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O Conto Dos Três Irmãos:: Grazielly Benvegnú Menezes

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GRAZIELLY BENVEGNÚ MENEZES

O CONTO DOS TRÊS IRMÃOS:


DA MAGIA À MORFOLOGIA

PORTO ALEGRE
2014
1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL


INSTITUTO DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS MODERNAS

O CONTO DOS TRÊS IRMÃOS:


DA MAGIA À MORFOLOGIA

Monografia submetida à Universidade Federal do Rio Grande do Sul como


requisito parcial para obtenção do grau de Licenciado em Letras

Graduanda: Grazielly Benvegnú Menezes


Orientadora: Sandra Sirangelo Maggio

Porto Alegre
Dezembro, 2014
2

FICHA CATALOGRÁFICA

MENEZES, Grazielly Benvegnú


O Conto dos Três Irmãos: da Magia à Morfologia
Grazielly Benvegnú Menezes
Porto Alegre: UFRGS, Instituto de Letras, 2014. 65 p.

Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso)


Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

1. J. K. Rowling. 2. “O Conto dos Três Irmãos”. 3. Vladimir Propp. 4. Contos de


fadas.
3

AGRADECIMENTOS

A minha orientadora, Sandra Sirangelo Maggio, pela dedicação, carinho e incentivo


constantes, que tornaram este trabalho possível.
A minha família, pelo apoio incondicional.
A todos que, mesmo indiretamente, contribuíram para a minha formação e conclusão do
curso.
4

“Of course it is happening inside your head, Harry,


but why on earth should that mean that it is not
real?”
J. K. Rowling, Harry Potter and the Deathly
Hallows
5

RESUMO

O objetivo deste trabalho é examinar os componentes básicos no enredo de “O Conto


dos Três Irmãos”, de J.K. Rowling, tendo em vista os pressupostos desenvolvidos por
Vladimir Propp em seu famoso estudo intitulado Morfologia do Conto Maravilhoso. Para
tanto, serão apresentadas possíveis apropriações das funções das personagens e suas esferas
de ação definidas no trabalho do teórico russo, a fim de elaborar uma síntese das sequências
narrativas do conto em questão. Inicialmente, serão observadas as personagens principais do
conto, os três irmãos, e ressaltados os elementos simbólicos da trama. Em seguida, será
apresentada a aplicação do modelo proppiano de conto de magia, o conto de fadas
propriamente dito. “O Conto dos Três Irmãos” integra o livro Os Contos de Beedle, o Bardo e
emerge na saga do herói adolescente, Harry Potter, em seu sétimo volume, Harry Potter e as
Relíquias da Morte. A coletânea de histórias do bardo Beedle funciona, no mundo bruxo,
como Os Contos de Mamãe Gansa, de Charles Perrault, que conhecemos. O livro traz contos
que conservam a estrutura tradicional dos contos de fadas, recorrente no folclore de
comunidades de diferentes espaços geográficos. Ao realizar uma leitura pelo viés
estruturalista, guiada pelos fundamentos de Propp, serão verificadas marcas do gênero conto
de fadas na escrita de Rowling. Para esta tarefa, portanto, será utilizada uma tabela contendo
as funções das personagens e suas variantes organizadas sistematicamente. Outrossim, caberá
salientar a importância do contato das crianças - bruxas ou trouxas - com esse gênero literário
em um mundo com ou sem magia.

Palavras-chave: 1 J. K. Rowling. 2 “O Conto dos Três Irmãos”. 3 Vladimir Propp.


4 Contos de fadas.
6

ABSTRACT

This study´s objective is to examine the basic components in the plot of “The Tale of
the Three Brothers”, by J.K. Rowling, in view of Vladimir Propp’s assumptions in his famous
work Morphology of the Folktale. For that purpose, possibilities for the appropriation of the
characters’ functions and spheres of actions will be presented, in order to elaborate a synthesis
of the narrative sequence, according to the studies of the Russian theorist. Initially, a brief
analysis of the main characters in the tale, the three brothers, will be provided. Also, the
symbolic elements in the plot will be highlighted. Subsequently, Propp’s model for the study
of the fairy tale will be applied to the tale in question. “The Tale of the Three Brothers” is
featured in The Tales of Beedle, the Bard and emerges in the Harry Potter saga, from its
seventh book, Harry Potter and the Deathly Hallows. The Bard’s collection of stories is to the
wizard world as are The Tales of Mother Goose, by Charles Perrault, for us. Rowling’s tales
reproduce the traditional structure of the fairy tales present in the folklore of communities
from different geographical origins. Therefore, this work consists of an exercise of application
of Propp´s table and theory into Rowling´s tale. For this task, a table containing all the thirty-
one characters’ functions and its variants – systematically organized – was produced.
Furthermore, it is important to underline the great relevance of this literary genre in relation to
children’s intellectual development, in a world either with or without magic.

Keywords: 1 J. K. Rowling. 2 “The Tale of the Three Brothers”. 3 Vladimir Propp. 4 Fairy
tales.
7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................... 8

1 OS CONTOS DE BEEDLE, O BARDO .................................... 11

1.1 O LIVRO .................................................................................................. 11

1.2 O BARDO.................................................................................................. 16

1.3 OS CONTOS ............................................................................................. 18

2 UM ESTUDO DE “O CONTO DOS TRÊS IRMÃOS” ....... 21

2.1 CONTEÚDO PARAFRASEÁVEL ........................................................ 21

2.1.1 Paralelo em Chaucer ................................................................................ 22

2.1.2 Alegorias e Símbolos ................................................................................ 25

2.1.3 Os Irmãos Peverell ................................................................................... 27

2.2 APLICANDO PROPP ............................................................................. 29

2.2.1 Propp e a Morfologia do Conto Maravilhoso ........................................ 29

2.2.1.1 O Modelo Base de Propp ......................................................................... 31

2.2.2 Decomposição Textual de “O Conto dos Três Irmãos” ........................ 32

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................... 40

REFERÊNCIAS .................................................................................. 42

APÊNDICE A ...................................................................................... 45

ANEXO 1 ............................................................................................... 54
8

INTRODUÇÃO

Os contos de fadas povoam o imaginário infantil, dessa forma, ocupam um lugar de


protagonismo no que concerne às noções fundamentais para o desenvolvimento psicológico
da criança. Em termos de estrutura, eles obedecem a uma ordem formal em comum, ainda que
possuam origens geográfica e culturalmente distintas. Sobre mim, essas histórias desde cedo
exerceram certo fascínio. Primeiramente, pela memória afetiva que se constituiu durante a
infância. Posteriormente, pela complexidade das mudanças que sofreram no passar dos
séculos, adaptando-se, em cada época, ao discurso social vigente. Sendo por meio da simples
contação de histórias, até superproduções cinematográficas, este gênero conta com um imenso
público leitor e consumidor.

Por apresentarem, em sua essência, diferentes níveis de alcance - apesar de serem


mais explorados na fase da infância e trazerem elementos de um mundo fantasioso – os contos
de fadas são facilmente ressignificados em outros momentos da vida adulta, visto que tratam
de temas universais. Além disso, ao passo que amadurecemos como indivíduos e como
leitores, o reconhecimento das metáforas contidas nos enredos contribui para alargar os
horizontes de novas interpretações. Nelas, colocamos situações do nosso cotidiano em
posições análogas às dos dilemas das personagens do conto, viabilizando uma perspectiva
mais verossímil das suas representações. Reafirma-se, dessa maneira, a abrangência deste
gênero literário. Logo, textos que supostamente dirigem-se a um público estritamente infantil,
na verdade, revelam mais do que meras histórias para dormir. Seu conteúdo está encrustado
de conhecimentos históricos, sobre a realidade de tempos passados, e suas transformações em
diferentes versões espelham reconfigurações sociais – como as diversas concepções da
infância, até chegar ao pensamento de Rousseau, que se aproxima do perfil de criança que
entendemos atualmente.

Enquanto jovem leitora, foi inevitável a transição de contos de fadas para leituras
direcionadas ao público adolescente com o mesmo tema da magia. Foi durante a minha
adolescência que o fenômeno literário Harry Potter atingiu seu ápice, engajando milhões de
jovens ávidos pelas aventuras que apenas um mundo mágico-fantástico poderia oferecer. Com
o tempo, minha admiração pela autora da série – J.K. Rowling - não diminuiu. Minha leitura
outrora emocional e isenta de responsabilidade crítica, após a experiência acadêmica se tornou
atenta aos parâmetros da construção literária e aos esforços de sua produção. A leitura de Os
9

Contos de Beedle, o Bardo, objeto de análise deste trabalho, imediatamente dialogou com
outras leituras anteriores sobre histórias já tão conhecidas, assinadas por Jacob e Wilhelm
Grimm, Charles Perrault, Jean de La Fontaine e Hans Cristian Andersen.

No livro O que é Leitura?, Maria Helena Martins discorre sobre três tipos de leitura:
sensorial, emocional e racional. Apesar da última ser mais valorizada no ponto de vista da
cultura letrada, as leituras sensorial e emocional são, segundo a autora, tão legítimas quanto a
racional. Pessoalmente, identifico uma predominância da leitura emocional nos contos de
fadas que conheci na minha infância.

Muitas vezes descobrimos, gravadas em nossa memória, cenas e situações


encontradas durante a leitura de um romance, de um filme, de uma canção. E
sentimos que elas, com o passar do tempo, se tornaram referências de um período
especial de nossas vidas, cheio de sonhos e aspirações. (MARTINS, 2006, p. 50)

Dito isso, justifico a escolha pelo objeto do presente trabalho com um motivo que
combina um profundo interesse neste gênero literário e uma antiga afinidade com seus textos.
Nada seria mais natural neste processo, portanto, do que analisar o conto de uma obra que
pretende se inserir em tal gênero, tendo em vista os demais contos circundantes e as
asseverações de teóricos acerca do tema.

A análise formal do texto será guiada, principalmente, segundo os preceitos definidos


pelo teórico russo Vladimir Propp, em seu célebre estudo intitulado Morfologia do Conto
Maravilhoso, pioneiro no gênero. Tendo em vista as trinta e uma funções das personagens
explicitadas em seu trabalho, serão descritas as trajetórias das personagens ao longo da
narrativa, bem como os demais elementos estruturais que, segundo o autor, constituem o
conto maravilhoso. Por meio de uma análise comparativa serão elucidados os pontos em que
“O Conto dos Três Irmãos” está de acordo com a teoria proppiana, sem que sejam excluídas
das observações potenciais divergências.

O apego por histórias que fazem parte da nossa infância bem como a necessidade
desse suporte literário na constituição dos sujeitos é um dos assuntos investigados por
Bettelheim (2002). Ele afirma que o conto de fadas usa situações do mundo exterior para dar
voz a conflitos interiores que a criança vivencia. Mais recentemente, Diana e Mário Corso
(2006) deram continuidade aos seus estudos no campo da psicanálise. O casal de psicanalistas
revisita A Psicanálise do Conto de Fadas por meio de uma abordagem crítica e atualizada,
10

incluindo considerações sobre as novas roupagens em que o gênero se apresenta na infância


contemporânea.

Em suma, analisando “O Conto dos Três Irmãos” por meio dos parâmetros de Propp
para uma estrutura constante do conto de fadas, proponho identificar elementos estruturais
definidores do gênero nos contos criados por J.K. Rowling. Pretendo ter em vista, durante
esse processo, que a autora tenha, supostamente, se proposto a realizar o trabalho de
compiladora de histórias do folclore de um povo (neste caso, bruxo), da mesma forma que já
vimos acontecer anteriormente na História da Literatura Ocidental. Enfim, com o apoio da
teoria de Propp acerca do conto maravilhoso será possível delinear a sequência de
componentes formais que garantem o status de conto de fadas ao “O Conto dos Três Irmãos”.
11

1 OS CONTOS DE BEEDLE, O BARDO

1.1 O LIVRO

No primeiro contato que tive com Os Contos de Beedle, o Bardo, percebi que este
não era um livro de contos de fadas como os outros que já conhecia. Um livro de contos de
fadas proveniente de uma saga que tinha como cenário uma dimensão mágico-fantástica
soava como algo quase redundante. Uma leitura como essa exigiria uma imersão um pouco
mais profunda na lógica de um universo com tantas possibilidades de transgressão da
realidade como a conhecemos.

J.K. Rowling trouxe as histórias do bardo, primeiramente, como um elemento


ficcional do enredo de Harry Potter e as Relíquias da Morte. O trabalho da autora inglesa
consistiu em transpor uma obra que existia somente na dimensão ficcional do mundo bruxo
por ela criado, para a nossa realidade. Assim, os Contos de Beedle, o Bardo passaram a
existir, de fato, e seu inventário de histórias repletas de magia - já que se insere no folclore de
uma população de seres mágicos - foi disponibilizado a nós, privilegiados leitores trouxas1,
possibilitando-nos agregar suas aventuras e valiosas lições à nossa memória e imaginação.

Apenas um ano após o lançamento do último livro da saga potteriana, Rowling


presenteou seus leitores e fãs com um livro diferente dos que estavam habituados a esperar.
Ele se distingue dos demais da série não apenas por pertencer a outro gênero, mas também
porque sua leitura funciona em dois níveis: traz histórias que lidam com as grandes questões
da existência humana (como a morte, em “O Conto dos Três Irmãos”), ao passo que fornece
informações para um entendimento mais aprofundado dos dilemas que vivem os habitantes do
mundo mágico (não tão diferentes dos nossos, afinal).

O livro é mencionado pela primeira vez em vista da morte de Alvo Dumbledore,


quando este deixa de herança para a estudiosa bruxa mestiça Hermione Granger uma cópia da
primeira edição da obra. Aqueles familiarizados com as estratégias de Dumbledore já
poderiam inferir que o diretor da escola de magia de Hogwarts não escolhera o destino do
precioso livro sem um propósito. Acreditava que seu conteúdo revelaria pistas que ajudariam

1
Termo que designa o humano que não possui poderes mágicos, segundo Rowling.
12

a desvendar a verdadeira natureza das relíquias mortais, levando à vitória de Harry sobre
Voldemort, o Lorde das Trevas, como podemos observar no último volume da saga.

Além de enriquecer a saga, Os Conto de Beedle, o Bardo beneficia o Children’s


High Level Group (CHLG), na medida em que destina parte da renda de sua vendagem à
causa. Essa instituição protege e promove os direitos das crianças em situação vulnerável que
se encontram, órfãs ou não, vivendo em grandes instituições residenciais por toda a Europa.
Há mais informações em uma carta da Baronesa Nicholson de Winterbourne, cofundadora da
CHLG, publicada no final do mesmo livro.

Os Contos de Beedle, o Bardo foi publicado em duas edições. A primeira, em 2007,


consistiu em apenas sete cópias manuscritas por J.K. Rowling, incluindo ilustrações
desenhadas à mão pela autora. Sobre o conceito deste projeto, ela explica:

Na verdade, a ideia surgiu porque eu queria agradecer seis pessoas muito


importantes, que estiveram estreitamente ligadas à série Harry Potter, e para essas
pessoas uma joia não seria o suficiente. Então, eu tive a ideia de escrever um livro
para elas, apenas para essas seis pessoas. E, bem, se eu escrever seis, terei que
escrever sete, e o sétimo livro será para esta causa, que me é tão cara. 2(DAVIS,
2008).

O sétimo manuscrito foi leiloado em dezembro do mesmo ano, e arrematado pela


amazon.com pelo valor correspondente a 3 milhões de dólares, maior valor pago por um
manuscrito literário moderno na época. Em dezembro de 2008, uma segunda edição foi
publicada em massa, após ter se revelado uma forte demanda dos fãs leitores por direito ao
acesso do conteúdo do livro. Obviamente, não podemos descartar a estratégia mercadológica
pressuposta nessa ideia. Não condiz com a postura da autora privar seus milhões de leitores,
que não possuíssem alguns milhões de dólares, de conhecerem as histórias de Beedle.

Os Contos de Beedle, o Bardo não está sozinho no cânone literário bruxo. Outras
obras publicadas sob a autoria de Rowling foram supostamente escritas e assinadas por
personagens da série Harry Potter. São elas: Quadribol Através dos Séculos (Quidditch
Through the Ages), de Kennilworthy Whisp e Animais Fantásticos e Onde Habitam
(Fantastic Beasts and Where to Find Them), de Newt Scamander.

