A Experiência de Deus No Primeiro Livro de Isaías

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A EXPERIÊNCIA DE DEUS NO PRIMEIRO LIVRO DE ISAÍAS

José Mauricio de Carvalho


Natália de Resende Carvalho

RESUMO:

Neste trabalho examina-se a experiência de Deus presente no livro do Profeta Isaías,


começando-se pelo significado da expressão: experiência de Deus. Mostram-se,
inicialmente, referências a um Deus guerreiro, rigoroso e educador que mostra uma nova
face: misericordiosa, consoladora e cheia de esperança. A mudança vêm junto com uma
nova compreensão da figura do Messias, que deixa de ser guerreiro e se torna Servo de
Deus e da ideia de Aliança, centrada na obediência à vontade de Deus e não mais no
sacrifício de animais.

Palavras-chave: Experiência. Isaías. Deus. Aliança. Messias.

A EXPERIÊNCIA DE DEUS - O SUJEITO DESSE TRABALHO

Um trabalho como esse precisa começar pelo esclarecimento do sujeito e objeto


que o constituem. O sujeito é a experiência de Deus, cabendo indagar que tipo de
conhecimento a expressão permite? Experiência tem muitos sentidos, o mais usado é o
conhecimento obtido pelos sentidos. Logo a palavra experiência tem aqui um significado
que se desprega desse sentido usual, adotado pela Ciência e pela Filosofia e que significa
um tipo de consciência decorrente da intuição sensível.
A própria noção de conhecimento vinda do empirismo associa-se ao termo
experiência e significa, diz Abbagnano em seu Dicionário de Filosofia o (1982): "o apelo à
experiência como critério ou cânone de validade do conhecimento" (p. 387). Esse
entendimento da experiência como uma forma de conhecimento decorrente da intuição
sensível, foi adotado por Immanuel Kant no parágrafo inicial da Estética Transcendental,
a primeira parte da Crítica da Razão Pura. Kant esclarece que o conhecimento de algo ou
de alguém só é possível quando o objeto toca nossa sensibilidade. Eis o que escreve (1987):


Filósofo, Pedagogo e Psicólogo pela UFSJ, Especialista em Filosofia Clínica pelo Instituto Packter,
Especialista e Mestre em Filosofia pela UFJF, Doutor em Filosofia pela UGF, Pós Doutorado na UFRJ e na
Universidade Nova de Lisboa Professor Titular do Departamento de Filosofia da UFSJ. E-mail:
josemauriciodecarvalho@gmail.com

Dentista e Especialista em Endodontia pela UNILAVRAS, Consultório em São João del-Rei. E-mail:
natalia_resendeodonto@yahoo.com.br

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na medida em que o objeto nos for dado; a nós homens pelo menos, isto só é por sua vez
possível pelo fato do objeto afetar a mente de certa maneira. A capacidade (receptividade) de
obter representações mediante o modo como somos afetados por objetos denomina-se
sensibilidade (p. 39).

Na medida em que desenvolve essa noção de experiência, Kant traduz o que seria a
base da ciência da natureza do seu tempo: o vínculo entre a sensibilidade e o entendimento
de modo a assegurar a objetividade do conhecimento. Nessa forma de pensar nenhum
objeto nos é dado sem a sensibilidade. Assim, a Crítica da Razão Pura proclama que sem
sensibilidade nenhuma experiência é possível, pois a intuição humana, além da forma que
a constitui está igualmente dependente da matéria, que vem pelas sensações. Essas
considerações de Kant sobre a intuição, lembra-nos Leonel Ribeiro dos Santos (1994):
"permite-nos reconhecer já as possibilidades e os limites, não só de todo o conhecimento,
como de toda a representação humana" (p. 26). E Kant se preocupava em ligar a
experiência ao entendimento não só para assegurar a objetividade do conhecimento, mas
para expor o pensamento de uma forma profunda e justificada.
Nesse artigo não temos como fechar o conceito de experiência ao conhecimento
obtido pela intuição sensível, como se faz na ciência estudada por Kant e na tradição
empirista. Vamos adotar um conceito mais amplo de experiência, tomando-o como uma
forma de saber que sente e/ou saboreia a realidade não só a partir do intuído
sensivelmente, mas do conjecturado além do fenomênico, mas capaz de iluminá-lo. Ao
chamar atenção para essa maneira mais alargada de tratar a experiência, orientados para
uma abertura transcendente, queremos dar-lhe um sentido mais amplo que aprendizagem
nascida dos sentidos. Ao fazê-lo estamos indicando que este mundo de que temos
experiência sensível não esgota a realidade e que temos que permitir a conjectura
preencher aqueles espaços de significação que a intuição sensível não ocupa.
Essa experiência de significado, ampliada por uma noção de realidade que não se
esgota na aparência do mundo, pode ser feita por uma pessoa, mas, por extensão, pode ter
origem num grupo que se articula pelos mesmos elementos de fé transcendente. Esse
indivíduo ou grupo reúne aquisições que reconhecem válidas para outras pessoas porque
essa realidade mais ampla da experiência não prescinde da razão, não vai contra ela, mas
sobretudo não a esgota. Por isso, uma experiência de valores nos mostra um tipo de objeto
que não se esgota na experiência sensível e o esforço humano nunca vai elucidá-lo
completamente. E assim, o que há de limitado no conhecimento e o que o ultrapassa são,
na expressão alegórica de Hessen (1974): "como as duas linhas que não podem se
encontrar senão no infinito, e é para aí que se orienta todo o esforço do homem" (p. 293).
Nesse sentido, a noção de experiência de Deus que adotamos nesse trabalho, tem
semelhança à experiência dos valores morais, porque implica elementos que transcendem
as coisas e a intuição que delas podemos formar. Miguel Reale denominou conjectura a
esse significado de experiência irredutível à intuição sensível. Assim, em assuntos de ética
filosófica, e poderíamos dizer também por extensão aos temas relativos à Sagrada
Escritura, a experiência de Deus é inseparável da conjectura ou melhor ainda, da fé
religiosa na Sua presença. O transcendente situado além do fenomênico de lá amplia e
completa o entendimento que se tem pela experiência da intuição. E o que essa noção de

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experiência significa? Para Reale, é postura diante de algo que é posto ou pressuposto,
como esclareceu em Variações (1999):

distinto de nós mesmos, de tal modo que a antítese realismo/idealismo se põe entre
parêntesis para valer apenas uma visada realístico gnosiológica, ou ontognosiológica, o que
nos permite declarar que toda modalidade de experiência é sempre de ordem positiva,
dizendo respeito ao posto ou pressuposto (p. 16).

