que a sua degradação 
implica rebaixar as próprias condições existenciais daqueles que são, afinal de contas,
os humanos destinatários de sua proteção, sem a qual caminharemos para a completa
barbárie.
8 Direito do Trabalho: Releituras, Resistência

Que todos nós possamos refletir sobre esses temas, sobre os tempos atuais e,
principalmente, sobre os tempos que nos esperam, que não prescindem nem prescindirão
dos valores fundantes do Direito do Trabalho.
Boa leitura!
Germano Silveira de Siqueira ,
Presidente da Anamatra.
1ª SEÇÃO

TEORIA GERAL DO DIREITO DO TRABALHO

Claiz Maria Pereira Gunça dos Santos


Flávio Roberto Batista
Guilherme Guimarães Feliciano
Jair Aparecido Cardoso
José Aparecido dos Santos
Marcus Orione
Rodolfo Pamplona Filho
Q
O CAPITAL
Crítica da Economia Política — O Processo de Produção do Capital — Livro 1
(MARX, Kart. O Capital. Crítica da Economia Política. O Processo de Produção
do Capital — Livro 1, 1867)
(MARX, Kart. O Capital. Crítica da Economia Política. Tomo I e II. São Paulo:
Editora Nova Cultural, 1996)
Karl Marx

(...) Somente a partir da Lei Fabril de 1833


Depois que o capital precisou de sé- — abrangendo a indústria algodoeira, a
culos para prolongar a jornada de trabalho indústria do linho e seda — nasceu para a
até seu limite máximo normal e para ultra- indústria moderna uma jornada normal de
trabalho. Nada caracteriza melhor o espírito
passá-lo até os limites do dia natural de 12
do capital que a história da legislação fabril
horas, ocorreu então, a partir do nascimento
inglesa de 1833 até 1864!
da grande indústria no último terço do
século XVIII, um assalto desmedido e vio- (...)
lento como uma avalancha. Toda barreira O emprego de crianças menores de
interposta pela moral e pela natureza, pela 9 anos, com exceções que mencionaremos
idade ou pelo sexo, pelo dia e pela noite mais tarde, foi proibido, o trabalho de
foi destruída. Os próprios conceitos de dia crianças entre 9 e 13 anos limitado a 8 horas
e noite, rusticamente simples nos velhos diárias. Trabalho noturno, isto é, segundo
estatutos, confundiram-se tanto que um essa lei, trabalho entre 8 1/2 horas da noite
juiz inglês, ainda em 1860, teve de empregar e 5 1/2 horas da manhã, foi proibido para
argúcia verdadeiramente talmúdica, para toda pessoa entre 9 e 18 anos.
esclarecer “juridicamente” o que seja dia Os legisladores estavam tão longe
e o que seja noite. O capital celebrava suas de querer tocar a liberdade do capital na
orgias. extração da força de trabalho dos adultos,
Logo que a classe trabalhadora, ator- ou como eles a denominavam, “a liberdade
doada pelo barulho da produção, recobrou do trabalho”, que imaginaram um sistema
de algum modo seus sentidos, começou apropriado para coibir essa horripilante
sua resistência, primeiro na terra natal da consequência da Lei Fabril.
grande indústria, na Inglaterra. Contudo, (...)
durante três decênios, as concessões con-
Sob o nome de sistema de turnos (system
quistadas por ela permaneceram puramente
of relays; relay significa tanto em inglês como
nominais. O Parlamento promulgou, de
em francês: troca dos cavalos da posta nas
1802 até 1833, 5 leis sobre o trabalho, mas
diferentes estações) foi portanto realizado
foi tão astuto que não voltou um tostão
esse “plano” de tal forma que das 5 1/2
sequer para sua aplicação compulsória, para
horas da manhã até a 1 1/2 da tarde foi
os funcionários necessários etc. Essas leis atrelada ao trabalho uma turma de crianças
permaneceram letra morta. entre 9 e 13 anos, e da 1 1/2 da tarde até as
(...) 8 1/2 da noite, outra turma etc.
12 Direito do Trabalho: Releituras, Resistência

