Cadernos FGV DIREITO RIO - Vol. 12

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 274

CadernosFGVDIREITORIO

Educação e Direito - Volume 12 – 2015


Tema: Direito, Cultura POP e Cultura Clássica

Pedro Rubim Borges Fortes (Org.)


Adriana Lacombe Coiro
Ana Elvira Luciano Gebara
Denis J. Galligan
Eduardo Muylaert
Germano Schwartz
Henry J. Steiner
José Garcez Ghirardi
Lawrence M. Friedman
Manuel A. Gómez
Pedro N. Mizukami
Tercio Sampaio Ferraz Junior
William Twining
CadernosFGVDIREITORIO
Educação e Direito - V. 12 - Rio de Janeiro - 2015

APRESENTAÇÃO
Pedro Rubim Borges Fortes

INTRODUÇÃO
Pedro Rubim Borges Fortes

DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR


Lawrence M. Friedman

SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR: A CONSTRUÇÃO


DE UM DIÁLOGO E O PAPEL DO MENSALÃO
Adriana Lacombe Coiro

FOTOGRAFIA, CULTURA POPULAR E DIREITO


Henry J. Steiner

DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA


Eduardo Muylaert

JOGOS ELETRÔNICOS E DIREITO


Pedro N. Mizukami

DIREITO & ROCK: WHEN TWO WORLDS COLLIDE


OU BREAK ON THROUGH… TO THE OTHER SIDE?
Germano Schwartz

LOOK AT ALL THESE LONELY PEOPLE: AINDA A INTERPRETAÇÃO


EM ARTES E DIREITO
Ana Elvira Luciano Gebara
José Garcez Ghirardi

PRISÕES, BORDÉIS E AS PEDRAS DA LEI: DISCURSOS MODERNOS


SOBRE O DIREITO EM JOHN AUSTIN E WILLIAM BLAKE
José Garcez Ghirardi

DIREITO E LITERATURA: SONHO DE UM DILETANTE? PARTE B


William Twining

MOSES UND ARON: MÚSICA E LIBRETO DE ARNOLD SCHOENBERG


Tercio Sampaio Ferraz Junior

SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL


Denis J. Galligan

NO LIMITE: A REPRESENTAÇÃO DO DIREITO E DA ORDEM SOCIAL


NÃO OFICIAIS NA SÉRIE DE TELEVISÃO BREAKING BAD
Manuel A. Gómez

ATIVISMO CINEMATOGRÁFICO:
A DEFESA DE MINORIAS POR CINEASTAS.
Pedro R. Fortes
Todos os direitos desta edição reservados à FGV DIREITO RIO

Praia de Botafogo, 190 | 13º andar


Rio de Janeiro | RJ | Brasil | CEP: 22250-900
55 (21) 3799-5445
www.fgv.br/direitorio
CADERNOS FGV DIREITO RIO
DIREITO, CULTURA POP
E CULTURA CLÁSSICA
EDIÇÃO FGV DIREITO RIO
Obra Licenciada em Creative Commons
Atribuição — Uso Não Comercial — Não a Obras Derivadas

Impresso no Brasil / Printed in Brazil


Fechamento da 1ª edição em dezembro de 2015
Este livro consta na Divisão de Depósito Legal da Biblioteca Nacional.

Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores.

Organização: Pedro Rubim Fortes


Produção executiva: Sacha Mofreita Leite e Rodrigo Vianna
Capa: FGV DIREITO RIO
Diagramação: Leandro Collares – Selênia Serviços
Revisão: Renata da Silva França

Ficha catalográfica elaborada pela


Biblioteca Mario Henrique Simonsen / FGV

Direito, cultura pop e cultura clássica / Escola de Direito do Rio de


Janeiro da Fundação Getulio Vargas. - Rio de Janeiro : Direito
Rio, 2015.
272p. – (Cadernos FGV DIREITO RIO; 12)

Conteúdo: Direito, advogados, e cultura popular / Lawrence M.


Friedman – Supremo, mídia e cultura popular: a construção de
um diálogo e o papel do mensalão / Adriana Lacombe Coiro
– Fotografia, cultura popular e direito / Henry J. Steiner - Di-
reito e fotografia: duas paredes da mesma caverna / Eduardo
Muylaert – Jogos eletrônicos e direito / Pedro N. Mizukami – Di-
reito & rock: when two worlds collide ou break on throught...to
the other side? / Germano Schwartz – Look at all these lonely
people: ainda a interpretação em artes e direito / Ana Elvira
Luciano Gebara, José Garcez Ghirard – Prisões, bordéis e as
pedras da lei: discursos modernos sobre o direito em John Aus-
tin e William Blake / José Garcez Ghirardi – Direito e literatura:
sonho de um diletante?: parte B / William Twining – Moses und
Aron: música e libreto de Arnold Schoenberg / Tercio Sampaio
Ferraz Junior – Shakespeare e o registro popular do pensamen-
to constitucional / D. J. Galligan – No limite: a representação
do direito e da ordem social não oficiais na série de televisão
Breaking Bad / Manuel A. Gómez – Ativismo cinematográfico:
a defesa de minorias por cineastas /Pedro R. Fortes
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-63265-60-9

1. Direito. 2. Direito – Estudo e ensino. 3. Cultura e direito. 4.


Organização judiciária no cinema. 5. Direito e arte. 6. Direito e lite-
ratura. I. Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio
Vargas. II. Série.

CDD — 340
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 7

INTRODUÇÃO 9

DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 17


Lawrence M. Friedman

SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR: A CONSTRUÇÃO DE UM


DIÁLOGO E O PAPEL DO MENSALÃO 51
Adriana Lacombe Coiro

FOTOGRAFIA, CULTURA POPULAR E DIREITO 75


Henry J. Steiner

DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 89


Eduardo Muylaert

JOGOS ELETRÔNICOS E DIREITO 125


Pedro N. Mizukami

DIREITO & ROCK: WHEN TWO WORLDS COLLIDE


OU BREAK ON THROUGH… TO THE OTHER SIDE? 139
Germano Schwartz

LOOK AT ALL THESE LONELY PEOPLE: AINDA A INTERPRETAÇÃO


EM ARTES E DIREITO 151
Ana Elvira Luciano Gebara
José Garcez Ghirardi
PRISÕES, BORDÉIS E AS PEDRAS DA LEI: DISCURSOS MODERNOS
SOBRE O DIREITO EM JOHN AUSTIN E WILLIAM BLAKE 161
José Garcez Ghirardi

DIREITO E LITERATURA: SONHO DE UM DILETANTE? PARTE B 173


William Twining

MOSES UND ARON: MÚSICA E LIBRETO DE ARNOLD SCHOENBERG 195


Tercio Sampaio Ferraz Junior

SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO


CONSTITUCIONAL 201
Denis J. Galligan

NO LIMITE: A REPRESENTAÇÃO DO DIREITO E DA ORDEM SOCIAL


NÃO OFICIAIS NA SÉRIE DE TELEVISÃO BREAKING BAD 243
Manuel A. Gómez

ATIVISMO CINEMATOGRÁFICO:
A DEFESA DE MINORIAS POR CINEASTAS. 253
Pedro R. Fortes
APRESENTAÇÃO

A série Cadernos FGV DIREITO RIO acompanha a escola desde seu início como
um espaço privilegiado de reflexão sobre ensino jurídico. Desde a edição inau-
gural de 2005 — quando se publicou seu projeto pedagógico e um estudo do
professor Roberto Mangabeira Unger sobre quais deveriam ser as característi-
cas básicas de uma nova faculdade de direito no Brasil — as publicações têm
trazido uma coleção de artigos, pareceres e relatórios sobre diversas experiên-
cias acadêmicas marcantes da trajetória da FGV DIREITO RIO.
Assim, os cadernos têm funcionado como fórum de discussão teórica e prá-
tica sobre perspectivas pedagógicas, a saber, estratégia de ensino, estrutura das
aulas e composição do currículo. Têm-se, ainda, feito o registro histórico de prá-
ticas acadêmicas diversas, tais como a construção da disciplina Teoria do Direito
Constitucional, de uma prática jurídica qualificada e do ensino do direito por
meio do cinema ou da literatura. Edições foram especialmente dedicadas a cer-
tas metodologias específicas, tais como o estudo de caso — método participati-
vo característico da proposta inovadora de ensino da escola — e a pesquisa jurí-
dica etnográfica — sendo também a pesquisa empírica uma marca registrada da
FGV DIREITO RIO. Outros exemplares, por sua vez, resgataram textos históricos
sobre ensino jurídico, brindando nossos leitores com autores clássicos como Al-
fredo Lamy Filho, Gilberto Freyre e San Tiago Dantas, por exemplo. Funcionando
dentro do espírito da escola como um espaço livre de debates e não hierarqui-
zado, desde um artigo sobre a simplificação da linguagem jurídica em 2006, de
autoria de João Zacharias de Sá, a série já publicou dezenas de textos de nossos
alunos com diversas reflexões sobre variados assuntos. Recentes volumes explo-
raram os temas da Globalização do ensino jurídico e Formação da advocacia con-
temporânea, contendo trabalhos inéditos de renomados autores internacionais
como Helena Alviar, Bryant Garth e Rogelio Perez-Perdomo preparados espe-
cialmente para a nossa série, além de ensaios originais de importantes professo-
res brasileiros. Finalmente, nosso último volume trouxe justamente uma série de
experiências acadêmicas inovadoras com Ensino Jurídico, Cultura Pop e Cultura
Clássica, de maneira que possui um conteúdo complementar a este título.
8 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Em meio a esta pluralidade de temas e autores, nossos cadernos preten-


dem combinar o espírito ensaístico típico dos cahiers franceses com o rigor
intelectual característico dos livros acadêmicos. Por compartilharmos questões
comuns do cotidiano dos professores de direito, resolvemos disponibilizar am-
plamente e de forma gratuita a série Cadernos FGV DIREITO RIO para a co-
munidade acadêmica lusófona. Além disso, convidamos professores de outras
instituições acadêmicas nacionais e internacionais para aprendermos suas pre-
ciosas lições e, por meio desta série, multiplicarmos nosso conhecimento so-
bre ensino jurídico, mercado profissional e metodologias. Esperamos que este
volume amplie os termos do debate e os horizontes da reflexão e desejamos
uma boa leitura!

Pedro Rubim Borges Fortes


Editor
INTRODUÇÃO

A série Cadernos FGV DIREITO RIO está publicando simultaneamente dois vo-
lumes sobre a relação entre o fenômeno jurídico e a manifestação artística,
seja popular ou clássica. Este volume 12 cuida da relação entre Direito, Cultura
Pop e Cultura Clássica, ao passo que o volume 11 discorreu sobre experiências
inovadoras de Ensino Jurídico, Cultura Pop e Cultura Clássica. Assim, estamos
celebrando o pioneirismo dos professores Gabriel Lacerda e José Garcez Ghi-
rardi, que lecionam cursos respectivamente sobre ‘Direito e Cinema’ no Rio de
Janeiro e sobre ‘Direito e Artes’, em São Paulo. Se o volume anterior apresen-
tou experiências pedagógicas inovadoras, o presente título traz ensaios com
reflexões profundas sobre a relação entre o direito e mídias, fotografia, vide-
ogames, rock, jazz, poesia, literatura, ópera, teatro, séries de televisão e cine-
ma. Esta coleção de ensaios apresenta uma série de trabalhos de professores
renomados do Brasil e do exterior com reflexões sobre a reflexividade entre o
fenômeno jurídico e a expressão artística.
Começamos nossa viagem pelo universo do direito e da cultura pop a
partir da tradução de um texto seminal sobre o tema, a saber, o artigo ‘Direi-
to, Advogados e Cultura Popular’ publicado originalmente há 25 anos no Yale
Law Journal pelo professor Lawrence Friedman, da Stanford Law School. Neste
trabalho clássico sobre a reflexividade entre direito e cultura pop, Lawrence
explica que a cultura jurídica de uma sociedade é influenciada decisivamente
pela representação do fenômeno jurídico na cultura pop, salientando o fato de
que os membros de uma sociedade aprendem direito por meio dos produtos
culturais consumidos como telespectadores. Grande expoente do movimento
Law and Society e autor da expressão cultura jurídica, Lawrence tem por ponto
de partida como o surgimento do automóvel transformou a mobilidade urbana,
o comportamento individualista e nossa interação jurídica. Posteriormente, seu
texto aprofunda a tese da cultura jurídica popular como um reflexo das nor-
mas sociais, discute a relação entre cultura jurídica popular e cultura jurídica e
evidencia como a cultura pop serve como um indicador das formas de autori-
dade presentes em uma determinada sociedade. Ao longo do texto, Lawrence
10 CADERNOS FGV DIREITO RIO

usa narrativas cinematográficas e televisivas para respaldar seus argumentos


e conclui sua análise justamente com um estudo sobre as imagens do direito
e dos advogados na cultura pop. Não por acaso, o professor Michael Asimow,
que leciona o curso de Direito e Cultura Pop na Stanford Law School e é autor
de importante livro-texto sobre o tema, considera este trabalho como o grande
percursor para o surgimento desta nova disciplina nos Estados Unidos.
Em seu texto Supremo, Mídia e Cultura Popular: a construção de um di-
álogo e o papel do Mensalão, Adriana Lacombe Coiro, da FGV DIREITO RIO,
compartilha sua visão sobre como as representações do Supremo Tribunal Fe-
deral alteraram as ideais, opiniões e atitudes sobre a corte, especialmente a
partir da imensa repercussão midiática do caso do Mensalão. Analisando duas
décadas da trajetória histórica do STF, Adriana descreve os efeitos da decisão
de dar publicidade às sessões por meio da televisão, do youtube e do twitter. A
partir de uma pesquisa empírica realizada nos acervos eletrônicos dos jornais
O Globo, Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo, Adriana demonstra o
crescimento linear de reportagens sobre o Supremo Tribunal Federal na mídia
brasileira. Além disso, ela apresenta o interessantíssimo estudo de caso do jul-
gamento do Mensalão que deu origem não só a uma série de livros sobre o as-
sunto, mas também ao videogame ‘Batalha do Mensalão’ e — particularmente,
no caso do Ministro Joaquim Barbosa — até mesmo a máscaras de carnaval por
conta de sua enorme popularidade.
O uso da fotografia como ferramenta para reflexão da relação entre di-
reito e cultura é justamente o cerne do ensaio Fotografia, Cultura Popular e
Direito do professor Henry Steiner, da Harvard Law School. Seu ensaio original
trata de dois temas distintos, em que o centro de gravidade é ora a fotografia
e ora o direito. A primeira parte do ensaio remete a um exercício de imagina-
ção sobre como será a relação das futuras gerações com seus antepassados,
tendo em vista a facilidade de acesso a imagens e vídeos gerados pelos nossos
smartphones contemporâneos. A segunda parte do ensaio analisa como esta
facilidade de difusão tecnológica de imagens e vídeos deu origem a espaços
públicos monitorados por uma profusão de câmeras de circuito de televisão
(CCTV), o que gera uma série de questões jurídicas complexas sobre a questão
do direito à privacidade.
Também sobre a relação entre direito e fotografia é o ensaio do professor
Eduardo Muylaert, da FGV DIREITO RIO, intitulado Direito e Fotografia: Duas
Paredes de uma Mesma Caverna. O ensaio de Eduardo é um tour de force pelo
universo de regras e imagens, salientando que o processo de codificação de
regras e de captura de imagens possui somente dois séculos de história e, ainda
assim, provocou impacto profundo na vida da sociedade contemporânea. Com
referências a Dom Pedro II, Fidel Castro e Napoleão na política, Georges Bataille,
INTRODUÇÃO 11

Walter Benjamin e Platão na filosofia, Henry Cartier-Bresson, Sebastião Salga-


do e Roger Fenton na fotografia, Edgar Alan Poe, Charles Baudelaire e Marcel
Proust na literatura, o ensaio é uma multifacetada bricolagem narrativa sobre os
universos incríveis do direito e da fotografia, cujo fio-condutor é sua essenciali-
dade na formação da sociedade contemporânea, bem como a produção de sen-
tido dentro de uma câmara escura — tal como duas paredes da mesma caverna.
Do mundo da fotografia passamos ao universo mágico dos videogames
por meio do ensaio Jogos Eletrônicos e Direito do professor Pedro Mizukami,
da FGV DIREITO RIO. Pedro explora diversas possibilidades de utilização dos
games para aprofundamento de discussões sobre questões sociojurídicas rele-
vantes, tais como a gentrificação, a transgeneridade e o controle de fronteiras,
por exemplo. O ensaio mostra ainda como o universo dos jogos eletrônicos foi
se transformando ao longo de décadas, renovando-se com produtos de estilos
e conteúdos diversificados — games abstratos e experimentais; games comer-
ciais e convencionais; games visuais, sonoros e textuais; games jornalísticos ou
news games; games casuais ou hardcore; indie games. Combinando narrativas
e gameplay, os jogos eletrônicos podem ser uma interessante ferramenta para
o ensino jurídico, mas professores de direito devem estar bastante atentos à
acessibilidade do aluno, dificuldade do jogo, sensibilidade da questão normati-
va e à duração do game. Ao final, Pedro apresenta uma série de jogos eletrôni-
cos cujo conteúdo possibilita debates jurídicos interessantes sobre previdência
social, liberdade de imprensa e imigração.
Outra expressão artística que também permite análises reflexivas sobre
o direito é o Rock e o professor Germano Schwartz, da Unilasalle de Canoas,
nos brinda com o ensaio Direito e Rock: When Two Worlds Collide ou Break on
Through to the other Side. O repertório roqueiro contém letras musicais do Iron
Maiden, The Doors, Nirvana, Pink Floyd, Green Day, The Clash, Led Zeppelin,
Sex Pistols, U2, Elvis Presley e Rolling Stones. Além do Rock, Germano inclui
ainda referência a outros gêneros musicais, tais como o samba, o country e o
blues para provar seu argumento de que o rock, por excelência, se apresenta
como uma expressão da contracultura e serve de combustível para protestos
populares e movimentos sociais de transformação do direito. Um dos expoen-
tes da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann na academia brasileira, o profes-
sor Schwartz utiliza as letras musicais para analisar a relação sistêmica entre
Direito, Sociedade e Rock. Diante da teoria dos sistemas mais tradicional, a
comunicação entre diversos sistemas é limitada e, não raro, dois mundos co-
lidem, mas ele resolve adotar o caminho de atravessar para o outro lado em
seu ensaio. Escreveu um livro que se tornou referência sobre o tema ‘Direito e
Rock’ e fez verdadeira turnê de lançamento pelo Brasil em 2014. Ter seu ensaio
neste volume é um show.
12 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Ainda no universo da música, temos o ensaio escrito em coautoria pelos


professores Ana Elvira Luciano Gebara e José Garcez Ghirardi, da FGV DIREITO
SP, intitulado ‘Look at all these lonely people: ainda a interpretação em artes
e direito’. O texto explora o estranhamento causado pela versão jazzística da
música Eleanor Rigby dos Beatles como ponto de partida para uma reflexão
sobre a interpretação do direito e problemas relativos à segurança jurídica e
à fidelidade interpretativa de textos canônicos. Com citações artísticas varia-
das — Miles Davis, Pablo Picasso e Caetano Veloso, dentre outros — o ensaio
explora a questão da intertextualidade e da ação do intérprete em ressignificar
a expressão artística e o fenômeno jurídico. Neste contexto, o Jazz se tornou
uma referência interessante para uma reflexão sobre a hermenêutica jurídica e
para a valorização do sentido da obra — seja artística ou jurídica — para uma
comunidade de intérpretes.
Nosso volume continua com a poesia no ensaio Prisões, bordéis e as pe-
dras da lei: Discursos Modernos sobre o Direito em John Austin e Edward Blake
também do professor José Garcez Ghirardi, da FGV DIREITO SP. Neste erudito
ensaio, Garcez resolve estabelecer uma comparação entre dois textos repre-
sentativos do espírito da modernidade, a saber, The Province of Jurisprudence
Determined do jurista inglês John Austin e The Marriage of Heaven and Hell
do poeta inglês Edward Blake. Enquanto o livro produzido a partir das aulas
do professor de filosofia do direito da UCL é um paradigma do positivismo no
direito, a poesia revolucionária do editor inglês é um ícone do romantismo. A
influência do projeto da modernidade é clara no trabalho científico, objetivo e
neutro. Garcez contrapõe o cientificismo e o insulamento propostos por Austin
à relação entre direito e moral característica do direito natural, contextualizan-
do historicamente o debate entre positivistas e jusnaturalistas que se prolonga
até os nossos dias. A seu turno, Blake se insere neste diálogo com diversas
críticas sobre o projeto de racionalização do direito. Considerando que o direi-
to pode ser um instrumento de opressão, exclusão e injustiça, a arte do poeta
serve como crítica não apenas ao projeto da modernidade, mas também ao
positivismo jurídico.
A literatura também está presente no texto Direito e Literatura: Um Sonho
de um Diletante?, do professor William Twining, da UCL. Grande expoente do
realismo jurídico no Reino Unido, William compartilha com os leitores brasi-
leiros uma série de ideias sobre como a literatura influenciou sua perspectiva
sobre o fenômeno jurídico. O ensaio foi feito a partir de uma palestra inédita
proferida em 2013 no Wolfson College, na Universidade de Oxford, e que está
sendo publicada pela primeira vez — antes mesmo da publicação em inglês.
Nela, William traz reminiscências autobiográficas sobre seu professor Herbert
Hart, cita seu colega Ronald Dworkin — seu sucessor na cadeira Quain of Ju-
INTRODUÇÃO 13

risprudence da UCL — e lembra-se de um debate com o famoso magistrado


inglês Lorde Denning sobre a importância das narrativas para a interpretação
do direito. Seu ensaio se inicia com uma discussão sobre pontos de vista e se
encerra com uma exuberante explicação sobre a importância da literatura de
Italo Calvino para a reflexão filosófica sobre o direito — a defesa do pluralismo
normativo e de múltiplas perspectivas.
Outro ensaio jusfilosófico é a contribuição sobre direito e ópera feita
pelo professor Tercio Sampaio Ferraz Junior, da Universidade de São Paulo,
e intitulada Moisés e Arão. Em seu texto sobre a inacabada ópera do compo-
sitor austríaco Arnold Schoenberg, Tercio se debruça sobre o arco das per-
sonagens principais desta tragédia bíblica e relaciona as tensões e conflitos
nas comunicações entre Moisés, Arão e o povo hebreu com os dilemas prin-
cipais da hermenêutica jurídica. O ensaio evoca não apenas as dificuldades
de transmissão dos ditames jurídicos ao povo, mas também a relação entre
razão e emoção para a difusão de conhecimento jurídico por intermédio da
sociedade. Neste sentido, a entrega da lei a Moisés por Deus e a iniciativa de
adoração de um bezerro de ouro pelo povo liderado por Arão servem para
uma reflexão sobre os aspectos da hermenêutica jurídica, a neutralização in-
completa dos conflitos sociais e sobre a conhecida disputa entre interpreta-
ção autêntica e doutrinária.
Em seu trabalho Shakespeare e o Registro Popular do Pensamento Cons-
titucional, o professor Denis J. Galligan, da Faculdade de Direito de Oxford,
brinda nossos leitores com um texto a partir de uma palestra realizada no
Wolfson College, na Universidade de Oxford, em 2014, quando foi celebrado
o aniversário de 450 anos do dramaturgo inglês William Shakespeare. Neste
trabalho, Denis persegue o registro popular do pensamento constitucional,
interpretando representações feitas por personagens do povo sobre o ‘cor-
po político’ — termo utilizado no século XVI para a instituição política que
atualmente chamamos de ‘constituição’. O ensaio sobre a relação entre dra-
maturgia e direito captura muito da sua agenda de pesquisa atual, em que
o professor de estudos sociojurídicos de Oxford investiga aspectos socioló-
gicos das constituições, notadamente fatores que conduzem à aquiescência
popular ou a crises constitucionais. Neste sentido, a obra de Shakespeare
oferece farto material para análise e Denis seleciona passagens de peças
como Troilo e Cressida, Henrique VI, Sonhos de uma Noite de Verão, A Tem-
pestade, Coriolano, Rei Lear, Hamlet, Ricardo III, Rei João e Uma plebe ignara.
Nas palestras, Denis é acompanhado por sua filha, Dra. Francesca Galligan,
que interpreta as personagens shakespearianas, enquanto ele analisa as pas-
sagens a partir da filosofia política de Thomas Hobbes, David Hume e John
Salisbury, dentre outros.
14 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Por sua vez, o professor Manuel Gomez, da FIU College of Law, explora o
universo das séries de televisão com seu ensaio ‘No Limite: A Representação
do Direito e da Ordem Social Não Oficial na Série de Televisão Breaking Bad’.
Manuel discute a representação do direito e da justiça não oficiais na mídia
popular, e sua relação com o conceito de cultura jurídica, por meio da popular
série de televisão Breaking Bad. O Vice-Diretor da Faculdade de Direito da
Florida International University enfoca nos sistemas normativos que se origi-
nam, desenvolvem e operam no submundo, a margem do sistema estatal ou
até mesmo contra o Estado. Manuel explica que estas representações eviden-
ciam que o direito e a justiça não são produtos exclusivos do Estado e que
mesmo no universo improvável das gangues de traficantes são desenvolvidos
certos conceitos sobre o que é certo e errado, bem como o justo e o injusto.
O ensaio conclui que a cultura pop ajuda a conectar tradições, ideologias e
normas sociais com imagens, percepções e valores das pessoas com relação
ao direito.
Finalmente, nossa viagem pelo universo do direito através da cultura
pop e da cultura clássica se encerra com o ensaio Ativismo Cinematográfico:
A Defesa de Minorias por Cineastas, de Pedro Fortes, professor da FGV DI-
REITO RIO. Neste ensaio, investiga-se o ativismo cinematográfico, entendido
como o fenômeno da produção de filmes com uma ambição transformadora
e foco na defesa dos direitos das minorias. A partir do conhecido ditado
‘uma imagem vale mais do que mil palavras’, o ensaio sustenta que a certos
filmes do cinema hollywoodiano possuem uma carga normativa tão ou mais
forte do que leis, decisões ou livros jurídicos. Um exemplo pródigo é o filme
‘Diamante de Sangue’, que mobiliza a opinião pública para violações contra
direitos humanos de maneira impressionante. Os documentários de Micha-
el Moore também disseminaram debates sociojurídicos importantes sobre
controle de armamento, regulação financeira e direito à saúde. Elencando
dezenas de filmes hollywoodianos — tais como O Segredo de Brokeback
Mountain, O Pianista e Faça a Coisa Certa, por exemplo — o texto se refere a
narrativas contra-hegemônicas com potencial para empoderamento de mi-
norias de orientação sexual, de credo religioso e origem racial ou étnica. Os
valores representados por estes filmes têm circulado o globo e têm afetado
a opinião pública a respeito de temas como casamento de mesmo gênero,
liberdade religiosa e ação afirmativa, dentre outros temas relevantes para a
proteção de direitos das minorias. Existe, assim, nítida reflexividade entre o
fenômeno jurídico e expressões artísticas.
O presente volume celebra, aliás, uma década de ensino de direito e cultu-
ra pop na FGV DIREITO RIO e na FGV DIREITO SP com as iniciativas pioneiras
respectivamente de Gabriel Lacerda e de José Garcez Ghirardi. Este volume é
INTRODUÇÃO 15

ainda o complemento do volume anterior sobre ‘Ensino Jurídico, Cultura Pop


e Cultura Clássica’. Estes dois volumes pretendem aprofundar nossos conheci-
mentos sobre a reflexividade do fenômeno jurídico e da expressão artística e
estimular o desenvolvimento da literatura nacional sobre direito, cultura pop e
cultura clássica. Boa Leitura!

Pedro Rubim Borges Fortes


Editor
16 CADERNOS FGV DIREITO RIO
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR1
Lawrence M. Friedman2

Este ensaio aborda duas formas distintas, porém relacionadas, pelas quais a
cultura jurídica interage com normas sociais mais gerais, incluindo as normas
refletidas na cultura popular. Em primeiro lugar, a cultura jurídica age como
uma variável interveniente, um mecanismo para adaptar as normas da cultura
popular à forma jurídica. Em segundo lugar, a cultura jurídica e a popular, como
reflexos uma da outra, ajudam a explicar e a esclarecer o conteúdo uma da ou-
tra. Este ensaio examina ainda certos aspectos da cultura jurídica popular. Mas
antes, traçarei algumas definições.
Aqui, cultura jurídica significa nada mais do que “ideias, atitudes, valores,
e opiniões tidas por pessoas de uma sociedade sobre direito.”3 Todos em uma
sociedade têm conceitos e atitudes, sobre os mais variados temas: educação,
crime, sistema econômico, relações entre os gêneros, religião. A cultura jurídica
é esses conceitos e atitudes, quando parte de um contexto majoritariamente
jurídico. Conceitos acerca de tribunais, justiça, polícia, Suprema Corte, advo-
gados e etc. (Obviamente, um aspecto da cultura jurídica é quais problemas

1 Texto originalmente preparado para um simpósio sobre o tema Cultura Jurídica Popular na
Yale Law School, tendo a versão original em inglês sido publicada em 1989 pelo Yale Law
Journal em seu volume 98. Esta versão em português foi expressamente autorizada pelo
autor, tendo sido traduzida do inglês por Julia Nemirovsky e revisada pelo editor da série,
Pedro Fortes.
2 Marion Rice Kirkwood, Professor de Direito, Universidade de Stanford. Eu gostaria de agra-
decer a meus colegas Henry T. Greely e Deborah Rhode por seus comentários valiosos; e
também aos editores do Yale Law Journal; e a Ben Quinones, que me ajudou com algumas
das notas de rodapé.
3 L. FRIEDMAN, TOTAL JUSTICE 30, 31 (1985); ver também Friedman, Legal Culture and
Social Development, 4 LAW & Soc’y REV. 29, 34 (1969); Sarat, Studying American Legal
Culture: an Assessment of Survey Evidence, 11 LAW & Soc’y REV. 427, 427 (1977).
O conceito de cultura jurídica de modo algum significa que uma determinada socieda-
de tenha uma cultura jurídica ou até, necessariamente, uma cultura jurídica dominante. Na
forma definida aqui, cada pessoa tem seu próprio conjunto de atitudes e valores; e prova-
velmente não há dois conjuntos idênticos. Mas há tendências estatísticas que (acredita-se)
demonstram padrões recorrentes, ou seja, que caminham lado a lado a fatores demográfi-
cos (dentre outros), de modo que é muito provável que haja diferentes características na
distribuição desses conceitos e atitudes entre homens e mulheres, brancos e negros, jovens
e idosos, motoristas de taxi e de caminhão, e por aí vai.
18 CADERNOS FGV DIREITO RIO

e instituições são definidos como jurídicos, primeiramente). O termo cultura


popular, por outro lado, refere-se antes de mais nada, e de modo mais geral, a
normas e valores de pessoas comuns, ou, mais especificamente, de não intelec-
tuais, em oposição à alta cultura, à cultura dos intelectuais ou à intelligentsia,
ou ao que Robert Gordon chamou de “cultura dos mandachuvas.”4 E, em se-
gundo lugar, e de forma mais estrita, refere-se à “cultura” no sentido de livros,
canções, filmes, peças, programas de televisão, e etc.; mais especificamente a
obras criativas cuja audiência pretendida é o público geral, e não a intelligent-
sia: Elvis em vez de Marilyn Horne.5,6
Podemos também falar da cultura jurídica popular em dois sentidos. Po-
demos falar dos conceitos e atitudes sobre direito das pessoas comuns ou, de
modo mais geral, dos leigos. O que, em geral, o encanador, a secretária ou, ain-
da, os assessores de investimento pensam sobre tribunais e advogados é, sem
dúvida, muito diferente do que pensam os advogados, juízes ou professores de
direito.7 Podemos ainda utilizar o termo em um outro sentido, ou seja, para nos
referirmos a livros, canções, músicas, peças, e programas de televisão sobre
direito ou advogados, voltados para o público em geral.