O resultado dessa experiência ampla onde o transcendente ilumina o aparente é


um ato consciente, que pode se expressar linguisticamente, inclusive na forma escrita. Isso
chama atenção para o fato de que o modo como uma língua traduz o mundo é também
objeto da experiência, mas também envolve conjecturas e crenças da comunidade que a
utiliza na fala e no ato da escrita. E a crença influi de tal modo na compreensão do mundo
que, "a linguagem fala por nós, mais do que a falamos, pois ela nos obriga a concordar com
o mundo de seus signos e significações" (REALE, 1999, p. 25). E muito ainda há a falar
sobre esse significado da experiência, mas basta lembrar que aquilo que se torna objeto
dessa experiência pode ser compartilhado com outros que partilham da mesma crença que
ilumina o que é percebido pelos sentidos.
No que se refere à noção de experiência de Deus pode-se dizer que o que está no
livro do profeta Isaías, como de resto em toda a Bíblia hebraica é, como dito em Filosofia
da Cultura, um (1999): " tomar Deus como fundamento de onde a vida emerge como um
processo de significado" (p. 79). Isaías examinará os fatos da história vivida tendo Javé
como protagonista. Ele, na experiência do profeta, é um personagem tão real da história
narrada quanto o exército assírio ou as muralhas de Jerusalém, sua realidade não está em
causa, antes dá significado a tudo o que aparece pelos sentidos.

O QUE É O PROFETA?

Antes de seguir em frente temos que considerar o significado da palavra profeta na


tradição bíblica. Não estamos falando de alguém que advinha futuro. Na Bíblia se chama
profeta aquele que anuncia por Outro, uma espécie de porta voz, no caso, de Javé que
anuncia os fatos que a história vai anunciando. E a missão do profeta Isaías foi proclamar,
em nome de Javé, a destruição dos dois reinos, o do Norte (Israel) e o do sul (Judá). O
profeta viveu para testemunhar a destruição do Reino do Norte, destino que também teria
Judá algumas décadas depois. A experiência de Deus encontrada na Bíblia hebraica associa
a benção divina à fé e a fidelidade do crente nas suas promessas. De alguma forma, o
sentido da experiência de Deus consiste em pensar e encontrar, naqueles dias, um
significado para o mal e o infortúnio, um tipo de ensinamento pela via do sofrimento.
Como se diz em O homem e a filosofia (2007): "A experiência de Deus possibilita (entre
outras coisas) pensar o sentido do sofrimento do homem" (p. 218). Em Jeremias, resume
Jaspers, a crença em Deus pode ser a única coisa que reste ao homem que sofre o mal
(1987):

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Se tudo se perder fica apenas isto: Deus existe. Se no mundo uma vida
que se julga orientada por Deus tentou o melhor e contudo fracassou,
permanece todavia essa prodigiosa realidade: Deus existe. Quando um
homem desiste totalmente de si e dos seus propósitos, então essa
realidade pode revelar-se-lhe como sendo a única (p. 37).

Na Bíblia, Isaías é um dos quatro profetas maiores (junto com Jeremias, Daniel e
Ezequiel). O relato de Isaías tem um tom mais esperançoso para o sofrimento que
Jeremias, Deus é capaz de fazer do aparente fracasso uma vitória, Deus vai glorificar o
Servo obediente. Embora aparentemente fracassado, humilhado e morto Ele vai ser
coroado de glória. Deus é capaz de fazer isso, transformar o que é um fracasso aos olhos do
homem, em um acontecimento glorioso.
Os profetas maiores e outros menores formam a literatura profética, um tipo
específico de escrita encontrada no Antigo Testamento. Sobre ela comenta o Novo
Catecismo (1974):
é a parte mais ardorosa do Antigo Testamento, onde a luta pela
fidelidade a Javé é descrita com intensidade. As palavras são
proclamadas nas ruas e nas praças de Jerusalém e alhures: oráculos de
Deus, fixados por escrito (p. 71).

O LIVRO DO Iº ISAÍAS - OBJETO DESSE ESTUDO

Esclarecido o sujeito do artigo passamos à análise do seu objeto. O livro de Isaías é


importantíssimo na tradição judaico cristã, pois é, na literatura profética, o de linguagem
mais elaborada e poética, o que traz maior força simbólica, o que é mais citado na liturgia e
o que estabelece o vínculo mais claro com o Novo Testamento, ao mencionar o Messias
anunciado como o Servo Pobre de Deus.
A partir do século XIX a hermenêutica bíblica dividiu o livro de Isaías em três
seções, escritas por pessoas ou escolas diferentes, já que o texto refere-se a acontecimentos
que se estendem por um período longo com três séculos de duração (do VIII ao V a. C.).
Outras divisões também foram feitas no livro por causa da sua temática, como
explicaremos adiante.
O livro inteiro é composto, portanto, de três partes: Isaías I, II e III. O Iº Isaias,
objeto desse estudo, situa-se historicamente um século e meio antes do cativeiro na
Babilônia.
O comentário de todo o livro que se encontra em O Novo Catecismo esclarece que
a partir do capítulo 40, portanto do IIº e IIIº Isaías, o texto: "é de discípulos posteriores de
sua escola" (p. 71) e não mais propriamente do profeta. Logo, apenas o Iº Isaías é obra
daquele indivíduo e de seus colaboradores imeiatos, o IIº Isaías se refere ao tempo do
exílio e o IIIº é ainda posterior, trata da reconstrução do país, depois da volta do exílio na
Babilônia. Logo, os dois últimos livros, pela diferença de tempo dos fatos que contempla,
foram escritos por continuadores do profeta ou discípulos de sua escola. Apesar dessa
divisão histórico hermenêutica, diz Haroldo Reimer, o livro possui uma unidade
perceptível que deve ser considerada para clarear todo seu significado. Isso significa que se
pode enxergar um revisor final (ou um grupo deles trabalhando conjuntamente) para

