O Conto Dos Três Irmãos:: Grazielly Benvegnú Menezes
O Conto Dos Três Irmãos:: Grazielly Benvegnú Menezes
O Conto Dos Três Irmãos:: Grazielly Benvegnú Menezes
PORTO ALEGRE
2014
1
Porto Alegre
Dezembro, 2014
2
FICHA CATALOGRÁFICA
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
This study´s objective is to examine the basic components in the plot of “The Tale of
the Three Brothers”, by J.K. Rowling, in view of Vladimir Propp’s assumptions in his famous
work Morphology of the Folktale. For that purpose, possibilities for the appropriation of the
characters’ functions and spheres of actions will be presented, in order to elaborate a synthesis
of the narrative sequence, according to the studies of the Russian theorist. Initially, a brief
analysis of the main characters in the tale, the three brothers, will be provided. Also, the
symbolic elements in the plot will be highlighted. Subsequently, Propp’s model for the study
of the fairy tale will be applied to the tale in question. “The Tale of the Three Brothers” is
featured in The Tales of Beedle, the Bard and emerges in the Harry Potter saga, from its
seventh book, Harry Potter and the Deathly Hallows. The Bard’s collection of stories is to the
wizard world as are The Tales of Mother Goose, by Charles Perrault, for us. Rowling’s tales
reproduce the traditional structure of the fairy tales present in the folklore of communities
from different geographical origins. Therefore, this work consists of an exercise of application
of Propp´s table and theory into Rowling´s tale. For this task, a table containing all the thirty-
one characters’ functions and its variants – systematically organized – was produced.
Furthermore, it is important to underline the great relevance of this literary genre in relation to
children’s intellectual development, in a world either with or without magic.
Keywords: 1 J. K. Rowling. 2 “The Tale of the Three Brothers”. 3 Vladimir Propp. 4 Fairy
tales.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................... 8
1.2 O BARDO.................................................................................................. 16
REFERÊNCIAS .................................................................................. 42
APÊNDICE A ...................................................................................... 45
ANEXO 1 ............................................................................................... 54
8
INTRODUÇÃO
Enquanto jovem leitora, foi inevitável a transição de contos de fadas para leituras
direcionadas ao público adolescente com o mesmo tema da magia. Foi durante a minha
adolescência que o fenômeno literário Harry Potter atingiu seu ápice, engajando milhões de
jovens ávidos pelas aventuras que apenas um mundo mágico-fantástico poderia oferecer. Com
o tempo, minha admiração pela autora da série – J.K. Rowling - não diminuiu. Minha leitura
outrora emocional e isenta de responsabilidade crítica, após a experiência acadêmica se tornou
atenta aos parâmetros da construção literária e aos esforços de sua produção. A leitura de Os
9
Contos de Beedle, o Bardo, objeto de análise deste trabalho, imediatamente dialogou com
outras leituras anteriores sobre histórias já tão conhecidas, assinadas por Jacob e Wilhelm
Grimm, Charles Perrault, Jean de La Fontaine e Hans Cristian Andersen.
No livro O que é Leitura?, Maria Helena Martins discorre sobre três tipos de leitura:
sensorial, emocional e racional. Apesar da última ser mais valorizada no ponto de vista da
cultura letrada, as leituras sensorial e emocional são, segundo a autora, tão legítimas quanto a
racional. Pessoalmente, identifico uma predominância da leitura emocional nos contos de
fadas que conheci na minha infância.
Dito isso, justifico a escolha pelo objeto do presente trabalho com um motivo que
combina um profundo interesse neste gênero literário e uma antiga afinidade com seus textos.
Nada seria mais natural neste processo, portanto, do que analisar o conto de uma obra que
pretende se inserir em tal gênero, tendo em vista os demais contos circundantes e as
asseverações de teóricos acerca do tema.
O apego por histórias que fazem parte da nossa infância bem como a necessidade
desse suporte literário na constituição dos sujeitos é um dos assuntos investigados por
Bettelheim (2002). Ele afirma que o conto de fadas usa situações do mundo exterior para dar
voz a conflitos interiores que a criança vivencia. Mais recentemente, Diana e Mário Corso
(2006) deram continuidade aos seus estudos no campo da psicanálise. O casal de psicanalistas
revisita A Psicanálise do Conto de Fadas por meio de uma abordagem crítica e atualizada,
10
Em suma, analisando “O Conto dos Três Irmãos” por meio dos parâmetros de Propp
para uma estrutura constante do conto de fadas, proponho identificar elementos estruturais
definidores do gênero nos contos criados por J.K. Rowling. Pretendo ter em vista, durante
esse processo, que a autora tenha, supostamente, se proposto a realizar o trabalho de
compiladora de histórias do folclore de um povo (neste caso, bruxo), da mesma forma que já
vimos acontecer anteriormente na História da Literatura Ocidental. Enfim, com o apoio da
teoria de Propp acerca do conto maravilhoso será possível delinear a sequência de
componentes formais que garantem o status de conto de fadas ao “O Conto dos Três Irmãos”.
11
1.1 O LIVRO
No primeiro contato que tive com Os Contos de Beedle, o Bardo, percebi que este
não era um livro de contos de fadas como os outros que já conhecia. Um livro de contos de
fadas proveniente de uma saga que tinha como cenário uma dimensão mágico-fantástica
soava como algo quase redundante. Uma leitura como essa exigiria uma imersão um pouco
mais profunda na lógica de um universo com tantas possibilidades de transgressão da
realidade como a conhecemos.
1
Termo que designa o humano que não possui poderes mágicos, segundo Rowling.
12
a desvendar a verdadeira natureza das relíquias mortais, levando à vitória de Harry sobre
Voldemort, o Lorde das Trevas, como podemos observar no último volume da saga.
Os Contos de Beedle, o Bardo não está sozinho no cânone literário bruxo. Outras
obras publicadas sob a autoria de Rowling foram supostamente escritas e assinadas por
personagens da série Harry Potter. São elas: Quadribol Através dos Séculos (Quidditch
Through the Ages), de Kennilworthy Whisp e Animais Fantásticos e Onde Habitam
(Fantastic Beasts and Where to Find Them), de Newt Scamander.
2
Tradução minha de: “The idea came really because I wanted to thank six key people who have been very
closely connected to the ‘Harry Potter’ series, and these were people for whom a piece of jewellery wasn’t going
to cut it. So I had the idea of writing them a book, a handwritten and illustrated book, just for these six people.
And well, if I’m doing six I really have to do seven, and the seventh book will be for this cause, which is so close
to my heart”.
13
O primeiro pretende ser uma réplica do exemplar de um livro sobre o esporte fictício
quadribol3, que faz parte do acervo da biblioteca de Hogwarts. Há marcas de uso do volume
original em suas páginas, como uma lista de nomes escrita por cada aluno que o retirou da
biblioteca. Também conta com a contribuição de Alvo Dumbledore, em um prefácio em que
revela as dificuldades que teve de contornar para que conseguisse a autorização necessária
para a publicação do livro.
Ao passo que emerge de um enredo principal, o livro traz histórias que respeitam
uma coerência interna e externa a si. Quando considerado isoladamente, se define como uma
obra da literatura infantil, de gênero próprio, que consiste em uma reunião dos contos de fadas
tradicionais do folclore bruxo. Sob uma visão mais abrangente, contudo, percebe-se a segunda
face desse objeto. Esse mesmo livro está vivo na trama, de forma que atua sobre o destino das
personagens, revela pistas e informações importantes, servindo de impulso ao movimento
seguinte. Nessa perspectiva assume o papel de auxiliar mágico, (tendo em vista os sete perfis
de personagens sugeridos por Propp).