4 Gordon, Critical Legal Histories, 36 STAN. L. REV. 57, 120 (1984).


5 Nota do Editor: Marilyn Horne foi uma cantora de ópera que se tornou uma diva da música
clássica nos Estados Unidos, tendo se apresentado na cerimônia de posse de Bill Clinton
como presidente e na celebração de 100 anos da Estátua da Liberdade antes de se aposen-
tar em 1999.
6 Sobre direito e cultura popular, ver Chase, Lawyers and Popular Culture: A Review of Mass Me-
dia Portrayals of American Attorneys, 1986 AM. B. FOUND. RES. J. 281; Chase, Toward a Legal.
7 Theory of Popular Culture, 1986 Wis. L. REV. 527; Macaulay, Images of Law in Everyday Life:
The Lessons of School, Entertainment, and Spectator Sports, 21 LAW & Soc’y REV. 185 (1987).
Obviamente, a cultura popular se amalgama com a alta cultura, e não há modo fácil
ou preciso de traçar uma fronteira entre as duas. O estudo do direito e da cultura popular,
portanto, misturam-se, necessariamente, com o estudo de “direito e literatura”, um campo
de conhecimento extremamente amorfo, e em crescimento. Ver, e.g., R. POSNER, LAW
AND LITERATURE: A MISUNDERSTOOD RELATION (1988); Weisberg, The Law-Literature
Enterprise, 1 YALE J.L. & HUMANITIES 1 (1988).
Os acadêmicos certamente consultaram a literatura para compreender melhor o com-
portamento humano, ou a história social; ou têm interesse em saber como alguns gran-
des escritores trabalharam temas jurídicos, e.g., C. LANSBURY, THE REASONABLE MAN:
TROLLOPE’S LEGAL FICTION (1981). Em suas épocas, Shakespeare, Dickens, e Trollope
eram, sem dúvida, populares o suficiente para serem parte da “cultura popular”, o que
demonstra apenas o quão artificial (necessária, porém?) é a divisão entre a cultura popular
e a dos “mandachuvas”. Mas uma análise da representação do direito em, digamos, Shakes-
peare é importante por si só uma vez que Shakespeare é importante por si só; um estudo
da cultura popular, entretanto, não distingue Shakespeare e Dickens de peças e romances
que podem não ter nenhum valor artístico.
. Cf L. FRIEDMAN, THE LEGAL SYSTEM 223 (1975) (“A cultura jurídica externa é a
cultura jurídica da população em geral; a cultura jurídica interna é a cultura jurídica dos
membros da sociedade que realizam funções jurídicas especializadas.”).
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 19

I. Cultura Popular, Cultura Jurídica Popular, e Teorias Sociais


do Direito
A cultura popular, e cultura jurídica popular, em seu primeiro sentido, são de rele-
vância fundamental para a construção das teorias sociais do direito. Com teorias
sociais do direito, refiro-me a teorias do direito cujas premissas negam, integral-
mente ou em grande parte, qualquer noção de uma “autonomia” do direito. Ou seja,
teorias que tentam explicar o fenômeno jurídico buscando causas e fatores causais
“fora” do sistema jurídico. Elas tratam o direito como uma variável dependente, e
atribuem um papel fundamental na formação das instituições e institutos jurídicos
a sistemas ou subsistemas que a sociedade define como “não jurídicos”, ou seja,
sistemas econômicos, sociais, culturais ou políticos. As teorias sociais supõem que
haja algum tipo de fronteira — conceitual ou analítica — entre o direito e o que não
é parte do direito; entre o jurídico e o social; mas essas teorias também veem essas
fronteiras como muito ou totalmente porosas, um tipo de rede ou malha por meio
da qual a energia flui com facilidade, e não como uma camada rígida e compacta.
Esse conjunto de teorias rejeita categoricamente a ideia de que os sistemas
jurídicos são herméticos e introspectivos; que funcionam parcial ou completa-
mente com lógicas, tradições, e demandas próprias; que são “autorreplicáveis”,
“autorreferenciais”, ou algo do gênero. Um organismo vivo, por exemplo, é “au-
tônomo” em um sentido importante. Um cavalo e uma vaca têm fronteiras
claras que os separam um do outro e do mundo. Suas peles e formas não são
puramente conceituais; são, em vez disso, limites reais de organismos que se
desenvolvem de acordo com suas próprias lógicas internas. Tanto um cavalo
quanto uma vaca se alimentam de grama, mas a grama digerida se transforma
em cavalo, em um caso; e em vaca, no outro; jamais ao contrário. O programa
interno determina exatamente como o alimento será processado; e como orga-
nismo crescerá e funcionará, de acordo com essas regras “autônomas”.
Algumas teorias do direito de fato tratam sistemas jurídicos como orga-
nismos no sentido discutido no parágrafo anterior. Teorias que destacam a
“autonomia relativa do direito” parecem estar em alta em alguns círculos aca-
dêmicos. A Frase deve ser assim: A Tradicional “teoria analítica do direito” do
século XIX tratava, é claro, o direito como completamente autônomo. Os auto-
nomistas modernos alegam ser diferentes, e são, sem dúvida, mais sofisticados.
Mas eles certamente têm alguns pontos em comum com os conceitualistas do
século XIX. E eles, certamente, insistem que faz sentido considerar os sistemas
jurídicos como algo hermético, impermeável, e fechado para o mundo externo,
um reino insular controlado em grande medida pelos “mandachuvas”.8

8 A literatura sobre o tema é ampla e internacional. Ver, e.g., R. COTTERRELL, THE SOCIO-
LOGY OF LAW 87-90 (1984); Luhmann, The Self-Reproduction of Law and its Limits, in
DILEMMAS OF LAW IN THE WELFARE STATE 111 (G. Teubner ed. 1985). In R. LEMPERT &
20 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Uma teoria social do direito, ao contrário, é “social” na medida em que


nega ou relativiza a autonomia do direito, e insiste que a análise das forças so-
ciais melhor explica porque o sistema jurídico é como é, o que estabelece seus
contornos, o que causa suas alterações, sua contração e expansão, o que de-
termina, inclusive, sua estrutura geral, e os produtos que ele gera no dia a dia.
Há várias teorias sociais do direito, reais ou potenciais — o marxismo clássico é
a base de uma teoria social do direito, por exemplo; assim como outras versões
do direito e do movimento econômico. Mas teorias sociais não são nem ineren-
temente de direita nem de esquerda; elas abrangem todo um leque de pontos
de vista políticos. Elas podem isolar alguma “força social” e atribuir a si a maior
parte da responsabilidade pelo direito e pelas instituições sociais; ou podem
atribuir um conjunto de fatores ao mundo exterior. Elas podem concentrar-se
na política, na organização econômica, na tradição ou na cultura. É também
perfeitamente possível haver uma “teoria social” que explique o fenômeno ju-
rídico em termos menos plausíveis — o movimento das marés, ou os signos do
zodíaco. Uma teoria social “new age” pode surgir quando menos esperamos.
Provavelmente, nenhum jurista sério adota de forma absoluta alguma
das duas posições extremas; ninguém pensa que o sistema jurídico seja total
e absolutamente autônomo; e ninguém (talvez) defende o oposto, ou seja,
que cada vírgula, cada migalha do direito, por menor que seja, pode e deve
ser explicada “externamente”. Mas a maioria dos advogados, e boa parte dos
juristas, tende a se posicionar em algum ponto próximo do lado autônomo
do espectro. Cientistas sociais com interesse em direito, e juristas interes-
sados nas ciências sociais, tendem a se posicionar próximos ao outro extre-
mo; preferem justificativas externas a internas, e suspeitam dos que advogam
pela autonomia. É certo que nenhum dos pontos de vista básicos podem ser
“provados” de uma forma ou de outra. São, em vez disso, pontos de partida,
premissas, arcabouços.
É exatamente no sentido de uma metodologia, de uma estratégia, que a
defesa de algum tipo de teoria social é mais forte. Parece haver mais poder
explanatório, mais riqueza, mais perspicácia, na exploração das múltiplas cone-
xões entre o sistema jurídico e a sociedade que o cerca, do que no tratamento
do direito como um domínio isolado. Um exemplo simples, e bastante óbvio:
suponhamos que a questão seja como entender e explicar as leis sobre aciden-
tes de trabalho do século XIX. Por onde devemos começar? Uma opção seria
começar pela própria doutrina: talvez as normas de algum modo tenham vindo
de regras mais antigas, de necessidades imanentes da lógica do direito, ou da

J. SANDERS, AN INVITATION TO LAW AND SOCIAL SCIENCE 401 (1986), os autores defi-
nem um “sistema jurídico autônomo” como “um sistema independente de outras formas de
poder e autoridade na vida social.”
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 21

interação das ideias nos textos dos juristas, ou da “tradição ensinada”,9 ou de


receitas criadas por advogados ao se aventurarem com elementos da doutrina,
uma colherada aqui, meia xícara ali. Parece-me muito mais plausível começar-
mos com o “lado de fora”, ou seja, com a influência (ou a influência percebida)
das leis e regras em ferrovias, indústrias, no trabalho e nas organizações tra-
balhistas, e em instituições semelhantes, e a partir daí imaginarmos que tipos
de conexão o “lado de fora” poderia ter com “lado de dentro”, e como essas
conexões passaram a existir.10
Teorias sociais, em outras palavras, são ferramentas poderosas para lidar
com dificuldades explanatórias. Elas não estão, como alguns críticos fantasiam,
irremediavelmente infectadas com uma doença chamada “behaviorismo”, que
— eu presumo — não significa nem a concepção dos seres humanos como me-
ros robôs econômicos, nem uma postura metodológica que considera o com-
portamento (“behavior”, em inglês) físico como a única realidade social (ou, em
todo caso, como a única realidade passível de estudo). As teorias sociais podem
dar uma grande importância, e normalmente dão, às emoções, às opiniões, e à
consciência; e certas teorias sociais — as mais antropológicas, por exemplo —
concentram-se excessivamente na cultura e na consciência. As teorias sociais
também não são necessariamente vulneráveis às acusações de que postulam
(de modo irrealista) uma distinção radical entre “direito” e “sociedade”, em vez
de reconhecerem que os dois são, na verdade, inseparáveis, interligados, duas
faces da mesma moeda.11 É evidente que os dois são inseparáveis. Entretanto,
é possível separá-los analiticamente, o que pode também ser útil sociologica-
mente, uma vez que em muitas sociedades os dois estão sem, sombra de dú-
vidas, separados na mente de seus consumidores. É provável inclusive que os
que acreditam em um sistema autônomo sejam os que estão de fato sujeitos a
essa crítica em particular; afinal, são eles, e não os teóricos sociais, que insistem
mais obstinadamente na separação radical do direito da matriz social.
Mas a concepção de uma teoria social é muito distinta de uma teoria, de
fato, plenamente desenvolvida, e suficientemente forte para carregar nas cos-
tas uma boa quantidade de explicações. A maior parte das tentativas de se

9 A expressão é do clássico — e enormemente “internalista” — artigo de Pound, The Econo-


mic Interpretation and the Law of Torts, 53 HARV. L. REV. 365, 367 (1940), no qual Pound
argumenta que “a maior de todas as influências, tanto na tomada de decisões específicas
quando na orientação de um planejamento decisório, é uma tradição ensinada de preceitos
logicamente interdependentes e da associação de casos a princípios.”
10 Para o debate, ver M. HORWITZ, THE TRANSFORMATION OF AMERICAN LAW, 1780-1860
(1977); Friedman, Civil Wrongs: Personal Injury Law in the Late 19th Century, 1987 AM. B.
FOUND. RES. J. 351; Friedman & Ladinsky, Social Change and the Law of Industrial Acci-
dents, 67 COL. L. REV. 50 (1967); Malone, The Formative Era of Contributory Negligence, 41
ILL. L. REV. 151 (1946); Schwartz, Tort Law and the Economy in Nineteenth-Century Ameri-
ca: A Reinterpretation, 90 YALE L.J. 1717 (1981).
11 Sobre esse ponto, Ver Gordon, supra note 2, em 102, 109.
22 CADERNOS FGV DIREITO RIO

elaborar uma teoria social do direito é rudimentar e inadequada por ignora-


rem ou tentarem disfarçar o que chamarei da questão do mecanismo ou do
canal. Isso não é nada mais nada menos do que a questão de como as “forças
sociais” certamente influenciam o sistema jurídico. De que modo e por quais
meios e caminhos as “forças” desencadeadas por estruturas, pessoas, situa-
ções, e eventos concretos em uma “sociedade” se deslocam, dando forma a
instituições jurídicas, produzindo ou “resultando” em leis, regras, conceitos e
precedentes? Uma teoria social que não tente responder essa questão é uma
abstração cega e praticamente irrelevante.
Por exemplo, se considerarmos o possível impacto de telefones ou com-
putadores nos sistemas jurídicos, qualquer teórico social afirmará que eles cer-
tamente devem ter algum impacto, e um impacto sem dúvida substancial; e
mudanças sociais fundamentais como a urbanização e a chamada “revolução
social” devem ter um impacto incrível no sistema jurídico. Mas telefones, com-
putadores, e atos sexuais não se transformam automaticamente em mudanças
nas regras e instituições jurídicas. Se as invenções tecnológicas e as mudanças
sociais têm uma “influência” (um conceito bastante vago), essa influência deve
ser indireta. Ou, pelo menos, devem ter algumas etapas a serem cumpridas.
Portanto, qualquer teoria social deve ir além da equação simplista que rela-
ciona determinados eventos ou mudanças sociais e jurídicos, e encontra um
processo ou mecanismo que realmente os conecta.
A cultura jurídica representa uma dessas etapas a serem cumpridas. Se
explorarmos — para mantermos a mesma linha de raciocínio — como as no-
vas invenções tal como o telefone afetam o direito, se questionarmos como
as inovações geram mudanças no direito, a resposta mais comum será que
a tecnologia reage quimicamente com elementos da cultura em geral — com
os hábitos, acordos, ideias, e instituições existentes. Dessas reações químicas
surgem novas ideias e expectativas, novos padrões de demanda e de resposta.
Algumas dessas demandas e expectativas são voltadas para o direito e para os
sistemas jurídicos, ou de algum modo relacionadas a eles. Ou seja, mudanças
na sociedade alteram a forma que as pessoas pensam e sentem, e isso, por sua
vez, cria uma nova rede de normas, ideias, atitudes e opiniões. Esses elementos
da cultura jurídica agem como uma variável localizada entre a inovação social
e a mudança no direito. A teoria de que doenças são causadas por germes al-
teram a forma como as pessoas se sentem em relação às doenças, e alteram a
compreensão que têm delas. Elas passam a ver a doença, e a chance de cura,
sob uma luz completamente diferente. Dessa nova consciência, surgem de-
mandas, algumas voltadas para o sistema jurídico; e no final de uma sequência
de eventos surgem leis criando órgãos sanitários, leis tornando a vacinação
obrigatória, leis sobre alimentos e remédios, e por aí vai.
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 23

A “cultura jurídica” descrita aqui é, entretanto, a cultura jurídica popular


em seu sentido primeiro, mais amplo. Ou seja, não é a teorização consciente
dos filósofos do direito ou dos professores de direito. É a mentalidade das
pessoas que interagem com as instituições jurídicas — leigos, banqueiros, co-
merciantes, policiais, mulheres que querem se divorciar, etc. As relações entre
as cadeias de eventos podem ser obscuras ou óbvias, simples ou complexas,
muitas ou poucas. As principais mudanças — “revoluções” — são como pedras
enormes jogadas na água, produzindo consequências imediatas, palpáveis, on-
das, redemoinhos, além de mudanças em ondulações mais lentas, amplas, pre-
guiçosas. Vejamos, por exemplo, a “revolução automobilística”, que teve um
impacto incalculável em todos os aspectos da vida das sociedades ocidentais
modernas. O sistema jurídico deve, necessariamente, levar em conta o automó-
vel, e ele o faz de dezenas de formas; proporcionais à avassaladora relevância
dos automóveis na vida contemporânea. Para citar algumas dessas consequ-
ências: acidentes de carro são o feijão com arroz da responsabilidade civil, e
moldaram algumas de suas doutrinas e praticas; a existência de uma enorme
quantidade de carros gera a necessidade de carteiras de motorista, leis de trân-
sito e de segurança automotiva, e mais uma infinidade de regulamentações.
As nações modernas gastam enormes somas de dinheiro na construção de es-
tradas, sinais de trânsito, pontes, rodovias com pedágios e viadutos; oficinas e
redes de postos de gasolina brotam como mato; e todas as novas instituições
criam e recorrem a uma grande quantidade de leis.
Esse grande volume de produção jurídica não é derivado direta e imedia-
tamente da existência do automóvel; os novos mecanismos legais não pode-
riam ser deduzidos logicamente a partir da invenção do motor de combustão
interna; tudo isso está a uma ou duas etapas adiante, no mínimo, tudo é con-
tingente, nada é decisivo. Mas a invenção do automóvel criou demandas — a
construção de estradas, por exemplo — o que necessariamente influenciou a
organização política e jurídica existente. As pessoas se amontoaram nas estra-
das. Primeiro, alguns homens e mulheres ricos, para quem o carro era um brin-
quedo. Depois, cada vez mais, a classe média. Com um número cada vez maior
de motoristas, os acidentes se multiplicaram, outras forças entraram em ação,
o que reagiu, catalisou, desencadeou outros processos; e as leis sobre habilita-
ções, seguro automotivo compulsório, zonas sujeitas a reboque, parquímetros
e etc. aparecem no final dessa sucessão de consequências.
Ainda mais importante do que isso são as consequências indiretas. O au-
tomóvel viabilizou o crescimento dos subúrbios. Ele reorganizou as cidades
impiedosamente. Muitos de nós hoje olhamos para essas organizações e reor-
ganizações como essencialmente destrutivas: tráfego, barulho, fumaça, engar-
rafamentos, a decadência do transporte público, a desintegração do centro das
24 CADERNOS FGV DIREITO RIO

cidades. Mas o automóvel também limpou a cidade. Ela se livrou dos cavalos,
dos estábulos, do esterco, das moscas, e de uma enorme quantidade de imun-
dice e sujeira. Em algum momento, essas inovações benéficas pareciam essen-
ciais. E acima de tudo, o que o automóvel gerou e ainda gera é um sentimento
de liberdade, de mobilidade, de um modo muito concreto: ter ou usar um carro
dá a milhares de pessoas a possibilidade de se locomover, de se transportar,
de escapar, de se virar, em uma escala sem precedentes. O automóvel dá aos
motoristas uma sensação de poder; eles podem ir passear no campo, podem
escolher morar mais longe das fábricas e dos escritórios do que nunca; eles
acabam com a dependência de trens e de ônibus; eles afrouxam os espartilhos
apertados das famílias tradicionais; por outro lado, diminuem a distância entre
as ovelhas desgarradas e suas famílias; aumentam o comprimento dos laços
que unem as pessoas a amigos e familiares.
Essa mobilidade, subjetiva e objetiva, é a base sobre a qual uma sociedade
fragmentada, atomística, uma sociedade de indivíduos, foi construída no século
XX. Esse não é o individualismo da teoria do século XIX — um individualismo
de mercados e de votos — e sim um individualismo mais característico da vida
moderna, um individualismo “expressivo”,12 um individualismo de hábitos e esti-
los de vida. O automóvel não é o único sustentáculo dessa mobilidade — trens,
aviões, e telefones, entre outros, também têm sua influência — mas ele é uma
força importante, talvez a mais relevante.
A mobilidade tem uma influência profunda no direito e nas instituições
jurídicas, assim como na sociedade em geral; e é certo que, se os postulados
das teorias sociais têm algum sentido, esse deve ser um exemplo. Caracterís-
ticas do direito moderno, a partir do surgimento da sociedade moderna, é a
coroação do consentimento e da escolha individual; se há um único leitmotiv
do direito moderno, seja no direito civil, no direito de família, no direito do in-
quilinato, é uma ênfase extrema no indivíduo, na escolha e no consentimento
individual, todo o sistema gira entorno disso. O direito aqui reflete o que está
acontecendo na sociedade; talvez ele também reforce essas tendências sociais.
O indivíduo jurídico individual, como o indivíduo da cultura popular de hoje,
não deve ser confundido com o pálido autor econômico do século XIX, sem
senso de humor, temente a Deus, trabalhador, um maximizador ansioso; em vez
disso, o indivíduo da era moderna é uma pessoa autônoma e cheia de ímpeto;
um indivíduo expressivo, um indivíduo caleidoscópico, um indivíduo com um

12 Para o termo, ver R. BELLAH, W. SULLIVAN, A. SWIDLER & S. TIPTON, HABITS OF THE
HEART: INDIVIDUALISM AND COMMITMENT IN AMERICAN LIFE (1985). Bellah e os demais
autores distinguem o individualismo expressivo de outras tendências de individualismo na
história americana, como o individualismo “utilitarista” — de modo geral, o individualismo
do século XIX, com sua ênfase no livre mercado, em “ser bem sucedido” na vida profissional
e na vida pública, em vez de no estilo de vida e na vida privada. Id. em 44-46.
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 25

milhão de escolhas de estilo, hábitos, cores, religiões, estilo de roupa, culinárias,


e preferências sexuais; um indivíduo cuja “racionalidade”, por assim dizer, vai
muito além da “racionalidade” do século XIX, e cujas necessidades e demandas
manifestadas na vida e no direito são muito maiores e mais complexas.
É, afinal de contas, o indivíduo que é a unidade da mobilidade. A mobi-
lidade moderna não é uma migração em grupos; é um mosaico de escolhas
individuais. É claro, o indivíduo da cultura popular — e isso nunca será suficien-
temente enfatizado — é o indivíduo que sente e experimenta. Eu não estou
discutindo sobre poderes e direitos objetivamente. Há bastante divergência
na literatura sobre a realidade da mobilidade nas sociedades ocidentais e bons
motivos para sermos céticos em relação a se é mesmo fácil, na prática, passar
de uma classe para a outra, ou de um estrato para o outro. Por esses motivos,
em um sentido importante, os estudos e os argumentos não são essenciais
aqui. A mobilidade geográfica é, sem dúvida, real o suficiente. E, em relação à
mobilidade socioeconômica, a porta está suficiente aberta para sustentar uma
crença na mobilidade.
Este é o ponto crucial: se acaso as pessoas poderem fazer o que elas de-
sejam importa menos, para estes propósitos, do que se elas pensam assim ou
pensam se deveriam ser capazes de ir e de fazer. As pessoas misturam o cinis-
mo com a fé: quando realmente merecem, os pobres enriquecem, e os podres
de rico caem como frutas passadas. As escolhas e oportunidades são reais, há
opções disponíveis, e assim por diante.13 A cultura popular parece acreditar
piamente na liberdade e na liberdade de escolha. Ela parece tomar como pre-
missa básica que a liberdade de escolha estaria ao alcance das pessoas. É evi-
dente, como todos sabem, que os mecanismos sociais nem sempre são ideais;
a liberdade, e o contexto para liberdade são falhos, esfarrapados, imperfeitos.
Mas essa situação é tratada como anormal, como uma falha, como um desvio
ou uma patologia social. As opções podem ser ampliadas, as escolhas podem
se tornar reais, se o governo, ou alguém, fizer a coisa certa.14 Portanto, a mo-

13 E, como costuma ser o caso com a cultura popular, é provável que diferentes grupos ou ele-
mentos da sociedade tenham percepções diferentes. Por exemplo, é sem dúvida verdade
que os negros, mais do que os brancos, sentem-se encurralados nas prisões circunstanciais.
14 Quando utilizo o termo “cultura popular”, aqui e em outras ocasiões, não quero dizer que
haja uma cultura popular, do mesmo modo que não há uma cultura jurídica, ainda mais em
um país tão complexo e heterogêneo como os Estados Unidos; mas, assim como no caso
da cultura jurídica, há sem dúvida generalizações que poderiam ser feitas se tivéssemos
dados suficientes, o que não ocorre na maioria dos casos.
As afirmações feitas no texto não são, é claro, ratificadas por “autoridades”; são in-
terpretações do que vejo e sinto na sociedade, e não são mais ou menos válidas do que
afirmações que um antropólogo poderia fazer depois de anos vivendo em uma cultura
remota, e refletindo sobre ela. Não é que essas afirmações dispensem comprovações ine-
rentemente; a lacuna é empírica, e não teórica. A menos que essa lacuna seja preenchida, e
até que isso ocorra, o único teste de correção de uma interpretação cultural é se ela ressoa
uma nota harmônica na mente do leitor.
26 CADERNOS FGV DIREITO RIO

bilidade, ainda que ela esteja enraizada na “verdade”, não é uma coisa, não é
um elemento do mundo real, e sim, em grande parte, uma construção mental.
O automóvel não nos leva a lugar algum; ele não tem vontade própria; ele vai
aonde o motorista diz para ele ir. O automóvel por si só não cria mobilidade,
ainda que ele possa ser uma condição para a mobilidade; a mudança social é
uma reação química, como dissemos — é uma série de explosões que ocor-
rem quando eventos “reais” (mudanças tecnológicas, terremotos, enchentes)
colidem com pensamentos, hábitos e disposições de determinada população
humana. Entretanto, o principal risco da teoria jurídica, a meu ver, é a tendência
a ignorar eventos “reais”, e a focar a atenção no mundo interno do pensamento
jurídico, na variável interveniente, e pior ainda, na variável interveniente apenas
na forma que ela é refletida nas ideias e textos dos “mandachuvas”.
Em todo caso, o principal ponto do argumento permanece: a cultura jurí-
dica popular, em suas múltiplas manifestações, é essencial para a teoria social
do direito. O ponto de partida da mudança social pode ser identificado no seu
contexto exterior: mudanças tecnológicas e materiais, desastres naturais, e etc.
Mas esses eventos não surtem efeito na ausência de seres humanos ou de uma
sociedade. Eles interagem com uma estrutura pré-existente, e com mentes e
personalidades pré-existentes. Eles criam a cultura jurídica popular; e da cul-
tura jurídica popular surge o direito. Em última instância, as forças sociais, os
movimentos sociais, as mudanças sociais — e o equilíbrio social — levam à mu-
dança no direito. Mas o processo passa pelos estágios descritos.
Eu não estou defendendo, entretanto, que um fator específico, ou uma
combinação de fatores, “determine” todos os outros. Uma sucessão de eventos
foi desencadeada pela invenção do automóvel e culminou nas leis de respon-
sabilidade civil da década de 1980, ainda em vigor. Mas isso não significa que
não houve elementos fortuitos, bifurcações, trampolins. Essa é uma questão
diferente, à parte.

II. Reflexões sobre o Direito na Cultura Popular


Iremos considerar agora outra conexão entre direito e cultura popular, ou seja,
as características da cultura jurídica popular no segundo sentido do termo:
o direito como representado em canções, histórias, filmes, jornais, romances,
livros policiais; o direito como representado em programas de TV ou como
resenhado na Time ou na Reader’s Digest; o direito e os advogados como tema
de centenas de piadas. O estudo da cultura jurídica popular é uma área relati-
vamente nova, com uma literatura módica, porém em crescimento.15

15 Além das obras citadas na supra nota 3, ver Stark, Perry Mason Meets Sonny Crockett: The
History of Lawyers and the Police as Television Heroes, 42 U. MIAMI. L. REV. 229 (1987).
Sobre a distinção entre cultura popular e “literatura”, ver supra nota 3.
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 27

O tema é importante, é claro. O argumento na Seção I chamava aten-


ção para o papel essencial da cultura jurídica na teoria social do direito. Mas
o que sabemos sobre cultura jurídica? Muito pouco. Não que a cultura jurídica
não possa ser quantificada ou pesquisada; mas quase ninguém se ocupou em
quantificá-la e pesquisá-la. A cultura jurídica, exceto por algumas pesquisas
recentes e provavelmente nada confiáveis, pode apenas ser analisada indire-
tamente e com muito cuidado, por meio de indicadores e efeitos. A cultura
jurídica popular, portanto, é (potencialmente) uma fonte e uma testemunha
importante. O direito e as instituições jurídicas são completamente onipresen-
tes na sociedade moderna e, portanto, naturalmente, também o são na mídia.
As pessoas estão rodeadas pelo direito, quer gostem disso ou não. Elas se
queixam do legalismo, reclamam incansavelmente dos advogados, da praga
dos processos; mas na verdade essas reclamações decorrem da dependência,
uma vez que é difícil conseguir levar a vida nos Estados Unidos sem recorrer a
essa extraordinária profissão e a essas extraordinárias instituições, pelo menos
no modo que a sociedade está organizada atualmente. A cultura popular está,
portanto, envolvida com o direito; e alguns dos aspectos mais óbvios do direito
são excessivamente proeminentes na cultura popular. Mas, é claro, não todo o
direito. Nenhuma canção foi composta sobre a Lei de Defesa da Concorrência,
nenhum filme foi produzido sobre o imposto sobre o ganho de capital. Isso
não é nenhuma surpresa, já que a maioria das pessoas não tem ideia do que
essas coisas são. Mas também não há músicas, filmes ou programas de TV so-
bre o sistema de saúde americano, o licenciamento de animais de estimação,
o ordenamento urbano, ou estacionamento público. E as pessoas certamente
conhecem essas coisas. Por outro lado, a televisão iria murchar e morrer sem os
policiais, detetives, crimes, juízes, prisões, armas, e julgamentos.
Isso demonstra um primeiro ponto evidente: a cultura popular, como refle-
tida na mídia, não é, e não pode ser considerada uma representação precisa do
verdadeiro estado do direito contemporâneo. Vamos supor que nossos regis-
tros sobre direito fossem todos destruídos em um cataclisma nuclear que aca-
basse com os bancos de dados legislativos e de jurisprudência — tanto federais
quanto locais; e que as próximas gerações, escavando as ruínas, descobrissem
intactos apenas os arquivos da rede de televisão NBC. Os exploradores teriam
certamente uma imagem destorcida do sistema jurídico. Eles descobririam
nada ou quase nada sobre direito de propriedade, direito tributário, direito co-
mercial, e muito pouco sobre responsabilidade civil ou mesmo sobre direito de
família; mas encontrariam uma enorme quantidade de material sobre a polícia,
homicídios, criminalidade, estupro, e crime organizado.16

16 Se supusermos (e por que não?) que os exploradores encontrassem arquivos de programas


de notícias, comerciais, novelas, séries de televisão, e programas de televisão sobre crimes.
28 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Quantidade não é qualidade e, desse modo, os produtos da cultura popu-


lar são de modo geral muito distantes da realidade, mesmo em relação aos as-
pectos do sistema jurídico que eles abordam obsessivamente. Programas poli-
ciais são feitos para divertir, empolgar; não são documentários. São repletos de
exageros ridículos, para efeito dramático. Programas sobre crimes, por exem-
plo, representam os crimes violentos como se fossem muito mais frequentes do
que realmente são. Furto de mercadorias não dá muita audiência; mas homicí-
dio sim. Um estudo sobre o horário nobre da televisão, feito em 1972, contou 26
homicídios e 20 casos de tentativa de lesão corporal qualificada de um total de
119 crimes em apenas uma semana; houve apenas duas violações de domicílio e
três casos de posse de drogas.17 Programas de televisão também não são indi-
cadores confiáveis da opinião pública sobre o direito e as instituições jurídicas.
O que as pessoas realmente pensam sobre direito, com o que se preocupam,
o que esperam, o que utilizam, o que defendem, não é congruente com o que
é exibido nas telas.
Além disso, ainda que os meios de comunicação reflitam e sejam direcio-
nados para a cultura jurídica popular, eles nem de longe são idênticos a ela. Há,
por exemplo, tabus que impedem que alguns tipos de material sejam exibidos
na televisão. Piadas racistas ou de baixo calão podem atravessar o país sem
aparecerem no horário nobre da televisão. E tudo o que aparece de fato passa
por filtros culturais e comerciais tendenciosos e distorcidos. Entretanto, para
entender o direito nessa sociedade, é desejável estudar sua relação com a cul-
tura; e essa relação pode assumir diversas formas.