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(2006): "fazer a junção das partes, mas cada uma teria (ou conservaria) seu querigma
próprio, isto é, uma ênfase própria na mensagem" (p. 9). Reimer chama atenção para o
fato de que as partes do texto se esclarecem no conjunto da obra, revelando influência das
últimas descobertas da hermenêutica.
Esse esforço de buscar a compreensão da totalidade do texto para clarear o sentido
das partes mencionada por Reimer no parágrafo anterior é uma característica, entre
outras, da hermenêutica desenvolvida por Hans George Gadamer no ensaio Esboço de
fundamentos de uma hermenêutica. Ali ele esclarece que o esforço do intérprete para
chegar ao sentido original, ou para ser fiel ao autor, precisa considerar (1998): "que é à luz
do todo que as partes se revestem da sua função clarificante" (p. 79). Note-se que não se
trata de entrar no pensamento original do autor, pois isso não tem possibilidade já que
exigiria estar dentro de sua pele, mas de apreender o sentido que ele dá ao texto, de chegar
ao mais próximo possível do que ele queria comunicar.
E quem era o profeta Isaías, autor do livro? Ele era natural de e vivia em
Jerusalém. Nasceu por volta de 760 a. C., pertencia à nobreza, seu pai era irmão do rei
Uzias segundo o Talmude, tinha cultura elevada e teve pelo menos dois filhos Sear-Jasube
(7. 3) e Maer-Shalai-Hash-Baz (8.3). Teria vivido pelo menos até 681 a. C. e foi morto pelo
rei Manassés. Sobre o profeta Isaías, Milton Schwantes nos diz essas coisas em Breve
história de Israel (2008):

Provavelmente Isaías vem dos setores da corte da capital, onde teria sido como que um
professor, um sábio, enfim, um funcionário. Conhece a corte por dentro. Sabe de suas
tradições. Como filho de Jerusalém está por dentro das tradições sagradas da cidade. Estas
são duas: Sião e Davi ( a promessa à dinastia de Davi). No início, Isaías se situa dentro dessas
tradições. É feito profeta dentro do próprio templo (cap. 6), passo a passo vai se opondo à
corte, ao sacerdócio. É marginalizado (p. 46).

E o contexto histórico em que foi composto o Iº Isaías? O afastamento entre o


profeta e a dinastia de Davi ocorre no reinado de Acaz e se deve à chamada questão militar
(cap. 7). Isaías contrapõe a força da profecia à confiança nas armas, tanto nas próprias,
como nas alianças que o rei viesse a estabelecer. Isaías é contrário à alianças com os
Assírios e contra eles para garantir a integridade de Judá. As alianças não garantiam, na
prática, a segurança do país e afastavam os judeus de sua crença em Javé pelo contato que
favorecia com povos poderosos e suas crenças. O profeta defende que só se pode confiar
em Deus (nas profecias), não se deve fiar nas alianças sugeridas pelos conselheiros e
militares. Sobre essa confiança na profecia comenta Milton Schwantes: "A profecia é antes
de tudo a palavra de Deus. É Javé que cria a profecia. Os profetas (...) são hermeneutas da
presença de Deus em seu povo" (p. 47).
Esclareça-se que profecia é uma forma de interpretação da vida, exige esforço e
empenho pessoal do profeta, Deus não está soprando no ouvido dele o que ele tem que
escrever, como já se pensou em outros tempos. Dito de um modo singelo, a inspiração é
para viver e não para escrever, ela não afeta a liberdade pessoal do profeta e nem seu
compromisso histórico.

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O episódio de confronto entre o profeta e o rei Acaz, permitiu-lhe reconstruir a


promessa feita a Davi. Nesta nova leitura Isaías associa a herança de Davi à uma criança
sem armas, sem cara de rei, sem palácios, sem exércitos, mas com a dignidade de um
monarca. Portanto, há uma alteração do sentido de aliança com a monarquia, pelo menos
como fora entendida até ali. Também se muda o significado de Messias, de um poderoso
monarca para o Servo pobre de Javé. Isaías falará desse descendente de Davi de forma
edificante: Ele ensinará, será o juiz das nações, Ele governará com justiça e as nações virão
até Jerusalém (2, 2-4). Esse descendente de Davi também encherá de ânimo os
desanimados e levará alento aos que sofrem (35, 4-6), Ele vai separar os bons dos maus
(cap. 7) e seu Reino não terá fim (9, 1-6).
A releitura da promessa de Javé à Casa de Davi iniciada pelo profeta no primeiro
livro terá continuidade no livro Segundo, onde há um cântico do Servo Sofredor de Javé.
Essas referências não se relacionam as experiências com antigos monarcas, mas a um novo
tipo de rei que viria (Is 42, 1-4, 49 1-6, 52, 13-53). Será o sofrimento desse Servo o
instrumento decisivo para a redenção de Israel. Ele é luz para todas as nações (42.6) e
trará a salvação para todos os homens (55, 4-5). Embora as referências possam ser
atribuídas aos ensinamentos de um escritor exilado e sofrendo a dominação política, os
livros do Novo Testamento associam essas referências a um novo rei, identificado como O
servo sofredor, O redentor, e especificamente ao sacrifício de Cristo e a sua morte de cruz,
como se lê no Novo livro da fé (1976):

A fé neotestamentária vê nesses cânticos do servo de Deus a mais clara ligação do Antigo com
o Novo Testamento. Não é somente o lamento puro e simples, do homem das dores, que é
absorvido na paixão de Cristo (Salmo 22). Aqui ressoa a queixa do mediador agonizante. A
mera alusão, a transparecer na figura do servo de Deus, torna-se realidade para fé cristã, na
história da paixão, morte e ressurreição de Cristo (cf. as citações de Isaías em Mt. 20,28; Mc
15, 28 e Lc. 23,33).