(...) veram-se progressivamente das próprias


(...) Em todo caso, fica claro à primeira circunstâncias, como leis naturais do modo
vista que toda a Lei Fabril foi por ele de produção moderno. Sua formulação,
revogada, não apenas em seu espírito, mas reconhecimento oficial e proclamação pelo
também em sua letra... Em reunião com o Estado foram o resultado de prolongadas
Ministro do Interior (1844), os inspetores de lutas de classes.
fábrica demonstraram a impossibilidade de (...)
qualquer controle sob o sistema de turnos Os dois anos de revolta do capital
tramado recentemente. Entrementes, no foram finalmente coroados por uma decisão
entanto, as circunstâncias mudaram muito. de uma das quatro mais altas cortes da
Os trabalhadores fabris, notadamente Inglaterra, da Court of Exchequer, que
a partir de 1838, haviam feito da lei das num caso trazido perante ela decidiu, em
10 horas sua palavra de ordem eleitoral 8 de fevereiro de 1850, que os fabricantes
econômica, como fizeram da Charter sua na verdade agiram contra o sentido da lei
palavra de ordem eleitoral política.... Por de 1844, mas que essa mesma lei continha
mais que o fabricante individual quisesse certas palavras que a tornavam sem sentido.
dar livre curso a sua antiga rapacidade, “Com essa decisão a lei das 10 horas foi
os representantes e dirigentes políticos revogada”. Uma massa de fabricantes que
da classe dos fabricantes ordenavam uma até então ainda havia se abstido de aplicar
atitude diferente e uma linguagem diferente a adolescentes e trabalhadoras o sistema
em face dos trabalhadores. Eles tinham de turnos, atacou agora com as duas mãos.
aberto a campanha para a abolição das
leis do trigo e precisavam da ajuda dos Mas após essa vitória aparentemente
trabalhadores pela vitória! definitiva do capital houve de imediato uma
reviravolta. Os trabalhadores tinham até
(...) então oferecido resistência passiva, embora
Assim surgiu a Lei Fabril adicional inflexível e diariamente renovada. Eles pro-
de 7 de junho de 1844. Entrou em vigor em testaram agora em comícios abertamente
10 de setembro de 1844. Ela agrupava uma ameaçadores em Lancashire e Yorkshire.
nova categoria de trabalhadores entre os A pretensa lei das 10 horas seria, portanto,
protegidos, a saber, as mulheres maiores mero embuste, logro parlamentar, e não te-
de 18 anos. Elas foram em todos os sentidos ria jamais existido! Os inspetores de fábrica
equiparadas aos adolescentes, com o tempo preveniram urgentemente o Governo que o
de trabalho reduzido a 12 horas, sendo- antagonismo de classe havia atingido um
lhes vedado o trabalho noturno etc. Pela grau inacreditável de tensão.
primeira vez via-se a legislação, portanto, (...)
obrigada a controlar direta e oficialmente
também o trabalho de pessoas maiores. Contudo, venceu o princípio com sua
vitória nos grandes ramos industriais, que
(...) constituem a criação mais característica do
Conforme se viu: essas determinações moderno modo de produção. Seu desen-
minuciosas, que regulam o período, limites, volvimento maravilhoso de 1853 a 1860,
pausas no trabalho de modo tão militar- par a par com o renascimento físico e moral
mente uniforme de acordo com o bater do dos trabalhadores fabris, evidenciou-se até
sino, não eram, de modo algum, produto aos olhos mais imbecis. Os próprios fabri-
de alguma fantasia parlamentar. Desenvol- cantes, aos quais foram arrancadas, passo
Direito do Trabalho: Releituras, Resistência 13

