141725-Texto Do Artigo-278233-1-10-20171218

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Psicologia USP http://dx.doi.org/10.

1590/0103-656420160184
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Psicanálise e ciência: a equação dos sujeitos
Rafael dos Reis Biazina*
Carlos Henrique Kesslerb
a
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia, Psicanálise: Clínica e Cultura. Porto Alegre, RS, Brasil.
b
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia, Psicanálise e Psicopatologia. Porto Alegre, RS, Brasil.

Resumo: Pretendemos demonstrar que a afirmação de Jacques Lacan de que a ciência moderna foi a condição de
possibilidade de surgimento da psicanálise deriva um conjunto de proposições: há ciência moderna; a psicanálise
só pôde surgir na modernidade do pensamento; e entre psicanálise e ciência há uma lógica de compatibilidade.
Para tanto, a partir da epistemologia procuramos definir o estatuto de um mundo afetado pela atividade científica
moderna em oposição a um mundo antigo. Isso nos levou à axiomática do corte maior decorrente do pensamento
de Descartes e da física matematizada, que propõe haver uma cesura que afeta todos os discursos compossíveis.
Com a matematização do pensamento, as qualidades do existente são abolidas, fornecendo terreno propício para
o surgimento do sujeito do inconsciente, que Lacan irá alocar entre significantes, promovendo uma teoria do
sujeito essencialmente moderna.

Palavras-chave: psicanálise, ciência, sujeito, significante.

Psicanálise e ciência: a equação centram ora sob tomada metodológica que privilegia a
dos sujeitos pesquisa quantitativa, cujos desdobramentos são análises da
eficácia terapêutica baseadas em critérios mercadológicos
Este artigo é fruto de discussões que tangenciam de custo-benefício; ora são empreendimentos que buscam
psicanálise e pesquisa na universidade. Inserido em um localizar a teoria psicanalítica no seio da ciência positiva,
projeto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, cujo em que o objetivo central é buscar a comprovação empírica
objeto inclui a investigação dos fundamentos da pesquisa da metapsicologia freudiana. Ambos os projetos, como
clínica em psicanálise, o estudo em questão busca refletir afirma a autora, desconsideram a especificidade do objeto
sobre a relação entre psicanálise e ciência, visto que a da psicanálise: o sujeito do inconsciente.
última, na modernidade, passa a cumprir o lugar de ideal Desse modo, não procuraremos assumir as
para atividade de pesquisa nas universidades. Deste modo, coordenadas de ideal de ciência sobre as quais a prática e
ao trazer a psicanálise para um debate com a atividade o campo conceitual psicanalíticos venham se assentar, mas
científica, pretendemos, conjuntamente com o projeto buscar interrogar o tipo de relação que se estabelece entre
supracitado, lançar mais um ponto de articulação para psicanálise e ciência moderna. Para tanto, utilizaremos o
pensar o campo de problemas da psicanálise e sua prática campo da epistemologia cujo ponto nodal, a nosso ver, é
de investigação nos cursos de graduação e pós-graduação. aquilo que se unifica sob a seguinte axiomática: “não só há
Portanto, devido à entrada da psicanálise no cortes, mas há cortes maiores” (Milner, 1980/1996, p. 67).
âmbito universitário, somos levados a interrogar que O desenvolvimento deste axioma nos levará
tipo de laço se estabelece entre a práxis inaugurada por a abordar o surgimento da modernidade, o que se faz
Freud e a atividade científica moderna. O caminho mais em concordância com a afirmação de Lacan de que a
premente empreendido por alguns teóricos, neste sentido, condição de possibilidade do surgimento da psicanálise
é a busca por coordenadas que estabeleçam o estatuto de foi a fundação do que se estenografa como ‘moderno’, e
cientificidade para a práxis psicanalítica. Nós, por nosso que, por sua vez, podemos demarcá-la em “um momento
turno, seguiremos o caminho empreendido por Lacan historicamente definido, sobre o qual talvez tenhamos
(1964/2008), que deposita nos trabalhos de Alexandre de saber se ele é rigorosamente passível de repetição na
Koyré a possibilidade de pensar um terreno teórico experiência: o que foi inaugurado por Descartes e que é
profícuo para esta discussão. Desse modo, partiremos da chamado cogito (Lacan, 1965/1998, p. 870).
tese de que responder à demanda de ciência na psicanálise Seguindo este percurso, podemos localizar a
pode se configurar em erro epistemológico, pois acabaria afirmação emblemática de Lacan (1965/1998) de que
por homogeneizar campos que tentam tornar inteligíveis “o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode
problemáticas diferentes. ser o sujeito da ciência” (p. 873). Valendo-nos de Jean-
Assim, Lo Bianco (2003) aponta que muitos dos Claude Milner (1980/1996), procuraremos demonstrar a
projetos para afirmar a cientificidade da psicanálise se possibilidade de analisar este axioma lacaniano naquilo
que engendra de equação dos sujeitos, ou seja, a existência
* Endereço para correspondência: rafael_biazin@hotmail.com de uma compatibilidade lógica, tal como afirma Calazans