O livro de Isaías, indica o motivo da destruição dos reinos de Judá e Israel: o


afastamento de Deus e de seus ensinamentos, mostrando que o profeta associava a
segurança dos Reinos à fidelidade a Javé e à neutralidade política. E por decorrência, o
sofrimento dos dois Reinos devia-se à retirada da proteção divina por causa da maldade
dos homens e do afastamento de suas orientações. As orientações divinas associadas à
segurança de Israel possuem um significado ético, formando uma tradição que liberta
intimamente. Diz-nos isso Karl Jaspers na sua Introdução ao pensamento filosófico
(1993): "o povo outorgou um mandato a Moisés. Submeteu-se à sua autoridade, à
revelação dos dez mandamentos que a Moisés foi feita. E tal submissão não fez o povo
escravo" (p. 106).

A QUESTÃO MORAL ARTICULADA NA TEMÁTICA DO LIVRO DE ISAÍAS

Um eixo importante de construção do livro de Isaías é a valorização da moral


judaica como elemento fundamental da aliança com Deus. Essa lei quando não é observada
fragiliza e afasta o homem de Deus, e o distancia de Deus porque o afasta de sua própria
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humanidade. Assim na simplicidade dos mandamentos judaicos, na medida em que coloca


na consciência a responsabilidade de assegurar a liberdade do sujeito em sua trajetória
vital, encontram-se as bases para as relações humanas corretas, que Isaías não enxergava
na sociedade judaica do seu tempo. O novo Messias anunciado pelo profeta, diferente do
messianismo da casa real de Davi, é a base de uma nova aliança de Deus com os homens. É
esse messianismo que dará à lei o sentido do amor pela radicalização dos mandamentos e
construção de um reino de paz. Por outro lado, não é difícil enxergar na preocupação do
profeta com os mais pobres, a necessidade de resgatar o respeito a todos os membros da
sociedade. Se esse todos ainda se refere aos judeus, nas referências ao novo Reino do
Messias a moral judaica se abre para consolidar a dignidade humana.
O mesmo Karl Jaspers que destacou a importância da consciência pessoal como
condição de cumprimento das normas do decálogo, libertando quem respeita as
orientações e não se tornando escravo por segui-las, aproxima o cumprimento da lei e as
referências ao Messias justo, às exigências da moralidade contida nos mandamentos cuja
força obriga a consciência.
As exigências da lei tratadas como fidelidade a Deus no livro de Isaías são
reconhecidas pela razão como condição de humanidade num Imperativo da consciência
sistematizado por Kant. Essa lei moral sistematizada por Kant, expressa no imperativo
categórico, exige considerar a máxima como norma universal de conduta, como obrigação
moral que determina a obediência à norma sem qualquer outra finalidade que o respeito à
norma, como observa Mónica Guitierres (2006):

Se o fundamento das obrigações impostas pela lei moral não radica em qualquer fim (mas
pura e simplesmente no dever), já que a especificidade da lei moral, em Kant, é precisamente
a incondicionalidade, não se deverá fazer qualquer condição que seja (de qualquer fim) o
critério de reconhecimento da legitimidade da lei (p. 109)

Jaspers dá ao imperativo uma fórmula ainda mais intensa que a encontrada na


obra de Kant. Eis como a formula: "age como se, com tua ação, estivesse criando um
mundo onde o teu princípio de agir pudesse ser válido para todos e para sempre"
(GUITIERRES, 2006, p. 108).
Partindo da meditação ética de Kant, Miguel Reale nela encontra pontos
fundamentais da tradição judaico-cristã, que adota no desenvolvimento de sua teoria dos
valores. Primeiro a noção de aprimoramento dos princípios na experiência histórica dos
grupos, como foi trabalhado o decálogo judaico no livro de Isaías, instrumento de
elaboração de um novo messianismo, que não é mais o de um messias guerreiro, mas o
fiador de uma nova humanidade de justiça e paz como anunciou Isaías. Ele afirma na
Introdução à Filosofia (1989):

Se examinamos os acontecimentos históricos, verificaremos que compõem uma experiência


feliz ou malograda nas conjunturas do tempo, com vitórias e com desenganos, mas sempre
no propósito de dominar a natureza e estabelecer formas de convivência, segundo uma paz
ordenada (p. 161).

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Outro ponto da tradição judaico cristã que merece destaque na análise que Reale
faz dos valores é que o homem é o maior valor como está no decálogo e na síntese cristã
posterior feita pelo Messias no Evangelho. Ele diz:

O homem é o valor fundamental, algo que vale por si mesmo (não importa se for pobre, órfão
ou viúva como se preocupava Isaías) identificando-se o seu ser com sua valia. De todos os
seres, só o homem é capaz de valores, e só as ciências do homem não são cegas para o mundo
das estimativas (REALE, 1989, p. 158).