2
Tradução minha de: “The idea came really because I wanted to thank six key people who have been very
closely connected to the ‘Harry Potter’ series, and these were people for whom a piece of jewellery wasn’t going
to cut it. So I had the idea of writing them a book, a handwritten and illustrated book, just for these six people.
And well, if I’m doing six I really have to do seven, and the seventh book will be for this cause, which is so close
to my heart”.
13

O primeiro pretende ser uma réplica do exemplar de um livro sobre o esporte fictício
quadribol3, que faz parte do acervo da biblioteca de Hogwarts. Há marcas de uso do volume
original em suas páginas, como uma lista de nomes escrita por cada aluno que o retirou da
biblioteca. Também conta com a contribuição de Alvo Dumbledore, em um prefácio em que
revela as dificuldades que teve de contornar para que conseguisse a autorização necessária
para a publicação do livro.

No segundo, o autor fictício apresenta um estudo magizoológico4 onde descreve


como vivem diversas criaturas daquele universo. Este também é uma réplica de outro livro
didático. Nesse caso, o que temos é uma cópia do exemplar do próprio Harry (como esclarece
Dumbledore em mais um prefácio explicativo), onde percebemos uma quantidade de
anotações e rabiscos dele e de seus amigos.

No caso do livro do bardo, como já mencionado anteriormente, seu berço foi o


ambiente ficcional da série Harry Potter, onde figurou no cânone literário daquele universo
mágico. As personagens que protagonizam seus contos são tidas, por muitos, como pessoas
que existiram naquela terra em um passado remoto. Ademais, a trajetória desse objeto na saga
confere-lhe um papel relevante no encadeamento das ações.

Ao passo que emerge de um enredo principal, o livro traz histórias que respeitam
uma coerência interna e externa a si. Quando considerado isoladamente, se define como uma
obra da literatura infantil, de gênero próprio, que consiste em uma reunião dos contos de fadas
tradicionais do folclore bruxo. Sob uma visão mais abrangente, contudo, percebe-se a segunda
face desse objeto. Esse mesmo livro está vivo na trama, de forma que atua sobre o destino das
personagens, revela pistas e informações importantes, servindo de impulso ao movimento
seguinte. Nessa perspectiva assume o papel de auxiliar mágico, (tendo em vista os sete perfis
de personagens sugeridos por Propp).

3
Quadribol é o esporte de maior popularidade no mundo bruxo. Criado pela escritora J.K. Rowling, possui uma
série de manobras perigosas, além de promover uma Copa Mundial a cada quatro anos, desde 1473. Um time de
quadribol conta com sete jogadores montados em suas vassouras, dos quais dois são batedores, três artilheiros,
um goleiro e um apanhador. Durante a partida, os jogadores precisam lidar com três tipos de diferentes de bola -
dois balaços, uma goles e um pomo de ouro – enquanto tentam marcar gols em um dos três arcos do lado
adversário.

4
O site wiki.potterish.com, a maior enciclopédia online sobre a série Harry Potter em língua portuguesa, define
magizoologia como o “Termo dado ao estudo dos animais mágicos. Há, além do estudo, a tentativa de protegê-
los e ocultá-los dos Trouxas para, assim, evitar a extinção de algum animal e assegurar às futuras gerações a
oportunidade de apreciá-los.”
14

Tais propriedades destacam o caráter de narrativa moldura em que ele se insere. A


exemplo de Chaucer, em Os Contos de Cantuária, Rowling utiliza esse recurso narrativo
como instrumento de delimitação das fronteiras das narrativas de Beedle, dentro da lógica que
rege a narrativa maior, da saga que as precede e as encerra. O modo com que esses contos
ecoam na saga também apontam o quanto estão vinculados a essa moldura que abrange todas
as leis e histórias da magia. Como destaca Dumbledore (ROWLING, 2008b, p.94), muitos
bruxos acreditam na existência das relíquias da morte mencionadas em “O Conto dos Três
Irmãos”, bem como afirmam terem existido os heróis desse conto (os irmãos Peverell),
independentemente do fato de se encontrarem em um gênero que pressupõe um tom
fantasioso e representações alegóricas. A narrativa dentro da narrativa surge da tradição oral,
o que condiz com o próprio gênero ao qual as histórias de Beedle pertencem, o gênero dos
contos de fadas que, originalmente, também procedem da oralidade.

Ainda dentro da noção de narrativa moldura, é possível dar destaque à metaficção


que permeia a participação coadjuvante das obras criadas dentro da narrativa moldura.
Através da interação entre narrativas de Beedle e de Rowling, solidificam-se as fundações de
aspectos da história que, não fosse por essa relação, careceriam de certa plausibilidade. Como
um exemplo próximo do conto analisado poderia referir-me novamente aos bruxos caçadores
de relíquias. Aqueles que buscam tais objetos lendários não são imediatamente ridicularizados
na trama graças à existência de uma mínima coerência entre a versão da estória e a versão da
história. Ou seja, é possível se detectar alguma verossimilhança entre ambas e elaborar, a
partir dela determinadas conclusões que de alguma forma se sustentam (como a suposta
perpetuação da linhagem dos Peverell, por exemplo). Conforme observa Constantino Luz de
Medeiros, em seu artigo:

Além de sua função interna na composição da obra literária, a narrativa moldura


serve também como procedimento retórico que empresta um caráter mais intenso,
uma atmosfera de verossimilhança ao narrado, além de estabelecer uma provocação
à curiosidade do leitor. Este, estimulado pela introdução de uma moldura
particularmente verossímil, logo se tornaria refém, e, hipnotizado pela situação,
ficaria apregoado à narrativa (...) (MEDEIROS, 2012, p. 3).

Visando a noção da construção de narrativa em diversas camadas, Rowling comenta


em nota de rodapé uma citação feita por Dumbledore acerca de um trecho dos escritos de
Alexander Pope. Na seção Comentários de Alvo Dumbledore, que sucede cada um dos cinco
contos do livro, o mago desenvolve uma interpretação de “O Conto dos Três Irmãos”,
15

ilustrando seu ponto de vista por meio da apropriação da seguinte frase, trazida entre aspas:
“A esperança brota eternamente.”5 Sobre ela, Rowling viu necessário esclarecer aos seus
leitores o seguinte: “A citação demonstra que Alvo Dumbledore era não só excepcionalmente
instruído em termos de bruxaria, como também familiarizado com os escritos do poeta trouxa
Alexander Pope. JKR”. (ROWLING, 2008b, p. 94).

A nota, de certa forma, elucida os diversos planos que a leitura dessa obra perpassa.
Rowling esclarece a origem de uma citação de uma personalidade histórica, portanto trouxa
(Alexander Pope), mencionada pelo seu personagem ficcional (Dumbledore) que transita
intelectualmente pelos dois mundos. Este, por sua vez, tece reflexões sobre uma obra de
contos de fadas (Os Contos de Beedle, o Bardo), considerada ficção pelas próprias
personagens do universo ficcional potteriano.

A partir de observações como essa, percebemos que as intervenções da autora fazem


jus à premissa, apresentada no seu texto de introdução, de que o leitor dessa edição de Os
Contos de Beedle, o Bardo tem seu lugar marcado no mundo não mágico. Ele não pertence à
mesma realidade do público ao qual essas histórias originalmente se dirigiam. Tendo em vista
o leitor trouxa e o seu lugar no mundo real, portanto, Rowling atenta para as possíveis lacunas
geradas nesse processo de transposição interdimensional da obra do bardo, apresentando
breves contextualizações quando necessário.

Para concebermos a obra conforme a proposta de sua autora, é imprescindível a


observação dos dois níveis existenciais nos quais está estruturada. O primeiro diz respeito à
sua origem enquanto objeto ficcional integrante da saga Harry Potter, onde serve de
instrumento para o desenrolar das ações na trama. Trata-se, aqui, de sua primeira aparição
enquanto obra literária. De acordo com o que nos revela J.K. Rowling, as histórias de Beedle
compunham um livro escrito em caracteres rúnicos. Tal edição foi lida por Alvo Dumbledore,
e dessa leitura partiu um documento com diversas notas e impressões pessoais acerca dos
contos. O mesmo exemplar foi deixado de herança para Hermione Granger, que se dedicou à
sua tradução para a língua inglesa.

À tradução feita pela bruxa foram somados – com a autorização da professora


Minerva McGonagall, guardiã dos Arquivos de Hogwarts – os escritos do já falecido mago.
Como resultado dessa fusão, surge uma segunda edição de Os Contos de Beedle, o Bardo, em

5
Original “Hope springs eternal”.(ROWLING, 2008a, p. 96)
16

inglês e comentada. É dessa edição que Rowling afirma apropriar-se ao revisitar todo o seu
conteúdo, incluindo informações que julgou importantes para seu público trouxa.

Finalmente, após se debruçar sobre a segunda versão da obra de Beedle, Rowling faz
uso das alterações na evolução do livro para disponibilizá-lo aos seus leitores, sob sua autoria,
de fato. Esta publicação se constitui, consequentemente, na terceira edição de Os Contos de
Beedle, o Bardo, de que se tem notícia. Ela é a que nos chega em mãos, a que se materializou,
a que nos revela sobre a existência das duas anteriores e a que desencadeia as reflexões neste
trabalho.

Em suma, a trajetória deste livro de contos compreende dois planos de sua existência
– um real e um ficcional -, sendo produzidas três edições distintas da obra, das quais apenas a
última chega a ao público integralmente.

1.2. O BARDO

Àqueles familiarizados com a História da Literatura Inglesa, o nome Beedle pode


soar como um eco de uma figura que teve grande destaque no cenário intelectual e religioso
do século VIII. O Venerable Bede, também referido como São Beda, ou Venerável Beda, foi
um monge inglês que passou a maior parte de sua vida nos mosteiros de São Pedro e São
Paulo, no antigo Reino de Nortúmbria, durante a chamada Northumbrian Renaissance.

Dedicado estudioso de teologia, história, poesia, gramática, línguas e filosofia,


recebeu o título de “Pai da História Inglesa” graças à sua grande obra intitulada Historia
Ecclesiastica Gentis Anglorum, ou História Eclesiástica do Povo Inglês. Este é até os dias de
hoje considerado o mais importante texto histórico acerca da Bretanha medieval. Não fosse
pelo legado literário de Beda, um número significativo de batalhas, reis e eventos históricos
estariam perdidos no tempo. Visto como uma das maiores mentes de sua época, foi um
habilidoso linguista e tradutor. Sua contribuição foi fundamental para o desenvolvimento do
cristianismo inglês, já que viabilizou, a partir de suas traduções, o contato do mundo anglo-
saxão com textos antes disponíveis apenas em grego e latim.
17

Além da clara semelhança da escrita e da sonoridade entre os nomes Beedle e Bede,


podemos inferir, como sugere Graeme Davis (2008), que o nome do bardo tenha sido
escolhido de acordo com a grande recorrência do sobrenome Beedle em Yorkshire, condado
onde ele teria supostamente vivido, segundo a autora.

Outra hipótese seria reconhecer em ambos a qualidade de bardo, ao aproximá-los por


meio de um nome que estabeleça essa correlação. O bardo, tradicionalmente, era aquele que
transmitia as histórias, mitos e lendas de seu povo, cantando-as ao som de seu alaúde. Beedle
é tido como o autor dos contos trazidos a público por Rowling, e sua atuação como bardo teria
ocorrido, segundo a própria, durante o século XV. São Beda, por sua vez, fez da sua extensa
pesquisa histórica seu canto e da sua escrita seu alaúde. Perpetuou as histórias de seu povo em
seus registros e, da sua forma, também foi bardo.

A imagem do primeiro historiador britânico se funde com a figura do bardo da


tradição celta, pois ambos atuam como grandes guardiões da sua própria cultura religiosa. O
calendário cristão assimilou diversas celebrações pagãs, como as que marcavam as mudanças
de estações e as épocas de colheita. Tal sincretismo religioso que possibilitou de forma efetiva
a cristianização no território inglês emerge nos símbolos que identificam as datas mais
importantes do ano. O ovo e o coelho da Páscoa, por exemplo, anunciam que é chegada a hora
de celebrarmos a ressurreição de Jesus Cristo. Mas é preciso um olhar diacrônico sobre
práticas religiosas atuais para compreendermos a relação entre ambos. Essas representações
simbólicas dialogam com antigos ritos pagãos e representam a chegada da primavera (no
hemisfério Norte) e o despertar da natureza adormecida durante o longo inverno.

O Oxford Dictionary of English faz referência à explicação de Beda para a palavra


em inglês Easter. Ela seria uma forma derivada do nome Ēastre – em inglês antigo -,
supostamente uma divindade germânica associada à primavera, da qual tem-se notícia pela
primeira vez através dos escritos de São Beda, em Temporum Ratione, onde explica como
calcular a data da cerimônia de Páscoa.

Eosturmonath é o nome de um mês hoje traduzido para “Mês Pascal”, que


antigamente se referia a uma de suas deusas, chamada Eostre, honrada e celebrada
com banquetes nesse mês. Agora eles designam a época da Páscoa pelo seu nome,
18

invocando as alegrias do novo rito pelo tão honrado nome da antiga tradição.6
(BEDE, 1999b).

Esse trecho de Beda é o único registro histórico sobre a possível existência dessa
divindade e é, acredita-se, apenas uma interpretação etimológica do nome de um dos meses
do ano. Por isso, estudiosos levantam questões sobre seu valor de verdade, e especulam sobre
as origens do símbolo do coelho da Páscoa, sugerindo que este seja, afinal, uma invenção
moderna, contando que o culto à Eostre jamais tenha existido.

Essa polêmica que ainda vigora em torno de Beda e Eostre, - a reivindicação das
origens dessa celebração religiosa e de seus símbolos enquanto pagãos ou cristãos – reforça a
influência e o alcance dos trabalhos do Venerável Beda, que ajudaram a delinear o curso da
história britânica.

1.3. OS CONTOS

Os cinco contos que compõem o livro, apesar de se ambientarem em uma realidade


mágica, podem ser facilmente compreendidos pelos leitores comuns. A autora se encarrega de
esclarecer certas especificidades em notas explicativas. Além disso, ao final de cada conto de
fadas há uma seção de autoria de Alvo Dumbledore, que contém reflexões acerca do enredo e
comentários em tom humorístico. Essa seção corresponde a quase metade da quantidade de
páginas do livro, fato que suscitou críticas em relação aos esforços em torna-lo um produto
vendável.

Rowling traz protagonistas femininas que buscam, ativamente, seus objetivos e


resolvem seus próprios impasses, sem esperarem por ajuda. Ela atenta para a representação de
uma mulher menos passiva e dependente. Isso ocorre durante o ápice de outra saga que trazia,
por sua vez, o ressurgimento da reprodução desse estereótipo feminino frágil, através da
figura da protagonista Isabella Swan, na série Crepúsculo, de Stephenie Meyer.

As histórias de Beedle apresentam aspectos dos contos de fadas trouxas. No livro do


bardo, bem como na obra de Perrault, por exemplo, os atos de bondade das personagens
6
Tradução minha de: “Eosturmonath has a name which is now translated ‘Paschal month’, and which was once
called after a goddess of theirs named Eostre, in whose honour feasts were celebrated in that month. Now they
designate that Paschal season by her name, calling the joys of the new rite by the time-honoured name of the old
observance”.
19

virtuosas são recompensados, enquanto falhas no caráter das personagens malvadas são
punidas. As semelhanças acerca do binarismo herói versus vilão, bem versus mal, viabilizam
a familiarização de leitores dos clássicos de Perrault, Grimm e Andersen com os dilemas
trazidos pelos contos de Beedle. As posições das personagens arquetípicas são, muitas vezes,
correspondentes nos textos de ambos os cenários literários - conforme será analisado a seguir,
aplicando-se os pressupostos de Vladimir Propp em sua Morfologia do Conto Maravilhoso.
Contudo, o modo com que certos aspectos do conto maravilhoso são abordados em Rowling,
distingue sua obra das demais conhecidas.

Figuras como Cinderela, Bela Adormecida e Branca de Neve são personagens que
apresentam uma postura passiva e personalidades pouco atuantes sobre os reveses na sua
trajetória. Seus destinos dependem da sorte de serem encontradas por seu príncipe encantado
ou ter seu sapato perdido devolvido e ser reconhecida. Ou seja, elas estão à mercê da própria
sorte, que depende das ações de outrem. Nos Contos de Beedle, o Bardo, por outro lado, não
há lugar para tal posicionamento, já que as personagens têm em mãos a responsabilidade de
agir sobre o próprio destino e responder sobre suas escolhas. No segundo conto do livro, A
Fonte da Sorte, Amata, Asha e Altheda são três bruxas que enfrentam uma jornada em busca
da cura para suas aflições. A ação da vontade do indivíduo sobre o rumo que sua vida tomará
é claramente marcada nessas histórias.

Outra comparação possível é que no conto de fadas tradicional, deparamo-nos com a


presença de protagonistas que são tipicamente vitimadas ou salvas graças à magia. Por meio
da ação de um feitiço são afligidas – a maçã envenenada suspende a vida de Branca de Neve -
ou com o auxílio de um ajudante mágico tornam seu desejo realidade – a poção da Bruxa do
Mar dá pernas à pequena Sereia.