3
Quadribol é o esporte de maior popularidade no mundo bruxo. Criado pela escritora J.K. Rowling, possui uma
série de manobras perigosas, além de promover uma Copa Mundial a cada quatro anos, desde 1473. Um time de
quadribol conta com sete jogadores montados em suas vassouras, dos quais dois são batedores, três artilheiros,
um goleiro e um apanhador. Durante a partida, os jogadores precisam lidar com três tipos de diferentes de bola -
dois balaços, uma goles e um pomo de ouro – enquanto tentam marcar gols em um dos três arcos do lado
adversário.
4
O site wiki.potterish.com, a maior enciclopédia online sobre a série Harry Potter em língua portuguesa, define
magizoologia como o “Termo dado ao estudo dos animais mágicos. Há, além do estudo, a tentativa de protegê-
los e ocultá-los dos Trouxas para, assim, evitar a extinção de algum animal e assegurar às futuras gerações a
oportunidade de apreciá-los.”
14
ilustrando seu ponto de vista por meio da apropriação da seguinte frase, trazida entre aspas:
“A esperança brota eternamente.”5 Sobre ela, Rowling viu necessário esclarecer aos seus
leitores o seguinte: “A citação demonstra que Alvo Dumbledore era não só excepcionalmente
instruído em termos de bruxaria, como também familiarizado com os escritos do poeta trouxa
Alexander Pope. JKR”. (ROWLING, 2008b, p. 94).
A nota, de certa forma, elucida os diversos planos que a leitura dessa obra perpassa.
Rowling esclarece a origem de uma citação de uma personalidade histórica, portanto trouxa
(Alexander Pope), mencionada pelo seu personagem ficcional (Dumbledore) que transita
intelectualmente pelos dois mundos. Este, por sua vez, tece reflexões sobre uma obra de
contos de fadas (Os Contos de Beedle, o Bardo), considerada ficção pelas próprias
personagens do universo ficcional potteriano.
5
Original “Hope springs eternal”.(ROWLING, 2008a, p. 96)
16
inglês e comentada. É dessa edição que Rowling afirma apropriar-se ao revisitar todo o seu
conteúdo, incluindo informações que julgou importantes para seu público trouxa.
Finalmente, após se debruçar sobre a segunda versão da obra de Beedle, Rowling faz
uso das alterações na evolução do livro para disponibilizá-lo aos seus leitores, sob sua autoria,
de fato. Esta publicação se constitui, consequentemente, na terceira edição de Os Contos de
Beedle, o Bardo, de que se tem notícia. Ela é a que nos chega em mãos, a que se materializou,
a que nos revela sobre a existência das duas anteriores e a que desencadeia as reflexões neste
trabalho.
Em suma, a trajetória deste livro de contos compreende dois planos de sua existência
– um real e um ficcional -, sendo produzidas três edições distintas da obra, das quais apenas a
última chega a ao público integralmente.
1.2. O BARDO
invocando as alegrias do novo rito pelo tão honrado nome da antiga tradição.6
(BEDE, 1999b).
Esse trecho de Beda é o único registro histórico sobre a possível existência dessa
divindade e é, acredita-se, apenas uma interpretação etimológica do nome de um dos meses
do ano. Por isso, estudiosos levantam questões sobre seu valor de verdade, e especulam sobre
as origens do símbolo do coelho da Páscoa, sugerindo que este seja, afinal, uma invenção
moderna, contando que o culto à Eostre jamais tenha existido.
Essa polêmica que ainda vigora em torno de Beda e Eostre, - a reivindicação das
origens dessa celebração religiosa e de seus símbolos enquanto pagãos ou cristãos – reforça a
influência e o alcance dos trabalhos do Venerável Beda, que ajudaram a delinear o curso da
história britânica.
1.3. OS CONTOS
virtuosas são recompensados, enquanto falhas no caráter das personagens malvadas são
punidas. As semelhanças acerca do binarismo herói versus vilão, bem versus mal, viabilizam
a familiarização de leitores dos clássicos de Perrault, Grimm e Andersen com os dilemas
trazidos pelos contos de Beedle. As posições das personagens arquetípicas são, muitas vezes,
correspondentes nos textos de ambos os cenários literários - conforme será analisado a seguir,
aplicando-se os pressupostos de Vladimir Propp em sua Morfologia do Conto Maravilhoso.
Contudo, o modo com que certos aspectos do conto maravilhoso são abordados em Rowling,
distingue sua obra das demais conhecidas.
Figuras como Cinderela, Bela Adormecida e Branca de Neve são personagens que
apresentam uma postura passiva e personalidades pouco atuantes sobre os reveses na sua
trajetória. Seus destinos dependem da sorte de serem encontradas por seu príncipe encantado
ou ter seu sapato perdido devolvido e ser reconhecida. Ou seja, elas estão à mercê da própria
sorte, que depende das ações de outrem. Nos Contos de Beedle, o Bardo, por outro lado, não
há lugar para tal posicionamento, já que as personagens têm em mãos a responsabilidade de
agir sobre o próprio destino e responder sobre suas escolhas. No segundo conto do livro, A
Fonte da Sorte, Amata, Asha e Altheda são três bruxas que enfrentam uma jornada em busca
da cura para suas aflições. A ação da vontade do indivíduo sobre o rumo que sua vida tomará
é claramente marcada nessas histórias.
Nesse ponto, é possível, novamente, reaproximar a figura do bardo da figura da mamãe gansa,
e ambos a outras criações similares neste gênero.
Dentre os contos deste livro, portanto, toma-se “O Conto dos Três Irmãos” como
corpus da análise apresentada a seguir. O estudo observa a organização do enredo, bem como
a construção de algumas das representações simbólicas.
21
Este é o único dos cinco contos de Beedle narrado na íntegra na saga Harry Potter.
No vigésimo primeiro capítulo de Harry Potter e as Relíquias da Morte, Ron, Harry e
Hermione se encontram na casa de Xenofílio Lovegood7 para investigar sobre o significado
do símbolo desenhado por Dumbledore em algumas das páginas do livro herdado por
Hermione. O senhor Lovegood, considerado por muitos uma pessoa excêntrica, carrega em
um cordão no seu pescoço um pingente com o mesmo símbolo, e explica tratar-se das
relíquias mortais. Percebendo que os três bruxos não tinham qualquer conhecimento sobre as
histórias em torno de tais objetos mágicos, Xenofílio pretende ler-lhes “O Conto dos Três
Irmãos”, pois afirma estar ali a origem desse mistério. Ron Weasley era o único dos três que
conhecia o conto, visto que, diferente de seus amigos, havia sido criado numa família de
bruxos tradicional, e lembrava de sua mãe ter-lhe contado histórias como essa na sua infância.
Antes que Xenofílio encontrasse sua cópia do conto, no entanto, Hermione sacou seu livro de
dentro da bolsa e leu “O Conto dos Três Irmãos” para todos.
***
Três irmãos viajavam quando encontraram em seu caminho um rio perigoso, onde
muitos viajantes haviam morrido tentando atravessá-lo. Mas os irmãos eram bruxos e usaram
seus poderem para que uma ponte se materializasse até a outra margem. Surge a Morte,
decepcionada por não poder leva-los consigo, e oferece a cada um dos irmãos um prêmio por
terem realizado tamanho feito.
