Dissertação Augusto Corrêa Vaz de Melo
Dissertação Augusto Corrêa Vaz de Melo
Dissertação Augusto Corrêa Vaz de Melo
Rio de Janeiro - RJ
2019
AUGUSTO CORRÊA VAZ DE MELO
Rio de Janeiro - RJ
2019
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da
Universidade Federal do Rio de Janeiro para obtenção do título de Mestre em Teoria
Psicanalítica.
__________________________________________________
AUGUSTO CORRÊA VAZ DE MELO
__________________________________________________________
_______________________________________________
Orientador Prof. Dr. Amandio de Jesus Gomes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_______________________________________________
1ª Examinadora Profª. Drª. Fernanda Theophilo Costa Moura
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_______________________________________________
2ª Examinador Prof. Dr. Marcos Eichler
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
AGRADECIMENTOS
Ao Guilherme Gutman, por sustentar o fio de uma análise que só se completa pela letra.
Em especial, à banca que, gentilmente, aceitou orientar-me neste percurso. À Fernanda, pela
troca continuada e ao Marcos por ter aceitado esse diálogo.
Este estudo tem por objetivo discutir o trabalho analítico em sua relação com a ciência, uma
vez que se toma como premissa maior o fato de que o sujeito, este que concerne ao campo
analítico, é o sujeito da ciência. Se Freud, ao longo de sua obra, defendeu a psicanálise como
disciplina científica, Lacan pode retomar essa exigência e fazer com que o campo a ser pensado
tivesse uma relação ainda mais íntima com a ruptura referente aos efeitos da revolução
científica. Tem-se como hipótese central que o neurótico, sobre o qual se orienta uma prática
clínica, guarda uma especial relação com a verdade. Esta, por sua vez, não pode ser pensada
sem considerar o efeito da primazia de um saber articulado que sirva para descrever a realidade
e o universo. Deste modo, busca-se examinar como foi possível a Lacan descrever dois tempos
distintos em que podemos incluir a física de Galileu - como a responsável por introduzir a
significância de um universo escrito em caracteres matemáticos - para, em um segundo
momento, poder introduzir uma outra torção que implique a completa ausência de garantia da
verdade matemática a partir da física quântica. Em paralelo, concebe-se que essa aposta, de
sustentar-se no campo científico, traz à tona a importância radical de se pensar a estrutura desse
fundamento. Este, portanto, será abordado desde a matemática, em especial a teoria dos
conjuntos e a topologia. Veremos a importância desse fato, ao pensarmos a definição de
significante como inteiramente dependente de uma articulação fundamental que não pode
deixar de marcar seus precedentes na fundamentação do número, além de situar a maneira pela
qual podemos entender que a psicanálise compartilha de um mesmo suporte que a ciência de
Galileu e Heisenberg ao abordarmos, no final, a concepção de Outro em sua dimensão
axiomática.
Le but de cette étude est de discuter le travail analytique dans son rapport avec la science, étant
donné que la prémisse principale est le fait que le sujet qui concerne le champ analytique est le
sujet de la science. Si, tout au long de son travail, Freud a défendu la psychanalyse en tant que
discipline scientifique, Lacan peut répondre à cette exigence et faire que le domaine à
considérer ait une relation encore plus intime avec la rupture concernant les effets de la
révolution scientifique. C'est une hypothèse centrale que le névrotique, sur lequel une pratique
clinique est orientée, a une relation particulière avec la vérité. Ceci, à son tour, ne peut être
pensé sans considérer l'effet de la primauté de la connaissance articulée qui sert à décrire la
réalité et l'univers. De cette manière, on cherche à examiner comment Lacan a pu décrire deux
périodes distinctes dans lesquelles on peut inclure la physique de Galilée - en tant que
responsable de l'introduction de la signification d'un univers écrit en caractères mathématiques
- afin de pouvoir, dans un deuxième moment, en introduire une autre torsion qui implique
l’absence totale de garantie de la vérité mathématique à partir de la physique quantique. En
parallèle, il est conçu que cet pari, d'être fondé sur le domaine scientifique, met en évidence
l’importance radicale de la réflexion sur la structure de cette fondation même. Cette fondation,
nous la aborderons à travers les mathématiques, en particulier la théorie des ensembles et la
topologie. Nous verrons l’importance de ce fait, lorsque nous considérons la définition du
signifiant comme entièrement dépendante d’une articulation fondamentale qui ne peut manquer
de marquer ses précédents dans les fondements du nombre, outre le fait de situer la manière
dont nous pouvons comprendre que la psychanalyse partage le même soutien de la science de
Galilée et de Heisenberg en abordant finalement la conception de l’Autre dans sa dimension
axiomatique.
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 8
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 88
8
INTRODUÇÃO
Dire que le sujet sur quoi nous opérons en psychanalyse ne peut être que le sujet de
la science peut passer pour paradoxe. C’est pourtant là que doit être prise une
démarcation, faute de quoi tout se mêle et commence une malhonnêteté qu’on appelle
ailleurs pour objective, mais c’est manque d’audace, et manque d’avoir repéré l’objet
qui foire. De notre position de sujet nous sommes toujours responsables: qu’on
appelle cela, où l’on veut, du terrorisme... J’ai le droit de sourire, car ce n’est pas
dans un milieu où la doctrine est ouvertement matière à tractations, que je craindrais
d’offusquer personne en formulant ce que je pense: que l’erreur de bonne foi est de
toute la plus impardonnable (LACAN, 1965-66, p.5).
Dizer que o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da
ciência talvez passe por um paradoxo. É aí, no entanto, que se deve fazer uma
demarcação, sem o que tudo se mistura e começa uma desonestidade que em outros
lugares é chamada de objetiva, mas que é falta de audácia e falta de haver situado o
objeto que malogra. Por nossa posição [position] de sujeito, sempre somos
responsáveis. Que chamem a isso como quiserem, terrorismo. Tenho o direito de
sorrir, pois não era num meio em que a doutrina é abertamente matéria de negociatas
que eu temia chocar quem quer que fosse, ao formular que o erro de boa fé é dentre
todos o mais imperdoável (LACAN, 1966/1998, p.873).
esse inconsciente desde Freud passa a ser aquilo que tem uma relação de definitiva dependência
com a ciência, bem como uma total articulação tributária às noções de sujeito e significante.
Adotaremos, então, como ponto de partida de nossa investigação, uma posição que
podemos chamar de científica, ainda que não a tenhamos explicado e justificado. Essa decisão
insinua uma proposta circunscrita de trabalho, sobre a qual vai girar todo o nosso
desenvolvimento. Se a psicanálise como discurso participa do campo da ciência, ou,
simplesmente, se ela, como clínica, trata de algo no seio desse mesmo campo, é às suas
exigências epistemológicas que devemos nos ater. Sugerimos com isso, que o espírito científico
propõe uma cisão, ou um recorte, no pensamento, limitando-o. E é a partir dessa limitação
necessária à ciência que se podem extrair as consequências, mais ou menos adequadas, de
determinada hipótese.
Com efeito, para os fins deste trabalho, propomos, então, a definição de uma hipótese
do que seria a psicanálise, considerando e levando às últimas consequências as questões
relativas à ciência levantadas por Lacan, que serão em seu tempo demonstradas e
problematizadas. Portanto, a entenderemos assim:
Por se tratar de uma definição pontual, ela requer que aceitemos o fato de que não se
pretende esgotar o sentido de outras possíveis concepções. Falar em psicanálise e delimitá-la
de uma maneira aparentemente simplista já implica em uma séria perturbação. Sabemos que a
psicanálise não se estabelece de maneira unívoca, tampouco se limita ao que foi desenvolvido
por Lacan, haja visto uma série de outros autores que se propuseram a ler e repensar a obra
freudiana. De fato, cada autor contribui para a sustentação da abertura do campo, que bem
podemos chamar A Psicanálise. Paralelamente, há de se notar que a psicanálise, dessa vez com
minúscula, pode enfim dizer respeito à cada ramificação que bem se estabeleceu em torno do
campo maior definido por Freud. Contudo, supomos que para o escopo da investigação deste
trabalho, a psicanálise, a qual iremos nos reportar, tem sua matriz estabelecida na obra de Lacan,
e sob um viés muito particular.
Nessa medida, falar que se lida com um tratamento supõe, em primeiro lugar, que algo
vai mal. Com efeito, partindo dessa nossa proposta de definição de uma psicanálise,
sustentamos que o que vai mal, aquilo que causa perturbação no seio do mundo moderno, é
justamente o sujeito da ciência. Contudo, para que possamos compreender a extensão dessa
ideia, temos que levar em conta que o termo “sujeito” possui variados significados. Em francês,
sujet pode dizer respeito à pessoa a quem se endereça, mas pode também ser entendido como
10
tema, assunto, ou aquilo do que se trata. Em inglês, o subject é também o que se ensina em uma
disciplina na escola, o que chamamos por aqui de matéria, e pode ser inclusive o motivo sobre
o qual gira um determinado trabalho1.
Suspeitamos que muito do escopo semântico do termo utilizado por Lacan se perde com
a tradução, muitas vezes em razão de um descompromisso, mas, especialmente, porque essa
polissemia de fato se perde na nossa língua. No entanto, mais fundamentalmente ainda, cabe
destacar que a escolha de tradução da frase “Dire que le sujet sur quoi nous opérons en
psychanalyse” (LACAN, 1971, p.223) por “Dizer que o sujeito sobre quem operamos em
psicanálise” [grifo nosso] (LACAN, 1966/1998, p.873), é um equívoco enorme, ainda que seja
completamente justificável a opção do tradutor. Sabe-se justificável, porque a forma sob a qual
se assenta a organização do nosso pensamento de matriz ocidental tem como base uma
metafísica que não pode dispensar um agente da ação, encarnado em uma pessoa 2. “Em todo
caso, sujeito, para os gregos e escolásticos conota passividade, recepção, suporte ou carga,
jamais ação, atividade ou agência” (GOLDENBERG, 2018, p.149).
De fato, confundir o sujeito com a pessoa ou com o indivíduo vem a ser o motivo
principal dessa espécie de paradoxo envolvido na concepção da psicanálise de Lacan, ainda que
logo na continuação do seu texto ele nos alerte de “que toda tentativa, ou mesmo tentação - nas
quais a teoria em curso não deixa de ser reincidente - de encarnar ainda mais o sujeito é errância:
sempre fecunda em erros e, como tal, incorreta” (LACAN, 1966/1998, p.873). De todo modo,
trata-se de uma escolha de trabalho, e nessa linha de pensamento o assunto [sujet] sobre o qual
operamos é o tema [sujet] da ciência. Tratamos em uma análise daquilo que constatamos como
efeito da introdução do discurso da ciência no mundo.
Dissemos também que esse tratamento do sujeito da ciência se dá pela palavra. Ora,
neste ponto é preciso fazer uma importante distinção que vai se especificar ao longo da nossa
discussão. É patente que a descoberta freudiana se orientou e se articulou desde a chamada
“talking cure”. Foi com o gesto simples de se colocar em uma posição de ouvinte que Freud
pôde recolher os efeitos da sua hipótese, no tratamento de seus pacientes. A rigor, portanto, a
psicanálise se desenvolveu, tendo como fundamento a relação entre uma pessoa que fala e outra
que se presta a escutar. No entanto, bem como as definições de psicanálise não se esgotam,
também a sua aplicabilidade passa por rearranjos homólogos. A despeito disso, atentaremo-nos
1
A primeira entrada do dicionário de André Lalande é inclusive muito precisa: “Ce qui est soumis à la réflexion,
à la discussion; ce dont il s´agit (par opposition à ce qu´on en dit)”/ “O que está sujeito à reflexão, à discussão; o
de que se trata (em oposição ao que se diz sobre isso)” [tradução nossa] (LALANDE, 1926/1985, p.1066).
2
Se Lacan quisesse referir-se à pessoa, ou ao indivíduo, ou mesmo ao sujeito entendido como tal, teria usado le
sujet sur qui ou le sujet sur lequel.
11
para esse dado inaugural que coloca em primeiro plano a efetividade e a exclusividade da função
da fala, lembrando que esta responde ao campo maior da linguagem, pois “quer se pretenda
agente de cura, de formação ou de sondagem, a psicanálise dispõe de apenas um meio: a fala
do paciente. A evidência desse fato não justifica que se o negligencie” (LACAN, 1953/1998,
p.248).
Nessa mesma direção, também salientamos acima que a hipótese freudiana, tal como
foi lida por Lacan, tem como ponto de báscula uma definição central: “um significante
representa um sujeito para outro significante” (LACAN, 1972-73/2010, p.271). A partir daí,
julgamos ser conveniente destacar que palavra e significante não são sinônimos. Dizer que o
tratamento do sujeito da ciência se dá pela palavra não é o mesmo que dizer que ele se dá pelo
significante. Por ora, vale a ressalva de que o significante é um conceito que tem sua legalidade
inscrita nessa forma específica de discurso que é a psicanálise. Que haja analista, portanto, este
fato deve se reportar ao funcionamento da estrutura significante, tal como ela se deduz da
suposição de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Em linhas gerais, podemos
dizer que em uma análise opera-se com uma dimensão da linguagem que ultrapassa o
funcionamento corriqueiro das palavras.
Não se trata, em vista disso, de uma experiência comum ou usual. Logo, podemos
afirmar que essa dinâmica de uma análise se viabiliza somente em condições artificiais. Dito
de outro modo, “... a função do psicanalista não é algo natural, de que ela não existe por si só
no que tange atribuir-lhe seu status, seus hábitos, suas referências e, justamente, seu lugar no
mundo” (LACAN, 1967/2006, p.13). Assim sendo, cabe destacar que tal diferença vai se
especificar melhor ao investigarmos o discurso da ciência, mas, como ilustração, podemos dizer
que a ciência de Newton investiga a dimensão matemática na aparente queda dos corpos, assim
como um analista investiga o funcionamento do significante nas trocas de palavras.
Com efeito, seguindo nossa proposta, se uma psicanálise incide enquanto uma forma de
tratamento - configurando-se então como clínica -, se ela incide sobre o tema da ciência
moderna, haveríamos de pensar de que maneira pode ser viável pleitear que aquilo que se refere
ao campo da ciência toma lugar no particular dos indivíduos. A ideia geral, aqui, gira em torno
do reconhecimento de que “...o surgimento da psicanálise é uma resposta a um tipo específico
de mal estar” [tradução nossa] (EIDELSZTEIN, 2008, p.13).
Ainda que continuemos a gravitar ao redor dessa simples constatação feita por Freud,
convém destacar que esse mal estar, ao ser lido por Lacan, se distancia do que fora
anteriormente proposto na obra freudiana. Se outrora ele era pensado como decorrente de uma
12
renúncia pulsional (FREUD, 1930/2016), agora ele será o efeito daquilo que se estabeleceu pelo
discurso da ciência no mundo moderno.
Em paralelo, cabe reservar o fato de que compreendemos que esse mal estar reatualiza
e designa as devidas relações entre formas de sofrimento e a estrutura clínica da neurose. Há de
se aceitar, portanto, que a figura do neurótico é o modo pelo qual se particulariza um problema
central levantado pela ciência,
porque este neurótico moderno [...] não é sem correlação com o surgimento de algo,
um deslocamento do modo da razão na apreensão da certeza que é o que temos
procurado cernir em torno do momento histórico do cogito cartesiano. Este momento
é inseparável, também, desta outra emergência que se chama a fundação da ciência e,
ao mesmo tempo, a intrusão da ciência neste domínio que ela perturba, que ela força,
eu diria, que é uma área que tem um nome perfeitamente articulável que é chamado
de relação com a verdade3 [tradução nossa] (LACAN, 1965-66, p.78).
Para Lacan, então, o neurótico moderno surge junto com a própria psicanálise, quando
se observam esses efeitos que vão evidentemente além do cogito cartesiano, e que dizem
respeito a uma nova relação com a verdade. Dessa maneira, se admitimos que o inconsciente é
uma hipótese que repousa sobre uma concepção de estrutura, aquela que supõe que as relações
ditas “humanas” são efeitos de trocas linguageiras, cada uma das pessoas é necessariamente
determinada, ou mesmo responsável pelos processos que se articulam nesse domínio, o qual
podemos chamar de Simbólico. Para Lacan, esse caminho aberto por Saussure e Lévi-Strauss
coloca em primeiro plano a urgência de se pensar a primazia do significante, pois “a linguística
é por onde a psicanálise poderia se agarrar à ciência” (LACAN, 1976/2016, p.85).
Ainda no campo da linguagem, para referir-se a esse ser vivo que se caracteriza por ser
determinado pelos efeitos intrínsecos desse campo, Lacan cria o neologismo parlêtre. A
inversão que fica patente aqui - de être qui parle para parlêtre -, diz respeito ao fato de que não
somos seres dotados de fala ou de linguagem. Pelo contrário, o que quer que se diga do ser é
efeito, ou seja, secundário ao que possa se articular através de uma fala. “Isso quer dizer que a
linguagem está aí antes do homem, o que é evidente. Não apenas o homem nasce na linguagem
exatamente como nasce no mundo, como também nasce pela linguagem” (LACAN, 1967/2006,
p.36). Portanto, para estabelecer o que vem a ser o mal estar moderno, esse que Lacan julga ser
3
Trecho original do site Staferla: “…car ce névrosé moderne [...] il n’est pas sans corrélation avec l’émergence
de quelque chose, d’un déplacement du mode de la raison dans l’appréhension de la certitude qui est ce que nous
avons cherché à cerner autour du moment historique du cogito cartésien. Ce moment est inséparable aussi de
cette autre émergence qui s’appelle la fondation de la science et du même coup, l’intrusion de la science dans ce
domaine qu’elle bouleverse, qu’elle force, dirais-je, qui est un domaine qui a un nom parfaitement articulable qui
s’appelle celui du rapport à la vérité” (LACAN, 1965-66, p.78).
13
efeito da ciência, deve-se entendê-lo como também resultado de uma cultura. Esta que não pode
ter outro fundamento que não seja a dimensão discursiva instaurada pelo significante.
Retomando nossa argumentação, à psicanálise concerne o tratamento do sujeito da
ciência através de uma fala que se organiza sob o fundo da estrutura significante. Dito isso,
notamos que esse sujeito da ciência corresponde, pontualmente, ao surgimento dessa nova
maneira de se relacionar com a verdade. “Se Freud não trouxe outra coisa ao conhecimento do
homem senão a verdade de que existe o verdadeiro, não há descoberta freudiana” (LACAN,
1955/1998, p.408). Resta, assim, perguntar que verdade é essa que tem direta relação com o
que Lacan identificou com a introdução da ciência moderna.
Definir o que vem a ser a verdade pode parecer uma tarefa hercúlea. “Pôncio Pilatos
não teve sorte (...), pois formulou a questão à própria verdade” (LACAN, 1967/2006, p.24).
Lacan, a essa altura, disse também não ter tido sorte. Mesmo não tendo tanta sorte, ele pôde
assegurar que “a verdade só começa a se instalar a partir do momento em que há linguagem”
(LACAN, 1967/2006, p.38). Ora, no texto que estávamos comentando de 1966, ele retoma o
momento em que, segundo ele mesmo diz, emprestou sua voz para fazer falar a verdade e,
curiosamente, a define:
Emprestar minha voz ao sustento dessas palavras intoleráveis, "Eu, a verdade, falo...",
ultrapassa a alegoria. Isso quer dizer, muito simplesmente, tudo o que há por dizer da
verdade, da única, ou seja, que não existe metalinguagem (afirmação feita para situar
todo o lógico-positivismo), que nenhuma linguagem pode dizer o verdadeiro sobre o
verdadeiro, uma vez que a verdade se funda pelo fato de que fala, e não dispõe de
outro meio para fazê-lo. É por isso mesmo que o inconsciente que a diz, o verdadeiro
sobre o verdadeiro, é estruturado como uma linguagem, e é por isso que eu, quando
ensino isso, digo o verdadeiro sobre Freud, que soube deixar, sob o nome de
inconsciente, que a verdade falasse (LACAN, 1966/1998, p.882).