Diferentemente disso, os protagonistas que encontramos em Beedle são versados nas


artes mágicas. Portanto, o componente mágico não implica, necessariamente, um desfecho
milagroso, tampouco impossibilita o herói de reagir diante da ameaça de um feitiço maligno.
As adversidades se impõem na vida dos magos e bruxas apesar da magia, não por causa dela
(como no caso dos irmãos Peverell, em “O Conto dos Três Irmãos”). Na realidade dos que
nascem com esse dom, a maior lição a ser aprendida é que o uso da magia pode trazer tantos
danos quantos benefícios. Coloca-se uma questão antes de tudo moral, que será definidora de
caráter do bruxo em desenvolvimento, que se encontra numa fase da vida em que está
constituindo seus valores. Isso retoma um dos princípios das funções do gênero conto de
20

fadas na formação subjetiva da crianças. Bruno Bettelheim ocupou-se de analisar o


significado e elucidar a importância do contato com esse gênero literário na infância:

Com isto, a criança adequa o conteúdo inconsciente às fantasias conscientes, o que a


capacita a lidar com este conteúdo. É aqui que os contos de fadas têm um valor
inigualável, conquanto oferecem novas dimensões à imaginação da criança que ela
não poderia descobrir verdadeiramente por si só. Ainda mais importante: a forma e
estrutura dos contos de fadas sugerem imagens à criança com as quais ela pode
estruturar seus devaneios e com eles dar melhor direção à sua vida. Mas através
deles pode-se aprender mais sobre os problemas interiores dos seres humanos, e
sobre as soluções corretas para seus predicamentos em qualquer sociedades, do que
com qualquer outro tipo de estória dentro de uma compreensão infantil.
(BETTELHEIM, 2002, p. 8).

Nesse ponto, é possível, novamente, reaproximar a figura do bardo da figura da mamãe gansa,
e ambos a outras criações similares neste gênero.

J.K. Rowling, ao compor Os Contos de Beedle, o Bardo, se propõe a reproduzir um


trabalho ficcional anteriormente realizado por Hans Christian Andersen (1805 – 1875), na
Escandinávia e Jean de La Fontaine (1621 – 1695) e Charles Perrault (1628 – 1703), na
França. Sua tentativa de criar um reduzido inventário de fábulas se dirige, primeiramente, a
um mundo que já é regido pelas leis da magia. Nem por isso impede-nos de compreender a
moral e as mensagens intrínsecas nos destinos das personagens, tampouco de correlacionar
sua narrativa com as dos grandes nomes citados anteriormente. Tomando-se a figura de
Beedle enquanto verdadeiro autor dos contos a ele atribuídos, não há evidências (nem é
mencionado por Rowling) se o fazer literário do bardo é o de um criador de histórias ou o de
um compilador de lendas do folclore oral, como o trabalho dos Irmãos Grimm, na Alemanha.

Dentre os contos deste livro, portanto, toma-se “O Conto dos Três Irmãos” como
corpus da análise apresentada a seguir. O estudo observa a organização do enredo, bem como
a construção de algumas das representações simbólicas.
21

2 UM ESTUDO DE “O CONTO DOS TRÊS IRMÃOS”

2.1 CONTEÚDO PARAFRASEÁVEL

Este é o único dos cinco contos de Beedle narrado na íntegra na saga Harry Potter.
No vigésimo primeiro capítulo de Harry Potter e as Relíquias da Morte, Ron, Harry e
Hermione se encontram na casa de Xenofílio Lovegood7 para investigar sobre o significado
do símbolo desenhado por Dumbledore em algumas das páginas do livro herdado por
Hermione. O senhor Lovegood, considerado por muitos uma pessoa excêntrica, carrega em
um cordão no seu pescoço um pingente com o mesmo símbolo, e explica tratar-se das
relíquias mortais. Percebendo que os três bruxos não tinham qualquer conhecimento sobre as
histórias em torno de tais objetos mágicos, Xenofílio pretende ler-lhes “O Conto dos Três
Irmãos”, pois afirma estar ali a origem desse mistério. Ron Weasley era o único dos três que
conhecia o conto, visto que, diferente de seus amigos, havia sido criado numa família de
bruxos tradicional, e lembrava de sua mãe ter-lhe contado histórias como essa na sua infância.
Antes que Xenofílio encontrasse sua cópia do conto, no entanto, Hermione sacou seu livro de
dentro da bolsa e leu “O Conto dos Três Irmãos” para todos.

***

Três irmãos viajavam quando encontraram em seu caminho um rio perigoso, onde
muitos viajantes haviam morrido tentando atravessá-lo. Mas os irmãos eram bruxos e usaram
seus poderem para que uma ponte se materializasse até a outra margem. Surge a Morte,
decepcionada por não poder leva-los consigo, e oferece a cada um dos irmãos um prêmio por
terem realizado tamanho feito.

O primeiro pede uma varinha invencível, e a Morte o concede. O segundo deseja o


poder de trazer de volta à vida os mortos. A Morte presenteia-o com a pedra da ressurreição.
O terceiro quer apenas algo que garanta que ele consiga seguir seu caminho ileso. Este ganha
uma capa da invisibilidade. Eles partem para caminhos distintos.

7
É o editor chefe da revista esquerdista local (“O Pasquim”) e pai de Luna Lovegood, amiga do trio.
22

O irmão que ganhou a varinha usou-a para combater um inimigo. Após vangloriar-se
sobre a invulnerabilidade que aquele objeto lhe conferia, foi assassinado enquanto dormia e
sua varinha roubada. O irmão possuidor da pedra trouxe sua amada do mundo dos mortos.
Mas ela é um fantasma, que não está verdadeiramente neste mundo. Para juntar-se a ela, ele se
mata. Não demorou muito, portanto, para que a Morte levasse duas de suas três vítimas que
fora buscar no rio. O terceiro irmão viveu por muito tempo e jamais debochou ou desafiou a
Morte. Quando estava em idade muito avançada, tirou sua capa de invisibilidade e passou-a
para seu filho. Assim, juntou-se à Morte, e ambos partiram pacificamente daquele mundo.

2.1.1 Paralelo em Chaucer

Há um aparente paralelismo entre “O Conto dos Três Irmãos” e o “Conto do


Vendedor de Indulgências”, uma das célebres histórias de Geoffrey Chaucer, em Os Contos
de Cantuária (The Canterbury Tales). A produção de J.K. Rowling certamente revela
influências das mais variadas fontes literárias. Suas histórias foram tocadas pelo folclore e
pelas lendas da mitologia britânica, de onde tomou emprestado o aporte mágico que ajudou a
fundar a base da construção do seu universo ficcional. As Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis,
figura entre os clássicos de sua literatura local e foi recentemente reavivado em adaptações
bem produzidas para o cinema. Esta obra costuma ser alvo de diversas comparações entre as
histórias de Lewis, de Rowling e da Bíblia, gerando interessantes discussões entre fãs, leitores
e escritores, principalmente nos sites e blogs especializados na obra da autora britânica.
Contudo, acima de todos os nomes que ela possa reivindicar como inspiração para seu
trabalho, destacarei como seu maior contribuidor, para fins de análise, aquele historicamente
considerado o pai da Literatura Inglesa.
Tanto na disposição das personagens quanto no desfecho dos principais eventos do
conto, é possível encontrar elementos espelhados em suas estruturas quando aproximamos
ambos enredos. Um deles é a lição de que a morte é inevitável e, cedo ou tarde, virá para
todos. E são as falhas morais ou atitudes de cada indivíduo diante dela que definirão a sua
forma.
***
O vendedor de indulgências narra a história de três rufiões que sempre estiveram a se
meter em algazarras e a amaldiçoar o nome do Senhor. Os rapazes eram da pior espécie de
pecadores, vivendo entre tavernas e bordéis a blasfemar e cometer todo tipo de excessos
23

abomináveis. Quando a morte vitimou um velho companheiro do trio, resolveram sair em


busca desta que havia matado quase todos os habitantes de um grande povoado vizinho. Sob o
juramento de serem irmãos dali por diante - dispostos a viver e morrer um pelo outro –
partiram em direção às terras próximas, onde aniquilariam a Morte.

Encontraram, no caminho, um camponês muito velho e esfarrapado. Após trocarem


palavras rudes com o pobre ancião, este indicou-lhes o local onde havia estado a Morte da
última vez que a viu. Afirmou tê-la deixado no bosque, ao pé de um carvalho. Os três
apressaram-se até a árvore, e lá encontraram uma enorme pilha de florins de ouro. Cegos pelo
tesouro diante de si, eles se esqueceram completamente do seu objetivo de vingar-se da
Morte.

O mais ardiloso dos companheiros sugeriu que um deles deveria ir até a cidade
buscar pão e vinho para passarem o dia guardando o tesouro, já que seria menos arriscado
removê-lo às escondidas quando a noite caísse. Na ausência do mais jovem, um dos homens
sugeriu ao seu comparsa que o ajudasse a assassinar a punhaladas o outro na ocasião do seu
retorno com o alimento. Convenceu-o de que assim dividiriam o ouro ao meio, em vez de três
partes, e ambos sairiam satisfeitos. Enquanto isso, contudo, aquele que havia se afastado até a
cidade já possuía um plano que servisse a seus próprios interesses. Dominado pela ambição,
pensou em envenenar seus companheiros a fim de ficar com toda a fortuna unicamente para
si. Comprou de um boticário local certa quantidade de veneno para pestes e três garrafas. Para
os companheiros, encheu duas garrafas de vinho com veneno, guardando uma garrafa de
vinho limpa para celebrar mais tarde a sua façanha. Como previsto, ao reencontrá-los no
bosque, foi brutalmente assassinado. Para festejarem seu sucesso, os dois rapazes restantes
beberam o vinho de uma das garrafas. Esta continha veneno, que levou-os instantaneamente à
morte.

***
Enquanto no conto de Beedle as três personagens principais são irmãos de sangue,
em Chaucer protagonizam três homens que fazem um pacto de lealdade para se tratarem
como tal. A promessa pressupõe total confiança e cooperação mútua do trio no seu plano de
roubo, porém não as garante. Em ambas histórias os laços fraternos não constituem um
elemento de união efetiva entre essas personagens. Suas ações na trama seguem indiferentes
às premissas dessa relação de parentesco, ou vão de encontro a elas. Enquanto os irmãos
Peverell tomam caminhos divergentes após o encontro com a Morte, os rufiões de Chaucer
24

investem em emboscadas fatais entre si, aniquilando-se e aos seus próprios comparsas. Logo,
apesar de haver uma representação análoga de três irmãos que se encontram em algum
momento trilhando o mesmo caminho, o sentimento de irmandade não é evocado em nenhum
dos dois contos.

A Morte é o antagonista em comum nas duas histórias. Chaucer traz uma


possibilidade de representação multiforme dessa personagem. Como uma “ladra sorrateira”
ela pode surpreender a vítima e tomar-lhe a vida (CHAUCER, 1991, p. 247). Ou pode
apresentar-se na forma materializada de um grande tesouro que suscitará uma série de eventos
impulsionados pela pior faceta do caráter humano (relativa à ganância, à avareza, ao egoísmo,
à perversidade e à deslealdade). Consequentemente, portanto, em “O Conto do Vendedor de
Indulgências” as próprias vítimas se encarregam de encontrar seu trágico fim.

Essa mesma estratégia do antagonista é usada em “O Conto dos Três Irmãos”. A


Morte conta novamente com as falhas do caráter de suas vítimas a fim de criar-lhes uma
emboscada fatal. Seu plano é bem sucedido com os dois primeiros irmãos. Em relação ao
terceiro irmão, existe uma quebra dessa linearidade lógica das ações. Seu destino é diferente
dos demais por conta de suas melhores escolhas e de sua postura respeitosa na ocasião do
encontro com a Morte. Ele usufruiu seu desejo concedido por ela – pedindo uma capa mágica
- sem que causasse danos a outrem. Além disso, demonstrou-se suficientemente sábio para
não desafia-la ou humilha-la, a exemplo dos seus irmãos – o primeiro estando invulnerável à
morte em combate quando em posse da “Varinha do Destino”, o segundo tomando para si o
poder de manipular a morte, por meio da ressuscitação.

Conforme observado, cada um dos irmãos reage à possibilidade de realização de um


desejo de maneira distinta. Essa diferença está prevista e predeterminada, de certa forma, nos
apostos que se seguem às menções dos dois primeiros irmãos (ROWLING, 2008, p. 87 e 88)
– “que era um homem combativo” e “que era um homem arrogante” -, bem como na frase que
elucida as qualidades do terceiro – “O mais moço era o mais humilde e também o mais sábio
dos irmãos (...)”. Rowling é condizente, nesse aspecto, com a caracterização das personagens
deste gênero textual. No conto de fadas, costumam figurar personagens planas e
unidimensionais, pouco complexas e comumente estereotipadas. São dominadoras ou
dominadas, virtuosas ou cruéis, sábias ou tolas. Outrossim, por representarem figuras
genéricas, muitas vezes não recebem nome próprio. O bardo não menciona os nomes dos três
25

irmãos, referindo-se a essas personagens como “o irmão mais velho”, “o segundo irmão” e “o
terceiro e mais moço”.

Retomando a questão do antagonista dos dois contos comparados, podemos perceber


que a Morte como entidade incorpórea de Chaucer dá lugar a uma vulto encapuzado trazido
por Rowling, que evoca no imaginário o Ceifador Sinistro, ou Grim Reaper. Esta forma de
personificação da morte consiste em uma figura esquelética portando uma gadanha e coberta
por uma capa negra com capuz. A crença no conceito de morte como uma entidade
independente foi constatada em diversas sociedades das culturas do oriente e ocidente. Dados
históricos sugerem que ela tenha se originado na Grécia, a partir da figura de Hades, o deus do
submundo. Na versão cinematográfica de Harry Potter e as Relíquias da Morte – parte 1
(2010), a cena que reproduz o conto de Beedle valeu-se da Morte como uma figura alada,
apontando para outra representação bastante conhecida: o Anjo da Morte.

Por fim, em uma última aproximação, gostaria de salientar o caráter metafórico que
em ambos permeia os encontros entre herói e antagonista. A iminência do fim inescapável é o
tema que é posto à mesa, sendo na forma de uma armadilha, trazida numa trapaça do inimigo
ou imaterializada na própria noção de finitude. A autora aproveita o espaço destinado às
impressões de Dumbledore acerca do conto para esclarecer que a mensagem de Beedle - ou
dela mesma, novamente - “(...) é que, no fim, a Morte virá nos buscar (...)” (ROWLING,
2008b, p. 94), e relativiza a questão com a seguinte declaração do mago:

Qual de nós, porém, teria revelado a sabedoria do terceiro irmão, se lhe fosse
oferecido escolher o melhor presente da Morte? Bruxos e trouxas são igualmente
imbuídos de sede de poder; quantos teriam resistido à “Varinha do Destino”? Que
ser humano, tendo perdido um ente amado, poderia resistir à tentação da Pedra da
Ressurreição? Mesmo eu, Alvo Dumbledore, acharia mais fácil recusar a Capa da
Invisibilidade; o que prova apenas que, esperto como sou, continuo sendo um
bobalhão tão grande quanto os demais. (ROWLING, 2008b, p. 102-103)

2.1.2 Alegorias e Símbolos

As seguintes representações preexistentes ao trabalho de Rowling certamente


serviram de suporte na escolha dos objetos que figurariam no conto sobre as relíquias mortais.

Na literatura há outras formas de se referir a uma Capa da Invisibilidade. O manto -


ou capa - remonta à tradição celta como símbolo de metamorfose. Assim sendo, vimos que o
26

terceiro irmão, Ignoto, tem sua forma corpórea ocultada por esse objeto, o que possibilita a
sua fuga e uma vida longa. O manto também constitui um dos atributos dos deuses irlandeses,
sendo referido como manto de invisibilidade e de esquecimento (CHEVALIER e
GHEERBRANT, 2009, p.588). Neste panteão, aparece, como um manto com um capuz, uma
“espécie de carapuça mágica que tornava invisível o personagem” (CHEVALIER e
GHEERBRANT, 2009, p. 185). Esta vestimenta é conhecida como emblema de sabedoria.
Rowling, ao apresentar-nos o terceiro irmão, descreve-o como o mais humilde e sábio dos
Peverell. O manto, enquanto símbolo daquele que o veste, quando entregue a outrem, evoca a
caridade e a entrega de si. Este aspecto está presente no último ato de Ignoto antes de aceitar a
companhia da Morte, quando entrega a capa a seu filho.