7
É o editor chefe da revista esquerdista local (“O Pasquim”) e pai de Luna Lovegood, amiga do trio.
22
O irmão que ganhou a varinha usou-a para combater um inimigo. Após vangloriar-se
sobre a invulnerabilidade que aquele objeto lhe conferia, foi assassinado enquanto dormia e
sua varinha roubada. O irmão possuidor da pedra trouxe sua amada do mundo dos mortos.
Mas ela é um fantasma, que não está verdadeiramente neste mundo. Para juntar-se a ela, ele se
mata. Não demorou muito, portanto, para que a Morte levasse duas de suas três vítimas que
fora buscar no rio. O terceiro irmão viveu por muito tempo e jamais debochou ou desafiou a
Morte. Quando estava em idade muito avançada, tirou sua capa de invisibilidade e passou-a
para seu filho. Assim, juntou-se à Morte, e ambos partiram pacificamente daquele mundo.
O mais ardiloso dos companheiros sugeriu que um deles deveria ir até a cidade
buscar pão e vinho para passarem o dia guardando o tesouro, já que seria menos arriscado
removê-lo às escondidas quando a noite caísse. Na ausência do mais jovem, um dos homens
sugeriu ao seu comparsa que o ajudasse a assassinar a punhaladas o outro na ocasião do seu
retorno com o alimento. Convenceu-o de que assim dividiriam o ouro ao meio, em vez de três
partes, e ambos sairiam satisfeitos. Enquanto isso, contudo, aquele que havia se afastado até a
cidade já possuía um plano que servisse a seus próprios interesses. Dominado pela ambição,
pensou em envenenar seus companheiros a fim de ficar com toda a fortuna unicamente para
si. Comprou de um boticário local certa quantidade de veneno para pestes e três garrafas. Para
os companheiros, encheu duas garrafas de vinho com veneno, guardando uma garrafa de
vinho limpa para celebrar mais tarde a sua façanha. Como previsto, ao reencontrá-los no
bosque, foi brutalmente assassinado. Para festejarem seu sucesso, os dois rapazes restantes
beberam o vinho de uma das garrafas. Esta continha veneno, que levou-os instantaneamente à
morte.
***
Enquanto no conto de Beedle as três personagens principais são irmãos de sangue,
em Chaucer protagonizam três homens que fazem um pacto de lealdade para se tratarem
como tal. A promessa pressupõe total confiança e cooperação mútua do trio no seu plano de
roubo, porém não as garante. Em ambas histórias os laços fraternos não constituem um
elemento de união efetiva entre essas personagens. Suas ações na trama seguem indiferentes
às premissas dessa relação de parentesco, ou vão de encontro a elas. Enquanto os irmãos
Peverell tomam caminhos divergentes após o encontro com a Morte, os rufiões de Chaucer
24
investem em emboscadas fatais entre si, aniquilando-se e aos seus próprios comparsas. Logo,
apesar de haver uma representação análoga de três irmãos que se encontram em algum
momento trilhando o mesmo caminho, o sentimento de irmandade não é evocado em nenhum
dos dois contos.
irmãos, referindo-se a essas personagens como “o irmão mais velho”, “o segundo irmão” e “o
terceiro e mais moço”.
Por fim, em uma última aproximação, gostaria de salientar o caráter metafórico que
em ambos permeia os encontros entre herói e antagonista. A iminência do fim inescapável é o
tema que é posto à mesa, sendo na forma de uma armadilha, trazida numa trapaça do inimigo
ou imaterializada na própria noção de finitude. A autora aproveita o espaço destinado às
impressões de Dumbledore acerca do conto para esclarecer que a mensagem de Beedle - ou
dela mesma, novamente - “(...) é que, no fim, a Morte virá nos buscar (...)” (ROWLING,
2008b, p. 94), e relativiza a questão com a seguinte declaração do mago:
Qual de nós, porém, teria revelado a sabedoria do terceiro irmão, se lhe fosse
oferecido escolher o melhor presente da Morte? Bruxos e trouxas são igualmente
imbuídos de sede de poder; quantos teriam resistido à “Varinha do Destino”? Que
ser humano, tendo perdido um ente amado, poderia resistir à tentação da Pedra da
Ressurreição? Mesmo eu, Alvo Dumbledore, acharia mais fácil recusar a Capa da
Invisibilidade; o que prova apenas que, esperto como sou, continuo sendo um
bobalhão tão grande quanto os demais. (ROWLING, 2008b, p. 102-103)
terceiro irmão, Ignoto, tem sua forma corpórea ocultada por esse objeto, o que possibilita a
sua fuga e uma vida longa. O manto também constitui um dos atributos dos deuses irlandeses,
sendo referido como manto de invisibilidade e de esquecimento (CHEVALIER e
GHEERBRANT, 2009, p.588). Neste panteão, aparece, como um manto com um capuz, uma
“espécie de carapuça mágica que tornava invisível o personagem” (CHEVALIER e
GHEERBRANT, 2009, p. 185). Esta vestimenta é conhecida como emblema de sabedoria.
Rowling, ao apresentar-nos o terceiro irmão, descreve-o como o mais humilde e sábio dos
Peverell. O manto, enquanto símbolo daquele que o veste, quando entregue a outrem, evoca a
caridade e a entrega de si. Este aspecto está presente no último ato de Ignoto antes de aceitar a
companhia da Morte, quando entrega a capa a seu filho.
A varinha mágica, além de ser indispensável na vida do bruxo, também teve sua
importância para os druidas celtas como símbolo de poder sobre os elementos. Aparece em
diversas cerimônias religiosas como um cetro ou bastão. A Varinha das Varinhas do irmão
Antíoco foi produzida pela Morte de forma a combater todas as outras, conferindo poder
desmedido ao seu mestre. Porém, ela apenas conferia ao seu possuidor o poder, não a
sabedoria, tornando-o alvo das mais terríveis vilanias, o que aumentava o rastro de sangue da
própria trajetória. No universo de Harry Potter, é a varinha que escolhe o bruxo, não o
contrário, e o material de que é feita costuma revelar traços do caráter de quem a possui. No
caso da Varinha do Destino, usou-se madeira de sabugueiro, e seu núcleo contém pelo de rabo
de Trestálio. O sabugueiro é comumente conhecido no mundo bruxo por agir negativamente
sobre as varinhas, seja por atrair o azar, seja por incitar a violência no bruxo que as manuseia.
Já o Trestálio, presente na sua composição, é uma criatura ficcional relacionada ao outro lado
do véu que separa os vivos dos mortos (ROWLING: 2001a, p. 63). Ele é visível somente para
aqueles bruxos que já presenciaram a morte de perto. Portanto, há um aspecto um tanto
obscuro que se instaura a partir da confecção desta varinha.
É provável que a escolha de uma pedra como instrumento para a ressurreição tenha
se dado em favor de uma alusão à ideia da pedra filosofal, gerada pelos estudos de Alquimia.