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(2006), entre a forma de encaminhar os problemas pela de seus princípios, produzem-se pela reorganização da razão,
psicanálise e pela ciência moderna. O caminho que com a instalação de campos de problemas diferentes do que
traçaremos com este intento nos permitirá afirmar se tinha em momento anterior.
que tanto a psicanálise quanto a ciência promovem um Assim, a tomada de posição para pensar o
esvaziamento de qualidades no existente. desenvolvimento da ciência seria contrária à evocação
de uma narrativa contínua. O que está em jogo nesta
Epistemologia da ciência: a recusa é a possibilidade de não rechaçar o movimento
matematização da física é um corte maior dialético da investigação científica. Aqui nos afastamos
dos historiadores da ciência de base positivista, que
Antes de adentrar propriamente na epistemologia advogam um estatuto continuísta e evolutivo para a
da ciência, é necessário defender nossa posição em afirmar ciência. O grande problema desta tomada de posição é
que há ciência moderna e que a concebemos a partir de que pressupõe uma supremacia dos órgãos dos sentidos
um corte maior. Lacan (1965/1998, p. 871) não deixa de como via para apreender o real científico. Nossa posição,
afirmar que o nascimento da ciência deve ser tomado nessa medida, é abordar a estrutura do fazer científico
no sentido absoluto, fazendo referência explícita aos não pelo experimento do positivista, mas pelo caráter
trabalhos de Koyré. Milner (1980/1996) encontrará nisto lógico-abstrato inaugurado com a física moderna a partir
a razão “pela qual a ciência é essencial à existência da do corte maior: a inserção das matemáticas como campo
psicanálise” (p. 32). de produção dos fenômenos científicos.
Apreenderemos o surgimento da ciência no que É neste sentido que Bachelard (1971/2006)
se inscreve como moderna a partir do corte operado por também demarcará que, no campo da filosofia, a ciência
Galileu com a matematização da física. Veremos depois era balizada por princípios unificados como meios
como isto instala uma nova ordem no pensamento, mas absolutos de apreender o real. Assim, tanto para os
antes nos cabe a tarefa de assumir que o fundamento adeptos do positivismo clássico, cuja uniformidade
para esta afirmação se centra no que Milner (1980/1996, se encontrava na experiência sensível, quanto para
p. 63) chamou de “linguagem do corte”. Trata-se da os idealistas, cuja uniformidade se justificava pela
axiomática de que há cesuras nos discursos que fundam separação absoluta da experiência e da razão, o que
novos campos de problemas. Assim, recorrendo aos se configurava no campo científico-filosófico era um
trabalhos de Koyré e Kojève, Milner (1980/1996) encontra saber homogêneo que ora preconizava o uso dos órgãos
uma combinação de proposições que não só indicam a do sentido, ora os quadros apriorísticos da razão, sem
existência de cortes, mas também um corte que afetaria possibilidade de dialetização.
todos os discursos compossíveis, ou seja, um corte maior. No entanto, os modos de operação de leitura da
Assim, ao afirmarmos que “não só há cortes, mas há cortes atividade científica passam a sofrer intensos abalos quando
maiores” (Milner, 1980/1996, p. 67), estamos seguindo se passa a considerar o surgimento de um mundo microfísico.
um caminho na epistemologia que considera o surgimento O espírito científico de antes se torna ineficaz para dar
da ciência moderna o fruto de uma cisão que afeta não conta do estabelecimento de um mundo desconhecido à
somente localidades específicas de discursos, mas sim todo experiência sensível do cientista, o que também corrobora
o universo. O que está em jogo, desse modo, é a criação para a instalação de uma crise no racionalismo – que
de um novo mundo em oposição a um mundo antigo. chamaremos aqui de “dogmático”. Conforme nos traz
Visto isso, seguiremos, neste trabalho, o intuito de Robert Blanché (1967/1983, p. 65-66), “o conhecimento de
abordar dois pontos que se articulam e que nos auxiliam a que os velhos conceitos fundamentais da ciência não são
ratificar a tese de Lacan de que o surgimento do sujeito do aplicáveis senão para a região das grandezas médias, eis
inconsciente se deve ao advento da ciência dita moderna. a revolução copernicana do nosso tempo”. É neste sentido
São eles: a matematização da física e o despojamento que o mundo do infinitamente pequeno passa a exigir
de propriedades do sujeito a partir da incidência do mudança substancial no modus operandi da ciência para
significante. abordar o novo campo de problemas.
O surgimento da ciência moderna não só implicará Com isso, temos o que podemos demarcar
novas coordenadas para pensar o universo, mas também como novo estatuto do objeto da ciência, levando em
a possibilidade de nova vetorização de leitura para consideração outra tomada de lentes epistemológicas
a epistemologia ler e tornar inteligíveis os modos de para observar seu campo de problemas. Para Bachelard
encaminhar problemas na atividade científica. É o que (1934/1985) o advento da física moderna, que engendra
Gaston Bachelard (1971/2006) demonstra ao afirmar que a o mundo do infinitamente pequeno, promove mudança
ciência, contrariamente ao que pregaria o positivismo clássico fundamental na maneira de encaminhar a investigação
e o idealismo, não se constituiria através de continuísmo científica, qual seja, “a realização do racional ou mais
constante, cujo desdobramento seria uma acumulação gradual precisamente a realização do matemático” (p. 13), de forma
e restrita do saber científico. Para o filósofo, o pensamento que o que se estabelece é a matematização da física, na
científico é formado a partir de cortes epistemológicos que, qual um novo campo de problemas e de abordagem do
longe de se darem a partir do desenvolvimento acumulativo objeto científico se configura, articulado a um processo de