A varinha mágica, além de ser indispensável na vida do bruxo, também teve sua
importância para os druidas celtas como símbolo de poder sobre os elementos. Aparece em
diversas cerimônias religiosas como um cetro ou bastão. A Varinha das Varinhas do irmão
Antíoco foi produzida pela Morte de forma a combater todas as outras, conferindo poder
desmedido ao seu mestre. Porém, ela apenas conferia ao seu possuidor o poder, não a
sabedoria, tornando-o alvo das mais terríveis vilanias, o que aumentava o rastro de sangue da
própria trajetória. No universo de Harry Potter, é a varinha que escolhe o bruxo, não o
contrário, e o material de que é feita costuma revelar traços do caráter de quem a possui. No
caso da Varinha do Destino, usou-se madeira de sabugueiro, e seu núcleo contém pelo de rabo
de Trestálio. O sabugueiro é comumente conhecido no mundo bruxo por agir negativamente
sobre as varinhas, seja por atrair o azar, seja por incitar a violência no bruxo que as manuseia.
Já o Trestálio, presente na sua composição, é uma criatura ficcional relacionada ao outro lado
do véu que separa os vivos dos mortos (ROWLING: 2001a, p. 63). Ele é visível somente para
aqueles bruxos que já presenciaram a morte de perto. Portanto, há um aspecto um tanto
obscuro que se instaura a partir da confecção desta varinha.

É provável que a escolha de uma pedra como instrumento para a ressurreição tenha
se dado em favor de uma alusão à ideia da pedra filosofal, gerada pelos estudos de Alquimia.
A pedra em si é um objeto utilizado para representar uma variedade tão abrangente de
símbolos que sua função assume um caráter quase genérico. Sendo assim, para analisar os
eventos que envolveram Cadmo Peverell, faz-se uma aproximação das pedras Filosofal e da
Ressurreição. A primeira é mais conhecida pela sua capacidade de transmutação da matéria,
transformando quaisquer metais em ouro, além de ser usada no preparo do Elixir da Longa
Vida. Cadmo estava de luto pela morte de sua noiva quando a Morte o interceptou. A tentação
27

de trazê-la de volta cegou-o às consequências dessa impossibilidade mascarada pela astuciosa


Morte. As leis da magia e dos trouxas convergem nessa questão: o véu só pode ser
atravessado em sentido único e irreversível. Quando a morte se impõe, transmuta-se da
condição de existência daqui para outra, além. A Pedra da Ressurreição tenta quebrar essa
ordem sem obter sucesso. Naturalmente, não poderia. Investidas contra axiomas universais -
como a morte – tratados de maneira leviana e irresponsável estão fadadas ao fracasso. A breve
história do segundo irmão é mais uma faceta que delineia a lição moral do conto.

2.1.3 Os Irmãos Peverell

Os primeiros registros do sobrenome Peverell provêm do último livro da saga Harry


Potter, já que os nomes dos irmãos não são mencionados, posteriormente, no conto de Beedle.
Segundo Xenofílio Lovegood, que esclarece as origens dessa história, acredita-se que essas
três personagens tenham sido, na realidade, Antíoco, Cadmo e Ignoto Peverell. Dessa forma,
ele supõe que os possuidores dos objetos mágicos citados em “O Conto dos Três Irmãos”
tenham existido, bem como as próprias relíquias mortais. Alvo Dumbledore, por sua vez, não
acredita na veracidade da história dos irmãos Peverell, tampouco encoraja os simpatizantes
das ideias de Lovegood a seguirem a busca pelas relíquias. Na sua contribuição à mais recente
edição da obra-prima de Beedle, o mago tenta desmoralizar essa teoria.

A questão da existência dos três irmãos do conto está intimamente vinculada à crença
na existência das próprias relíquias mortais. Segundo a autora, a população mágica reage à
história de duas maneiras: há aqueles que encaram “O Conto dos Três Irmãos” como uma
história para dormir, contada e repetida para fins de simples entretenimento, sem dar atenção
a maiores questionamentos dos que a lição do enredo oferece; e há os que tomam o conteúdo
do conto enquanto fato histórico, traduzindo as suas metáforas de modo a aproximá-las da
realidade que conhecem.

Esse segundo grupo sustenta hipóteses que verificariam traços de verossimilhança no


conto do bardo, que conteria mensagens cifradas indicando o contrário do que o literalmente
expresso. Uma delas diz respeito à linhagem dos irmãos Peverell. Entende-se que os irmãos
do conto tenham sido, na realidade, os verdadeiros criadores das relíquias. A perpetuação
dessa crença está atrelada à própria perpetuação da família dos Peverell. Ao longo de diversas
gerações, a Capa da Invisibilidade foi passada de pai para filho, partindo de Ignoto Peverell e
28

chegando às mãos de Tiago Potter, que deixou-a para Harry, seu filho. Quanto às duas outras
relíquias menos ainda se sabe. A Pedra da Ressurreição, depois de um período de localização
desconhecida, também passou pelas mãos dos descendentes dos Peverell. Foi posteriormente
tomada por Voldemort, que a transformou em uma horcrux8. Este foi encontrado por
Dumbledore, que deixou-o de herança para Harry, dentro de um pomo de ouro. A Varinha do
Destino, por sua vez, foi a primeira a deixar a linhagem Peverell, pois era contestada por
qualquer bruxo suficientemente ganancioso e traiçoeiro. Para tornar-se mestre dessa relíquia,
o bruxo teria que aniquilar (ou desarmar) seu atual possuidor. Assim, o mestre dessa varinha
era, na maioria das vezes, um assassino, que completaria esse ciclo de sangue na ocasião de
seu próprio assassinato.

Enquanto Beedle prega sobre uma atitude humilde diante da morte, Xenofílio
Lovegood e outros pregam que o conto revela a possibilidade de derrota-la, tornando-se seu
senhor. O bruxo que estivesse em poder das três relíquias mencionadas alcançaria a
imortalidade. Sob a Capa da Invisibilidade ele andaria por qualquer caminho escondido da
Morte e de qualquer inimigo; com a Varinha das Varinhas em mãos ele jamais seria derrotado
em combate, decretando a morte de outros e; com a Pedra da Ressurreição, controlaria a
fronteira entre o mundo dos vivos e dos mortos, manipulando sua condição de existência. Esta
foi, também, a busca final de Lorde Voldemort, maior antagonista da saga: reunir as relíquias
da morte e tornar-se o feiticeiro mais poderoso que já existiu.

Tal teoria conferiu a “O Conto dos Três Irmãos” destaque em relação aos demais de
Os Contos de Beedle, o Bardo, pois seu enredo justifica e impulsiona ações de personagens
protagonistas em momentos-chaves na saga.

8
Uma horcrux é um feitiço proibido, possível de ser realizado perante o assassinato de alguém. Nessa ocasião, o
bruxo transfere um fragmento de sua alma para um objeto, impedindo a sua morte, já que permanecerá
parcialmente preso à Terra. Voldemort produziu um total de sete horcruxes.
29

2.2 APLICANDO PROPP

2.2.1 Propp e a Morfologia do Conto Maravilhoso

Vladimir Yakovlevich Propp (1895-1970) foi um dos importantes teorizadores da


escola de crítica literária que conhecemos como Formalismo Russo. Ela surgiu da
convergência de interesses dos estudiosos do Círculo Linguístico de Moscou - entre os anos
de 1914 e 1915 – e da Sociedade para o Estudo da Linguagem Poética – em 1916. Esse
movimento dialogava com manifestações artísticas de vanguarda, como o cubismo e o
futurismo. Os formalistas foram pioneiros no estudo do emprego de técnicas literárias
presentes no romance, na novela e no conto. Ademais, dedicaram-se à análise de outros
processos na escrita, como a elaboração de metáforas, a fraseologia e a semântica da
linguagem literária.

O Formalismo Russo tenta dar conta da necessidade do surgimento de uma crítica


literária desvinculada do positivismo e impressionismo vigentes, propondo estudar a
linguagem sob o seu aspecto funcional. Preocuparam-se, principalmente, com a caracterização
da linguagem literária e com questões textuais de composição, métrica e estilo. Pretenderam,
com isso, definir os parâmetros da crítica literária, estabelecendo um método de análise
próprio do objeto literário, além de esclarecer a noção de Literariedade.

Propp foi um integrante tardio desse movimento. Baseado no método formalista


morfológico e descritivo, centrou seu trabalho nos assuntos sobre folclore e etnologia. Sua
maior contribuição foi a obra Morfologia do Conto Maravilhoso, que recebeu merecido
destaque somente muitos anos após sua publicação, durante a década de sessenta, graças às
traduções para línguas ocidentais. Nela, reconhece-se o pioneirismo de Propp em tratar de
questões referentes à narratologia, considerando as funções dos elementos constitutivos do
texto.

Esse estudo foi primeiramente publicado em 1928, ocasião em que foi bem acolhido
por folcloristas, etnógrafos e estudiosos da literatura, ao mesmo tempo em que foi taxado de
formalista e desvalorizado por conta dessas acusações. Lévi-Strauss foi um estruturalista que
reforçou a crítica sobre o trabalho de Propp. Sem negar a importância da pesquisa do teórico
russo, ele tenta deslegitimar os métodos aplicados sobre o corpus em Morfologia. Suas
declarações desfavoráveis à abordagem de Propp foram rebatidas pelo russo, que afirma ter o
30

teórico estruturalista se precipitado em tirar conclusões acerca do seu estudo do conto sem
levar em conta a segunda obra sobre este tema, intitulado As Raízes Históricas do Conto
Maravilhoso (1997). Esta, conjugada à Morfologia, completa a visão proppiana sobre os
contos de fadas. Por meio dessa união, como Lévi-Strauss acusa-o de não fazê-lo, Propp
agrega dados da etnografia a uma análise morfológica nos estudos do gênero.

A segunda parte deste trabalho, contudo, compreende uma concepção morfológica


dos contos. Portanto, a primeira obra do autor terá lugar de destaque. Em Morfologia do
Conto Maravilhoso, Propp considera os contos de magia enquanto categoria particular e
indispensável para seu trabalho. Sua análise consiste em isolar as partes constituintes das
narrativas, comparando os enredos de um corpus de cem contos do folclore russo. Elabora sua
teoria segundo o método formal comparativo, esclarecendo as possíveis relações que se
estabelecem entre as partes e delas com o conjunto.

Ao contrário do que sugere Lévi-Strauss, Propp descarta a possibilidade de escolhas


arbitrárias no seu estudo, pois determina as funções a partir de um processo dedutivo de
comparação detalhada do seu material. Tendo verificado a existência de semelhanças entre
contos originários de culturas e localizações geográficas distintas, o teórico procurou
descrever os mecanismos que justificariam tal profusão. Encontrou o esqueleto que seria a
base da construção de todos os contos de magia. A esse molde canônico e unitário são
conferidas algumas das trinta e uma funções de personagens que ele identificou. As
personagens invariavelmente são confrontadas com algum tipo de desafio, dano ou tarefa.
Propp faz uma diferenciação importante entre a ação realizada pela personagem e a sua
função propriamente dita. O voo, por exemplo, é uma das formas em que se realiza uma
função de deslocamento (G¹). A função – noção mais abrangente – pode assumir diferentes
formas nas esferas de ação do conto.

O conteúdo destas tarefas pode ser diferente e variado, e representa algo mutável;
mas a imposição da tarefa como tal é um elemento estável. Denominei estes
elementos estáveis funções dos personagens. O objetivo da pesquisa consistia em
estabelecer quais as funções que aparecem no conto de magia, em determinar se são
ou não em número limitado, e em que ordem se sucedem. Os resultados desse estudo
constituem o conteúdo do meu livro. As funções resultaram pouco numerosas, suas
formas múltiplas, sua sucessão sempre idêntica, isto é, obteve-se um quadro de
surpreendente regularidade. (PROPP, 1984, p. 215).

Conclui, por fim, que todos os contos de magia são monotípicos, já que suas
construções derivam de uma base em comum. Tendo em vista essa premissa, uma análise de
31

“O Conto dos Três Irmãos” será realizada a fim de que sejam identificadas funções análogas
às de Propp, em uma composição que obedeça aos critérios proppianos.

2.2.1.1 O Modelo Base de Propp

A tabela no Apêndice A consiste em um apanhado sobre o esquema invariante das


funções, disposto no terceiro capítulo de Morfologia do Conto Maravilhoso. Ela está
organizada de modo a tornar mais objetiva a tarefa de identificação dos elementos funcionais
previstos por Propp.

Fez-se necessária a elaboração deste material logo no princípio da análise do corpus,


visto a grande quantidade de variantes para cada função e de designações, além da presença
de algumas subclasses e exceções que serão vistas a seguir. A disposição de seu conteúdo
obedece, rigorosamente, aos preceitos do teórico russo, conforme sua obra previamente
mencionada. Todavia, as informações são trazidas de maneira sucinta, excluindo-se os
exemplos referentes ao corpus estudado pelo autor e destacando-se as particularidades que
diferenciam as designações de um mesmo conjunto de definição.

Proponho, portanto, agilizar o processo de verificação das partes constituintes da


narrativa, oferecendo uma ferramenta que servirá de atalho entre objeto e teoria. No entanto,
se na ocasião da abordagem morfológica de algum conto este material se revelar insuficiente,
sugiro que o olhar do observador repouse diretamente sobre a obra que originou a tabela.
Viabilizará, assim, o preenchimento das lacunas que por ventura tenham fugido à sua alçada.

Por fim, um último aspecto sobre este instrumento de análise deve ser esclarecido.
Estão sombreadas apenas as funções que foram encontradas na estrutura de “O Conto dos
Três Irmãos” e que, portanto, serão alvo de uma investigação mais aprofundada. Por meio da
consulta a esta tabela delineou-se, sistematicamente, a configuração das sequências do conto,
bem como sua equação geral.
32

2.2.2 Decomposição Textual de “O Conto dos Três Irmãos”

Partindo do conhecimento das trinta e uma funções das personagens que poderão
apresentar-se na composição de um conto maravilhoso, assume-se a possibilidade de
desmembrar qualquer texto segundo suas propriedades constituintes. A realização de tal
exercício, neste trabalho, se deu pela aplicação das propriedades expostas na tabela referida na
seção anterior, ao corpus, que compreende “O Conto dos Três Irmãos”. Antes de entrarmos na
decomposição do texto em partes que expressam os elementos funcionais, é imprescindível
que se defina o próprio objeto da análise. Para fins de manutenção da coerência interna deste
estudo, consideremos o conto tal qual Propp o preconiza.

Do ponto de vista morfológico podemos chamar de conto de magia a todo


desenvolvimento narrativo que, partindo de um dano (A) ou uma carência (a) e
passando por funções intermediárias, termina com o casamento (W0) ou outras
funções utilizadas como desenlace. A função final pode ser a recompensa (F), a
obtenção do objeto procurado ou, de modo geral, a reparação do dano (K), o
salvamento da perseguição (Rs), etc. A este desenvolvimento damos o nome de
SEQUÊNCIA. A cada novo dano ou prejuízo, a cada nova carência, origina-se uma
nova sequência. Um conto pode compreender várias sequências e quando se analisa
um texto deve-se determinar, em primeiro lugar, de quantas sequências esse texto se
compõe. (PROPP, 1984, p. 85).

No caso do conto em questão, como veremos a seguir, a narrativa se estrutura por


meio da combinação de quatro sequências. Por enquanto, basta ater-nos ao princípio geral de
composição do conto maravilhoso apontado por Vladimir Propp.