Esse mesmo conteúdo ético da lei, que enfatiza o respeito à condição humana pelo
cuidado com o mais frágil, reaparece na interpretação que Norman K. Gottwald faz do livro
de Isaías. Ele escreveu (1988): "Entendeu Isaías que o que é justo para Judá consiste em
uma vigorosa procura de justiça social doméstica ligada à neutralidade em assuntos
estrangeiros" (p. 357).
Todas essas análises mostram como a tradição ética judaico cristã encontra-se na
raiz da ética ocidental e como essa ética proclama o cuidado com o homem.
Retornando à preocupação com a experiência de Deus identificada nos fatos, a
ação bélica da Assíria foi, na leitura do profeta, o instrumento usado por Javé para corrigir
seu povo, ou melhor, a arma utilizada por Ele para fazer os judeus retomarem a fidelidade
aos princípios morais que libertam e asseguram a justiça. Lei que faz a vida do homem ser
elevada da brutalidade animal para um novo patamar, como ensina Karl Jaspers no texto
que se segue:

Fossem eles obedecidos (os mandamentos), e não viveríamos num estado de engano (tanto
nos negócios públicos como privados) que encaramos como inevitável, mas teríamos uma
comunidade autêntica e digna de confiança. A moral é evidente, diz um adágio mentiroso.
Evidente é muito ao contrário que reduzimos a moral ao silêncio. Maravilha de simplicidade,
clareza e profundidade para todos os tempos o conteúdo dos dez mandamentos é, de uma
vez, revelado e capaz de convencer o homem enquanto homem (JASPERS, 1987, p. 108).

A ESCRITA DO LIVRO DE ISAÍAS

Apresentada a missão do profeta, a divisão e o tema do livro resta-nos perguntar


pelo estilo dialético e multiforme da escrita do profeta. A compreensão de um texto antigo
exige reconstituir os elementos capazes de esclarecer esse passado. Na avaliação de
Gottwald a forma de escrever do profeta decorria do modo singular com que ele
raciocinava. Explicou (1988):

muitas vezes (ele) via dois ou mais aspectos de uma situação


combinados ou recombinados de maneira transitória num curso
tortuoso de eventos. Seu modo, constantemente em movimento, de
contemplar as mesmas decisões, eventos e processos, provocava
permanente alteração de aparências (p. 359).

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A EXPERIÊNCIA DE DEUS NO PRIMEIRO LIVRO DE ISAÍAS

Isaías era um hábil escritor, utilizou palavras e imagens não encontradas em


outros livros do Velho Testamento. Ele conhecia bem o sofrimento que as guerras trazem
aos povos, o mal que decorre para a sociedade das injustiças (3,1-17), a fome e a privação
que seguiam ao fracasso das colheitas (5, 1-7) e descreveu todas essas formas de mal com
linguagem poética.
Quanto aos livros II e III, eles foram elaborados numa linguagem retórica e
entusiasmada, de incontida alegria pela reconstrução do país, em que pese as enormes
dificuldades que significava reorganizar um país devastado depois da guerra que culminou
no exílio na Babilônia.

A EXPERIÊNCIA DE DEUS NO LIVRO DE ISAÍAS

O CONTEXTO NARRATIVO

O livro Breve história do povo de Israel oferece o contexto em que se desenvolve o


livro do Iº Isaías, o que ajuda a entender a história acima resumida. Pode-se dividir esse
contexto narrativo em duas perspectivas: o que se passa fora dos Reinos de Judá-Israel e o
que está ocorrendo no interior deles. Essa divisão parece necessária para aprofundar o que
já foi apresentado nos itens anteriores.
São dois os movimentos políticos que marcam o período coberto pelo livro:
1. O reino do Norte, com o apoio de Damasco, cidade que conquistara, declara
guerra a Judá. Acaz, rei de Judá, percebe a ameaça contra a dinastia de Davi e se aproxima
de Tiglate-Pileser III, rei da Assíria, propondo-lhe aliança e pedindo-lhe apoio e assegurar
a integridade de seu Reino. A Assíria vence Israel e Damasco e as anexa como províncias
da Babilônia em 732 a. C. Uma revolta contra a Assíria em 720 a. C. leva a destruição de
Samaria, capital de Israel.
2. Vinte anos depois da destruição da Samaria, em 701 a. C., um outro rei Assírio
de nome Senaquerib decide ampliar seus domínios até o Egito e cerca várias cidades de
Judá que eram o caminho até a terra dos faraós. Várias cidades são destruídas e ocorre o
cerco de Jerusalém. Ezequias rei naquele momento, ao contrário do seu pai Acaz, confia a
Javé a defesa da cidade. O exército de Senaquerib é dizimado por uma peste e rompe-se o
cerco de Jerusalém.
Esses acontecimentos mostram o crescimento do Reino Assírio, explicado por
Milton Schwantes como resultado de uma segunda revolução do ferro que aquele povo
dominou bem. Isso lhes permitiu criar ferramentas agrícolas mais eficientes, aumentando
e melhorando a produção de alimentos. As novas técnicas de fundição também permitiram
armar melhor os exércitos assírios com espadas e lanças mais eficientes, armaduras mais
leves e escudos mais resistentes. Com esses equipamentos bélicos o exército assírio tornou-
se poderoso e destruidor. Isaías se referia ao avanço das tropas assírias como um grande
estrondo para dizer que fazia grande barulho em sua passagem destruidora ( 9,4).
Schwantes destaca ainda que a dominação política assíria, que se estendeu por
toda a região, era mais eficiente que a egípcia, que não tinha a capacidade bélica e a

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organização administrativa para controlar os povos da região e dependia dos acordos com
os reis locais e das expedições anuais para cobrar impostos e saquear. Os assírios ao
contrário, estabeleciam províncias para administrar as regiões conquistadas, mas a
eficiência dessa administração e o rigor com que impunham a sua presença acabaram
diminuindo os recursos que alimentavam o império, empobrecendo-o por consequência.
Para entender a trama do livro do Iº Isaías, Schawantes diz que é importante
também observar o que se passara antes dos conflitos acima resumidos. Escreve (2008):

Desde o começo (do século VIII a.C.) observa-se que, naquelas décadas há estabilidade
política em Israel e Judá (...). Junto a essa estabilidade havia também um expansionismo
bem marcado no norte e no sul. Israel expandiu-se até Damasco, e de lá chegava ao Mar
Morto. O sul recuperou o Golfo de Eilate. Juntos, Judá e Israel tinham quase a extensão do
reino de Davi/Salomão (p. 40).