Lacan ensina o verdadeiro sobre Freud, justamente, porque deixou que a verdade
falasse. E essa verdade, a única - a rigor, podemos dizer que é a única que concerne à psicanálise
-, é que não existe metalinguagem. Não perdendo de vista o discurso da ciência, há de se
investigar, portanto, o que gerou essa espécie de perturbação no mundo moderno que acarretou
na produção de um mal estar, e que articulou um velho problema, de base filosófica, acerca da
consistência da verdade. Perante Lacan, a relação entre ciência e verdade recebe um índice
topológico, sob a forma comum de uma banda de Moebius, onde o sujeito se especifica por ser
um corte; corte esse que seria o responsável pelo “reingresso da verdade no campo da ciência”
(LACAN, 1960/1998, p. 813).
14
Axioma, que é o que eu avancei na última vez: que o significante... esse significante
que até então definimos em sua função de representar um sujeito para outro
significante... esse significante, o que ele representa em face de si mesmo, de sua
repetição de unidade significante? Isto é definido pelo "axioma": que nenhum
significante... assim fosse - e muito precisamente quando ele é - reduzido à sua forma
mínima, o que chamamos de letra... não pode significar a si mesmo 4 [tradução nossa]
(LACAN, 1966-67, p.14).
Dessa forma, se a psicanálise trata do sujeito da ciência moderna através da fala, ela o
faz por reconhecer uma série de diretrizes fundamentais, que se configuram pelo rigor próprio
ao discurso científico. Se a relação da verdade com o saber é o tema [sujet] moderno por
excelência, é na linguagem que devemos buscar as condições para seu tratamento, lembrando
que devemos encontrar seu estatuto no que se desenvolveu desde a revolução científica.
4
Trecho original do site Staferla: “Axiome qui est celui que j’ai avancé la dernière fois: que le signifiant… ce
signifiant que nous avons jusqu’ici défini de sa fonction de représenter un sujet pour un autre signifiant… ce
signifiant, que représente-t-il en face de lui-même, de sa répétition d’unité signifiante? Ceci est défini par
l’«axiome»: qu’aucun signifiant… fut-il - et très précisément quand il l’est - réduit à sa forme minimale, celle que
nous appelons la lettre… ne saurait se signifier lui-même” (LACAN, 1966-67, p.14).
15
Quanto a esse estatuto, ele serve de causa em nosso trabalho na medida em que este se
abre, a fim de estabelecer uma trajetória planificada do percurso da ciência moderna. Em um
primeiro momento, fica evidente que devemos reconhecer a importância e acompanhar o
trabalho daquele que serviu de guia para Lacan, a fim de identificar as balizas dessa noção de
ciência. No entender de Lacan, a epistemologia de Koyré era a que melhor indicava os
precedentes a serem rastreados dessa ideia de ciência. Para tanto, sua pesquisa sobre Galileu é
colocada em destaque, pois é dela uma ideia central que nos acossa até os dias de hoje. Esse
universo que habitamos seria, portanto, escrito em letras matemáticas.
É mais do que importante notar que o apelo a Koyré e a sua noção de ciência nos coloca
junto a Lacan diante de uma série de questionamentos acerca da constituição da realidade. Vale
lembrar que o passo seguinte, dado por Newton, aprofundou ainda mais o campo das
discussões. Se a experiência mais usual não serve para basear o cálculo científico, se a tradição
religiosa se oferece como engodo a ser recusado para pensar a relação com as coisas, ou se a
verdade se torna cada vez mais um assunto refratário à ciência, como pode o homem se
relacionar com o saber?
Essas questões bem entendidas, tanto para Koyré quanto para Lacan, reatualizaram um
debate filosófico que implicava nas duas maiores vertentes da Grécia Antiga: Platão e
Aristóteles. Ao que parece, fazer ciência requisitou que se instituísse tanto a importância das
formas geométricas, quanto um ponto que haveria de funcionar como garantia do saber
científico. Não é estranho notar que ciência e religião possuem esse fundo de uma ligação
primitiva que há muito se tenta esconder. A rigor, Newton deixava para Deus a incumbência de
fazer com que suas letrinhas e seus números no papel tivessem algum tipo de legalidade.
Procuraremos, ao longo do nosso trabalho, fazer valer toda sorte de obstáculos que se
apresentem a essa concepção de ciência. E não são poucos. É crucial destacar o papel do
positivismo e da supremacia de um pensamento que não pode se dizer com outro nome, senão
“antiplatônico” (BADIOU, 1989/1991). Em seguida, tratamos de dar um passo ainda mais largo
ao destacarmos a importância circunstancial que Lacan teria dado à morte de Deus. E devemos
já deixar claro que Lacan não é nietszcheano. Para ele, Deus precisa morrer duas vezes, sendo
a segunda fruto de um golpe desferido por um matemático.
No segundo capítulo, exploraremos as possíveis implicações desta segunda morte desde
os avanços mais modernos da física, de Einstein a Heisenberg. Este segundo entra no jogo
munido de uma forma de pensar o mundo, a realidade e a experiência científica, sem
precedentes. É ele que desvela o funcionamento do átomo enquanto inteiramente dependente
do observador, ou, mais precisamente, da teoria científica que determina uma observação. Esta
16
seria uma emergente noção de campo que passa a valer desde a física moderna que, a nosso ver,
foi absorvida pela noção de significante e de Outro em Lacan, uma vez que, como veremos, um
discurso não pode mais referir-se a nada que não seja si próprio e ao seu funcionamento.
Nessa mesma direção, veremos a todo instante surgirem as questões acerca do lugar da
verdade, de sua garantia e, por fim, de sua consistência. Em linhas mais gerais, se não mais
podemos buscá-la no campo divino, podemos ainda seguir dizendo que há verdade? Como
vimos, não se trata de uma questão fácil e, onde Pilatos faltou, Lacan se levanta para dizer que
não há universo de discurso. Há verdade, mas temos notícia apenas de um procedimento que se
autoriza por não haver como garanti-la. Com isso em mãos, faremos sempre referência ao nosso
campo, uma vez que, como dissemos, o sujeito da ciência está aí, como efeito dessa ciência.
Por fim, iremos sugerir que, para Lacan, essa ciência não pode ser pensada sem fazer
referência ao seu suporte, que é a matemática. Vale lembrar que tanto para Galileu quanto para
Heisenberg, é a linguagem matemática que proporciona a razão do campo científico e, se a
psicanálise surge dessas reformas no espírito, não podemos ficar sem inquiri-la nesse aspecto.
Dessa maneira, julgamos ser possível extrair diferentes leituras das noções de real, significante
e verdade, uma vez que as pensemos através da matemática. Para esse fim, será fundamental
reconhecermos que um ramo da matemática em específico pode ser admitido como gozando de
um prestígio especial: a teoria dos conjuntos. “Daí minha redução da psicanálise à teoria dos
conjuntos” (LACAN, 1978b).
17
Vale lembrar que “leigo” não designa apenas o não especialista, o ignorante, o que
não tem o saber. “Leigo” (ou “laico”, “laikos”, em grego, de “laicus”, em latim)
inicialmente era todo o homem que não era membro do clero, iniciado nas verdades
sagradas, mas também e por extensão, o iletrado, membro da plebe, ou, como na
França do século XVII, o indivíduo que não fazia parte da Universidade. Até
religiosos de ordens menores como os franciscanos podiam, para a Igreja, ser
considerados leigos. O leigo (laie em alemão, lai em francês, ou lay em inglês) era,
de um modo geral, tomado como sinônimo de “tolo”. Mas esse “tolo”, ou o leigo, não
obrigatoriamente era desprovido de um saber ou incapaz de obtê-lo. Para Freud,
18
manter que a análise é leiga, laica ou ‘profana’ - como foi traduzido em espanhol e
em francês o “laien” do título da respectiva obra de Freud - é insistir no seu
compromisso com a laicidade consequente com a revolução do mundo moderno, com
o mundo da ciência, caracterizada como um saber parcial, precário, que leva em conta
um real sempre problemático, no lugar de uma verdade definitiva e redentora, revelada
e transmitida pelos doutores da Igreja (GOMES; VAZ DE MELO, 2017).
conceituais inclusive sobre a própria definição do que vem a ser uma ciência. Dessa maneira,
pretendemos fazer falar uma série de autores que se debruçaram sobre a sua constituição e o
seu campo, para que, por fim, possamos melhor discutir esse problema. No entanto, de início,
julgamos necessário sustentar que
Como veremos, é das definições essencialistas que devemos fugir, pois elas, no nosso
entender, apagam uma multiplicidade, ainda que se trate, no discurso científico, de definições
conceituais rigorosas. Essa diferenciação será retomada em seu tempo. Paralelamente, há de se
admitir que assim como as definições relativas à psicanálise, tampouco são unívocas as da
ciência. Ainda que seja muito profícuo, o campo da epistemologia se desdobra em inúmeras
ramificações, resultando em variadas correntes de entendimento, por vezes versando sobre um
mesmo objeto, mas sob óticas distintas.
Nessa direção, talvez pudéssemos propor uma interlocução entre Lacan e os mais
variados estudiosos do campo da ciência. No entanto, para os fins da nossa investigação,
arriscaremos duas opções que nos parecem mais condizentes com a nossa proposta e com a
indicação do próprio Lacan. Com isso, começaremos nosso percurso levando em conta o
trabalho de A. Koyré pois, para Lacan: “Koyré é nosso guia aqui, e sabemos que ele ainda é
desconhecido” (LACAN, 1966/1998, p.870).
mas que é, de fato, uma ruptura radical. É um acontecimento histórico que se propagou e que
20
influenciou grandemente a concepção do que se chama universo, que em si mesmo tem uma
base muito estreita, salvo no imaginário” (LACAN, 1976/2016, p.45).
Essa epidemia, que surge como perturbação numa época do mundo que era governada
pelo entendimento medieval, é a maior responsável pela total reforma da maneira em que se
concebe a realidade. Segundo Koyré (1973/2011), aquilo que chamamos de revolução
científica, portanto, tem suas raízes em uma ruptura com esse mundo medieval, dominado pela
interpretação da metafísica de Aristóteles, em que se fazia valer uma concepção de substância
relativa a uma materialidade ingênua, que comandava o senso comum. Um mundo em que os
dados da experiência se davam de acordo com uma ordenação cósmica, e que eram dispostos e
distribuídos em “lugares” naturais. Tratava-se de um período dominado por uma física que se
caracterizava pela ideia de “lugar natural”, pois nada mais evidente do que ver a chama de um
fósforo dirigir-se “para cima”, ou uma pedra, ou qualquer corpo pesado, quando jogada para o
alto cair “para baixo”. Portanto, a experiência, o encontro com essa “natureza”, com esse lugar
comum, nos revelava o real em si mesmo, e ao homem cabia contemplá-lo.
O corte que então deturpa essa forma de pensar - que tem suas raízes estabelecidas pela
metafísica de Aristóteles -, retira o homem de seu lugar passivo, promovendo a passagem de
uma “vita contemplativa” para uma “vita activa”. Essa passagem, segundo Koyré (1973/2011),
se dá articulada através de uma singular “mutação intelectual”, que implica em
Em outras palavras, Koyré sustenta que essa reforma da nossa inteligência acarreta na
exigência de substituição da forma usual de pensar e conceber o mundo, sob pena de não se
produzir um saber que se diga legitimamente científico. Todavia, esse total descentramento,
essa nova maneira de “encarar o Ser” (p.170) vai muito além da fundação da física como
disciplina científica, por exemplo. Trata-se, também, do estabelecimento de um novo modo de
conceber as relações de sentido entre os fatos, uma reforma completa no entendimento. A essa
reforma, ou melhor, a essa ruptura, retornaremos insistentemente ao longo de nosso percurso,
pois a julgamos uma necessidade lógica naquilo que se pode entender por ciência para Lacan.
Desde essa revolução, então, cabe ao homem, aos seus poderes e às suas faculdades
intelectuais, a responsabilidade de legislar sobre o mundo natural. Ora, para tanto, há de se
admitir que a forma pela qual produzimos o conhecimento não pode, em absoluto, ter as
21
mesmas bases de outrora. Se a nova maneira de “encarar o Ser” (KOYRÉ, 1973/2011, p.170)
supõe a desarticulação de uma metafísica que encontra nos dados imediatos sua mais evidente
baliza, esse discurso científico deve, necessariamente, requisitar um outro alicerce. De maneira
efetiva, deve-se supor que a experimentação, tal como definida pelo discurso emergente da
ciência, substitui a experiência ordinária radicalmente, invalidando-a.
Logo, “não foi a ‘experiência’, mas a ‘experimentação’ que desempenhou - mais tarde,
somente - um papel positivo considerável” (KOYRÉ, 1973/2011, p.168). Com isso em mente,
há de se interrogar a natureza, fazendo com que os fatos se articulem e se organizem, tendo em
mãos um método, onde se exija, justamente, a pressuposição de uma linguagem comum e
rigorosa. Uma linguagem que permita formular de modo claro e preciso as devidas perguntas.
direção, ou orientação, não se daria sem que se pudesse levar em consideração o papel relativo
à conjunção do sujeito com a ciência. Era espantoso constatar nos analistas, esses “praticantes
da função simbólica” (LACAN, 1953/1998, p.285), os efeitos de certos preconceitos que os
levavam a desconhecerem profundamente o movimento que instaurou a nova ordem da ciência.
Segundo ele, a inversão proporcionada pelo positivismo moderno5 teria subordinado a maneira
de pensar dos homens a uma visão errônea da história da ciência que se institui tardiamente sob
os supostos prestígio e primazia do desenvolvimento dos experimentos diante das experiências
mentais (p.285).
Ora, vimos mais acima como o senso comum se intromete no discurso da ciência, como
uma pedra no sapato. Salientamos, inclusive, a dificuldade de Galileu diante da vigência do
aristotelismo de seus pares. Veremos, por conseguinte, a mesma perturbação em outro físico de
destaque para Lacan.
“Hypotheses non fingo” - não faço hipóteses. Newton, o autor dessa famosa frase,
aponta para o absurdo que seria pensar a física - como “filosofia natural” - enquanto uma
concepção fictícia e fantasiosa, não extraída de fenômenos -, leia-se como resultado de uma
construção mental. Tal forma de pensar seria diametralmente contrária ao fato patente de que a
gravidade é uma declaração sobre o real comportamento dos corpos (KOYRÉ, 1979). Portanto,
o próprio Newton, ao descrever o movimento dos corpos no espaço, não acredita estar em um
âmbito especulativo hipotético. Segundo Koyré (1979), ele afirma tratar das coisas como elas
são em si mesmas, ainda que, sem desconfiar, esteja sob a égide de uma atitude intelectual que
se configura por rechaçar o papel da experiência.
Todavia, estamos diante de uma noção de ciência extremamente pontual e, sem dúvida,
de difícil absorção para nosso entendimento, pois acostumamo-nos com um ideal de ciência
que supõe que os dados de uma determinada teoria têm de se adequar à realidade, algo que
Lacan bem localizou na tradição positivista. Essa inclusive é a postura científica de Freud, tal
como ele mesmo a define:
5
“Foi proposto usar ‘positivismo’ para designar doutrinas filosóficas que se fundam em fatos ou em realidades
concretas ou em realidades acessíveis somente aos órgãos dos sentidos” [tradução nossa] (MORA, 1982, p.2639).
É importante lembrar que o positivismo possui uma variante no campo da lógica, chamando-se positivismo lógico
e que este teve papel decisivo no pensamento freudiano, bem como nos “praticantes da função simbólica” que
Lacan se refere.
25
De fato, a maneira pela qual, tanto Newton quanto Freud entendem ou definem o que
vem a ser ciência, relaciona-se a uma concepção de verdade muito específica. E não é motivo
de nenhum espanto que essa concepção domine nossa maneira usual de pensar, ainda hoje.
Porém, há de se reconhecer que se trata de uma concepção de verdade positiva que tem suas
raízes estabelecidas na filosofia de Aristóteles6 e, como tal, deve ser repensada a partir do
campo que se desdobrou em sequência à ruptura científica. Deteremo-nos sobre essa questão
mais adiante.
É importante mencionar, também, que, assim como Freud, Lacan jamais recuou em
sustentar sua noção de ciência e a sua relação com a psicanálise. Em 1974, quando em uma de
suas visitas pelos Estados Unidos, Lacan fala para uma plateia inquieta que o questiona sobre
qual seria essa sua definição de ciência.
Sra. Turkell: Mas qual é a sua definição de ciência? Essa é a questão. J. Lacan: Até o
momento, tudo o que foi produzido como ciência é não verbal. Naturalmente, é
evidente que a linguagem é utilizada para ensinar ciência, mas as fórmulas científicas
são expressas sempre por meio de pequenas letras. 1/2 𝑚𝑣2, como relação entre a
massa e a aceleração da velocidade, não pode ser explicada pela linguagem senão
pelos mais longos desvios. Sua significação precisa ser estritamente limitada e, ainda
assim, não é perfeitamente satisfatória. Por exemplo, quando tratamos com elétrons,
nós já não sabemos o que entendemos realmente por massa ou velocidade, porque
somos incapazes de mensurá-los. A ciência é o que se sustenta, em sua relação ao real,
graças ao uso de pequenas letras (LACAN, 1976/2016, p.39).
Evidentemente tal definição não foi bem recebida pelos americanos. Lacan teve que,
inclusive, ouvir coisas do tipo: “Esta é uma visão muito limitada da ciência. Ela omite uma
grande parte da ciência” (LACAN, 1976/2016, p.41), ou, “Mas por que, doutor, você insiste
tanto sobre a necessidade de fórmulas matemáticas para definir a ciência?” (p.43). Ora,
sustentar essa concepção de ciência em um mundo, que, se podemos dizer, jamais se libertou
dos grilhões do senso comum, para Lacan, era uma tarefa árdua e insistente. Vamos ao longo
do nosso percurso investigar justamente o motivo de ele não recuar diante dessa problemática.
Retomando nossa argumentação, sugerimos que fazer a psicanálise girar ao redor do discurso
6
“(...) se atribui primeiramente a Aristóteles o que se chamará logo “concepção semântica da verdade”, assim
como “verdade como adequação”, “correspondência” ou “conveniência”. Um enunciado é verdadeiro se há
correspondência entre o que diz e aquilo sobre o que ele fala” [tradução nossa] (MORA, 1982, p.3398).
26
da ciência, trata-se, também, de um esforço de lançar luz sobre essa forma de discurso que se
sustenta em uma dimensão literal, caracterizada pelo seu rigor, a fim de extrair suas
consequências.
Por suposto, me dirão, é a experiência que dá seu estatuto. Por outro lado, é raro e
lamentável que a experiência não conduza estritamente a nada quando o aparato
matemático não a sustenta. É precisamente por este aparato que, de um modo fechado,
operou a pretensa fecundidade da experiência da ciência. Quando a ciência em
questão, que seja física ou biológica, se vangloria de encontrar sua regra na
experiência, omite por completo que só há experiência desde Galileu, para chamá-lo
pelo seu nome7 [tradução nossa] (LACAN, 1974, p.4).
Como vimos acima, trata-se de um campo que de partida se define pela constituição de
uma hipótese de trabalho. Que se diga que a psicanálise e a ciência possuem algo em comum,
portanto, tratar-se-á de assumir essa hipótese como a delimitação de uma zona de marcação,
levando em conta que o limite desta zona é o que define um interior e um exterior. Partindo-se
dessa conceitualização, pode-se definir quais objetos caem sob ela, produzindo-se, então, um
campo em intensão - o que compreende as definições do conceito respectivo, - e em extensão -
a série de elementos ou objetos que se deduzem a partir daí.