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produção que vai da teorização ao real, e não ao contrário, A ideia de cosmo em Aristóteles se estrutura a
como pensavam os realistas. partir de uma ordem harmoniosa, na qual as coisas são
Nesse sentido, Alexandre Koyré (1973/1991) nos pertencentes a um lugar pré-determinado, de maneira
fornece uma distinção entre experiência e experimentação. que só poderá se localizar em seu lugar natural. Isto nos
Enquanto a primeira se aproxima do campo do senso leva a uma concepção ordenada e estática do universo.
comum e da física aristotélica, que, como veremos, é não- Neste sentido, a qualquer movimento com o intuito de
matemática, a segunda é mais próxima do pensamento deslocá-la de seu lugar, uma resistência se imporia com a
afetado por Descartes e Galileu. A experimentação estava finalidade de manter a posição primeira. Este movimento
vinculada ao uso de uma linguagem metodicamente de deslocamento, Aristóteles chamou de “violência”
constituída para interrogar fenômenos. (Koyré, 1973/1991).
Um ponto fundamental nos é apontado: o uso Assim, tudo que é do movimento implica ou
da linguagem matemática como modalidade formal de desorganização na ordem do universo, violência, ou uma
abordagem da natureza. Assim, para circunscrever a retomada na harmonia das coisas que voltariam aos seus
magnitude de um corte epistemológico maior precisamos respectivos lugares. Haveria um esforço do Ser em se
fazer um esforço de pensamento para entender as movimentar com o intuito de reordenar a hierarquia do
consequências da matematização da física. Segundo universo, em que cada elemento possui um lugar que lhe
Koyré (1973/1991), isto nos direciona ao rompimento é destinado antecipadamente. “É esse retorno à ordem
com a cosmologia aristotélica, cujos princípios delineavam que constitui, precisamente, o que chamamos movimento
um mundo hierarquizado (em ordem decrescente: de ‘natural’” (Koyré, 1973/1991, p. 158).
Deus para as coisas), composto de qualidades e finitude; Dessa forma, com o equilíbrio cósmico estabelecido
e ao surgimento da “matematização (geometrização) entre movimento natural e movimento violento, a física
da natureza e, por conseguinte, a matematização aristotélica se configuraria fundando um mundo dotado
(geometrização) da ciência” (Koyré, 1973/1991, p. 155). de hierarquias, em que as coisas se movimentam em
Neste plano, a consequência primeira oriunda da torno de um eixo imutável, de forma que “o movimento
destruição do cosmo aristotélico é a produção de um corte é o ser – ou actus – de tudo o que não é Deus” (Koyré,
na maneira de pensar as coordenadas do mundo. Com os 1973/1991, p. 159). Com isso, os lugares naturais de cada
processos de matematização do pensamento, a ideia de um coisa se encontrariam numa posição abaixo de um lugar
mundo ordenado por qualidades, finitude e hierarquias é superior, cuja figura central é divina, e que, por seu turno,
substituída por novas coordenadas, tais como: age como a causa, como o motor dos movimentos.
Ainda neste panorama, o mundo seria dotado
Um Universo aberto, indefinido e até infinito, de finitude na medida em que cada coisa teria sua
unificado e governado pelas mesmas leis universais, correspondência em um lugar determinado, não podendo,
um universo no qual todas as coisas pertencem ao portanto, ocupar mais de um lugar ao mesmo tempo ou
mesmo nível do Ser, contrariamente à concepção ainda impossibilitada de ocupar outro espaço que não lhe
tradicional que distinguia e opunha os dois mundos condiz segundo ordem estabelecida a priori.
do Céu e da Terra (Koyré, 1973/1991, p. 155). O pano de fundo para estas coordenadas, segundo
Koyré (1973/1991), é a negação do vácuo, ou melhor, seu
Vale dizer que o que estava em jogo neste corte era total desconhecimento. Considerá-lo seria um obstáculo
menos a absoluta desqualificação do modo de encaminhar para a compreensão de movimento na física de Aristóteles.
os problemas no mundo antigo do que a reestruturação Ora, se levarmos em consideração que em uma situação
da razão para dar conta das novas coordenadas que se de vacuidade o nada do ambiente seria incapaz de deter
estabeleciam. Os novos princípios que se delineavam não o movimento de um corpo, o desdobramento seria a
buscavam aprimorar os antigos, mas sim ultrapassá-los, destituição do equilíbrio cósmico, de forma que este
criando, assim, um novo universo. corpo lançado no vazio de matéria se movimentaria
Como frisa Koyré (1973/1991), a física de infinitamente.
Aristóteles – mesmo que condizente com uma ciência Em Galileu temos, em contrapartida, a consideração
elaborada e sistemática – abdica absolutamente do de um espaço vazio de matéria, de conteúdo e de atividade.
pensamento matemático. A consequência desta maneira de Como afirma Koyré (1973/1991, p. 161), “um espaço
analisar o campo de fenômenos naturais é a “(a) crença na vazio (o da geometria) destrói inteiramente a concepção
existência de ‘naturezas’ qualitativamente definidas; e (b) de uma ordem cósmica: num espaço vazio, não só
a crença na existência de um Cosmo” (Koyré, 1973/1991, não existem lugares naturais; não existem lugares de
p. 157). Passaremos a analisar como isto se estabelece no espécie alguma”. É, portanto, na ciência de Galileu e na
pensamento aristotélico a partir da sua distinção entre filosofia de Descartes,1 segundo Koyré (1973/1991), que
movimentos naturais e movimentos violentos e de que foi possibilitado que ultrapassássemos e refinássemos
forma esta distinção instaura a existência de um mundo 1 Visto que Descartes foi o pensador que inaugurou a modernidade
hierarquizado, dotado de qualidades e finitude, ou seja, justamente na medida em que foi o primeiro a rechaçar todo o saber anterior
um mundo dotado de substância. e a considerar as transformações da física Galileana como verdades.