As observações apresentadas podem ser formuladas brevemente nos seguintes


termos:
I. Os elementos constantes, permanentes, do conto maravilhoso são as funções dos
personagens, independentemente da maneira pela qual eles as executam. Essas
funções formam as partes constituintes básicas do conto.
II. O número de funções dos contos de magia conhecidos é limitado. (PROPP, 1984,
p. 27)

Finalmente, passemos à decomposição textual propriamente dita. Segue a análise da


narrativa por partes, conforme o molde do autor apresentado em seu exemplo de análise
(PROPP, 1984, p. 88).
33

Era uma vez três irmãos¹ que estavam 1 – Situação inicial (α).
viajando por uma estrada deserta e 2 – Rudimento de afastamento (β) não
tortuosa ao anoitecer...² especificado.
Depois de algum tempo, os irmãos
3 – Proibição subentendida (γ¹). Introduz
chegaram a um rio fundo demais para
uma adversidade ou obstáculo que será
vadear e perigoso demais para
superado nas ações seguintes.
atravessar a nado.³
Os irmãos, porém, eram versados em
magia, então simplesmente agitaram as
4 – Transgressão (δ¹) que implica e
mãos e fizeram aparecer uma ponte
antecede a entrada do antagonista.
sobre as águas traiçoeiras.4 Já estavam
5 – Entrada do antagonista, na figura de
na metade da travessia quando viram o
Grim Reaper.
caminho bloqueado por um vulto
encapuzado. 5
6 – Motivação das futuras ações do
E a Morte falou. Estava zangada por antagonista. Esse trecho também justifica
terem lhe roubado três vítimas, porque o caráter de proibição que é omitido,
o normal era os viajantes se afogarem porém, subentendido na função δ¹.
no rio.6 Mas a Morte foi astuta.7 Fingiu 7 – O antagonista pretende ludibriar suas
cumprimentar os três irmãos por sua vítimas a fim de causar-lhes dano, neste
magia, e disse que cada um ganhara caso, a morte, apoderando-se delas. Ardil
um prêmio por ter sido inteligente o (η²).
bastante para lhe escapar.8 8 – O antagonista-doador saúda e
interroga os heróis (D²).
Então, o irmão mais velho, que era um
homem combativo, pediu a varinha
mais poderosa que existisse: uma
varinha que sempre vencesse os duelos
para seu dono, uma varinha digna de
um bruxo que derrotara a Morte!9 Ela
atravessou a ponte e se dirigiu a um
vetusto sabugueiro na margem do rio, Triplicação. Os elementos D²-E² pareados
fabricou um varinha de um galho da e o fornecimento do meio mágico F¹3
árvore e entregou-a ao irmão mais ocorrem três vezes, consecutivamente,
velho.10 uma para cada herói.
Então, o segundo irmão, que era um 9 – Cada herói reage à saudação da
homem arrogante, resolveu humilhar Morte (E²), pedindo um objeto mágico
ainda mais a Morte e pediu o poder de que os auxiliará na sua busca ou fuga.
restituir a vida aos que ela levara.9 10 – O meio mágico é fabricado pelo
Então a Morte apanhou uma pedra da doador-antagonista e passado diretamente
margem do rio e entregou-a ao às mãos dos heróis.
segundo irmão, dizendo-lhe que a Fornecimento/recepção do meio mágico
pedra tinha o poder de ressuscitar os (F¹3).
mortos.10
Então, a Morte perguntou ao terceiro e
mais moço dos irmãos o que queria. O
mais moço era o mais humilde e
também o mais sábio dos irmãos, e não
confiou na Morte. Pediu, então, algo
que lhe permitisse sair daquele lugar
34

sem ser seguido por ela.9 E a Morte, de


má vontade, lhe entregou a própria
Capa da Invisibilidade.10

Então, a Morte se afastou para um


lado e deixou os três irmãos
continuarem viagem e foi o que eles
fizeram, comentando, assombrados, a 11 – Inicia-se um deslocamento dos
aventura que tinham vivido e heróis do local do encontro com a Morte
admirando os presentes da Morte. (G2).
No devido tempo, os irmãos se
separaram, cada um tomou um destino
diferente.11
12 – O primeiro irmão parte em busca de
um antigo inimigo (↑).
O primeiro irmão viajou uma semana 13 – É revelada a necessidade de um
ou mais12 e, ao chegar a uma aldeia objeto mágico para que o herói possa
distante, procurou um colega bruxo suprir uma carência (a²), ou seja, vencer
com quem tivera uma briga.13 Armado seu inimigo.
com a varinha de sabugueiro, a 14 – Ocorre a reparação da carência. O
Varinha das Varinhas, ele não poderia objeto de sua busca, o inimigo, é
deixar de vencer o duelo que se encontrado (K4) e a vitória (J¹) sobre ele
seguiu.14 conquistada por meio de combate direto
(H¹), graças ao uso do meio mágico
adquirido em ações precedentes.
Deixando o inimigo morto no chão, o
15 – Ao vangloriar-se sobre a
irmão mais velho dirigiu-se a uma
invencibilidade de sua varinha mágica, o
estalagem, onde se gabou, em altas
primeiro irmão prepara o terreno para a
vozes, da poderosa varinha que
chegada de um novo antagonista. Este
arrebatara da própria Morte, e de que
recebe informações sobre sua vítima (ζ¹).
a arma o tornava invencível.15
Na mesma noite, outro bruxo
aproximou-se sorrateiramente do
irmão mais velho enquanto dormia em 16 – O novo antagonista inflige dano ao
sua cama, embriagado pelo vinho. O herói: ele rouba seu objeto mágico,
ladrão levou a varinha e, para se matando-o em seguida. (A²14)
garantir, cortou a garganta do irmão
mais velho.16
17 – A Morte, antagonista principal do
conto, finalmente leva o irmão mais
Assim, a Morte levou o primeiro
velho, no sono da embriaguez. Dessa
irmão.17
forma, há vitória do antagonista sem
combate prévio (J5contr)
Entrementes, o segundo irmão viajou
para a própria casa, onde vivia 18 – O segundo irmão regressa (↓).
sozinho.18
Ali, tomou a pedra que tinha o poder 19 – É revelada a carência de uma noiva
de ressuscitar os mortos e virou-a três (a¹).
vezes na mão. Para sua surpresa e 20 – O objeto da busca do segundo
alegria, a figura de uma moça que irmão, a noiva falecida, é ressuscitada,
35

tivera esperança de desposar antes de graças ao objeto mágico. Configura-se a


sua morte precoce19 surgiu reparação da carência (K59).
instantaneamente diante dele.20
Contudo, ela estava triste e fria, como
que separada dele por um véu.
Embora tivesse retornado ao mundo
dos mortais, seu lugar não era ali, e ela 21 – Elementos obscuros, que não se
sofria. Diante disso, o segundo irmão, submetem à classificação prevista. (Y)
enlouquecido pelo desesperado desejo,
matou-se para poder verdadeiramente
se unir a ela.21
Assim, a Morte levou o segundo
22 – O antagonista vence (Jcontr.).
irmão22.
O terceiro irmão partiu em fuga da Morte
(↓)
Embora a Morte procurasse o terceiro Sua carência era de um meio seguro para
irmão durante muitos anos, jamais livrar-se daquele encontro infeliz (a6).
conseguiu encontrá-lo.23 23 – A Morte inicia uma perseguição ao
herói, na tentativa de tomar sua vida
(Pr6).

24 – O herói se mantém escondido


durante a fuga, sob a Capa de
Somente quando atingiu uma idade
Invisibilidade (Rs4). Por conta disso, ele
avançada foi que o irmão mais moço
chega incógnito ao seu destino (O).
despiu a Capa da Invisibilidade24 e
25 – O herói realiza a transmissão
deu-a de presente ao seu filho.25
imediata do objeto mágico a seu filho,
como presente (KF¹).
26 – O antagonista não sofre punição,
Acolheu, então, a Morte como uma mas é acolhido pelo herói (Uneg.).
velha amiga26 e acompanhou-a de bom 27 – Ao final do conto, contabiliza-se
grado, e, iguais, partiram desta vida.27 apenas uma vitória do herói dentre os três
confrontos com o antagonista (00J1).

Se isolarmos todas as funções deste conto, obteremos o seguinte esquema:

↑ a² K4 H¹-J¹ ζ¹ A²14 J5contr.


α β δ¹ η²-θ¹ [D²-E² F¹3] x3 G² ↓ a¹ K59 Y Jcontr. 0
0 J¹

↓ a6 Pr6-Rs4 O KF¹ Uneg.

Percebemos na equação, portanto, a presença de quatro sequências. A primeira, que


delineia o conto, engloba as três demais, que dizem respeito ao desenvolvimento das ações de
cada um dos heróis, separadamente. Ao final da sequência principal, está evidenciado o
36

resultado das investidas de um antagonista em comum. Faz-se necessária, neste momento, a


observação das sequências do conto, individualmente. Dessa forma, será possível
compreendermos como o encadeamento das funções se desenvolve.

I. α β δ¹ η²-θ¹ [D²-E² F¹3] x3 G² ----------------------- 00J¹


A sequência principal do conto transcorre, inicialmente, tratando o trio de irmãos
como um único herói. Durante a construção da situação inicial e das circunstâncias que levam
os irmãos ao encontro com o antagonista, as funções são representadas tendo em vista que os
três heróis constituam um grupo unitário. Esse núcleo se desfaz, à medida que o antagonista
se dirige a cada um dos irmãos, de acordo com suas demandas particulares. Quando os três
sofrem a ação do doador-antagonista, sendo concedido um meio mágico diferente a cada um,
emerge a triplicações das funções D², E² e F¹3, representadas isoladas entre colchetes, tendo 3
como algarismo multiplicador. Posteriormente, partem unidos, novamente, do lugar onde
haviam sido interceptados pela Morte.

II. ↑ a² K4 H¹-J¹ ζ¹ A²14 J5contr.


A segunda sequência, bem como as duas seguintes, tem como ponto de partida o
instante em que os irmãos decidem tomar caminhos divergentes. Ela compreende as ações
transcorridas na jornada solo deste que era o irmão mais velho entre os três. Ele parte em uma
busca por alguém do seu passado. Até este momento do conto, nenhum dos heróis sofrera
quaisquer tipos de danos. O que se torna claro na sequência de cada irmão é que apresentam
diferentes carências. No caso do personagem em questão, a carência se dá por conta da
necessidade deste de obter um meio mágico que o auxiliaria a derrotar um antigo inimigo.
Considera-se, portanto, a² = necessidade de um objeto mágico. Dito isso, podemos considerar
que o objetivo da busca deste herói é encontrar (e possivelmente aniquilar) seu inimigo. Logo,
seu objeto de busca será o próprio inimigo. O herói sucede em encontrá-lo, por isso (K4).
Ambos participam de um combate direto, de onde o herói sai vitorioso (H¹-J¹). Ao gabar-se
sobre sua vitória, o herói prepara o terreno para a entrada de um malfeitor que o infligirá
dano. Utiliza-se ζ1 para representar a função informação, em que o antagonista recebe uma
informação sobre sua vítima. Essa função pode aparecer no conto maravilhoso, segundo
investiga Propp (p. 34), tanto pareada com a função ξ (interrogatório, como em ξ – ζ), quanto
independentemente. O antagonista reage a essa informação eliminando o herói nos moldes da
função dano, causado por roubo, seguido de assassínio (A²14). Por meio de outro antagonista
(o ladrão assassino), que incorpora o antagonista principal e dominante nesse conto, a Morte,
37

ela toma para si a primeira vida. A vitória do antagonista sobre o herói, que é eliminado sem
combate prévio, é representada, na equação, por J5contr.

III. ↓ a¹ K59 Y Jcontr.


O segundo irmão, assim como o anterior, é um herói-buscador. Contudo,
diferentemente do primeiro, ele inicia um movimento de regresso (↓). Revela-se a carência de
uma noiva (a¹). O objeto de sua busca é uma falecida donzela com quem pretendia casar-se.
Ele pretende trazê-la de volta à vida. Com o auxílio do objeto mágico, ele realiza esse feito:
consegue ressuscitar a noiva por meio da pedra mágica (K59). Contudo, uma das lições que o
conto traz (sobre as quais discorrerei mais adiante) é a de que não se pode burlar a morte com
truques, ou trata-la levianamente. A mulher que surgiu na frente do segundo irmão não estava
completamente viva, tampouco morta, já que se apresentava neste mundo. Ela não pertencia a
nenhum dos lados do véu, enquanto o herói se via desesperado em pertencer a ela. Para
reparar esse terrível erro que tanto o torturava e juntar-se à amada, ele comete suicídio (Y). A
Morte vence mais uma vez (Jcontr.). É importante atentar para o uso de Y para representar uma
função ausente na classificação realizada por Vladimir Propp. A falta de uma melhor
definição para essa ação sugere que o suicídio não seja uma função recorrente dentre os
contos do inventário sobre o qual o teórico russo se debruçou para elaborar conclusões.

IV. ↓ a6 Pr6-Rs4 O KF¹ Uneg.

O terceiro e mais novo dos irmãos não era tolo ou arrogante. Ele partiu numa fuga
(↓), para que a Morte não o alcançasse. Sua carência consistia em uma maneira de fugir da
Morte sem ser perseguido. Ela é representada por a6, que indica várias outras formas de
carência. Apesar de ser fornecido ao herói um objeto mágico, ele não pediu por um meio
mágico, especificamente. Por isso, sua carência não é representada por a² (carência de um
objeto magico indispensável), como no caso do primeiro irmão que pediu uma varinha mágica
invencível. A Morte se vê obrigada a entregar ao último irmão sua Capa de Invisibilidade, e
não se mostra contente com a sabedoria demonstrada no pedido desse herói. Sua intenção era
de recuperar as chances de tomar a vida dos três irmãos o mais depressa possível. Não fora
difícil vitimar os dois primeiros. Porém, sem poder enxergar por onde o irmão mais novo
andava, seria impossível armar-lhe uma cilada. A Morte não tinha outra possibilidade senão
tentar persegui-lo a fim de matá-lo (Pr6). Procurou-o em vão por longos anos, enquanto ele
sob sua capa mágica, se escondia durante a fuga (Rs4). O herói, a certa altura de sua vida,
38

chegou incógnito (O) a um lugar onde, possivelmente, se estabeleceu formando família ou


tendo regressado a ela (infere-se pelo encadeamento de ações, pois não está explícito). Chega
o momento em que, alcançada uma idade avançada, ele presenteia seu filho com a Capa da
Invisibilidade. A função correspondente é KF¹, transmissão imediata do objeto da busca
como presente. Entende-se por objeto da busca não a capa (que é o meio mágico), mas a
segurança de não ser interceptado pela Morte, viabilizando o seu retorno ao seio familiar. Este
personagem demonstra um entendimento suficiente sobre as leis que regem a sua existência –
que é infinitamente superior ao de seus irmãos. Apesar de ser o caçula dos três, sua sabedoria
exime o antagonista de qualquer punição (Uneg.), principalmente por entender que uma
investida contra a Morte não passaria de uma tentativa fracassada. Somente o terceiro irmão
demonstrou uma postura respeitosa diante da grandeza de seu inimigo, encarando a Morte de
maneira sábia e humilde. Sua vitória (00J¹) proporcionou-lhe uma vida longa e uma passagem
pacífica deste mundo.

Os princípios da organização morfológica do teórico russo se confirmam no texto de


Rowling. Foi constatada uma adequação da construção do conto de Beedle aos parâmetros
estruturais previstos por Vladimir Propp. Contudo, uma ressalva precisa ser feita para que
melhor se esclareça a questão da ORDEM das funções no esquema. Certamente, é um tanto
óbvio afirmar que funções que se apresentam em condição de pareamento - proibição-
transgressão (γ-δ) e ardil-cumplicidade (η-θ) – não impõem dúvidas quanto a ordem em que
ocorrem entre si, pois são indissociáveis e não admitem intercalação com as demais funções.
Por exemplo, para que se configure uma função de transgressão é indispensável que,
anteriormente, tenha surgido a proibição. O que pode acontecer, nesses casos, é que um dos
integrantes do par esteja subentendido no enredo, sendo omitido na equação geral do conto
(como acontece no conto analisado quanto à função γ).
Quando observamos a (des)ordem das funções nas sequências, contudo, notamos
certa fragilidade na aparente linearidade das ações. Em outras palavras, não foi com a mesma
facilidade de compreender as funções de Propp que identifiquei-as em Beedle. O primeiro
obstáculo a ser superado foi, justamente, considerar a ordem de sucessão das funções tal qual
encontra-se no estudo de Morfologia. Propp dá conta desse desafio, que se impõe tão logo se
inicia a análise do texto narrativo.

III.A seqüência das funções é sempre idêntica.


É necessário mencionar que a lei citada refere-se somente ao folclore. Não são uma
peculiaridade de gênero do conto maravilhoso como tal. Os contos criados
39

artificialmente não se submetem a elas. No que concerne ao agrupamento, antes de


tudo, é necessário dizer que nem todos os contos maravilhosos apresentam todas as
funções. Mas isto não modifica de forma alguma a lei da seqüência. A ausência de
algumas funções não muda a disposição das demais. (PROPP, 1984, p. 27)

Sendo assim, assume-se o caráter artificial do livro Os Contos de Beedle, o Bardo, já


que criado pretendendo simular suas origens folclóricas, que sabemos serem ficcionais. Ainda
que a ambientação das histórias em um universo à parte tenha, em algum momento, posto à
prova a convicção de se tratarem de contos de fadas de fato, a observação das técnicas
narrativas em uma investigação morfológica evidenciam o contrário. Propp fornece o aporte
teórico necessário para a definição do objeto literário e suas leis favorecem a compreensão
dos processos criativos que culminam nas produções do gênero como um todo.
40

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os contos de fadas, ou de magia, passaram por diversas transformações ao longo dos


séculos. Nem sempre foram açucarados como os que nos chegam através dos clássicos
Disney, também não são mais cruamente violentos como a primeira Chapeuzinho de Perrault.
Não se conta essas histórias apenas para fazer dormir, para assustar ou parar encantar
crianças. Hoje também se lê, se escreve e se recria uma variedade ilimitada dessas pequenas
fábulas. As funções das personagens se atualizaram. Há casos em que o auxiliar mágico
exerce um papel de terapeuta, já que os heróis se tornam mais complexos, conferindo maior
subjetividade ao texto. É possível admirar a persistência deste gênero literário quando
observamos que seu inventário incorpora os valores de cada época, atualizando-se,
reafirmando-se. Do folclore ao cinema, das canções ao Blu-ray, o conto de fadas segue
presente. São as suas maleabilidade e importância no processo de amadurecimento dos
indivíduos que garantem essa perpetuação. Em suma, “Os contos de fadas mudaram porque
nós mudamos, eles nos acompanham há séculos, trocam de roupa a cada nova geração, e não
parecem dar sinais de cansaço”. (CORSO, 2011, p. 184).