Muitos dos profetas que viveram antes de Isaías acusavam as guerras de expansão
de ser a causa do empobrecimento do povo, e responsabilizavam a nobreza por conduzi-las
e pelo afastamento dos ensinamentos de Javé. Na época de Jeroboão, Israel havia aderido
aos cultos pagãos, abandonado a Lei deixada por Deus, estando nessa infidelidade a razão
verdadeira, segundo o profeta, de sua destruição pela Assíria. Judá permaneceu fiel ao
culto de Javé, nos reinados de Uzias, Jotão e Ezequias, sendo no reinado desse último que
ocorreu o cerco de Jerusalém por Senaquerib e sua libertação por Javé. Depois disso,
contudo, ao invés de reconhecer o poder de Deus, os hebreus confiaram na força do seu
exército, houve um declínio na fé o que trouxe como resultado um afrouxamento dos
costumes, enfim um relaxamento moral.
Era o afrouxamento moral, e a política expansionista explicada acima as razões do
desagrado de Deus e da destruição de Judá. E o castigo foi duro. Depois dos sofrimentos
vindos das guerras viriam os resultantes da dominação assíria.
Depois de vencer os Reinos de Judá/Israel, os assírios alcançaram o Egito, o
objetivo maior da investida militar que destruiu Jerusalém. Os Assírios conquistaram o
Egito em 671 a. C., mas em 640 a. C. já não tinham forças para manter a Palestina sob
controle. Nos últimos anos de dominação Assíria governou a Palestina Manassés, um rei
títere que servia aos interesses assírios e que, segundo a tradição, ordenou a morte de
Isaías, serrando-o ao meio.
Na defesa de uma fé pura e na confiança em Javé, comenta Haroldo Reimer, Isaías
combate a elite dirigente de Judá. Afirma (2006):

Seus adversários seriam basicamente a elite governante citadina, na figura de conselheiros,


sábios, funcionários da corte. A arrogância dessas pessoas e sua participação efetiva no
sistema de exploração e espoliação da base camponesa das aldeias e cidades do interior são
motivos das críticas (p. 10).

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A EXPERIÊNCIA DE DEUS NO PRIMEIRO LIVRO DE ISAÍAS

AS FACES DA EXPERIÊNCIA DE DEUS

Ao tratar a experiência de Deus presente no Iº livro de Isaías devemos considerar o


ritmo da narrativa desenvolvida, conforme a interpretação mais atual, a narrativa acontece
em quatro ondas. A primeira é a introdução do livro (capítulos 1-12). Aí se explicitam as
ameaças aos Reinos de Israel e Judá em razão de sua infidelidade. A segunda se estende
dos capítulos 13 a 27, contempla as mensagem e julgamento das nações estrangeiras,
igualmente corruptas e más, que também não seriam poupadas da ira de Deus depois que
cumprissem a missão de castigar Israel infiel. A terceira onda representada pelos capítulos
28 a 35 com as promessas da chegada de um rei justo e de um tempo de paz. Esse rei
estenderia sua ação para além das fronteiras do país e, finalmente, a última contendo os
três últimos capítulos do Iº Isaías trazem as ameaças de Senaquerib à Jerusalém e
relembrando que a sobrevivência da cidade depende da fidelidade a Deus.
Essa divisão temática comporta ainda outras possíveis. Haroldo Reimer, por
exemplo, divide o que aqui chamamos de segunda onda em duas partes, os capítulos 13 a
23 que trata dos oráculos contra outras nações, textos semelhantes aos que se encontram
em Jr 46-51 e Ezequiel 24-33 e os capítulos 24 a 27, conhecido como o apocalipse de Isaías,
onde o profeta emprega imagens catastróficas para anunciar os castigos e reafirmar as
promessas de Deus a Israel.
A hermenêutica atual, graças sobretudo às considerações de Gadamer, mostra que
não se pode perder de vista a unidade do livro se quisermos melhor alcançar a ideia geral
da sua temática. Contudo, as divisões ajudam a entender as idas e vindas entorno aos
mesmos acontecimentos.
A organização do livro nas divisões indicadas permite entender a experiência de
Deus presente no livro de Isaías, uma vez que a presença de Deus e sua proteção dependia
da fidelidade do povo às leis e aos ensinamentos divinos. O livro expressa a fé de que a
segurança e a prosperidade do país, entendida muito concretamente, na fartura de pão, na
solidariedade e amor entre as famílias, a dádiva de filhos numerosos e uma vida longa e
prospera, dependia da fé e da fidelidade ao projeto de Deus. Transposta aos nossos dias
essas lições de Isaías exprimem uma experiência de Deus que pode ser resumida, conforme
está no livro O Homem e a Filosofia, como a base de uma vida melhor (2007):

Na medida em que a fé religiosa adquire maturidade e se apresenta solidária aos


compromissos humanos, ela naturalmente inspira a transformação da Existência numa vida
melhor e alimenta uma utopia frente à ordem social vivida (p. 231).

Além disso, é preciso enxergar a experiência de Deus nas unidades temáticas que
se fecham como que em ciclos. Nesse sentido, a leitura do livro fornece a seguinte
impressão, na avaliação de Norman K. Gottwald (1988):

Isaías dá a impressão de ter trabalhado com uma série de tópicos históricos e teológicos
complexos que ele atacou num estilo dialético rico em linguagem figurada e multivalente, a
qual propendia a marcar o tom para aqueles que aperfeiçoavam a sua obra (p. 364).