Logo, a teoria psicanalítica, da qual se extrai o método de analisar os pacientes, articula-
se desde esse inconsciente hipotético-dedutivo em que se faz valer, em um discurso analítico,
a centralidade de uma operação pontual e específica. Em suma, como estamos vendo, Lacan se
esforça para deixar claro que o discurso da ciência coloca certas exigências, bem como uma
série de condições para se pensar um método rigoroso. E, de acordo com todas as implicações
de se adotar esse método, a psicanálise só poderia surgir como um pensamento, pois “afinal,
não é do discurso do inconsciente que colheremos a teoria que o explica” (LACAN, 1967/2003,
p.330). Tendo isso em mente, será que podemos avançar diante de nossa pergunta pela relação
da psicanálise com essa ciência de Koyré? De fato, deixamos em aberto uma série de possíveis
problematizações que serão, então, retomadas.
7
Trecho retirado do site Pas-tout Lacan: “Bien sûr, me dira-t-on, c’est l’expérience qui fait son statut. Il est
pourtant bizarre et regrettable que l’expérience ne mène strictement à rien quand l’appareil mathématique ne la
soutient pas. C’est très précisément de cet appareil que, de façon datable, la prétendue fécondité de l’expérience
s’est opérée dans la science. condité de l’expérience s’est opérée dans la science. Quand la science en question,
qu’elle soit physicienne ou biologiste, se targue de trouver sa règle dans l’expérience, elle omet complètement
qu’il n’y a d’expérience sensée que depuis Galilée, pour l’appeler par son nom” (LACAN, 1974).
27
Nossa herança aristotélica, como bem adverte Koyré, faz supor que essa “ciência
abstrata” (p.189), de menor valor que a metafísica, fica remetida sempre a um mundo que não
pode ter relação com isso que se passa na percepção, ou na experiência. Não é surpresa alguma
que, ainda em 1953, Lacan inclusive destaque que o tal preconceito dos analistas, ou
simplesmente seu atraso em relação aos acontecimentos no campo da ciência seriam frutos de
uma particular degradação da noção de ciência verdadeira que já teria “seus títulos inscritos
numa tradição que parte do Teeteto” (LACAN, 1953/1998, p.285).
Segundo ele, a inversão positivista que comentamos acima, teria subordinado a maneira
de pensar dos homens a uma visão errônea da história da ciência que se institui tardiamente sob
os supostos prestígio e primazia da verificabilidade da experimentação. Essa forma se
sobreporia frente à construção rigorosa de hipóteses formais. Portanto, de uma maneira geral,
quando se pensa o campo da ciência, desde uma postura positivista ancorada na metafísica de
Aristóteles, supõe-se que se as matemáticas teriam qualquer sorte de legitimidade, isso se daria
se, e somente se, elas se adequassem à comprovação empírica dos experimentos, mesmo
desconhecendo que, da mesma maneira que Galileu e Newton desconheciam essa
peculiaridade, esses experimentos se determinam e se constituem em uma relação direta com a
fórmula e com uma nova forma de “encarar o ser” (KOYRÉ, 1973/2011, p.170).
De todo modo, contornando a questão relacionada ao positivismo, em um certo sentido,
podemos entender que, de fato, Platão insistia que a realidade e a inteligibilidade do mundo
físico deveriam ser compreendidas unicamente pela estrutura de um mundo que podemos
chamar ideal. Haveria, portanto, como muitos autores discutem, uma distinção clara entre o
mundo das coisas e o mundo das ideias e já não restaria dúvida, enfim, de que esse mundo das
ideias, de uma maneira genérica, seria matematicamente estruturado (KLINE, 1980).
Provavelmente, levando essa conjuntura em conta, seria por isso, então, que se faria válida a
advertência de Koyré no que diz respeito à existência dos objetos matemáticos e científicos,
dado que o triângulo, ao qual se refere o geômetra, não tem existência real, tampouco a polia
que descreve o físico (KOYRÉ, 1973/2011).
“Explicar o real pelo impossível” (p.186) suporia, sob este ponto de vista, uma
separação radical entre dois mundos distintos, com concepções distintas de Ser, um abstrato e
matemático, e um outro que não mais serviria para fazer ciência, pois neste se encontrariam as
qualidades sensíveis, das quais jamais se poderia fornecer qualquer tipo de dedução rigorosa.
Quanto a este ponto, Koyré é inclusive levado a dizer que: “o aristotélico tinha razão. É
29
impossível fornecer uma dedução matemática da qualidade. Bem sabemos que Galileu, como
Descartes pouco mais tarde, e pela mesma razão, foi obrigado a suprimir a noção de qualidade,
a declará-la subjetiva, a bani-la do domínio da natureza (...)” (KOYRÉ, 1973/2011, p.189).
Ora, esse domínio das qualidades sensíveis de fato não serve, nem a Galileu, tampouco
a Descartes, no esforço e na tarefa de produzir um saber científico. No entanto, no entender de
Koyré, trata-se de uma condição até então inultrapassável. Um cientista deveria, por
conseguinte, responder a uma concepção de metafísica que, de partida, tem que se colocar como
oposta à de Aristóteles e, ao mesmo tempo, fazer valer algo que já estava, de fato, inscrito em
Platão. Ao que parece, se o “real” tem que se dobrar a uma linguagem matemática que só pode
fazer referência ao “impossível”, podemos, então, declarar esse imbróglio como uma espécie
de paradoxo. Veremos adiante, a maneira pela qual esse paradoxo se atualiza e se complexifica,
mas, por ora, essas questões se impõem como evidências que, por fim, levam Koyré a destacar
que
Em outras palavras, para Koyré, Galileu era um pensador platônico. Nesse sentido,
tendo essa importante ressalva acerca da relação dessa prematura ciência com o platonismo,
poderíamos nos perguntar se essa ciência da qual depende o surgimento da psicanálise deve
resgatar “seus títulos inscritos numa tradição que parte do Teeteto” (LACAN, 1953/1998,
p.285)? Ao que parece, se vamos de fato tomar essa direção, temos de, por um lado reconhecer
as críticas levantadas pelo próprio Koyré - que, de fato, sintetizam aquelas do positivismo -,
mas também, por outro lado, temos de acompanhar o posicionamento de Lacan no que diz
respeito ao lugar do debate com a filosofia platônica ao longo de todo o seu ensino. E nunca é
por demais lembrar que: “Platão era, para dizer tudo, lacaniano”8 (LACAN, 1971-72/2012,
p.91).
8
“Ao dizer de Platão que era lacaniano, o psicanalista não incorre num anacronismo delirante, nem faz um gracejo
incidental, mas transforma o filósofo heleno em seu precursor. Está lendo Platão, ou, melhor, deslendo-o, enquanto
elabora a sua teoria apoiando-se na versão dele que melhor lhe convém. Como a dobra no espaço-tempo, que
coloca Marty Mc Fly face a face com seu (futuro) pai ainda no ginásio, a desleitura executa uma torção que põe o
significante de 1953 detrás do eidos platônico, 15 séculos mais velho. Note-se, de passagem, que fazer de Platão
um lacaniano não faz de Lacan um platônico” (GOLDENBERG, 2018, p.37)
30
Porém, antes de avançar por esse caminho, podemos ainda retornar a Descartes e situar
o “diálogo sobre os dois maiores sistemas do mundo” (KOYRÉ, 1973/2011, p.187) nas
considerações que havíamos destacado antes: dizíamos, com Descartes, que dois mais três são
cinco ou que não existe quadrado de mais de quatro lados. Ora, pergunta-se Descartes, e se
houver alguma espécie de gênio maligno que me engane, fazendo com que eu acredite que dois
e três somam cinco, quando na verdade somam quatro? Deve existir, portanto, alguma coisa
que garanta que eu não me engane aí. E é justamente na sequência deste pensamento que nos
encontramos com a exigência de postular a consistência de Deus (DESCARTES, 1641/2010).
Falando também sob o ponto de vista de Koyré, se o universo é escrito com caracteres
matemáticos, basta encontrarmos os elementos da linguagem que “fala a Natureza criada por
Deus” (KOYRÉ, 1973/2011, p.195).
Até aqui insistimos que o surgimento dessa nova maneira de conceber a natureza
requisitou a adoção de uma linguagem que pudesse fornecer um panorama articulado dos dados
da experiência, e isso de uma maneira universal. Tanto na física de Galileu, quanto no método
cartesiano é a matemática que se impõe como quadro geral de leitura dos fatos a serem
examinados. Resumindo em outros termos, a ciência que fazemos referência exige que se possa
suspender o campo da experiência - ou da observação -, bem como o campo dos valores e das
significações, para ficar com uma dimensão conceitual e abstrata do objeto ou dado.
Ao tratar da água, um químico não pode supor que lida com a água responsável pela
enchente, ou daquela que mata a sede. Tampouco faz química da água benta. Essas, como
vimos, referem-se à água na sua dimensão sensível. Contrariamente, tratamos de destacar o
surgimento de um discurso que tem seus efeitos devidos a uma nova forma de “encarar o ser”
(KOYRÉ, 1973/2011, p.170) e que faz operar uma dimensão independente da experiência e do
senso comum. Logo, trata-se de um discurso que toma, não mais a água de nossa experiência
imediata, mas aquela de uma dimensão formal e literal, logo, matemática: H O. Ainda sob essa
2
diretriz, essa dimensão matemática, que serve como linguagem para a ciência, devemos poder
encontrá-la a despeito do cientista que a formula, mas nunca à revelia da torção requisitada pela
“epidemia” da ciência (LACAN, 1976/2016, p.45).
31
Dizer que a física não funciona sem o físico não equivale a baseá-la num postulado
idealista. Espero que não haja aqui nenhum entendimento que formule essa objeção,
a qual seria muito ridícula no contexto do que acabo de enunciar, porquanto estou
dizendo que é o discurso da física que determina o físico, e não o contrário. Nunca
houve físico verdadeiro até que esse discurso prevalecesse. É esse o sentido que dou
ao discurso aceitável na ciência [grifo nosso] (LACAN, 1968-69/2008, p.33).
Um cientista, portanto, é efeito do que possa ser levado a sério desse discurso científico.
Diante desse argumento, podemos retomar a suspeita de Koyré e dos positivistas e perguntar:
se o discurso da ciência independe do cientista; se, de fato, tratam-se de articulações formais,
como no caso que destacamos do H O, onde esse formalismo se estabelece? E, paralelamente,
2
que estatuto podemos dar a esse campo da ciência? Da mesma maneira, podemos ainda lembrar
que a mesma questão foi insistentemente endereçada a Newton:
Segundo Lacan, a física newtoniana não pode surgir sem estar suportada por esse “acme
do sujeito ideal” (p.340). Em linhas gerais, faz-se válida a concepção de Descartes (1641/2010),
de que há de se fazer consistir em um ponto que garanta a verdade matemática. Esse sujeito
ideal, portanto, Lacan o atualiza sob o nome de grande outro. “O importante é que isso necessita
a admissão formal, topológica, pouco importa saber onde isso mora, de um certo quadro, que
chamaremos de ‘quadro A’” (LACAN, 1967/2006, p.46).
Convém destacar aqui que estamos fazendo referência a um momento inaugural da
ciência que gera uma preocupação de fundo, que diz respeito ao lugar da verdade. Podemos
então isolar duas questões com ainda mais precisão. Por um lado, os teoremas, ou articulações
referentes à matemática da natureza existem em algum mundo objetivo independente do
32
homem? E, de que maneira podemos garantir que uma fórmula matemática corresponda, como
lei geral, à experiência mais imediata que temos notícia?
Como nos alerta Lacan, essas são questões fundamentais que dizem respeito à
constituição do campo da psicanálise, ainda que estejam ligadas à história da filosofia. Ora, se
a psicanálise surge em comunhão com os efeitos do discurso da ciência, trata-se de assumir a
importância dessa querela na formação do pensamento psicanalítico. De todo modo, fazer
referência à importância desse Outro no que diz respeito à ciência, é como que aceitar que, de
fato, tal como sustenta Galileu, o universo está escrito em caracteres matemáticos. Mas,
conforme o que sustentamos até então, houve quem o escrevesse. Até porque, “é praticamente
certo (...) que a verdadeira e suprema causa da gravidade seja a ação do ‘espírito’ de Deus”
(KOYRÉ, 1979, p.219).
Não é de causar espanto, no meio de tamanha revolução no pensamento, algo que Lacan
diagnostica como uma “epidemia” (LACAN, 1976/2016, p.45), que essa ciência tenha podido
se sustentar em um mundo completamente dominado pelo poder da igreja. Ora, que Newton
tenha provocado um “frio na espinha de todos aqueles que pensavam, nomeadamente um certo
Kant, a respeito de quem se pode dizer que fez de Newton uma doença (...)” (LACAN, 1975-
76/2005, p.119), ao que parece, ainda assim, esse pensamento pôde ser reabsorvido e aceito,
pois “cada descoberta de uma lei da natureza era saudada como evidência do brilhantismo de
Deus, ao invés daquele do investigador” [tradução nossa] (KLINE, 1980, p.35).
Ainda que o pensamento de Descartes e de Galileu tenha introduzido essa espécie de
subversão em relação ao Aristotelismo e à escolástica medieval, considerava-se incontestável
que as suas proposições sobre a natureza do ser e da realidade, que podiam ser derivadas do
exercício da razão, deveriam estar sobre o resguardo de uma relação com Deus. Com efeito,
havíamos dito acima que o espírito científico que marca o período de Freud se caracterizava
por uma relação específica com a verdade. Dizíamos, também, que essa verdade conservava o
núcleo do pensamento de Aristóteles. Em suma, sustenta-se que o que se diga no campo da
ciência deve mais ou menos se adequar, “corresponder” à realidade, ainda que sob essa bandeira
“positivista”.
Daí nossa insistência em dizer que o discurso científico, que determina inclusive a
existência de um físico, opera com uma dimensão da realidade independente de sua relação
com a verdade. Em outros termos, trata-se de reconhecer aí precisamente aquilo que concerne
a um saber. Quer tratemos da água em sua forma literal, resta lembrar que na ciência lidamos
com a primazia do saber em relação à verdade.
33
9
Trecho original do site Pas-Tout Lacan: “Dans tout psychanalysant, il y a un élève d’Aristote” (LACAN, 1978).
34
os nomes Deus e Deus cristão (...) são usados para a designação de mundo supra-
sensível em geral. Deus é o nome para o âmbito das ideias e dos ideais. Este âmbito
do supra-sensível vale como o mundo verdadeiro e autenticamente real desde Platão
ou, dito mais exatamente, desde a interpretação grega tardia e cristã da filosofia
platônica. Diferenciando-se dele, o mundo sensível é apenas o mundo do aquém, o
mundo mutável e, por isso, o mundo meramente aparente, não real (HEIDEGGER,
1977/2014, p.251).
De fato, falar em matemática entre os “espíritos livres” causa essa espécie de “frio na
espinha” (LACAN, 1975-76/2005, p.119), tal como o provocado pela matemática newtoniana
em Kant. No entanto, suspeitamos que se deva investigar em detalhe a importância desse lugar
das matemáticas, pois, desde nossa leitura de Lacan, atribuímos a ele o compromisso de ser o
ponto em que se sustenta o arcabouço da ciência. Mas, afinal, o que a matemática pode ter a
ver com o inconsciente?
Assim como Nietzsche, Lacan também comenta a morte de Deus. No entanto, ele a
divide em dois tempos muito distintos. Seu juízo vai em outra direção, produzindo um outro
entendimento - ainda que sob alguma perspectiva de leitura específica possa-se fazê-lo coincidir
com o do filósofo alemão. E por uma série de razões muito especiais. Deus, no entender de
Lacan, morre duas vezes, e essa morte está necessariamente ligada aos avanços no campo da
matemática (LACAN, 1961-62/2003).
A primeira morte, já a localizamos e a descrevemos: trata-se do momento inaugural da
ciência, que surge com Galileu e tem sua mais acabada forma sob a figura de Newton. Como
vimos, que se derrogue a predominância de uma hierarquia cosmológica, fazendo operar um
campo unificado onde os corpos compartilham a mesma matéria - logo, a mesma legislação
formal -, produz-se, por conseguinte, uma espécie de vácuo, por onde se descreve a autonomia
10
Lembrando que aqui fazemos referência a um sentido mais amplo do termo que designa doutrinas filosóficas
que se fundam na verificação dos dados em realidades concretas, acessíveis aos sentidos.
35
de um saber articulado. Não obstante, fizemos notar que a fundação desse pensamento, ainda
que atribua soberania às matemáticas, conserva um compromisso com um Deus que não
engane: “o Deus de que se trata aqui, aquele que faz entrar Descartes nesse ponto de sua
temática, é esse Deus que deve assegurar a verdade de tudo o que se articula como tal”
(LACAN, 1961-62/2003, p.29).
Insistimos, então, que essa primeira morte de Deus engendra a primazia do campo do
saber, sob a pretensão de se construir um campo consistente e universal, em que se possa
articular sua transmissibilidade e sua legitimidade. Contudo, essa autonomia sustenta-se na
garantia de verdade assegurada por “essa espécie de acme do sujeito ideal” (LACAN, 1964-
65/2006, p.340). De que maneira essa questão se traduz no campo da matemática, e por que,
para Lacan, é importante que se faça referência a esse campo?
36
Retomando o fio de nossa argumentação, podemos partir aqui de uma outra indicação,
também pontual em Lacan. Certa vez lhe perguntaram se seu empenho com o uso das estruturas
matemáticas não se tratava de um simples recurso metafórico, ou a alguma sorte de modelo
mental. Diante dessa questão, ele foi então levado a concluir que "as estruturas de que se tratam
têm direito de ser consideradas como da ordem do upokeimenon, de um suporte, até de uma
substância disso que constitui nosso campo"11 [tradução nossa] (LACAN, 1965-66, p.160).
Contudo, o uso do conceito de “suporte” merece um esclarecimento:
Com efeito, quando Lacan destaca que a matemática goza do prestígio de ser
“upokeimenon” disso que constitui nosso campo, trata-se de a assumir, portanto, como aquilo
que subjaz ou que provê uma sustentação lógica. E, segundo o próprio Lacan, esse suporte, não
se trata de “outra coisa senão o que a lógica matemática soube isolar, posteriormente, na função
da variável, ou seja, daquilo que só pode ser designado por uma proposição predicativa”
(LACAN, 1968-69/2008, p.336).
Tendo essa indicação de Lacan como uma espécie de premissa a ser adotada no nosso
trabalho, parece importante destacar alguns pontos importantes no que diz respeito a esse campo
das matemáticas. Segundo Nagel e Newman (1998), qualquer pessoa que aprende geometria na
escola hoje sabe que ela é ensinada como disciplina dedutiva. Isso quer dizer que ela carrega,
desde seu passado na Grécia Antiga, a fundamental característica de que seus principais
teoremas não podem, em nenhuma hipótese, ter validade, porque dizem respeito a um somatório
11
Trecho original do site Staferla: “les structures dont il s’agit ont droit d’être considérées comme de l’ordre d’un
ὑποχείμενον [upokeimenon], d’un support, voire d’une substance de ce qui constitue notre champ” (LACAN,
1965-66, p.160).
37
de dados observados. Desse modo, toda proposição deveria, e ainda deve estar de acordo com
a conclusão de uma prova lógica.