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nossas noções de movimento e espaço. Com o advento Quanto a isso, Jean-Claude Milner (1980/1996)
da lei da inércia, por exemplo, passamos a operar com um indica que se trata de uma equação na qual Lacan articula
conjunto de teoremas e axiomas que seriam inoperantes três afirmações ao enunciar que o sujeito da ciência é o
em um mundo aristotélico. sujeito da psicanálise, a saber, “(1) que a psicanálise opera
As consequências, portanto, da matematização sobre um sujeito (e não, por exemplo, sobre um eu); (2)
da física são, em primeira ordem, o rompimento com a que há um sujeito da ciência; (3) que estes dois sujeitos
noção substancialista de Aristóteles em que cada ente constituem apenas um” (Milner, 1980/1996, p. 28).
possuía lugar correspondente dentro de uma hierarquia Podemos reiterar com Lacan (1965/1998) que a
finita. Podemos pensar o grande impasse que encontraria modernidade do pensamento se inaugura com Descartes e
o físico aristotélico ao se deparar com a impossibilidade este momento inaugural se correlaciona com a possibilidade
de verificação de um corpo em eterno movimento. Assim, de surgimento do sujeito da psicanálise na sua articulação
“não é surpreendente que o aristotélico se tenha sentido com o advento da ciência a partir da matematização
pasmado e perdido diante desse alucinante esforço para (geometrização) do espaço, como bem assinalamos com
explicar o real pelo impossível ou, o que dá no mesmo, Koyré (1973/1991). O que se faz fundamental aqui é aquilo
para explicar o ser real pelo ser matemático” (Koyré, que diz respeito ao advento do Cogito, lugar de toda a
1973/1991, p. 166). sustentação do pensamento cartesiano. Milner (1980/1996)
É nesta medida que podemos ratificar a tese de preconiza que este Cogito é justamente aquilo que se vale
que a física moderna surge a partir de sua matematização, de testemunho para o pensamento científico: o edifício
cujos efeitos mais precisos são a constituição de um cartesiano é o sustentáculo filosófico das descobertas
mundo matemático (geometrizado) em que os critérios galileanas.
de qualidades subjetivos fornecidos às coisas são abolidos. A esse respeito, temos o que Milner chama de
Assim, o golpe sofrido pela ciência diz respeito ao advento “cartesianismo radical” de Lacan, do qual podemos derivar
do abstrato da matemática que derroga a apreensão um conjunto de proposições:
dos problemas científicos pela percepção dos sentidos.
Vemos surgir, portanto, fenômenos a partir de um a se Descartes é o primeiro filósofo moderno, é
priori das operações do pensamento que fundam, ou, pelo Cogito; Descartes inventa o sujeito moderno;
mais precisamente, que criam o objeto científico. Descartes inventa o sujeito da ciência; o sujeito
Valendo-nos de François Châtelet (1994), podemos freudiano, na medida em que a psicanálise freudiana
perceber que se trata de uma mudança fundamental na é intrinsecamente moderna, não poderia ser outra
utilização da linguagem para interrogar a realidade. Se coisa senão o sujeito cartesiano (Milner, 1980/1996,
com Aristóteles a verificação da realidade estava dada a p. 33).
partir de uma linguagem cotidiana, em que à matéria eram
atribuídas as mesmas características do espírito, com o Desses axiomas é válido decorrer que não se trata
projeto galileano o que se visualiza é o esvaziamento de de uma linearidade cronológica; não é em relação a um
sentido a partir da linguagem matemática, no seu rigor de período na história do pensamento que Lacan se refere
exatidão e inteligibilidade. A partir da física de Galileu, ao traçar estas correlações. Trata-se, antes, de analisar
“a linguagem matemática é a linguagem da racionalidade como se estabelece uma zona de compatibilidade entre o
integral” (Châtelet, 1994, p. 65). sujeito da ciência e o sujeito freudiano, na medida em que
Assim, podemos afirmar que o advento da ciência o surgimento do cogito é originário de um corte maior,
moderna, com as operações de matematização da física, tributário da constituição de um universo infinito.
faz emergir um mundo destituído de qualidades. Trata-se O que o início do projeto cartesiano provoca no
de um esvaziamento do universo e do existente que campo do conhecimento é um rechaço de todo o saber por
corresponde ao início do projeto cartesiano de utilizar a meio da dúvida radical. Podemos observar isto na primeira
dúvida de todo o saber ulterior para inaugurar um sujeito parte da obra O discurso do método. Descartes se vale
esvaziado de qualidades intrínsecas. de todo o conhecimento que lhe era destinado dos altos
colégios da Europa somado a tudo que lhe fora possível
Psicanálise e ciência: o surgimento do apreender dos campos de saberes como a matemática,
sujeito sem qualidades a filosofia, a física, as artes, para então inserir no seu
pensamento a necessidade de examinar todas, “mesmo
Neste tópico, percorreremos um caminho que parte as mais supersticiosas e mais falsas, a fim de conhecer
de uma afirmação de Lacan que se encontra em escritos seu justo valor e evitar ser por elas enganado” (Descartes,
como A ciência e a verdade (1965/1998), Do sujeito enfim 1637/1996, p. 9-10).
em questão (1966/1998) e no Seminário sobre os conceitos Nesta medida, o projeto cartesiano parte do
fundamentais da psicanálise (1964/2008), de que só é centro da filosofia, cujo estado de coisas não deixava
possível conceber o sujeito do inconsciente a partir do de se encontrar massivamente sob o crivo das incertezas
surgimento da ciência moderna articulada ao pensamento – se furtando assim de uma sustentação resolutamente
cartesiano. crível –, para o das ciências, “na medida em que tiram