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José Mauricio de Carvalho – Natália de Resende Carvalho

Como resumir a experiência de Deus presente no livro de Isaías? O profeta mostra,


inicialmente, um Deus que é exigente e rigoroso. Isto significa que Javé não compactua
com a maldade existente no Reino de Israel, não aceita a exploração dos ricos, não permite
a desumanização do homem e para não compactuar com essa ordem corrupta retira a sua
proteção e permite a destruição do país. Não parece se tratar propriamente de castigo, mas
de uma lógica que associa a felicidade nessa vida à fidelidade e proximidade com Deus.
Logo, o afastamento de Deus é um mal e tem consequências. Deus quer ensinar seu povo a
ser fiel a seus ensinamentos e, pela ação pedagógica mostra-se um Deus educador, ensina
que a vida longe dele não é feliz (3,8). Se Deus retira sua proteção a vida se torna tão difícil
que as mulheres mais ricas do povo perdem as jóias, a riqueza, os pendentes, os vestidos de
luxo, enfim tudo o que veio com a corrupção e o enriquecimento irregular (3, 17-26). Deus,
contudo, é misericordioso, o que significa que Ele perdoa e estende novamente sua
proteção quando o povo se arrepende e o invoca (1, 25-27 e 2,9).

A EXPERIÊNCIA DE DEUS REFEITA PELO CONCEITO DE NOVO MESSIANISMO

Nesse ponto do texto começa a ser trabalhado o conceito de um novo Messias que
não é mais um rei militar e uma liderança política, mas o enviado para ensinar o povo o
caminho ao Pai e estabelecer, finalmente, um reino de paz e justiça (9, 1-2). Esse Reino não
terá fim e o mal não terá espaço nele, no Reino de Deus os adversários conviverão em paz
(11, 3-9). Deus é, contudo, também um Deus consolador nas horas difíceis que
antecedem esse tempo novo, Ele sabe cuidar do homem que o invoca com fé (12,1-6). Com
o mesmo rigor com que julga Israel, julgará também as outras nações onde perpetuar a
injustiça, atuando como um juiz que não aceita a maldade dos homens. E se for preciso
usará a força para realizar sua vontade porque Ele é um Deus forte. Essa força permite
tratar de uma experiência de Deus muito interessante, comparável a um general
poderoso. E valendo-se de sua força libertará Israel do jugo da Babilônia, mostrando que é
o libertador ou redentor da opressão daqueles que o invocam com fé (14, 2-23). É a face
de redentor que reaparecerá no novo testamento no sacrifício do Messias.
No capítulo 14, no início da segunda parte do livro, reaparece a ideia do Deus juiz.
Com a queda da Babilônia reascende a esperança de libertação e alegria do retorno para
casa (14, 3-23). Houve a opressão dos povos (Judá-Israel) pela Assíria, porém Javé
planejou um fim humilhante com a condenação de sua civilização em ruína, atuando como
juiz severo para os povos infiéis. É pela inspiração de Javé que os medos se unem aos
persas para enfrentar e vencer a Babilônia cuja queda é comparável a de Nínive ou de
Sodoma e Gomorra.
No capítulo (22, 1-14), ainda nessa segunda parte, o profeta relata a retirada do
exército Assírio que cercava Jerusalém, mostrando a face protetora de Deus para
proteger a cidade em 701 a. C. Como o povo se vangloria de suas forças e não entende a
concessão de Javé, a destruição ocorrerá em outra ocasião.
Os capítulos 24 a 27 são capítulos chamados de o Grande Apocalipse de Isaías,
onde Deus reaparece como Juiz que age para punir o mal. O texto apresenta o julgamento
final do universo e a instauração do reino de Deus. É a esperança do profeta de que o povo

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A EXPERIÊNCIA DE DEUS NO PRIMEIRO LIVRO DE ISAÍAS

de Deus irá triunfar e que Ele implantará o seu reino. Deus é bom para os que se
convertem. Temos, então, um Deus poderoso que combate o mal e faz a terra caminhar
segundo sua vontade. É o Deus cuja força alimenta a esperança no bem e no futuro de
paz.
No capítulo 25, o profeta relata a Justiça de Deus que condena o opressor, salva e
consola o oprimido. Vemos, então, a experiência de um Deus consolador, presente nos
momentos difíceis.
No capítulo 26, reafirma-se o conflito entre os planos de Deus e o projeto dos
homens sem fé, dos que confiam apenas na sua força e a usam para difundir a injustiça.
Ao contrário dos homens, Deus quer uma sociedade justa e fraterna e castiga os que
conspiram contra isso. Temos aí um deus justo. Apesar dos problemas de uma elite que se
mantém afastada de Deus, o povo mesmo pede a sua proteção.
No capítulo (27, 6-9), já na terceira parte do livro, vemos surgir um Deus que
perdoa a quem se arrepende de seus erros, (10-11) julga e destrói a cidade dos opressores,
socorrendo Jerusalém arrependida. O profeta experimenta e apresenta um Deus
misericordioso. Deus cuida do povo e não deixa que os inimigos o destruam.
No capítulo ( 29, 13-14) encontramos um Deus Vivo que se revela e age na
história. O livro trata novamente do cerco de Jerusalém em 701 a. C. Nos versículos 15 a 24
Deus age para libertar o povo da humilhação, desfazendo o plano dos poderosos. É o Deus
libertador que, segundo o profeta, está agindo na história. A temática da libertação
também aparece no capítulo 31,1-9, onde o profeta adverte para não confiar no apoio
militar do Egito, apenas na força libertadora de Javé. Só Deus oferece verdadeira
segurança e liberta. Deus é o porto seguro, aquele que oferece segurança.
Nos capítulos 34 e 35, Deus é vigilante e atuará para restaurar Israel. São capítulos
que foram introduzidos na narrativa depois da volta do exílio. Deus viu a as injustiças e
opressão contra o povo Judá/Israel. E se manifestará no momento certo. A experiência de
um Deus vigilante permite anunciar o julgamento das nações opressoras e a restauração
de Jerusalém. O profeta está falando nesse trecho da reconstrução da cidade que já estava
em curso ou ao menos sendo planejada.
No capítulo 37, ele volta a falar no cerco de Jerusalém pelas tropas da Assíria.
Nessa segunda versão dos mesmos fatos enfatiza o confronto entre as forças poderosas do
rei Assírio e Javé. Vemos a vitória de Javé e o fim trágico de Senaquerib cujo exército bateu
em retirada devido a uma epidemia que assolou as tropas. Temos a experiência de um
Deus protetor nas horas mais difíceis e de vitória mais improvável.
O capítulo 38 traz o sinal enviado por Deus para que os hebreus reconhecessem
que Isaías falava em seu nome. O sol voltou atrás nos degraus do relógio de Acaz.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Somente se pode falar de experiência de Deus se pudermos considerar a


experiência codificada no livro como a escrita realizada sob a égide de uma crença que