A. Cultura Jurídica Popular como um Reflexo das Normas Sociais


Primeiro, a cultura jurídica popular, e o próprio sistema jurídico, sustentam-se
em normas mais gerais que, por sua vez, são expressas na ordenação jurídica.
O sistema jurídico permeia, habita, e é originado pela mesma sociedade que

Encontrariam, nesse material, algumas informações fragmentadas sobre alguns temas —


leis importantes, e a atividade da Suprema Corte. Elas seriam apresentadas, é claro, em
pequenos trechos de aproximadamente trinta segundos, e os exploradores teriam bastante
dificuldade para reconstruir animais inteiros a partir desses dentes enigmáticos espalhados
por todos os lados.
17 Dominick, Crime and Law Enforcement on Prime—Time Television, 37 PUB. VOTO Q. 241,
245 (1973). Havia outras grandes discrepâncias entre os criminosos e as vitimas da “vida
real” e os da televisão: os negros eram sub-representados como criminosos, e ainda mais
sub-representados como vítimas; menores de idade quase nunca eram mostrados como
criminosos; apenas algumas pessoas (7%) eram vítimas de membros da família (na vida
real, “aproximadamente 25 a 30 por cento dos crimes violentos ocorrem no contexto fami-
liar”, id. em 248); e, talvez o mais surpreendente, o “crime não compensa na televisão. Os
criminosos da televisão são quase sempre presos. Na vida real, o sistema jurídico é muito
menos eficiente”. Id. em 249.
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 29

produz e sustenta a cultura popular. Essa sociedade tem sua estrutura, suas
tradições, suas normas e ideologias. Na sociedade, há ideias gerais sobre o que
é certo ou errado, bom ou mau; são modelos a partir dos quais as normas jurí-
dicas são moldadas, e são também ingredientes a partir dos quais as canções
— e os roteiristas — elaboram seus temas e enredos. Como as normas sociais
mudam com o tempo, os temas dos sistemas jurídicos também mudam; e o
mesmo ocorre com a cultura popular. Arte, subarte, e direito caminham lado a
lado — de certo modo.
Vamos considerar, por exemplo, a forma como Hollywood e a televisão
abordaram as relações raciais nos Estados Unidos; vamos considerar o efeito
do movimento feminista em Hollywood e na televisão. Mudanças na atitude dos
“formadores de opinião” sinalizam mudanças na atitude da sociedade em geral;
e também na forma e na essência do direito. Por exemplo, nos primeiros anos
da televisão, os negros eram tão invisíveis quanto costumavam ser na socie-
dade branca; ou seja, eles apenas apareciam na periferia, varrendo o chão, aju-
dando a heroína a se vestir e, de vez em quando, sapateando ou cantando uma
música. Os negros nunca apareciam em comerciais. As mulheres, é claro, eram
essenciais nos roteiros como o “objeto amoroso”, e em novelas; mas elas nun-
ca interpretavam papéis importantes na política ou no mundo dos negócios;
e, sobretudo, nunca como detetives ou policiais. Em comerciais, as mulheres
apareciam como objetos sexuais, ou como criaturas sorridentes, servis, donas
de casa, cujo principal objetivo da vida era casar e enrolar os maridos, passar
um café tão saboroso que os homens lamberiam os beiços, ou assegurar que
as camisas dele estivessem tinindo de brancas.
O fato desses primeiros temas terem mudando ligeiramente18 não decorre
de nenhum comando imperativo, e também certamente não é resultado das
Leis dos Direitos Civis de 196419*, ou de uma ordem direta da Comissão Fe-
deral de Comunicação dos Estados Unidos (FCC). Empresas televisivas, seus
redatores, e seus publicitários simplesmente reagiram — ao que uma parte da
audiência exige e a outra parte respeita ou permite — reagiram, portanto, às
mesmas correntes sociais que produziram as respectivas leis dos direitos civis.
O estilo e o conteúdo da cultura popular foram alterados — sob o impacto
do feminismo, do movimento pelos direitos civis, pela liberação homossexual
e pelo fortalecimento dos movimentos étnicos — de uma maneira evidente:

18 Ver, e.g., Humphrey & Schuman, The Portrayal of Blacks in Magazine Advertisements: 1950-
1982, 48 PUB. OPINION Q. 551 (1984).
19 *
Nota do Editor: Esta legislação teve a iniciativa do Presidente John Kennedy e foi promul-
gada após sua morte pelo Presidente Lyndon Johnson, tendo sido um marco no combate
à discriminação com base em raça, cor, religião, gênero ou origem nacional, pondo um fim
à segregação racial nas escolas, trabalho e espaços públicos em geral. Foi uma importante
vitória para o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos.
30 CADERNOS FGV DIREITO RIO

as piadas que não podem mais ser contadas, os velhos estereótipos que têm
de abrir caminho para novos estereótipos, os clichês que se aposentam, os
novos slogans que correm para tomar seus lugares. As normas dos direitos
civis também afetam a cultura popular de formas mais profundas e mais sutis.
O conceito dos direitos civis é mais amplo do que as categorias que de fato
constituem a doutrina dos direitos civis. Ele é, na sua forma expandida, nada
mais do que uma expressão do próprio individualismo: a noção de que cada
indivíduo é único, de que a tarefa principal do ser humano é ter uma identidade,
escolher uma forma de vida. Isso não implica no fim da identificação com um
grupo. Raça, gênero, etnia e preferência sexual não foram abolidas enquanto
categorias de significação humana. Muito pelo contrário. Mas a cultura redefine
essas categorias de modo característico — como escolhas livres, aspectos pes-
soais da cultura ou do estilo de vida; ou como características “imutáveis” que,
justamente por isso, nunca deveriam ser utilizadas em detrimento do indivíduo
precioso que as reúne.
Esse princípio profundamente arraigado — vago, mas poderoso — colore
e está presente em toda a cultura popular. Não é, por exemplo, inverossímil,
vê-lo como um fator que influencia a forma como os extraterrestres são repre-
sentados na televisão e nos filmes. Criaturas extraterrestres eram quase inva-
riavelmente representadas como hostis nas primeiras obras de ficção científica,
como em H.G Wells, entre outros. Em filmes como A Guerra dos Mundos ou
Os Invasores de Corpos, os aliens são assustadores, desumanos, eles vêm para
destruir o planeta, para nos atacar diretamente, ou às vezes agem sorrateira-
mente, sugando nosso sangue, destruindo nossos corpos, controlando nossas
personalidades. Esses temas permanecem, é claro, comuns na ficção científica.
Porém, nas últimas duas décadas, surgiu uma representação diferente desse
extraterrestre, mais positiva e, às vezes, até simpática. Alguns — o ET é o exem-
plo clássico; ou os aliens de Contatos Imediatos de Terceiro Grau, ou de Cocoon
— são criaturas cordiais, amáveis até; houve uma onda desse tipo de histórias e
filmes; como observa um jornal, os extraterrestres estão “na moda”, oferecen-
do aos “seres humanos embasbacados uma onda irresistível de esperança, fé
e euforia”. 20

20 Goldstein, Outer Space “Inˮ at the Movies, San Francisco Chronicle, 10 Nov 1988, em 36, 39,
col. 1. Goldstein, e outros críticos, interpretaram os filmes de ficção científica da década
de 1950, sobretudo Os Invasores de Corpos, como “alegorias políticas (...) inspiradas pela
paranoia da Guerra Fria e pelos temores gerados pelas novas tecnologias”; esses filmes
“ecoavam um grito de alerta contra uma sociedade conformista, com seus ternos cinza de
flanela”, ao representarem “seres humanos subvertidos por aliens impassíveis”. Os novos
filmes refletem uma visão “amigável” da tecnologia. Eles refletem “visões otimistas” em
uma “época de um ressurgimento religioso e de agitações sociais”. Id. em 38-39.
Eu acho essa explicação político-cultural bastante interessante. Ela não é inconsis-
tente com a justificativa dos “direitos civis”, no texto que acompanha esta nota. E essa
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 31

Os aliens, finalmente, não são criaturas horripilantes e irredimíveis, como


costumavam ser retratados; em certos casos, eles são apenas diferentes em
alguns aspectos, e talvez essa diferença seja apenas superficial, apenas física.
Se pudéssemos aprender a entendê-los, colocarmo-nos no lugar deles, desco-
briríamos que, apesar das criaturas de todo o universo não serem literalmente
humanas, eles no fundo também têm sentimentos e dignidade.21 O próprio sig-
nificado do termo alienígena passou por uma certa mudança; essas criaturas do
espaço sideral não são necessariamente inimigas, são visitantes, emigrantes,
como os primeiros forasteiros que vieram para os Estados Unidos de navio, ou
atravessaram a fronteira. A comunidade americana deve ser aberta o suficiente
para acolher esses estrangeiros, esses visitantes, apesar das diferenças de cor,
língua, e forma. ET é, portanto, a expressão de uma mentalidade dos “direitos
civis” — um pluralismo profundo, uma ampla aceitação da alteridade, que teria
sido simplesmente impensável no século XIX.22
Por outro lado, de certo modo, a ficção moderna, incluindo filmes e a tele-
visão, mesmo com sua crescente aceitação dos aliens, torna-se de modo geral,
muito mais paranoica em relação às grandes organizações e às formas tra-
dicionais de autoridade. Livro após livro, programa após programa, as ações
secretas do governo norte-americano e, sobretudo, das forças de segurança
são reveladas e expostas. Será que alguma vez a CIA é representada de um
ponto de vista positivo? A polícia, a principal tropa de choque da segurança
pública e da manutenção da ordem, ocupa uma posição um tanto ambivalente.
Às vezes, são heróis, às vezes, estúpidos (em comparação com Perry Mason,
por exemplo), e às vezes, tiranos. Na cultura popular moderna, há certamente

explicação, por sua vez, também não é inconsistente com outro aspecto da vida ocidental
moderna: o renascimento (se é que ele já esteve morto) do interesse pelo oculto, a popu-
laridade passageira das religiões não convencionais, da astrologia, a mediunidade, as bes-
teiras de Shirley MacLaine, das revoltas contra tecnologia, da euforia por óvnis, dos fãs do
assassinato de Kennedy, dos que acreditam que Elvis não morreu, entre outros, apoiados
por muitos ignorantes, mas também por ludistas intelectuais de quem se esperaria uma
postura mais racional. Tudo isso reflete não apenas um anseio pela fé do passado, mas
também um narcisismo, uma desconfiança do que afirmam os especialistas, o conceito
inflexível de que o que me parece certo é certo para mim, e caso você discorde, isso é um
direito seu; cada um sabe de si.
21 Eu não tenho, é claro, dados sobre a proporção de extraterrestres “bons” ou “maus” em
filmes, livros e programas de TV. Nas ficções científicas recentes — Guerra nas Estralas e
vários episódios e filmes de Jornada nas Estrelas — há muitos tipos de aliens, alguns são
bons, outros são maus, do mesmo jeito que aqui, no Planeta Terra.
22 Junto a essa noção está o pluralismo romântico que permitiu que um jurista tão conserva-
dor quanto o Warren Burger escrevesse, em Wisconsin v. Yoder, 406 U.S. 205 (1972), um
entusiástico tributo aos Amish — um grupo religioso pequeno e peculiar que, no século XIX,
teria sido tratado com o mesmo tipo de repulsa e intolerância que os Mórmons enfrenta-
ram; ou inclusive com a mesma repulsa e intolerância com que o século XIX tratava povos
“primitivos” em geral.
32 CADERNOS FGV DIREITO RIO

uma inclinação para a filosofia da Corte de Warren23: suspeita-se da polícia,


das grandes organizações, e buscam-se formas de controlar o governo e seus
soldados, além de formas para frear aqueles que defendem e exigem as leis.
É certo que há uma forte contra-tendência à lei e à ordem, muito patriotis-
mo inflamado e até violento, muito Rambo e Perseguidor Implacável. A Corte
de Warren entrou para a história, e os anos depois de seu término foram am-
bivalentes, de muita procrastinação na tomada de decisões. A cultura às vezes
glorifica a polícia, os detetives, e os cidadãos inflamados principalmente quan-
do agem como completos foras da lei, mas na defesa de alguma forma superior
de justiça. Há um grande acervo literário, antigo e recente, em prol dos justicei-
ros. Outro tema recorrente é a polícia no papel de idiotas desajeitados; ou tão
desprezível quanto os próprios criminosos.24 Ainda assim, minha impressão é
que a literatura popular da (digamos) primeira parte do século foi muito mais
desproporcional. Havia, é claro, os Guardas Keystone, um balé desenfreado de
trapalhadas e idiotices; entretanto, o policial normalmente estava do lado certo
da lei. E o público tolerava ou defendia a brutalidade da polícia, como uma dose
necessária de autodefesa social. A lei nunca está errada.
A tendência de suspeitar de autoridades é, naturalmente, outro reflexo do
nosso tipo particular de individualismo — uma forma de consciência que lite-
ralmente destaca o individual, e que desconfia profundamente de tudo o que é
em larga-escala, organizado, governamental; e inclusive do que vem caracteri-
zado com as vestes tradicionais da autoridade. A autoridade do século XX, ao
contrário das versões anteriores, é o que podemos chamar de horizontal, em
vez de vertical. Ela é voltada para os pares e para os semelhantes.

B. Cultura Jurídica Popular e Cultura Popular


A cultura jurídica popular e a cultura popular têm em comum dois aspectos
importantes. Em primeiro lugar, as ideias da cultura popular são inspiradas no
direito, ou, pelo menos em parte, na cultura jurídica popular. Ou seja, a cultura
popular reflete a cultura jurídica popular.
Redatores de jornal e de televisão, roteiristas e compositores, fofoqueiros
e criadores anônimos de piadas — poucas dessas pessoas são advogadas, e
a concepção que têm dos advogados, e de como a lei funciona, é derivada
de conceitos comuns, leigos. O público leigo, é claro, não entente as comple-
xidades e as imbricações do direito, como poderia entendê-las? Alguns mal-

23 Nota do editor: a expressão Corte de Warren se refere à Suprema Corte dos Estados Uni-
dos no período entre 1953 e 1969, quando Earl Warren foi o seu Presidente. Tendo sido
o Procurador-Geral de Justiça e o Governador da Califórnia, Warren liderou a corte em
defesa de causas liberais, como a ampliação de garantias penais, o aumento do poder do
judiciário e a defesa das liberdades civis e da igualdade racial.
24 Sobre esse aspecto, ver Stark, supra nota 12, em 230, 238-39, 249, 279.
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 33

-entendidos são sistemáticos, padronizados, e importantes. O direito, afinal de


contas, não afeta diretamente o comportamento dos cidadãos. O que afeta o
comportamento é o que é comunicado. O que os terapeutas acham que Tara-
soff v. Regentes da Universidade da Califórnia25,26 foi é tão importante quanto o
que ele realmente foi, ou talvez até mais importante.27
É verdade que as concepções leigas frequentemente refletem a experiên­
cia real, ainda que possam passar por distorções causadas pela ignorância ou
por inclinações pessoais. Houve de fato um caso Tarasoff, e os terapeutas en-
tendem de modo geral o que ele significou, ainda que a mensagem que eles
recebam não seja precisa do ponto de vista de um advogado. Se as pessoas
veem os advogados como seres inescrupulosos e gananciosos, é pouco prová-
vel que isso não tenha nenhum fundo de verdade; é provável que haja algo que
gere esse medo e essa repulsa.
A cultura jurídica popular também gera cultura popular, ou pelo menos a
influencia, na medida em que age como um meio ou um canal para transmissão
de valores e comportamentos. A cultura popular transmite mensagens para o
público, mensagens sobre instituições jurídicas. Essa é a segunda forma pela
qual as duas culturas estão relacionadas.
Tanto os estudos americanos quanto os estrangeiros28 demonstram que as
populações modernas sabem catastroficamente pouco sobre direito e sobre os
sistemas jurídicos (o que não é surpreendente). A maioria das pessoas nunca
consultou um advogado e nunca teve contato direto com o sistema jurídico,

25 Nota do editor: Tatiana Tarasoff foi assassinada em 1969 por um paciente diagnosticado
com esquisofrenia paranóica aguda, Prosenjit Poddar, um estudante indiano em Berkeley,
que a tinha beijado numa noite de reveillon e por ela se apaixonado sem ser correspondido.
O pai de Tatiana processou a Universidade de Berkeley porque o estudante tinha confes-
sado sua intenção de cometer o assassinato ao seu psiquiatria, que tinha determinado à
polícia da Universidade que procedesse à detenção do estudante para fins de internação.
Posteriormente, contudo, o supervisor da psiquiatria liberou o estudante da internação,
sem sequer avisar à potencial vítima do risco de morte que ela corria. Após a morte de
Tatiana e a Suprema Corte decidiu que os terapeutas psiquiátricos possuem o dever de
cuidado de advertir pessoas em risco de morte por ataque de doentes psiquiátricos. Legis-
lação estadual especificando este dever foi promulgada em 33 estados nos Estados Unidos
após a morte de Tatiana Tarasoff.
26 17 Cal. 3d 425, 551 P.2d 334, 131 Cal. Rptr. 14 (1976). Em Tarasoff, a Suprema Corte da Cali-
fórnia decidiu que um terapeuta tinha a obrigação de tomar as medidas necessárias para
proteger uma pessoa quando determinasse, ou quando devesse ter determinado com base
nas informações que possuía, que seu paciente apresentava um sério perigo de violência
para essa pessoa.
27 Ver Bowers, Blitch & Givelber, Tarasoff, Myth and Reality: An Empirical Study of Private Law
in Action, 1984 Wisc. L. REV. 443. O estudo demonstrou que a decisão em Tarasoff havia
inicialmente sido comunicada a profissionais de saúde mental por meio de organizações
e do boca a boca; mas os terapeutas receberam a mensagem um pouco truncada. Id. em
459-68.
28 Ver, e.g., Williams & Hall, Knowledge of the Law in Texas, 7 L. & Soc’Y REV. 99, 117-18 (1972);
Podgorecki, Public Opinion on Law, in KNOWLEDGE AND OPINION ABOUT LAW 65 (C.
Campbell, W. Carson & P. Wiles eds. 1973).
34 CADERNOS FGV DIREITO RIO

seja por meio de escritórios de direito, tribunais, julgamentos, ou disputas judi-


ciais.29 Elas têm acesso a informações (às vezes erradas) quase sempre de se-
gunda-mão. As associações comerciais, por exemplo, mantêm seus membros
informados sobre as atividades judiciais relevantes; e foi assim que o terapeuta
médio tomou conhecimento do caso Tarasoff. Para o resto de nós, em relação
à grande parte do que achamos que sabemos, é bastante provável que esse
conhecimento venha na forma de cultura popular. A relação entre a cultura po-
pular e a cultura jurídica popular é recíproca, de tal forma que é quase impossí-
vel distinguir seus elementos. Por alguns motivos, entretanto, pode ser sensato
considerar como (por exemplo) os julgamentos da televisão e de filmes influen-
ciam a forma que as pessoas pensam que os julgamentos são conduzidos ou
deveriam ser conduzidos, e é sempre importante observar quais ideias a TV e
os filmes podem estar transmitindo para as pessoas.
Há alguma produção literária sobre o tema.30 Alguns dos textos abordam
temas da literatura jurídica popular, o que eles são, e o que significam. Vale a
pena seguir esse caminho. Por exemplo: no filme Doze Homens e uma Sen-
tença, com Henry Fonda, um único jurado corajoso (Fonda, é claro) resiste a
escolha mais fácil — condenar o réu. Fonda insiste que ele deve ser absolvido.
No final, convence os outros jurados a mudarem seus votos de culpado para
inocente. O filme se passa todo dentro da sala secreta. O filme é claustrofóbico,
tenso, empolgante, muito bem editado. A precisão não é sua maior qualidade,
entretanto. Estudos sobre o júri revelam que é praticamente impossível um úni-
co jurado convencer todos os outros a mudarem de opinião.31 Mas a ficção não
tem compromisso com as estatísticas ou com a vida real; as estatísticas e a vida
real não são tão interessantes. Doze Homens e uma Sentença é interessante e
persuasivo enquanto ficção, e transmite várias mensagens significativas. Uma
delas é sobre a presunção de inocência e o que ela significa na nossa cultura:
antes da sociedade condenar alguém ao inferno da punição, deve haver es-
paço para o devido processo legal; o réu deve ter um julgamento cuidadoso,
investigativo, abrangente e imparcial. A culpa é individual, e não coletiva, e a

29 É claro que, em um sentido mais amplo, todos são expostos ao direito e às instituições ju-
rídicas, todos os dias, de diversas formas — sempre que alguém compra o jornal, estaciona
o carro, ou realiza qualquer ato estruturado pela normatividade do direito para o qual os
agentes jurídicos funcionam como sentinelas. Mas me refiro aqui ao sentido mais restrito,
mas popular do direito.
30 Além das obras supra citadas na nota 3, ver Katsh, Is Television Anti—Law?: An Inquiry into
the Relationship Between Law and Media, 7 A.L.S.A. F. 26 (1983); Post, On the Popular Ima-
ge of the Lawyer: Reflections in a Dark Glass, 75 CALIF. L. REV. 379 (1987).
31 “É quase inevitável que tenhamos júris indecisos em grupos com diversos jurados com
opiniões divergentes no início da deliberação. Psicologicamente, os jurados conseguem
resistir a uma maioria apenas quando têm algum apoio inicial.” V. HANS & N. VIDMAR, JUD-
GING THE JURY 168 (1986). A fortiori, a chance de um único jurado realmente conseguir
convencer todos os outros a mudarem de ideia é muito pequena.
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 35

apreciação da culpa também o é, de certa forma. O júri é um órgão coletivo,


que age coletivamente; mas as normas que o governam são normas que insis-
tem em tratar cada caso, e cada réu, da forma mais profundamente individual.
Cada jurado leva consigo sua própria consciência para realizar a tarefa coletiva
de um júri.
O julgamento em Doze Homens e uma Sentença ocorre nos bastidores, de
certo modo. Tanto na cultura popular quanto na vida real, muitos julgamentos
criminais são dramas públicos, representações de moralidade encenadas em
fóruns abertos. A forma é extremamente estilizada, mas o conteúdo não. Socio-
logicamente, os julgamentos exercem um papel educacional importante. Eles
transmitem e fortalecem as normas da sociedade. Nesse sentido, servem para
unificar a sociedade em uma única unidade normativa, ou para tentar fazê-lo.
“Em quase todos os julgamentos”, Carl Smith escreve, “há uma outra encena-
ção ocorrendo[...] a realização cerimonial do direito e a afirmação de princípios,
bons ou maus, pelos quais a sociedade é organizada.”32
Os julgamentos, em outras palavras, são dispositivos de “manutenção dos
limites”; eles podem ajudar a consolidar a solidariedade social ao redefinir e de-
clarar as normas.33 As interações que mais efetivamente assumem “o papel de
localizar e dar publicidade aos limites externos de um grupo” são aquelas “que
ocorrem entre pessoas com comportamento desviante, de um lado, e agentes
oficiais da comunidade, do outro” 34, Essa é uma percepção importante, com
uma linhagem nobre que remonta a Emile Durkheim. É claro que as “fronteiras”
definidas, as normas “proclamadas”, os valores “afirmados” nos julgamentos
são, quase que necessariamente, normas da cultura dominante. São as normas
dos fortes, e não a dos fracos; as normas da maioria, e não as da minoria — ain-
da que em uma sociedade complexa, heterogênea e plural, nem sempre seja
fácil identificar as normas dos fortes e suas fronteiras, e nem a quem elas per-
tencem. A sociedade americana é majoritariamente de classe média. É evidente
que a classe média, em si, não é monolítica. Frequentemente, os julgamentos
são a encenação do drama das normas em competição, de batalhas entre pon-
tos de vista e hábitos opostos; e o que é afirmado e proclamado nem sempre é
o que um observador poderia ter previsto. Isso torna os julgamentos mecanis-
mos de revelação social, indicadores da cultura geral ainda mais interessantes.
O julgamento é também uma competição entre narrativas. Cada lado
conta uma história, e tenta convencer o júri (ou o juiz) a aceitar aquele ponto
de vista ou aquela versão específicos. Em um sentido importante, nenhuma

32 Smith, American Law and the Literary Mind, in LAW AND AMERICAN LITERATURE: A COL-
LECTION OF ESSAYS, 1, 12 (1980).
33 Ver K. ERIKSON, WAYWARD PURITANS 10 (1966).
34 Id. at II.
36 CADERNOS FGV DIREITO RIO

das duas histórias são “verdadeiras” ou “falsas”. Os dois lados discutem um


com o outro diante daquele que jugará o fato; cada um adorna e exibe sua
mensagem com frases de efeito e trechos de narrativas que considera parti-
cularmente interessantes, lógicos, atraentes. Portanto, os argumentos apre-
sentados nos julgamentos são pistas importantes de quais histórias podem
ser consideradas boas, ou ruins, ou convincentes em uma determinada cul-
tura. Alguns historiadores e outros acadêmicos utilizaram julgamentos com
esse fim específico: como dramatizações das normas culturais.35 Outros docu-
mentos ou rituais do direito também podem servir a esse propósito. Pedidos
de divórcio, por exemplo, fornecem informações valiosas sobre quais com-
portamentos e atitudes são considerados cruéis ou injustos em um casamen-
to; indicam quais histórias podem impressionar um tribunal como fundamento
para dissolver um casamento sem amor.36 Pedidos de indenização, ou as his-
tórias contadas durante negociações de transações penais37; também podem
ser surpreendentemente reveladoras.

C. Cultura Popular e Autoridade


Há outra forma em que a cultura popular está relacionada ao direito: a cultura
popular serve como um indicador das formas de autoridade em uma deter-
minada sociedade. Nada é mais básico para uma sociedade do que as formas
que a autoridade assume; as formas como a autoridade se sustenta, e trans-
mite seus poderes para seus agentes. Grande parte da mensagem da cultura
popular é sobre a autoridade ou, às vezes, sobre a rejeição da autoridade. Nos
Estados Unidos modernos, e no mundo ocidental em geral, a autoridade, que
já foi marcadamente vertical, tornou-se muito mais horizontal38. Ou seja, na
sociedade tradicional, a autoridade era hierárquica — era simplesmente uma
questão de quem estava por cima e quem estava por baixo. Autoridades dire-
tas poderosas — o pai, o padre da cidade, os senhores feudais, o professor de
escola — exerciam controle sobre outros indivíduos. Eram elas que transmitiam
os hábitos e normas da sociedade para as crianças pequenas; elas exerciam
uma autoridade constante, cotidiana, permanente. No universo local, pequeno

35 Ver, e.g., L. FRIEDMAN & R. PERCIVAL, THE ROOTS OF JUSTICE: CRIME AND PUNISH-
MENT IN ALAMEDA COUNTY, CALIFORNIA, 1870-1910, em 237-60 (1981); M. HARTMAN,
VICTORIAN MURDERESSES (1977).
36 Ver, em geral R. GRISWOLD, FAMILY AND DIVORCE IN CALIFORNIA, 1850-1890 (1982); E.
MAY, GREAT EXPECTATIONS: MARRIAGE AND DIVORCE IN POST—VICTORIAN AMERICA
(1980); Esses dados devem, é claro, ser analisados com muito cuidado, sobretudo em casos
consensuais e sem lide.
37 Ver Maynard, Narratives and Narrative Structure in Plea Bargaining, 22 LAW & SOC’Y REV.
449 (1988).
38 Nota do Editor: Lawrence Friedman posteriormente viria a transformar este argumento
em um excelente livro sobre a sociedade horizontal, a saber, Lawrence M. Friedman, The
Horizontal Society, Yale University Press (1999).
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 37

da sociedade tradicional, não havia algo como a eleição das autoridades ou o


consentimento dos governados.
É certo que a autoridade vertical ainda é incrivelmente importante em
nossas vidas; e talvez sempre será. Mas ela perdeu a força, em comparação
com a força horizontal: a influência dos pares. “Grupo de pares” é um termo
que sugere amigos, colegas de escola e de trabalho; mas na era da televisão
e do rádio, os pares podem estar espacialmente distantes — do outro lado do
mundo, literalmente. O que a televisão traz para os lares é um grupo de pares
com infinitas possibilidades — uma revolta de estilos, cores, tendências, modos
de vida; o espectador pode decidir o que levará para si, e em que medida. Ou
pode decidir não levar nada. O grupo de pares local é fortalecido pela autori-
dade colossal da mídia, que continuamente contorna as autoridades verticais.
A mídia dilui a outrora esmagadora força da autoridade direta.
As culturas midiáticas e as culturas de massa, como mencionamos, não
são idênticas, mas a mídia é ainda assim o veículo mais potente de cultura po-
pular. A cultura popular é, hoje, inseparável da cultura midiática. Na sociedade
tradicional, antes da era dos jornais e revistas — e mais tarde do rádio, do filme
e da TV — a cultura popular era confinada, restrita, local; ela se disseminou, mas
muito lentamente; era praticamente impossível notar as mudanças de tendên-
cia; e as pessoas se vestiam, cantavam, conversavam e se alimentavam mais
ou menos da mesma forma que seus antepassados. Os contos populares, por
exemplo, eram transmitidos dos lábios da avó ou de um tio idoso para os ouvi-
dos de uma criança que, quando adulta, os repetiria para as crianças sentadas
no seu colo. A cultura popular era tradicional em forma e conteúdo, e refletia
temas e conceitos de autoridade vertical. Era repleta de mágica e encantamen-
to, de reis e princesas, bruxas e demônios; e falava de um mundo misterioso,
encantado, às vezes assustador, às vezes maravilhoso, muito além da experiên-
cia e do alcance do ser humano normal.
A mídia mudou a natureza da cultura popular, ou permitiu que ela mudas-
se. A cultura popular de hoje é rápida como o vento, reluzente, intolerante com
a tradição; ela gira e requebra e muda de tons constantemente; a mídia expres-
sa e viabiliza a cultura na qual o modelo de ontem ficou antiquado, e no qual
uma música já é velha apenas dez anos depois de ser lançada. A mídia promo-
ve celebridades, e não a autoridade tradicional; quando transmite mensagens
sobre pessoas poderosas, transforma essas pessoas em celebridades, ou seja,
elas são representadas como pessoas famosas, mas ao mesmo tempo comuns
e próximas. Uma celebridade é alguém que pode ser imitado, pelo menos em
hábito e estilo; a autoridade, no sentido tradicional; era terrível e onipresente,
ou, ainda, remota e inefável. Na TV, nada é remoto e inefável. A mídia apresen-
ta uma cultura do agora, de pares em vez de antepassados e patriarcas, uma
38 CADERNOS FGV DIREITO RIO

cultura de ricos e famosos — de celebridades — em vez de castelos e reinos


distantes.
Inevitavelmente, uma cultura popular desse tipo transforma as instituições
jurídicas, do mesmo modo que transforma outros elementos e sistemas em
uma sociedade (ou é transformada por eles): educação, vida profissional, lazer,
relação entre gêneros. A cultura midiática é uma cultura da pluralidade, quase
que por necessidade; a pessoa que vê televisão, por mais isolada ou provincia-
na que seja, não é mais tão inescapavelmente encapsulada em uma determina-
da tradição. É claro, tudo é uma questão de proporção. O relacionamento com
os pais ainda é incrivelmente importante; assim como a instituição religiosa.
Mas essas fontes de poder enfrentam agora rivais poderosos: mensageiros de
um mundo muito mais amplo e múltiplo, transmitido de fora pela mídia. Ne-
nhum camponês na França medieval nem nenhum lavrador na África do século
XIX estavam expostos a uma gama tão variada de mensagens, a tantos mode-
los, a tantos modos de vida. A autoridade vertical, que existia naquela época e
nos séculos que a antecederam, exercia um monopólio do controle social. Esse
monopólio foi execrado na era da cultura de massa.
O sistema político, também, foi transformado. A cultura popular moder-
na, com seus ensinamentos horizontais, exige um nivelamento da autoridade
política. O “sobrenome” não é qualificação suficiente para liderar ou coman-
dar; a deferência clássica ficou no passado. Os Presidentes possuem um poder
enorme, mas eles devem se comportar como cidadãos comuns, ou pelo menos
como celebridades comuns. Sua pompa e poder devem ser mesclados com um
toque de normalidade. Pelo menos aparentemente, eles devem sempre se sub-
meter à opinião pública. A autoridade política se tornou obcecada por eleições
e pesquisas, oráculos da opinião pública. Ironicamente, o ideal da autoridade
horizontal, o ideal da participação, torna a mais descarada manipulação da opi-
nião pública possível, necessária e legítima. Mas pelo menos superficialmente,
a vida política se curva ao horizontal. Todos se queixam da praga das eleições
e da tirania das pesquisas eleitorais, mas o governo parece incapaz ou relutan-
te de abrir mão delas. O referendo é outra forma exaustivamente utilizada de
soberania popular. A Califórnia é, hoje, o caso mais extremo. Os dias de eleição
se tornaram uma verdadeira orgia de votos. Na eleição de 1988, o eleitor da
Califórnia, depois de escolher as autoridades nacionais, estaduais e os locais,
inclusive o juiz, tinha que lidar com nada menos do que 29 “propostas” para o
estado em sua cédula. Os eleitores de São Francisco tinham outras vinte e seis
questões locais para considerar. Certas questões locais e estaduais eram alta-
mente polêmicas, a maioria era absurdamente técnica, algumas evidentemente
irrelevantes, ou dolorosamente obscuras. Independentemente do que se diga
sobre elas, aquilo foi uma aberração da autoridade horizontal.
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 39

Portanto, a cultura popular é importante se ela forma, ou ajuda a formar,


uma cultura jurídica popular, ou seja, o que as pessoas pensam sobre direito.
E o que as pessoas pensam sobre direito é importante porque vivemos na so-
ciedade da “opinião pública”, que utiliza referendos exaustivamente, e na qual
o governo não levanta um dedo ou move um músculo sem consultar a bola de
cristal do desejo público. As sucessivas administrações parecem estar cada
vez mais encurraladas pelos mecanismos de cobertura televisiva, eleições,
pesquisas de opinião, e representações na mídia. Houve uma comoção consi-
derável quando vazou a notícia de que o presidente Reagan talvez houvesse
consultado astrólogos.39 Isso foi, provavelmente, apenas uma excentricidade
sem consequências. É muito mais preocupante o governo estar preso em uma
dependência quase supersticiosa com os oráculos da suposta opinião pública.
Em certo sentido, a palavra oráculo aqui pode ser mal utilizada. O oráculo
original estava além do alcance do ser humano; na nossa época, o governo
suborna e seduz descontroladamente, com o objetivo de influenciar o que o
oráculo diz; campanhas eleitorais se degeneraram em campanhas de marketing
televisivo; os referendos são decididos sob a influência de outdoors gigantes;
diariamente, os diferentes níveis do governo engendram todos seus esforços
na tentativa de influenciar e fazer propaganda positiva de si mesmos. Consulto-
res de imprensa são tão importantes para o Presidente, e tão poderosos, quan-
to o Conselho de Consultores Econômicos (Council of Economic Advisers).

III. Aspectos da Cultura Jurídica Popular


Este ensaio sustentou que a cultura jurídica é um fator essencial para a compre-
ensão das teorias sociais do direito. Ele também analisou diversos pontos de
intercessão entre o direito e a cultura popular. Esta seção discute dois aspectos
específicos da cultura jurídica popular.

A. Imagens do Direito e dos Advogados


Programas de TV, romances populares, e obras do gênero também nos dizem
algo sobre as diferentes concepções sobre direito e advogados disseminadas
entre membros do público em geral. Uma pesquisa sistemática é, naturalmente,
rara. O material disponível nos permite pelo menos traçar especulações inofen-
sivas. Parece razoavelmente claro que o “direito”, em suas diversas formas, é
hoje mais proeminente do que no passado e, portanto, está mais em evidência.