A pedra em si é um objeto utilizado para representar uma variedade tão abrangente de
símbolos que sua função assume um caráter quase genérico. Sendo assim, para analisar os
eventos que envolveram Cadmo Peverell, faz-se uma aproximação das pedras Filosofal e da
Ressurreição. A primeira é mais conhecida pela sua capacidade de transmutação da matéria,
transformando quaisquer metais em ouro, além de ser usada no preparo do Elixir da Longa
Vida. Cadmo estava de luto pela morte de sua noiva quando a Morte o interceptou. A tentação
27
A questão da existência dos três irmãos do conto está intimamente vinculada à crença
na existência das próprias relíquias mortais. Segundo a autora, a população mágica reage à
história de duas maneiras: há aqueles que encaram “O Conto dos Três Irmãos” como uma
história para dormir, contada e repetida para fins de simples entretenimento, sem dar atenção
a maiores questionamentos dos que a lição do enredo oferece; e há os que tomam o conteúdo
do conto enquanto fato histórico, traduzindo as suas metáforas de modo a aproximá-las da
realidade que conhecem.
chegando às mãos de Tiago Potter, que deixou-a para Harry, seu filho. Quanto às duas outras
relíquias menos ainda se sabe. A Pedra da Ressurreição, depois de um período de localização
desconhecida, também passou pelas mãos dos descendentes dos Peverell. Foi posteriormente
tomada por Voldemort, que a transformou em uma horcrux8. Este foi encontrado por
Dumbledore, que deixou-o de herança para Harry, dentro de um pomo de ouro. A Varinha do
Destino, por sua vez, foi a primeira a deixar a linhagem Peverell, pois era contestada por
qualquer bruxo suficientemente ganancioso e traiçoeiro. Para tornar-se mestre dessa relíquia,
o bruxo teria que aniquilar (ou desarmar) seu atual possuidor. Assim, o mestre dessa varinha
era, na maioria das vezes, um assassino, que completaria esse ciclo de sangue na ocasião de
seu próprio assassinato.
Enquanto Beedle prega sobre uma atitude humilde diante da morte, Xenofílio
Lovegood e outros pregam que o conto revela a possibilidade de derrota-la, tornando-se seu
senhor. O bruxo que estivesse em poder das três relíquias mencionadas alcançaria a
imortalidade. Sob a Capa da Invisibilidade ele andaria por qualquer caminho escondido da
Morte e de qualquer inimigo; com a Varinha das Varinhas em mãos ele jamais seria derrotado
em combate, decretando a morte de outros e; com a Pedra da Ressurreição, controlaria a
fronteira entre o mundo dos vivos e dos mortos, manipulando sua condição de existência. Esta
foi, também, a busca final de Lorde Voldemort, maior antagonista da saga: reunir as relíquias
da morte e tornar-se o feiticeiro mais poderoso que já existiu.
Tal teoria conferiu a “O Conto dos Três Irmãos” destaque em relação aos demais de
Os Contos de Beedle, o Bardo, pois seu enredo justifica e impulsiona ações de personagens
protagonistas em momentos-chaves na saga.
8
Uma horcrux é um feitiço proibido, possível de ser realizado perante o assassinato de alguém. Nessa ocasião, o
bruxo transfere um fragmento de sua alma para um objeto, impedindo a sua morte, já que permanecerá
parcialmente preso à Terra. Voldemort produziu um total de sete horcruxes.
29
Esse estudo foi primeiramente publicado em 1928, ocasião em que foi bem acolhido
por folcloristas, etnógrafos e estudiosos da literatura, ao mesmo tempo em que foi taxado de
formalista e desvalorizado por conta dessas acusações. Lévi-Strauss foi um estruturalista que
reforçou a crítica sobre o trabalho de Propp. Sem negar a importância da pesquisa do teórico
russo, ele tenta deslegitimar os métodos aplicados sobre o corpus em Morfologia. Suas
declarações desfavoráveis à abordagem de Propp foram rebatidas pelo russo, que afirma ter o
30
teórico estruturalista se precipitado em tirar conclusões acerca do seu estudo do conto sem
levar em conta a segunda obra sobre este tema, intitulado As Raízes Históricas do Conto
Maravilhoso (1997). Esta, conjugada à Morfologia, completa a visão proppiana sobre os
contos de fadas. Por meio dessa união, como Lévi-Strauss acusa-o de não fazê-lo, Propp
agrega dados da etnografia a uma análise morfológica nos estudos do gênero.
O conteúdo destas tarefas pode ser diferente e variado, e representa algo mutável;
mas a imposição da tarefa como tal é um elemento estável. Denominei estes
elementos estáveis funções dos personagens. O objetivo da pesquisa consistia em
estabelecer quais as funções que aparecem no conto de magia, em determinar se são
ou não em número limitado, e em que ordem se sucedem. Os resultados desse estudo
constituem o conteúdo do meu livro. As funções resultaram pouco numerosas, suas
formas múltiplas, sua sucessão sempre idêntica, isto é, obteve-se um quadro de
surpreendente regularidade. (PROPP, 1984, p. 215).
Conclui, por fim, que todos os contos de magia são monotípicos, já que suas
construções derivam de uma base em comum. Tendo em vista essa premissa, uma análise de
31
“O Conto dos Três Irmãos” será realizada a fim de que sejam identificadas funções análogas
às de Propp, em uma composição que obedeça aos critérios proppianos.
Por fim, um último aspecto sobre este instrumento de análise deve ser esclarecido.
Estão sombreadas apenas as funções que foram encontradas na estrutura de “O Conto dos
Três Irmãos” e que, portanto, serão alvo de uma investigação mais aprofundada. Por meio da
consulta a esta tabela delineou-se, sistematicamente, a configuração das sequências do conto,
bem como sua equação geral.
32
Partindo do conhecimento das trinta e uma funções das personagens que poderão
apresentar-se na composição de um conto maravilhoso, assume-se a possibilidade de
desmembrar qualquer texto segundo suas propriedades constituintes. A realização de tal
exercício, neste trabalho, se deu pela aplicação das propriedades expostas na tabela referida na
seção anterior, ao corpus, que compreende “O Conto dos Três Irmãos”. Antes de entrarmos na
decomposição do texto em partes que expressam os elementos funcionais, é imprescindível
que se defina o próprio objeto da análise. Para fins de manutenção da coerência interna deste
estudo, consideremos o conto tal qual Propp o preconiza.
Era uma vez três irmãos¹ que estavam 1 – Situação inicial (α).
viajando por uma estrada deserta e 2 – Rudimento de afastamento (β) não
tortuosa ao anoitecer...² especificado.
Depois de algum tempo, os irmãos
3 – Proibição subentendida (γ¹). Introduz
chegaram a um rio fundo demais para
uma adversidade ou obstáculo que será
vadear e perigoso demais para
superado nas ações seguintes.
atravessar a nado.³
Os irmãos, porém, eram versados em
magia, então simplesmente agitaram as
4 – Transgressão (δ¹) que implica e
mãos e fizeram aparecer uma ponte
antecede a entrada do antagonista.
sobre as águas traiçoeiras.4 Já estavam
5 – Entrada do antagonista, na figura de
na metade da travessia quando viram o
Grim Reaper.
caminho bloqueado por um vulto
encapuzado. 5
6 – Motivação das futuras ações do
E a Morte falou. Estava zangada por antagonista. Esse trecho também justifica
terem lhe roubado três vítimas, porque o caráter de proibição que é omitido,
o normal era os viajantes se afogarem porém, subentendido na função δ¹.
no rio.6 Mas a Morte foi astuta.7 Fingiu 7 – O antagonista pretende ludibriar suas
cumprimentar os três irmãos por sua vítimas a fim de causar-lhes dano, neste
magia, e disse que cada um ganhara caso, a morte, apoderando-se delas. Ardil
um prêmio por ter sido inteligente o (η²).
bastante para lhe escapar.8 8 – O antagonista-doador saúda e
interroga os heróis (D²).