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José Mauricio de Carvalho – Natália de Resende Carvalho

orientou, a partir da fé na transcendência, a leitura da história e dos acontecimentos. É a


experiência do pressuposto ou da conjectura, como dissemos anteriormente. Integra-se
assim a crença em Javé que inspira a vida e a composição dos livros sagrados e desse livro
em particular. Trata-se de um sentido semelhante ao que o filósofo espanhol Ortega y
Gasset enxergava na criação dos textos filosóficos, isto é, o de um texto permeado pela
crença que lhe dá sustentabilidade. Em La idea de principio en Leibniz y la evolucion de la
teoria deductiva, o filósofo explica o que isso significa (1994):

Uma filosofia tem debaixo do estrato de seus princípios patentes e ideomáticos outros
latentes que não são ideomas manifestos da mente do autor, justamente porque o autor
mesmo está presente como realidade vivente, porque são as crenças em que está, em que vive
e se move, como os cristãos em Cristo, segundo Paulo. Uma crença não é um ideoma, mas
um draoma, uma ação vivente ou ingrediente invisível dela (p. 259).

Portanto, faz sentido falar de experiência de Deus quando o termo tem como
subsolo a crença num Deus Senhor da História. Uma crença que ilumine os fatos
percebidos e não se resuma apenas à interpretações feitas a partir das percepções
sensoriais, ou ao conhecimento vindo da experiência sensível.
A experiência de Deus presente no livro do profeta Isaías, mesmo quando se tem
por referência apenas o primeiro livro do profeta, deve considerar que a totalidade da obra
sofreu arranjos posteriores e só se compreende quando temos claro o significado da
totalidade do livro, lição preciosa de Gadamer e da Psicologia da Gestalt.
O propósito do ajuste final feito no livro de Isaías foi estabelecer uma harmonia de
conjunto, de modo a dar uma linguagem próxima aos textos elaborados em três momentos
diferentes: o século VIII a. C quando viveu o profeta, os cinquenta anos do cativeiro na
Babilônia (598-538 a. C.) quando os judeus do Reino de Judá foram deportados em massa
para a Babilônia e, finalmente, os tempos que se seguiram ao retorno do povo à Palestina
por autorização de Ciro, da Pérsia. Essa divisão parece bem estabelecida pelos estudos
históricos e hermenêuticos. Como dissemos ao longo do trabalho, o primeiro livro de Isaías
estende-se do capítulo primeiro ao 39, o segundo em que o profeta fala aos exilados na
Babilônia foi escrito no século VI a. C, e o terceiro Isaías é certamente do século V, quando
os judeus voltaram para a Palestina e se defrontam com a tarefa de reconstruir as bases de
sua nacionalidade, no contexto do Império Persa.
Por sua vez, a experiência de Deus tal como aqui a apresentamos se repete, renova
e reforça nas quatro partes temáticas presentes no primeiro livro de Isaías. Na primeira
parte do livro, obra do profeta mesmo, temos as referências a um Deus exigente e
rigoroso. Também se observa sua face de educador, juiz, general forte, libertador
ou redentor. Na segunda parte, Deus se mostra especialmente protetor, difusor de
esperança no bem e num futuro de paz. Ele ainda é o consolador, presente nos
momentos difíceis e justo, cujos planos não se confundem com os projetos humanos. A
terceira parte do livro enfatiza um Deus misericordioso, libertador, vivo e atuante,
um porto seguro, Alguém em quem se pode depositar a confiança sem qualquer dúvida.
Deus não falha a quem o procura com fé. Finalmente, mostra-se a face de um Deus
protetor. Essas alterações na experiência de Deus passam por uma guinada no conceito

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A EXPERIÊNCIA DE DEUS NO PRIMEIRO LIVRO DE ISAÍAS

de Messias, que é concebido por Isaías como o Servo de Javé e não mais o general
libertador da opressão política. Todas essas referências trabalham em conjunto para
fornecer uma noção de quem é Deus e de como Ele quer aparecer para os homens. Essas
referências a Deus nos permitem falar de uma experiência ampla de Javé que reúne esses
elementos e forma o pano de fundo do livro de Isaías.
Este trabalho é um primeiro esforço hermenêutico, pois uma vez terminado nos
coloca diante de novas questões como qual o significado de protetor, consolador,
misericordioso, protetor, juiz, general, vivo, etc. que mencionamos para os autores
sagrados. Como entender o sentido que tinha para a comunidade judaica que vivia entre
2800 e 2500 anos atrás os conceitos acima listado? É preciso nunca se satisfazer com o
alcance de nossa interpretação inicial e perguntar se esgotamos o significado desses
conceitos na época que viveu o autor. Provavelmente, ainda que tenhamos conseguido
realizar uma interpretação próxima do exato restam sempre novos aspectos a serem
esclarecidos, num crescente aprofundamento do sentido do texto.

ABSTRACT

This work examines God`s experience present in the book of Prophet Isaiah, starting with
the meaning of the expression: the experience of God. There are, at the beginning,
reference to a warrior God, strict and educator that shows a new face: mercy, comforter
and full of grace. The change comes with a new comprehension of the figure of the
Messiah, who stops being a warrior and becomes God`s servant and the Alliance , centered
at God`s will and not at the sacrifice of animals.
Key words: Experience. Isaiah. God. Alliance. Messiah.

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