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seus princípios da filosofia” (Descartes, 1637/1996, Não lhe convirão as marcas qualitativas da
p. 12), não podendo, desse modo, estabelecer princípios individualidade empírica, seja ela psíquica ou
suficientemente fundamentados. Devemos ter em relevo, somática; tampouco lhe convirão as propriedades
aqui, a que ciência Descartes se refere e com isso sermos qualitativas de uma alma; ele não é mortal nem
levados diretamente ao tópico em que abordamos o que imortal, puro nem impuro, justo nem injusto,
era constituído enquanto cosmologia aristotélica: finita, pecador nem santo, condenado nem salvo; não
descritiva, dotada de qualidades e hierárquica. lhe convirão nem mesmo as propriedades formais
Decorre disto que da dúvida hiperbólica de que durante muito tempo havíamos imaginado
Descartes surge a certeza do Cogito. O ato de pensar, constitutivas da subjetividade como tal: ele não
portanto, instaura a certeza da existência do sujeito. tem nem Si, nem reflexividade, nem consciência
Todavia, trata-se mesmo do ato do pensar no momento (Milner, 1980/1996, p. 33).
de sua enunciação, o que nos direciona ao grande impasse
cartesiano: a verdade, no que tange ao existente, só é Nesta medida, é a Koyré (1973/1991) que devemos a
garantida no momento em que se enuncia o pensar. Com afirmação de que a dúvida enquanto método, ou o período
isso, temos um sujeito evanescente e o problema do filósofo do ceticismo que inaugura o Cogito, foi responsável pela
seria encontrar uma saída que sustentasse a validade do produção do racionalismo na ciência moderna. Conforme
existir ao longo do tempo. já afirmamos neste trabalho, o corte sofrido pela ciência se
Para Alain Badiou (1988/1996), a questão do constitui com a passagem da natureza dotada de qualidades
sujeito em Descartes deve ser pensada a partir do lugar para o universo da precisão matemática, ou ainda, se
que o próprio sujeito precisamente ocupa, a saber, o quisermos, com a inserção do significante, do simbólico,
lugar da enunciação. A certeza da existência do ser na produção do conhecimento científico. Assim, Ramos e
virá, portanto, do próprio sujeito ao dizer: eu penso. Alberti (2013, p. 211-212) nos indicam que “isso significa
Desse modo, “o ponto do sujeito é ali onde se pensa que que a formalização do real, própria da prática científica,
pensando ele deve ser, ele é. A conexão entre o ser e é na verdade um arranjo simbólico. A prática científica
o lugar funda a radical existência da enunciação como consiste numa matematização do real, o que se dá na
sujeito” (p. 336). contramão de uma quantificação”.
Assim, o pensamento cartesiano promove
esvaziamento de substância no existente. Nada do que O sujeito entre significantes: Lacan e
era suposto pode adquirir o estatuto de verdade; ao a linguística2
sujeito só lhe caberá uma certeza: a de que ao pensar,
ele é. No entanto, o sujeito que só se afirma no momento Vimos anteriormente que a ciência moderna operou
da enunciação, é um sujeito evanescente, que não tem no universo a abolição das qualidades, ou seja, ao se
materialidade tampouco durabilidade no decorrer do matematizar destituiu o mundo de substância. De certa
tempo, o que veremos ser compatível com o uso que Lacan forma, os processos de matematização do objeto científico
faz do significante na sua articulação com a produção passaram a tomar o estatuto de ideal de ciência, estendendo
do sujeito. seu campo para além das ciências naturais. É com isso
Em A ciência e a verdade, Lacan (1965/1998) chega que observamos se configurar no pensamento moderno
a indicar uma nova escrita para o aforismo de Descartes, uma discursividade científica que estendia cada vez mais
propõe que à segunda oração sejam acrescentadas aspas, seus limites: trata-se de um galileísmo ampliado.
formando assim um penso: “logo existo”. Estas aspas Podemos mencionar aqui, como exemplo, o
tomam a função de indicar que o pensamento só institui paradigma da estrutura, ou melhor, do estruturalismo.
o ser na medida em que se vincula à fala, assim, “toda a Se desde Galileu o programa científico se comprazia do
operação toca na essência da linguagem” (p. 879). campo simbólico das matemáticas, de figuras geométricas
A relação entre a emergência da dúvida radical e referências numéricas, veremos surgir no horizonte de
de Descartes e o surgimento da física de Galileu pode outras áreas de saber um projeto investigativo similar.
ser circunscrita com o advento da categoria do infinito. Evidentemente que, como nos adverte Milner (1980/1996),
Conforme nos traz Dunker (2008), ao se deparar com a não se trata de uma transposição absoluta, pois ao sair do
insuficiência do saber medieval que se centrava em uma campo da natureza e adentrar o objeto social e humano
ordem fechada – o cosmos finito –, a filosofia cartesiana, deve-se partir de adaptações. É neste panorama que se
a partir das descobertas astronômicas e matemáticas que inscreve o estruturalismo.
fundam novas modalidades de encaminhar o problema Dessa forma, é válido frisar que o estruturalismo,
científico, passa a buscar “um ponto certo, seguro quando aplicado à linguística, opera uma redução das
e indubitável que defina essa nova ordem (mathesis
universalis) de saber, e que será a forma moderna do 2 Não pretendemos com este tópico afirmar uma posição final e absoluta
conhecimento” (p. 5). de Lacan quanto ao seu diálogo com a linguística. O que visamos aqui
é unicamente mostrar como a linguística foi uma das ferramentas para
Dessa forma, a este sujeito inaugurado por Lacan pensar o sujeito, não promovendo homogeneização entre os
Descartes: campos ou tomando este encontro como o único possível.