Badiou e Gilles (2016) nos lembram também que já na Grécia Antiga é o matemático
que primeiro trouxe essa espécie de universalidade completamente desgarrada de qualquer
mitologia, ou fato religioso. Não mais se recorria a uma narrativa histórica para sustentar
determinado ponto, mas à prova matemática. Logo, pode-se dizer que a verdade que jazia no
discurso da tradição, ou no da revelação, não compartilhava de uma dependência à
racionalidade, marca da verdade no campo da matemática.
Na contramão, as demonstrações ou provas embasadas logicamente podiam ser
questionadas em seu próprio estofo, pois não encontravam sua garantia em nenhuma autoridade
para além de sua própria linguagem. Qualquer um podia tomar a palavra, a fim de demonstrar
a inconsistência de dado resultado matemático. Portanto, como apontam Badiou e Gilles, a
matemática carrega essa importante característica de não se referir a outro discurso que não a
si mesma e à sua legislação interna. Essa forma de pensar a prova e a verdade, então, liga-se a
um método que
consiste em aceitar sem provas certas proposições como axiomas ou postulados (e.g.,
o axioma de que por dois pontos podemos traçar uma e uma só reta) e depois derivar
dos axiomas todas as proposições do sistema como teoremas. Os axiomas constituem
os “fundamentos” do sistema; os teoremas são a “superestrutura” e são obtidos a partir
dos axiomas com a ajuda exclusiva dos princípios da lógica (NAGEL; NEWMAN,
1998, p.14).
De todo modo, esse é um método que outrora se baseava na segurança da verdade dos
axiomas. Pressupunha-se que tanto essa verdade quanto a consistência de todos os teoremas
estariam de alguma forma garantidas em algum plano que podemos chamar transcendente. Essa
era “uma sadia base axiomática” (NAGEL; NEWMAN, 1998, p.15) que vigorava até mais ou
menos o surgimento do aristotelismo e da sua leitura medieval. Como vimos, a física de Galileu,
resultante do corte com essa tradição, reavivou o debate em torno da importância das
matemáticas nas ciências da natureza. Com isso, viu-se um paulatino retorno da crença de que
o desenho da natureza pudesse ser descoberto por um raciocínio dedutivo e formal, e o método
axiomático, que suporta o pensamento hipotético-dedutivista, tomou para si a tarefa de sustentar
as ciências da natureza (KLINE, 1980).
Com a retomada e a intensificação dos estudos acerca do campo matemático no século
XIX, velhos problemas puderam ser resolvidos, diversos setores de estudo matemático
surgiram, assim como constataram-se uma série de profundas reformulações no arcabouço
38
Gerou-se uma opinião em que era tacitamente pressuposto que todo o setor do
pensamento matemático pode ser dotado de um conjunto de axiomas suficiente para
desenvolver sistematicamente a totalidade infinita de verdadeiras proposições acerca
da área dada de investigação (NAGEL, NEWMAN, 1998, p.15).
(...) formalizar esse discurso consiste em certificar-se de que ele se sustente sozinho,
mesmo que o matemático evapore por completo. Isso implica a construção de uma
linguagem que é, muito precisamente, aquela que chamamos de lógica matemática, e
que melhor seria chamar de prática da lógica, ou prática lógica sobre o campo
matemático (p.94).
Há de se fazer notar, então, que se trata de uma estrutura que inclusive prescinde de
quem a funda. Esse é uma das características do modelo matemático que instaura a axiomática.
Lembrando que, tal como Badiou e Gilles (2016) apontam, a matemática carrega essa espécie
de compromisso democrático, pois ainda que não exija alguém que a sustente, qualquer um
pode endereçar-se à comunidade, a fim de refundar um sistema de axiomas de base.
É justamente por isso que Platão faz Sócrates interpelar um escravo em seu diálogo
Mênon, - Lacan o chama de “um sujeito que não conta” (LACAN, 1967-68, p.52), aí como
representante escolhido por ser “qualquer um”, alguém que jamais passou por um ensinamento
sistemático. Um dos grandes exemplos dessa ideia nos tempos modernos é o do surgimento da
topologia como disciplina científica, após a colocação em discussão de um dos mais
importantes e históricos axiomas, o das retas paralelas de Euclides.
hipótese de que, através de um ponto fora da reta, pode-se traçar uma e uma só paralela
à reta dada. Por várias razões, este axioma não pareceu ‘auto-evidente’ aos antigos.
Eles procuraram, portanto, deduzi-lo de outros axiomas euclidianos que lhes pareciam
claramente auto-evidentes. Será possível fornecer uma tal prova dos axiomas das
paralelas? (NAGEL; NEWMAN, 1998, p.15).
12
Trecho original do site Staferla: “… l’intrusion de la science dans ce domaine qu’elle bouleverse, qu’elle force,
dirais-je, qui est un domaine qui a un nom parfaitement articulable qui s’appelle celui du rapport à la vérité”
(LACAN, 1965-66, p.78).
41
lá no lugar desse Outro absoluto já não há nada, nem ninguém a quem recorrer (LACAN, 1961-
62/2003).
Nessa medida, há de se fazer notar que esse é o momento em que a verdade fica
definitivamente excluída do campo das matemáticas. “Tal é o sentido do famoso epigrama de
Russell: a matemática pura é o assunto em que não sabemos acerca do que estamos falando e
se o que estamos dizendo é verdadeiro” (NAGEL; NEWMAN, 1998, p.18).
A matemática, então, serve para Lacan, em um primeiro momento, com a finalidade de
demover o imperialismo do senso comum de herança aristotélica, bem como para extrair a
psicanálise de qualquer domínio dogmático ou transcendente. Em um segundo momento, ela
continua a servir, pois é justamente sua condição de ser aquilo que suporta; ela é o
“upokeimenon, (...) disso que constitui nosso campo"13 [tradução nossa] (LACAN, 1965-66,
p.160). Levando isso em consideração, nossa crítica referente ao idealismo pode ser melhor
franqueada, tendo em conta o dado inultrapassável de que não pode haver a garantia de
consistência completa do discurso (LACAN, 1968-69/2008).
Dessa maneira, podemos ainda retornar à nossa definição do que vem a ser a ciência,
tal como se estabeleceu desde Galileu até os dias de hoje para, por fim, esboçar um juízo sobre
sua validade. Se a psicanálise, tal como pensou Lacan, depende desse segundo momento onde
se destroem as pretensões de se articular a verdade, que ciência podemos ver surgir aí? De
partida, podemos seguramente afirmar que se trata de um discurso que não pode mais se fiar na
presença de Deus ou de algum plano transcendente, com fins de garantir o estatuto da verdade.
Tampouco pode fazer referência a uma realidade suprassensível que se adeque, ou corresponda,
aos dados da experiência. Só podemos fazer referência, por isso, a um tempo onde a definição
de objetividade passa por uma profunda transformação e, se a certeza relativa à garantia dada
por Deus não pode mais ser conquistada, trata-se de uma noção de ciência marcada pela
incerteza.
Nosso passo a seguir irá na direção de estabelecer o sentido da operação: a “segunda
morte de Deus” (LACAN, 1961-62/2003), fazendo valer o dado de que não há nem pode haver
uma separação entre as noções de ciência e matemática na obra de Lacan. Sugerimos, com isso,
que deve haver na ciência moderna uma série de fatores relevantes para a constituição do campo
analítico, como bem nos alertou Lacan. Talvez possamos colocar em destaque dois desses
fatores, já mencionados aqui: 1) uma nova relação com a verdade, e 2) o fato de que, assim
13
Trecho original do site Staferla: "d’un ὑποχείμενον [upokeimenon], (...) de ce qui constitue notre champ"
(LACAN, 1965-66, p.160).
42
como na ciência, a matemática serve de suporte ao que constitui nosso campo (LACAN, 1965-
66).
Em certa medida, podemos supor que esses fatores são compartilhados, em algum
aspecto, pelos dois momentos destacados por Lacan, nomeados de primeira e segunda morte de
Deus. O que fica evidente em sequência é a complexificação desses fatores dentro do corpo de
saberes da ciência moderna e que, no tema que nos convém, parece ser essa a aposta lacaniana.
Desse modo, veremos a importância de mais algumas características dessa ciência
moderna, tais como o novo conceito de campo da física, um novo materialismo que podemos
chamar “quântico” e, mais especificamente no campo das matemáticas, a primazia da
axiomática dos conjuntos. Esse, ao que parece, foi o sugerido por Lacan, desde o “Seminário
sobre a identificação” em 1961, para fazer girar ao redor a sua concepção de significante. Com
efeito, partiremos do dado de que “o conceito matemático de um conjunto pode ser usado como
fundamento para todo conhecimento matemático” (HALMOS, 1960/2001, p.1).
A posição de Newton ante a natureza é caracterizada de modo mais claro pela célebre
frase em que afirma sentir-se como um menino que brinca na praia e se alegra quando
encontra um seixo mais polido ou uma concha mais formosa que de costume,
enquanto o grande oceano da verdade se estende, inexplorado, na sua frente. (...) Não
deve esquecer-se, contudo, que, para o mesmo Newton, a concha é valiosa porque
saiu do grande oceano da verdade: o estudo da concha só adquire sentido quando se
põe em relação com a totalidade do universo (HEISENBERG, 1962, p.10).
14Importante físico que descendente de uma linhagem que começa com Max Born, passando por Planck e Bohr.
Todos têm em comum o trabalho com a física que se denominou quântica.
43
Para ele [Heisenberg], tão, ou mesmo mais, importante do que ela é o fato de que, no
caso dessas partículas elementares, todo e qualquer processo de observação pressupõe
a presença de um aparelho de medida, o qual é responsável pela presença de uma
perturbação. Nas palavras de nosso autor: “... não é possível, (...), falar do
comportamento da partícula independentemente do processo de observação”. Essa
afirmação é a etapa anterior e última para a conclusão mais importante a que chega
Heisenberg em sua descrição da imagem da natureza produzida pela física moderna,
a saber: “... as leis da natureza que nós formulamos na mecânica quântica não se
referem às partículas elementares em si, mas ao conhecimento que nós temos delas”
(DA COSTA; VIDEIRA, 2009, p.21)
quântica. Em certa medida, ao formularmos uma questão no campo científico, não dispomos de
outra forma a não ser recorrer a nossa trama conceitual clássica, nosso aparelho lógico. Isso se
deve ao fato de que “só possuímos uma única forma de discurso apropriada aos objetos que
povoam o nosso ambiente cotidiano e capazes, portanto, de descrever a estrutura dos aparelhos
de medida” (DA COSTA; VIDEIRA, 2009, p.15).
No entanto, a especificidade do material interpretado exige que se estabeleça uma linha
divisória que aponta para uma matemática radicalmente diferente. Tratam-se de relações
estatísticas onde “o erro no experimento - pelo menos em alguma medida - não representa a
propriedade do elétron, mas a deficiência no nosso saber sobre o elétron. Também essa
deficiência do saber é expressa na função de probabilidade” [tradução nossa] (HEISENBERG,
1990, p.33). Nessa medida,
o efeito dos meios de observação sobre o campo observado deve ser concebido, por
princípio, como uma perturbação não controlada. Essa perturbação impõe um limite
à aplicação dos conceitos clássicos, uma vez que a sua exatidão (ou precisão) é
limitada pelas relações de incerteza (DA COSTA, VIDEIRA, 2009, p. 16).
Essas hipóteses que comparecem no arcabouço da chamada física quântica já são por si
só importantes. Todavia, a surpresa aqui talvez se mostre a nós, psicanalistas, pelo fato de Lacan
revelar que seu campo compartilha do mesmo fundamento, ou do mesmo suporte que essa física
avançada. E, se estabelecemos que o sujeito sobre o qual opera a psicanálise é o sujeito da
ciência, podemos extrair consequências importantes:
… se tivesse que empregar uma figura que não surge aí por acaso, diria que ocorre
com ele [o sujeito] o que ocorre com o elétron, no ponto em que este se propõe a nós
na junção da teoria ondulatória com a teoria corpuscular. Somos forçados a admitir
que é precisamente como sendo o mesmo que esse elétron passa ao mesmo tempo por
dois buracos distantes (LACAN, 1969-70/1992, p.109)
Então, se formos rigorosos com a proposta lacaniana, aqui o assunto não se trataria
simplesmente do fato de que o sujeito, bem como o elétron, possui esse caráter duplo. O que
Lacan parece querer salientar é o fato de que esse sujeito é justamente o resultado de uma
perturbação causada por uma teoria particular, a qual se sustenta pela hipótese principal da
psicanálise, de que há inconsciente. Em outras palavras, a experiência analítica depende do
campo que seu discurso determina, não só porque ele engendra um fato enquanto fato de
discurso - do discurso da psicanálise -, mas que seu objeto é em si mesmo a perturbação causada
por essa teoria. Talvez possamos dizer que Freud, ainda que inadvertidamente, nomeou essa
relação de transferência.
45
Isso não quer dizer, porém, que possa de algum modo haver uma teoria do
inconsciente. Confiem em mim, não é nada disso que viso. Como este enunciado ainda
pode dar margem a formulações escabrosas, eu o retomo. Que há uma teoria da prática
psicanalítica, isso é certo. Do inconsciente, não, a menos que queiramos reverter o
que acontece com essa teoria da prática psicanalítica, que nos dá do inconsciente o
que dele pode ser apreendido no campo dessa prática, e nada mais (LACAN, 1968-
69/2008, p.64).
A teoria que se articula, essa da qual depende a nossa prática, não produz uma imagem
do inconsciente porque ela versa precisamente sobre a nossa relação com um fato clínico, da
mesma forma que “a ciência não pode produzir uma imagem da natureza, mas, sim, da nossa
relação com a natureza” (DA COSTA; VIDEIRA, 2009, p.27). É sensível, portanto, que temos
que nos reportar a uma limitação em nossos esforços de produzir efeitos analíticos. Trata-se de
uma demarcação, ou, mais precisamente, da circunscrição de um conjunto - ou borda, em
termos topológicos -, ou ainda, nas palavras de Goldenberg (2018), “o que denomina ‘discurso
analítico’, como condição da nossa práxis, define um novo conceito de campo” (p.193).
Por certo, com essa espécie de exigência, que a rigor podemos chamar conceitual, temos
dois pontos cruciais a não desconsiderar. O primeiro diz respeito ao fato de que, se não partimos
dessa exigência - de se respeitar os limites de um campo traçado - caímos no risco de fazer da
psicanálise uma ideologia. “É muito cômodo citar Freud naquilo de que ‘a psicanálise não é
uma Weltanschauung’ - uma visão de mundo -, para depois tratar a teoria lacaniana como se
ela o fosse” (GOLDENBERG, 2018, p.196). Lembrando, também, que a borda que engendra o
conjunto é sinônimo de corte na teoria das superfícies. Isso pode mostrar que se trata de aceitar
que existem coisas para além do nosso campo, assim como fatos que não nos concernem
enquanto responsáveis pela função analítica.
O segundo ponto é ainda mais delicado e imensamente mais importante. Como
dissemos, tal como na mecânica quântica, é o fato de toda e qualquer teoria que se diga científica
pressupor uma perturbação, que se pode constatar a produção, justamente aí, do rastro do objeto
a ser investigado. E, no que convém a nós, analistas, se trataria, enfim, do objeto da psicanálise.
Tal objeto, portanto, existe na experiência analítica habilitada pela sua teoria. E apenas ali.
Verifica-se ali, “mas seu status é o de uma ficção teórica” (GOLDENBERG, 2018, p.195). Tal
como o elétron, ele depende do resultado de uma observação do experimentador - alguém que
ocupe o lugar do analista -, que se apoia prioritariamente em uma dimensão hipotética, abstrata
e formal. Essa, inclusive, é uma maneira de entender que “a verdade tem uma estrutura, se
podemos dizer, de ficção” (LACAN, 1956-57/1995, p.259).
46
Uma psicanálise pensada dessa maneira compartilha com o problema central que
encontramos na ciência de Koyré, bem como com o que Heisenberg também chamou de
paradoxo. Como dissemos acima: “em todo analisante há um aluno de Aristóteles”15 [tradução
nossa] (LACAN, 1978a). Ora, se “somos todos aristotélicos” (GOLDENBERG, 2018, p.105),
podemos dizer que essa espécie de paradoxo, entre uma linguagem usual que resguarda uma
relação com uma concepção de verdade própria à bandeira de uma metafísica grega, e outra,
que se propõe experimental e teórica, não seria justamente aí nesse ponto que encontramos o
motivo da perturbação que cai como objeto de nossa prática?
Ainda no campo da física, é sabido que tal forma de compreender o mundo e a natureza
provocaram um incômodo em Einstein. Em sua famosa carta endereçada a Max Born, expoente
da mecânica quântica, ele diz: “Você acredita no Deus que joga dados, e eu na lei e ordem
completas de um mundo que existe objetivamente, o qual, de maneira selvagemente
especulativa, tento capturar” (EINSTEIN, 1944). De todo modo, haveríamos de reconhecer que
apesar de possuir alguns aspectos contraintuitivos, como o dado de que o tempo não é
universalizável, ou de que o tecido do espaço-tempo implica em uma curvatura, a teoria da
relatividade é muito bem aceita pelo senso comum.
Por outro lado, o que não se discute por aí é uma dada teoria que afirma fatos tão
estranhos para nosso entendimento comum, tais como a total dependência da observação à
limitação do seu campo, ou, simplesmente, a inclusão de um aspecto probabilístico intrínseco
à matéria. Em seu tempo, Einstein, assim como Newton, não poderia deixar de se reportar a
uma organização lógica que se ancora em uma noção de verdade como correspondência.
Ainda assim, vínhamos salientando essa espécie de paradoxo que, tanto na tradição
galileana, quanto na mecânica moderna, aparece insistentemente. Apontamos, em um primeiro
momento, que essa fonte de perturbação surge com o reavivar do “diálogo sobre os dois
maiores sistemas do mundo” (KOYRÉ, 1973/2011, p.187). Porém, ainda que possa seguir
incidindo sobre essa maneira de postular o pensamento lacaniano, o rótulo taxativo de
idealismo, podemos, também, encontrar um Lacan que parece não estar de acordo:
15
Trecho original do site Pas-Tout Lacan: “Dans tout psychanalysant, il y a un élève d’Aristote” (LACAN, 1978).
47
Esse “hiperplatonismo”, talvez possamos dizer que, nesse momento de seu ensino, faz
referência sem atraso à física, não mais a de Newton - que chamamos de clássica -, mas a da
relatividade geral e à quântica. Lembrando que ambas se fundamentam sob uma mesma
característica, qual seja: os “entes”, ou os objetos, que se articulam desde suas hipóteses
fundacionais articulam-se inteiramente a partir de letras. Em uma outra ocasião, em 1971,
questionado se era um “idealista pernicioso” (LACAN, 1971/2009, p.26), Lacan responde que
a questão do idealismo platônico já havia sido resolvida pelo avanço da lógica matemática.
Outrossim, Heisenberg (1990), ao se perguntar sobre a especificidade das partículas
quânticas, declara que o modelo mais adequado à essa concepção pode ser encontrado na
filosofia de Platão, pois: “as menores partes da matéria não são seres fundamentais, como na
filosofia de Demócrito, mas sim formas matemáticas. Aqui é bastante evidente que a forma é
mais importante que a substância de que é formada” [tradução nossa] (p. 57). Ambos, Lacan e
Heisenberg, ainda que separados por uma fronteira epistêmica intransponível, sustentam a
predominância de uma estrutura de fundo que é matemática e que, portanto, não deixa de
apontar para a filosofia platônica.
Se fizemos referência ao surgimento de uma nova concepção de campo, também
dissemos que essa nova maneira de compreender a relação entre as linguagens adequadas à
ciência referem-se a uma espécie de paradoxo. E é a partir desse ponto que fizemos aparecer a
dimensão própria ao objeto que indicamos ser tributário aos efeitos práticos de determinada
teoria.