A análise guiada pelo modelo de Propp foca no que acredito ser um dos modelos de
representação de contos de fadas existentes até o momento. Pois esse é um gênero bastante
produtivo. Na obra Os Contos de Beedle, o Bardo, sugere-se que suas histórias possuam
origens remotas, praticamente impossíveis de serem datadas, assim como o corpus de
Morfologia. Por esse motivo, considero que a aplicação de uma teoria centrada na análise dos
componentes primários da narrativa seja conveniente. Não descarto, em qualquer hipótese, a
viabilidade do estudo desse mesmo teórico sobre um corpus menos vinculado à concepção
canônica de conto de fadas (contida no binômio Era uma vez.../felizes para sempre). Pelo
contrário, defendo que as contribuições de Propp para o estudo das narrativas folclóricas
podem ser revalidadas em produções atuais. Todavia, como lembra o autor em sua resposta à
crítica de Lévi-Strauss, anacronismos devem ser evitados. A análise do texto tem de vir
engajada em um viés diacrônico, ou seja, sem ignorar os aspectos históricos em que a obra
emerge.

A aplicação da teoria de Propp permite elucidar objetivamente as marcas de um


modelo tradicional de contos de fadas. Por meio dela poderá ser medido o grau de imersão
41

nesse estilo e detectadas técnicas que possam divergir desse modelo, apontando para
inovações do autor.

Os formalistas nos lembram de valorizar o texto literário por meio de uma crítica
centrada na técnica e desatrelada do biografismo. Para que isso ocorra, sugere-se que a
matéria textual seja suficiente para que se reconheçam os méritos do autor.

O fenômeno Harry Potter – que marcou uma geração de jovens leitores e despertou o
interesse pela leitura em tantas outras crianças – gerou um mercado para o consumo de uma
imensa variedade de produtos da saga, com um alcance tão grande quanto o de suas histórias.
Contudo, inicialmente, o bruxo se tornou conhecido graças à propaganda dos próprios
leitores. Foram poucos os investimentos sobre a obra comparados à dimensão que tem hoje. A
divulgação do potencial do trabalho de Rowling atingiu proporções não esperadas, pois
conjugada à qualidade de sua escrita estava um conteúdo ficcional à altura do imaginário
infantil. Além disso, traz temas vivenciados pela criança contemporânea, sem cair “numa das
ciladas mais comuns, a de tratar as crianças como menos exigentes em termos de literatura
(...)” (CORSO, 2006).

Vista a origem pouco ambiciosa da obra, e considerando que J.K. Rowling era um
nome desconhecido no cenário literário até então, o que mais sustentaria a razão do seu êxito
se não seu talento e domínio sobre a técnica? No que concerne aos livros nascidos da saga,
como no caso de Os Contos de Beedle, o Bardo, Rowling demonstra a mesma competência na
produção de outros gêneros.
42

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Press, 2010.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Tradução de Maria Clara Correa


Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975.

______________. Teorias do Símbolo. Tradução de Maria de Santa Cruz. Lisboa: Edições


70, 1979.
45

APÊNDICE A
Base morfológica dos contos de magia (segundo V. Propp).

Item Definição Designação Descrição Particularidades


Enumeração dos personagens,
Situação
inicial
α apresentação do herói e de
sua situação
Um dos membros da família
β sai de casa
Para o trabalho, para a
Afastamento de uma pessoa mata, para dedicar-se ao
I
β1 da geração mais velha comércio, para a guerra,
“a negócios”
Afastamento
Uma forma
β2 Morte dos pais intensificada de
afastamento
Para uma visita, para
Membro da geração mais
β3 nova se afasta
pescar, para apanhar
frutas
Uma proibição é imposta ao
γ herói
Ordem que impede o
II Proibição γ1 Proibição de fato personagem de fazer
algo
Ordem ou proposta a fazer
γ2 algo
Transgressão
III
(da proibição)
δ
O antagonista procura obter
ξ do herói uma informação
Descobrir o lugar onde se
ξ1 encontram as crianças,
objetos preciosos, etc.
IV Interrogatório
Onde a vítima faz
Forma transformada de
ξ 2
interrogatório
perguntas ao
antagonista
Interrogatório feito por meio
ξ3 de outras pessoas
ζ
Antagonista recebe
V Informação ζ1 informação sobre sua vítima
Interrogatório invertido (ou Provoca a resposta
ζ2 e ζ3 de outro tipo) correspondente
Antagonista tenta ludibriar
η sua vítima para apoderar-se
dela e de seus bens
VI Ardil
η1 Age por meio de persuasão
Atua utilizando meios
η2 mágicos
Atua por meios de fraude e
η3 coação
46

Item Definição Designação Descrição Particularidades


A vítima se deixa enganar,
θ ajudando, involuntariamente,
seu inimigo
O herói deixa-se persuadir em
θ1 tudo
VII Cumplicidade Sofre as consequências
O herói reage mecanicamente
ou apenas facilita o
θ2 e θ3 ao uso de meios mágicos e
trabalho do inimigo
outros
(adormece)
χ Desgraça prévia
Função que confere
movimento ao conto
maravilhoso, ligada ao
O antagonista causa dano ou
nó da intriga. As demais
A prejuízo a um dos membros da
funções que a antecedem
família
formam a parte
preparatória do conto
maravilhoso.
O antagonista rapta uma
A1 pessoa
Ele rouba ou tira um objeto
A2 mágico
Subclasse Eliminação violenta do
AII auxiliar mágico
Ele saqueia ou destrói o que
A3 foi semeado
Função encontrada
A4 Ele rouba a luz do dia
somente uma vez
Ele realiza o roubo de outra
A5 maneira
A6 Ele inflige danos corporais
Geralmente resultado de
Ele provoca um
VIII Dano
A7 desaparecimento repentino
meios mágicos ou
ardilosos
Ele faz exigências ou extorsão
A8 a sua vítima
A9 Ele expulsa alguém
Ele ordena que atirem alguém
A10 no mar
A11 Ele enfeitiça alguém ou algo Ex.:
A12 Ele efetua uma substituição Ex.:
A13 Ele dá ordem de matar
A14 Ele comete um assassínio Ex.:
A15 Ele encarcera ou retém alguém
Ele ameaça alguém com um
A16 matrimônio à força
Subclasse
O mesmo entre parentes
AXVI
Ele ameaça com atos de
A17 canibalismo
Subclasse
O mesmo entre parentes
AXVII
A18 Ele atormenta alguém à noite
A19 Ele declara guerra
47

Item Definição Designação Descrição Particularidades


Falta algo a um membro da
a família
Deseja obter algo
1
a Carência de uma noiva
É necessário/indispensável um
a2 objeto mágico
VIII-A Carência É necessário um objeto
a3 incomum, sem força mágica
a4 Forma específica de carência
Falta de dinheiro ou
a5 Formas racionalizadas
meios para viver
a6 Várias outras formas
Divulgada a notícia de um Função que introduz o
dano ou carência, um pedido é herói no conto. Eles
B feito ao herói ou uma ordem podem ser de dois tipos:
lhe é dada, mandando-o 1)heróis-buscadores;
embora ou deixando-o partir 2)heróis-vítimas.
Emite-se um pedido de
B1 socorro seguido do envio do
Mediação, herói
O herói é enviado Envolve ordem/pedido
IX momento de B2 imediatamente ou promessa/ameaça
conexão
B3 O herói sai de casa Ele tem a iniciativa
B4 Comunica-se o dano
O herói expulso é levado para
B5 longe de casa
O herói condenado à morte é
B6 libertado secretamente
B7 Entoa-se uma canção dolente
Início da O herói-buscador aceita ou
X
reação
C decide reagir
Partida A estrutura do conto
(diferente do maravilhoso implica que
XI
afastamento
↑ O herói deixa a casa
o herói (vítima ou
inicial: ↑≠β) buscador) saia de casa.
A B C ↑ = nó da intriga do conto
48

Item Definição Designação Descrição Particularidades


O herói é submetido a uma
prova, a um questionário, a
D um ataque que o preparam
para receber um meio ou
auxiliar mágico.
O doador submete o herói a
D1 uma prova
O doador saúda e interroga o
D2 herói
Um moribundo ou um morto
Pode assumir caráter de
D3 pedem ao herói que lhes
prova
preste um serviço
Um prisioneiro pede ao
D4 herói que o liberte
Primeira Subclasse O mesmo precedido de
0 4 aprisionamento do doador
XII função do D
doador Alguém se dirige ao herói e
D5 lhe pede clemência
Pessoas que discutem pedem
D6 ao herói que reparta entre
elas seu espólio
D7 Outros pedidos
Prova/oportunidade de
d7 prestar um serviço
Um ser hostil tenta aniquilar
D8 o herói
Um ser hostil luta com o
D9 herói
Mostra-se ao herói um
D10 objeto mágico e propõe-se-
lhe uma troca
O herói reage diante das
E ações do futuro doador
O herói supera ou não
E1 supera a prova
O herói responde ou não
E2 responde à saudação
O herói presta ou não presta
E3 serviço ao morto
O herói liberta um
E4 prisioneiro
O herói poupa alguém que
Reação do
E5 suplica
XIII
herói O herói efetua a partilha e
E6 reconcilia os contendores
O herói realiza algum outro
E7 serviço
O herói se salva de ataques
dirigidos a ele,
E8 redirecionando os danos que
sofreria aos seus inimigos
O herói vence ou não vence
E9 o ser hostil
O herói aceita a troca, mas
E10 usa o objeto contra o doador
49

Item Definição Designação Descrição Particularidades


O meio mágico passa às
mãos do herói. Eles podem
ser: 1)animais; 2)objetos dos
quais surgem auxiliares
F mágicos; 3)objetos que
possuem propriedades
mágicas; 4)qualidades
doadas diretamente
Objeto se transmite
F1 diretamente
Quando o presente tem o
f1 caráter de valor material
Quando a transmissão não se
F neg. produz
Quando o protagonista sofre
F contr. danos nesse processo
Fornecimento- F2 Indica-se o objeto
XIV recepção do F3 O objeto é fabricado
meio mágico O objeto se vende e se
F4 compra
O objeto cai por acaso nas
F5 mãos do herói
O objeto aparece súbita e
F6 espontaneamente
Objeto ou animal
Subclasse Quando o objeto surge da
FVI terra
F7 O objeto se come ou se bebe
F8 O objeto é roubado
Diferentes personagens
F9 colocam-se voluntariamente
à disposição do herói
Coloca-se à disposição do
Este animal torna-se o
f9 herói um meio mágico sob a
auxiliar do herói
forma de animal.
O herói é transportado,
levado ou conduzido ao
G lugar onde se encontra o
objeto que procura
O protagonista voa pelos
Deslocamento G1 ares
no espaço
O protagonista desloca-se
XV entre dois G2 por terra ou água
reinos, viagem
com um guia G3 O protagonista é conduzido
G4 Indicam-lhe o caminho
O protagonista utiliza meios Escadas, passagens,
G5 de transporte imóveis pontes
G6 Ele segue rastros de sangue
Combate direto entre herói e
H antagonista
H1 Lutam em campo aberto
XVI Combate H2 Iniciam uma competição
H3 Jogam cartas
Herói e antagonista Caso particular d conto
H4 comparam seus pesos nº 93
50

Item Definição Designação Descrição Particularidades


I
A marca é impressa em seu
Marca,
I1 corpo
Herói ferido em combate
XVII
estigma O herói recebe um anel ou
I2 uma toalha
I3 Outras formas de estigma
J O antagonista é vencido
É num combate em campo
J1 aberto
J2 É vencido em uma competição
J3 Perde no jogo de cartas
É derrotado na prova da
J4 balança
XVIII Vitória
J5 É morto sem combate prévio Ex.: enquanto dorme
J6 É expulso imediatamente
Quando mais de um
protagonista está na
0 1
J Vitória na forma negativa batalha, mas apenas um
obtém a vitória, enquanto
o outro se esconde
K Ápice do conto
O protagonista consegue o Mediante força ou
K1 objeto da busca astúcia
O objeto da busca é
K2 recuperado por vários Rápida sucessão de ações
personagens ao mesmo tempo
O objeto da busca é obtido
K3 com ajuda de iscas
A obtenção do objeto da busca
K4 é o resultado imediato das
ações precedentes
O objeto procurado é obtido
K5 por meio do objeto mágico
Reparação de A obtenção do objeto mágico Ex.: pata que põe ovos de
XIX dano ou K6 suprime a pobreza ouro
carência O objeto da busca é caçado ou
K7 pescado
O personagem enfeitiçado
K8 volta ao normal
K9 O morto ressuscita
Ressurreição com prévia
Subclasse
obtenção da água da vida e da
KIX morte
K10 O prisioneiro é libertado
Transmissão imediata do
KF1 objeto da busca como presente
Indicação do lugar onde se
KF2 encontra o objeto da busca
Regresso do Pode, também, tomar o
XX
herói
↓ aspecto de fuga
51

Item Definição Designação Descrição Particularidades


Pr Sofrida pelo herói
O perseguidor voa atrás do
Pr1 herói
Ex.: bruxa, dragão
O perseguidor reclama o
Pr2 culpado
3 O perseguidor se transforma
Pr em diferentes animais
Os perseguidores,
XXI Perseguição 4 transformados em uma figura
Pr atraente, se colocam no
caminho do herói
O perseguidor tenta devorar o
Pr5 herói
O perseguidor tenta matar o
Pr6 herói
O perseguidor tenta roer com
Pr7 os dentes a árvore onde se
escondeu o herói
Rs O herói é salvo da perseguição
Rs1 Ele é levado pelos ares
Ele foge, colocando
Rs2 obstáculos no caminho do
perseguidor
Durante a fuga, o herói se
Rs3 transforma em objetos,
tornando-se irreconhecível
O herói se esconde durante a
Rs4 fuga
Salvamento,
XXII 5
resgate Rs Ele se esconde entre ferreiros
Ele se salva, transformando-
Rs6 se, durante a fuga, em animais
ou pedras
7 Ele resiste à tentação pelas
Rs dragoas disfarçadas
Rs8 Ele não se deixa devorar
Ele é socorrido num atentado
Rs9 contra sua vida
10
Rs Ele salta para outra árvore
Fim da primeira série de funções. / Possibilidade de início de uma nova sequência.
Os irmãos
VIII tiraram de
bis. Ivan aquilo
A É jogado no abismo
que obteve
O herói Este elementos pode ser
X-XI
bis.
reinicia sua C↑ omitido nestes casos (bem
busca como B, envio do herói)
O herói passa,
novamente,
pelas ações
XII bis.
que o levam a
D; (cf. XII)
receber um
objeto mágico
52

Item Definição Designação Descrição Particularidades


Nova reação
XIII do herói diante
bis. das ações do
E; (cf. XIII)
futuro doador
Coloca-se à
XIV disposição do
bis. herói um novo
F; (cf. XIV)
objeto mágico
O herói é
transportado
ou conduzido
XV bis. ao local onde G; (cf. XV)
se encontra o
objeto de sua
busca
A partir deste momento, o conto propõe novas funções.
Duas possibilidades:
Chegada O herói chega incógnito a sua 1)ele volta ao lar; 2)ele
XXIII
incógnito
O casa ou a outro país chega ao palácio de um
rei estrangeiro
Pretensões Um falso herói apresenta
XXIV
infundadas
L pretensões infundadas
M É proposta ao herói
M1 Prova de comida e bebida
M2 Prova de fogo
M3 Tarefas de adivinhação
M4 Tarefas de escolha
M5 Esconde-esconde
M6 Beijar a princesa à janela
XXV Tarefa difícil
M7 Saltar para um portão
Provas de força, de agilidade,
M8 de coragem
M9 Provas de paciência
Tarefas de trazer ou fabricar
M10 alguma coisa
M11 Tarefas de fabricação
M12 Outras tarefas
N A tarefa é realizada
XXVI Realização 0
N Casos de realização prévia
O herói é reconhecido graças à
Reconhecim Pode corresponder ao
XXVII
ento
Q marca, estigma ou objeto que
elemento I, cf. XVII
lhe foi entregue
Há diversas formas de
Desmascara desmascaramento,
XXVIII
mento
Ex O antagonista é desmascarado
sendo por meio de
canção ou da narração.
53

Item Definição Designação Descrição Particularidades


O herói recebe nova
T aparência
Recebe nova aparência
T1 diretamente, pela intervenção
do auxiliar mágico
Transfigur
XXIX O herói constrói um palácio
ação T2 maravilhoso
O herói se veste em novas
T3 roupas
Formas racionalizadas ou
T4 humorísticas
Castigo, U O inimigo é castigado
XXX
Punição U neg. O inimigo é perdoado
O herói se casa e sobe ao
trono
Ele recebe esposa e reino
W0 Herói se casa mas se torna rei
Ele apenas passa a ocupar o
W0 trono
Em caso de interrupção do
conto por novo dano, a
Casamento w1 primeira sequência terminará
com a promessa de casamento
XXXI Caso contrário, ele perderá
sua mulher, reatando o
w2 casamento ao final de sua
busca
O herói recebe outra
w3 recompensa, em lugar da mão
da princesa
Não se submetem a esta
Elementos classificação e não se definem
obscuros
Y dentro de nenhuma das
funções citadas.
54

ANEXO 1

CHAUCER, G. Os Contos de Cantuária. Apresentação, tradução direta do inglês médio e notas


de Paulo Vizioli. São Paulo: T. A. Queiroz, 1988.