Então, o irmão mais velho, que era um
homem combativo, pediu a varinha
mais poderosa que existisse: uma
varinha que sempre vencesse os duelos
para seu dono, uma varinha digna de
um bruxo que derrotara a Morte!9 Ela
atravessou a ponte e se dirigiu a um
vetusto sabugueiro na margem do rio, Triplicação. Os elementos D²-E² pareados
fabricou um varinha de um galho da e o fornecimento do meio mágico F¹3
árvore e entregou-a ao irmão mais ocorrem três vezes, consecutivamente,
velho.10 uma para cada herói.
Então, o segundo irmão, que era um 9 – Cada herói reage à saudação da
homem arrogante, resolveu humilhar Morte (E²), pedindo um objeto mágico
ainda mais a Morte e pediu o poder de que os auxiliará na sua busca ou fuga.
restituir a vida aos que ela levara.9 10 – O meio mágico é fabricado pelo
Então a Morte apanhou uma pedra da doador-antagonista e passado diretamente
margem do rio e entregou-a ao às mãos dos heróis.
segundo irmão, dizendo-lhe que a Fornecimento/recepção do meio mágico
pedra tinha o poder de ressuscitar os (F¹3).
mortos.10
Então, a Morte perguntou ao terceiro e
mais moço dos irmãos o que queria. O
mais moço era o mais humilde e
também o mais sábio dos irmãos, e não
confiou na Morte. Pediu, então, algo
que lhe permitisse sair daquele lugar
34
ela toma para si a primeira vida. A vitória do antagonista sobre o herói, que é eliminado sem
combate prévio, é representada, na equação, por J5contr.
O terceiro e mais novo dos irmãos não era tolo ou arrogante. Ele partiu numa fuga
(↓), para que a Morte não o alcançasse. Sua carência consistia em uma maneira de fugir da
Morte sem ser perseguido. Ela é representada por a6, que indica várias outras formas de
carência. Apesar de ser fornecido ao herói um objeto mágico, ele não pediu por um meio
mágico, especificamente. Por isso, sua carência não é representada por a² (carência de um
objeto magico indispensável), como no caso do primeiro irmão que pediu uma varinha mágica
invencível. A Morte se vê obrigada a entregar ao último irmão sua Capa de Invisibilidade, e
não se mostra contente com a sabedoria demonstrada no pedido desse herói. Sua intenção era
de recuperar as chances de tomar a vida dos três irmãos o mais depressa possível. Não fora
difícil vitimar os dois primeiros. Porém, sem poder enxergar por onde o irmão mais novo
andava, seria impossível armar-lhe uma cilada. A Morte não tinha outra possibilidade senão
tentar persegui-lo a fim de matá-lo (Pr6). Procurou-o em vão por longos anos, enquanto ele
sob sua capa mágica, se escondia durante a fuga (Rs4). O herói, a certa altura de sua vida,
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise guiada pelo modelo de Propp foca no que acredito ser um dos modelos de
representação de contos de fadas existentes até o momento. Pois esse é um gênero bastante
produtivo. Na obra Os Contos de Beedle, o Bardo, sugere-se que suas histórias possuam
origens remotas, praticamente impossíveis de serem datadas, assim como o corpus de
Morfologia. Por esse motivo, considero que a aplicação de uma teoria centrada na análise dos
componentes primários da narrativa seja conveniente. Não descarto, em qualquer hipótese, a
viabilidade do estudo desse mesmo teórico sobre um corpus menos vinculado à concepção
canônica de conto de fadas (contida no binômio Era uma vez.../felizes para sempre). Pelo
contrário, defendo que as contribuições de Propp para o estudo das narrativas folclóricas
podem ser revalidadas em produções atuais. Todavia, como lembra o autor em sua resposta à
crítica de Lévi-Strauss, anacronismos devem ser evitados. A análise do texto tem de vir
engajada em um viés diacrônico, ou seja, sem ignorar os aspectos históricos em que a obra
emerge.
nesse estilo e detectadas técnicas que possam divergir desse modelo, apontando para
inovações do autor.
Os formalistas nos lembram de valorizar o texto literário por meio de uma crítica
centrada na técnica e desatrelada do biografismo. Para que isso ocorra, sugere-se que a
matéria textual seja suficiente para que se reconheçam os méritos do autor.
O fenômeno Harry Potter – que marcou uma geração de jovens leitores e despertou o
interesse pela leitura em tantas outras crianças – gerou um mercado para o consumo de uma
imensa variedade de produtos da saga, com um alcance tão grande quanto o de suas histórias.
Contudo, inicialmente, o bruxo se tornou conhecido graças à propaganda dos próprios
leitores. Foram poucos os investimentos sobre a obra comparados à dimensão que tem hoje. A
divulgação do potencial do trabalho de Rowling atingiu proporções não esperadas, pois
conjugada à qualidade de sua escrita estava um conteúdo ficcional à altura do imaginário
infantil. Além disso, traz temas vivenciados pela criança contemporânea, sem cair “numa das
ciladas mais comuns, a de tratar as crianças como menos exigentes em termos de literatura
(...)” (CORSO, 2006).
Vista a origem pouco ambiciosa da obra, e considerando que J.K. Rowling era um
nome desconhecido no cenário literário até então, o que mais sustentaria a razão do seu êxito
se não seu talento e domínio sobre a técnica? No que concerne aos livros nascidos da saga,
como no caso de Os Contos de Beedle, o Bardo, Rowling demonstra a mesma competência na
produção de outros gêneros.
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REFERÊNCIAS
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. Coimbra: Almedina, 1982.
ANDERSEN, Hans Christian. Contos de Andersen. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
BEDE, Saint. The Ecclesiastical History of the English People. Tradução de: Bertram
Colgrave. Oxford: Oxford University Press, 1999a.
_________. Bede, The Reckoning of Time. Tradução de: Faith Wallis. Liverpool: Liverpool
University Press, 1999b.
CORSO, Diana Lichtenstein; CORSO, Mário. Fadas no Divã. Porto Alegre: Artmed, 2006.
GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm. Contos de Fadas. Belo Horizonte: Villa Rica Editoras
Reunidas, 1994.
HARRY Potter e as Relíquias da Morte: Parte 1. Direção de David Yates. Produção de David
Barron, David Heyman, J.K. Rowling e Lionel Wigram. UK: Warner Bros, 2010. DVD.
LEWIS, C. S. As crônicas de Nárnia – Volume Único. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
MEDEIROS, Constantino Luz de. As Faces de Janus: um olhar sobre a narrativa moldura
como procedimento literário. Revista Palimpsesto, n. 14, ano 11. Universidade Estadual do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2012.
______________. Animais Fantásticos & Onde Habitam. Tradução de Lia Wyler. Rio de
Janeiro: Rocco, 2001a.
______________. Quadribol Através dos Séculos. Tradução de Lia Wyler. Rio de Janeiro:
Rocco, 2001b.
______________. Harry Potter e a Pedra Filosofal. Tradução de Lia Wyler. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000.
______________. Harry Potter e o Cálice de Fogo. Tradução de Lia Wyler. Rio de Janeiro:
Rocco, 2001.