A rigor, nossa investigação pode retomar a pergunta pelo estatuto daquilo sobre o que
incide nosso campo, lembrando que um dos pontos chave sobre o qual vai girar essa
interrogação, que une ciência e psicanálise, é a distinção lacaniana entre realidade e Real. Com
efeito, o campo aberto pela ciência, enquanto resultante do que indicamos ser uma torção no
pensamento e enquanto suportando-se por uma escrita matemática, segundo Lacan, é o
responsável por lançar no mundo a dimensão do Real. E não podemos deixar de mencionar que
a tríade, Real, Simbólico e Imaginário é inteiramente articulada em forma de uma cadeia.
Se, a partir de um certo momento, (...) acreditei dever deixar entrar em jogo essa tríade
do simbólico, do imaginário e do real, é na medida em que esse terceiro elemento, que
até aí não era absolutamente, em nossa experiência, suficientemente discernido como
tal, é exatamente aos meus olhos o que é constituído exatamente pelo fato da revelação
de um campo de experiência. E, para suprimir toda a ambigüidade desse termo, trata-
se da experiência freudiana (...). Quero dizer que não se trata de Erlebnis, trata-se de
48
um campo constituído de uma certa maneira, até um certo grau por algum artifício,
aquele que inaugura a técnica psicanalítica como tal, a face complementar da
descoberta freudiana, complementar como a frente o é ao avesso, realmente colado.
O que é revelado primeiro nesse campo, vocês sabem bem, naturalmente, que foi a
função do símbolo e ao mesmo tempo o simbólico (LACAN, 1961-62/2003, p.70).
“Eu falo do objeto da ciência, dito de outro modo: um furo”16 [tradução nossa]
(LACAN, 1965-66). Portanto, há de se fazer notar que esse furo a que se refere Lacan é mais
um nome da dimensão simbólica, e é ele que se oferece como suporte à ex-sistência do Real,
porque ele “é muito especificamente definido por uma descoberta da eficácia da operação
significante como tal” (LACAN, 1962-63/2005, p.47). Trata-se, então, da introdução de um
registro avesso à realidade, e “se existe uma chance de captar algo que se chama o real, não é
em outro lugar senão no quadro-negro” (LACAN, 1969-70/1992, p.160).
Ademais, se, como já advertimos, a ciência de que tratamos é o que depende de um
suporte matemático, trata-se de uma dimensão radicalmente oposta ao mundo sensível ou à
experiência comum. Para Lacan, não podemos falar de experiência como se fosse uma vivência
[Erlebnis]. Ela, pelo contrário, é um experimento controlado. Vejamos outra maneira de
franquear essa questão.
Sob o crivo das mortes de Deus, o mundo caracterizado pela entrada da ciência moderna
é articulado com letras. Como vimos, não se trata de qualquer letra. Estamos no campo das
matemáticas. Como havíamos mostrado em Koyré, o giro decisivo no campo do saber,
tributário à introdução do rigor metodológico sustentado em linguagem matemática, derrogou
a pregnância de um materialismo ingênuo que tinha suas fontes em Aristóteles. Não mais
podemos nos fiar na experiência sensível com fins de fazer ciência. Com a física de Heisenberg,
Planck e Bohr vimos que fazer ciência é tarefa homóloga à investigação acerca da observação
em si mesma, uma vez que se a determinou como produtora de sua própria realidade.
Ora, percorremos esse caminho a fim de mostrar uma série de balizas que permitiram a
Lacan questionar a realidade mais imediata que nos diz respeito, qual seja: a neurose. Com todo
esse aparato mental, Lacan se armou para pensar, portanto, a especificidade da matéria - a qual
16
Trecho original do site Staferla: “Je parle de l’objet de la science, autrement dit: un trou” (LACAN, 1965-66,
p.24).
49
corresponde sua prática -, quais suas características e quais as implicações para a estrutura desse
Outro indispensável ao pensar-se o campo do sujeito.
Sustentar o estofo do que concerne à ciência em uma estrutura matemática, levando em
conta sua raiz hipotética e axiomática, coloca para nós a pergunta sobre o estatuto imediato de
seu objeto. O que é isso que a ciência produz no mundo e que produz tantos efeitos? E, por que
perguntar-se pelo seu estatuto é, de fato, relevante para a psicanálise?
17
Em seu último livro, Ricardo Goldenberg (2018) se serve do conceito de “desleitura” para repensar a situação
da psicanálise nos dias de hoje. Ele importa esse conceito da crítica literária de Harold Bloom, e faz bascular uma
noção de leitura que supõe dizer aquilo que está dito, mas encoberto pela leitura usual. Algo como o desaniversário
de Alice no país das maravilhas - em que se comemoram todos os dias que não o do aniversário, trata-se de ler
Lacan através de tudo aquilo que não vem sido dito do que se leu dele.
50
Quando solta o aforismo “o real é sem lei”, em 1978, entendeu-se que declarava o
terceiro registro um fugitivo da ordem simbólica a ser caçado pelo xerife significante.
Não é, contudo, um fora da lei, visto que como o pecado para São Paulo, só existe por
causa dela. E assim como não há pecado ao sul do equador, tampouco há real fora da
linguagem (GOLDENBERG, 2018, p.157).
Como podemos ver, a pergunta pelo estatuto do registro do Real pode, também, nos
encaminhar de volta para a questão sobre o lugar da verdade. Se foi necessário a Russell declarar
que “a matemática pura é o assunto em que não sabemos acerca do que estamos falando e se o
que estamos dizendo é verdadeiro” (NAGEL; NEWMAN, 1998, p.18), para Lacan, isso se deve
em razão da admissão de um limite ao saber. E esse limite é justamente um outro nome do Real.
Portanto, convém reconhecer que a exclusão da verdade do campo do saber é condição
para o estabelecimento derradeiro da ciência no mundo moderno. Em “A ciência e a verdade”
(1966/1998), Lacan diz que da verdade como causa, a ciência “não quer-saber-nada” (p.889).
Ele reconhece aí a mesma formulação que fundamentou sua noção de psicose em sua tentativa
de demarcação estrutural: Verwerfung, que ele traduziu por forclusion - preclusão ou
foraclusão, como escolhido pelos tradutores. Em seguida, ele adiciona: “a incidência da verdade
18
Trecho original do site Staferla: “La probabilité est ce que le développement de notre science rencontre au
dernier terme d’une certaine veine d’investigation du réel” (LACAN, 1965-66, p.118).
51
como causa na ciência deve ser reconhecida sob o aspecto da causa formal” (LACAN,
1966/1998, p.890).
Se foi necessário a Lacan categorizar a relação da verdade com a ciência sob o signo da
foraclusão, há de se reconhecer que ela carrega, portanto, a marca desse mecanismo antes
descrito na estrutura psicótica. Isso quer dizer que, se a verdade é rechaçada do campo do saber
como condição de possibilidade do bem estabelecimento desse mesmo campo, já que se trata
desse mecanismo, espera-se que essa verdade retorne. E estamos falando de um retorno no Real.
Em outras palavras, a hipótese de Lacan é tal que, aquilo que aparece como perturbação no
discurso da ciência, haveria de reaparecer no campo do saber implicado em uma análise, sob
uma forma simbólica que opera como resposta do Real.
Lembrando que:
o real está no extremo oposto de nossa prática. É uma ideia, uma ideia limite do que
não tem sentido. O sentido é aquilo por meio do qual operamos em nossa prática: a
interpretação. O real é esse ponto de fuga como o objeto da ciência (e não do
conhecimento, que é mais do que criticável), o real é o objeto da ciência 19 [tradução
nossa] (LACAN, 1977).
Como havíamos apontado, ainda que a ciência coloque essa dimensão nova em
funcionamento, é a psicanálise, ou mais propriamente a teoria lacaniana, que vai propor
operacionalizar isso que, curiosamente, “está no extremo oposto de nossa prática” (LACAN,
1977). Com efeito, não há como supor que se opere com o Real, ou que possa haver uma clínica
do Real, pois este não é senão um efeito da estrutura significante. É o discurso analítico que, ao
se servir dessa premissa - de que a verdade enquanto causa é foracluida -, produz uma relação
entre real e verdade, uma vez que, desde Freud, a psicanálise é responsável pelo “reingresso da
verdade no campo da ciência” (LACAN, 1960/1998, p.813).
Lançando luz sobre a noção de causa, trata-se aqui de uma referência direta à física de
Aristóteles. E o que Aristóteles denomina como causa é “aquilo que formulamos em resposta à
pergunta ‘por quê?’” (ANGIONI, 2009, p.253). Com isso, Lacan reserva cada uma das quatro
causas descritas pelo filósofo grego - eficiente, final, formal e material - para pensar os modos
de relação da verdade com quatro campos distintos, sendo eles: a magia, a religião, a ciência e,
por fim, a psicanálise. À ciência, para Lacan, corresponde a pergunta pela sua definição, pois a
19
Trecho original do site Pas-Tout Lacan: “Le réel est à l’opposé extrême de notre pratique. C’est une idée, une
idée limite de ce qui n’a pas de sens. Le sens est ce par quoi nous opérons dans notre pratique: l’interprétation.
Le réel est ce point de fuite comme l’objet de la science (et non de la connaissance qui elle est plus que critiquable)
le réel c’est l’objet de la science”.
52
Primeira condição: uma linguagem sem equívoco. Acabo de lhes recordar o caráter
sem equívoco do discurso matemático; a linguagem lógica não parece ter outra
dificuldade senão reforçá-lo, refiná-lo. Esse sem equívoco concerne a algo que
continuamos a poder chamar de objeto, mas que não é um objeto qualquer. (...) É uma
excelente oportunidade para salientarmos que, ao contrário, é da natureza do discurso
fundamental ser não apenas dúbio, mas essencialmente feito do deslizamento, sob
todo discurso, da significação. Tenho enfatizado este ponto desde que comecei a me
referir à linguagem. Portanto, primeira condição dessa linguagem: ser inequívoca. Isso
20
Trecho original do site Staferla: “j’ai laissé dans le discret suspens de ce qui va alors être bien appelé «débat
entre psychanalyse et science» le jeu des rapports des ‘causes matérielle et formelle’” (LACAN, 1965-66, p.17).
53
Note-se que o paradoxo que continuamos a nos referir também surge como uma espécie
de problemática interna, porque se requisita na ciência justamente uma linguagem que não seja
equivoca. E, como sabemos, o deslizamento da significação é uma especificidade própria da
nossa linguagem usual. Heisenberg, curiosamente, chamou isso de “a incerteza intrínseca dos
significados das palavras” (HEISENBERG, 1990, p.157).
“Condição segunda: essa linguagem deve ser pura escrita” (LACAN, 1968-69/2008,
p.95). Por escrita, no que diz respeito ao discurso analítico, é bom lembrarmos que não se trata
de “nos referirmos simplesmente ao que é, de certo modo, a matéria imaginária de todo
significante - a forma da palavra ou a do caractere chinês, se vocês quiserem - ou seja, ao que
há de irredutível no fato de ser preciso que o significante tenha um suporte intuitivo” (LACAN,
1962-63/2005, p.150). Em suma, para Lacan, se a escrita exerce um papel de destaque em sua
teoria, não se trata, aqui, do que se escreve em um papel, ainda que isto sirva aí como suporte
imaginário, mas, mais precisamente, de uma dimensão que se estabelece de uma maneira
abstrata quando se intervém sobre um discurso.
De todo modo, a ciência também se acha nessa complicada tarefa de transmitir suas
descobertas e desafios para o assim chamado leigo, se forçando a adotar uma linguagem mais
comum. Isso não passou despercebido por Lacan, uma vez que “esses signos que chamamos de
matemáticos, ‘matemas’, unicamente pelo fato de que eles se transmitem integralmente. Não
se sabe absolutamente o que eles querem dizer, mas eles se transmitem” (LACAN, 1972-
73/2010, p.119).
Podemos, por fim, retomar a noção de ciência que descrevemos. Assim como Lacan,
Heisenberg também se pergunta pela concepção de verdade, se ela pode ser definitiva e
coerente. “Sua resposta é afirmativa, mas, para sê-lo, ele tem de defender a necessidade de se
aceitar a noção de domínio de validade de uma teoria” (DA COSTA; VIDEIRA, 2009, p. 16).
Como veremos no próximo capítulo, dizer que a verdade se relaciona aos limites de um domínio
é o mesmo que dizer que o universo possui um limite infranqueável.
54
Com isso, nos reportamos à uma noção que já havíamos descrito antes. A ciência, em
conjunção com o pensamento matemático, é impedida de versar sobre o todo. Essa é, inclusive,
uma das mais significativas indicações de Lacan. A rigor, não se tratará mais do Um, em sua
dimensão totalizante, mas sim do um enquanto contável.
55
Sustentamos até aqui que a psicanálise como discurso tem como suporte uma operação
que declaramos ser matemática. Essa operação, embora simples, verificou-se possuir uma
extensão variada de expressivos significados quando pensada em sua refração no discurso
científico. Se, em um primeiro momento, a Galileu requisitou-se pensar um universo escrito em
caracteres matemáticos, vimos que um segundo passo dado pela física quântica demonstrou a
impossibilidade de se descrever a matéria sem a escrita de uma fórmula probabilística. De todo
modo, vale ressaltar que nos referimos sempre a homens da ciência colonizados por uma
maneira de pensar muito particular, uma maneira que eles mesmo relacionaram à querela da
filosofia antiga.
Pode-se dizer que ambos os passos se enunciaram como direcionando-se à filosofia de
Platão, em razão de uma ruptura com o senso comum, que declaramos ser aristotélico. Em
tempo, o segundo passo, que ilustramos desde a física de Heisenberg, apontou para o fato de a
forma matemática ser, em si mesmo, limitada, não podendo, assim, servir para descrever o
mundo de maneira coesa e sistemática. Perde-se, por fim, o referencial último que Lacan jamais
deixou de chamar de Deus.
Desse modo, procuramos sempre fazer referência à interlocução com a ciência que o
próprio Lacan julgava ser necessária a fim de estabelecer as bases do discurso analítico. Que
fique claro, dizendo de um outro modo, para Lacan, quando Freud ouve a “outra cena” naquilo
que lhe é dito, aí trata-se de uma operação conceitual complexa que exige uma série de precisas
balizas. E, se afirmamos que essa “outra cena” está estruturada como uma linguagem, cabe
dizer que esta possui um regime legislativo específico que, como veremos, responde não só a
21
Trecho original do site Staferla: “Entre les questions: — ‘l’incompréhension psychanalytique est-elle un
symptôme?’, — et ‘l’incompréhension de Lacan est-elle un symptôme?’, j’en placerai une 3ème: —
‘L’incompréhension mathématique… c’est quelque chose qui se désigne, il y a des gens - et même des jeunes gens,
parce que ça n’a d’intérêt qu’auprès des jeunes gens - pour qui cette dimension de l’incompréhension
mathématique, ça existe …est-elle un symptôme?” (LACAN, 1971-72, p.13).
56
uma articulação formal, mas também não deixa de se tratar de algo que não pode se conceber
sem requisitar os precedentes do que Lacan identificou como sendo a ruptura com o mundo
medieval, decorrente do pensamento científico.
Se o que Freud descobriu, e redescobre com um gume cada vez mais afiado, tem
algum sentido, é que o deslocamento do significante determina os sujeitos em seus
atos, seu destino, suas recusas, suas cegueiras, seu sucesso e sua sorte, não obstante
seus dons inatos e sua posição social, sem levar em conta o caráter ou o sexo, e que
por bem ou por mal seguirá o rumo do significante, como armas e bagagens, tudo
aquilo que é da ordem do dado psicológico (LACAN, 1956/1998, p.33).
Portanto, o homem a quem se dirige Freud e Lacan é esse que é aprisionado por uma
mecânica determinada por um jogo entre elementos que chamamos significantes. Estes não
passam de uma “forma de matematização em que se inscreve a descoberta do fonema, como
função dos pares de oposição compostos pelos menores elementos discriminativos captáveis da
semântica” (LACAN, 1953/1998, p.286). Ainda assim, convém lembrar que entender o
funcionamento disso que Freud chamou de inconsciente depende da admissão de uma hipótese
essencial:
Eu assinalo que o inconsciente, eu não entro nisso, não mais do que Newton, sem
hipótese. A hipótese de que o indivíduo que é afetado pelo inconsciente é o mesmo
que constitui o que chamo de sujeito de um significante, o que eu enuncio sob essa
fórmula mínima: “um significante representa um sujeito para outro significante”. (...)
Dizer que há um sujeito não é nada mais do que dizer que há uma hipótese (LACAN,
1972-73/2010, p. 271).
É o campo da verdade que defini como sendo o lugar em que o discurso do sujeito
ganharia consistência, e onde ele se coloca para se oferecer a ser ou não refutado.
Surgiu para Descartes o problema de saber se existia ou não um Deus que garantisse
57
esse campo. Ora, esse problema está hoje totalmente deslocado por não haver no
campo do Outro a possibilidade de uma consistência completa do discurso. (LACAN,
1968-69/2008, p.92).
Ele é, portanto, o lugar que se postula de antemão, a fim de fazer valer as articulações
no campo da ciência. É neste lugar que se encontram as balizas estruturais do registro simbólico.
Convém destacar também que
22
Trecho original do site Pas-Tout Lacan: “C’est, si vous me permettez d’employer pour la première fois ce terme,
dans ce motérialisme que réside la prise de l’inconscient”/ “É, se vocês me permitem empregar pela primeira vez
este termo, neste moterialismo que reside a captura do inconsciente (...)” [tradução nossa] (LACAN, 1975).
58
1961 foi o ano em que Lacan proferiu pela primeira vez sua famosa definição de
significante. A essa altura ele estava às voltas com dois problemas fundamentais: a identidade
contida na fórmula A=A, e o regime das significações expresso pela noção de signo linguístico.
matemático de um conjunto pode ser usado como fundamento para todo conhecimento
matemático”.
Por sua vez, Kline (1980) lembra que as inovações da lógica moderna consistiram na
“aplicação do método matemático: simbolismo e prova dedutiva de princípios lógicos a partir
de axiomas lógicos” (p. 190). E, como vimos anteriormente, Newman e Nagel (1998) atribuem
o campo aberto pela ciência e pelas matemáticas como o responsável pela reintrodução do
debate acerca do fundamento do número e do continuum numérico. Para Tiles (2004, p.120),
“a necessidade da teoria dos conjuntos em si mesma, porém, emergiu somente como resultado
do movimento de formalização completa da geometria, geometria analítica em particular, e para
torná-la independente da intuição” [tradução nossa]. Por sinal, Lacan (1966-67) é sensível à
essas indicações:
Portanto, a nosso ver, Lacan se aproveitou desse campo em inúmeras ocasiões, fazendo
a psicanálise se dobrar à formalização descrita por Cantor, Frege, Russell e, por fim, Gödel. Ao
que parece, perguntar-se pela constituição do conjunto é indicar que a linguagem, da qual
depende essa estrutura inconsciente, lhe é intimamente dependente. Adotando esse norte,
veremos como o conceito de sujeito, enquanto resultante da definição de significante, só pode
ser o efeito de uma operação conceitual que tem a mesma natureza daquilo que Frege descreveu
na fundamentação da aritmética. Mais adiante faremos referência a um problema derivado da
inferência lógica do conjunto de todos os conjuntos, julgando ser precisamente nesse ponto que
Lacan encontra sua definição de Outro. Essas duas questões fazem alusão, respectivamente, ao
um e ao múltiplo. Vejamos, então, como Frege (1989) começa:
23
Trecho retirado do site Staferla: “c’est à savoir que, si nous portons les choses non pas à cette tentative de
littéralisation du maniement de la logique propositionnelle, mais si nous la portons sur le plan de ce qui vient au
fondement de la formulation du développement mathématique, à savoir la théorie des ensembles, la théorie des
ensembles sous une forme masquée introduit quelque chose qui est justement ce qui permet d’en faire le fondement
de ce qui est le développement de la pensée mathématique” (LACAN, 1966-67, p. 55).