O CONTO DO VENDEDOR DE INDULGÊNCIAS

Segue-se aqui o Prólogo do Conto do Vendedor de Indulgências.

Radix malorum est Cupiditas: Ad Thimotheum, sexto.*

“Senhores,” – começou ele, – “quando prego nas igrejas, minha única preocupação é
empregar linguagem elevada e falar com voz clara e sonora como um sino, pois sei de cor
tudo o que digo. Meu tema é, e sempre foi, apenas um: Radix malorum est Cupiditas.
“Em primeiro lugar, declaro de onde venho; depois, apresento, uma por uma, todas
as minhas bulas. Antes de qualquer coisa, porém, mostro o selo papal em minha licença, para
garantir-me a integridade física e para que nenhum petulante, padre ou noviço, venha
perturbar me no santo trabalho de Cristo. Somente aí começo a desfiar minhas histórias,
reforçadas com mais bulas de papas e cardeais, de bispos e patriarcas, e entremeadas de
algumas poucas palavras em latim para temperar a minha prédica e estimular ainda mais a
devoção.
“Finalmente, exponho as minhas longas caixas de cristal abarrotadas de trapos e de
ossos... São relíquias, percebem logo os fiéis. Entre elas mostro, revestida de latão, uma
omoplata de carneiro que pertencera a um santo patriarca hebreu. Boa gente, digo, atentem
para as minhas palavras: se alguma vaca, ou bezerro, ou ovelha, ou touro inchar, por ter
comido uma cobra ou dela ter levado uma picada, mergulhem este osso na água de uma
cisterna e com essa água lavem a língua do animal, e ele ficará curado. E não é só, pois a
ovelha que beber dessa mesma água estará livre de erupções, de morrinha e de qualquer outro
mal. Prestem atenção também ao que agora vou dizer: se o bom homem, dono dos animais
doentes, toda manhã, antes que o galo cante, tomar em jejum um gole dessa água, irá então,
segundo o testemunho que legou a nossos pais aquele mesmo santo hebreu, multiplicar os
seus bens e o seu rebanho.
55

“E também é um remédio, senhoras e senhores, contra o ciúme. Se um marido


desconfiado tiver um acesso de fúria, preparem-lhe uma sopa com a água daquela cisterna e
verão que ele nunca mais suspeitará de sua mulher, ainda que conheça a verdade de sua
falsidade e até os seus casos com dois ou três padres.
“Olhem agora estes abrigos para as mãos, estas mitenes! Quem usá-las receberá de
volta em abundância o cereal que plantou, seja aveia ou trigo, – desde, naturalmente, que faça
o donativo de alguns dinheiros ou soldos.
“Meus bons amigos e amigas, tenho, porém, que fazer-lhes uma advertência: se
alguém nesta igreja cometeu algum pecado tão horrível que se envergonha de confessá-lo, ou
se alguma mulher, jovem ou velha, pôs chifres no marido, é bom que saiba que não tem
permissão e não está em estado de graça para oferecer donativos às relíquias aqui expostas.
Mas quem não estiver contaminado por essas mazelas que se aproxime, e, em nome de Deus,
faça a sua oferta, que eu o absolverei com a autoridade que esta bula me concede.
“Ano após ano, graças a essa artimanha, já devo ter ganhado por volta de cem
marcos, desde que passei a vender indulgências. Postado no púlpito como um padre, tão logo
os simplórios se assentam, faço uma pregação parecida com a que acabaram de ouvir, com
uma centena de outras patacoadas. Esforçando-me então para esticar bem o pescoço, inclino-
me a oeste e a leste sobre os ouvintes, parecendo uma pomba pousada no celeiro. A língua e
as mãos não param de agitar-se. Vocês gostariam de ver-me em ação. A minha prédica toda é
contra a avareza e outras maldições do mesmo tipo, para ensinar os fiéis a serem generosos
com o seu dinheiro, – generosos principalmente para comigo. Afinal, meu interesse não é
castigar os seus pecados, mas obter lucros. Pouco me importa se, depois de enterrados, eles
vaguem pelo mundo como almas penadas!
“E não tenham dúvida de que são muitas as prédicas nascidas de más intenções:
algumas provêm do desejo de agradar ao povo e bajulá-lo, para a percepção de vantagens pela
hipocrisia; outras derivam da vanglória; e outras, do ódio. Eu, por exemplo, faço sermões
desta última espécie quando receio polemizar abertamente. Então, enquanto prego, espicaço
com minha língua ferina quem ofendeu a meus irmãos ou a mim, de modo que lhe é
impossível escapar à difamação. Porque, embora eu não revele o seu nome, as pessoas sabem
a quem me refiro pelas insinuações e por outras circunstâncias. É assim que retribuo os
desaforos; é assim que vou cuspindo o meu veneno com ar de santidade, a fim de parecer puro
e inocente.
“Quero confiar-lhes, porém, todas as minhas intenções secretas. Como eu já disse,
não prego outra coisa senão a repulsa à cobiça, de maneira que meu tema ainda é, como
56

sempre foi, Radix malorum est Cupiditas. Assim sendo, prego contra os mesmos pecados que
pratico, a saber, a ambição e a avareza. No entanto, se sou culpado desses vícios, consigo
fazer que muitos os repudiem e se arrependam sinceramente. Se bem que não seja esse o meu
propósito. Na verdade, os próprios sermões que profiro devem-se à cobiça. Mas creio que
disso já falei o suficiente.
“A seguir, ilustro a pregação com muitos exemplos de histórias antigas, de épocas
bem remotas, porque a gente simples gosta de histórias antigas, que podem ser repetidas e
guardadas na memória. Afinal, o que mais querem? Acham que, enquanto posso pregar e
ganhar ouro e prata no meu ministério, vou viver voluntariamente na pobreza? Isso não, meus
amigos; está aí uma coisa que nunca me passou pela cabeça! Enquanto eu for capaz de ensinar
e de esmolar por este mundo, não tenho pretensão alguma de fazer serviços manuais, tecendo
cestas de vime para ganhar a vida. Não tem sentido mendigar para nada. Não, não vou imitar
os apóstolos! Quero dinheiro, trigo, queijo e lãs, mesmo que os obtenha às custas do mais
pobre pajem ou da viúva mais pobre de uma aldeia, com seus filhinhos a morrer de fome.
Não, o que eu quero é o néctar do vinho e uma bela garota em cada cidade.
“Mas, senhores, vamos ao ponto: é desejo de todos que eu conte uma história. Agora
que já bebi uns bons goles desta cerveja concentrada, por Deus, espero poder narrar-lhes algo
que seja deveras de seu agrado. Pois, não obstante eu seja um pecador, tenciono oferecer-lhes
um conto moral que costumo pregar quando à cata de donativos. Agora façam silêncio; vou
começar a história.”
Aqui principia o Conto do Vendedor de Indulgências.

Antigamente, na Flandres, havia um grupo de rapazes que só vivia à cata de folias,


como algazarras, jogatinas, bordéis e tavernas. Nesses antros, ao som de harpas, alaúdes e
guitarras, eles dançavam e arriscavam a sorte nos dados dia e noite, além de beberem mais do
que podiam, amaldiçoadamente oferecendo sacrifícios ao demônio no próprio templo do
demônio, com seus excessos abomináveis. Blasfemavam e juravam a torto e a direito; e era
horrível ouvi-los gritar a todo instante “pelos ossos de Jesus” ou “pelo sangue de Cristo”,
estraçalhando o santo corpo de Nosso Senhor (como se os judeus já não o tivessem dilacerado
o suficiente). E um ria dos pecados do outro. Depois apareciam dançarinas, bonitas e
graciosas, jovens fruteiras, cantoras com harpas, meretrizes, vendedoras de bolos... todas
verdadeiras servas do diabo, peritas em acender o fogo da luxúria, esse vício tão próximo da
gula. Tomo a Sagrada Escritura como testemunha de que a lascívia reside no vinho e na
embriaguez. Lembrem-se do caso de Lot, que, depois de beber, dormiu com as próprias filhas,
57

sem ter consciência do seu ato antinatural: de tão bêbado, nem sabia o que estava fazendo.
Herodes, por sua vez (e quem quiser pode verificar isso no Evangelho), quando, à mesa do
banquete, se achava empanturrado de vinho, deu a ordem para que matassem o inocente João
Batista.
Sêneca nos oferece, a esse respeito, um sábio pensamento: diz ele que não vê
qualquer diferença entre o homem que perdeu o juízo e o que está bêbado, exceto que a
loucura, ao castigar sua vítima, dura mais tempo que a embriaguez. Oh gula, tão cheia de
maldade! Oh causa primeira de nossa Queda! Oh origem de nossa perdição, até que Cristo nos
redimiu com seu sangue! Vejam, para sermos breves, que alto preço tivemos que pagar por
esse vício maldito: o mundo inteiro foi corrompido por causa da gula. Não duvidem: foi
devido a esse pecado que nosso pai Adão e sua mulher foram expulsos do Paraíso para uma
vida de trabalho e sofrimento. Enquanto Adão jejuava (segundo o que tenho lido),
permaneceu ele no reino do Éden; mas, assim que comeu do fruto proibido, foi condenado a
viver de suores e prantos. Oh gula, é mais que justo o nosso lamento!
Oh, soubéssemos quantas doenças decorrem dos excessos e das comilanças, por certo
seríamos mais comedidos à mesa, em nossa dieta! Ai, a garganta breve, a doce boca... são elas
que fazem que os homens trabalhem, leste e oeste e norte e sul, na terra, no ar, na água,
unicamente para a obtenção de comidas refinadas e bebidas para um glutão. São Paulo
abordou muito bem o tema, declarando: “Os alimentos são para o estômago, e o estômago
para os alimentos; mas Deus destruirá tanto estes como aquele.” Ai, por minha fé, é nojenta a
descrição do ato, mas ainda mais nojento é o próprio ato, pois, devido aos malditos excessos,
quando alguém se enche de vinho branco e tinto, simplesmente transforma sua garganta numa
privada.
Diz o Apóstolo a chorar, dominado pela compaixão: “Pois muitos andam entre nós,
dos quais repetidas vezes eu vos dizia e agora vos digo até chorando, que são inimigos da cruz
de Cristo: o destino deles é a perdição, o deus deles é o ventre.” Oh ventre, oh barriga, oh saco
fedorento, cheio de estéreo e podridão, e com ruídos indecentes em cada extremidade!
Quantos trabalhos e gastos para satisfazer a você! Como os cozinheiros amassam e coam e
moem, mudando a substância em acidente, apenas para que sua fome voraz seja saciada! Dos
ossos duros extraem o tutano, pois não se pode jogar fora nada que passe macia e
agradavelmente por sua goela. Com especiarias de folhas e cascas e raízes preparam molhos
deliciosos para aguçarem ainda mais os apetites. Mas estejam certos de que aquele que
procura tais prazeres já morreu, vivendo apenas nesses vícios.
58

O vinho é devassidão, e a embriaguez anda cheia de atritos e misérias. Oh ébrio, que


desfigurado é seu rosto! Que azedo o seu hálito; e que asqueroso é seu abraço! Por seu nariz
bêbado você parece estar sempre dizendo “San-são, San-são”. Mas sabe Deus que Sansão
nunca tomava vinho. Você tropeça como um porco na lama, perdendo não só a fala mas
também o auto-respeito, porque a embriaguez é a própria sepultura da inteligência e da
dignidade. Além disso, não tenham dúvidas, quem se deixa dominar pela bebida não é capaz
sequer de guardar segredos. Por isso, fiquem longe do branco e do tinto... principalmente
daquele vinho branco espanhol da cidade de Lepe*, vendido em Fish Street e em Cheapside:
esse vinho forte costuma, não sei como, contaminar sorrateiramente os suaves vinhos da
França, guardados ali ao lado, os quais passam a provocar tais vapores na cabeça que, depois
de apenas três goles, alguém que se julga em casa em Cheapside, ou se imagina em La
Rochelle ou em Bordéus, acaba se achando na Espanha, naquela cidade de Lepe. E, não
demora muito, também está dizendo “San-são, Sansão”.
Muita atenção, porém, a esta palavra que prego, meus senhores: todos os atos
sublimes e vitoriosos no Velho Testamento, sob a égide do verdadeiro Deus, que é onipotente,
foram praticados na abstinência e na oração. Leiam a Bíblia, e irão constatar isso.
Pensem no caso de Átila, o grande conquistador huno: morreu bêbado, enquanto
dormia, vergonhosamente e sem honra, a deitar sangue pelo nariz. Um comandante tem a
obrigação de viver na sobriedade.
E, acima de tudo, atentem muito bem para o que foi ordenado a Lemuel (não Samuel,
eu disse Lemuel): a Bíblia expressamente proibiu o vinho a quem, como ele, administrava a
justiça. Mas basta; sobre isso já falei o suficiente.
Depois de discorrer sobre a gula, eu gostaria agora de condenar da mesma forma a
prática do jogo, essa verdadeira mãe das mentiras, dos engodos e dos malditos perjúrios, de
blasfêmias contra Cristo e também de assassinatos, esse desperdício de dinheiro e tempo. E, o
que é pior, esse vício acarreta a destruição e a negação da honra, arruinando os jogadores
inveterados, que se tornam tanto mais dissolutos quanto mais elevada for a sua condição. Os
príncipes dados ao jogo, por exemplo, sempre ficam com suas reputações de governantes e de
políticos diminuídas perante os olhos do povo.
Stilbon, que era um sábio embaixador, foi mandado pelos lacedemônios a Corinto,
em meio a grandes honras, para firmar um tratado de aliança. Chegando àquela cidade,
entretanto, quis o acaso que encontrasse todos os maiores homens do lugar completamente
absortos no jogo, razão pela qual desistiu de sua missão, retornando logo que pôde à sua terra.
Lá declarou: “Não quero destruir minha reputação e receber a vergonhosa pecha de haver
59