APÊNDICE A
Base morfológica dos contos de magia (segundo V. Propp).
ANEXO 1
“Senhores,” – começou ele, – “quando prego nas igrejas, minha única preocupação é
empregar linguagem elevada e falar com voz clara e sonora como um sino, pois sei de cor
tudo o que digo. Meu tema é, e sempre foi, apenas um: Radix malorum est Cupiditas.
“Em primeiro lugar, declaro de onde venho; depois, apresento, uma por uma, todas
as minhas bulas. Antes de qualquer coisa, porém, mostro o selo papal em minha licença, para
garantir-me a integridade física e para que nenhum petulante, padre ou noviço, venha
perturbar me no santo trabalho de Cristo. Somente aí começo a desfiar minhas histórias,
reforçadas com mais bulas de papas e cardeais, de bispos e patriarcas, e entremeadas de
algumas poucas palavras em latim para temperar a minha prédica e estimular ainda mais a
devoção.
“Finalmente, exponho as minhas longas caixas de cristal abarrotadas de trapos e de
ossos... São relíquias, percebem logo os fiéis. Entre elas mostro, revestida de latão, uma
omoplata de carneiro que pertencera a um santo patriarca hebreu. Boa gente, digo, atentem
para as minhas palavras: se alguma vaca, ou bezerro, ou ovelha, ou touro inchar, por ter
comido uma cobra ou dela ter levado uma picada, mergulhem este osso na água de uma
cisterna e com essa água lavem a língua do animal, e ele ficará curado. E não é só, pois a
ovelha que beber dessa mesma água estará livre de erupções, de morrinha e de qualquer outro
mal. Prestem atenção também ao que agora vou dizer: se o bom homem, dono dos animais
doentes, toda manhã, antes que o galo cante, tomar em jejum um gole dessa água, irá então,
segundo o testemunho que legou a nossos pais aquele mesmo santo hebreu, multiplicar os
seus bens e o seu rebanho.
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sempre foi, Radix malorum est Cupiditas. Assim sendo, prego contra os mesmos pecados que
pratico, a saber, a ambição e a avareza. No entanto, se sou culpado desses vícios, consigo
fazer que muitos os repudiem e se arrependam sinceramente. Se bem que não seja esse o meu
propósito. Na verdade, os próprios sermões que profiro devem-se à cobiça. Mas creio que
disso já falei o suficiente.
“A seguir, ilustro a pregação com muitos exemplos de histórias antigas, de épocas
bem remotas, porque a gente simples gosta de histórias antigas, que podem ser repetidas e
guardadas na memória. Afinal, o que mais querem? Acham que, enquanto posso pregar e
ganhar ouro e prata no meu ministério, vou viver voluntariamente na pobreza? Isso não, meus
amigos; está aí uma coisa que nunca me passou pela cabeça! Enquanto eu for capaz de ensinar
e de esmolar por este mundo, não tenho pretensão alguma de fazer serviços manuais, tecendo
cestas de vime para ganhar a vida. Não tem sentido mendigar para nada. Não, não vou imitar
os apóstolos! Quero dinheiro, trigo, queijo e lãs, mesmo que os obtenha às custas do mais
pobre pajem ou da viúva mais pobre de uma aldeia, com seus filhinhos a morrer de fome.
Não, o que eu quero é o néctar do vinho e uma bela garota em cada cidade.
“Mas, senhores, vamos ao ponto: é desejo de todos que eu conte uma história. Agora
que já bebi uns bons goles desta cerveja concentrada, por Deus, espero poder narrar-lhes algo
que seja deveras de seu agrado. Pois, não obstante eu seja um pecador, tenciono oferecer-lhes
um conto moral que costumo pregar quando à cata de donativos. Agora façam silêncio; vou
começar a história.”
Aqui principia o Conto do Vendedor de Indulgências.
sem ter consciência do seu ato antinatural: de tão bêbado, nem sabia o que estava fazendo.
Herodes, por sua vez (e quem quiser pode verificar isso no Evangelho), quando, à mesa do
banquete, se achava empanturrado de vinho, deu a ordem para que matassem o inocente João
Batista.
Sêneca nos oferece, a esse respeito, um sábio pensamento: diz ele que não vê
qualquer diferença entre o homem que perdeu o juízo e o que está bêbado, exceto que a
loucura, ao castigar sua vítima, dura mais tempo que a embriaguez. Oh gula, tão cheia de
maldade! Oh causa primeira de nossa Queda! Oh origem de nossa perdição, até que Cristo nos
redimiu com seu sangue! Vejam, para sermos breves, que alto preço tivemos que pagar por
esse vício maldito: o mundo inteiro foi corrompido por causa da gula. Não duvidem: foi
devido a esse pecado que nosso pai Adão e sua mulher foram expulsos do Paraíso para uma
vida de trabalho e sofrimento. Enquanto Adão jejuava (segundo o que tenho lido),
permaneceu ele no reino do Éden; mas, assim que comeu do fruto proibido, foi condenado a
viver de suores e prantos. Oh gula, é mais que justo o nosso lamento!
Oh, soubéssemos quantas doenças decorrem dos excessos e das comilanças, por certo
seríamos mais comedidos à mesa, em nossa dieta! Ai, a garganta breve, a doce boca... são elas
que fazem que os homens trabalhem, leste e oeste e norte e sul, na terra, no ar, na água,
unicamente para a obtenção de comidas refinadas e bebidas para um glutão. São Paulo
abordou muito bem o tema, declarando: “Os alimentos são para o estômago, e o estômago
para os alimentos; mas Deus destruirá tanto estes como aquele.” Ai, por minha fé, é nojenta a
descrição do ato, mas ainda mais nojento é o próprio ato, pois, devido aos malditos excessos,
quando alguém se enche de vinho branco e tinto, simplesmente transforma sua garganta numa
privada.
Diz o Apóstolo a chorar, dominado pela compaixão: “Pois muitos andam entre nós,
dos quais repetidas vezes eu vos dizia e agora vos digo até chorando, que são inimigos da cruz
de Cristo: o destino deles é a perdição, o deus deles é o ventre.” Oh ventre, oh barriga, oh saco
fedorento, cheio de estéreo e podridão, e com ruídos indecentes em cada extremidade!
Quantos trabalhos e gastos para satisfazer a você! Como os cozinheiros amassam e coam e
moem, mudando a substância em acidente, apenas para que sua fome voraz seja saciada! Dos
ossos duros extraem o tutano, pois não se pode jogar fora nada que passe macia e
agradavelmente por sua goela. Com especiarias de folhas e cascas e raízes preparam molhos
deliciosos para aguçarem ainda mais os apetites. Mas estejam certos de que aquele que
procura tais prazeres já morreu, vivendo apenas nesses vícios.
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pactuado com jogadores. Se meus patrícios o desejarem, que enviem outros legados; quanto a
mim, prefiro morrer a aliar-me com tal gente. Mas sei que minha cidade, tão gloriosa e digna,
nem com minha anuência nem com minhas tratativas aceitaria um pacto com esses viciados.”
Assim se manifestou aquele sábio filósofo.
E não esqueçam o Rei Demétrio, a quem o Rei dos Partas mandou de presente, –
pelo que afirma o livro, – um par de dados de ouro, mostrando assim o desprezo que votava
àquele seu hábito de jogar, um vício que tanto manchou o valor e a fama de sua glória e de
seu nome. Muitas outras distrações honestas têm os nobres à sua disposição para passarem o
tempo.