a passo, no curso de uma guerra civil de da mão de obra feminina, do trabalho de


meio século, a limitação e regulamentação crianças de todas as idades, de trabalhadores
legal da jornada de trabalho, apontavam não qualificados, em suma, do cheap labour,
orgulhosos para o contraste com os setores do trabalho barato, como o inglês tão
ainda de “livre” exploração. Os fariseus da caracteristicamente o denomina. Isso vale
“Economia Política” proclamaram então não só para toda a produção combinada
a compreensão da necessidade de uma em larga escala, quer use maquinaria, quer
jornada de trabalho legalmente regula- não, mas também para a assim chamada
da como conquista característica de sua indústria domiciliar, seja ela exercida nas
“ciência”. Compreende-se facilmente que, moradias privadas dos trabalhadores ou
depois de terem os magnatas industriais em pequenas oficinas. Essa assim chamada
se conformado e se reconciliado com o moderna indústria domiciliar nada tem em
inevitável, enfraquecesse gradualmente a comum, exceto o nome, com a antiga, que
força de resistência do capital, enquanto, pressupõe artesanato urbano independente,
ao mesmo tempo, a força de ataque da economia camponesa autônoma e, antes de
classe trabalhadora cresceu com o número tudo, uma casa da família trabalhadora. Ela
de seus aliados nas camadas sociais não está agora transformada no departamento
diretamente interessadas. Daí o progresso externo da fábrica, da manufatura ou da
relativamente rápido a partir de 1860. grande loja. Ao lado dos trabalhadores
(...) fabris, dos trabalhadores manufatureiros e
dos artesãos, que concentra espacialmente
Reação do sistema fabril sobre a ma-
em grandes massas e comanda diretamente,
nufatura e o trabalho domiciliar.
o capital movimenta, por fios invisíveis,
Com o desenvolvimento do sistema outro exército de trabalhadores domiciliares
fabril e com o revolucionamento da espalhados pelas grandes cidades e pela
agricultura, que o acompanha, não só zona rural.
se expande a escala da produção nos
(...)
demais ramos da indústria, mas também
se modifica seu caráter. O princípio da A exploração de forças de trabalho
produção mecanizada — analisar o processo baratas e imaturas torna-se, na manufatura
de produção em suas fases constitutivas e moderna, mais desavergonhada do que
resolver os problemas assim dados por meio na fábrica propriamente dita, pois a base
da aplicação da Mecânica, da Química etc., técnica aí existente, substituição da força
em suma, das ciências naturais — torna-se muscular por máquinas e facilidade do
determinante por toda parte. A maquinaria trabalho, lá em grande parte não existe
força portanto sua entrada ora neste ora e, ao mesmo tempo, o corpo feminino ou
naquele processo parcial das manufaturas. ainda imaturo fica exposto, da maneira mais
A cristalização fixa de sua organização, inescrupulosa, às influências de substâncias
oriunda da velha divisão do trabalho, venenosas etc. Ela se torna ainda mais de-
dissolve-se com isso e dá lugar a mudanças savergonhada no assim chamado trabalho
contínuas. Abstraindo isso, a composição domiciliar do que na manufatura, porque a
do trabalhador coletivo ou do pessoal de capacidade de resistência dos trabalhadores
trabalho combinado é revolucionada pela diminui com sua dispersão; toda uma
base. Em antítese ao período da manufatura, série de parasitas rapaces se coloca entre o
o plano da divisão do trabalho funda-se empregador propriamente dito e o traba-
agora, sempre que possível, na utilização lhador, o trabalho domiciliar luta em toda
14 Direito do Trabalho: Releituras, Resistência