61
Como podemos ver, a maneira de conceber o número começa com um método idêntico
ao passo dado pela revolução científica. Trata-se, portanto, de um artifício da razão, que supõe
a construção de um conceito que não pode ser intuído da natureza, tal como estabelecida a partir
do senso comum. Com efeito, Frege precisa sustentar que “o número não pode ser representado
nem como objeto independente nem como propriedade em uma coisa exterior, porque não é
algo sensível nem propriedade de uma coisa exterior” (FREGE, 1989, p.136). Por exemplo,
quando nos referimos ao satélite do nosso planeta - falamos da Lua -, ao que cai como objeto
dessa prévia definição, por uma dedução racional, indexa-se o número um (1). Mas quando
inquiridos sobre as luas de Vênus, que número projetamos aí, dado que não há Luas em Vênus?
De fato, Frege precisa do conceito de “diferente de si mesmo” - o que Lacan chamou de
pura diferença -, para fundar o zero. “Porque nada cai sob o conceito ‘diferente de si próprio’,
defino: 0 é o número que convém ao conceito ‘diferente de si próprio’” (FREGE, 1989, p.146).
Essa operação, portanto, estabelece uma série de balizas importantes. Se na forma usual que
lidamos com as coisas à nossa volta contamos a coleção de objetos, para Frege, fazer isso supõe
uma operação que postule de antemão o zero como aquilo que não significa nada. Mais
precisamente, trata-se de algo que se constata como logicamente anterior a todo ato de
contagem. E é nesse sentido que Lacan se endereça à realidade e a define como efeito de um
discurso. Nessa medida, não há, nem pode haver, realidade pré-discursiva24, dado que toda
realidade implica em uma posição logicamente anterior que serve como pivô.
Mas como podemos reparar, esse pivô é resultante de um efeito de leitura - só o
constatamos como originando-se a posteriori. Justamente por isso Lacan pôde dizer que, em
uma análise, trata-se de uma existência lógica, pois só “há sujeito a partir do momento em que
fazemos lógica, isto é, em que temos que manejar significantes”25 [tradução nossa] (LACAN,
1966-67, p.4). O significante, então, é o zero da teoria psicanalítica. É seu marco fundador e
sua pedra angular. Ao postulá-lo como não idêntico a si mesmo, deduzimos um conjunto vazio.
E é vazio, porque não existem elementos que caem sob o conceito de zero. Esse conjunto,
portanto, é único e depende de uma operação conceitual.
24
Cabe salientar mais uma vez que a psicanálise não se interessa, nem pode se interessar, por algo que não seja
limitado por um campo específico. Adiante veremos que esse limite que se postula, assim como na física moderna,
é tributário à definição de Outro barrado. De todo modo, a realidade sobre a qual versa uma psicanálise é efeito de
uma leitura que tem seus precedentes inscritos e deduzidos da estrutura significante. Que haja algo para além dessa
definição é inteiramente cabível, mas não nos concerne.
25
Trecho retirado do site Staferla: “il y a du sujet à partir du moment où nous faisons de la logique, c’est à dire
où nous avons à manier des signifiants” (LACAN, 1966-67, p.4).
62
Com efeito, esse conjunto “x diferente de si mesmo”, é um caso especial na teoria dos
conjuntos. “Como, obviamente, não há um indivíduo que seja diferente de si próprio, o conjunto
definido não tem elementos: é o chamado conjunto vazio, que denotaremos pelo símbolo ”
(MORTARI, 2016, p.68). O passo que se segue em Frege é a proposição decisiva de que,
postulado esse conjunto, ele serve para a sustentação da sucessão dos números inteiros. Mas,
de que modo?
A rigor, há número porque há o conceito - nesse caso, o conceito de não identidade.
Note-se que é fundamental precisar um ponto de impossível: do conceito de não idêntico a si
mesmo deduz-se um conjunto vazio que é, por fim, contado como um. Ao definir o zero como
correspondendo à definição do que é diferente de si mesmo, podemos escrever o conjunto dos
elementos que caem sob o conceito de zero.
Esse conjunto possui apenas um elemento: o conjunto vazio. Em outras palavras, define-
se todo número natural como sendo “igual ao conjunto de seus predecessores” (HALMOS,
1960/2001, p.73). Para Frege,
a fim de obter então o número 1, devemos inicialmente mostrar que há algo que segue
na série natural dos números imediatamente após 0. Consideremos o conceito — ou
caso prefira-se, o predicado' — "igual a 0". Cai sob ele o 0. Sob o conceito "igual a 0
mas não igual a 0", por outro lado, não cai nenhum objeto, de modo que 0 é o número
que convém a este conceito. Temos portanto um conceito "igual a 0" e um objeto 0
que cai sob ele, para os quais vale: o número que convém ao conceito "igual a 0" é
igual ao número que convém ao conceito "igual a 0"; o número que convém ao
conceito "igual a 0 mas não igual a 0" é o 0. Portanto, segundo nossa definição, o
número que convém ao conceito "igual a 0" segue na série natural dos números
imediatamente após 0. Ora, se definirmos: 1 é o número que convém ao conceito
"igual a 0" poderemos assim exprimir esta última proposição: 1 segue na série natural
dos números imediatamente após 0” (FREGE, 1989, p.148).
Não é de se estranhar, portanto, que Lacan tenha afirmado que “o sujeito, situado em
algum lugar entre o zero e o um, manifesta isso que ele é, e que vocês me permitirão, por um
instante, chamá-lo, para fazer imagem, a sombra do número” (LACAN, 1964-65/2006, p.197).
Ainda nessa direção, ao passo da proposta de situar o sujeito como resposta do Real, uma vez
que “a razão está em que aquilo a que concerne o discurso analítico é o sujeito, o qual, como
efeito de significação, é resposta do real” (LACAN, 1972/2003, p.458), convém lembrar
também que “existe ao menos uma coisa real, a única que temos certeza - é o número” (LACAN,
1971-72/2012, p.34).
Dessa maneira, nota-se que o “manejo” com os significantes depende de uma definição
prévia, tal como a sugerimos anteriormente, ou seja, axiomática. Esta “consiste em aceitar sem
provas certas proposições como axiomas ou postulados (e.g., o axioma de que por dois pontos
podemos traçar uma e uma só reta) e depois derivar dos axiomas todas as proposições do
sistema como teoremas” (NAGEL; NEWMAN, 1998, p.14). Isso quer dizer que essa operação
significante que incide na estrutura, mas também pela estrutura, não pode fazer referência a
64
algo para além de si mesma. Essa fronteira, Lacan a descreveu da seguinte maneira: “não existe
metalinguagem” (LACAN, 1966/1998, p.882). Portanto,
que o significante - esse significante cuja função temos aqui definido, de representar
um sujeito para outro significante - esse significante, o que representa ele em face dele
mesmo, de sua repetição significante? Isto está definido pelo axioma de que nenhum
significante - mesmo se ele está, e mui precisamente quando ele está reduzido a sua
forma mínima aquela que chamamos a letra - não poderia significar a ele mesmo 26
[tradução nossa] (LACAN, 1966-67, p.33).
“Existe então um sujeito” (LACAN, 1966-67, p.14). Porém, o único sujeito aceitável é
aquele que pode constituir-se em uma lógica própria à ciência. Nessa lógica, em uma relação
de significante a significante, o sujeito não pode ser, senão uma derivação prática dessa
axiomática: “essa é sua essência, sua definição lógica: suposto, porque induzido - certamente
mesmo… Ele não é suporte”27 [tradução nossa] (LACAN, 1968-69, p.42). Em vista disso,
quando tratamos do sujeito, que é o centro de nossa teoria da linguagem, somos forçados a nos
referir a uma divisão entre o que chamamos de uma existência de fato e uma existência lógica,
e é somente da segunda que temos notícia (LACAN, 1966-67). Então, se essa lógica, ou o que
dela se impõe na ciência, deduz-se da linguagem e de seu uso, deveríamos poder extrair desse
ponto as consequências para uma psicanálise.
Outrossim, na lógica da ciência, essa sobre a qual se sustenta o estatuto científico do
inconsciente, podemos concordar que se opera um esvaziamento do sujeito na linguagem -
Lacan chama também de expulsão. Criam-se fórmulas com uma linguagem vazia de sujeito,
ou, dizendo mais precisamente, esse efeito de sujeito, que implica na concepção de algo que é
diferente de si mesmo, é interditado. Para Lacan, essa é a maior preocupação da lógica moderna,
uma vez que “ela é, de modo inconteste, a consequência estritamente determinada de uma
tentativa de suturar o sujeito da ciência” [grifo nosso] (LACAN, 1966/1998, p.875).
Essa ressalva é importante ao lembrar que quando dizemos que A=A, desde o discurso
científico, para Lacan, trata-se aí de um pecado. A ciência se esquece do seu fundamento e
quebra a lei fundamental do significante, a fim de restar com a identidade. Ela, “se a
examinarmos de perto, não tem memória. Ela esquece as peripécias em que nasceu uma vez
constituída, ou seja, uma dimensão da verdade, que é exercida em alto grau pela psicanálise”
26
Trecho retirado do site Staferla: “que le signifiant… ce signifiant que nous avons jusqu’ici défini de sa fonction
de représenter un sujet pour un autre signifiant…ce signifiant, que représente-t-il en face de lui-même, de sa
répétition d’unité signifiante? Ceci est défini par l’«axiome»: qu’aucun signifiant… fut-il - et très précisément
quand il l’est - réduit à sa forme minimale, celle que nous appelons la lettre …ne saurait se signifier lui-même”
(LACAN, 1966-67, p.33).
27
Trecho retirado do site Staferla: “C’est son essence, c’est sa définition logique: supposé, presque induit -
certainement même… Il n’est pas le support” (LACAN, 1968-69, p.42).
65
(LACAN, 1966/1998, p.884). Na mesma medida em que pouco importa o quão fervorosa era a
religiosidade de Newton, ou ainda, que Cantor, como tantos outros, tenham beirado à loucura,
o “drama” de nascimento da ciência é simplesmente indiferente a seu passo fundador.
Portanto, essa dimensão da verdade, como nos referimos anteriormente, é o próprio
significante em causa, uma vez que se trata justamente da matéria desse campo. Com isso,
Lacan quer dizer que o sujeito a ser suturado pela ciência é um engodo, ou mesmo um estorvo
que ao mesmo tempo deve ser eliminado e resguardado, porque trata-se de um ponto preciso
em que essa estrutura lógica falha. Isso “equivale a dizer que o sujeito em questão continua a
ser o correlato da ciência, mas um correlato antinômico, já que a ciência se mostra definida pela
impossibilidade do esforço de suturá-lo” (LACAN, 1966/1998, p.875). Por fim, cabe lembrar
que esse correlato antinômico da ciência é o que se oferece ao analista como seu objeto.
Fazer o significante girar ao redor da definição de conjunto dada por esse campo das
matemáticas, é especificar seu papel de uma certa maneira específica dentro da economia
inconsciente. Para Lacan, o significante não serve para designar o objeto, tampouco para tratar
desse objeto na medida em que se eliminam as suas qualidades. Sua função principal é contar.
Quando faz referência ao traço no entalhe feito pelo caçador, ele trata de lembrar que é na
sucessão concebida pela operação de contagem que se desprende a hipótese do sujeito, como
efeito de sentido,
Em linhas gerais, o que se produz em uma análise é uma inscrição como nos moldes do
bloco mágico de Freud. O tecido sobre o qual vai incidir a operação chamada analítica é, então,
66
constituído pelos significantes um a um. Na medida em que falamos, uma cadeia de sentido é
engendrada sob a forma de uma superfície que Lacan chamou bateria significante. O
significante, então, faz as vezes de borda. Nessa esteira, convém destacar que “a topologia
consiste na prática dos buracos e suas bordas. “(...) Desenhe-se uma borda, estaremos criando
um buraco. Ao seu redor configura-se uma superfície esburacada. Podemos não saber, mas é
isso que fazemos ao falar” (GOLDENBERG, 2018, p.169).
Como tal, esse modelo se presta a nossa concepção intuitiva do discurso e de fala, mas,
sob a pena de Lacan, deveríamos pensar algo mais próximo deste
Uma análise, portanto, se serve dessa estrutura que implica em uma repetição. Dessa
maneira podemos dizer que “o inconsciente é uma cadeia que se repete, uma sequência de
curvas fechadas que geram uma superfície, delimitam um plano, configuram um lugar (lieu)”
(GOLDENBERG, 2018, p.175). Vale mais uma vez ressaltar que é o efeito de uma intervenção
sobre o discurso comum de um paciente que se verifica tal estrutura. O vazio que se “esconde”
sob a repetição da demanda se faz ali, entre um significante e outro, a partir de uma intervenção
que se dá através desses precedentes.
De maneira introdutória, reconhecemos aí uma das preocupações de Lacan ao fazer o
significante responder pelo automatismo outrora descrito por Freud, sob uma nova
configuração que, como estamos vendo, é resultante da forma espacial que se deduz da teoria
dos conjuntos. Para isso, Lacan sustenta que essa superfície que se extrai da repetição, disso
que denominamos demanda, é chamada Toro. Com um viés intuitivo, a repetição da cadeia
significante, que aqui não é nada além de uma contagem, constitui, sob a orientação de um
discurso analítico, o seguinte modelo:
67
De uma manobra sobre a estrutura dessa repetição temos, por fim, a superfície tórica
marcada por um fechamento:
“Onde está o sujeito? É preciso achá-lo, como se fora um objeto perdido” (LACAN,
1972, p.201). Aqui valeria reconhecer que a forma encontrada por Lacan, que designa o
funcionamento do inconsciente, responde a dois pontos precisos na teoria freudiana. Por um
lado, temos a questão levantada pelo famoso capítulo sete de “Psicologia das massas e análise
do eu”, sobre a identificação. Sua maneira de ler o traço identificatório [Einziger zug] incide
sob a forma em que se constitui o eu. Se, como estamos propondo, o significante faz bascular
esse ponto de constituição do sujeito, o eu jamais poderia ser idêntico a si mesmo. E, ao que
parece, quando Lacan escolhe falar de sujeito, ele se afasta definitivamente da teoria freudiana
do “eu”.
Lateralmente, temos a intromissão da questão da repetição. Nesses termos, para Lacan,
o sujeito deve ser lido como um objeto perdido, uma falha na tentativa de apreensão do seu ser
- por isso é inclusive importante descrever a “falta em ser” [manque à être]. Não há apreensão
possível desse sujeito, tampouco pode-se pensar qualquer sorte de reconhecimento ou
intersubjetividade. Só há o que resta de um ato, lembrando que esse ato
Reconhecer o “mesmo” detrás das coisas perdidas é o que chamo leitura. Não surge
da narrativa em si, nem, muito menos, dos eventos vividos. A leitura é feita ex post
facto. Ler é registrar o traço repetido no que nos é dito ou pedido. O que se repete não
se encontra jamais no que foi experimentado. Aquilo que nos aconteceu só pode ser
chamado de repetição depois de ter sido transformado num texto lido. O “mesmo”
existe pela repetição, não o contrário (GOLDENBERG, 2018, p.182).
O mesmo é efeito da contagem. “A noção de mesmo não se liga às coisas, mas à marca,
que permite somar as coisas sem considerar suas diferenças” (LACAN, 1972, p.204). É uma
análise que vai fazer com que o comportamento e as ações individuais sejam tomados enquanto
cadeia, fazendo valer a dimensão do real. “O efeito de linguagem é a causa introduzida no
sujeito. Por esse efeito, ele não é causa dele mesmo, mas traz em si o germe da causa que o
cinde. Pois sua causa é o significante sem o qual não haveria nenhum sujeito no real” (LACAN,
28
Trecho retirado do site Staferla: “le sujet barré, comme tel, c’est ce qui représente pour un signifiant - ce
signifiant d’ou il a surgi - un sens” (LACAN, 1966-67, p. 9).
69
1964/1998, p.849). Portanto, essa manobra tem aí o suporte desse tecido que se deduz da
repetição, e que por si só é efeito de sentido, enquanto resposta do real.
Qual é o interesse dessa observação? O corte levado sobre o real aí manifesta, no real,
o que é sua característica e sua função, e o que ele introduz em nossa dialética,
contrariamente ao uso que dele se faz, que o real é o diverso, o real, desde sempre, eu
me servi dessa função original, para dizer-lhes que o real é o que retorna sempre ao
mesmo lugar. O que isso quer dizer, senão que a secção de corte, em outras palavras,
o significante sendo aquilo que nós dissemos, sempre diferente dele mesmo - AA, A
não é idêntico a A - nenhum meio de fazer aparecer o mesmo, senão do lado do real.
Dito de outra maneira, o corte, se posso assim me exprimir, no nível de um puro
sujeito de corte, o corte não pode saber que ele se fechou, que ele só repassa por ele
mesmo porque o real, enquanto distinto do significante, é o mesmo (LACAN, 1961-
62/2003, p.348).
Com efeito, trata-se de uma contagem que se situa à margem disso que Lacan indicou
como sendo a frustração: “dois giros do significante designam a demanda que se repete. E por
que se repete? Por não ter sido atendida. Pede-se novamente, donde re-petição! A decepção, a
insatisfação, a frustração é, portanto, o motor” (GOLDENBERG, 2018, p.180).
Como podemos ver, o fecho [bucle] é somente deduzido dessa repetição que estabelece
o limite, a borda, da superfície em questão. Com esse artifício, Lacan divide a constituição do
sujeito em dois tempos: “efeito de linguagem, por nascer dessa fenda original, o sujeito traduz
uma sincronia significante nessa pulsação temporal primordial que é o fading constitutivo de
sua identificação. Esse é o primeiro movimento” (LACAN, 1964/1998, p.849). Essa sincronia
refere-se à estrutura “mais oculta” (LACAN, 1960/1998, p.820), e trata-se do tempo sem tempo;
de um ponto que, segundo Lacan, nos leva à origem ou, mais precisamente, à metáfora da
origem. Se a hipotética criança pode dizer que "o cachorro faz miau, o gato faz au-au", ela o
faz “de um só golpe, desvinculando a coisa de seu grito, elevando o signo à função do
significante” (LACAN, 1960/1998, p.820). Assim se produz a destituição do signo, que passa
à significante.
70
“Mas, no segundo [movimento], havendo o desejo feito seu leito no corte significante
em que se efetua a metonímia, a diacronia (chamada ‘história’) que se inscreveu no fading
retoma à espécie de fixidez que Freud atribui ao voto inconsciente (última frase da
Traumdeutung)” (LACAN, 1964/1998, p.849). Desse modo, é o fechamento [bucle] que produz
a significação anterior, dado o efeito sincrônico da linguagem, delimitando, assim, o corpo
“tórico” em que se conta, por conta dessa estrutura, uma volta a mais. Essa volta, que em
topologia se diz “diretriz”, é resultante da articulação desse ponto de basta que fecha a
significação em seu último termo, “sendo cada termo antecipado na construção dos outros e,
inversamente, selando-lhes o sentido por seu efeito retroativo” (LACAN, 1960/1998, p.820).
Toda essa estrutura exige que um tempo, que se refira à realidade discursiva relativa a
uma análise, não possa ser cronológico. O tempo, portanto, será considerado por Lacan como
reversivo, o que supõe que ele seja circular; que implique na perda do presente e que se constitua
sob a anterioridade lógica do futuro em relação ao passado. Trata-se do “futuro anterior”, ou
como prefere Eidelsztein (2012): futuro passado sem presente.