Agora eu gostaria de dizer uma ou duas palavrinhas a respeito dos juramentos,
verdadeiros ou falsos, à luz do que ensinam velhos livros.
Se jurar é coisa abominável, jurar falso é mais repreensível ainda. O Altíssimo
proibiu-nos de jurar... vejam em São Mateus. Especialmente sobre os juramentos, contudo, eis
o que disse o profeta Jeremias: “Farás juramentos verdadeiros, sem mentir; e jurarás com
retidão e eqüidade, pois o juramento leviano é danação.”
Olhem e vejam o que determina o segundo mandamento da primeira Tábua do
honorável Decálogo do Senhor: “Não usarás meu santo nome em vão.” Eis aí como, antes
mesmo do homicídio e de muitos outros crimes amaldiçoados, proibiu Ele os juramentos. E,
pela ordem, digo que assim deve ser... Quem entende a razão de cada mandamento de Deus,
sabe muito bem o motivo porque este é o selo. Por isso eu aviso, com toda a franqueza, que o
castigo não passará ao largo da casa de quem abusa dos juramentos. “Pelo precioso coração
do Senhor!” e “Por seus cravos!” e “Pelo sangue de Cristo que está na abadia de Hailes*, meu
número de sorte é sete, os de vocês são cinco e três!” “Pelos braços de Deus, se você fizer
trapaça no jogo, este punhal lhe atravessa o coração!” São estes os frutos dos dados, daqueles
dois ossinhos polidos de cadela: o perjúrio, a cólera, a mentira, o assassinato. Por isso, pelo
amor de Cristo que morreu por nós, não façam mais juramentos, não importa se falsos ou
verdadeiros. Mas agora, senhores, vou continuar a minha história.
Aqueles três rufiões de que eu falava, antes mesmo que a hora prima soasse em
qualquer campanário, já se achavam sentados numa taverna a beber. Foi então que ouviram o
dobre fúnebre de um sino por um corpo qualquer que estava sendo levado à sepultura. Um
deles chamou imediatamente o seu criado e ordenou-lhe: “Depressa, vá correndo perguntar de
quem é o corpo que está passando aí em frente, e venha dizer-me o nome direitinho.”
“Senhor”, respondeu-lhe o garoto, “não é preciso. Duas horas antes que chegassem,
já me inteirara de tudo. Trata-se de um velho companheiro seu, que foi morto
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inesperadamente ontem à noite, quando bebia vinho sentado num banco. Entrou lá uma tal de
Morte, uma ladra sorrateira que anda matando todas as pessoas do lugar, e ela, com sua lança,
partiu-lhe o coração em dois e foi-se embora sem dizer palavra. Só na última epidemia de
peste levou por volta de mil. Meu amo, se o senhor tem intenção de enfrentá-la, é melhor
tomar muito cuidado com essa adversária, porque ela sempre ataca de surpresa. Foi o que
minha mãe me disse. E isso é tudo o que sei.”
“Por Santa Maria”, exclamou o taverneiro, “o rapazinho tem razão, pois num grande
povoado, a pouco mais de uma milha daqui, ela matou este ano muitos homens e mulheres,
crianças, servos da gleba e pajens. Acho que deve estar morando por lá. Mas quem não
desejar ser vergonhosamente batido por ela, que fique de sobreaviso.”
“Braços de Deus”, gritou o primeiro rufião, “será que é tão perigoso assim um
encontro com a Morte? Pois juro, pelos valiosos ossos do Senhor, que vou procurá-la por
todas as estradas e trilhas. Escutem, amigos: nós três pensamos do mesmo modo. Vamos
então erguer os braços e jurar que sempre seremos irmãos; depois, iremos juntos liquidar
aquela falsa traidora. Pela dignidade do Senhor, antes mesmo que anoiteça, teremos matado
aquela que a tantos matou.”
A seguir, os três juraram solenemente que viveriam e morreriam juntos, um pelo
outro, como verdadeiros irmãos de sangue. E, completamente ébrios em sua ira, levantaram-
se e dirigiram-se para o povoado de que falara o taverneiro. E, no trajeto, lançavam pragas e
juras horríveis, espedaçando o abençoado corpo de Cristo e prometendo, caso a encontrassem,
que a Morte morreria.
Nem bem haviam percorrido meia milha quando, no momento em que iam pular uma
cerca, avistaram um homem muito velho e maltrapilho. Humildemente o ancião
cumprimentou-os com estas palavras: “Senhores, que Deus os proteja.”
A isso, entretanto, retrucou o mais orgulhoso dos três rufiões: “Ora, camponês
imbecil, por que você anda desse jeito, todo embrulhado e só com o rosto de fora? E por que
continua vivo nessa idade, depois que há muito a sua hora já passou?”
Fixando os olhos no semblante do outro, disse o velhinho: “Porque, apesar de ter
viajado a pé até a Índia, em nenhum lugar pude encontrar até agora, na cidades e nas vilas,
quem quisesse trocar sua juventude pela minha velhice. Por isso, enquanto Deus o desejar,
sigo a viver com minha idade.
“Ai, nem a Morte aceita a minha vida. Diante disso, nada me resta fazer, senão andar
por aí como um escravo atormentado, batendo a todo instante com meu cajado no chão (que é
a entrada da casa de minha mãe) e gritando: “Oh mãe querida, deixe-me entrar! Olhe como
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estou definhando, nas carnes, nos ossos, na pele. Ai de mim, quando meus ossos terão
descanso? Mãe, quero dar-lhe todo o baú de roupas que guardo há muito tempo no meu
quarto, e receber em troca apenas uma mortalha para me abrigar.” Ela, porém, nem assim me
concede essa graça, e meu rosto vai ficando cada vez mais pálido e encovado.
“Quanto aos senhores, devo lembrar-lhes que não é educado dirigirem-se a um velho
de modo tão grosseiro, a menos que ele os tivesse ofendido com palavras ou atos. Está dito
nas Santas Escrituras: ‘Diante das cãs te levantarás, e honrarás a presença do ancião’. Por
isso, aconselho-os a não maltratarem os idosos, se não desejam ser maltratados em sua própria
velhice, caso cheguem até lá. E, a pé ou a cavalo, que Deus sempre os acompanhe. Agora
preciso ir para onde tenho que ir.”
“Não, velhaco, por Deus, isso é que não”, berrou o jogador que antes lhe falara. “Não
pense que vai livrar-se de nós tão facilmente, por São João! Você mencionou aquela traidora,
a Morte, que anda matando todos os nossos amigos por aqui. Sei que você é seu espião. Por
isso, diga-nos logo onde ela está, ou terá muito de que se arrepender, juro por Deus e pelo
Santo Sacramento! É evidente que você está mancomunado com ela para matar todos os
jovens como nós, ladrão infame.”
“Bem, senhores”, retrucou o velho, “se fazem tanta questão de conhecer a Morte,
tomem aquela senda tortuosa, pois, por minha fé, não faz, muito que a deixei naquele bosque,
debaixo de uma árvore. E lá deve estar ainda, porque não se assusta com as suas ameaças.
Estão vendo aquele carvalho? É lá mesmo que irão encontrá-la. Espero que Cristo, o redentor
da humanidade, venha corrigi-los e salvá-los.” Assim falou o velho.