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qualidades sensíveis e não sua total abolição, visto que respectivamente, de significante e significado. O
especificamente neste campo temos a matéria fonética, surgimento deste corte epistemológico no modo de
sobremaneira dependente dos aparelhos sensoriais. pensar o signo será sustentado por dois princípios
Todavia, ainda assim, o programa estrutural se constituiu fundamentais, a saber, o princípio de arbitrariedade e
como método que buscava promover tratamento científico o princípio de linearidade significante.
aos seus objetos. O primeiro princípio, como nos indica Saussure
Neste panorama, cabe-nos a pergunta: qual foi (1916/2012), diz respeito ao fato de que a relação estabelecida
o doutrinal da ciência que estabeleceu coordenadas entre significante e significado, no signo linguístico, não
científicas para a linguística? Seguindo Lévi-Strauss em é necessária, mas arbitrária. “Assim, a ideia de ‘mar’ não
seu texto sobre linguística e antropologia, temos evidência está ligada por relação alguma interior à sequência de sons
do destaque que o estudo linguístico tomou em relação às m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada
outras áreas que respondiam ao título de ciências sociais ou igualmente bem por outra sequência, não importa qual”
ciências humanas. A linguística foi “aquela que, de longe, (Saussure, 1916/2012, p. 108).
realizou os maiores progressos; é certamente a única que Para dar um exemplo deste princípio, Saussure se
pode reivindicar o nome de ciência e que conseguiu ao vale da palavra bouef, que podemos traduzir por ‘boi’, em
mesmo tempo formular um método positivo e conhecer português. Se pegarmos a variação do francês em outras
a natureza dos fatos que lhe cabe analisar” (Lévi-Strauss, regiões, encontraremos significantes para a palavra boi
1958/2012, p. 43). como “b-ö-f de um lado da fronteira franco-germânica,
Podemos afirmar que foi o programa estruturalista e o-k-s (Ochs) do outro” (Saussure, 1916/2012, p. 108).
o responsável em conceder à linguística o título de Com isso, somos levados a perceber como o princípio
ciência, na medida em que se fiava em um método de de arbitrariedade revoga qualquer tentativa de atribuir
redução das qualidades sensíveis, promovido por um uma relação natural e necessária entre significante
corte epistemológico operado por Ferdinand de Saussure. e significado.
Buscaremos tornar isto inteligível ao analisarmos como Quanto ao princípio do caráter linear do
o método de redução das qualidades e de introdução dos significante devemos entendê-lo a partir do fato de que
fatos da língua em um sistema de oposições é capital para “o significante, sendo de natureza auditiva, desenvolve-se
apreender a natureza do signo linguístico. Este nosso no tempo, unicamente, e tem as características que toma
caminho se justificará como ferramenta para abordar o do tempo: (1) representa uma extensão, e (2) essa extensão
significante na psicanálise e de que forma se correlaciona é mensurável numa só dimensão: é uma linha” (Saussure,
com o significante saussuriano e também em que medida 1916/2012, p. 110).
o subverte ao inserir a categoria do sujeito. O que depreendemos desses dois princípios do signo
Ora, a noção de sujeito, a princípio, impediria o linguístico é o que podemos encontrar na teoria do valor de
tratamento científico que o programa estrutural procura Saussure. O significante e o significado, ou, se quisermos, o
promover. Todavia, veremos que, com Lacan, se trata som e o pensamento, não constituem um sistema de valores
de um sujeito sem qualidades, rebelde à categoria puros. A substância fônica não é uma fôrma sobre a qual o
como a consciência de si, ou seja, para o psicanalista, pensamento se acomoda. Trata-se, portanto, de considerar
o estruturalismo inaugurara “uma modalidade muito o som como uma massa amorfa, “uma matéria plástica que
especial do sujeito” (Lacan, 1965/1998, p. 875). Veremos se divide, por sua vez, em partes distintas, para fornecer
como isto se ordena a partir da aproximação de Lacan os significantes dos quais o pensamento tem necessidade”
com a linguística estrutural. (Saussure, 1916/2012, pp. 158-159).
O estudo da língua antes de Saussure preconizava, Neste sentido, Benveniste (1976, p. 56) nos afirma
em suma, que sua função era a comunicação através da que:
formatação das palavras a partir das coisas presentes na
natureza. É sobre este fato que a linguística estrutural irá o significante e o significado, a representação mental
se rebelar, visto que, nesta perspectiva, “o signo linguístico e a imagem acústica são, pois, na realidade as duas
une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e faces de uma mesma noção e se compõem juntos
uma imagem acústica” (Saussure, 1916/2012, p. 106). como o incorporante e o incorporado. O significante
Assim, como nos afirma François Dosse (1991/1993), é a tradução fônica de um conceito; o significado
o que Saussure promove é o surgimento de um método é a contrapartida mental do significante. Essa
de leitura da língua que unificará diversos saberes sob consubstancialidade do significante e do significado
o crivo da estrutura e que se constitui a partir de “uma garante a unidade estrutural do signo linguístico.
interpretação da língua que a coloca resolutamente do
lado da abstração para melhor a separar do empirismo e Colocar isso em evidência é adotar uma postura
das considerações psicologizantes” (p.  66-67). abstrata em relação à língua, ou seja, a língua passa a ser
O conceito de signo em Saussure, com isso, tomada a partir da noção de sistema que, por sua vez, é
passa a indicar a relação entre uma imagem acústica inapreensível pela observação, mas que não deixa de se
e um conceito, que também podemos chamar, fazer operar em todo ato de fala. Desse modo, não há

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relação direta entre significante e significado, mas sim Quanto a isto, caberia à teoria psicanalítica, se
produção de sentido através de um jogo de oposições. valendo da ciência da linguística, delimitar a leis gerais
Vejamos o famoso exemplo de Saussure (1916/2012) que regem o estatuto do significante. É aqui que nos
sobre a palavra “carneiro”. Sabemos que se trata tanto de um reportamos à teoria do valor de Saussure para indicar
animal, quanto de um alimento (quando a relacionamos com que o significante, impedido de valor intrínseco, só se
a possibilidade de se alimentar). Assim, no francês, mouton apreende em um jogo de relações opositivas:
(carneiro), e no inglês, sheep (carneiro), temos a mesma
significação, mas não temos o mesmo valor: enquanto o o significante-homem como o significante-mulher
francês usa mouton indiscriminadamente, o inglês se utiliza são coisas diferentes de uma atitude passiva e
da palavra mutton – e não sheep – quando necessita se atitude ativa, atitude agressiva e atitude cedente,
referir a um carneiro posto à mesa para alimentação. Isto outra coisa que comportamentos. Há sem dúvida um
significa que “a diferença de valor entre sheep e mouton significante escondido aí atrás que, é claro, não é
ou carneiro se deve a que o primeiro tem a seu lado um absolutamente em parte alguma encarnável, mas que
segundo termo, o que não ocorre com a palavra francesa está assim mesmo encarnado o mais justo possível
ou portuguesa” (Saussure, 1916/2012, p. 163). na existência da palavra homem e da palavra mulher.
O que a teoria do valor de Saussure advoga é a (Lacan, 1956/1985, p. 226, grifo nosso)
ilusão em que se cairia se passássemos a analisar a natureza
do signo apenas no que diz respeito à união de determinado Assim, o axioma “o significante, como tal, não
som com determinado conceito. Se assim o fizéssemos, significa nada”, indica o “fato de ser em si mesmo sem
estaríamos isolando o signo linguístico do sistema a que significação própria” (Lacan, 1956/1985, p. 227), ou seja,
pertence, o que seria o mesmo que “acreditar que é possível o significante não presta à produção da identidade, mas
começar pelos termos e construir o sistema fazendo a única e exclusivamente à produção da diferença. Lacan,
soma deles, quando, pelo contrário, cumpre partir da com isso, irá encontrar nos desenvolvimentos de Jakobson
totalidade solidária para obter, por análise, os elementos (1974) o que concerne à leitura dos fonemas que se dão
que encerra” (Saussure, 1916/2012, p. 160). não pela materialidade em si, mas por sua oposição lógica,
Podemos, a partir desses delineamentos, afirmar na medida em que a dado fonema se tornaria inevitável a
que o significante linguístico, em Saussure, não é de modo presença de outro que se opõe.
algum tomado por substancialidade: ele é incorpóreo, Ora, não vemos aqui ponto de compatibilidade
destituído de propriedades intrínsecas, só podendo ser com a assim chamada ciência moderna que, por seu
apreendido como aquilo que se constitui a partir de um turno, opera no mundo um esvaziamento da substância?
jogo de oposições com outros significantes. É aqui que Podemos nos autorizar a responder afirmativamente se
nos autorizamos trazer à luz do nosso trabalho o axioma levarmos em consideração que a física matemática passa
de Lacan, emprestado de Roman Jakobson (1974), e a ser sua referência maior. Para Marco Antonio Coutinho
apresentado no seminário sobre psicoses: “o significante, Jorge (2000/2008, p. 69), o encontro de Lacan com a
como tal, não significa nada” (Lacan, 1956/1985, p. 209). linguística se insere em uma “busca de cientificidade
O que Lacan promove ao trazer o significante para a psicanálise, almejada por Lacan de modo muito
esvaziado de propriedades para o interior da experiência particular, ou seja, ao situar de maneira nova a questão
analítica diz respeito, em certa medida, à sua preocupação do sujeito do inconsciente” (itálico nosso). Então vejamos
com a relação da psicanálise com o campo da ciência que ao se aproximar do estruturalismo linguístico, Lacan
e o seu consequente distanciamento das tendências de não procurava enquadrar a psicanálise em um programa
naturalização do inconsciente. É assim o que se observa científico restrito, mas sim delimitar as coordenadas de
na física moderna, por exemplo: o significante não cumpre seu objeto: o sujeito do inconsciente.
ali a função de significação. Desse modo, Lacan nos Para tanto, para tornar esse intento possível, foi
adverte: “vocês estarão errados em crer que as pequenas necessário que o psicanalista subvertesse a linguística
fórmulas de Einstein que põem em relação a massa de saussureana em dois pontos fundamentais: inserindo
inércia com uma constante e alguns expoentes tenham no signo linguístico a categoria de sujeito e concedendo
a menor significação. É um puro significante” (Lacan, primazia ao significante no signo linguístico.
1956/1985, p. 211).
Com isso, Lacan, no seu retorno à Freud, nos O sujeito sem qualidades da psicanálise
fornece uma chave de leitura ao indicar que o que se trata
na experiência da psicanálise não é a busca por significações, A subversão que Lacan promove no signo
mas sim a prevalência da materialidade significante, rebelde linguístico de Saussure é o que nos leva a afirmar que o
a qualquer rigidez de acoplamento ao significado. Desse significante lacaniano não é homólogo ao saussuriano.
modo, “o sentido da descoberta analítica não é simplesmente Quanto ao primeiro ponto, se, para Saussure, o advento
o de ter achado significações, mas o de ter estado muito do sentido no signo linguístico deve ser inserido em sua
mais longe do que jamais esteve em sua leitura, a saber, até teoria do valor, indicando que a matéria fônica, amorfa por
o significante” (Lacan, 1956/1985, p. 225). natureza, e o pensamento, também amorfo e indistinto, se