pactuado com jogadores. Se meus patrícios o desejarem, que enviem outros legados; quanto a
mim, prefiro morrer a aliar-me com tal gente. Mas sei que minha cidade, tão gloriosa e digna,
nem com minha anuência nem com minhas tratativas aceitaria um pacto com esses viciados.”
Assim se manifestou aquele sábio filósofo.
E não esqueçam o Rei Demétrio, a quem o Rei dos Partas mandou de presente, –
pelo que afirma o livro, – um par de dados de ouro, mostrando assim o desprezo que votava
àquele seu hábito de jogar, um vício que tanto manchou o valor e a fama de sua glória e de
seu nome. Muitas outras distrações honestas têm os nobres à sua disposição para passarem o
tempo.
Agora eu gostaria de dizer uma ou duas palavrinhas a respeito dos juramentos,
verdadeiros ou falsos, à luz do que ensinam velhos livros.
Se jurar é coisa abominável, jurar falso é mais repreensível ainda. O Altíssimo
proibiu-nos de jurar... vejam em São Mateus. Especialmente sobre os juramentos, contudo, eis
o que disse o profeta Jeremias: “Farás juramentos verdadeiros, sem mentir; e jurarás com
retidão e eqüidade, pois o juramento leviano é danação.”
Olhem e vejam o que determina o segundo mandamento da primeira Tábua do
honorável Decálogo do Senhor: “Não usarás meu santo nome em vão.” Eis aí como, antes
mesmo do homicídio e de muitos outros crimes amaldiçoados, proibiu Ele os juramentos. E,
pela ordem, digo que assim deve ser... Quem entende a razão de cada mandamento de Deus,
sabe muito bem o motivo porque este é o selo. Por isso eu aviso, com toda a franqueza, que o
castigo não passará ao largo da casa de quem abusa dos juramentos. “Pelo precioso coração
do Senhor!” e “Por seus cravos!” e “Pelo sangue de Cristo que está na abadia de Hailes*, meu
número de sorte é sete, os de vocês são cinco e três!” “Pelos braços de Deus, se você fizer
trapaça no jogo, este punhal lhe atravessa o coração!” São estes os frutos dos dados, daqueles
dois ossinhos polidos de cadela: o perjúrio, a cólera, a mentira, o assassinato. Por isso, pelo
amor de Cristo que morreu por nós, não façam mais juramentos, não importa se falsos ou
verdadeiros. Mas agora, senhores, vou continuar a minha história.
Aqueles três rufiões de que eu falava, antes mesmo que a hora prima soasse em
qualquer campanário, já se achavam sentados numa taverna a beber. Foi então que ouviram o
dobre fúnebre de um sino por um corpo qualquer que estava sendo levado à sepultura. Um
deles chamou imediatamente o seu criado e ordenou-lhe: “Depressa, vá correndo perguntar de
quem é o corpo que está passando aí em frente, e venha dizer-me o nome direitinho.”
“Senhor”, respondeu-lhe o garoto, “não é preciso. Duas horas antes que chegassem,
já me inteirara de tudo. Trata-se de um velho companheiro seu, que foi morto
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inesperadamente ontem à noite, quando bebia vinho sentado num banco. Entrou lá uma tal de
Morte, uma ladra sorrateira que anda matando todas as pessoas do lugar, e ela, com sua lança,
partiu-lhe o coração em dois e foi-se embora sem dizer palavra. Só na última epidemia de
peste levou por volta de mil. Meu amo, se o senhor tem intenção de enfrentá-la, é melhor
tomar muito cuidado com essa adversária, porque ela sempre ataca de surpresa. Foi o que
minha mãe me disse. E isso é tudo o que sei.”
“Por Santa Maria”, exclamou o taverneiro, “o rapazinho tem razão, pois num grande
povoado, a pouco mais de uma milha daqui, ela matou este ano muitos homens e mulheres,
crianças, servos da gleba e pajens. Acho que deve estar morando por lá. Mas quem não
desejar ser vergonhosamente batido por ela, que fique de sobreaviso.”
“Braços de Deus”, gritou o primeiro rufião, “será que é tão perigoso assim um
encontro com a Morte? Pois juro, pelos valiosos ossos do Senhor, que vou procurá-la por
todas as estradas e trilhas. Escutem, amigos: nós três pensamos do mesmo modo. Vamos
então erguer os braços e jurar que sempre seremos irmãos; depois, iremos juntos liquidar
aquela falsa traidora. Pela dignidade do Senhor, antes mesmo que anoiteça, teremos matado
aquela que a tantos matou.”
A seguir, os três juraram solenemente que viveriam e morreriam juntos, um pelo
outro, como verdadeiros irmãos de sangue. E, completamente ébrios em sua ira, levantaram-
se e dirigiram-se para o povoado de que falara o taverneiro. E, no trajeto, lançavam pragas e
juras horríveis, espedaçando o abençoado corpo de Cristo e prometendo, caso a encontrassem,
que a Morte morreria.
Nem bem haviam percorrido meia milha quando, no momento em que iam pular uma
cerca, avistaram um homem muito velho e maltrapilho. Humildemente o ancião
cumprimentou-os com estas palavras: “Senhores, que Deus os proteja.”
A isso, entretanto, retrucou o mais orgulhoso dos três rufiões: “Ora, camponês
imbecil, por que você anda desse jeito, todo embrulhado e só com o rosto de fora? E por que
continua vivo nessa idade, depois que há muito a sua hora já passou?”
Fixando os olhos no semblante do outro, disse o velhinho: “Porque, apesar de ter
viajado a pé até a Índia, em nenhum lugar pude encontrar até agora, na cidades e nas vilas,
quem quisesse trocar sua juventude pela minha velhice. Por isso, enquanto Deus o desejar,
sigo a viver com minha idade.
“Ai, nem a Morte aceita a minha vida. Diante disso, nada me resta fazer, senão andar
por aí como um escravo atormentado, batendo a todo instante com meu cajado no chão (que é
a entrada da casa de minha mãe) e gritando: “Oh mãe querida, deixe-me entrar! Olhe como
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estou definhando, nas carnes, nos ossos, na pele. Ai de mim, quando meus ossos terão
descanso? Mãe, quero dar-lhe todo o baú de roupas que guardo há muito tempo no meu
quarto, e receber em troca apenas uma mortalha para me abrigar.” Ela, porém, nem assim me
concede essa graça, e meu rosto vai ficando cada vez mais pálido e encovado.
“Quanto aos senhores, devo lembrar-lhes que não é educado dirigirem-se a um velho
de modo tão grosseiro, a menos que ele os tivesse ofendido com palavras ou atos. Está dito
nas Santas Escrituras: ‘Diante das cãs te levantarás, e honrarás a presença do ancião’. Por
isso, aconselho-os a não maltratarem os idosos, se não desejam ser maltratados em sua própria
velhice, caso cheguem até lá. E, a pé ou a cavalo, que Deus sempre os acompanhe. Agora
preciso ir para onde tenho que ir.”
“Não, velhaco, por Deus, isso é que não”, berrou o jogador que antes lhe falara. “Não
pense que vai livrar-se de nós tão facilmente, por São João! Você mencionou aquela traidora,
a Morte, que anda matando todos os nossos amigos por aqui. Sei que você é seu espião. Por
isso, diga-nos logo onde ela está, ou terá muito de que se arrepender, juro por Deus e pelo
Santo Sacramento! É evidente que você está mancomunado com ela para matar todos os
jovens como nós, ladrão infame.”
“Bem, senhores”, retrucou o velho, “se fazem tanta questão de conhecer a Morte,
tomem aquela senda tortuosa, pois, por minha fé, não faz, muito que a deixei naquele bosque,
debaixo de uma árvore. E lá deve estar ainda, porque não se assusta com as suas ameaças.
Estão vendo aquele carvalho? É lá mesmo que irão encontrá-la. Espero que Cristo, o redentor
da humanidade, venha corrigi-los e salvá-los.” Assim falou o velho.
Os três correram sem demora em direção à árvore e, lá chegando, depararam com
uma pilha de luzentes e redondinhos florins de ouro, cerca de oito alqueires de moedas recém
cunhadas... Esqueceram-se por completo da Morte, deslumbrados por aquela visão. E,
fascinados pela beleza e pelo brilho dos florins, sentaram-se os três ao redor do valioso
tesouro. O pior deles foi quem falou primeiro:
“Irmãos, prestem muita atenção ao que vou dizer, porque, se é fato que gosto de
estripulias e de jogos, também tenho a cabeça no lugar. A Fortuna nos deu este tesouro para
passarmos o resto da vida na diversão e na alegria, visto que vai fácil aquilo que vem fácil.
Pela preciosa dignidade do Senhor, quem diria que hoje iríamos receber tamanha graça? No
entanto, a nossa felicidade só será completa quando pudermos levar este ouro para a minha
casa... ou para a de vocês, não importa, porque este ouro todo é nosso. A verdade, porém, é
que não podemos fazer isso durante o dia: surpreendidos, seríamos acusados de ladrões e
enforcados por estarmos com o que é nosso. Este tesouro tem que ser removido à noite, às
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escondidas e com o máximo cuidado. Por isso, acho melhor tirarmos a sorte para vermos em
qual de nós três recai; e o sorteado, de bom grado, irá correndo à cidade, o mais depressa que
puder, e, sem dizer nada a ninguém, comprará pão é vinho para nós. Enquanto isso, os outros
dois ficarão discretamente por aqui, tomando conta do tesouro. E, se não houver atrasos, ao
cair da noite levaremos o achado para o lugar que, de comum acordo, nos parecer melhor.”
Assim dizendo, estendeu ele o punho fechado sobre três palitos e pediu aos outros que
tirassem a sorte e mostrassem o resultado. O escolhido foi o mais jovem, que imediatamente
se dirigiu para a cidade. Assim que ele virou as costas, um dos que ficaram disse ao
companheiro: “Você sabe que jurei ser seu irmão, e que, por isso mesmo, farei o que puder
para ajudá-lo a progredir na vida. Nosso companheiro se foi; e aqui está todo este ouro, esta
pilha enorme, que tem que ser repartida entre nós três. Que tal? Você não acha que eu já lhe
estaria prestando um favor se lhe mostrasse um jeito de dividirmos tudo isso apenas entre nós
dois?”
Respondeu o outro: “Não consigo imaginar como: ele sabe que o ouro ficou conosco.
O que poderíamos fazer? E o que diríamos a ele?”
“Você jura guardar segredo?” perguntou o primeiro vilão. “Se jurar, vou dizer-lhe
em poucas palavras como fazer as coisas e resolver o problema.”
“Claro que sim”, garantiu o outro; “eu não iria trair a sua confiança.”
“Pois muito bem”, prosseguiu o primeiro. “Você está vendo que somos dois, e sabe
que dois podem mais do que um. Assim que ele voltar, trate de levantar-se e de aproximar-se
dele como que a brincar; aproveitando-me de sua distração com essa luta de faz-de-conta,
venho por trás e dou-lhe umas punhaladas nas costas, nos dois lados, enquanto você faz o
mesmo pela frente com a sua adaga. Aí, meu caro amigo, todo este ouro será repartido
somente entre nós dois, e poderemos realizar todas as nossas ambições e jogar dados à
vontade.” E assim os dois velhacos concordaram em matar o terceiro, tal como relatei.
Enquanto isso, o mais jovem, a caminho da cidade, levava na lembrança a beleza
daqueles florins novinhos e brilhantes, que passavam e repassavam em sua mente. “Oh
Senhor,” pensou, “se eu pudesse ter todo aquele tesouro só para mim, não haveria ninguém
mais feliz do que eu sob o trono de Deus.” Por fim o demônio, o nosso inimigo, inculcou-lhe
a idéia de comprar veneno para assassinar os seus dois companheiros... visto que, devido a seu
modo de vida, o diabo obteve permissão para arruiná-lo. Conseqüentemente, acabou ele
tomando a decisão de liquidar a ambos, e sem arrependimentos.
Com isso em mente, estugou o passo em direção à cidade, à loja de um boticário,
onde pediu um veneno para matar os ratos que, contou ele, infestavam sua casa, além de uma
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doninha que havia pilhado os frangos de seu quintal. Se possível, desejava agora vingar-se
daqueles bichos que, durante a noite, lhe davam tantos prejuízos.
O boticário assegurou-lhe: “O senhor vai levar uma coisa que, Deus guarde minha
alma... Não há no mundo criatura que coma ou beba deste composto, – nem que seja uma
quantia do tamanho de um grão de trigo, – e que não perca num instante a vida. Morre
mesmo; não chega a caminhar nem uma milha, tão forte e violento é este veneno.” O
amaldiçoado tomou nas mãos a caixinha com a droga e prontamente correu para uma rua
próxima, onde pediu a um homem que lhe emprestasse três garrafas. Em duas delas despejou
veneno, conservando limpa para si a terceira, pois esperava bebericar um pouco enquanto
trabalhava a noite inteira para retirar sozinho o ouro do local. Em seguida, esse rufião
amaldiçoado encheu de vinho as três garrafas e voltou para junto de seus camaradas.
Para que alongar o sermão? Pois assim como os outros dois haviam planejado a sua
morte, assim o mataram, sem tardança. Feito isso, disse um deles: “Agora vamos sentar-nos
um pouco e beber e festejar; depois enterraremos o corpo.” E, assim fazendo, aconteceu que,
por acaso, ele apanhou uma das garrafas envenenadas, sorveu uns goles e passou o resto para
o companheiro. Dentro de pouco tempo, ambos estavam mortos.
Tenho certeza de que Avicena* jamais descreveu, em qualquer capítulo ou em
qualquer Cânone, tantos sintomas espantosos de envenenamento quantos se manifestaram
naqueles dois infelizes até que entregassem as almas. E assim acabaram-se as vidas daqueles
dois homicidas, e também a de seu envenenador traiçoeiro.
Oh pecado maldito de completa danação! Oh traidores assassinos, oh maldade!
Indecente e perjuro blasfemador de Cristo, nascido do vício e da soberba! Ai, humanidade,
como pode você ser tão falsa e tão cruel para com o Criador que a fez, e para com o sangue do
precioso coração que a redimiu?
E agora, boa gente, que Deus perdoe as faltas de vocês. Mas acautelem-se todos
contra o pecado da avareza: minhas santas indulgências poderão salvá-los... Basta que
ofereçam alguns “nobres” ou libras, ou broches de prata, colheres, anéis. Venham inclinar-se
diante desta bula sagrada! Aproximem-se, minhas senhoras, ofereçam um pouco de sua lã!
Seus nomes serão incluídos aqui, na minha relação, e suas almas entrarão na glória do
Paraíso. Com meus elevados poderes, concedo a minha absolvição a todos, – todos os que
fizerem donativos, deixando-os puros e imaculados como na hora em que nasceram, senhores,
como prego. E que Jesus Cristo, o sanguessuga espiritual que cura as nossas almas, lhes
garanta o seu perdão. E asseguro-lhes que isto é a melhor coisa que podem receber.
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Epílogo

“Mas, senhores”, continuou o Vendedor de Indulgências, “mais uma palavrinha, que


esqueci em minha história: tenho, no meu malote, relíquias e indulgências como poucas na
Inglaterra, e que o Papa me entregou com suas próprias mãos. Se alguém aqui desejar, por
devoção, fazer um donativo e receber a minha absolvição, aproxime-se, por favor, e ajoelhe-
se humildemente para obter a remissão dos pecados. Ou, se preferir, poderá fazer isso ao
longo da viagem, diversas vezes até, na saída de cada cidade, desde que sempre ofereça
alguns dinheiros e ‘nobres’, dos verdadeiros e bons. É uma honra para vocês terem em sua
companhia um Vendedor de Indulgências qualificado, autorizado a absolvê-los em todos os
casos que se passarem por aí. Além disso, um ou dois de vocês podem ter o infortúnio de cair
do cavalo e quebrar o pescoço. Vejam que segurança a minha presença nesta comitiva, pois
posso conceder o perdão a todos, humildes e poderosos, quando a alma tiver que deixar o
corpo.
“Creio que o primeiro a ser atendido deve ser o nosso Albergueiro, por estar mais
coinvolto no pecado. Dê um passo à frente, Senhor Albergueiro, e faça o seu donativo. Com
isso, permitirei que beije todas as minhas relíquias. Sim, por apenas uma moeda! Vamos, abra
a fivela da bolsa!”
“Fora, ichacorvo! Isso é que não”, respondeu ele, “não quero a maldição de Cristo
sobre mim! Deixe para lá, que nessa eu não caio, – pela salvação de minha alma! O que você
quer é que eu beije as suas velhas bragas, jurando ser a relíquia de algum santo, ainda que
emporcalhadas pelo buraco do seu traseiro! Pela cruz de Cristo encontrada por Santa Helena,
em vez de relicários ou relíquias, o que eu gostaria de ter nas mãos são seus culhões. Vamos
cortá-los? Se quiser, ajudo a trinchar. E depois nós vamos entronizá-los num monte de bosta
de porco.”
O Vendedor de Indulgências não respondeu sequer uma palavra; era tanta a sua
cólera, que perdeu a fala.
“Ora”, disse o Albergueiro, “está bem, prometo que não vou nunca mais fazer
brincadeiras com você. Nem com ninguém mais que fique zangado por qualquer coisinha.”
Foi então que o nobre Cavaleiro, vendo que quase todos estavam rindo, houve por bem
interferir: “Agora deixem disso; vocês já foram longe demais. Senhor Vendedor de
Indulgências, acalme-se, volte a sorrir; e o senhor, Senhor Albergueiro, a quem tanto prezo,
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vamos, dê um beijo no Vendedor. Homem dos Perdões, aproxime-se, por favor; e vamos
todos tornar a rir e a divertir-nos.” Eles então se beijaram, e nós voltamos a cavalgar.

Aqui termina o Conto do Vendedor de Indulgências.

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