39 A história veio à tona pela primeira vez em um livro de memórias escrito por Donald T. Re-
gan, antigo Chefe da Casa Civil (Chief of Staff) da Casa Branca. Falava sobre o Presidente
e, sobretudo, sobre sua esposa, Nancy. Ver N.Y. Times, May 4, 1983, em 1, col. 5.
Suspeito que a maioria das pessoas não tenha ficado especialmente chocada. “Há uma
tolerância surpreendente por esse tipo de bobagem em uma sociedade particularmente
interessada pelo ‘estilo de vida’.”
40 CADERNOS FGV DIREITO RIO

A mídia de massa, é claro, exerce aqui um papel importante. Mas essa é apenas
uma parte da história. Uma sociedade de classe média utiliza e contesta o dire-
to — na forma de hipotecas e contratos, multas de trânsito, acordos de divór-
cio, imposto de renda e de diversas outras maneiras. A vida moderna nos Es-
tados Unidos, e no ocidente em geral, é uma escola de direito enorme e difusa.
Mudanças no direito tiveram importância fundamental no papel de desta-
que que as instituições jurídicas assumiram. Já mencionamos a revolução nos
direitos civis. É evidente que os importantes casos da Corte de Warren atraíram
novos olhares para o Judiciário, ou pelo menos para a cúpula desse Poder. A
Corte de Burger se fez extremamente visível — e polêmica — quando decidiu
Roe v. Wade.40,41
É verdade que nem sempre é fácil documentar o que as pessoas pen-
sam exatamente sobre direito, especialmente por ser o direito um domínio tão
grande e amorfo. A comoção pela responsabilidade civil, o lamento e as re-
clamações sem fim sobre a explosão da litigiosidade42, a controvérsia sobre a
superproteção de criminosos — tudo isso aponta para uma opinião bastante
negativa; mas esses pontos de vista são, em certa medida, equivocados. Na
verdade, o público parece ter uma relação de amor e ódio com o direito. Ele
vê o direito como a maleta de um mágico, um poço sem fundo de artifícios e
legalismo; mas ele também vê o direito como a espada afiada da justiça, uma
arma poderosa do interesse público. O direito é, de fato, uma das pedras fun-
damentais da liberdade.
A representação dos advogados é um caso à parte. Muitos advogados
têm, sem dúvida, a impressão de que ninguém os valoriza. Há tantas piadas
e tirinhas sobre advogados que seria fácil publicar um livro de piadas ou de
quadrinhos bem grande; e várias pessoas já fizeram isso.43 Todo mundo tem
sua própria piada de advogado favorita. Acho que não é exagero dizer que

40 Nota do editor: trata-se de uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos que proibiu
a criminalização do aborto, assegurando a todas as mulheres a possibilidade de interrup-
ção da gravidez como parte de seus direitos reprodutivos. A decisão gerou protesto dos
movimentos conservadores católicos, mas foi mantida até o presente com base no direito à
privacidade e na liberdade reprodutiva das mulheres de decidir sobre a questão com ampla
autonomia quanto ao seu corpo e ao planejamento do nascimento de seus filhos. Logo, ao
contrário do Brasil, o aborto não é crime nos Estados Unidos e em quase toda a Europa (as
exceções na Europa são Polônia e Irlanda do Norte).
41 410 U.S. 113 (1973).
42 Sobre o tema da explosão de contenciosos, ver L. FRIEDMAN, supra nota 1, em 6-34; Ga-
lanter, Reading the Landscape of Disputes: What We Know and Don’t Know (and Think We
Know) About Our Allegedly Contentious Society, 31 UCLA L. REV. 4 (1983).
43 Dois exemplos recentes desse gênero um tanto fajuto: B. BERGER & R. MARTINEZ, WHAT
TO Do WITH A DEAD LAWYER (1988) (cartoons); SKID MARKS: COMMON JOKES ABOUT
LAWYERS (M. Rafferty ed. 1988).
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 41

quase nenhuma dessas piadas é lisonjeira para os advogados44. O melhor que


os advogados podem conseguir é aparecerem como espertos e precisos. E o
pior — e isso é muito mais comum — é aparecerem como seres inescrupulosos,
vis, gananciosos e sem coração.
A literatura popular também os representa de forma ambivalente. Os
americanos “levam consigo”, como coloca Anthony Chase, uma “imagem am-
bivalente” do direito e dos advogados45: há advogados que parecem nobres e
justos, “defensores ardentes do indivíduo isolado”, outros se enquadram mais
na imagem do advogado inescrupuloso, fraudulento.46 O advogado de defesa
criminal leva grande parte da boa fama, outros advogados tendem a ser tacha-
dos de charlatões.
Em alguns sentidos, é fácil entender porque as pessoas não gostam de
advogados. A pessoa comum procura um advogado apenas em uma situação
extremamente preocupante. Ninguém gosta de agentes funerários também.
Essas profissões prosperam na miséria humana. Mas pelo menos o público não
acusa os agentes funerários de causarem a morte. Já os advogados são muitas
vezes suspeitos de incitar a demanda por seu produto, causando desavenças,
tendo em vista seus honorários.
Os advogados também livram as pessoas de situações difíceis, sem dúvi-
da. Mas isso raramente faz com que eles se tornem mais bem vistos pelo seu
público. Para me defender contra o que considero uma ação improcedente,
vou ter que contratar um advogado; mas eu provavelmente não vou guardar
boas memórias do episódio como um todo. O advogado é um mal necessário:
todo aquele dinheiro, e nada concreto em troca, exceto prevenir um mal cau-
sado por outros advogados. As pessoas certamente têm uma opinião melhor
sobre seus próprios advogados do que dos advogados do outro lado. Ainda
assim, a hostilidade contra aquele sujeito parece mais forte do que qualquer
bem que seu advogado possa gerar.
A maioria das pessoas são parte da classe média; e ainda que os membros
da classe média tenham contato com o direito cotidianamente, como mencio-
namos, eles não “têm” um advogado, e certamente não consultam ou contra-
tam um advogado regularmente; muito da opinião que têm sobre advogados
e sobre a profissão vem de boatos, e do que os vizinhos contam, ou até dos
meios de comunicação. Nos últimos anos, uma série de televisão sobre advoga-

44 Nota do Editor: Marc Galanter viria a publicar um livro exclusivamente sobre o tema das
piadas sobre advogados, a saber, Marc Galanter, Lowering the Bar: Lawyer Jokes and Legal
Culture, The University of Wisconsin Press (2006).
45 Chase, On Teaching Law and Popular Culture, 3 Focus ON L. STUD., Spring 1988, em 1, 9.
46 Conforme exemplo de um filme como um “defensor ardente”, Chase cita O Sol é para To-
dos. Id. em 9. Para um exemplo de um filme com um advogado inescrupuloso, cita Uma
Loura por um Milhão, de Billy Wilder. Id.
42 CADERNOS FGV DIREITO RIO

dos, L.A. Law, virou um grande sucesso47. Sem dúvida, o programa já transmitiu
mais “bytes” de informação (verdadeiras ou não), mais imagens de advogados,
do que todos os cursos de Direito, todas as colunas de opinião, todos os pro-
gramas da PBS juntos48.
É evidente que L.A. Law distorce completamente a realidade: alguns advo-
gados não controlam o riso, outros, o desprezam. Ela transmite, de várias ma-
neiras, a mesma mensagem noticiada em Perry Mason, de forma um tanto mais
complexa, e no formato de uma novela. Os advogados de L.A. Law são pessoas
interessantes, que levam uma vida glamorosa, empolgante, e que lidam com
uma sucessão de problemas fascinantes. Eu assisti apenas a alguns episódios,
mas nenhum dos que vi mostrava que a rotina de trabalho de um advogado é
também penosa e repetitiva. A maioria dos espectadores talvez saiba (ou pelo
menos intua) que não é possível que o trabalho dos advogados seja tão em-
polgante quanto o dos advogados de L.A. Law. Afinal de contas, aquilo é “só
um programa de televisão”. Mas de todo modo elas guardam algum resíduo da
representação que a dose semanal de L.A. Law transmite para elas.
As tramas e subtramas de L.A. Law, até onde sei, parecem girar entorno
de “casos”, ou seja, processos judiciais, exceto quando giram entorno da vida
amorosa dos advogados. Um comentarista reclamou que o pior em L.A. Law,
e em outros programas sobre advogados, “não é a representação imprecisa e
romantizada de juízes e advogados, e sim a representação imprecisa e roman-
tizada do processo judicial”.49
Isso é amplamente reconhecido, mas não podemos negar que L.A. Law é
um indicador social. O excesso de foco no contencioso, com toda sua hipérbole
e besteirol, de fato captura uma tendência da vida jurídica moderna, de uma
forma que Perry Mason nunca fez.50 Eu não consigo imaginar que o trabalho de

47 Nota do Editor: O seriado L.A. Law foi uma série de televisão de sucesso nos Estados Uni-
dos como um drama jurídico, tendo sido transmitido durante oito temporadas pela NBC
entre 1986 e 1994. Nesta passagem do artigo Lawrence Friedman produz uma análise so-
ciojurídica da série televisiva, inaugurando um novo filão da literatura sobre o direito e
cultura pop, explorado com êxito por Michael Asimow, Barbara Villez e, neste volume em
particular, por Manuel Gomez. Veja Manuel A. Gomez, No Limite: A representação da lei e
da ordem social não oficiais na série de televisão Breaking Bad, em Direito, Cultura Popular
e Cultura Clássica, Pedro Fortes (editor), volume 12 da Série CADERNOS FGV DIREITO RIO
(2015).
48 Nota do Editor: A Public Broadcast System é uma rede pública de televisão de alto nível
nos Estados Unidos, correspondeno ao padrão da TV Cultura de São Paulo, da BBC de
Londres e da NHK japonesa.
49 Machlowitz, Lawyers on TV, A.B.A. J. 52, 55 (Nov. 1, 1988). Na TV sempre se faz justiça, prin-
cipalmente se o seu advogado conseguir ganhar do advogado deles.”
50 Perry Mason era advogado, e o herói de um programa investigativo, em que o mistério sem-
pre era solucionado. O clímax quase sempre se passava no tribunal; e quase todos os epi-
sódios exibiam um julgamento criminal. Mas um mistério tem um estilo fixo, extremamente
convencional, que o restringe enormemente; o formato de novela, com uma estrutura mais
flexível, de L.A. Law é muito menos aprisionador.
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 43

um escritório em Wall Street nos anos 1900, ou ainda 1940 desse muito pano
para manga. Eu acredito que haja uma conexão entre o novo mundo dos pro-
cessos contenciosos, radiante ou não, e a advocacia extravagante de L.A. Law.
Os advogados de L.A. Law são caricaturas; mas as caricaturas são sempre cari-
caturas de algo, e esse algo tem que ser real. É muito provável que L.A. Law re-
flita mudanças reais na personalidade típica dos advogados, ou pelo menos na
dos advogados corporativos — mudanças que podem ser relacionadas a mu-
danças nos contenciosos e no estilo dos processos judiciais nos últimos anos.
Precisamos, agora, de um pouco de história. O processo judicial — ou,
pelo menos as audiências judiciais — eram a parte principal do trabalho dos ad-
vogados americanos. Os advogados mais famosos e bem-sucedidos do início
do século XIX eram incríveis guerreiros da sala de audiência, e o protótipo do
advogado herói era Daniel Webster.51 No final do século XIX, junto do desen-
volvimento de uma economia urbana, industrial, houve mudanças enormes nos
níveis mais altos das Ordens dos Advogados dos Estados Unidos.52 Os advoga-
dos mais ricos e bem-sucedidos da época eram os advogados de Wall Street
— advogados da indústria, dos bancos, das ferrovias, dos grandes negócios;
eles faziam planos de negócios, e eram cinzas, invisíveis. Eram notívagos e fo-
tofóbicos, por assim dizer. Evitavam contenciosos e salas de audiência a todos
os custos.
Esses advogados eram grandes mandachuvas, mas seu trabalho era quase
todo feito nos bastidores. Eram eminências em trajes cinza, em vez de verme-
lho. Advogados de Wall Street não precisavam de autopromoção, porque seus
escritórios gerenciavam os negócios para que tivessem uma clientela estável,
fiel. Eles representavam as empresas no longo prazo; participavam do conselho
diretor; estavam interessados em todas as facetas de seus clientes corpora-
tivos, ininterruptamente. Um único escritório de direito cuidava de todas as
demandas jurídicas de seus grandes clientes corporativos; e eles permaneciam
juntos na alegria e na tristeza. Uma empresa quase nunca trocava de escritório
de direito.
Os advogados de Wall Street se viam como cavalheiros; eles eram dis-
cretos; e a última coisa que queriam era ter seus nomes estampados no jornal.
Os advogados exuberantes, indiscretos, aqueles que se gabavam e desfilavam
para o público, os que gritavam seus próprios nomes e se autopromoviam,
eram de uma estirpe inferior. Eram advogados que não tinham clientes per-

51 Sobre os advogados desse período, ver: L. FRIEDMAN, HISTORY OF AMERICAN LAW 303-
33 (1985); G. GAWALT, THE PROMISE OF POWER: THE EMERGENCE OF THE LEGAL PRO-
FESSION IN MASSACHUSETTS, 1760-1840 (1979).
52 Para uma discussão sobre a Ordem dos Advogados nos Estados Unidos durante o final do
século XIX, ver L. FRIEDMAN, supra nota 40, em 633-54.
44 CADERNOS FGV DIREITO RIO

manentes. Eles trabalhavam com danos morais, divórcio, direito criminal, ou


seja, com clientes de ocasião (“one-shot” clients).53 Esses eram os advogados
que transitavam pela cultura de massa; eles dependiam da cultura de massa;
eles precisavam do boca a boca, da publicidade, dos jornais; e o alto escalão
da Ordem dos Advogados os desprezava, os esnobava, os combatia profissio-
nalmente.54
Nas últimas duas décadas, a advocacia de alto padrão passou por uma
enorme transformação. Em vários aspectos essenciais, a fronteira cultural entre
os níveis mais altos e mais baixos da Ordem dos Advogados passou a ser muito
menos claras. A advocacia de alto padrão se tornou muito mais volátil, aparen-
temente; é muito menos comum uma empresa contratar um único escritório,
e permanecer fiel a esse escritório para sempre. A prática do direito se tornou
mais “transacional”, ou seja, uma grande empresa pode contratar advogados
e escritórios para um “assunto” ou um “negócio” específico, muitas vezes de
grande proporção. Há muito menos fidelidade ao “escritório de sempre”, talvez
nenhuma. Os escritórios de direito estão se tornando dispensáveis, como agên-
cias de publicidade.55 No mundo do direito transacional, devagar e sempre não
leva mais a lugar nenhum. Os escritórios de direito não podem contar com rela-
ções estáveis e permanentes com clientes comerciais. E os próprios escritórios
são quase tão voláteis quanto suas práticas. Escritórios são criados, são incor-
porados, se dividem, voltam a se juntar, se ramificam. Há um movimento lateral
considerável na profissão — advogados transitando de escritório em escritório.
Os escritórios devoram sócios isolados, ou grupos de sócios; outras firmas am-
putam departamentos inteiros.56 Nos últimos anos, algumas firmas poderosas,
novas ou antigas, desmoronaram. O chão treme sob os pés dos advogados de
Wall Street. A Ordem dos Advogados se preocupa com o “profissionalismo”.
As antigas verdades não se sustentam mais.
O resultado não poderia ser diferente: o comportamento dos advogados
começou a mudar. A autopromoção passou a ser aceita de um modo que os

53 O termo se refere às categorias do livro de Marc Galanter Why the “Havesˮ Come Out Ahe-
ad: Speculations on the Limits of Legal Change, 9 LAW & Soc’y REV. 95 (1974), e à distinção
entre litigantes de ocasião (“one-shot litigants”) e atores assíduos (“repeat players”).
54 Para uma descrição dessa desavença, ver, e.g., J. AUERBACH, UNEQUAL JUSTICE: LA-
WYERS AND SOCIAL CHANGE IN MODERN AMERICA (1976).
55 Ver, de modo geral R. NELSON, PARTNERS WITH POWER: SOCIAL TRANSFORMATION
OF THE LARGE LAW FIRM (1988); Galanter & Palay, The Big Law Firm and Its Transforma-
tion (no prelo 1989).
56 Em 1984, de acordo com uma fonte, havia pelo menos 109 empresas de recrutamento
(“headhunting”); ou seja, elas prosperavam graças à “mobilidade lateral”. Abel, United Sta-
tes: the Contradictions of Professionalism, in LAWYERS IN SOCIETY: THE COMMON LAW
WORLD 186, 230 (R. Abel & P. Lewis eds. 1988). De acordo com Nelson, “[a]penas alguns
anos atrás, quase não se ouvia falar de empresas pedirem orçamentos para grandes pro-
cessos ou negócios. Advogados internos de empresas atualmente pedem cada vez mais
esse tipo de orçamento.” R. NELSON, supra nota 44, em 59.
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 45

antigos advogados de Wall Street desprezariam. Afinal, mesmo um escritó-


rio excelente como Skadden, Arps agora representa “litigantes de ocasião”; os
grandes aquisitores, os poderosos incorporadores são eventos tão excepcio-
nais quanto o mais sórdido dos divórcios, a mais torpe prisão por dirigir sob o
efeito de álcool — essas migalhas de trabalho que os advogados da televisão
almejam para que tenham espaço na mídia. A publicidade não parece tão inde-
corosa quanto antes: uma matéria grande no American Lawyer ou no National
Law Journal, se favorável, é uma propaganda valiosa, e não motivo de vergo-
nha. É bom para os negócios caso o artigo descreva um advogado como um
figurão, fale sobre seu sucesso nas negociações, e o mostre de mangas arrega-
çadas, em uma fotografia estilosa, reclinado sobre a mesa do escritório. É claro
que revistas sobre advogados não são “cultura popular” no sentido literal; elas
só são lidas por advogados. Mas dentro do submundo da Ordem dos Advoga-
dos, elas são o equivalente cultural das revistas de grande distribuição para o
público geral. A apresentação delas sugere uma nova forma de conexão, mais
íntima, entre a comunicação de massa e os advogados da Ordem.
Além disso, os advogados muito bem sucedidos estão se tornando cada
vez mais nacionais, ou internacionais, até. Tradicionalmente, os escritórios de
direitos tinham raízes em apenas uma comunidade. Eram escritórios de Nova
Iorque, escritórios de Seattle, ou escritórios de New Haven. Os negócios estão
cada vez mais nacionais e internacionais; e a demanda dos clientes é o que gera
um aumento na dimensão dos escritórios e um aumento impressionante das
expansões. O Sullivan & Cromwell não é o Holiday Inn ou o Burger King, mas,
assim como eles, não opera mais em apenas uma cidade. A reputação também
não é mais exclusivamente local. Esse fato aumenta o valor da publicidade.
As revistas de advogados transmitem mensagens — anúncios, por assim dizer,
para escritórios em todo o país.

B. Mérito e Processo
Um segundo aspecto da cultura jurídica popular — a opinião do público sobre
mérito e processo — esclarece a dinâmica política do direito público.
A liberdade e a democracia, na cabeça dos advogados, em comparação
com o público em geral, tende a ser entendida em termos altamente proces-
suais. Os advogados aprendem e são treinados para ver o “devido processo
legal” como a própria essência da equidade e do estado de direito.57 O “devido
processo legal” é utilizado aqui tanto em sentido amplo quanto em sentido es-
trito. O sentido estrito abrange o direito à intimação e à audiência em um pro-

57 Sobre a legitimação processual básica do direito moderno, ver N. LUHMANN, LEGITIMA-


TION DURCH VERFAHREN (2d ed. 1975); ver também J. ELY, DEMOCRACY AND DIS-
TRUST: A THEORY OF JUDICIAL REVIEW (1980).
46 CADERNOS FGV DIREITO RIO

cesso administrativo, e a um julgamento justo, realizado conforme as regras do


jogo. O sentido amplo inclui a votação e a regra da maioria; ou seja, o processo
legislativo. Se um órgão estatal seguir as regras escrupulosamente, se permitir
participação plena, se intimar formalmente, então terá havido o devido proces-
so legal, mesmo se o órgão estatal negar uma licença, ou retirar uma pensão, ou
conceder um canal de televisão a uma empresa e não a outra. Afinal de contas,
sempre haverá vencedores e perdedores; e o mesmo é válido para julgamentos
criminais, ou processos de responsabilidade civil. E uma lei promulgada na ca-
pital do estado, ou no Congresso, aprovada pelo voto majoritário, leva consigo
o selo máximo de legitimidade.
Deixemos de lado a cultura dos advogados. E o público em geral? Será
que o americano (ou o italiano, japonês) médio compartilha o entusiasmo dos
advogados pelo processo, puro e simples? Suspeito que a resposta seja não.
De modo geral, os leigos pensam na justiça, na liberdade e na democracia em
termos de mérito. Um julgamento justo é bom; mas se um inocente acabar com
a corda no pescoço, um processo justo não é muito consolador. Uma socieda-
de livre é uma sociedade organizada de forma que seu sistema produza o que,
para as pessoas, são os resultados corretos, as oportunidades, as escolhas e
os bens sociais desejáveis, independentemente do motivo. Na era moderna, é
provável que grande parte do público pense que uma sociedade livre é uma
sociedade de garantias e direitos; uma sociedade que, além disso, permita ou
viabilize uma grande variedade de opções, com segurança e flexibilidade. É
uma sociedade com proteções e garantias que defende a liberdade, a privaci-
dade, e outros bens sociais; e as proteções tornam reais as escolhas e as opor-
tunidades. Uma sociedade livre, em outras palavras, é construída e sustentada
por uma estrutura forte e resistente de direitos. Quando os direitos e garantias
são comprometidos, sofrem interferência, ou são destituídos, o público leigo
fica compreensivelmente indignado. Pelo mesmo motivo, o público tende a ver
com bons olhos instituições que honram e promovem os direitos, e os prote-
gem contra a usurpação; que defendem ferozmente esses direitos contra os
ataques dos donos do poder. Essas instituições gozam de grande legitimidade
aos olhos da opinião pública.
Por esse motivo, os tribunais ativistas ocupam um papel central na cultura
jurídica moderna — nos Estados Unidos, certamente; e cada vez mais em outros
países ocidentais. Os conservadores, e os tímidos profissionais entre os acadê-
micos do direito, consideram o ativismo dos tribunais profundamente pertur-
bador. O controle judicial é uma fonte de confusão teórica. Os tribunais são,
afinal de contas “contra majoritários”; eles comprometem as premissas centrais
da democracia parlamentar. Nos Estados Unidos, o Judiciário tem se tornado
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 47

cada vez mais “imperial”. Os tribunais “usurpam” o papel dos outros poderes
do governo. Eles parecem poderosos demais para o bem do país.
Muitas ações dos tribunais prejudicaram o interesse de grupos podero-
sos e de grandes segmentos da população — desde Brown v. Conselho de
Educação58,59 até Roe v. Wade60, entre outros. Ainda assim, o Judiciário ain-
da conta, acredito eu, com amplo apoio do cidadão médio, sobretudo entre
os membros mais desfavorecidos da sociedade. A cultura popular não rotula
como “antidemocrática” uma instituição que defende e amplia direitos. As mu-
lheres “pró-escolha”, ou seja, que defendem o direito ao aborto, não pensam
que o reconhecimento do direito ao aborto foi antidemocrático. Os grupos
“pró-vida”, ou seja, contra o direito ao aborto, não pensam que casos que ex-
cepcionem Roe sejam antidemocráticos, ou que sejam bons por serem mais de-
mocráticos. Grupos ambientalistas não consideram os tribunais antidemocráti-
cos quando impedem a destruição da natureza. Grupos defensores do direito
civil não veem nada antidemocrático na proibição da segregação racial. Esses
grupos — e quase todos nós — nos concentramos nos resultados, no mérito; a
“legitimidade” do direito e das instituições jurídicas, para nós, é compreendida
e mensurada pelo que fazem essas instituições.
O debate entre a “legitimidade” do controle judicial das leis, ou sobre o
ativismo judicial, ou sobre a intenção original, ou sobre o que for, não é desin-
teressante ou pouco importante. Mas há duas formas distintas de entender a
legitimidade. Há a forma teórico-filosófico-normativa. E há a forma descritiva.
Uma instituição é legítima nesse segundo sentido se ela for considerada le-
gítima por algum público específico. Portanto, pelo menos nesta sociedade,
a “legitimidade” do controle judicial, ou do ativismo judicial, ou do culto da
Constituição viva61*, é uma questão de opinião pública ou, mais precisamente,
de cultura jurídica popular.
Essa cultura é voltada para o resultado e, devido ao seu apoio incondi-
cional ao espírito do individualismo moderno, ela é voltada também para os
direitos e para a privacidade. De todo modo, pistas para a legitimidade dos

58 Nota do Editor: Trata-se da importante decisão da Corte Warren contra a segregação nos
Estados Unidos, que proibiu os conselhos de educação de separarem as crianças com base
em sua raça. Esta decisão foi apenas a primeira de uma série de decisões para acabar com
a política vigente até então de ‘iguais, porém separados’.
59 347 U.S. 483 (1954).
60 410 U.S. 113 (1973).
61 Nota do Editor: A expressão Constituição Viva se refere a ideia de que o texto constitu-
cional se adapta organicamente às transformações sociais, em contraponto com a tese do
Originalismo — que preconiza sempre a interpretação conforme a intenção original dos
redatores do texto constitucional. Os proponentes da tese da Living Constitution na aca-
demia são, dentre outros, Bruce Ackerman, David Strauss e Woodrow Wilson. Do lado
do originalismo, por outro lado, está o Justice Antonin Scalia, magistrado conservador da
Suprema Corte dos Estados Unidos.
48 CADERNOS FGV DIREITO RIO

tribunais e de outras instituições jurídicas, na medida em que consideramos


isso uma questão empírica e social, não podem ser encontradas na estrutura
da doutrina, ou no texto formal dos juristas, mas no conjunto de mensagens
transitando entre o público e os órgãos da cultura popular.
Essas mensagens certamente não são muito fáceis de serem interpre-
tadas, e elas muitas vezes são confusas e contraditórias. Como poderia ser
diferente? Sistema e organização são abstrações impostas sobre uma ordem
jurídica dinâmica. Em todo o caso, o público aprende sobre direito assistindo
o noticiário, em pequenas porções que transmitem desfechos, e não teorias,
resultados, e não fundamentações. Os juristas e os agentes de construção do
sistema jurídico estão conversando apenas entre si.

III. Conclusão
Eu argumentei que a cultura jurídica é essencial para qualquer compreensão
social do direito e do sistema jurídico; e tentei destacar alguns pontos de inter-
cessão entre o direito e a cultura popular. Examinei ainda dois aspectos espe-
cíficos da cultura jurídica popular. A forma como o direito é visto e vivenciado
é, sobretudo, normativa. As pessoas de dentro e as pessoas de fora julgam
o direito em termos de bom ou mau, certo ou errado. Não é fácil, portanto,
distinguir o estudo do direito de sua normatividade compulsiva. A maioria dos
movimentos e escolas de pensamento que instigam eruditos (e estudantes)
do direito, sejam eles de direita, esquerda, ou centro, é normativa até a última
gota, às vezes sem se dar conta.
É fácil defender uma compreensão social do direito, intelectualmente; mas
na prática, ela parece pouco atraente. De toda forma, isso não teve grande
influência entre os juristas, e certamente também não nas escolas de direto,
exceto no caso bastante excepcional do direito-e-economia.62 Mas é evidente —
para mim, pelo menos — que há um valor inerente ao estudo das relações entre
o sistema jurídico existente e sua matriz social essencial.
Afinal de contas, vivemos em uma sociedade que enfatiza enormemen-
te a acessibilidade, a democracia, o estado de direito; uma sociedade na qual

62 Ver, de modo geral, Friedman, The Law and Society Movement, 38 STAN. L. REV. 763 (1986).
Owen M. Fiss, ao lançar o novo Yale Journal of Law & the Humanities, descreve a economia
como “a rainha das ciências sociais” e observa que ela se tornou “o método interdisciplinar
de estudo do direito.” Fiss, The Challenge Ahead, 1 YALE J.L. & HUMANITIES viii, ix (1988)
(destaque no original). Ele não menciona outros. Aparentemente, o desafio à nossa frente é
“recriar nos estudos do direito um lugar adequado para a questão dos valores” e restringir a
“ênfase nos estudos puramente comportamentais ou empíricos.” Id. em x, xi. É claro que os
“valores”, enquanto fatos sociais, são e sempre foram uma preocupação central das ciên-
cias sociais; e, por outro lado, algumas das críticas sobre o direito e a economia baseiam-se
no fato deles não enfatizarem “os estudos comportamentais ou empíricos”, mas tais críticas
são excessivamente teóricas ou abstratas.
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 49

tribunais, juízes, advogados, e outras instituições jurídicas passaram a ocupar


uma papel surpreendentemente central, e na qual exercem uma influência con-
siderável. Essa influência, entretanto, é supostamente limitada — restringida
e governada pelo direito. As pessoas supostamente devem fazer as leis; e as
leis que elas fazem devem supostamente vigorar no país. Por outro lado, há
algumas ideias essenciais de direitos naturais que alguns segmentos do público
também sustentam, e que despontam como agentes de mudança ou de reação
poderosos, de tempos em tempos. Por todos esses motivos, a concepção po-
pular de direito tem uma relevância causal enorme.
É claro que não há uma única concepção de direito; diferentes grupos e
indivíduos levam consigo uma miscelânea incrível de noções sobre direitos e
deveres, informações não muito elaboradas e frequentemente infundadas, fan-
tasias conceituais sobre “o direito”, conceitos místico-religiosos, junto de uma
colcha de retalhos de outros componentes. O que isso é exatamente é na maior
parte das vezes desconhecido, seja por uma carência de pesquisas, seja por
uma absoluta dificuldade de decifrar a cultura em um mundo tão complexo
quanto o que vivemos. A pena é que as escolas de direito permanecem isoladas
da maior parte das questões sobre direito e sobre seu papel, questões essas que
têm ou deveriam ter uma base empírica. Para mim, ao menos, parece patente
que explorações sobre a cultura popular e a cultura jurídica, e sobre a forma que
elas interagem, deveriam ser uma das maiores prioridades da academia.
50 CADERNOS FGV DIREITO RIO
SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR: A CONSTRUÇÃO DE
UM DIÁLOGO E O PAPEL DO MENSALÃO
Adriana Lacombe Coiro1

Em 1967, o ministro Aliomar Baleeiro publicou um livro intitulado “O Supremo


Tribunal Federal, esse outro desconhecido”2. Naquela época, assim como nas
décadas seguintes, o Supremo era desconhecido da população, da mídia, da
opinião pública, da cultura popular. Não se conhecia a Corte, seus ministros
ou seus procedimentos. Em 2014, por outro lado, a população provavelmente
saberia nomear mais ministros do STF do que ministros de Estado3, e um dos
ministros foi até mesmo representado como máscara de carnaval.
Tal mudança não ocorreu instantaneamente. Nos últimos 20 anos, vem
crescendo constantemente a menção da mídia ao Supremo. Mas houve, nos
anos de 2012 e 2013, um evento que mereceu especial atenção, e aumentou em
muito o diálogo entre mídia, cultura popular e Supremo: o julgamento da Ação
Penal 470, conhecida como Mensalão.
Este artigo visa explorar a representação do Supremo Tribunal Federal em
alguns dos principais jornais do país nos últimos 20 anos. Em particular, analisa
o caso do Mensalão, com seu impacto na mídia e na cultura popular, e se detém
para descrever o caso do relator da ação, ministro Joaquim Barbosa, que teve
especial destaque durante o julgamento.
Por fim, o artigo trata brevemente da exposição midiática da Corte no ano
de 2014, posterior ao final do julgamento, ano em que a cobertura midiática
sobre o Supremo voltou aos patamares anteriores a 2012: muito acima dos nú-
meros de 20 anos atrás, mas muito abaixo da quantidade de menções à Corte
encontrada durante a Ação Penal 470, indicando que o alto nível de exposição
da Corte em 2012 e 2013 foi, de fato, um evento isolado, mas não obstante

1 Bacharel em Direito pela FGV DIREITO RIO, com semestre cursado na Harvard Law School.
Pesquisadora da FGV DIREITO RIO.
2 BALEEIRO, Aliomar. 1967. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de
Janeiro: Forense.
3 FALCÃO, Joaquim. “Independência de ministro começa na indicação”. Folha de S. Paulo.
Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/62812-independencia-de-ministro-
-comeca-na-indicacao.shtml Acesso em 06.02.2015.
52 CADERNOS FGV DIREITO RIO

ela permanece personagem frequente nas páginas dos jornais de hoje e não é
mais, definitivamente, desconhecida.

O Supremo e a mídia— de 1988 a 2012


Desde 1988, o Supremo ganhou novas competências: foram ampliados os legi-
timados para a propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade, antes pro-
posta exclusivamente pelo Procurador Geral da República, e diversos atores
passaram a poder levar ações de inconstitucionalidade ao Supremo4. Foi criado
também o Mandado de Injunção, permitindo a discussão da omissão legislativa
em casos concretos5. Tais mudanças, no entanto, não significaram um imediato
aumento da atuação do Supremo no processo político decisório nacional. Em
verdade, nos anos imediatamente após a promulgação da nova constituição a
atuação do STF assumiu um caráter mais restritivo, limitando sua interferência,
conforme ressalta Diego Werneck Arguelhes6. Foi apenas no final da década
de 90, como ressalta o autor, que a Corte adotou uma postura mais ativista,
chegando-se ao que Oscar Vilhena Vieira chamou de Supremocracia7.
Pouco depois, a Corte começou a investir em mecanismos de transparên-
cia e publicidade de suas decisões. Tal movimento teve início em 2002, quando
o então presidente da Corte, ministro Marco Aurélio, criou a TV Justiça, que
passou a transmitir ao vivo as sessões do plenário do STF.
Não apenas isso, mas o canal também passou a transmitir uma série de
programas discutindo as decisões da Corte, vinhetas falando sobre os minis-
tros, e programas debatendo diversas matérias de direito, com objetivo de
torná-lo mais conhecido. Naquele momento, o ministro presidente reforçou a
necessidade de publicidade das decisões judiciais:

Essa publicidade (...) não é apenas aquela oficial, relacionada


com a circunstância de os julgamentos serem públicos e acessí-

4 De acordo com o art. 103 da Constituição, “Podem propor a ação direta de inconstitucio-
nalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:  I - o Presidente da República; II - a
Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV a Mesa de Assembleia
Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V o Governador de Estado ou do
Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem
dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional;
IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.”
5 De acordo com o art 5º, LXXI da Constituição Federal: “conceder-se-á mandado de injun-
ção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos
e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à
cidadania.”
6 ARGUELHES, Diego Werneck. Poder Não é Querer: preferências restritivas e redesenho ins-
titucional no Supremo Tribunal Federal pós-democratização. Universitas/Jus (Impresso), v.
25, p. 2, 2014.
7 VIEIRA, O.V. 2008. Supremocracia. Revista DIREITO GV, v. 4, nº 2, pp. 441-464, julho/de-
zembro.
SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR 53

veis a todos, nem aquela ligada à publicação dos atos no Diário


da Justiça; abrange também a divulgação, de maneira geral, de
notícias sobre atos e julgamentos não cobertos pelo segredo de
justiça, sobressaindo, assim, o relevante papel das estações de
rádio, da televisão e dos jornais. Sim, o acesso de toda a popu-
lação brasileira aos trabalhos do Judiciário, Poder ao qual cum-
pre precipuamente preservar a paz social e a segurança jurídica,
pressupõe a atuação da mídia. (...) É tempo de aproximar-se não
o povo do Judiciário, mas este, daquele, o que só se concretizará,
efetivamente, com a total transparência do que vem sendo reali-
zado neste Poder.8

A criação da TV Justiça representou um momento de mudança significati-


va para a Corte. De repente todas as sessões eram transmitidas ao vivo para a
TV aberta, e todos que quisessem poderiam ter acesso às sessões do plenário.
Mas a Corte não parou por aí. Em outubro de 2009, o STF fez uma parce-
ria com o Google e foi a primeira Corte do mundo a criar um canal próprio no
Youtube. No primeiro mês, o canal já tinha mais de 50 mil acessos9. Seis meses
depois, seus vídeos já tinham mais de um milhão de exibições10.
Ainda em 2009, a Corte criou uma conta no Twitter. Das dez Cortes cons-
titucionais com conta na rede social, a do Supremo era a mais ativa em 201311.
Em 2014, atingiu o número de 486 mil seguidores.12 Entre a TV Justiça, o You-
tube e mesmo o Twitter ficou fácil, para os interessados, acompanharem as
decisões da nossa Suprema Corte.
Assim, cresceram os casos de impacto nacional tratados pelo Supremo.
E cresceu a facilidade de acesso às suas decisões. As consequências na mídia
foram rápidas: cresceu a cobertura midiática sobre o Supremo.
É o que mostram Joaquim Falcão e Fabiana Luci de Oliveira. Ao anali-
sarem as páginas eletrônicas de notícias dos jornais Folha de S. Paulo, Valor
Econômico e da Revista Veja, comparando o período de 2004 a 2007 com o de

8 MELLO, M. 2001. “A publicidade das decisões judiciais”. Gazeta Mercantil, São Paulo, n.22116,
p.4, 3 jul. Disponível em: www.palavradaamatra8. jex.com.br/jornal+on-line+da+amatra+8/
a+publicidade+das+decisoes+ judiciais. Acesso em 15/05/2012.
9 Canal do STF no YouTube completa um mês com mais de 650 vídeos e 1.326 parceiros In:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=115573 Acesso em
30.01.2015.
10 “Gilmar Mendes responde dúvidas de internautas”. In: Conseultor Jurídico. http://www.
conjur.com.br/2010-abr-14/gilmar-mendes-responde-duvidas-internautas-sexta-feira
Acesso em 30.01.2015.
11 “Twitter do STF é o mais ativo entre as cortes constitucionais.” Disponível em http://stf.
jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=247706 Acesso em 02.02.2015.
12 “Perfil do STF no Twitter chega a 486 mil seguidores”. Disponível em http://www.stf.jus.
br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=271313 Acesso em 02.02.2015.
54 CADERNOS FGV DIREITO RIO

2008 a 2011, os autores mostram que o número de notícias sobre a Corte quase
dobrou, aumentando em 89%. Mas o crescimento não começou em 2004, veio
antes, quando o Supremo começou a interferir mais na vida política nacional.
Analisando-se o número de matérias publicadas com o termo “STF” e com
o termo “Supremo” nos jornais O Globo, Folha de S.Paulo e Estado de S. Paulo,
é possível ver uma tendência linear de crescimento nos últimos 20 anos, como
mostram os gráficos abaixo.