Essa concepção serve inclusive para introduzir a importância da reversibilidade dos
fatos, tal como a seguinte fórmula: que hoje eu reconheça que tal evento teve lugar no passado,
amanhã ele poderá não ter ocorrido. Nas palavras de Goldenberg (2018, p.263): “Considero o
significante uma operação sobre a língua, realizada dentro do campo da transferência, cujo
resultado será um acontecimento de discurso, perceptível só a-posteriori, e que determina de
modo inequívoco o sujeito da ‘enunciação’”.
De todo modo, podemos inferir dessa articulação que não só é a frustração o motor que
articula a repetição da pergunta [demande], mas a própria necessidade deve ser entendida como
um erro de cálculo decorrente de uma contagem em si mesma - isso se não a considerarmos
simplesmente como obsoleta. Essa forma de conceber a realidade supõe que todo e qualquer
ponto que implique em uma falta já é efeito de um apelo ao Outro. Nessa direção, não há mais
sentido em se basear em uma noção de apoio, tampouco pode-se fazer referência à biologia. O
Outro, assumido como anterioridade, estabelece um veto. Ele também dá o seu sentido a cadeia,
constituindo a partir da demanda, o desejo.
Portanto, a dialética entre ambos - demanda e desejo - se estabelece em decorrência
dessa cadeia que instaura uma falta. O paradoxo, como estamos vendo surgir a todo instante, é
justamente que essa falta é não apenas logicamente anterior, como também necessária para a
constituição da estrutura significante. Como iremos ver adiante, sua recuperação só se faz valer
a partir de um ato que leva em conta a sincronia da metáfora.
71
Supor que falamos com esse sujeito que o significante faz surgir desde o discurso
analítico é recorrer à “fórmula dos psicólogos” (p.19). Na contramão, Lacan julga ter
introduzido “algo distinto do que é do âmbito do psiquismo” (LACAN, 1967/2006, p. 45), e
essa novidade se refere à distinção entre o sujeito do enunciado e o da enunciação.
Há um sujeito do enunciado. É fácil reparar nisso. Eu [Je] quer dizer aquele que está
falando agora no momento em que digo eu. Mas o sujeito nem sempre é o sujeito do
enunciado, pois nem todos os enunciados contém eu. Mesmo quando não existe eu,
mesmo quando vocês dizem “está chovendo” [il pleut], há um sujeito da enunciação,
há um sujeito mesmo que não seja perceptível na frase (LACAN, 1967/2006, p.45).
O sujeito que nos interessa é o sujeito da enunciação. Esse que se deduz de uma leitura
que tem por chave o conceito de não-idêntico a si mesmo e que se articula de um significante a
outro. Lembrando que “um sujeito segundo a linguagem é aquele que conseguimos depurar
com grande elegância na lógica matemática. (...) O sujeito é fabricado por um certo número de
articulações produzidas e de onde ele caiu como fruto maduro da cadeia significante (LACAN,
1967/2006, p.53).
Aqui podemos, por fim, recolher uma consequência do que sugerimos ser a relação da
psicanálise com essa ciência que insistimos ser aquela sobre a qual se endereça o psicanalista.
29
Trecho retirado do site Staferla: “Bien entendu, DESCARTES nous propose cette formule au débouché d’un
long processus de pensée, et il est bien certain que la pensée dont il s’agit est une pensée de penseur. Je dirai
même plus : cette caractéristique « c’est une pensée de penseur », n’est pas exigible pour que nous parlions de
pensée. Une pensée, pour tout dire, n’exige nullement qu’on pense à la pensée. Pour nous particulièrement : la
pensée commence à l’inconscient” (LACAN, 1961-62, p.6).
72
De fato, não podemos negar que uma pessoa de fato se senta diante de alguém disposto a
funcionar como analista e, entre inúmeras maneiras de a tratar, podemos nos referir a ela como
sujeito. Ao que parece, deve ficar indicado que a psicanálise que Lacan tenta erigir se desdobra
a partir da radicalidade de uma divisão que já tem seus precedentes inscritos na obra de Freud.
Nessa medida, convém reconhecer que pensar o suporte de uma operação, no discurso
desse “sujeito” que fala, desde uma estrutura matemática, é admitir que essa divisão tem a ver
com a lógica do significante. E é através dessa postura que podemos sustentar que “alguma
coisa, ali se propõe a nós, algo que é a divisão da existência de fato e da existência lógica”30
[tradução nossa] (LACAN, 1966-67, p.4). Dito de maneira ainda mais clara:
Então, para dizer que esse sujeito era dividido, simplesmente indiquei suas duas
posições em relação à função da linguagem. Nosso sujeito tal como é, o sujeito que
fala, se quiser, pode muito bem reivindicar a primazia, mas nunca será possível
considerá-lo pura e simplesmente livre-iniciador do seu discurso, na medida em que,
sendo dividido, está ligado a esse outro sujeito, que é o do inconsciente e que se
verifica ser dependente de uma outra estrutura linguageira. A descoberta do
inconsciente é isso (LACAN, 1967/2006, p.64).
30
Trecho retirado do site Staferla: “Quelque chose, là, à nous se propose qui est la division de l’existence de fait
et de l’existence logique” (LACAN, 1966-67, p.4).
73
Seja w o predicado: para ser um predicado que não pode ser predicado de si mesmo.
Pode w ser predicado de si mesmo? Para cada resposta, segue seu oposto. Por isso
temos de concluir que w não é um predicado. Da mesma forma, não há classe
(enquanto totalidade) de todas as classes em que, tomadas enquanto uma totalidade,
não pertençam a si mesmas. Disso eu concluo que, em certas circunstâncias, uma
coleção definível não forma uma totalidade [tradução nossa] (HEIJENOORT, 1967,
p.125).
Essa famosa mensagem foi responsável por um dos maiores acidentes no campo da
matemática. Se a teoria dos conjuntos se levantava com os fins de sustentar-se como campo
unificado da matemática, a descoberta desse paradoxo levou os matemáticos a se questionarem
sobre os fundamentos desse tão sonhado alicerce.
31
Trecho retirado do site Staferla: “Le propre de «l’ensemble des signifiants», je vous le montrerai en détail,
comporte ceci de nécessaire… si nous admettons seulement que le signifiant ne saurait se signifier lui-même…
comporte ceci de nécessaire: qu’il y a quelque chose qui n’appartient pas à cet ensemble. Il n’est pas possible de
réduire le langage, simplement en raison de ceci que le langage ne saurait constituer un ensemble fermé,
autrement dit : «Il n’y a pas d’univers du discours»” (LACAN, 1966-67, p.10).
74
O paradoxo, portanto, traz à tona uma questão essencial para a psicanálise. Se admitimos
o Outro como lugar de onde se faz valer a operacionalidade da estrutura significante, com Lacan
podemos nos perguntar pelo seu limite e pela sua extensionalidade. Ao que parece, instaurar o
discurso analítico sobre essa suposição fundamental é também fazer com que o problema da
verdade e de sua garantia se choque com essa limitação intrínseca. Vale lembrar que “surgiu
para Descartes o problema de saber se existia ou não um Deus que garantisse esse campo. Ora,
esse problema está hoje totalmente deslocado por não haver no campo do Outro a possibilidade
de uma consistência completa do discurso” (LACAN, 1968-69/2008, p.92).
Como o foi para Descartes, Deus não pode mais servir de garantia na constituição das
ideias claras e distintas. Com isso, a mencionada “segunda morte de Deus”, revelou-se ser
aquela ligada à problemática da consistência desse campo em que se assentam as definições
axiomáticas. Segundo Ruda (2015), Deus está morto e o idealismo morreu com ele. Nosso
tempo é aquele que pode ser, portanto, designado como posterior à morte do idealismo. E isso
fica evidente pela irrefutável prova de que não pode haver o conjunto de todos os conjuntos.
Como lembramos, em 1971, Lacan diz que o problema chamado idealismo havia sido resolvido
pelos avanços na lógica moderna e isso implica o que se produziu desde Frege e Russell.
Cabe insistir no fato de que a verdade deixa de ser uma preocupação matemática, porque
se entende que o domínio sobre o qual se legisla formalmente é inteiramente limitado. E essa
limitação se extrai também da total ausência de um referente que garanta a consistência dos
axiomas. Vejamos um exemplo prático: “o nome ‘geometria’ significa algo como ‘medida da
terra’, e é exatamente para isso que ela servia quando foi inventada no Antigo Egito”
(MORTARI, 2016, p.299). Quando se mede a extensão de uma área recorremos à alguma
espécie de padrão de medida - no nosso caso, o metro. Mas, onde está esse padrão? Sabemos
que ele se estabeleceu por convenção em alguma época perdida, mas assim como a história, o
padrão também se perde.
75
De acordo com o que havíamos destacado anteriormente, podemos inferir que, assim
como a demanda se faz repetir, fazendo existir um vazio que se conta como um objeto, também
o padrão de medida que usamos para saber a distância entre os planetas é produzido por um
determinado discurso. O referente externo, que não pode se incluir na camada de elementos que
caem sob o conjunto, deve fazer esse papel de representar o sistema inteiro sem nunca poder
ser encontrado dentro do conjunto. Essa é a mesmíssima lógica empregada por Lacan ao
descrever que o sujeito não pode ser, senão um sentido estrangeiro à essa alteridade, e “é por
essa razão que o sujeito é sempre uma coisa evanescente, que corre sob uma cadeia de
significantes” (LACAN, 1972, p.206).
Para designar esse ponto, em que se vinculam a inconsistência32 e a impossibilidade de
se referir ao todo, Lacan escreve S(), e “há que lê-lo: significante de uma falta no Outro,
inerente à sua função mesma de ser o tesouro do significante” (LACAN, 1960/1998, p.832).
Ao Outro, pede-se que responda pelo valor do tesouro implicado na cadeia significante, notando
que “valor” e “tesouro” são palavras de semânticas muito aproximadas. A lógica aqui é a
seguinte: um forte com todo ouro do mundo não pode de fato conter tudo. O valor depende de
uma relação, dado que um simples pedaço de ouro que faltar, terá o mesmo valor de tudo que
se encontraria ali dentro. Portanto, esse significante especial “será aquele para o qual todos os
outros significantes representam o sujeito: ou seja, na falta desse significante, todos os demais
não representariam nada. Já que nada é representado senão para algo” (LACAN, 1960/1998,
p.833). Essa lógica se especifica melhor por dizer respeito à impossibilidade de se postular um
Outro do Outro. Vejamos de onde podemos extrair essa questão.
Como sugerimos antes, a matemática se viu na tarefa de construir um sólido alicerce
que desse conta de viabilizar o crescimento de diferentes ramos da matemática, em especial a
geometria e a aritmética. Os axiomas passaram a valer como provas incontestes de novas
estruturas topológicas e da logicização do continuum numérico. No entanto, foram eventos
como o que se desenrolou após a carta de Russell que puseram em suspenso toda e qualquer
tentativa de se fundamentar uma totalidade deste universo.
32
Lembrando que na lógica, uma teoria consistente é aquela livre de contradições.
76
O tropeço, que é demonstrável, é a barra que incide sobre esse campo de onde
requisitamos a verdade. Dizer que não há conjunto que contenha todos os elementos, no
discurso matemático, é dizer que “nada contém tudo, ou, mais espetacularmente, não existe
universo algum. “‘Universo’ aqui é empregado no sentido de ‘universo de discurso’,
significando, em qualquer discussão particular, um conjunto que contém todos os objetos que
entram nessa discussão” (HALMOS, 2001, p.11). O curioso dessa última frase é que, ainda que
ela tenha saído naturalmente inúmeras vezes da boca de um psicanalista, ela foi escrita por um
matemático em 1960. Fica evidente o quanto deve ter sido importante para Lacan visitar os
manuais de teoria dos conjuntos, a fim de descrever seu significante.
No entanto, para Lacan, o matemático não tem outra saída a não ser operar para
“tamponar, elidir, recoser, suturar” (LACAN, 1968-69/2008, p.47), esse ponto em que se
articula o desejo. Ora, “no discurso analítico, ao contrário, trata-se de dar plena presença à
função do sujeito, invertendo o movimento de redução que habita o discurso lógico, para nos
centrarmos perpetuamente no que é falha” (p.47).
Nesse mesmo sentido, fizemos referência anteriormente a isso que se oferece ao analista
sob a forma desse “correlato da ciência, mas um correlato antinômico, já que a ciência mostra-
se definida pela impossibilidade do esforço de suturá-lo” (LACAN, 1966/1998, p.875).
Descrevemos em linhas gerais a operação “geratriz” da constituição topológica desse sujeito,
sob a forma espacial das operações com conjuntos. Então, “esse significante só pode ser um
traço que se traça por seu círculo, sem poder ser incluído nele. Simbolizável pela inerência de
um (- 1) no conjunto dos significantes” (LACAN, 1960/1998, p.833).
É como se pensássemos a marca disso que nunca pode ser contado na sucessão dos
termos. Quando a Terra gira ao redor do sol, contamos aproximadamente 365 voltas, mais uma,
que implica na translação, o giro completo ao redor do Sol. Ora, se o sujeito é o que um
significante representa para outro significante, ou ainda, que se trate de um sentido estrangeiro
à operação de contagem, o significante do Outro barrado é o ponto que articula a possibilidade
mesma de contagem. “Essas falhas na textura lógica, podem permitir-nos apreender o estatuto
do sujeito como tal, encontrar um apoio para ele e, numa palavra, conceber que ele possa se
satisfazer com sua adesão à própria falha situada no nível da enunciação” (LACAN, 1968-
69/2008, p.82).
Outro não é consistente que a enunciação assume a feição da demanda, e isso antes
mesmo que aí se venha instalar seja o que for que carnalmente possa responder a ela.
Ir o mais longe possível na interpretação do campo do Outro como tal permite
perceber sua falha numa série de níveis diferentes. Para comprová-lo, a matemática
nos traz um campo de experiência exemplar. É que ela se permite limitar o campo do
Outro a funções bem definidas, como a aritmética, por exemplo [grifo nosso]
(LACAN, 1968-69/2008, p.82).
Portanto, podemos ver que esse programa se estabeleceu no campo das matemáticas
com os fins de formalizar a inteireza de sua estrutura axiomática. Se a semântica dos casos
apresentados servia como motivo de ambiguidade, como no famoso caso “eu minto”, a
substituição completa por um arcabouço literal era mais do que necessária. Vimos,
anteriormente, que Lacan havia entendido ser essa uma tarefa que envolvia dois passos
fundamentais: construir uma linguagem sem equívoco e que seja pura escrita. A partir daí
resulta-se que “uma página coberta com marcas ‘sem significado’ de uma tal matemática
78
Segundo Nagel e Newman (1998), todo e qualquer “sistema dentro do qual a aritmética
pode ser desenvolvida é essencialmente incompleto. Em outras palavras, dado qualquer
conjunto consistente de axiomas aritméticos, há enunciados aritméticos verdadeiros que não
podem ser derivados do conjunto” (p.56). E, em termos mais simplistas, Gödel chamou atenção
para o fato de que “se pode dar uma prova da impossibilidade de provar certas proposições
dentro de um dado sistema” (p.19). Nas palavras de Lacan, o primeiro teorema diz “que, a partir
da própria hipótese da consistência, aparece em algum lugar uma fórmula - e basta haver uma
para que haja muitas outras - à qual não é possível responder sim nem não, se passarmos pelas
vias da demonstração aceita como lei do sistema” (LACAN, 1968-69/2008, p.96). Já no
segundo, “não apenas o próprio sistema aritmético só pode garantir sua consistência ao
constituir sua incompletude, como também, na hipótese, ainda que bem fundamentada, de sua
consistência, ele não pode demonstrar essa consistência em seu próprio interior (p.96).
Dessa forma, o artigo de Gödel, de 1931, mostra detalhadamente que a pressuposição
de um abarcamento ilimitado do método axiomático, de toda e qualquer suposição racional,
está fadado à uma inerente limitação, eliminando, inclusive, a possibilidade de a aritmética
comum ser inteiramente axiomatizada. Mas quais são as implicações, de fato, desses teoremas
para o nosso campo? Para Lacan o S () é o “significante pelo qual aparece a incompletude
79
intrínseca do que se produz como lugar do Outro, ou, mais exatamente, do que, nesse lugar,
traça o caminho de um certo tipo de engodo absolutamente fundamental” (p.244).
Com efeito, referimo-nos aqui à instauração dessa falta fundamental ao domínio do
significante. Vale lembrar que “toda evocação da falta supõe instituída uma ordem simbólica”
(LACAN, 1968-69/2008, p.286). Isso é patente porque para Lacan “que falte alguma coisa, é
preciso que haja contagem” (p.287). Com razão, a conta implicada na articulação de significante
a significante instaura uma falta que se reporta à incompletude do domínio simbólico e, como
havíamos visto, se essa falta se apresenta aos matemáticos como obstáculo, seja na forma de
paradoxos, ou finalmente como impasse, um analista leva em conta essa dimensão porque é ela
que faz de um apelo, uma demanda. Para que haja pedido ao Outro há de se partir, portanto, de
sua incompletude intrínseca na medida em que esta se deduz de um método que não pode ter
outra baliza que a estrutura dos conjuntos.
Em suma, o S () faz referência à dimensão do Real, uma vez que esta “só se poderia
inscrever por um impasse da formalização” (LACAN, 1975/2003, p.99). Se uma análise, por
fim, toca em algo desse Real, é por situar o sujeito como efeito do que se extrai da demanda,
por uma operação que implica nisso que insistimos chamar de contagem. Outra maneira de
dizer isso é que “a estrutura deve ser tomada no sentido em que é mais real, em que é o próprio
real (...) Em geral, isso se determina pela convergência para uma impossibilidade. É por isso
que é real” (LACAN, 1968-69/2008, p.30). Ela converge precisamente para o ponto em que
não se sustenta por si só e que é “causa do próprio discurso” (p.31) e essa causa, como vimos
não é nada além dessa dimensão do significante em si mesmo.
Se Lacan retira de Gödel algo de realmente valioso é o fato que um discurso que verse
sobre si está fadado a encontrar uma causa estrangeira a si mesmo, ainda que, de modo
paradoxal, seja o próprio efeito do significante. Nesse sentido é importante notar que “o real
não se conhece, ele se demonstra” (BADIOU, 1999, p.67), e se demonstra tal como os teoremas
de Gödel. E é precisamente por isso que a verdade, a única que nos cabe, é que não há
metalinguagem. Quando alertamos para o real sem lei, procuramos assegurar que não há real
fora da linguagem e que só ela lhe dá a sua casa, sua dit-mansion.
80
ele [Gödel] é o diabo para a matemática. Após Gödel, a ideia de que a matemática não
era apenas uma linguagem de Deus, uma linguagem que podíamos decodificar para
entender o universo e entender tudo… isso já não funciona mais. Faz parte da grande
incerteza pós-moderna em que vivemos (GOLDSTEIN, 2008, p.21).
O que define esse pathos, muito simplesmente, em cada caso, é o que chamamos um
fato. É aí que se situa a distância em que temos de interrogar o que nossa experiência
produz, experiência que é algo diferente e que vai muito mais longe que o ser falante
que é o homem. (...) Tudo o que está no mundo só se torna fato, propriamente, quando
com ele se articula o significante. Nunca, jamais surge sujeito algum até que o fato
seja dito. Temos que trabalhar entre essas duas fronteiras. O que não se pode dizer do
fato é designado, porém no dizer, por sua falta, e é isso que constitui a verdade. É por
isso que a verdade sempre se insinua, mas também pode inscrever-se de maneira
perfeitamente calculada ali onde só ela tem lugar, nas entrelinhas. A substância da
verdade é justamente aquilo que padece por causa do significante - isso vai longe -,
aquilo que padece pela natureza dele, digamos (LACAN, 1968-69/2008, p.65).