parte com empresas mecanizadas ou ao As massas do material de trabalho,


menos manufatureiras no mesmo ramo da matéria-prima, produtos semiacabados
produção, a pobreza rouba do trabalhador etc., são fornecidas pela grande indústria, a
as condições mais necessárias ao trabalho, massa do material humano barato (taillable
como espaço, luz, ventilação etc., cresce a à merci et miséricorde) é constituída de
irregularidade do emprego e, finalmente, “liberados” pela grande indústria e pela
nesses últimos refúgios daqueles que a grande agricultura. As manufaturas dessa
grande indústria e a grande agricultura esfera devem sua origem principalmente à
tornaram “supérfluos”, a concorrência entre necessidade do capitalista de ter à mão um
os trabalhadores alcança necessariamente exército adequado a qualquer flutuação da
seu máximo. A economia dos meios de demanda, pronto para ser mobilizado. Essas
produção, desenvolvida sistematicamente manufaturas deixavam, no entanto, que
apenas pela produção mecanizada, que de subsistisse a seu lado, como ampla base, a
antemão e ao mesmo tempo é o desperdício dispersa atividade artesanal a domicílio.
mais inescrupuloso de força de trabalho e A grande produção de mais-valia nesses
roubo dos pressupostos normais da função ramos de atividades, bem como ao mesmo
do trabalho, acentua agora tanto mais esse tempo o progressivo barateamento de
seu lado antagônico e homicida quanto seus artigos, era e é devida sobretudo ao
menos estiverem desenvolvidas num mínimo de salário necessário para vegetar
ramo da indústria a força produtiva social miseramente somado ao máximo de tempo
do trabalho e a base técnica de processos de trabalho humanamente possível. Foi,
combinados de trabalho. de fato, a barateza do sangue e do suor
(...) humano transformados em mercadoria que
ampliou constantemente e a cada dia amplia
e) Transição da manufatura e do tra- o mercado de escoamento, para a Inglaterra,
balho domiciliar modernos para a grande em particular, o mercado colonial, onde,
indústria. Aceleração dessa revolução pela além de tudo, preponderam os costumes
aplicação das leis fabris a esses modos de e o gosto ingleses. Chegou-se, por fim, a
produzir. um ponto nodal. O fundamento do velho
O barateamento da força de trabalho método, a mera exploração brutal da mão
por meio do mero abuso de forças de de obra, mais ou menos acompanhada
trabalho femininas e imaturas, do mero de divisão do trabalho sistematicamente
roubo de todas as condições normais de desenvolvida, já não bastava ao crescente
trabalho e de vida e da mera brutalidade mercado e à concorrência ainda mais
do trabalho excessivo e noturno choca-se, rapidamente crescente dos capitalistas.
por fim, com certas barreiras naturais não Soou a hora da maquinaria. A máquina
mais transponíveis, o mesmo ocorrendo revolucionária de fato, que se apodera dos
com o barateamento das mercadorias e com diversos e inumeráveis ramos dessa esfera
a exploração capitalista em geral, quando da produção, como confecções, alfaiataria,
repousam nesses fundamentos. Assim que fabricação de sapatos, costura, chapelaria
esse ponto finalmente é alcançado, o que etc., é — a máquina de costura.
demora bastante, soa a hora de introduzir a Seu efeito imediato sobre os traba-
maquinaria e a agora rápida transformação lhadores é, mais ou menos, o de toda
do trabalho domiciliar esparso (ou também maquinaria que, no período da grande
da manufatura) em produção fabril. indústria, se apodera de novos ramos de
(...) atividades. Crianças de menos idade são
Direito do Trabalho: Releituras, Resistência 15