*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “STF” no acervo online do jornal Folha
de S. Paulo.

*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “Supremo” no acervo online do jornal
Folha de S. Paulo.
SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR 55

*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “STF” no acervo online do jornal Estado
de S. Paulo.

*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “Supremo” no acervo online do jornal
Estado de S. Paulo.
56 CADERNOS FGV DIREITO RIO

*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “STF” no acervo online do jornal O
Globo.

*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “Supremo” no acervo online do jornal O
Globo.

Embora haja, em alguns casos, anos em que há queda do número de men-


ções relativamente ao ano anterior, a tendência de crescimento é permanente.
Ponto que merece destaque é a mudança havida entre 1998 e 1999. Foram
os anos em que o governo tomou medidas de grande impacto econômico,
como a instituição da cobrança de contribuição de aposentados e pensionistas,
e o aumento da contribuição previdenciária de ativos, declarada inconstitu-
cional pelo STF. Houve ampla discussão entre os poderes, e ampla cobertura
SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR 57

midiática13. Entre esta e outras decisões importantes, a menção à Corte quase


que dobrou nos jornais. Veja-se, por exemplo, que em 1998, o jornal Estado de
S. Paulo publicou 534 matérias com o termo “STF”. O número era semelhante
ao de matérias publicadas nos anos anteriores (556 em 1997 e 525 em 1996).
Mas em 1999 a cobertura do jornal dá um salto: 1146 matérias com o termo STF
publicadas no jornal. O mesmo acontece na Folha de S. Paulo: o número de
matérias vai de 373 em 1998, para 562 em 1999, e no jornal O Globo, em que o
termo STF apareceu 581 vezes em 1998, e 1262 vezes em 1999.
Já com relação aos últimos dez anos, é importante ressaltar que embora o
caso do Mensalão tenha tido um papel fundamental no crescimento da cober-
tura midiática sobre a Corte, ele não é a única razão para o crescimento. Seja
porque o próprio Mensalão chamou a atenção da mídia e da população para
o Supremo, seja pelos demais casos julgados pela Corte, a tendência de cres-
cimento se mantém ainda que se excluam da pesquisa as menções ao termo
“mensalão”, como se pode ver nos gráficos abaixo:

*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “STF” sem o termo “mensalão” no acer-
vo online do jornal Folha de S. Paulo.

13 Como exemplo, MACEDO, Ana Paula e SELEME, Ascâneo. “STF nunca foi tão atacado”, O
Globo, 13 de outubro de 1999. Disponível em http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipo
Conteudo=pagina&ordenacaoData=relevancia&allwords=stf&anyword=&noword=&exactw
ord=&decadaSelecionada=1990&anoSelecionado=1999 Acesso em 05.02.2015.
58 CADERNOS FGV DIREITO RIO

*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “Supremo” sem o termo “Mensalão” no
acervo online do jornal Folha de S. Paulo.

*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “STF” sem o termo “Mensalão” no acer-
vo online do jornal Estado de São Paulo.
SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR 59

*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “Supremo” sem o termo “Mensalão” no
acervo online do jornal Estado de São Paulo.

*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “STF” sem o termo “Mensalão” no acer-
vo online do jornal O Globo.
60 CADERNOS FGV DIREITO RIO

*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “Supremo” sem o termo “Mensalão” no
acervo online do jornal O Globo.

O crescimento é, sem dúvidas, menor. Mas continua existente. E não volta


aos patamares anteriores ao final da década de 90.
Fica claro, com estes dados, que ao longo dos últimos 20 anos o Supremo
passou a ser um importante player para a mídia. Sua representação em jornais
cresceu muito. Mas sua aparição na cultura popular continuava pequena. Esse foi
o cenário até 2012. Quando julgada pela Corte a Ação Penal 470, tudo mudou.

O Mensalão e seu impacto na mídia e na cultura popular


Como visto, houve um aumento significativo e constante no número de notícias
sobre o STF nos últimos 20 anos, boa parte delas sobre o Mensalão, como é
possível verificar quando a expressão é retirada das buscas. O ano de 2012, no
entanto, merece ser analisado à parte. Foi o ano em que foi efetivamente julga-
da a primeira parte do julgamento do Mensalão, ano em que, por seis meses, a
mídia tratava diariamente da Corte como tema central.
Foi com o julgamento do Mensalão, também, que o Supremo ganhou força
na cultura popular. Até então quase desconhecidos da população como um
todo, os ministros de repente se tornaram celebridades, e a Corte passou a ser
discutida nas ruas. É o que passamos a ver.
O julgamento da Ação Penal 470 teve início em agosto de 2012. Durante
este mês, foram feitas sessões diárias do caso, todas transmitidas ao vivo pela
TV Justiça. A partir de setembro, as sessões passaram a ocorrer três vezes
por semana.
Mas não foi apenas a TV Justiça que transmitiu o julgamento. O canal Glo-
bonews transmitiu integralmente as sessões do caso, em regra com comentá-
rios de um jornalista do canal e de um convidado da área jurídica, com índices
SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR 61

de audiência maiores do que os esperados14. Alguns dos maiores jornais do


país, como a Folha de S. Paulo15, Estado de S. Paulo16 e O Globo17, contaram
com transmissões ao vivo pela internet, acrescidas de descrições do que estava
ocorrendo, transcrição das falas dos ministros e comentários de especialistas
sobre o tema. Canais de notícias online, como Terra18, G119, IG20, também trans-
mitiram o julgamento ao vivo, muitos com comentários dos próprios internau-
tas. Não havia precedentes de uma cobertura midiática de tamanha dimensão
sobre o STF.
A importância dada ao caso se reflete também em um dado já mencio-
nado: o número de matérias publicadas nos jornais impressos no ano de 2012
com o termo “STF” e com o termo “supremo”. A Folha de S. Paulo mais do que
dobrou as menções ao termo. O Estado de S. Paulo aumentou em 94% suas
menções à Corte. No jornal O Globo, o aumento foi de 87%, como se vê nos
dados abaixo:

*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “STF” no


acervo online dos jornais O Globo, Estado de S. Paulo e Folha
de S. Paulo.

14 TARDÁGUILA, Cristina. “Com sessões ao Vivo, STF conquista o telespectador” Disponí-


vel em http://oglobo.globo.com/brasil/com-sessoes-ao-vivo-stf-conquista-telespecta-
dor-6535118 Acesso em 06.02.2015.
15 _____, “O Julgamento do Mensalão”. Disponível em: http://aovivo.folha.uol.com.br/espe-
cial/2012/ojulgamentodomensalao/ Acesso em 06.02.2015.
16 _____, “Estadão ao vivo”. Disponível em: http://www.estadao.com.br/aovivo/julgamento-
-do-mensalao-dia-10 Acesso em 06.02.2015.
17 ____, “O Julgamento do Mensalão, em tempo Real”. Disponível em: http://oglobo.globo.
com/infograficos/mensalao-julgamento/ Acesso em 06.02.2015.
18 ___, “Ao vivo notícias” Disponível em: http://noticias.terra.com.br/ao-vivo/21923/ Acesso
em 06.02.2015.
19 _____, “Julgamento do Mensalão”. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/mensalao/
cobertura/ Acesso em 06.02.2015.
20 _____, “Julgamento do Mensalão”. Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/mensa-
lao/ao-vivo/ Acesso em 06.02.2015.
62 CADERNOS FGV DIREITO RIO

*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “Supremo”


no acervo online dos jornais O Globo, Estado de S. Paulo e
Folha de S. Paulo.

O aumento foi substancial. Mas não foi apenas a mídia tradicional que co-
briu, comentou e analisou o julgamento. As redes sociais se tornaram importan-
te foco de discussão sobre o caso, a Corte e seus ministros. E também impor-
tante foco de crítica à cobertura da mídia tradicional. O Supremo passou a ser
objeto da discussão popular.
A internet se dividiu: de um lado, pleiteava-se a condenação dos réus,
criticava-se o Partido dos Trabalhadores, e falava-se da suposta falta de mora-
lidade e da corrupção na política brasileira. De outro, defendia-se a absolvição,
com fundamento na ausência de provas suficientes, na tentativa de manipula-
ção feita por aqueles que defendiam a condenação.
Não é difícil imaginar que a representação do Supremo feita pelos dois
grupos era radicalmente oposta. O primeiro elogiava a Corte como exemplo,
como o único poder íntegro da república, cobrindo-a de elogios. A capa da
revista Veja, em setembro de 2012, por exemplo, trazia a manchete: “Até que
enfim. Com as condenações de mensaleiros pelo STF e a perspectiva inédita de
prisão de corruptos, o Brasil reencontra o rumo ético: volta a saber distinguir o
certo do errado”21.
O segundo grupo, ao contrário, criticou duramente o processo, a Corte
e seus ministros. A revista Carta Capital, por exemplo, usando o termo Men-
salão sempre entre aspas, publicou matéria de capa em que ressaltava que
“Para uma extensa lista de envolvidos em escândalos a justiça tarda e falha”,
referindo-se aos condenados na Ação Penal 470 como “presos privilegiados”

21 Revista Veja, 5 de setembro de 2012. Edição 2285 n 36.


SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR 63

por terem sido condenados, dando a entender que eles seriam vítimas em um
sistema em que muitos passam impunes.22
As representações antagônicas da Corte se estenderam, ainda, aos seus
ministros. O ministro Joaquim Barbosa, relator do caso, e em regra mais rígido
quanto à condenação dos réus, e o ministro Ricardo Lewandowski, revisor, e,
na maior parte de seus votos, menos rígido, foram os principais alvos. Ambos
foram retratados de formas extremas e antagônicas nas redes sociais, como
heróis e vilões.
O site Movimento Brasil de Verdade, por exemplo, publicou, em agosto de
2012, matéria intitulada “Internautas manifestaram no facebook a indignação
com o voto de Lewandowski no julgamento do mensalão”, afirmando que os
internautas estavam envergonhados com a decisão do ministro.23 Já na maté-
ria “A função do Juiz, por Lewandowski”, publicada no Blog Luis Nassif Online,
no mesmo mês, internautas manifestam apoio ao ministro, afirmando que o
povo brasileiro se orgulhava dele por “não se submeter à vontade da mídia
manipuladora”24.
Mas o relator e o revisor não foram os únicos alvos da mídia e das redes
sociais. Durante o final do julgamento, também se tornou centro de matérias e
comentários o ministro Celso de Mello. Isto porque no ano de 2013, na última
sessão de julgamento, cabia a ele o voto de desempate sobre admitir ou não
os embargos infringentes, que levariam algumas questões para serem reanali-
sadas pelo Supremo. A sessão que declarou a votação empatada encerrou-se
na quinta-feira, 12 de setembro de 2013, e a sessão seguinte, quando votaria o
ministro Celso, ocorreria apenas na semana seguinte.
Ao longo desses dias, o ministro foi capa de jornais e revistas semanais,
objeto de matérias em sites, blogs e de comentários de internautas. Após seu
voto admitindo os embargos, Celso de Mello permaneceu por alguns dias como
alvo principal da mídia e da internet25. A reportagem “Antes de decidir Mensa-
lão, Celso de Mello sofre pressão nas redes sociais”, por exemplo, do portal de
notícias Terra, trazia mais de dez montagens com o ministro, criadas por inter-
nautas, fazendo alusão a seu voto de desempate. A matéria “Jornais começam

22 Revista Carta Capital, 23 de novembro de 2013, edição 776. Disponível em: http://www.
cartacapital.com.br/revista/776 . Acesso em 01/02/2015.
23 _____, “Internautas manifestaram no facebook a indignação com o voto de Lewandowski
no julgamento do mensalão”, Disponível em http://movimentobrasildeverdade.com/inter-
nautas-manifestam-no-facebook-a-indignacao-com-o-voto-de-lewandowski-no-julgamen-
to-do-mensalao-do-pt/ Acesso em 01/02/2015.
24 D, Ricardo. “A função de juiz, por Lewandowski”, Disponível em: http://jornalggn.com.br/
blog/luisnassif/a-funcao-do-juiz-por-lewandowski Acesso em 01/02/2015.
25 Sobre o tema, a reportagem “Antes de decidir Mensalão, Celso de Mello sofre pressão nas
redes sociais”, Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/politica/julgamento-do-
-mensalao/antes-de-decidir-mensalao-celso-de-mello-sofre-pressao-nas-redes-sociais,84
6f23011b821410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html Acesso em 02.01.2015.
64 CADERNOS FGV DIREITO RIO

a pressionar Celso de Mello”, publicada no site da revista Carta Capital, traz


diversas menções dos principais jornais ao ministro e sua decisão26.
Seja tratando dos ministros, então, seja tratando da Corte, cresceu a co-
bertura da mídia sobre o Supremo. Tal aumento de cobertura midiática teve
impacto sobre a população, como demonstra o índice de Confiança no Judici-
ário Brasileiro de 2012:

Quando perguntamos aos entrevistados se, no último mês,


alguma notícia sobre a Justiça ou o Judiciário havia chamado a
sua atenção, a maioria dos entrevistados no 4º trimestre de 2012
citou o julgamento no STF da Ação Penal 470, conhecida como
“mensalão” (64%), seguidos pela lembrança da atuação do Minis-
tro Joaquim
Barbosa nesse mesmo julgamento (9%).27

Mas não foi apenas na mídia que cresceu a cobertura sobre o Supremo
durante o Mensalão. Para além dos jornais, revistas, sites e blogs que falaram
do julgamento e da Corte, o caso do Mensalão representou um turning point
da relação do Supremo com a cultura popular: foi com ele que a Corte passou,
definitivamente, a ser conhecida pela população e a de fato a fazer parte da
cultura popular.
Esta relação pode ser vista a partir de alguns exemplos, nas mais variadas
áreas. O julgamento foi, por exemplo, retratado em quadrinhos no jornal Extra,
explicando o caso, e o comparando à novela Avenida Brasil, que estava no ar
naquele momento28. O caso foi também retratado em quadrinhos pelo cartunis-
ta Angeli29. É possível também ver que, com o julgamento, o Supremo passou
a ocupar uma posição na discussão cotidiana da população, e mesmo em suas
atividades de lazer.
Foram feitos, durante o julgamento, dois jogos de internet sobre o caso.
Primeiro, foi criado o jogo “Batalha do Mensalão”, em que o ministro Joaquim
Barbosa tentava acertar os réus da ação com lasers, e era atrapalhado pelo

26 BOCCHINI, Lino. “Jornais começam a pressionar Celso de Mello”, Disponível em: http://
www.cartacapital.com.br/blogs/midiatico/jornais-comecam-a-pressionar-celso-de-
-mello-8379.html Acesso em 01/02/2015.
27 Relatório do índice de Confiança no Judiciário. 4º trimestre de 2012. Páginas 16 e 17. Dis-
ponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10754/Relato-
rio_ICJBrasil_4TRI_2012.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em 01/02/2015.
28 “Avenida Brasi: a novela do mensalão”. Disponível em: http://extra.globo.com/noticias/
brasil/no-ar-pais-da-vida-real-clique-leia-historia-em-quadrinhos-5663238.html Acesso
em 01/02/2015.
29 ANGELI, CARVALHO, Mario Cesar e BERCITO, Diogo. “O incrível mensalão”, Disponível
em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/61728-o-incrivel-mensalao.shtml Acesso em
01/02/2015.
SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR 65

ministro Lewandowski. O jogo repetia a representação de herói e vilão já men-


cionada, com o ministro Barbosa como protagonista.
Ao apresentar o jogo, a empresa criadora afirmava:

Com o histórico julgamento do mensalão a mídia se encheu


de personagens que estão dando o que falar na boca do povo e
nas redes sociais. A PlayerUm não podia ficar de fora deste mo-
mento e transformou o julgamento em um game. A BATALHA DO
MENSALÃO — Uma forma bem humorada de retratar a opinião
pública30.

Alguns meses depois, foi lançado o Jogo “Angry STF”, inspirado no jogo
Angry Birds, em que os réus deveriam ser acertados e derrubados pelo Ministro
Joaquim Barbosa e pelo Procurador Geral da República, Antonio Gurgel. No
final de 2012, o jogo já contava com mais de 5 mil acessos.31
Os vídeos de charges feitos durante os meses principais em que foi julga-
do o Mensalão,32 usando-se aqui como referência o site Charges.com, foram
outro exemplo de representação cultural na internet durante o julgamento. O
Supremo, que até então havia aparecido apenas 4 vezes nos mais de dez anos
do site, foi o tema central de 4 charges nos meses de agosto a dezembro de
2012. Número este que considera apenas as charges com os ministros. Caso
se considerem charges que tratam do episódio, o número mais do que dobra,
chegando a 9, apenas no segundo semestre de 201233.
Seguindo, ainda, na internet, outro claro exemplo de que o Supremo se
tornou, ao longo do julgamento, tema central das redes sociais e da cultura dos
internautas nesse período, são os “memes”34 e vídeos que surgiram. Neles, não
há a deferência e distanciamento que já foram no passado característicos das
representações dos ministros, mas sim a representação dos ministros como
alvo de elogios, críticas e mesmo deboche35, aproximando-os de ditados popu-
lares (com as frequentes referências à possibilidade de o julgamento acabar em
“pizza”, com absolvições), ou de personagens populares (como a representa-

30 “Batalha do Mensalão”, disponível em http://playerum.com.br/inicial/index.php/batalha-


-do-mensalao/?lang=pt. Acesso em 02.02.2015.
31 De acordo com dados da página do aplicativo no Facebook, https://www.facebook.com/
AngrySTF.
32 Trata-se aqui das charges de Maurício Ricardo, no site charges.com.br.
33 Disponível em: http://charges.uol.com.br/busca.php?busca=mensal%C3%A3o&pageno=2.
34 Conceitos espalhados pela internet, em regra com tons de humor, por meio de imagens e
frases curtas.
35 Como mostram diversas montagens publicadas, por exemplo, no site Alerta Total, pedindo
a condenação dos réus. In: http://www.alertatotal.net/2014_02_01_archive.html Acesso
em 01/022015.
66 CADERNOS FGV DIREITO RIO

ção de Joaquim Barbosa como Batman36 ou Thor37). Os ministros se tornaram


personagens do cotidiano na internet.
Fora da internet, mas ainda dentro da cultura popular, o Mensalão fez com
que o STF fosse também para as livrarias. Imediatamente após a primeira parte
do julgamento, no final de 2012, foram lançados diversos livros analisando o jul-
gamento. Ao contrário da prática até então, em que livros tratando de decisões
do Supremo se direcionavam à comunidade jurídica, os livros lançados sobre
o tema tinham como público alvo a população como um todo. E retratavam o
Supremo de formas diferentes.
“Mensalão”38, de Marco Antonio Villa, descreve o caso como “o maior caso de
corrupção da história política brasileira”, analisando desde o inquérito ao final do
julgamento em 2012. Já em “A Outra História do Mensalão — As contradições de
um julgamento politico”, Paulo Moreira Leite defende que o julgamento foi contra-
ditório, injusto e político, sem as provas necessárias, e critica duramente a atuação
da Corte e da maior parte dos seus ministros. A descrição do livro afirma que:

Naquele que foi o mais midiático julgamento da história


brasileira e, possivelmente, do mundo, os juízes foram vigiados
pelo acompanhamento diário, online, de todos os seus atos no
tribunal. Na sociedade do espetáculo, os juízes se digladiaram, se
agrediram, se irritaram e até cochilaram aos olhos da multidão,
como num reality show.39

Em sentido contrário, no livro “Mensalão— o dia a dia do mais importante


julgamento da História Política do Brasil”40, Merval Pereira reuniu suas colunas
diárias no jornal O Globo ao longo da primeira fase do julgamento (agosto a
dezembro de 2012), criticando duramente a atuação dos réus.
Por último, no livro “Mensalão: diário de um julgamento— supremo, mí-
dia e opinião pública”41, organizado pelo professor Joaquim Falcão, fez-se um

36 SETTI, Ricardo, “Ministro Joaquim Barbosa torna-se “herói” em peça que circula pela web
segundo a qual “Batman é para os fracos”. In: http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/
politica-cia/ministro-joaquim-barbosa-vira-heroi-em-peca-que-circula-por-e-mail-dizen-
do-que-batman-e-para-os-fracos/ Acesso em 01/02/2015.
37 Charge de Amarildo, publicada em agosto de 2012, caracterizando Joaquim Barbosa como
o “herói do martelo”, disponível em https://amarildocharge.wordpress.com/tag/thor/
Acesso em 01/02/2015.
38 VILLA, Marco Antônio. “Mensalão- O julgamento do maior caso de Corrupção da história
política brasileira”. Editora Leya: 2012.
39 EMEDIATO, Luiz Fernando. In: LEITE, Paulo Moreira. A outra história do Mensalão.
40 PEREIRA, Merval. “Mensalão- o dia a dia do mais importante julgamento da História Política
do Brasil”. Rio de Janeiro, Record: 2013.
41 FALCÃO, Joaquim (org). “Mensalão- diário de um julgamento”. Rio de Janeiro, Campus
Elsevier: 2013.
SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR 67

relato dos acontecimentos diários da Corte na primeira parte do julgamento,


somando a análises e textos publicados em jornais e blogs por professores que
acompanhavam diariamente as sessões da Corte.
Foram quatro livros, em apenas alguns meses, tratando em detalhes
do Supremo, seus ministros, seus procedimentos, suas sessões. Em nenhum
dos casos retratou-se a Corte de forma imparcial e objetiva: todos oferecem
opiniões, críticas e posicionamentos quanto ao que consideraram acertos
e erros dos ministros, fossem questões processuais, questões de mérito ou
mesmo em relação ao funcionamento do tribunal. O caso representou, dessa
forma, uma mudança importante, trazendo uma análise crítica do Supremo
para as livrarias, acessível não só aos operadores do direito, mas ao público
em geral.

O ministro Joaquim Barbosa— um caso à parte


Na análise sobre as representações do julgamento do Mensalão na mídia e na
cultura popular é indispensável tratar, de forma separada, do ministro Joaquim
Barbosa. Isto porque, embora todos os ministros tenham sido foco da mídia e
da cultura popular durante o julgamento, a representação do Ministro Barbosa
se destacou dos demais.
Como relator do caso, o ministro assumiu uma posição de destaque.
Com sua atuação a favor da condenação da maior parte dos réus, tornou-
-se o principal exemplo de luta pela moralidade daqueles que defendiam as
condenações, e o vilão do devido processo legal para os que entendiam no
sentido contrário.
Durante o julgamento, o ministro foi alvo frequente de charges nos jornais.
Foi representado como herói em vídeos na internet, visualizados por milhares
de pessoas. Máscaras de carnaval que reproduziam seu rosto se tornaram a
fantasia mais procurada do ano de 201342.
Barbosa atingiu um status pouco comum para ministros do Supremo no
Brasil, frente à população em geral: tornou-se celebridade. Passou a ser foto-
grafado por fãs43 e aplaudido em locais públicos44. Sua vida social se tornou

42 PITA, Antonio. Máscara do Ministro Joaquim Barbosa é a mais procurada para o carnaval.
Disponível em: http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,mascara-do-ministro-joaquim-
-barbosa-e-a-mais-procurada-para-o-carnaval,982318 Acesso em 01/02/2015.
43 ____, “Foto de Joaquim Barbosa com empresário condenado gera polêmica”. Disponível
em: http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2014-02-03/foto-de-joaquim-barbosa-com-
-empresario-condenado-gera-polemica.html Acesso em 01/02/2015.
44 ____, “Joaquim Barbosa é aplaudido por eleitores durante votação no Rio”. Disponível em:
http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/joaquim-barbosa-e-aplaudido-por-eleitores-duran-
te-votacao-no-rio Acesso em 01/02/2015.
68 CADERNOS FGV DIREITO RIO

destaque nos jornais, revistas e sites de fofocas, que noticiaram suas viagens45,
sua namorada.46
Sua popularidade foi tamanha que o ministro começou a ser cogitado
para se candidatar à presidência, possibilidade essa considerada pelos prin-
cipais institutos de pesqusia eleitorais, que davam ampla quantidade de votos
ao ministro.47
Para grande parte da população, Barbosa gerava empatia, representava a
população brasileira, e era um exemplo que deveria ser seguido.
É claro que, como já mencionado, os demais ministros também foram ob-
jeto de interesse nacional. O ministro Ricardo Lewandowski foi capa de jornais
e revistas e, assim como Barbosa, objeto de charges, jogos, e representações
na internet. O mesmo aconteceu com o ministro Celso de Mello no final do jul-
gamento, quando seu voto era determinante para o desempate. A escolha dos
ministros Teori Zawascki e Roberto Barroso foi acompanhada mais de perto
pela mídia do que as sabatinas dos ministros anteriores e o vídeo do Ministro
Luiz Fux tocando guitarra e cantando na posse de Joaquim Barbosa na presi-
dência do Supremo provavelmente não teria tido a mesma repercussão antes
do Mensalão48. Ainda assim, a atenção dada aos demais ministros não se com-
para àquela dada ao relator.
Vê-se, desta forma, que no julgamento da Ação Penal 470 a cobertura da
mídia, o interesse despertado na sociedade e as representações da Corte na cul-
tura popular foram, sem dúvida, pontos fora da curva, na história do Supremo49.

45 ARAÚJO, Ricardo. “Joaquim Barbosa, presidente eleito do STF, escolhe Natal para des-
cansar” Disponível em: http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2012/11/
joaquim-barbosa-presidente-eleito-do-stf-escolhe-natal-para-descansar.html Acesso em
01/02/2015.
46 ______, “”É um desrespeito”, diz Fontenelle sobre boato de que estaria saindo com Joaquim
Barbosa”. In: http://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/entretenimento/2014/12/12/e-
-um-desrespeito-diz-antonia-fontenelle-sobre-boato-de-que-estaria-tendo-um-caso-com-
-o-ex-presidente-do-stf.htm Acesso em 01/02/2015.
47 RODRIGUES, Fernando. “Joaquim Barbosa e Marina Silva poderiam forçar 2º turno”. In:
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/02/1416499-joaquim-barbosa-e-marina-silva-
-poderiam-forcar-2-turno.shtml Acesso 01/02/2015.
48 _______, “Ministro Luiz Fux toca guitarra e canta na posse de Joaquim Barbosa”. In: http://
g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2012/11/ministro-luiz-fux-toca-guitarra-e-canta-na-
-posse-de-joaquim-barbosa.html Acesso EM 01/02/2015.
49 Expressão usada pelo Ministro Roberto Barroso em sua sabatina no Senado, ao se referir
ao caso. Ver ÉBOLI, Evandro. “Barroso diz que julgamento do mensalão foi ´ponto fora da
curva´”. Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/barroso-diz-que-julgamento-do-
-mensalao-foi-ponto-fora-da-curva-8596481. Acesso em 06.02.2015.
SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR 69

Depois do Mensalão— o ano de 2014


Mas, poder-se-ia argumentar, o mensalão não despertou um interesse pelo Su-
premo que persistiria depois do julgamento? Ou seja, a população não se acos-
tumou a tratar cotidianamente do Supremo, fazendo com que ele se mantenha
na pauta diária da mídia? Neste caso, a Ação Penal 470 não seria um evento
isolado, mas apenas uma continuação no movimento de maior cobertura midi-
ática do Supremo. A hipótese é plausível, mas não é o que mostram os dados
de alguns dos principais jornais do país. De acordo com eles, o auge da cober-
tura midiática se deu em 2012, ano principal do julgamento, tendo as menções
ao STF se mantido altas, embora menores, em 2013, ano em que foram julgados
os embargos infringentes, também durante alguns meses.
Não obstante, em 2014, ano em que o Mensalão não foi pauta do Supremo,
a cobertura midiática sobre a Corte caiu, voltando a patamares similares aos do
ano anterior ao julgamento, como pode ser visto abaixo:

*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “STF” no


acervo online dos jornais O Globo, Estado de S. Paulo e Folha
de S. Paulo.
70 CADERNOS FGV DIREITO RIO

*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “Supremo”


no acervo online dos jornais O Globo, Estado de S. Paulo e
Folha de S. Paulo.

É claro que, com apenas um ano após o julgamento, e especialmente por


se tratar de ano eleitoral, essa queda pode não ser definitiva. Mas, em regra,
mesmo os casos de alto impacto da Corte acabam por ser objeto de destaque
apenas por alguns dias, antes, durante e depois do julgamento50. Não houve,
até o momento, caso que precisasse de tanto tempo da Corte e, simultanea-
mente, despertasse tanto interesse da sociedade, dando tamanho destaque ao
Supremo e seus ministros.
Com a divulgação da operação Lava-Jato51, e a possibilidade do evolvi-
mento de políticos e empresários renomados, é possível que haja, nos pró-
ximos anos, um novo caso que atraia a atenção de todos para o Supremo.
Há, no entanto, diversos fatores a serem considerados, como a possibilidade
de desmembramento do inquérito e do caso, o que levaria muitos réus para
longe do STF.
Não apenas isso, dada recente alteração do Regimento Interno da Corte, o
julgamento agora deverá ser feito por uma das Turmas da Corte, e não por seu
plenário. Como as sessões das turmas não são televisionadas, há uma chance
de, caso não haja mudanças até o julgamento, haver uma redução de transpa-
rência, um dos primeiros itens ressaltados neste artigo como uma das causas
para o aumento da cobertura midiática e aumento de representações sobre o
Supremo. Se essa possibilidade se concretizar, sem acesso ao desenrolar do
julgamento, o interesse da mídia será o mesmo? Sem imagens dos ministros, a

50 Como ocorreu, por exemplo, com os casos sobre aborto de feto anencefálicos e cotas ra-
ciais em universidades públicas.
51 Operação da polícia federal que trata de suposto esquema de corrupção e propina em que
estariam envolvidos políticos, importantes empreiteiras brasileiras e a Petrobras.
SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR 71

atenção da população ao tema será igual? Como essa mudança influenciará a


transmissão de informações sobre o julgamento?
Independentemente destas respostas, é certo que o Supremo continua a
julgar diversos casos de interesse nacional, e a mídia continnua a retratá-lo com
frequência, como fazia antes do Mensalão. Não é mais possível voltar à década
de 90, com um Supremo coadjuvante, pouco conhecido da mídia e da popu-
lação. O diálogo entre Supremo, mídia e cultura é um caminho sem volta. Mas
não houve, até o momento, casos em que esse diálogo tenha sido tão intenso
quanto no Mensalão. Resta saber, agora, como esta conversa vai continuar.

Referências

ANGELI, CARVALHO, Mario Cesar e BERCITO, Diogo. “O incrível mensalão”,


Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/61728-o-incrivel-men-
salao.shtml Acesso em 01/02/2015.

ARAÚJO, Ricardo. “Joaquim Barbosa, presidente eleito do STF, escolhe Natal


para descansar” Disponível em: http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/
noticia/2012/11/joaquim-barbosa-presidente-eleito-do-stf-escolhe-natal-para-
-descansar.html Acesso em 01/02/2015.