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relacionam a partir de um princípio arbitrário – “trata-se, Assim:
antes, do fato, de certo modo misterioso, de o ‘pensamento-
som’ implicar divisões e de a língua elaborar suas unidades o inconsciente é, no fundo dele, estruturado,
constituindo-se entre duas massas amorfas” (Saussure, tramado, encadeado, tecido de linguagem. E não
1916/2012, p. 159, itálico nosso) –, para Lacan, a este somente o significante desempenha ali um papel tão
misterioso podemos reportar a atividade do sujeito do grande quanto o significado, mas ele desempenha ali
inconsciente. o papel fundamental. O que com efeito caracteriza
Paul-Laurent Assoun (1996) nos afirma que é a linguagem é o sistema do significante como tal.
justamente ali que Lacan retorna a Freud, que estabelece O jogo complexo do significante e do significado
uma conjugação epistemológica entre a metapsicologia coloca questões à beira das quais nos mantemos,
freudiana e a linguística estrutural de Saussure. Todavia, o porque não fazemos aqui um curso de linguística,
que se estrutura é uma articulação que não pretende incluir mas vocês entreviram sobre isso bastante até
a psicanálise no interior da teoria linguística ou vice- aqui para saber que a relação do significante e do
versa. O problema que aqui se coloca pode ser resumido significado está longe de ser, como se diz na teoria
no seguinte projeto: dos conjuntos, biunívoca. (Lacan, 1956/1985, p. 139)
trata-se, pois, de determinar cuidadosamente o Desse modo, chegamos ao fato de que pensado o
ponto preciso onde se legitima a contribuição sujeito do inconsciente como a consequência dos jogos
da psicanálise e onde se esboça a necessidade de significantes, Lacan está promovendo a emergência de
implicá-la num debate cujos termos, de partida, ela um sujeito sem qualidades, tão caro à descoberta de
não define, mas cujas tramas ela reencontra por Freud e sobremaneira distinto das vertentes filosóficas
suas vias próprias (Assoun, 1996, p. 77). e psicologizantes. Assim, se, como vimos, é da natureza
do significante, quando tomado como tal, nada significar,
É desse modo, quanto à inserção do sujeito no ao alocarmos o sujeito entre os significantes, como no
campo da linguística, que Lacan, no seu seminário Mais, axioma de Lacan (1960/1998), estamos a afirmar que não
ainda, irá propor uma cisão com o linguista Jakobson, há significante que dê conta de promover a assunção do
fundando o neologismo linguisteria, campo propriamente que é o sujeito, do que é composto, se rebelando a qualquer
psicanalítico, na medida em que não se trata de outra coisa tentativa de substancializá-lo.
senão de priorizar a descoberta freudiana: o sujeito do O que se estabelece, dessa forma, no tocante à
inconsciente. Assim: articulação entre os dois axiomas de Lacan supracitados,
pode ser vinculado à tese de que o sujeito da psicanálise e
se consideramos tudo que, pela definição da o sujeito da ciência são compatíveis: ambos são destituídos
linguagem, se segue quanto à fundação do sujeito, de qualidades. Eis o motivo da descoberta freudiana só ter
tão renovada, tão subvertida por Freud, que é sido possível em um mundo em que o sujeito foi inaugurado
lá então que se garante tudo que de sua boca se pelo cogito cartesiano afetado pela atividade científica. É
afirmou como o inconsciente, então será preciso, nesse sentido que o estatuto do sujeito se encontrará “no
para deixar a Jakobson seu domínio reservado, âmago da diferença” (Lacan, 1965/1998, p. 871); diferença
forjar alguma outra palavra. Chamarei a isto de propriamente significante; um sujeito que se encontra
linguisteria. (Lacan, 1972/2008, p. 22) no intervalo de S1 (o significante-mestre) e S2 (a bateria
significante). Demonstração que se estrutura a partir da
Articulado a isso podemos trazer um segundo implicação de Lacan no debate com a linguística estrutural.
axioma de Lacan – “o significante é o que representa Com isso, concluímos que, antes de nos perguntarmos
o sujeito para outro significante” – e ressaltar nele a se a psicanálise se enquadra em um ideal de ciência,
subversão que se opera ao isolar no signo linguístico de observamos em sua construção teórica um encaminhamento
Saussure a primazia do significante que, como tal, não que possui compatibilidade lógica com a forma como a
possui realidade intrínseca e a inserção do sujeito entre ciência moderna encaminha seu campo de problemas.
significantes esvaziados de qualidades. Dessa maneira, não se trata de homogeneizar psicanálise
A representação em algoritmo do signo linguístico e ciência, mas seguir os passos de Lacan, que afirma ser o
que Saussure (1916/2012, p. 161) nos fornece é: significado/ esvaziamento de qualidades operado pela ciência moderna
significante. Que podemos ler significado sobre a condição de possibilidade de surgimento do sujeito do
significante. Como é sabido, o que promove Lacan é sua inconsciente inaugurado pela metapsicologia freudiana.
inversão, concedendo maior valor ao significante. Podemos Porém, ainda nos resta uma pergunta, que
notar que em seu escrito A instância da letra no inconsciente pretendemos deixar em aberto para suscitar um campo
ou a razão desde Freud, Lacan (1957/1998, p. 500) tomou de investigação a seu respeito: pensando a articulação que
o algoritmo saussuriano já no seu avesso: “S/s, que se lê: Lacan propôs entre psicanálise e ciência durante seu ensino,
significante sobre significado, correspondendo o “sobre” podemos transpô-la tal e qual para a atualidade? Qual a
à barra que separa as duas etapas”. situação da psicanálise com a ciência atualmente? Como