33
Trecho retirado do site Staferla: “‘la vérité ne peut que se mi-dire’. Ça veut dire : confirmer qu’il n’y a de vérité
que mathématisée : – c’est-à-dire écrite, – c’est-à-dire qu’elle n’est « suspensible », comme vérité, qu’à des
axiomes, – c’est-à-dire qu’il n’y a de vérité que de ce qui n’a aucun sens, – c’est-à-dire de ce dont il n’y a à tirer
d’autres conséquences que dans son registre, le registre de la déduction mathématique dans ce cas, et comment
après cela la psychanalyse peut-elle s’imaginer qu’elle procède de la vérité?” (LACAN, 1973-74, p. 22).
81
Como estamos vendo, esse neurótico, para o qual se dirige a atenção de Lacan, vem dar
testemunho do enigma que é a verdade inscrita pelos efeitos do discurso científico. Ainda assim,
vale dizer que, por estar ligado à um indecidível34, “será preciso fazer uma aposta. É por isso
que uma verdade começa por um axioma de verdade. Ela começa por uma decisão” (BADIOU,
1994, p.45). Essa decisão em matemática se diz: “existe um conjunto” (HALMOS, 2001, p.13),
já na psicanálise ela se desdobra do mesmo fundamento desse campo, o chamado axioma da
especificação: “Para todo conjunto A e toda condição S(x) corresponde um conjunto B cujos
elementos são exatamente aqueles elementos x de A para os quais S(x) é válida” (p.10). Nas
palavras de Lacan, trata-se desse
ponto inaugural de toda teoria dos conjuntos, que implica que esta teoria não pode
funcionar senão a partir de um axioma chamado de especificação, isto é, a saber: que
só há interesse em fazer funcionar um conjunto se existe outro conjunto possa definir-
se pela definição de alguns x no primeiro como satisfazendo livremente certa
proposição - “livremente” quer dizer: independentemente de toda quantificação:
pequeno número ou todo. Resulta disso que postular um conjunto qualquer, definindo
nele a proposição que indiquei como especificando em alguns x, como sendo
simplesmente que x não é membro de si mesmo - o que, para o que nos interessa, a
saber, para isso que se impõe desde que se quer introduzir o mito de uma linguagem
reduzida, que há uma linguagem que não é, quer dizer, que constitui, por exemplo, o
conjunto dos significantes35 [tradução nossa] (LACAN, 1966-67, p.10).
Toda vez que se proponha alguma assertiva, deve haver, por princípio, um conjunto que
contenha a extensão de objetos que caem sob essa condição. Isso implica que a verdade, essa
que só pode ser meio dita e que é também condição para haver um procedimento que extraia o
nosso sujeito, ela só pode ter validade enquanto submissa a um regime de discurso. Isso é o
mesmo que dizer que não há verdade para além dos limites de cada discurso. Uma vez que não
há universo de discurso, ou que não há metalinguagem, há de se encontrá-la desde a matéria
que a constitui. Por isso Lacan pode inclusive fazê-la falar. “Eu, a verdade, falo” (LACAN,
1955/1998, p.410).
34
Lembrando que se tratam de enunciados que não podem ser demonstrados nem refutados pelo sistema.
35
Trecho retirado do site Staferla: “ce point inaugural de toute théorie des ensembles, qui implique que cette
théorie ne peut fonctionner qu’à partir d’un axiome dit de spécification. C’est à savoir qu’il n’y a d’intérêt à faire
fonctionner un ensemble que s’il existe un autre ensemble qui puisse se définir par la définition de certains x dans
le premier comme satisfaisant librement à une certaine proposition. « Librement » veut dire indépendamment de
toute quantification : « petit nombre » ou « tout ». Il en résulte - je commencerai ma prochaine leçon par ces
formules - il en résulte qu’à poser un ensemble quelconque, en y définissant la proposition, que j’ai indiquée
comme y spécifiant des x, comme étant simplement que x n’est pas membre de lui-même - ce qui, pour ce qui nous
intéresse, à savoir pour ceci qui s’impose dès qu’on veut introduire le mythe d’un langage réduit, qu’il y a un
langage qui ne l’est pas, c’est à dire qui constitue, par exemple, l’ensemble des signifiants” (LACAN, 1966-67,
p.10).
82
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Boa física é inadvertidamente prejudicada por uma filosofia ruim (Heisenberg, 1989,
p.82).
Barbara Cassin (2013) diz que Lacan é um dos poucos pensadores não aristotélicos,
senão o único. Isso se deve ao fato de que todos nós pensamos com esse órgão que tem como
peça mestra o princípio de não contradição. Ora, se Lacan nos convida a pensar a partir de seu
significante, ele não poderia estar em maior desacordo com o mestre grego. De fato, “somos
todos aristotélicos, a linguagem nos fez assim. Os significantes fabricam significados, tornam-
se signos, fazem ser” (GOLDENBERG, 2018, p.105). Vale, por fim, declarar que com isso, ou
a partir disso, o neurótico é aquele que sofre de contradições.
De todo modo, encontramos a razão de dizer que a psicanálise compartilha com a
ciência seu mesmo subsolo, sua mesma fundação. Portanto, o estatuto do significante lacaniano
deve ser deduzido a partir dessa definição matemática que julgamos ser essencial para constituir
o discurso científico, ao longo de todo nosso trabalho. Trata-se da chave de uma leitura - que
chamamos de vários outros nomes como: procedimento, operação, manobra - que começa com
uma pergunta: como? Esse ponto primeiro é o que instaura a dimensão discursiva per si porque
subtrai daquilo que nos é dito, o que lhe é mais caro e conforme o senso comum: a identidade.
Por isso Lacan pensa a todo instante passar do ser ao significante, a falta em ser. Esse
ponto de fundamento do discurso, portanto, é sempre atual. Ele se dá a cada vez que se abre o
campo do Outro em que se articula a sincronia da cadeia. Como tal, esse passo primevo é o que
remove o ser e que, na mesma medida, faz valer a materialidade da palavra, ou, como prefere
Lacan, o moterialisme. É neste ponto de desencontro das significações que se fixa o sujeito.
Porém, esse primeiro passo deve ser considerado somente enquanto efeito de um
segundo, onde um saber se postula sobre a verdade inconsciente. Esse giro é o que descreve o
corte na cadeia, o que implica no fechamento e na construção de um sentido. Esse sentido, com
efeito, é estrangeiro ao significante ainda que lhe dê sua razão. Essa é a função daquilo que
resta dessa operação de fechamento e que chamamos de objeto a. Este é tão somente o índice
de uma intervenção correta e só pode ser deduzido dos efeitos do corte sob a forma de uma
interpretação.
83
Trata-se de um corte que funda o sujeito e que descreve a estrutura. E, como insistimos,
não há nem sujeito nem estrutura se não houver intervenção determinada pelo discurso
analítico. Isso supõe que não podemos fazer qualquer tipo de elogio ao sem sentido, ou a uma
espécie de niilismo moderno. O sem sentido é próprio da dimensão do real e com esta não
operamos diretamente. Ela apenas se apresenta a nós como ideia, como limite, tal como a
velocidade da luz. E assim como ela serve ao físico para pensar o fenômeno físico, o real nos
permite operacionalizar essa máquina de sentido que é o Outro, precisamente porque ele é um
índice de sua incompletude.
Se pedimos ao Outro que nos dê uma resposta pelo nosso ser, só podemos receber um
vazio que se abre à polissemia de sentidos possíveis. Dessa maneira, como analistas, não damos
soluções nem respostas, mas podemos fazer perguntas melhores, justamente por sustentar a
inexistência da resposta correta, universal e atemporal. Em suma, sempre há uma maneira de
propor novas interpretações (MORALES, 2018).
A forma que encontramos de propor novas perguntas no nosso percurso supôs partir
desse solo comum que consideramos possuir tanto uma estrutura lógica, quanto topológica.
Desse modo, convém reafirmar que se somos aristotélicos, o significante que opera em uma
análise tem que se basear em uma espécie de antiaristotelismo. Essa é a dívida que apontamos
se produzir no cerne do empreendimento da nossa hipótese. Se a matemática requisitada por
Lacan vem justamente para produzir uma torção neste aparato lógico do senso comum, a
psicanálise deve se situar enquanto antifilosófica.
Cabe investigar, em um trabalho futuro, portanto, a extensão desse conceito, suas
implicações e fundamentos. Mas, de uma maneira introdutória, convém retomar um ponto que
investigamos acima. Se em um primeiro momento dissemos que a observação ingênua não pode
ser mais fiadora do fazer científico, para, num segundo, afirmar que a observação que deriva da
teoria do cientista implica em um descompasso em si mesma, qual o estatuto do corpo sobre o
qual versa um cientista? Trata-se de mera abstração? Lacan, quando diz que seu suporte é a
matemática, não flerta com um idealismo, ou com alguma sorte de irrealismo. Há um corpo.
Mas, se ele é efeito de um discurso, como é possível apreendê-lo e, por fim, falar dele? Outra
84
questão, que é paralela a essa, de suma importância, que se abre no debate antifilosófico, é a
que diz respeito à substância gozante. Qual seu estatuto? Ora, parafraseando Heisenberg: pode-
se dizer que boa psicanálise é inadvertidamente prejudicada por uma filosofia ruim?
De todo modo, cabe apontar que vimos em detalhe a que se prestava entender a noção
de ciência advinda das ideias de Koyré. Foi ele quem colocou Galileu como o representante
moderno de um já ultrapassado platonismo. Foi também o responsável por apontar uma espécie
de cumplicidade entre a física Newtoniana e a religião cristã. Com Lacan, identificamos esse
primeiro tempo como uma figura da morte de Deus. A matemática, nesse sentido, era o modo
pelo qual o saber se produzia ainda que sempre fazendo referência a um ponto de fuga ideal.
Isso não se deu à revelia da paulatina revisão do conceito de verdade. Mostramos que mesmo
Freud não podia suportar algo diferente do que vinha se discutindo nos corredores de Viena.
Ainda assim, mostramos, também, como era fundamental para Lacan insistir em uma crítica
assídua à noção de correspondência, e esta, como vimos, não se autoriza senão pelo campo da
ciência de Koyré.
Como Lacan dividiu a morte de Deus em dois tempos, foi importante supor que ainda
que de maneira velada, com indicações muito espaçadas, essa só poderia sugerir ser derivada
de uma ruptura diferente da anterior. Que ela tenha advindo da ciência ou do próprio campo das
matemáticas, isso é secundário perante o fato de que não podemos mais argumentar acerca da
composição da realidade da mesma forma. Se o problema da garantia da verdade não cessa de
insistir na ciência e na psicanálise, a matemática o condena como obsoleto. E a ciência dos dias
atuais, portanto, deve partir daí. Nesse sentido, quando falamos de algum objeto determinado,
por exemplo o elétron, devemos ter em mente que dada teoria vai habilitar não só a maneira
pela qual se fala dele - como seria na física de Galileu -, mas também ela habilita o objeto
mesmo.
Em tempo, julgamos ser esse o ponto em que Lacan se concentra a fim de pensar a
transferência e a transmissão. Isso implica que não pode haver teoria psicanalítica nos moldes
de interpretoses para além da transferência mesma. O que tratamos em um âmbito teórico é das
condições de se pensar uma relação que implica em um acréscimo de linguagem. É neste ponto
que julgamos ser curiosa a dificuldade apontada por Heisenberg: como pode o cientista passar
o seu saber, que se sustenta somente em uma forma de linguagem, para o cidadão comum, o
leigo, ou mais precisamente: esse aluno de Aristóteles? Esse ponto preciso ele chamou de
paradoxo. E, ao que parece, sustentar que “a formalização matemática é nosso objetivo, nosso
ideal, porque só ela é ‘matema’, ou seja, é capaz de se transmitir integralmente” (LACAN 1972-
85
73/2010, p.241), traz à tona o mesmo problema e nos empurra, enquanto analistas, em direção
ao mesmo paradoxo.
Por fim, pensamos que era necessário entrar de fato em algumas questões que
fundamentam o campo das matemáticas que apontamos ao longo do percurso. Apontamos que
o significante é a pedra angular, o marco zero de um procedimento que faz emergir o sujeito a
cada vez, em cada clínica. Dessa maneira, inquiridos pelas questões que se levantaram no
campo da ciência, tencionamos propor soluções que estejam de acordo com nossa hipótese de
fundo: que um significante representa um sujeito para outro significante.
Foi com essa direção que definimos a lógica que concerne a uma intervenção clínica
como dependente da teoria matemática dos conjuntos. Este foi o caminho escolhido por Lacan
ao descrever o furo em que se articulam, tanto a dimensão do sujeito, como a dimensão do
Outro. Com isso, formalizamos a dupla volta que indicamos acima, sob a estrutura de uma
banda que faz de uma superfície, uma borda.
Ademais, retornamos ao centro do problema, que diz respeito à nova relação com a
verdade, da qual padece o neurótico. E o fizemos por indicar o ponto preciso onde o edifício se
sustenta, mas, ao mesmo tempo, onde ele desliza. Trata-se disso que Lacan chamou de
significante do Outro barrado. Este é, então, o epicentro de um desastre que nas matemáticas
foi calculado e demonstrado por Gödel. O paraíso tão sonhado, a independência definitiva do
campo transcendente, esse então chamado método axiomático é apresentado como possuindo
uma falha inerente e, por si só, se mostra como incompleto.
A solução dos matemáticos, que também parece ser a encontrada por Lacan, é assegurar
que uma decisão pontual faz com que o edifício não caia. Que a verdade para um psicanalista
seja que não pode haver metalinguagem, trata-se, portanto, do levantamento de uma barreira,
de um limite, ou, nos termos de Heisenberg, de um domínio.
Dessa maneira, podemos ainda nos reportar aos obstáculos levantados pelo ainda
imperante senso comum. Talvez pudéssemos sugerir que Lacan teria apresentado, no fim de
seu ensino, um modelo que demonstra de forma mais precisa a inter-relação dos registros que
também se sobressaltam na ciência. A cadeia borromeana, portanto, descreve a relação entre os
três nós: o imaginário, o simbólico e o real. Teria Lacan proposto uma maneira de sair do
impasse que alertamos sobre a idealidade dos corpos matemáticos?
86
para o deslizamento medieval que fez com que o X subjacente deixasse de ser apenas
a sustentação lógica dos predicados atribuídos em uma função, do tipo F(x), e passasse
a estar denotado de uma ousia, uma substância, um enchimento, uma matéria, até
tornar-se finalmente um ente, uma coisa concreta (GOLDENBERG, 2018, p.149).
87
Com razão, Lacan não poderia ter sido mais sensível a esse ponto. O sintoma, ele o lê
como sinthome, ou, o santo homem, esse que não é ninguém mais que São Tomás de Aquino.
Aquele que fez da tarefa da filosofia, um exercício de mestre, m´etre. Ele, então, possibilita
pensar o corpo como essa materialidade em três dimensões. Esse corpo sim, como um suporte
bem mais adequado ao senso comum. Eis que continuamos a ouvir, ao fundo, a insistente
pergunta: como se pode pleitear uma operação discursiva desencarnada? Ora, Lacan responde
que um analista opera quando abandona essa pergunta e decide, axiomaticamente: pode haver
operação que se suporte somente na materialidade significante, e esta implica em uma
argamassa feita somente de letras.
88
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMSTER, P. Apuntes matemáticos para ler Lacan: 2. Lógica y teoria de conjuntos. Buenos
Aires: Letra Viva, 2010.
BADIOU, A. (1989). Manifesto pela filosofia. Rio de Janeiro: Aoutra editora, 1991.
______. Para uma nova teoria do sujeito: conferências brasileiras. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 1994.
______. Lacan e Platão: o matema é uma ideia? In: SAFATLE, V. (Org.). Um limite tenso:
Lacan entre a filosofia e a psicanálise. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p.13-41.
BADIOU, A.; GILLES, H. In praise of mathematics. Malden, MA: Polity Press, 2016.
CASSIN, B. Jacques el sofista: Lacan, logos y psicoanálisis. Buenos Aires: Manatial, 2013.
EIDELSZTEIN, A. Las estruturas clínicas a partir de Lacan. [Volumen I]. Buenos Aires:
Letra Viva, 2008.
______. El origen del sujeto en psicoanálisis, Del Big Bang del lenguaje y el discurso en la
causación del sujeto. El rey está desnudo. Revista para el psicoanálisis por venir, Buenos
Aires, ano 4, n. 5, p.7-55, 2012.
______. La ciencia y el psicoanálisis. Imago agenda. n. 182. Buenos Aires: Letra Viva, 2014.
Disponível em: <http://www.imagoagenda.com/articulo.asp?idarticulo=2182>. Acesso em:
6/8/2018.
FREUD, S. (1950 [1895]). Projeto para uma psicologia científica. In: Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1996, Vol. I.
______. (1926). A questão da análise leiga. Conversas com uma pessoa imparcial. In: Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1996, Vol. XX.
______. (1930). In: Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2016 (Obras incompletas de Sigmund Freud; 6).
HALMOS P. (1960). Teoria ingênua dos conjuntos. Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna,
2001.
______. Encounters with Einstein: and other essays on people, places, and particles.
Princeton: Princeton University Press, 1989.
KLINE, M. Mathematics, the loss of certainty. New York: Oxford University Press, 1980.
LACAN, J. (1953). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 238-324.
______. (1955). A coisa Freudiana ou sentido do retorno a Freud em psicanálise. In: Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 402-437.
______. (1956). Seminário sobre “A carta roubada”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1998, p. 1-44.
______. (1956-57). O Seminário livro 4. A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1995.
______. (1962-63). O Seminário livro 10. A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
______. (1964). Posição do inconsciente. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998,
p. 843-864.
______. (1964-65). O Seminário livro 12. Problemas cruciais para a psicanálise. Seminário
inédito, Recife, 2003.
______. (1965-66). O Seminário livro 13. O objeto. Seminário inédito. Disponível em:
< http://staferla.free.fr/S13/S13.htm>. Acesso em: 16 de jan. de 2019.
______. (1966). A ciência e a verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p.
855-892.
______. (1966). La Science et la vérité. In: Écrits II. Éditions du Seuil, 1971.
______. (1966). Respostas a estudantes de filosofia In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2003, p. 210-218.
______. (1966-67). O Seminário livro 14. A lógica do fantasma. Seminário inédito, Recife,
2008.
______. (1967). O engano do sujeito suposto saber. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2003, p. 329-340.
______. (1967). Meu ensino. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.
91
______. (1968-69). O Seminário livro 16. De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2008.
______. (1969-70). O Seminário livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar,
1992.
______. (1970). Radiofonia. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p.
400-447.
______. (1971). O Seminário livro 18. De um discurso que não fosse semblante. Rio de
Janeiro, Zahar, 2009.
______. (1971-72). O Seminário livro 19. ...ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.
______. (1972). O aturdido. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p.
448-497.
______. (1972-73). O Seminário livro 20. Encore. Rio de Janeiro: Escola Letra Freudiana,
2010.
______. (1973-74). O Seminário livro 21. Os nomes do pai. Seminário inédito, Disponível
em:< http://staferla.free.fr/S21/S21.htm>. Acesso em: 16 de jan. de 2019.
______. (1975). Talvez em Vincennes. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2003, p. 316-318.
______. (1975-76). O Seminário livro 23. O sintoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
______. (1976). Lacan in North Armorica. DENEZ, F.; VOLACO, G. C. (Orgs.). Porto
Alegre, RS: Editora Fi, 2016.
LACAN, J. (1978a). Le revê d´Aristote Pas tout Lacan. Disponível em: < http://ecole-
lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/1978-06-01.pdf>.Acesso em: 16 de jan. de 2019.
RUDA, F. For Badiou: idealism whitout idealism. Illinois, EUA: Northwestern University
Press, 2015.