ARGUELHES, Diego Werneck. Poder Não é Querer: preferências restritivas e


redesenho institucional no Supremo Tribunal Federal pós-democratização. Uni-
versitas/Jus (Impresso), v. 25, p. 2, 2014.

BALEEIRO, Aliomar. 1967. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconheci-


do. Rio de Janeiro: Forense

BOCCHINI, Lino. “Jornais começam a pressionar Celso de Mello”, Disponível em:


http://www.cartacapital.com.br/blogs/midiatico/jornais-comecam-a-pressionar-
-celso-de-mello-8379.html Acesso em 01/02/2015.

D, Ricardo. “A função de juiz, por Lewandowski”, Disponível em: http://jor-


nalggn.com.br/blog/luisnassif/a-funcao-do-juiz-por-lewandowski Acesso em
01/02/20 EMEDIATO, Luiz Fernando. In: LEITE, Paulo Moreira. A outra história
do Mensalão.

ÉBOLI, Evandro. “Barroso diz que julgamento do mensalão foi ´ponto fora da
curva´”. Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/barroso-diz-que-julga-
mento-do-mensalao-foi-ponto-fora-da-curva-8596481. Acesso em 06.02.2015.
72 CADERNOS FGV DIREITO RIO

FALCÃO, Joaquim. “Independência de ministro começa na indicação”. Folha


de S. Paulo. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/62812-in-
dependencia-de-ministro-comeca-na-indicacao.shtml Acesso em 06.02.2015.

______, “Gilmar Mendes responde dúvidas de internautas”. In: Conseultor Ju-


rídico. http://www.conjur.com.br/2010-abr-14/gilmar-mendes-responde-duvi-
das-internautas-sexta-feira Acesso em 30.01.2015.

MACEDO, Ana Paula e SELEME, Ascâneo. “STF nunca foi tão atacado”, O Glo-
bo, 13 de outubro de 1999.

MELLO, M. 2001. “A publicidade das decisões judiciais”. Gazeta Mercantil, São


Paulo, n.22116, p.4, 3 jul. Disponível em: www.palavradaamatra8. jex.com.br/
jornal+on-line+da+amatra+8/a+publicidade+das+decisoes+ judiciais. Acesso
em 15/05/2012.

______, Canal do STF no YouTube completa um mês com mais de 650 ví-
deos e 1.326 parceiros In: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.
asp?idConteudo=115573 Acesso em 30.01.2015.

_____, “Perfil do STF no Twitter chega a 486 mil seguidores”. Disponível em


http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=271313
Acesso em 02.02.2015.

______, “Twitter do STF é o mais ativo entre as cortes constitucionais.” Disponível


em http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=247706
Acesso em 02.02.2015.

FALCÃO, Joaquim (org). “Mensalão — diário de um julgamento”. Rio de Janei-


ro, Campus Elsevier: 2013.

PEREIRA, Merval. “Mensalão — o dia a dia do mais importante julgamento da


História Política do Brasil”. Rio de Janeiro, Record: 2013.

PITA, Antonio. ______, “”É um desrespeito”, diz Fontenelle sobre boato de


que estaria saindo com Joaquim Barbosa”. In: http://noticias.bol.uol.com.br/
ultimas-noticias/entretenimento/2014/12/12/e-um-desrespeito-diz-antonia-
-fontenelle-sobre-boato-de-que-estaria-tendo-um-caso-com-o-ex-presidente-
-do-stf.htm Acesso em 01/02/2015.
SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR 73

______, “Foto de Joaquim Barbosa com empresário condenado gera polêmi-


ca”. Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2014-02-03/foto-
-de-joaquim-barbosa-com-empresario-condenado-gera-polemica.html Acesso
em 01/02/2015.

____, “Joaquim Barbosa é aplaudido por eleitores durante votação no Rio”. Dis-
ponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/joaquim-barbosa-e-aplaudi-
do-por-eleitores-durante-votacao-no-rio Acesso em 01/02/2015.

_____, Máscara do Ministro Joaquim Barbosa é a mais procurada para o car-


naval. Disponível em: http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,mascara-do-
-ministro-joaquim-barbosa-e-a-mais-procurada-para-o-carnaval,982318 Aces-
so em 01/02/2015.

REVISTA Carta Capital, 23 de novembro de 2013, edição 776. Disponível em:


http://www.cartacapital.com.br/revista/776. Acesso em 01/02/2015.

_____, “Internautas manifestaram no facebook a indignação com o voto de


Lewandowski no julgamento do mensalão”, Disponível em http://movimen-
tobrasildeverdade.com/internautas-manifestam-no-facebook-a-indignacao-
-com-o-voto-de-lewandowski-no-julgamento-do-mensalao-do-pt/ Acesso em
01/02/2015.

REVISTA Veja, 5 de setembro de 2012. Edição 2285 n 36.

RELATÓRIO do índice de Confiança no Judiciário. 4º trimestre de 2012. Páginas


16 e 17. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/hand-
le/10438/10754/Relatorio_ICJBrasil_4TRI_2012.pdf?sequence=1&isAllowed=y
Acesso em 01/02/2015.

RODRIGUES, Fernando. “Joaquim Barbosa e Marina Silva poderiam forçar 2º


turno”. In: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/02/1416499-joaquim-
-barbosa-e-marina-silva-poderiam-forcar-2-turno.shtml Acesso 01/02/2015.

_______, “Ministro Luiz Fux toca guitarra e canta na posse de Joaquim Barbosa”.
In: http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2012/11/ministro-luiz-fux-toca-
-guitarra-e-canta-na-posse-de-joaquim-barbosa.html Acesso em 01/02/2015.
74 CADERNOS FGV DIREITO RIO

SETTI, Ricardo, “Ministro Joaquim Barbosa torna-se “herói” em peça que cir-
cula pela web segunod a qual “Batman é para os fracos”. In: http://veja.abril.
com.br/blog/ricardo-setti/politica-cia/ministro-joaquim-barbosa-vira-heroi-em-
-peca-que-circula-por-e-mail-dizendo-que-batman-e-para-os-fracos/ Acesso
em 01/02/2015.

TARDÁGUILA, Cristina. “Com sessões ao Vivo, STF conquista o telespectador”


Disponível em http://oglobo.globo.com/brasil/com-sessoes-ao-vivo-stf-con-
quista-telespectador-6535118 Acesso em 06.02.2015.

_____, “Ao vivo notícias” Disponível em: http://noticias.terra.com.br/ao-vi-


vo/21923/ Acesso em 06.02.2015.

_____, “Estadão ao vivo”. Disponível em: http://www.estadao.com.br/aovivo/


julgamento-do-mensalao-dia-10 Acesso em 06.02.2015.

_____, “Julgamento do Mensalão”. Disponível em: http://g1.globo.com/politi-


ca/mensalao/cobertura/. Acesso em 06.02.2015.

_____, “O Julgamento do Mensalão”. Disponível em: http://aovivo.folha.uol.


com.br/especial/2012/ojulgamentodomensalao/ Acesso em 06.02.2015.

VIEIRA, O.V. 2008. Supremocracia. Revista DIREITO GV, v. 4, nº 2, pp. 441-464,


julho/dezembro.

VILLA, Marco Antônio. “Mensalão— O julgamento do maior caso de Corrupção


da história política brasileira”. Editora Leya: 2012.
FOTOGRAFIA, CULTURA POPULAR E DIREITO1
Henry J. Steiner2

1. Introdução
Não é preciso um esforço imaginativo para relacionar fotografia e cultura po-
pular. Várias décadas de inovações revolucionárias no mundo da fotografia
aprofundaram sua influência em nossas vidas, que vai hoje desde hábitos e
expectativas das pessoas até as políticas governamentais. A cultura popular
torna essa influência evidente.
Sabemos que a câmera digital de hoje em dia é apenas uma das muitas
inovações que já se tornaram lugar-comum, em uma sucessão de triunfos tec-
nológicos. Muitas pessoas veem como banais e até indispensáveis os difun-
didos recursos digitais e eletrônicos do mundo moderno, de smartphones a
internet. Para outras, sobretudo as mais velhas, que cresceram com uma versão
mais antiga da cultura popular, essas inovações mudaram a experiência coti-
diana de suas vidas pessoais e profissionais.
Uma característica da fotografia nos dias de hoje afeta todas as gerações
— a onipresença da câmera. Somos todos fotógrafos; somos todos fotografa-
dos. As câmeras estão hoje embutidas em smartphones extremamente portá-
teis, em tablets e aparelhos do gênero, sendo um dentre os muitos recursos
que esses aparelhos oferecem. Elas são nossas companheiras. Como é fácil
fotografar hoje em dia, em comparação com a forma mais deliberada e tra-
balhosa de fotografar de uma geração atrás. A nossa capacidade moderna de
fotografar em um piscar de olhos é comparável à nossa capacidade de ouvir
música praticamente quando quisermos, o que, por si só, demonstra a enorme
distância entre os dias de hoje e os milênios em que só se era possível ouvir
música quando nós mesmos a tocávamos ou quando estávamos ao alcance da

1 Traduzido do inglês por Julia Nemirovsky e revisado pelo editor, Pedro Fortes, e por André
Bogossian.
2 Henry J. Steiner é Jeremiah Smith Jr Professor of Law, Emeritus, Harvard Law School. Suas
publicações dizem respeito principalmente ao direito internacional e relações internacio-
nais, com ênfase, desde a década de 1980, em direitos humanos. Em 1984 ele fundou o Pro-
grama de Direitos Humanos da Harvard Law School e foi seu diretor até se tornar professor
emérito em 2005. Steiner proferiu palestras e prestou consultoria em mais de 35 países.
76 CADERNOS FGV DIREITO RIO

voz de quem o fizesse. Nosso apetite pela realização imediata dos nossos mais
variados desejos não para de crescer.
Os diferentes usos dessa câmera onipresente vão tão longe quanto nossa
imaginação. Ela pode produzir a imagem perfeita desejada pela maior parte
dos fotógrafos amadores que “batem” fotos praticamente o tempo todo para
registrar passeios turísticos, amigos e membros da família — de recém-nas-
cidos a avós —, ou para registrar situações incomuns que encontramos por
acaso. O recurso de gravação de vídeos com áudio dos smartphones expande
o repertório dos fotógrafos, aí incluindo toda uma sucessão de eventos em
vez de apenas momentos específicos. A memória humana não tem mais que
carregar todo o fardo de recordar a aventura de ontem ou de tempos remotos.
Iniciando-se o seu terceiro século de vida, a câmera assume essa tarefa cada
vez mais.
Esse ensaio aborda duas formas diferentes pelas quais a fotografia assu-
me um papel proeminente na transformação da cultura popular, destacando-
-se na miríade de outros dispositivos eletrônicos (O termo “fotografia”, aqui,
significa fotos e registros audiovisuais). A primeira discussão é baseada na
minha própria transição do ambiente social da minha infância e juventude
para a vida em um novo contexto de cultura popular. Para ilustrar essa tran-
sição, imagino as pessoas assistindo hoje a registros audiovisuais que mos-
tram seus antepassados muitas décadas atrás, e especulo qual o efeito desse
“acesso” fácil aos mortos em suas lembranças dos que partiram e na compre-
ensão da história. O sistema jurídico formal não tem qualquer relação com
essa primeira discussão.
A segunda discussão é voltada para um aspecto diferente da cultura po-
pular. Meu tema aqui não é o efeito causado nas pessoas que veem a nova
forma de fotografia, mas o efeito naqueles que são vistos, naqueles que (talvez
sem saberem) estão sendo fotografados. Esse tema aborda a operação de sis-
temas avançados de vigilância por autoridades governamentais com o objetivo
de monitorar os espaços públicos na tentativa de reduzir a probabilidade de
ocorrência de crimes comuns e de terrorismo. Os meios de vigilância e a forma
com que os dados reunidos são utilizados podem levantar sérias questões so-
bre a violação de direitos constitucionais, sobretudo do direito à privacidade.
Sistemas de vigilância pública e as relativas questões constitucionais se torna-
ram parte da atividade cotidiana do Congresso, de várias assembleias legis-
lativas estaduais, e também dos tribunais. As decisões judiciais têm um papel
central nessa discussão.
Ainda que o tema principal desse ensaio seja a fotografia, meus exemplos
em ambas as discussões também abordam outras inovações tecnológicas. Por
exemplo, a primeira discussão aborda mudanças ambientais e visuais, sobretu-
FOTOGRAFIA, CULTURA POPULAR E DIREITO 77

do na gravação do som, que avançou enormemente. Hoje, a imagem e o som


estão quase sempre sincronizados, como em smartphones com o recurso de
gravações de vídeo. O mesmo se aplica à segunda discussão, onde a perda de
privacidade pode ser causada por tecnologias como aparelhos de GPS (Global
Positioning System), frequentemente utilizados como um complemento à foto-
grafia, com os mesmos objetivos.

2. Câmeras, Memória e História


Vou começar com uma história pessoal. Há muitos anos eu, minha mãe
e meu sobrinho estávamos brincando de interpretar personagens de uma ra-
dionovela que havíamos criamos na hora. Decidimos gravar a brincadeira, os
risos, e tudo mais. Era raro que alguém tivesse em casa um gravador de áudio
naquela época, e ter um gravador portátil como os que são comuns hoje em dia
era impensável. Gravações de alta qualidade normalmente exigiam gravadores
de rolo enormes. Depois da nossa brincadeira, guardei os rolos em uma estante
e os esqueci por lá.
Muitos anos depois da morte da minha mãe, eu encontrei esses rolos e
lembrei daquele momento de alegria. Minha mãe e eu éramos muito próximos;
é claro que eu queria ouvir a gravação imediatamente. Mas eu fui tomado por
uma forte dúvida. A minha geração — e todas que me antecederam — estava
acostumada a ver fotografias impressas de pessoas próximas que tinham mor-
rido. De fato, por meio de esculturas, pinturas e desenhos, as pessoas milenar-
mente permaneceram em contato com seus antepassados. Mas não estávamos
acostumados a “ouvir” nossos antepassados. O ineditismo e a intimidade da-
quela experiência devem ter influenciado minha decisão. Talvez eu tenha senti-
do que a voz dela causaria em mim uma reação emocional muito mais intensa
do que apenas ver uma foto em um álbum de família. Poderia parecer que ela
estava ali comigo. Sejam quais tenham sido os motivos exatamente, eu decidi
ignorar a gravação e respeitar os limites estabelecidos ao longo dos anos entre
a morte da minha mãe e minha vida.
Eu descrevi esse evento para demonstrar como o estágio de desenvolvi-
mento de uma determinada tecnologia tem um papel importante nas nossas
memórias e lembranças. Depende bastante do que estamos acostumados, do
que é convencional e comum a todos em uma determinada época. A tecnologia
de ponta pode transformar os momentos de recordação, e criar rapidamente
uma nova forma corriqueira de experiência. Hoje, pelo menos para os mais no-
vos, assistir a vídeos de parentes antigos é provavelmente tão pouco estranho
e desafiador quanto uma fotografia impressa era para mim.
Esses novos aparelhos, junto à infindável sucessão de inovações tecnoló-
gicas que estão por vir, pode fazer com que as pessoas observem, escutem e,
78 CADERNOS FGV DIREITO RIO

portanto, compreendem parte dos seus passados de forma mais vívida e pro-
funda. Eles podem preencher parcialmente o vazio deixado pelo quase desa-
parecimento dos diários pessoais na cultura moderna, que podiam ser bastante
informativos para os descendentes. Os vídeos podem reavivar a memória so-
bre as relações familiares, mostrando nossos antepassados (muitas vezes sem
que eles saibam) conversando, brincando juntos, abraçando-se, fazendo cara
feia, dando ou recebendo ordens, intimamente conectados uns com os outros
ou mantendo-se distantes. Talvez assistir a vídeos venha a ser um elemento
importante em rituais anuais de recordação, complementando o acender uma
vela ou a visita ao cemitério. Talvez os pacientes de psicanalistas levarão víde-
os na tentativa de ilustrar a sessão terapêutica.
Como podemos aplicar esses pensamentos a antepassados mais remo-
tos? Vamos supor que a nossa tecnologia e as câmeras de hoje em dia esti-
vessem disponíveis no meio do século XIX. Quão mais rico poderia se tornar
o nosso conhecimento sobre a nossa genealogia e sobre a história da nossa
família se pudéssemos assistir a vídeos que nos levassem pelo menos até
nossos bisavós, observando esses antepassados em seus ambientes familia-
res, sociais e culturais. Em um país de imigrantes como os Estados Unidos,
a capacidade de explorar a história da família poderia “transportar” muitos
americanos para as vidas de seus ascendentes antes da emigração, em cultu-
ras e países estrangeiros.
Podemos ainda tentar imaginar a vida daqui a 150 anos, quando os filhos
dos nossos bisnetos estarão assistindo a nossas vidas com certo espanto. Os
vídeos, transmitidos de geração em geração, podem se tornar uma parte do le-
gado e da educação de uma família, podem fortalecer a compreensão das suas
próprias raízes, e ajudar a moldar as crenças dos membros das famílias sobre
quem são. Talvez os vídeos mostrem como a riqueza, o status e a educação de
uma família aumentaram ou diminuíram a cada geração. Talvez ao ver esses
vídeos os espectadores possam expandir a noção de sua própria família para
incluir muitas pessoas tidas hoje como desconhecidas, e desse modo reforcem
o sentimento de conexão humana. Talvez, observar os antepassados partici-
pando de cerimônias e rituais realizados até hoje possa fortalecer identidades
particulares: rezar à mesa, ir a um batizado, realizar o sêder, quebrar o jejum do
Ramadã. Ou talvez o contrário.
Outra consequência da nova fotografia é a relativa à educação — por
exemplo, o estudo da história. Considere o ensino da história americana, no
qual fotografias ocupam, hoje, uma posição não muito relevante. Se eu ima-
ginar que o conhecimento tecnológico e os aparelhos sofisticados de hoje em
dia estivessem disponíveis no meio do século XIX, as aulas de hoje poderiam
FOTOGRAFIA, CULTURA POPULAR E DIREITO 79

analisar vídeos do Discurso de Gettysburg de Lincoln3, de soldados de infanta-


ria conversando sobre a guerra, de um jantar de família, da linha de produção
de uma fábrica, de conversas entre escravos em seus alojamentos, de debates
eleitorais, do recital de uma orquestra, de uma aula de história lecionada no
passado. Esse engajamento visual e com toda a atmosfera de uma situação
histórica poderia conferir uma nova força e um novo imediatismo ao estudo.
Poderíamos imaginar algo como uma conversa com gerações distantes, e tal-
vez termos uma ideia diferente de que o mundo, por um lado, mudou muito e,
por outro, mudou muito pouco.
Eu lembro perfeitamente de uma fotografia na parede da minha faculda-
de de direito que mostrava uma aula em 1955, ano em que me formei. Talvez
eu estivesse naquela aula. Dos aproximadamente 130 alunos na foto, todos
eram brancos e apenas duas eram mulheres. Todos vestiam camisas brancas
com gravata, e a maioria tinha deixado a jaqueta pendurada no encosto da
cadeira por causa do calor que fazia no dia. O professor, vestido impecavel-
mente, lecionava a aula por detrás de um púlpito elevado. Que contraste com
as aulas dos últimos anos da minha carreira profissional: alunos de todas as
cores e etnias, aproximadamente metade deles eram mulheres, com roupas
informais (inclusive a maior parte do corpo docente), os professores andando
de um lado para o outro, aproximando-se dos alunos. Quanta história daquela
época e de tempos posteriores foi capturada por aquela foto: a abolição das
barreiras de admissão discriminatórias, mudanças inovadoras na didática de
uma aula, formas de relacionamento mais variadas entre o corpo docente e
os alunos. Entretanto, quão mais revelador sobre uma noção mais ampla da
transformação histórica na educação jurídica teria sido um registro audiovi-
sual daquela aula.
Meus comentários sobre a foto de uma aula em 1955 poderiam simples-
mente confirmar a máxima “uma imagem vale mais do que mil palavras.” Em
muitos contextos esse ditado tem um fundo importante de verdade — no caso,
por exemplo, do fotojornalismo. Mais do que no passado, as fotografias publi-
cadas são feitas em contextos de guerra e outras ocasiões de violência. Vemos
imagens horríveis como a de uma criança em chamas causadas por napalm
correndo de um local bombardeado, de um torturador seguindo instruções
obedientemente, de uma pessoa sendo vítima de estupro coletivo, de um gru-
po decapitando ou imolando seus prisioneiros. O texto mais genial não chega-

3 Nota do Editor: O discurso de Gettysburg foi proferido pelo Presidente Abraham Lincoln
durante a consagração de um cemitério de soldados em Gettysburg, Pennsylvania, me-
ses após a União ter obtido uma importante vitória sobre os Confederados na Batalha de
Gettysburg. O discurso é famoso pelas afirmações de Lincoln a respeito dos princípios e
aspirações dos Estados Unidos da América.
80 CADERNOS FGV DIREITO RIO

ria aos pés dessas imagens aterrorizantes. Elas permanecem irreversivelmen-


te marcadas na memória. Elas influenciam inevitavelmente o que pensamos e
sentimos e, portanto, que políticas e ações podemos exigir do nosso governo.

3. Vigilância Pública e Privacidade


A ênfase aqui deixa de ser o efeito que novas fotografias causam em nós ao
vê-las e passa a ser o efeito que sermos fotografados causa em nós mesmos.
Inovações como smartphones com câmeras de vídeo ou circuitos internos de
televisão (closed circuit television — CCTV) tornam possível que sejamos coti-
dianamente fotografados em espaços públicos sem nosso consentimento ou
até sem sabermos que estamos sendo filmados. Essas fotos tiradas sem permis-
são e talvez até quando não queremos ser fotografados se tornaram um fenô-
meno banal, uma intervenção constante em nossas vidas. A justificativa comum
é evidente: a segurança pública — principalmente o controle e a investigação
de crimes comuns graves e a prisão dos responsáveis. Cada vez mais a vigilân-
cia pública tem também o objetivo de proteger contra o terrorismo e outras
ameaças à segurança nacional. Essa vigilância pública é predominantemente
governamental, mas dispositivos como CCTV podem pertencer a empresas, que
os controlam, e estar localizados na entrada ou dentro de lojas e escritórios. As
novas redes de comunicação como o Facebook, que exibem fotografias com
grande destaque, podem levantar suas próprias questões sobre a privacidade.
Considere alguns exemplos da ampla cobertura jornalística sobre o alcan-
ce dessa prática cada vez mais disseminada. Pessoas em cidades que simples-
mente saem de casa, vão até o local de trabalho, almoçam, talvez comprem al-
gumas coisas e voltem para casa podem ser fotografadas diariamente dezenas
de vezes por uma rede integrada de câmeras camufladas. Até mesmo há mais
de uma década todas as pessoas que iam ao jogo anual do superbowl em um
estádio com capacidade para 100 mil torcedores eram fotografadas na entra-
da. Com a ajuda da biometria e de outros métodos modernos de identificação,
os rostos fotografados eram imediatamente verificados e comparados com os
arquivos estatais.
A maioria de nós sabe que o governo entrou no negócio da vigilância com
grandes ambições. Será que lamentamos a perda do antigo sentimento de que,
em espaços públicos, em meio a uma multidão de desconhecidos, permanece-
mos anônimos e, nesse sentido, privados, protegidos dos olhares indesejados,
e com pouca chance de ter nossas ações gravadas? Em decorrência do aumen-
to da vigilância pública, disseminaram-se as queixas de que um “big brother”
estaria nos observando com uma atenção excessiva e se metendo nas nossas
vidas privadas, no nosso dia a dia. O que pode ser feito para que as diferentes
estratégias de vigilância sejam mantidas dentro dos limites legais?
FOTOGRAFIA, CULTURA POPULAR E DIREITO 81

Alguém poderia argumentar que o espaço público — e aqui a referência


é feita particularmente a espaços abertos ao público e não de propriedade e
controle de pessoas não governamentais (“privadas”) — é uma área onde a vi-
gilância por qualquer pessoa ou instituição é justa e aceitável. Quando em áre-
as públicas, nosso interlocutor argumentaria, as pessoas devem lembrar que o
direito à privacidade acaba quando saem de casa. Tais pessoas sabem que es-
tão expostas aos olhares de inúmeros desconhecidos quando frequentam ruas,
parques, órgãos governamentais, bares gays, lojas, igrejas, teatros e eventos
esportivos, consultórios psiquiátricos, sedes de associações, clínicas de aborto,
casas de massagem, e lugares onde multidões se reúnem para protestar contra
alguma causa política (note que alguns dos lugares indicados, ainda que aber-
tos ao público, são de propriedade e controle de pessoas privadas). Sabem
que em certos locais a probabilidade de serem fotografadas pode ser maior, já
que as câmeras de rua podem focalizar entradas de escritórios ou lojas especí-
ficos, cujas atividades e visitantes interessam a órgãos governamentais como
agências de segurança ou a polícia. A despeito desse argumento, os críticos da
vigilância maciça podem questionar: será que a maior parte das pessoas não se
incomoda de ser gravada quando entram ou visitam alguns dos locais listados
acima? À medida que a vigilância se torna mais disseminada e persistente, será
que as pessoas não reagirão a essa intrusão indesejada em atividades que con-
sideram privadas, ainda que feita em espaços públicos?
O papel da vigilância do Governo dos Estados Unidos, voltada para ame-
aças à segurança nacional, ampliou-se intensamente desde a destruição do
World Trade Center (“9/11”) em 2001. Essa coleta de informações e a forma
como elas têm sido utilizadas estimulam disputas e debates políticos inten-
sos. Investigações do Poder Legislativo e grandes divulgações não autorizadas,
como a de Edward Snowden, motivam esse debate e aprofundam as divergên-
cias políticas na medida em que descobrimos o quanto nossa privacidade foi
comprometida em atividades como fazer ligações e enviar e-mails. Leis fede-
rais e estaduais bem como decisões judiciais têm de lidar com as consequên-
cias deste monitoramento público para a privacidade do indivíduo. Muitas leis
novas e novas instituições com o objetivo de administrá-las e exigi-las, estão
sendo constituídas.
A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos a seguir envolve um de-
safio constitucional a um modo particular de vigilância que tem muito em co-
mum com a fotografia. Ela diz respeito à privacidade, um termo que a Consti-
tuição norte-americana em si não menciona. Que contraste gritante entre essa
constituição mais que bicentenária e as constituições e tratados do pós-guerra,
como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que declaram o direito à
privacidade. Uma ou outra versão desse direito (às vezes designado um direito
82 CADERNOS FGV DIREITO RIO

a uma vida privada) tornou-se parte esperada desses documentos constituti-


vos, pelo menos no mundo democrático.
A Quarta Emenda à Constituição dos Estados Unidos aparece em diversos
tipos de casos questionando ações governamentais sob o fundamento que tais
ações supostamente violam o direito à privacidade. Entende-se que tal direito
inspirou as previsões da Quarta Emenda, que declaram que “o direito do povo
à inviolabilidade de suas pessoas, casas, papéis e haveres contra busca e apre-
ensão arbitrárias não poderá ser infringido.” Sua principal aplicação envolveu a
investigação criminal e atividades relacionadas de segurança pública. Na maio-
ria dos casos, os agentes do Estado que executam a busca e apreensão devem
ter um mandado (“mandado de busca”) autorizando sua ação.
Em alguns de seus votos4 a Suprema Corte foi além da Quarta Emenda, re-
correndo a outras previsões constitucionais, e traçando, desse modo, diversos
caminhos jurisprudenciais para a proteção da privacidade. Sua decisão recente
em Estados Unidos v. Jones5 ilustra claramente interações entre as diversas
linhas de raciocínio utilizadas pelos Ministros6 nesses casos. Proeminente entre
os métodos de vigilância usados nesses casos encontra-se o GPS que, junto
a um aparelho de GPS (receiver) levado por uma pessoa ou veículo sendo in-
vestigado — com ou sem o conhecimento dessa pessoa ou dos que estão no
veículo — permite que os movimentos dessa pessoa ou veículo sejam moni-
torados. Esse sistema pode ser alternativo ou complementar, utilizado junto
de um monitoramento fotográfico, com aparelhos comuns como câmeras de
vídeo e CCTV. Cada sistema tem suas vantagens e desvantagens específicas,
que variam a cada contexto.
Em Jones, uma agência do governo federal instalou secretamente um apa-
relho de GPS embaixo da carroceria do carro do réu e, desse modo, acom-
panhou os movimentos do carro por 28 dias. Em parte com base nas provas
obtidas por esse monitoramento, o suspeito foi indiciado por tráfico de drogas
e foi condenado. Um tribunal de segunda instância reformou a decisão con-
denatória sob o fundamento de que a vigilância violava a Quarta Emenda. O
caso foi então para a Suprema Corte. Todos os nove Juízes concordaram que a
condenação deveria ser reformada. Além da opinião da Corte expressa no voto
da maioria, o caso gerou dois votos concorrentes, de ministros que, apesar de

4 Nota do Editor: Nos Estados Unidos, o termo utilizado para descrever o “voto” dado pelos
integrantes da Corte é “opinion”. Por exemplo, uma “opinion” assinada por cinco dos nove
Ministros da Suprema Corte (Opinion of the Court) pode ser acompanhada de um “voto”
concorrente (concurring opinion) de um ministro e por um voto dissentindo (dissenting
opinions) assinada pelos outros três ministros. No caso, há apenas uma decisão, mas três
votos diferentes.
5 132 S.Ct. 945, 565 U.S. ___ (2012).
6 Nota do Editor: O termo Ministros no context deste artigo é tratado como o equivalente do
termo Justice, referindo-se aos Justices da Suprema Corte dos EUA.
FOTOGRAFIA, CULTURA POPULAR E DIREITO 83

concordarem com a decisão do colegiado, chegaram a ela por meio de funda-


mentos diferentes.
O voto da maioria (redigido pelo Ministro Scalia) seguia um caminho de
argumentação tradicional nesses casos. Ao interpretar que o carro também
constituía um ambiente protegido pela Quarta Emenda, entendia que a anexa-
ção do aparelho de GPS constituía uma “invasão” de propriedade (o governo
não havia obtido o mandado adequado para tal). A anexação constituía uma
busca injustificada nos termos da emenda. Por isso, as provas reunidas por
meio dessa vigilância deveriam ser excluídas do processo.
Muito antes da decisão em Jones os votos das decisões da Suprema Corte
haviam se tornado mais variados e complexos nos casos envolvendo a Quarta
Emenda, em relação tanto ao tipo de conduta que caracterizava uma “busca”
quanto à noção de privacidade. O uso de dispositivos eletrônicos para inves-
tigação de um suspeito não poderia ainda ser enquadrado nas interpretações
mais comuns dos ministros da Corte Suprema nos casos de invasão física de lo-
cais ou objetos protegidos. Pode-se afirmar que o uso desses aparelhos eletrô-
nicos pelo governo constituiu uma “busca” nos termos da Quarta Emenda? Ao
lidar com essas questões problemáticas, os ministros foram além dos conceitos
de invasão de propriedade e privacidade e desenvolveram um teste diferente
para determinar se a emenda havia sido violada: essa vigilância teria violado a
“expectativa razoável de privacidade” de uma pessoa.
Suponhamos, por exemplo, que o governo secretamente instalou uma câ-
mera secreta em uma casa, onde a expectativa de privacidade dos habitantes
fosse alta e amplamente reconhecida como razoável. Sem um mandado, essa
busca envolveria uma invasão evidente e violaria a emenda. E se a câmera fosse
instalada em uma casa vizinha, de onde seria possível fotografar o interior da
casa por meio de janelas, será que o resultado seria diferente? Será que o resul-
tado deveria depender da possibilidade de um tribunal identificar uma “inva-
são” (eletrônica, física?) à casa nessa situação? Ou consideremos uma pessoa
que, ao cometer o crime de roubo em uma calçada, seja fotografada por uma
câmera de um CCTV instalada no local para monitorar a rua por motivos de
segurança. Nesta última situação, é pouco provável que o tribunal acate a ale-
gação do réu de que sua expectativa de privacidade era razoável e foi violada.
A prova fotográfica seria admissível no tribunal.
O voto majoritário em Jones demonstrou que o teste da “expectativa ra-
zoável” era uma forma a mais — mas não a única — de decidir se uma busca
havia ocorrido. A invasão física a uma “casa” ou equivalente continuou a ser
suficiente (na ausência de um mandado) para considerar uma busca infundada.
Mas a decisão afirmava ainda: “Pode ser que a obtenção dos mesmos resulta-
dos [de coleta de provas incriminatórias] seguindo-se os movimentos de uma
84 CADERNOS FGV DIREITO RIO

pessoa por meios eletrônicos, sem a ocorrência de uma invasão, seja uma in-
vasão de privacidade inconstitucional; mas o presente caso não exige que essa
questão seja respondida.” Note que essa observação não indica qual argumen-
to jurídico poderia levar a essa decisão, nem em qual dispositivo constitucional
ela se fundamentaria.7
Em seu voto concorrente, a Ministra Sotomayor, assim como a Corte, en-
tendeu que a invasão era suficiente para configurar uma violação. Entretanto, ela
seguiu uma linha diferente de argumentação. Muitas formas contemporâneas de
vigilância não exigem invasão física de um espaço privado. Ainda assim, elas po-
dem violar a “expectativa subjetiva de privacidade que uma sociedade reconhe-
ce como razoável”, sobretudo se a vigilância for direcionada pelo governo desde
o início para coleta informações sobre a conduta de uma pessoa ou instituição
específica, e não para monitoramento um espaço público (como um parque) no
interesse da segurança de modo geral. Por exemplo, uma câmera de vigilância
pode estar direcionada para a entrada da sede de uma determinada organização
com o objetivo de saber mais sobre seus membros. Ou a vigilância pode acom-
panhar os movimentos de um carro específico utilizando leitores de placas.
Em relação à variedade de fatos sobre uma pessoa que essa vigilância
específica pode revelar, a Ministra Sotomayor pergunta “se as pessoas têm
uma expectativa razoável de que seus movimentos serão gravados e colecio-
nados de forma a permitir ao governo” descobrir diversas informações sobre
suas crenças e condutas — por exemplo, laços religiosos e políticos e hábitos
sexuais. Ao decidir se a privacidade havia sido invadida inconstitucionalmente,
a Ministra Sotomayor levaria em consideração “a existência de uma expectativa