Os três correram sem demora em direção à árvore e, lá chegando, depararam com
uma pilha de luzentes e redondinhos florins de ouro, cerca de oito alqueires de moedas recém
cunhadas... Esqueceram-se por completo da Morte, deslumbrados por aquela visão. E,
fascinados pela beleza e pelo brilho dos florins, sentaram-se os três ao redor do valioso
tesouro. O pior deles foi quem falou primeiro:
“Irmãos, prestem muita atenção ao que vou dizer, porque, se é fato que gosto de
estripulias e de jogos, também tenho a cabeça no lugar. A Fortuna nos deu este tesouro para
passarmos o resto da vida na diversão e na alegria, visto que vai fácil aquilo que vem fácil.
Pela preciosa dignidade do Senhor, quem diria que hoje iríamos receber tamanha graça? No
entanto, a nossa felicidade só será completa quando pudermos levar este ouro para a minha
casa... ou para a de vocês, não importa, porque este ouro todo é nosso. A verdade, porém, é
que não podemos fazer isso durante o dia: surpreendidos, seríamos acusados de ladrões e
enforcados por estarmos com o que é nosso. Este tesouro tem que ser removido à noite, às
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escondidas e com o máximo cuidado. Por isso, acho melhor tirarmos a sorte para vermos em
qual de nós três recai; e o sorteado, de bom grado, irá correndo à cidade, o mais depressa que
puder, e, sem dizer nada a ninguém, comprará pão é vinho para nós. Enquanto isso, os outros
dois ficarão discretamente por aqui, tomando conta do tesouro. E, se não houver atrasos, ao
cair da noite levaremos o achado para o lugar que, de comum acordo, nos parecer melhor.”
Assim dizendo, estendeu ele o punho fechado sobre três palitos e pediu aos outros que
tirassem a sorte e mostrassem o resultado. O escolhido foi o mais jovem, que imediatamente
se dirigiu para a cidade. Assim que ele virou as costas, um dos que ficaram disse ao
companheiro: “Você sabe que jurei ser seu irmão, e que, por isso mesmo, farei o que puder
para ajudá-lo a progredir na vida. Nosso companheiro se foi; e aqui está todo este ouro, esta
pilha enorme, que tem que ser repartida entre nós três. Que tal? Você não acha que eu já lhe
estaria prestando um favor se lhe mostrasse um jeito de dividirmos tudo isso apenas entre nós
dois?”
Respondeu o outro: “Não consigo imaginar como: ele sabe que o ouro ficou conosco.
O que poderíamos fazer? E o que diríamos a ele?”
“Você jura guardar segredo?” perguntou o primeiro vilão. “Se jurar, vou dizer-lhe
em poucas palavras como fazer as coisas e resolver o problema.”
“Claro que sim”, garantiu o outro; “eu não iria trair a sua confiança.”
“Pois muito bem”, prosseguiu o primeiro. “Você está vendo que somos dois, e sabe
que dois podem mais do que um. Assim que ele voltar, trate de levantar-se e de aproximar-se
dele como que a brincar; aproveitando-me de sua distração com essa luta de faz-de-conta,
venho por trás e dou-lhe umas punhaladas nas costas, nos dois lados, enquanto você faz o
mesmo pela frente com a sua adaga. Aí, meu caro amigo, todo este ouro será repartido
somente entre nós dois, e poderemos realizar todas as nossas ambições e jogar dados à
vontade.” E assim os dois velhacos concordaram em matar o terceiro, tal como relatei.
Enquanto isso, o mais jovem, a caminho da cidade, levava na lembrança a beleza
daqueles florins novinhos e brilhantes, que passavam e repassavam em sua mente. “Oh
Senhor,” pensou, “se eu pudesse ter todo aquele tesouro só para mim, não haveria ninguém
mais feliz do que eu sob o trono de Deus.” Por fim o demônio, o nosso inimigo, inculcou-lhe
a idéia de comprar veneno para assassinar os seus dois companheiros... visto que, devido a seu
modo de vida, o diabo obteve permissão para arruiná-lo. Conseqüentemente, acabou ele
tomando a decisão de liquidar a ambos, e sem arrependimentos.
Com isso em mente, estugou o passo em direção à cidade, à loja de um boticário,
onde pediu um veneno para matar os ratos que, contou ele, infestavam sua casa, além de uma
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doninha que havia pilhado os frangos de seu quintal. Se possível, desejava agora vingar-se
daqueles bichos que, durante a noite, lhe davam tantos prejuízos.
O boticário assegurou-lhe: “O senhor vai levar uma coisa que, Deus guarde minha
alma... Não há no mundo criatura que coma ou beba deste composto, – nem que seja uma
quantia do tamanho de um grão de trigo, – e que não perca num instante a vida. Morre
mesmo; não chega a caminhar nem uma milha, tão forte e violento é este veneno.” O
amaldiçoado tomou nas mãos a caixinha com a droga e prontamente correu para uma rua
próxima, onde pediu a um homem que lhe emprestasse três garrafas. Em duas delas despejou
veneno, conservando limpa para si a terceira, pois esperava bebericar um pouco enquanto
trabalhava a noite inteira para retirar sozinho o ouro do local. Em seguida, esse rufião
amaldiçoado encheu de vinho as três garrafas e voltou para junto de seus camaradas.
Para que alongar o sermão? Pois assim como os outros dois haviam planejado a sua
morte, assim o mataram, sem tardança. Feito isso, disse um deles: “Agora vamos sentar-nos
um pouco e beber e festejar; depois enterraremos o corpo.” E, assim fazendo, aconteceu que,
por acaso, ele apanhou uma das garrafas envenenadas, sorveu uns goles e passou o resto para
o companheiro. Dentro de pouco tempo, ambos estavam mortos.
Tenho certeza de que Avicena* jamais descreveu, em qualquer capítulo ou em
qualquer Cânone, tantos sintomas espantosos de envenenamento quantos se manifestaram
naqueles dois infelizes até que entregassem as almas. E assim acabaram-se as vidas daqueles
dois homicidas, e também a de seu envenenador traiçoeiro.
Oh pecado maldito de completa danação! Oh traidores assassinos, oh maldade!
Indecente e perjuro blasfemador de Cristo, nascido do vício e da soberba! Ai, humanidade,
como pode você ser tão falsa e tão cruel para com o Criador que a fez, e para com o sangue do
precioso coração que a redimiu?
E agora, boa gente, que Deus perdoe as faltas de vocês. Mas acautelem-se todos
contra o pecado da avareza: minhas santas indulgências poderão salvá-los... Basta que
ofereçam alguns “nobres” ou libras, ou broches de prata, colheres, anéis. Venham inclinar-se
diante desta bula sagrada! Aproximem-se, minhas senhoras, ofereçam um pouco de sua lã!
Seus nomes serão incluídos aqui, na minha relação, e suas almas entrarão na glória do
Paraíso. Com meus elevados poderes, concedo a minha absolvição a todos, – todos os que
fizerem donativos, deixando-os puros e imaculados como na hora em que nasceram, senhores,
como prego. E que Jesus Cristo, o sanguessuga espiritual que cura as nossas almas, lhes
garanta o seu perdão. E asseguro-lhes que isto é a melhor coisa que podem receber.
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Epílogo
vamos, dê um beijo no Vendedor. Homem dos Perdões, aproxime-se, por favor; e vamos
todos tornar a rir e a divertir-nos.” Eles então se beijaram, e nós voltamos a cavalgar.