afastadas. O salário dos operários de máqui- músculos por vapor como força motriz. Por
nas se eleva em relação ao dos trabalhadores outro lado, para ganhar em espaço o que é
domiciliares, dos quais muitos pertencem perdido em tempo, ocorre a ampliação dos
aos “mais pobres dos pobres”(the poorest of meios de produção utilizados em comum,
the poor). O salário dos artesãos mais bem o forno, as construções etc., portanto, em
colocados, com os quais a máquina con- uma palavra, maior concentração dos meios
corre, cai. Os novos operários de máquinas de produção e maior aglomeração corres-
são exclusivamente mocinhas e mulheres pondente de trabalhadores. A principal
jovens. Com o auxílio da força mecânica, objeção, apaixonadamente repetida por
elas aniquilam o monopólio do trabalho toda manufatura quando ameaçada com
masculino em tarefas pesadas e expulsam, a lei fabril, é com efeito a necessidade de
de tarefas mais leves, massas de mulheres maior investimento de capital para levar
idosas e crianças imaturas. A concorrência avante a empresa em sua dimensão antiga.
irresistível elimina os trabalhadores manuais No que tange às formas intermediárias
mais débeis. O horrendo crescimento da entre manufatura e trabalho domiciliar,
morte por inanição (death from starvation) em assim como ao próprio trabalho domiciliar,
Londres durante a última década corre para- sua base desmorona com a limitação da
lelo com a expansão da costura a máquina. jornada de trabalho e do trabalho infantil.
As novas operárias da máquina de costura Exploração ilimitada de forças de trabalho
movida com o pé e a mão, ou só com a mão, baratas constitui o único fundamento de sua
ficando elas sentadas ou de pé de acordo capacidade de concorrência.
com o peso, o tamanho e a especialidade da (...)
máquina, despendem muita força de traba-
lho. Sua ocupação torna-se nociva à saúde, Vê-se que o Parlamento inglês, a quem
devido à duração do processo, embora esta seguramente ninguém há de acusar de ge-
seja na maioria das vezes menor do que no nialidade, chegou por meio da experiência
velho sistema. Onde quer que a máquina à convicção de que uma lei coercitiva pode
de costura se abrigue, como na confecção de simplesmente eliminar todas as assim
calçados, espartilhos, chapéus etc., em chamadas barreiras naturais da produção
oficinas já por si acanhadas e superlotadas, contrárias à limitação e regulamentação
multiplica as influências nocivas à saúde. da jornada de trabalho. Com a introdução da
lei fabril num ramo industrial, é concedido,
(...) por isso, um prazo de 6 a 18 meses, dentro
Essa revolução industrial, que se do qual é problema do fabricante eliminar
processa naturalmente, é acelerada de modo os obstáculos técnicos. Para a tecnologia mo-
artificial pela extensão das leis fabris a todos derna, vale literalmente o dito de Mirabeau:
os ramos industriais em que trabalhem Impossible? Ne me dites jamais ce bête de mot!
mulheres, jovens e crianças. A regulamen- Se, porém, a lei fabril acelera assim a matu-
tação obrigatória da jornada de trabalho, ração dos elementos materiais necessários
estabelecendo duração, pausas, início e à transformação da empresa manufatureira
término, o sistema de turnos para crianças, em fabril, apressa, ao mesmo tempo, pela
a exclusão de todas as crianças abaixo de necessidade de maior dispêndio de capital,
certa idade etc., torna necessária, por um a ruína dos pequenos mestres, bem como a
lado, mais maquinaria e a substituição de concentração do capital.
COMENTÁRIOS A “O CAPITAL” DE KARL MARX
(Livro I, Capítulo VIII, 6, e Capítulo XIII, 8)

Flávio Roberto Batista

Procurador Federal em São Bernardo do Campo/SP.


Professor Doutor do Departamento de Direito do Trabalho e da
Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Introdução
Constitui enorme desafio selecionar para comentários um trecho da obra de Karl Marx
no contexto de um trabalho de resgate em releituras de textos clássicos relacionados ao
direito do trabalho, especialmente para abrir o trabalho. Com efeito, além das dimensões
monumentais de sua obra, seja em extensão ou em densidade, são inúmeros os aspectos de
sua crítica da economia política que poderiam dialogar de maneira relevante com a teoria
geral do direito do trabalho, parte dessa releitura em que estes comentários se encontram.
Posto isso, fez-se a opção pelos dois excertos retro, que tratam substancialmente de dois
temas: a formação da classe operária no contexto da luta pela redução da jornada de trabalho
e os horrores da Revolução Industrial.
Ainda que mantida a escolha dos dois temas selecionados, diversos outros textos
poderiam ser retirados d’O Capital para ilustrá-los. Nesse cenário, a opção foi feita por
aqueles que propiciavam melhores condições para o diálogo com temas contemporâneos do
direito do trabalho, em conformidade com a proposta da obra, conforme ficará demonstrado
na sequência do texto.
Sendo assim, nas seções que seguem, O Capital, e em especial seus excertos aqui
selecionados para leitura, será contextualizado na obra de Karl Marx. Depois, sua obra, como
conjunto, será contextualizada em seu tempo e, por fim, será debatida, à luz dos excertos
escolhidos, a atualidade da obra de Marx e o que ela tem a dizer ao direito do trabalho
contemporâneo, cumprindo, com isso, o itinerário de resgatar a importância d’O Capital
para o direito do trabalho e de empreender sua releitura à luz dos desafios sociais hodiernos.