7 Todos os três votos podem ser entendidos como levantando, em algum grau, a questão se
as decisões judiciais relativas à vigilância eletrônica de espaços públicos devem continuar a
ter a Quarta Emenda como a única fundamentação para os argumentos sobre privacidade
e constitucionalidade. Devemos lembrar que a Suprema Corte construiu uma doutrina de
direito à privacidade independente dos termos da Quarta Emenda, aplicável a contextos
muito variados. Essas decisões, envolvendo, sobretudo, os estados (em oposição ao gover-
no federal) e a ação estatal (state action), são às vezes reunidas sob a denominação “de-
vido processo legal substantivo”, em referência à Cláusula do Devido Processo Legal (due
process of law) da Décima Quarta Emenda, aplicável aos governos estaduais. As principais
decisões envolvem, principalmente, questões relacionada a casamento, família, procriação
e relações sexuais. Elas localizam a fonte de um direito à privacidade constitucional de
diversas formas relacionadas, porém distintas, referindo-se ou explicitamente sustentando-
-se em: a Cláusula da Liberdade (Liberty Clause) da Décima Quarta Emenda, certas previ-
sões da Bill of Rights (as primeiras dez emendas) tal como a Primeira Emenda (liberdade
de expressão) e a Quarta Emenda, e uma área de penumbra formada de emanações de
diversos direitos declarados na Bill of Rights. Algumas declarações nos votos de Jones
podem ser interpretadas como uma expressão de simpatia a essa abordagem, ou pelo
menos de abertura a ela. As principais decisões que consideraram as regulações estatais
inconstitucionais e que eram baseadas nesse direito de privacidade incluem Griswold v.
Connecticut, 381 U.S. 479 (1965) (direito de fazer uso de contraceptivos) e Roe v. Wade,
410 U.S. 113 (1973) (direito ao aborto, sujeito a determinadas condições).
FOTOGRAFIA, CULTURA POPULAR E DIREITO 85

social razoável de privacidade em relação ao conjunto de movimentos públicos


de uma pessoa.”8
Ao explorar esse problema, uma extensa gama de questões constitucio-
nais pode se tornar relevante. Por exemplo, pessoas que são ou temem ser
alvo de monitoramento podem tomar mais cuidado ao participar de atividades
“públicas” que poderiam permitir que outras pessoas soubessem mais sobre
elas: suas companhias, as reuniões que frequentam, as instituições das quais
participam, seus locais de culto. Nesse sentido importante, a vigilância sistê-
mica pode ter um efeito “chilling” para a liberdade de expressão e associação,
direitos fundamentais contemplados pela Primeira Emenda. Tal vigilância pode
intimidar aquele que pretende desfrutar desses direitos. O voto da Ministra So-
tomayor abre, portanto, a possibilidade de que esses tipos de vigilância pública
sejam considerados uma violação à garantia de privacidade da Constituição,
sejam quais forem suas raízes constitucionais.
O Ministro Alito escreveu o outro voto concorrente (acompanhado por ou-
tros três ministros da Corte). Ele criticou o voto majoritário por sustentar-se na
doutrina da invasão de propriedade de uma forma artificial e pouco convincen-
te. Nesse caso, seria preferível questionar se a expectativa razoável de privaci-
dade foi violada por esse monitoramento de longa duração. O monitoramento
de um carro por um mês “envolveu um grau de invasão que uma pessoa razo-
ável não teria antecipado.” O seu voto ressalta que a preocupação pública com
essas invasões tecnologicamente sofisticadas de áreas de privacidade pode
aumentar a pressão política para que as leis ofereçam algum grau de proteção.
Muitos países enfrentam esses problemas atualmente. Já que vários países
membros da Convenção Europeia de Direitos Humanos praticam vigilância pú-
blica, a Corte Europeia de Direitos Humanos foi acionada diversas vezes para
que determinasse a legalidade dessas práticas.
Suas decisões, proferidas na qualidade de um órgão judicial no âmbito de
uma organização regional politicamente diversa, permitem comparações úteis
com Jones.
Uma decisão de 2003, Peck v. Reino Unido,9 aborda essas questões. Um
Conselho Municipal no Reino Unido operava um sistema de CCTV em áreas pú-

8 Seguindo a decisão em Jones , e em parte devido a comentários como o da Ministra So-


tomayor descrito acima, vários juristas sugeriram que a Corte poderia estar na direção de
uma “teoria mosaica” para a Quarta Emenda, segundo a qual os tribunais, ao indagar se um
determinado monitoramento configura uma “busca” no sentido da emenda, não estariam
se concentrando no ato específico que gerou a busca (como a anexação de um aparelho de
GPS em um carro, nesse caso) mas no monitoramento como um todo, incluindo elementos
tais como seus diferentes componentes e sua duração. Ou seja, a Corte poderia decidir que
ocorreu uma “busca” ao considerar o conjunto dos atos, em uma sequência de atos distin-
tos que, somados, constituíram uma busca.
9 ECHR, Requerimento nº 44647/98, Julgamento 28 de janeiro de 2003.
86 CADERNOS FGV DIREITO RIO

blicas, e armazenava as fitas por um determinado período antes de destruí-las.


O requerente, um cidadão britânico, sofria de depressão. Certa noite, ele andou
pela rua levando consigo uma faca de cozinha, e foi monitorado por uma câ-
mera. Em uma tentativa de suicídio, ele cortou os pulsos. Do local onde estava
posicionada, a câmera não registrou esse ato, ainda que as fitas mostrassem o
requerente com uma faca. O operador do monitoramento notificou a polícia,
que chegou rapidamente. O requerente foi liberado e levado para casa sem que
qualquer acusação fosse feita.
Nos meses seguintes, as gravações do CCTV, incluindo a imagem do re-
querente, foram exibidas diversas vezes na TV para demonstrar para o público
como esse sistema de vigilância seria eficaz em alertar a polícia sobre crimes
em potencial. As pessoas responsáveis pelas fitas do CCTV não fizeram nada
para ocultar o rosto do requerente antes de ceder as fitas para divulgação. A
família, os amigos, e os vizinhos puderam, portanto, reconhecê-lo. O requeren-
te pretendera manter o incidente confidencial, e ficou envergonhado com sua
divulgação. Ele deu início a um processo administrativo e judicial, alegando
uma invasão de privacidade sem mandado. Não tendo sua reivindicação aten-
dida no Reino Unido, ele levou o caso para a Corte Europeia.
A decisão da Corte relativa à privacidade sustentou-se em sua interpreta-
ção do Artigo 8º da Convenção, que define que “qualquer pessoa tem direito
ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua corres-
pondência.” Ela proíbe a ingerência da autoridade pública no exercício desse
direito, exceto quando essa ingerência for necessária, em uma sociedade de-
mocrática, para a segurança nacional, para a segurança pública, para a defesa
da ordem e a prevenção das infrações penais. A Corte fez referência a observa-
ções suas em decisões anteriores afirmando que fatos relativos a um indivíduo,
como seu nome e vida sexual, são “elementos importantes de sua vida privada
protegidos pelo Artigo 8º (...) Há, portanto, uma zona de interação do indivíduo
com os outros, mesmo em um contexto público, que pode ser considerada
parte de sua ‘vida privada’.” Contudo, o fato de eventos em espaços públicos —
como, por exemplo, uma rua — serem fotografados não constitui por si só uma
ingerência no direito protegido caso as informações visuais não sejam salvas
e armazenadas. Entretanto, caso a gravação seja feita levando-se em conta a
possibilidade de uso futuro dessas imagens, “a ingerência pode dar margem
tais considerações.” É verdade que, nesse caso, o requerente não se queixou
nem de ser fotografado pela câmera do CCTV nem de um vídeo ter sido arqui-
vado, mas apenas das divulgações posteriores que culminaram na transmissão
pública sem que sua identidade fosse preservada.
Considerando o contexto de uma caminhada noturna e do transtorno
mental do requerente, a Corte decidiu que a conduta que levou à identifica-
FOTOGRAFIA, CULTURA POPULAR E DIREITO 87

ção pública do requerente ultrapassou qualquer expectativa que o requerente


poderia ter tido de que suas ações na rua se tornariam conhecidas por todos.
A divulgação dessas imagens constituiu uma “interferência grave” no direito
à privacidade. As justificativas do governo para essa interferência não con-
seguiram satisfazer os critérios definidos pelo Artigo 8º. A sentença conferiu
indenização ao requerente.
Outras decisões da Corte Europeia sobre privacidade e vigilância pública
ressaltam o engajamento relativamente direto da Corte com a questão da pri-
vacidade, em contraste com a complexidade doutrinária das decisões judiciais
nos Estados Unidos. Em Uzun v. Alemanha,10 por exemplo, os movimentos e os
relacionamentos do requerente eram monitorados por meio de uma combina-
ção de métodos tecnológicos de ponta, mas o requerente questionou apenas a
legalidade da vigilância por meio de um aparelho de GPS. Essa vigilância, que
gerou um armazenamento dos dados coletados, durou aproximadamente três
meses. A informação reunida foi utilizada para propor ação contra o requeren-
te. Destacando aspectos como a duração do monitoramento, a Corte concluiu
que as autoridades haviam interferido na “vida privada” do requerente. Con-
tudo, levando em conta a gravidade dos crimes investigados e as limitações à
vigilância para a proteção da privacidade que as leis alemãs impunham, a Corte
decidiu que essa interferência era justificada nos termos do Artigo 8º.

4. Conclusão
Considero dramáticas e significativas as mudanças na nossa cultura po-
pular que esse ensaio aborda: os novos caminhos que os indivíduos estão se-
guindo para explorar o passado, e os novos caminhos que os governos estão
traçando para monitorar o presente. A fotografia de hoje é um meio para todas
essas mudanças. É muito provável que minhas observações sobre essas mu-
danças contemplem apenas a proverbial ponta do iceberg. Cientistas, enge-
nheiros, investidores de risco, e autores de ficção científica podem ter ideias
mais bem definidas sobre aonde estamos indo. Eu certamente não tenho. O
que parece evidente, entretanto, é que a onda de invenções e a velocidade
com que os novos produtos criaram mercados enormes e neles tiveram êxito
ainda não chegou ao fim. Tudo parece possível nesse “admirável mundo novo”
que se gaba de ter carros que dispensam motoristas e robôs para todos os fins.
A cultura popular ainda vai enfrentar grandes choques. O sistema jurídico vai
necessariamente precisar se engajar nessa batalha sempre que as inovações e
visões de hoje desafiarem valores fundamentais.

10 ECHR, Requerimento nº 35623/05, Julgamento 2 de setembro de 2010.


88 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Bibliografia

ARANOV, Rita. “Privacy in a Public Setting: The Constitutionality of Street Sur-


veillance”, in Q.L.R. vol. 22, n. 4, 2004, 759-810.

DAVIS, Fergal; MCGARRITY, Nicola; WILIAMS, George (eds.). Surveillance,


Counter-Terrorism and Comparative Constitutionalism. Abingdon: Routledge,
2014.

HERSHBERGER, Andrew (ed.), Photographic Theory: An Historical Anthology.


Chichester: Wiley-Blackwell, 2014.

KERR, Orin. “The Mosaic Theory of the Fourth Amendment”. In: Michigan Law
Review, vol. 111, n. 3, dezembro 2012, pp. 311-354.

MAURO, Allesandra (ed.). My brother’s keeper: Documentary Photographers


and Human Rights. Roma: Contrasto, 2007.

SONTAG, Susan. On Photography. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1973.

SULLIVAN, Kathleen and GUNTHER Gerald (eds.). Constitutional Law 17a ed.
New York: Foundation Press, 2010.
DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA
CAVERNA
Eduardo Muylaert1

Nosso século é mais e mais o século do visual, o século da imagem.


(Joaquim Falcão, 2007).

Uma imagem, mais uma vez, chocou o mundo. Até os já acostumados à visão do
planeta enrubescido pelos reflexos perversos do elemento fogo se assustaram.
Pudemos ver, em fevereiro de 2015, o piloto jordaniano Muath al-Kasasbeh, de
26 anos, sendo queimado vivo dentro de uma jaula. A imagem, estampada em
todos os jornais, foi extraída do vídeo divulgado pelo ISIS, a organização terro-
rista autodenominada Estado Islâmico. Horas depois, em retaliação, a Jordânia
enforcaria um homem e uma mulher condenados por terrorismo. Sem as ima-
gens, o enforcamento acabou tendo menos impacto. A única rede americana a
divulgar, em seu site, os 22 minutos da agonia do piloto foi a conservadora Fox
News. Os simpatizantes do ISIS, por sua vez, espalharam os links pelo Twitter.
Paradoxalmente, os dois lados pareciam acreditar que a divulgação das ima-
gens podia servir a seus ideais. Enquanto isso, o mundo voltava a se perguntar:
há lógica na barbárie?
Uma imagem, mais uma vez, foi usada para mobilizar a opinião pública. O
Centre Pompidou, em Paris, afixou em sua fachada uma enorme foto da cami-
nhada de protesto contra o atentado à redação do jornal humorístico Charlie
Hebdo, invadido no fatídico 7 de janeiro de 2015. Terroristas bem treinados
assassinaram friamente jornalistas e funcionários, a pretexto da profanação da
imagem do profeta Maomé.
Uma imagem, mais uma vez, foi usada para provar um fato. Os jornais de
fevereiro de 2015 reproduziram uma foto de Fidel Castro, divulgada nos sites
oficiais cubanos, para demonstrar que o líder ainda estava vivo aos 88 anos.
Em janeiro de 2015 o mundo celebrou com tristeza os 70 anos da liberação
do campo de concentração de Auchwitz. As fotos das cerimônias, na presença
de sobreviventes e chefes de Estado, não dão a mais pálida ideia da dimensão

1 Eduardo Muylaert é advogado criminal, fotógrafo e professor associado da FGV DIREITO


RIO. Foi secretário de Justiça e Segurança, além de Juiz do TRE em São Paulo. Tem o DES
de Direito Público da Faculdade de Direito de Paris II (então Panthéon-Sorbonne) e o CEP
do Institut des Sciences Politiques de Paris. É comentarista convidado do Jornal da Cultura
(TV Cultura, SP), tem vários livros publicados e obras nos acervos da Pinacoteca, do MAM/
SP, MAM/RJ e do MACS.
90 CADERNOS FGV DIREITO RIO

do horror então vivido. Em contrapartida, um pequeno livro, Écorces (Cascas),


de Georges Didi-Huberman (2011), analisa quatro fotografias de época, feitas
por prisioneiros, e outras feitas agora por ele, nos mesmos lugares para, a partir
da memória, chegar às inquietações do presente. Livros, filmes e até um web-
documentário gratuito foram lançados para lembrar a maior cicatriz da história
da humanidade, mas ainda há quem negue o holocausto.
Queimar, sufocar e matar seres humanos não é propriamente uma novida-
de, muitas vezes com o beneplácito do direito. No século XVI, um advogado foi
enforcado no pátio do Palácio de Justiça de Paris, por ter escrito um livro con-
siderado injurioso contra o rei. Os exemplares apreendidos foram queimados
sob o cadafalso. Um livro licencioso, ou mesmo filosófico, considerado ofensivo
à moral cristã, podia levar à morte:

Foi no século XVII que a Inquisição fez o mais terrível uso


de seu poder. Desde o seu estabelecimento, e durante o gover-
no dos Philippes, tinha ela obtido o mais amplo favor das leis, e
aumento de jurisdição [...] Os autos da fé eram frequentes. Até
o ano de 1732 apareceram nos cadafalsos, em hábito de infâmia,
penitenciados por este tribunal, 23.068 réus, e foram condenados
ao fogo 1.454.

Como observa, em 1861, Coelho da Rocha, lente da Universidade de Coim-


bra, “com o pretexto do zelo da religião, justificavam os moralistas os meios
pérfidos que o governo mesmo muitas vezes empregava para os oprimir” (RO-
CHA, 1861, p.225).
Vemos as imagens, lemos os textos, e não podemos deixar de constatar
que leis e normas, sejam jurídicas, religiosas, ou ambas, com supostos propó-
sitos elevados, quando não civilizatórios, estão sempre por perto desses sacri-
fícios humanos.
Outra imolação pelo fogo, felizmente apenas simbólica, foi provocada
pelo fotógrafo, poeta e cineasta de vanguarda Hollis Frampton, numa obra
considerada profética, embora pouco conhecida. Frampton era próximo do
minimalismo, movimento que completa 50 anos, e conviveu com Carl André
e Frank Stella em Nova Iorque. Seu instigante curta-metragem Nostalgia, de
1971, se concentra na visão estática de um fogareiro elétrico, desses redondos
de espiral, sobre o qual são depositadas fotografias que queimam lentamente,
com as imagens desaparecendo aos poucos e se transformando em cinzas. O
sacrifício é acompanhado por um texto cujas últimas palavras são: “Aqui está!
Olhem! Vocês veem o que eu vejo?” Estaria em questão o destino das imagens?
Outro tipo de chama move o filme, analisa Rachel Moore: o calor que surge
DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 91

quando duas coisas se esfregam uma contra a outra, no caso palavras contra
imagens. Cada foto queimada libera a imagem de seu lugar fixo na história,
para atingir nova função de significado, permitindo, na linguagem de Nietzs-
che, uma relação plástica com o passado. (Hollis Frampton — Nostalgia, Afterall
Books/MIT Press).
Vivemos num mundo em que tudo parece transitório, pessoas, imagens,
regras, a vida. Será que da fricção entre as regras que nos obrigam e as ima-
gens que nos assustam podemos também extrair alguma chama, alguma luz,
algum sinal?

Regras e imagens do homem das cavernas


A história do homem tem 100.000 anos, mas as fotografias e o direito codifi-
cado estão na casa de 200 anos apenas. Direito e fotografia não pertencem
a mundos tão diversos como normalmente se imagina. Vivemos imersos em
regras e em imagens desde as cavernas, há cinquenta mil anos no mínimo, mas
conhecê-las e interpretá-las continua sendo um desafio.
No reino das normas, primeiro vêm as proibições, que acompanham toda
a história da humanidade. O interdito é, em geral, sustentado por uma ameaça
de punição: não comer o fruto proibido, sob pena de expulsão do paraíso. As
regras, no mundo de hoje, integram complexos sistemas sociais, jurídicos e até
religiosos, profundamente entrelaçados.
As imagens que sobreviveram aos cataclismos, à destruição e às guerras
nos ajudam a formular hipóteses sobre como viviam os homens e as mulheres
de cada época, suas crenças, tabus e proibições. E nos obrigam a pensar o
mundo, nosso planeta, nossa casa, família, vizinhos, cada um de nós.
As obras de arte são frequentemente ligadas ao sagrado, sistema figura-
tivo e normativo baseado na fé e muitas vezes paralelo ou complementar ao
sistema jurídico vigente. Embora a fotografia e o direito codificado ainda não
tenham dois séculos, nada mais são do que a versão atual do que os primeiros
artistas deixaram fixado nas paredes das cavernas, nos permitindo tentar saber
como se situavam no mundo e com que rituais e regras viviam.

As imagens do paleolítico
As melhores imagens do paleolítico sobreviveram e foram descobertas por
acaso. No outono de 1940, um rapaz de férias em Montignac, a uma hora de
Paris, passeava com seu cão num bosque próximo ao castelo de Lascaux. A
perseguição de um coelho acabou levando a um buraco que poderia ser uma
saída do castelo, mas se revelou a entrada da caverna onde jazia o magnífico
tesouro, perfeitamente conservado há 17.000 anos. Podemos penetrar nessa
preciosidade pelas imagens, tanto do filme The Cave of Forgotten Dreams, de
92 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Werner Herzog (2011), como do livro Lascaux ou o Nascimento da Arte, que o


filósofo Georges Bataille fez com o editor Albert Skira em 1955.
A arte paleolítica tinha um papel importante na sociedade de seu tempo,
com função ritual e sagrada, associada a uma espécie de magia ou função sa-
cerdotal, deduz Christian Peyre (L’Histoire de L’Art, Larousse, 1995). No século
XIX, houve uma série de interpretações: totemismo, teoria mágica, estudos et-
nográficos. Jean-Michel Geneste, um dos maiores conhecedores das cavernas,
prefere a teoria do sagrado: a caverna seria um santuário, onde as pinturas de
grandes mamíferos indicam proximidade espiritual entre homem e animal (Las-
caux, Gallimard, 2012).
Georges Bataille também situa as figuras de Lascaux como parte de ritu-
ais, com representação precisa da natureza e dos animais de há mais ou menos
200 séculos. As figuras humanas são menos frequentes e normalmente têm
traços vagos. Há figuras femininas com seios e genitais exagerados, as Vênus,
possivelmente ligadas aos ritos de fertilidade, mas em geral as pessoas retrata-
das não têm rosto, olhos, boca ou orelha.

Homo sapiens, o criador de imagens e de proibições


Bataille situa dois eventos como os mais importantes na história da humanida-
de: primeiro, a criação de ferramentas, que deu nascimento ao trabalho e ao
Homo Faber, que ainda era um Neandertal. Tanto é uma ferramenta o cinzel
do escultor, como uma barra de ferro, um porrete, uma câmera fotográfica ou
uma alavanca, máquina simples usada há milhares de anos e que foi celebrizada
por Arquimedes com a frase “Dê-me um ponto de apoio e uma alavanca que
moverei o mundo”.
Mais tarde, entre 50 mil e 20 mil anos antes da era cristã, começa a produ-
ção de objetos de arte, estágio que, para Bataille, inaugura a presença do ser
humano integral, o Homo Sapiens, que brinca, ou joga, além de trabalhar.
Enquanto as limitações dos animais decorrem da natureza, as dos huma-
nos decorrem de normas. Há objetos que são sagrados e, portanto, proibidos,
como os restos mortais, que devem ser respeitados e preservados. Entender
Lascaux, sustenta Bataille, é descobrir as proibições, a primeira das quais se re-
fere a esse respeito aos despojos dos mortos. O autor não encontra evidência,
positiva ou negativa, da proibição do homicídio nas imagens de Lascaux, mas
observa que esta é considerada uma proibição universal. Localiza, entretanto,
outro conjunto claro de interditos: a vedação do incesto, do contato com as
mulheres nos períodos críticos, bem como na gravidez e no nascimento dos
filhos.
Georges Bataille se convenceu de que tais complexos de interdições exis-
tem universalmente, embora não tenha encontrado registro factual em perío-
DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 93

dos anteriores. Claude Lévi-Strauss, em conferências feitas no Japão em 1986,


quando já chegava aos 80 anos, destaca as características do fenômeno huma-
no e o papel do proibido e da ferramenta:

Sempre e em toda parte o homem é um ser dotado de linguagem articu-


lada. Ele vive em sociedade. A reprodução da espécie não é deixada ao acaso,
mas sujeita a regras que excluem um certo número de uniões biologicamente
viáveis. O homem produz e utiliza ferramentas, que emprega em técnicas varia-
das. Sua vida social se exerce em conjuntos institucionais cujo conteúdo pode
variar de processos; certas funções — econômica, educativa, política, religio-
sa — são regularmente asseguradas (L’Anthropologie face aux problèmes du
monde moderne, Seuil, 2011, p.17/18).

A interpretação das imagens


Até hoje há muitos aspectos inexplorados e outros bastante controversos em
relação às imagens de Lascaux. Apesar da ameaça de deterioração, que levou
à restrição de visitas, o cuidadoso registro fotográfico as salvou, depois de su-
perar muitas dificuldades.
A relação entre a imagem e o real continua no centro das discussões fi-
losóficas e ainda desperta paixões, como demonstram as leituras de Gisèle
Freund, Roland Barthes, Vilém Flusser, Susan Sontag, Walter Benjamin, Rosa-
lind Krauss, Jacques Rancière e tantos outros. Hoje, a visão antropológica, ado-
tada por Etienne Samain (O Fotográfico, 1998) e sua discípula Fabiana Bruno,
incorporando a visão de Georges Didi-Huberman (Diante da Imagem, 2014, A
Imagem Sobrevivente, 2013, Diante do tempo — História da arte e anacronismo
das imagens, 2015), continua sendo das mais promissoras.
Para nós, aqui e agora, o importante é apenas separar a fotografia da coisa
fotografada. Uma coisa é a caverna de Lascaux, outra são as imagens feitas em
seu interior. O fato de serem consideradas como documentos não lhes retira a
implacável relatividade.
“Passamos noites inteiras trabalhando sob a terra”, registrou o editor Skira,
“sob a luz intensa dos projetores voltados a esse mundo mágico cujos detalhes
e mudanças de cor, invisíveis sob a luz diminuta instalada para os visitantes,
despontavam vívidos em sua beleza original”.
Aí os obstáculos aparecem:

Muitas vezes achamos que nosso trabalho tinha terminado.


Mas, a cada vez, depois de termos revelado as chapas e conferido
os resultados, decidíamos começar tudo de novo, pois o que o
olho vê não é necessariamente o que a câmera registra. A ver-
94 CADERNOS FGV DIREITO RIO

dade é que as pinturas de Lascaux misteriosamente se movem


e mudam. Elas não são pintadas numa superfície plana uniforme
e nem sempre podem ser vistas de um ângulo normal, de alguns
metros de distância. Esses artistas das cavernas tiraram toda van-
tagem possível tanto da superfície irregular das paredes de pedra
como da perspectiva de cada uma das várias salas. A cada passo,
as coisas mudam, a ponto de quase não poderem ser reconheci-
das. Um touro parece abaixado e com o pescoço retraído; mude
de posição e o animal adquire corpo alongado e a cabeça de uma
girafa. Qual é o ponto de vista ideal? [...] As pinturas de Lascaux
literalmente desafiam a câmera; frequentemente, quando maior
profundidade de campo é desejada, o fotógrafo, ao recuar, é bar-
rado pelo outro lado do corredor estreito. (BATAILLE, 1955, p. 5).

Assim como as imagens, também as regras e a realidade à qual se referem


vão mudando de acordo com o ponto de vista e a perspectiva com que são
examinadas. E nem sempre temos distanciamento suficiente para avaliá-las. A
interpretação e aplicação das normas são desafios muito maiores do que se
poderia imaginar, mesmo daquelas mais comuns, que devemos obedecer no
dia a dia. O que dizer, então, das que parecem ter vindo de outro planeta, ou
do tempo das cavernas?

As luzes do século XIX


A invenção da fotografia, em 1838, ocorre num século marcado pela busca de
luzes e pela crença num mundo mais justo. O ocidente, imbuído da filosofia do
Iluminismo, procurava superar os traumas do absolutismo e caminhar para o
estado moderno.
Henry Cartier-Bresson afirma, no seu O Imaginário Segundo a Natureza
(1996), que “a fotografia não mudou desde a sua origem, exceto nos seus as-
pectos técnicos, o que para mim não constitui uma preocupação maior” (p. 35).
André Rouillé, primeiro a defender na França uma tese de doutorado so-
bre fotografia, em 1980, analisou seu aparecimento no século XIX em função da
sociedade industrial e do surgimento da máquina, com processos físicos e quí-
micos atuando na produção e substituindo a ação humana. Walter Benjamin já
começara sua Pequena História da Fotografia, de 1931, afirmando que “A névoa
que recobre os primórdios da fotografia é menos espessa que a que obscurece
as origens da imprensa; já se pressentia, no caso da fotografia, que a hora de
sua invenção chegara” (BENJAMIN, 1995, p. 91).
Rouillé se angustia hoje com a questão da fotografia digital, ligada ao
computador, à rede, a um regime de verdade totalmente diferente e que, se-
DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 95

gundo ele, ao exigir tratamento com aplicativos e alcançar grande velocidade


de circulação, representa uma mudança radical, uma mudança de natureza em
relação à fotografia analógica. Para demonstrá-lo, entretanto, ele nos promete
um próximo livro, pois seu A fotografia: entre documento e arte contemporâ-
nea já tem 10 anos.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, proclamara
os princípios básicos de igualdade, legalidade e presunção de inocência. No
campo básico das proibições, temos a afirmação de que a lei só pode vedar as
ações prejudiciais à sociedade. Que a única distinção possível é a das virtudes
e talentos. Que a lei só deve estabelecer penas estrita e evidentemente neces-
sárias. E que a sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público
pela sua administração.
A edição, em 1804, do Código Civil Francês, fruto direto das concepções
da Revolução, é uma das balizas do século XIX. Dividido em três livros, dispõe
sobre as pessoas, os bens e a propriedade. A única das minhas coisas que vai
sobreviver é o Código Civil, teria declarado Napoleão Bonaparte. Ainda em
vigor na França, apesar de sucessivas reformas, o Código de Napoleão serviu
de modelo para inúmeros países, entre os quais a Áustria, a Itália, Portugal e o
Brasil.
Pouco antes da era da fotografia, o Brasil abriu seus portos (1808), decla-
rou independência (1822) e teve a primeira Constituição (1824). Logo depois,
começaria o ensino jurídico, com a criação das escolas de direito de São Paulo
e do Recife (1827). Até hoje se considera que a modernização e aprimoramento
dos sistemas jurídicos dependem da qualidade da educação legal.
O Código Criminal de 1830 e o Código de Processo Criminal de 1832 vie-
ram substituir as cruentas Ordenações Filipinas, editadas no começo do século
XVII, mas que ainda se aplicavam no Brasil.
Quando a lei comercial brasileira surge, em 1850, para atender às necessi-
dades dos negócios, a invenção da fotografia já havia sido protegida na França.
Nosso Código Civil só viria em 1916, quase 25 anos depois da abolição da escra-
vatura e da proclamação da república.
O século XIX do começo da revolução industrial e da ascensão da burgue-
sia cultuava o romantismo na literatura: Goethe, Stendhal, Musset, Victor Hugo,
Álvares de Azevedo, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Balzac. E a crítica
literária já tinha seus tenores: Saint Beuve e Baudelaire.

O papel da fotografia
Um jornal de literatura e belas artes fundado em Paris em 1830, L’Artiste, muda
de mãos em 1856, inaugurando seu melhor período, com Téophile Gautier
como chefe de redação. Já no número inaugural da nova fase proclama que as
96 CADERNOS FGV DIREITO RIO

artes vivem um segundo renascimento: “o conhecimento das leis que regem o


universo e as relações dos seres constitui a ciência, enquanto é próprio da arte
exprimir o universo e as relações que nos ligam a todos os seres” (p. 95). Como
se vê, as ideias de ciência, leis, relações e arte, estão — bem ou mal — sempre
associadas.
A camera obscura não é novidade, Aristóteles já a descrevera e os pinto-
res usavam há muitos anos esse dispositivo ótico que projeta numa placa de
vidro opaco a imagem da coisa observada. Como nas atuais câmeras pinhole
(buraco de agulha), a mágica se dá graças à passagem da luz refletida por um
buraco minúsculo. Na verdade, o utensílio era quase uma câmera fotográfica.
Faltava apenas o material sensível, filme ou sensor, para registrar o que o artis-
ta via e copiava. L’Artiste sustentava que a camera obscura podia ser de gran-
de utilidade aos pintores de paisagens e mesmo aos retratistas: “Que importa
ao espectador que contempla um Canaletto, um Guardi, um Peter Neefs, um
Hooch, um Turner, um Ziem, que esses quadros tenham sido traçados à vista
ou por um processo mecânico? Se a máquina escreveu, foi o pintor que ditou”.
(L’Artiste:  journal de la littérature et des beaux-arts, 1856, 6a. série, tomo II,
p.86, in https://books.google.com.br/books?id=wIadBCZUgrcC&pg=PA3&dq
=l%27artiste+revue+1856+nouvelle+phase&hl=en&sa=X&ved=0ahUKEwi91JK
voc3JAhXFE5AKHYyUCnoQ6AEIHzAA#v=onepage&q=l’artiste%20revue%20
1856%20nouvelle%20phase&f=false)
A questão do papel da fotografia vem desde sua invenção e é discutido
na mesma revista: “A fotografia por um momento deu medo aos artistas. Eles
acharam que a luz e a química iam lhes fazer concorrência! Michelangelo, Ticia-
no, Rembrandt teriam rido. Mas os pintores de nossos dias, falamos da maioria,
que executam seus quadros com muitos modelos, que copiam a natureza tão
fielmente quanto possível, e que fazem arte à mercê do pincel, ou segundo as
regras de Euclides, têm razão de temer a descoberta de Nicéphore Nièpce, de
Daguerre e de Talbot. Melhor para a pintura! Todos os realistas e todos os geô-
metras virarão fotógrafos; os verdadeiros pintores ficarão, e a fotografia, ouvi-
da a respeito, lhes poupará muitos aborrecimentos e muitas penas”. (L’Artiste,
idem).
Edgar Alan Poe recebeu a invenção com entusiasmo: “O instrumento em si
deve, sem dúvida, ser visto como o mais importante, e talvez o mais extraordi-
nário triunfo da ciência moderna.” (O Daguerreotipo, 1840). Já Charles Baude-
laire, em 1859, tinha grandes restrições:

Se for permitido à fotografia substituir a arte em qualquer


uma de suas funções, ela logo será totalmente suplantada e cor-
rompida, graças à aliança natural que encontrará na tolice da mul-
DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 97

tidão. É preciso então que ela retorne ao seu verdadeiro dever,


que é o de ser a serva das ciências e das artes, a mais humilde das
servas, como a imprensa e a estenografia, que nem criaram e nem
suplantaram a literatura.2

A propriedade de alguns materiais, como os sais de prata, sensíveis à luz,


era conhecida há muito tempo, mas o fenômeno era passageiro. Quando se
retira o bule deixado sobre uma bandeja de prata, vê-se logo a marca mais
clara do lugar onde a peça ficava. Exposta à luz, em instantes a bandeja toda
escurece. O que faltava para a invenção da fotografia era um processo para
fixar a imagem assim produzida, o que foi conseguido, em grande sincronismo,
por Fox Talbot, na Inglaterra, Daguerre, Nièpce e Bayard, na França e, como
se soube mais tarde, pelo francês Hercule Florence no Brasil. As primeiras ima-
gens estão conservadas até hoje e é impressionante a qualidade artística do
material experimental do alvorecer da fotografia. O próprio imperador Dom
Pedro II adquiriu, já em 1840, um aparelho daguerreotipo, com o qual produziu
diversas imagens, ao mesmo tempo em que apoiava os fotógrafos e formava
importante coleção que chegou a ter trinta mil imagens.
Do mesmo modo como a fixação das imagens criou a fotografia e a possi-
bilidade de sua reprodução, que logo se espalharia pelo mundo, a codificação
do direito dos povos de tradição latina e sua publicação tornou-o acessível e
passível de ampla discussão, comparação e mesmo contestação. É o que ex-
ploram os trabalhos que estudam a origem e o alcance do Código Civil francês,
como o clássico de André— Jean Arnaud, Les origines doctrinales du Code civil
français (1969), e artigos que estão na internet, como Origine, signification et
portée du Code civil en France, de Catherine Delplanque.