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se insere no debate científico tão intensamente presente no dotado de novas tecnologias, nos leva a interrogar qual a
âmbito universitário? O debate em torno das classificações posição que a psicanálise ocupa neste debate. Assim, com
nosográficas de tipo DSM e CID, o surgimento de novos o caminho que desenvolvemos aqui, pretendemos não o
campos de problemas científicos presentes na psicologia, esvaziar e dá-lo por encerrado, mas lançar as coordenadas
principalmente na psicologia cognitiva-comportamental e para um debate que está por se fazer a cada dia, tal qual a
seu campo de pesquisa altamente baseado em evidências, psicanálise se reinventa a cada encontro clínico.

Psychoanalysis and science: the equation of the subjects

Abstract: This article aims to demonstrate that Jacques Lacan’s assertion that modern science was the condition of possibility
of the emergence of psychoanalysis derives a set of propositions: to modern science; psychoanalysis could only arise in the
modernity of thought; and between psychoanalysis and science there is a logic of compatibility. To do so, from an epistemological
point of view, the article aims to define the status of a world affected by modern scientific activity as opposed to the ancient
world. This led research to the axiomatic, in a broader scope, from Descartes’ works and mathematical physics, which proposes
a caesura that affects all existing discourses. With the mathematization of thought, the qualities of the existent were abolished,
thereby providing the propitious ground for the emergence of the subject of the unconscious, which Lacan will allocate between
signifiers, promoting an essentially modern theory of the subject.

Keywords: psychoanalysis, science, subject, signifier.

Psychanalyse et la science: l’équation des sujets

Résumé: Notre but est de démontrer que l’affirmation de Jacques Lacan qui dit que la science moderne a été la condition à
la naissance de la psychanalyse résulte dans un certain nombre des propositions : il y a la science moderne ; la psychanalyse
ne peut que surgir dans la modernité de la pensée ; et il y a entre la psychanalyse et la science une logique de compatibilité.
Pour cela, à partir de l’épistémologie, nous avons cherché à définir le statut du monde affecté pour l’activité de la science
moderne par opposition à un monde ancien, ce qui nous a amené à l’axiome de la coupure majeure de la pensée de Descartes
et de la physique mathématique, qui propose l’existence d’une rupture qui touche tous les discours. Avec l’introduction de
la mathématique dans la pensée les attributs de l’existant sont abolis et a laissé une place propice à l’apparition du sujet de
l’inconscient que Lacan met entre les signifiants, ce qui a promu l’émergence d’une théorie moderne du sujet.

Mots-clés: psychanalyse, science, sujet, signifiant.

Psicoanálisis y ciencia: la ecuación de los sujetos

Resumen: Pretendemos demostrar que la afirmación de Jacques Lacan de que la ciencia moderna fue la condición de
posibilidad de surgimiento del psicoanálisis constituye un conjunto de proposiciones: hay ciencia moderna; el psicoanálisis
solo ha podido surgir en la modernidad del pensamiento; y entre el psicoanálisis y la ciencia hay una lógica de compatibilidad.
Para tanto, desde la epistemología, tratamos de definir el estatuto de un mundo afectado por la actividad científica
moderna en oposición a un mundo antiguo. Esto nos llevó a la axiomática del corte mayor resultante del pensamiento de
Descartes y de la física matematizada que propone haber una censura que afecta todos los discursos composibles. Con
la matematización del pensamiento, las cualidades de lo existente son anuladas, estableciendo el campo propicio para
el surgimiento del sujeto del inconsciente, que Lacan situará entre significantes, promoviendo, así, una teoría del sujeto
esencialmente moderna.

Palabras clave: psicoanálisis, ciencia, sujeto, significante.

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