1.  O Capital na obra de Marx: por que escolher os excertos acima?


Marx apresentou, ao longo de sua vida, uma característica muito peculiar em sua
produção intelectual: uma demora excessiva na preparação dos originais de textos para
18 Direito do Trabalho: Releituras, Resistência

publicação. Algumas vezes, por considerar que o livro não deveria, afinal, vir à publicação(1),
outras, por alongar-se demasiadamente para encontrar a melhor forma de redigi-lo antes
que viesse a público. Este último é o caso d’O Capital.
Embora Marx já demonstre preocupações com a economia política desde sua estada
em Paris em 1844, quando redige os manuscritos que ficariam mais tarde conhecidos
como Manuscritos econômico-filosóficos, também de publicação póstuma, a elaboração
propriamente dita d’O Capital começa entre 1857 e 1858, quando Marx conclui a redação
de seu primeiro rascunho, a que deu o nome de Fundamentos para uma crítica da economia
política, ou, em alemão, Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, o que o fez ser
conhecido popularmente, mesmo fora da Alemanha, pela primeira palavra de seu título
em alemão, Grundrisse. Os Grundrisse permaneceram como manuscrito até 1939, quando
foram publicados pela primeira vez em Moscou, a partir do trabalho de Riazanov no Instituto
Marx e Engels. Considerando que a primeira edição do Livro I d’O Capital é datada de 1867,
conclui-se que Marx levou ao menos nove anos para preparar seu texto para publicação,
produzindo, nesse ínterim, inúmeras reelaborações do mesmo texto, sendo que uma delas
até mesmo mereceu publicação autônoma parcial, em 1859, sob o título de Contribuição
à crítica da economia política ou Para a crítica da economia política, de acordo com a
tradução consultada.
A despeito de, como visto, Marx ter investido ao menos nove anos na tarefa, a preparação
d’O Capital para publicação pode ser considerada um trabalho inacabado até depois de
sua morte. O plano original da obra contava quatro livros, dedicados, respectivamente, ao
processo de produção do capital (Livro I, de onde foram extraídos os excertos comentados);
ao processo de circulação do capital (Livro II); ao processo global de produção capitalista
(Livro III); e às teorias sobre o mais-valor (Livro IV). Depois de ter publicado o Livro I em
1867, Marx faleceu em março de 1883, sem ter concluído a preparação para publicação
dos Livros II a IV.
Vê-se, portanto, que, depois de todos esses anos de trabalho sobre o primeiro manuscrito
para preparar o Livro I, Marx não foi capaz, nos dezesseis anos seguintes até sua morte, de
organizar sequer o segundo dos quatro livros previstos. Nesse período final de sua vida,
além de seu ritmo de trabalho ter diminuído muito em razão de problemas de saúde, ele
também se dedicou a questões políticas e militantes, tendo publicado seu clássico A Guerra

(1) Como aconteceu, por exemplo, com A ideologia alemã (MARX; ENGELS, 2007), escrito em conjunto
com Engels. Embora o manuscrito tenha sido finalizado em 1846, sua publicação em livro ocorreu
apenas em 1933, muitos anos depois da morte de Marx e do próprio Engels, que ainda sobreviveu ao
primeiro por alguns anos. A respeito desse episódio, Marx comentou com fina ironia anos mais tarde,
ao redigir o prefácio da obra Para a crítica da economia política, de 1859: “Friedrich Engels, com quem
mantive por escrito um intercâmbio permanente de ideias desde a publicação de seu genial esboço
de uma crítica das categorias econômicas (nos Anais Franco-Alemães), chegou por outro caminho
(compare o seu trabalho Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra) ao mesmo resultado que eu;
e quando ele, na primavera de 1845, veio também instalar-se em Bruxelas, decidimos elaborar em
comum nossa oposição contra o que há de ideológico na filosofia alemã; tratava-se, de fato, de acer-
tar as contas com a nossa antiga consciência filosófica. O propósito tomou corpo na forma de uma
crítica da filosofia pós-hegeliana. O manuscrito, dois grossos volumes in octavo, já havia chegado há
muito tempo à editora em Westfália quando fomos informados de que a impressão fora impedida por
circunstâncias adversas. Abandonamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos, tanto mais a gosto
quanto já havíamos atingido o fim principal: a compreensão de si mesmo”. (MARX, 1982:26).

Você também pode gostar