A verdade na caverna
Nem pela fotografia, nem pelo direito, se pode chegar à verdade. Nenhum dos
dois campos tem essa pretensão, ou objetivo, mas ainda há muita confusão a
respeito. Todo mundo já ouviu falar na alegoria da caverna, mas poucos lem-
bram bem do que se trata. Platão, nascido em Atenas quatro séculos antes da
era cristã, trata da organização política e do ser humano na sua clássica Repú-
blica. No livro VII, aparece o mito da caverna, paradigma definitivo da questão
aparência versus realidade e do processo de conhecimento.
Em singelo resumo, há homens presos desde a infância numa caverna,
todos acorrentados e voltados para uma parede onde a luz que vem de fora
projeta cenas do exterior. Como é natural, eles tomam as sombras por reali-

2 Disponível em: <http://www.entler.com.br/textos/baudelaire2.html>.


98 CADERNOS FGV DIREITO RIO

dade. Embora o filósofo contraponha o conhecimento grosseiro, que vem dos


sentidos, ao conhecimento verdadeiro, que viria das ideias, para nós o que im-
porta aqui, mais do que as implicações filosóficas, é justamente a parábola da
diferença entre os registros que fazemos, seja com o cérebro, o olho, ou com
uma ferramenta como a câmera, e as coisas a que nossos registros se referem.
Susan Sontag abre assim seu clássico Sobre Fotografia, de 1973: “A huma-
nidade permanece, de forma impenitente, na caverna de Platão, ainda se rego-
zijando, segundo seu costume ancestral, com meras imagens da verdade”. E
retoma depois: “A realidade sempre foi interpretada por meio das informações
fornecidas pelas imagens; e os filósofos, desde Platão, tentaram dirimir nossa
dependência das imagens ao evocar o padrão de um modo de apreender o real
sem usar imagens” (SONTAG, 2004, p. 169).
Da mesma maneira como o ser humano é um criador incansável de proibi-
ções e outros tipos normativos, é também um eterno narrador e colecionador
de imagens e histórias. É interessante tentar ver como uma coisa se imbrica
com a outra, pois não há poder sem ficção, como também não há anomia na
arte. Nenhum domínio do conhecimento escapa à ficção, que vai muito além da
literatura, do cinema e do teatro, penetrando na política, na justiça, na religião,
na publicidade e nos registros do cotidiano. No limite, deixando de lado toda
postura idealística, é impossível separar o “joio” do “trigo”, pois realidade e
ficção se interpenetram de maneira indissociável. Depois, podemos perguntar
ainda: num mundo iníquo, a ficção é o veneno que mata ou o maná salvador?

A ficção na fotografia
A fotografia, antes de se pretender arte, já brincava com a realidade, desde
o nascedouro e por todo o sempre, amém. Hippolyte Bayard se decepcionou
quando a Academia, que havia consagrado o daguerreotipo como grande in-
venção, negou reconhecimento ao seu importante processo fotográfico. Como
resposta, encenou em 1840 um autorretrato como afogado, escrevendo no ver-
so: “O cadáver que vocês veem aqui atrás é do Senhor Bayard, inventor do pro-
cesso que acabam de observar e do qual verão os maravilhosos resultados. (...)
O governo, que havia dado tanto ao Senhor Daguerre, disse nada poder fazer
pelo Senhor Bayard, e este se afogou”3 O Estado francês, efetivamente, deu
uma pensão anual de 10.000 francos a Daguerre e seu sócio, o filho e herdeiro
de Nièpce, mas Bayard só conseguiu 600 francos para compra de material fo-
tográfico. Coisas da lei e do governo, que o primeiro selfie de ficção questionou
com muito mais vigor do que qualquer petição ou recurso.

3 Disponível em: <http://culturevisuelle.org/icones/2865>.


DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 99

Quando observamos com cuidado o famoso daguerreotipo de 1938, em que


Daguerre retrata o Boulevard du Temple em Paris, não vemos nenhuma carruagem
ou pedestre, dado o longo tempo de exposição, que faz desaparecer tudo que se
move. Ao mesmo tempo, vemos em primeiro plano um homem com as botas
sendo engraxadas. Para obter esse efeito, era preciso pedir que o cavalheiro e o
engraxate ficassem imóveis por uns quinze minutos, ao menos. Mas a fantasia não
era privilégio dos pioneiros franceses: uma imagem famosa de Fox Talbot, de 1843,
mostra ferramentas de jardim e um chapéu de palha cuidadosamente dispostos,
em organizada produção, recurso que se tornaria corriqueiro na publicidade.
O inglês Roger Fenton é considerado o primeiro fotógrafo de guerra, pois
recebeu da rainha Vitória a missão de documentar a guerra da Crimeia, em
1855. Numa época em que os equipamentos não conseguiam fotografar os
soldados em ação, a solução era mostrar a devastação dos campos após as
batalhas. Sua imagem mais famosa, o Vale da Sombra da Morte, título tirado
do Salmo 23 da Bíblia, foi composta com balas de canhão que haviam sido re-
colhidas anteriormente e funciona, segundo Garry Badger, como prova de que
“uma boa metáfora pode frequentemente levar vantagem sobre um bom fato”
(The Genius of Photography, 2007, livro e filme). Isso serve para os processos
judiciais também, como sabem muito bem os frequentadores dos pretórios.
A supressão também é um grande recurso. Uma senhora da sociedade re-
comenda colocar os namorados das netas — sempre provisórios — nos cantos
dos retratos, de onde é fácil extraí-los com uma simples tesoura. O processo é
usual em política, sendo usado exaustivamente em países ditatoriais. Há todo
um livro de Alain Jaubert, Le Commissariat aux Archives (1986) falando das fo-
tos que falsificam a história, com personagens que aparecem e desaparecem e
outros truques. Os cubanos viram, em 1963, uma foto de Fidel Castro em visita
a Moscou, posando ao lado de Nikita Kruschev, então chefe de partido e de go-
verno, e do presidente Leonid Brejnev. O cargo de Brejnev era apenas simbólico
e, na União Soviética, ele desapareceu da foto. Apesar da cautela, Kruschev foi
derrubado do poder no ano seguinte, justamente por Brejnev, que o substituiu
como secretário-geral do partido comunista. Mas há também fotos que desapa-
recem em Cuba. Durante a visita triunfal de Fidel ao Chile de Allende, em 1971,
aparece com eles na foto oficial um general então desconhecido, que vem a ser
justamente o futuro ditador Augusto Pinochet, que massacrou Allende. A foto
tornou-se altamente inconveniente e sumiu de circulação em Havana.

A expansão da fotografia
O objeto da fotografia, no século de sua invenção, pode ser classificado nas
mesmas categorias do Code Civil: pessoas, bens, propriedades. As fotos de
paisagens do início da fotografia hoje atingem valores incalculáveis, na casa
100 CADERNOS FGV DIREITO RIO

de milhões de dólares. Na época em que as viagens eram difíceis e para pou-


cos, a fotografia trazia imagens do Egito, da África, da Ásia e de seus povos,
estimulando fantasias, mas criando uma visão etnográfica eurocêntrica, como
demonstrado, entre outros, por James R. Ryan em Picturing Empire — Photo-
graphy and the Visualization of the British Empire (Chicago, 1997).
Na metade do século XIX, a febre foi o estereoscópio, que simulava três
dimensões, a partir da visualização simultânea de duas imagens com perspecti-
vas ligeiramente diferentes. Com ele, podiam-se ver paisagens de vários países
e povos com a ilusão de mais realismo. Oliver Wendell Holmes, o notável jurista
e juiz da Suprema Corte Americana, foi seu grande entusiasta (http://www.
theatlantic.com/magazine/archive/1859/06/the-stereoscope-and-the-stereo-
graph/303361/). Ainda encontramos em feirinhas essas placas produzidas aos
milhares, com duas imagens lado a lado que parecem iguais, e até alguns apa-
relhos usados para sua leitura. Uma revista da época chega a se queixar da
prostituição desse nobre instrumento, que estava sendo usado para mostrar
casamentos, batizados, historietas e até cenas picarescas, como na série Pro-
blemas da Vida de Solteiro.
Na mesma época, Julia Margareth Cameron, tia-avó de Virginia Woolf, fa-
zia suas fotos etéreas e desconcertantes, fugindo ao realismo até então domi-
nante. Severamente combatida, a obra de Cameron é hoje tida como das mais
expressivas da história da fotografia. Na França, Nadar já era famoso com seu
atelier de retratos, que vão de Baudelaire a Sarah Bernhardt. Foi nesse atelier,
em 1874, que houve a primeira exposição dos impressionistas, incluindo Monet,
Degas, Cézanne e Renoir. É conhecida sua amizade com os escritores, inclusive
Proust, que tinha uma relação intensa com a fotografia. Dir-se-ia que, às vezes,
para Proust, a posse de uma fotografia vale mais que a posse do original, ava-
liou o húngaro Brassaï: “Proust mais uma vez proclama a virtude insubstituível
das fotos, cuja coleção tanto ardor lhe exigira ao longo da vida. Era por inter-
médio da fotografia, encontro prolongado, que ele conseguia observar à vonta-
de as particularidades de um rosto, estudar como em um tratado as belezas e
singularidade de uma criatura e, assim, fazer voluptuosas descobertas” (Proust
e a Fotografia, 2005, p.98/99).
Honoré Daumier, além de escritor e fotógrafo, ficou famoso pelas carica-
turas inclementes que deixou de advogados e juízes, nas conhecidas gravuras
Les Gens de Justice, que até hoje enfeitam muitos escritórios de advocacia. Em
1832, Daumier chegou a ser preso, depois de um ataque ao rei Luís Felipe.
Outra moda do século XIX foram as Cartes de Visite, verdadeiras precur-
soras dos selfies de hoje em dia. A máquina, patenteada por Disdéri em 1854,
tinha de 4 a 8 lentes e fazia vários retratos ao mesmo tempo, para cada um ser
colado em um cartão. A celebridade começava a ser construída pela imagem e,
DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 101

com os preços mais baixos do processo, todos queriam ter seu cartão de visita
ilustrado para dar, trocar, enviar pelo correio ou colar em álbuns. Milhões des-
ses cartões foram produzidos, ampliando o campo da fotografia e sua difusão.

Chegando ao século XX
O primeiro jornal a publicar uma fotografia, em 4 de março de 1880, foi o New
York Daily Graphic. A reprodução fotográfica em livros e jornais foi facilitada e
barateada com o uso do halftone, o meio-tom que caracteriza o pontilhado dos
clichês e já apontava para a expansão da imprensa no século XX.
A primeira câmera Kodak surgiu no ano da Lei Áurea, 1888, com o slogan
“Você aperta o botão, nós fazemos o resto. A única câmera que qualquer um
pode usar sem instruções”. A partir daí, o instantâneo passou a se espalhar e a
popularização da fotografia, com Charles Eastman vendendo sua Brownie a um
dólar, abriria as portas para a fotografia popular do século XX. Não é à toa que o
filósofo Pierre Bourdieu, ao estudar os usos sociais da fotografia, a caracterizou
como uma arte de classe média, inclusive, mas não só, pela acessibilidade das
ferramentas (câmeras) e facilidade de seu uso. O grande Henry Cartier-Bresson
lembra que, como muitos outros garotos, entrou no mundo da fotografia com
uma Brownie de caixão, que usava para colher instantâneos nas férias.
O século XX trouxe mais inovações e mudanças do que todos os períodos
anteriores, abrindo caminho para o que, confortavelmente ou não, somos hoje.
Tudo se acelera, a tecnologia avança, alcançamos a Lua, estamos conectados,
mas o planeta Terra continua devastado por guerras, destruição, fome, epide-
mias, ódios. O direito e a fotografia não têm como escapar a essas realidades,
das quais ora são meros espectadores impotentes, ora agentes tentando intervir.
Eugène Atget andava por Paris com sua pesada câmera, por volta de 1900,
e deixaria uma obra maravilhosa de documentação da cidade, só reconhecida
mais tarde. Os irmãos Lumière começavam a exibir seus filmes, mudos, é claro.
Nos Estados Unidos, Alfred Stieglitz editava Camera Notes e ajudava a fundar
a Photo-Secession, que até o fim da guerra de 14-18 seria fiel ao pictorialismo
à americana. Na Alemanha, August Sander começava sua longa série de retra-
tos sobre as profissões e condições sociais, que foi proscrita no nazismo, pois
sua visão da realidade se distanciava muito do modelo ariano idealizado por
Hitler. Na América, Edward S. Curtis convence J. P. Morgan a financiar a pu-
blicação de The American Indian, sua monumental coleção em vinte volumes,
obra magnífica, mas que traz uma aura de heroísmo e glorificação bem distante
da realidade. Em contrapartida, Lewis S. Hine e Jacob Riis inauguram o docu-
mentário social, fotografando os imigrantes, a pobreza e o trabalho infantil em
Nova Iorque. Em 1929, enquanto a crise decorrente do crash da Bolsa devas-
tava os Estados Unidos, na Europa a fotografia moderna, com destaque para
102 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Lazlo Moholy-Nagy, era admirada e discutida na exposição Film und Photo, em


Stuttgart.

O mundo real e as imagens


Uma visão menos idealizada da cena americana foi produzida, a partir de 1938,
por Arthur Feelig, repórter conhecido como Weegee, o único autorizado a usar
um rádio portátil da polícia de Nova Iorque. Ele costumava chegar aos locais de
crime antes das autoridades e revelava as chapas num laboratório improvisado
no porta-malas de seu Chevrolet. Weegee só ia dormir depois de ter vendido
os flagrantes a um dos jornais locais, por 5 dólares. Seu estilo realista só obteve
reconhecimento quando as primeiras fotos foram compradas pelo MOMA, em
1945, ano de seu livro Naked City. O filme The Public Eye, de 1992, é inspirado
na vida de Weegee, mas não teve boa crítica.
O lançamento das câmeras de 35 milímetros, especialmente a Leica, com
sua mobilidade, permitiu um novo tipo de fotojornalismo e o surgimento dos
trabalhos de Cartier-Bresson, Eisenstadt e Kertèsz. Embora a ampliação das fo-
tografias fosse possível desde 1850, ela foi pouco usada no século XIX, quando
os negativos eram maiores e as cópias feitas por contato. A partir de 1925, com
a banalização dos negativos de 35 mm, a ampliação se tornou indispensável.
Cartier-Bresson pondera no seu O Momento Decisivo (1952) que “nossa
atividade de fotorreportagem tem apenas trinta anos de existência. Atingiu a
maturidade devido ao desenvolvimento das câmaras de fácil manejo, das len-
tes mais rápidas e dos filmes também mais rápidos, de grão fino, produzidos
pela indústria cinematográfica. A câmara é para nós um instrumento e não um
belo brinquedo mecânico.”4
Brassaï fotografou a Paris noturna, enquanto Bill Brandt fazia o mesmo em
Londres. Lisette Model, mestra de Diane Arbus, fotografou nos anos 40 os imi-
grantes do Lower East Side de Nova Iorque. Ela trabalhava rotineiramente para
a Harper’s Bazaar, mas muitas vezes suas fotos foram recusadas, inclusive o
lindo trabalho que fez com uma companhia de dança do Harlem. Alexey Brodo-
vitch, que dirigiu a revista até 51, foi bem claro quanto às ideias da publicação:
“Hearst não vai permitir fotos de negros na sua revista”. O Ulysses, de James
Joyce, foi publicado em Paris por Silvia Beach em 1922, mas proibido nos Esta-
dos Unidos até 1931, quando a justiça o liberou, numa sentença que fez história.
Como resposta à crise de 29, foi criada a FSA, a Farm Security Administra-
tion, que documentou a vida americana durante a depressão. Desse trabalho
participaram grandes fotógrafos, como Walker Evans, Carl Mydans e Gordon
Parks, e surgiram obras primas como Migrant Mother, de Dorothea Lange. Ha-

4 Disponível em: <https://social.stoa.usp.br/escolafocus/blog/o-momento-decisivo-49802>


DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 103

via, entretanto, um controle do diretor, o sociólogo Roy Stryker, que destruía


as imagens consideradas muito negativas, pois o programa visava encorajar os
americanos e difundir um humanismo compatível com o New Deal de Roose-
velt.
Em 1936, surge a revista Life, com quase quinhentos mil exemplares, para
se tornar um marco na história do fotojornalismo. Life escreveu a história, com
a cobertura fotográfica da segunda guerra e das outras que viriam. Na Europa,
Paris Match chegou a ter quase dois milhões de exemplares em 1972.
Em 1944, a Kodak lançou o negativo colorido, enquanto Robert Capa fazia
as famosas fotografias nubladas do desembarque dos aliados na Normandia.
Quando as imagens da Alemanha liberada foram publicadas, em 1945, o mundo
entrou em transe diante do horror.
Cada uma dessas obras fotográficas acabou influenciando seu tempo,
muitas vezes gerando uma ação política e social visando corrigir e prevenir
distorções e atrocidades. Até hoje se diz que o que o olho não vê, o coração
não sente. Cada vez mais, o direito foi protegendo a infância, o trabalhador e
as mulheres. Foram criados tribunais internacionais e o genocídio considerado
crime contra a humanidade. Do trauma da guerra, do repúdio ao fascismo e ao
nazismo, surgiu um novo desejo de paz, de compreensão e de progresso, que
vai se manifestar tanto no campo do direito, como no da fotografia.

Esperanças e decepções do pós-guerra


A democracia brasileira entrou em colapso com o Estado Novo e a Carta de
1937, mas foi restabelecida na Constituição de 1946. O pós-guerra é, no mundo
todo, uma tentativa de conciliação entre os direitos individuais clássicos, os
novos direitos econômico-sociais — os direitos trabalhistas já figuravam nas
leis do período getuliano — e uma vigorosa reafirmação dos direitos políticos e
de restauração dos regimes democráticos. Os constituintes desse período, aqui
como na Europa, têm presente a trágica lembrança do fascismo e do nazismo.
Também na fotografia há um clima de confiança no ser humano, traduzido
na épica exposição The Family of Man, organizada em 1955, no MOMA de Nova
Iorque, por Edward Steichen. São 273 fotos de 68 países, todas de perfil hu-
manista. O enorme sucesso de público a fez circular por vários anos, mas esses
relatos de suposta fraternidade e igualdade foram questionados nos anos 80,
inclusive por Roland Barthes. Com a organização e o tema das imagens, criou-
-se um discurso visando mostrar que, apesar das disputas e da guerra fria, a
vida é igual em todo lugar e a humanidade continua sendo uma grande família:
natureza exuberante, crianças dormindo, sorrisos, casais.
Juan Fontcuberta, um dos mais instigantes pensadores atuais sobre fo-
tografia, analisa a partir daí a questão da fotografia no contexto em que é
104 CADERNOS FGV DIREITO RIO

apresentada. Uma imagem adquire um sentido específico quando colocada no


conjunto de uma obra, organizada num livro ou exposição, ou quando acom-
panhada de uma legenda. A ideia de que a mera interpretação gramatical da
norma é de pouca valia é bastante familiar aos juristas, que sabem que a inter-
pretação sistemática é mais reveladora de sentido.
Quanto à legenda, Fontcuberta relata a indignação dos leitores do sério
jornal alemão Die Zeit com o happening promovido em 1981 pelo americano
Allan Kaprov. Ele escolheu três fotografias banais e as fez publicar por quatro
vezes, em cadernos diferentes do jornal, com legendas inventadas, o que dava
sentidos opostos à mesma imagem. O estranhamento dos leitores foi tal que
a central telefônica do jornal entrou em colapso e muitos ameaçaram cancelar
a assinatura. O jornal recuou e pediu perdão aos assinantes por ter dado carta
branca excessiva a um artista contemporâneo “extravagante” e prometeu nun-
ca mais repetir a experiência. (Joan Fontcuberta, A Informação como Happe-
ning, em O Beijo de Judas — Fotografia e Verdade, 2010).

Acomodação e rebeldia
As estrelas dos anos 50, no cinema, ainda eram Marilyn Monroe e Grace Kelly. A
Lady e o Vagabundo, de Disney, estourava nas bilheterias. A censura continua-
va vigilante, com medo de que o comunismo e as batalhas pelos direitos civis
contaminassem o American Way of Life. Mas, já surgiam sombras de inquieta-
ção com James Dean e Natalie Wood em Rebelde sem Causa, A Leste do Éden,
de Elia Kazan, e até a saia esvoaçante de Marilyn em O Pecado Mora ao Lado.
Em 1958, o livro The Americans, do suíço Robert Frank, com prefácio de
Jack Kerouack, quebra os padrões tradicionais e recebe críticas ferozes, mas
teria uma influência definitiva na nova fotografia americana. Os anos 60 trazem
a revolução, com os Beatles na música e Andy Warhol e Robert Rauschenberg
incorporando as imagens fotográficas ao mundo da arte moderna.
Nos anos 70 a fotografia foi reconhecida e incorporada pelos museus e
pela universidade. Nessa época, os temas que até hoje são um desafio para o
direito foram francamente abordados, mas não sem escândalo. Diane Arbus,
que morreu em 1971, deixou o conforto do mundo da moda para explorar a mi-
séria da condição humana, os deficientes, os desajustados, os freaks; hoje ela é
um dos ícones da fotografia contemporânea e sua obra tem valor incalculável.
Robert Mapplethorpe, fotógrafo negro e homossexual, chocou a América
com seus corpos esculturais de homens, causando escândalo quando expôs
um branco sexualmente submetido a um negro. Em 1990 acabou absolvido
da acusação de obscenidade, motivada pela exposição de seus trabalhos num
museu de Ohio. Depois, Mapplethorpe foi reverenciado numa das galerias do
Guggenheim Museum e é um clássico.
DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 105

Nan Goldin publicou em 1986 sua Balada da Dependência Sexual, descre-


vendo o universo punk em que vivia, a morte dos amigos e sua intimidade
com sexo, drogas e violência. Apesar da vida francamente marginal, a artista
privilegia a ternura em seu trabalho e diz que foi a fotografia que salvou sua
vida. Respeitada e cultuada, Nan Goldin acabou censurada no Brasil, quando
o Centro Cultural Oi Futuro, do Rio de Janeiro, cancelou a exposição que ia
abrir em janeiro de 2012, a pretexto de possíveis problemas com o Estatuto da
Criança e do Adolescente.
Nobuyoshi Araki e Larry Clark também enfrentaram problemas com sua
abordagem explícita da sexualidade, mas têm enorme influência na fotografia
contemporânea, enquanto a justiça, no mundo todo, continua às voltas e sem
saber bem como lidar com o problema da violência, das drogas, do gênero, da
igualdade, do preconceito, da integração social e tantos outros.
A democracia prometida na Constituição de 1946 durou pouco: a partir do
golpe de 1964, vivemos um eclipse terrível, com censura, perseguições, prisões,
torturas e exílio, inclusive de artistas. Após o vigoroso movimento de 1984 pe-
las eleições diretas, veio a Constituição de 1988, com renovada promessa de
respeito aos direitos individuais e à liberdade de expressão. Apesar de reprimi-
das, a fotografia e a arte tiveram papel fundamental na resistência à opressão.
Mas hoje, de novo, inúmeras questões ligadas à liberdade de expressão depen-
dem da justiça.

As cavernas digitais, a nuvem e o terror


A passagem para o século XXI foi marcada pela progressiva implantação da
cultura digital. Só no fim do século XIX, bem depois da invenção da fotogra-
fia, é que Thomas Edson patenteara a lâmpada elétrica. O telefone chegou ao
Brasil logo depois, junto com meio milhão de imigrantes. A televisão veio nos
anos 1950, depois da guerra. Nos anos 90, cem anos apenas depois da lâmpada
elétrica, começaram a telefonia celular e a era dos computadores pessoais e
das câmeras digitais. Nos últimos anos, a Apple forneceu uma quantidade in-
calculável de iPhones e iPads, cada um com sua câmera de altíssima qualidade.
Embora custem bem mais de um dólar, esses aparelhos cumprem hoje o papel
pioneiro das Brownie, da Kodak, empresa que quase desapareceu.
Estamos tão habituados à internet que podemos, num ensaio como este,
apenas citar quase todos os livros e obras, pois são facilmente encontráveis na
rede. Nossas imagens agora estão na nuvem, essa forma contemporânea de ca-
vernas virtuais. O acervo fotográfico da humanidade pôde se salvar graças aos
álbuns e às caixas de sapato. Ainda podemos admirar as fotos de família, todo
mundo tinha as suas. Com o digital, aumentou muito a quantidade de imagens,
mas ainda não há uma cultura popular de tratamento e guarda dos arquivos, o
106 CADERNOS FGV DIREITO RIO

que indica que a maior parte dessa produção pode se perder. As imagens de
Lascaux não eram muitas, mas com a migração do povo que as habitava e as
boas condições naturais de preservação, o tesouro se salvou. O mundo digital
trouxe a multiplicação das imagens, mas as cavernas virtuais, os discos rígidos,
os meios de armazenamento, inclusive na nuvem, não são favoráveis à preser-
vação por mais do que alguns meses ou anos.
Os escritos que Fernando Pessoa guardava num baú de madeira estão
hoje depositados numa caixa-forte no subsolo da Biblioteca Nacional de Por-
tugal, vigiados por câmeras e protegidos até de um terremoto como o de 1755,
que devastou Lisboa. Aliás, estamos todos vigiados por câmeras, desde as que
nos olham na frente de nossos computadores e dos nossos celulares, até as que
estão em cada prédio e em cada poste e são monitoradas inclusive pela po-
derosa NSA, a National Security Administration do governo americano. Apesar
disso, não estamos tão protegidos quanto os papéis do poeta, e nem o mun-
do está protegido. Ao contrário, numa espécie de círculo vicioso, parece que
quanto maior a insegurança, maior a vigilância, e vice-versa.
Vivian Mayer, que é considerada uma das mais importantes street photo-
graphers, trabalhou como babá nos Estados Unidos por 40 anos e sua obra só
foi descoberta depois que morreu, em 2009. Quando Atget morreu, em 1927,
grande parte de seus preciosos negativos de vidro poderiam ter se perdido; fo-
ram salvos ao serem comprados pela americana Berenice Abott, outra grande
fotógrafa, que tinha sido assistente de Man Ray. Hoje, estão no MOMA e foram
objeto de dois dos estudos mais importantes até hoje escritos sobre fotografia:
a Pequena História da Fotografia e A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade
Técnica, de Walter Benjamin.
Lee Miller, que viveu com Man Ray e foi atriz de Jean Cocteau, interpre-
tando a linda estátua de O Sangue de um Poeta, fotografava moda para a Vo-
gue, mas na segunda guerra vestiu uniforme e foi, em companhia de David
Scherman, da revista Life, trabalhar como correspondente de guerra. Miller foi
a primeira mulher a entrar em Buchenwald e Dachau com o exército aliado e
conseguiu registros impressionantes, enquanto muitos de seus colegas homens
passavam mal. Ela fez depois o conhecido autorretrato na banheira de Hitler,
em Munich. Tendo largado a fotografia, morreu doente e depressiva em 1977 e
aí seu filho, Anthony Penrose, achou num sótão o acervo da mãe e descobriu
que a ela tinha sido uma grande fotógrafa. Hoje ele dirige a fundação que cuida
e divulga essa obra em museus, livros e filmes.
Assim como as pinturas de Lascaux, esses são alguns exemplos de precio-
sidades que poderiam ter se perdido, mas que sobreviveram e são importantes
documentos de nossa humanidade. Todas foram salvas graças ao suporte físi-
co que ficou resguardado. A quantidade razoável, e a durabilidade do material,
DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 107

negativo, papel ou pintura, mantidos em ambientes protegidos, garantiu essa


formidável sobrevivência.
Na área do direito, as coleções de repertórios de jurisprudência, que de-
mostravam a pujança dos escritórios e dos tribunais, se tornaram mero orna-
mento. Hoje, a pesquisa se faz pela internet e, em mais alguns anos, todo o
procedimento judicial será informatizado. Sua implantação até hoje enfrenta
problemas, dada a dificuldade de adaptação da enorme burocracia do judici-
ário que chegou a questionar a validade das petições datilografadas, quando
substituíram as petições e sentenças manuscritas. O processo eletrônico ain-
da apresenta deficiências e dificuldades, especialmente para os usuários mais
antigos. E muitas pessoas ainda têm medo de serem julgadas pelas máquinas,
não pelos juízes. Mas os progressos são enormes: na informática e fotografia,
há duas revoluções tecnológicas por ano e, em ritmo menor, todos os sistemas
tendem a melhorar, inclusive o da justiça.
Todos os sistemas que nos cercam, em suma, passaram a depender do
eletrônico, do virtual e da internet, a rede mundial de computadores, pela qual
circulam as informações que recebemos: a movimentação de nosso dinheiro,
as comunicações, as viagens, o trânsito e o fornecimento de água e energia.
Se tais sistemas falharem, o mundo entra em colapso. A preocupação cresceu
ainda mais quando foram divulgados os últimos episódios de guerrilha ciberné-
tica, que já saíram da ficção para assombrar o universo.
O mundo mudou muito depois do ataque às Torres Gêmeas, em 11 de se-
tembro de 2001. A chamada guerra ao terror criou muitas barreiras e chegam
a ser absurdos os níveis de vigilância e de invasão de privacidade. Tenta-se
legitimar até a tortura, o assassinato à distância por drones e as prisões, como
Guantánamo, que escapam ao controle das jurisdições tradicionais.

Dividir e conhecer
O direito tem vários ramos e divisões que formam as disciplinas de seu estudo.
Assim o direito civil, com os pedaços que cuidam das pessoas, das coisas, dos
contratos, das obrigações, das sucessões, da família, etc.; o direito penal, que
trata basicamente dos crimes e das penas; o direito do trabalho e o da seguri-
dade social; o direito comercial, o econômico, o da empresa, o administrativo,
e assim por diante. Tais componentes, entretanto, entrelaçam-se na estrutura
central do sistema jurídico de cada país e, em tese, buscam legitimidade na lei
maior, a Constituição. Esta, por sua vez, estrutura a repartição dos poderes e
das competências, ficando a cargo do legislador a elaboração das normas, do
executivo a sua execução e do judiciário sua interpretação e aplicação, quando
acionado. O juiz comum, em começo de carreira, em geral não é especializado,
julgando casos de qualquer natureza.
108 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Também a fotografia costuma ser tratada e ensinada de maneira dividida,


falando-se em fotografia forense, fotografia científica, de moda, de publicida-
de, de identificação criminal, jornalística, artística, etc. Na verdade, o elemento
constituinte é um só, e os três poderes, na clássica visão de Ansel Adams, são: a
câmera, o negativo, e a cópia ou ampliação. Para adaptação à era digital, basta
incluir o sensor como alternativa ao negativo. E usar o computador e a impres-
sora onde a câmera escura realizava o milagre da revelação e da ampliação.
Em tese, o fotógrafo comum, não especializado, pode fazer fotos de qualquer
dessas coisas, até para concorrer a concursos, apesar de que quase todos co-
meçam com fotos de família, paisagens ou viagens.
Assim como o jurista, muitos fotógrafos se dedicam mais a um campo, em-
bora poucos cheguem a atingir o reconhecimento decorrente do estilo pessoal
ou de uma contribuição importante. No Brasil, podemos destacar, um pouco
arbitrariamente, ao menos alguns cujo trabalho ajuda a compreender nossa ci-
vilização e tem pontos de contato com as questões já suscitadas pelas imagens
de Lascaux.
A suíça Cláudia Andujar (1931) documentou de modo muito especial as
tradições e o modo de vida dos índios ianomâmis e seus livros são verdadeiras
preciosidades. O francês Pierre Verger (1902 — 1996) estudou a religião e cul-
tura negra da África e do Brasil, fotografou seus ritos e documentou as regiões
Norte e Nordeste, especialmente, a Bahia. O espanhol Miguel Rio Branco (1946)
usa a cor, principalmente o vermelho, para lidar com a passagem do tempo,
a violência, a sensualidade, a prostituição e a morte, sobretudo na série Pe-
lourinho (1979), feita em Salvador. O baiano Mario Cravo Neto (1947 — 2009)
dedicou-se à fotografia de estúdio e fotografou, principalmente em branco e
preto, o candomblé e a religiosidade católica. Seu uso de fragmentos do corpo
humano, isolados ou associados a objetos, como bolas, pedras, ou a animais,
tem nítido caráter ritualístico.
O mineiro Sebastião Salgado (1944) é um caso à parte, pois seu trabalho
em preto e branco tem reconhecimento universal. Após as séries Trabalhado-
res: uma Arqueologia da Era Industrial (1996) e Retratos de Crianças do Êxodo
(2000), sua série Gênesis, fotografada durante 8 anos, já foi vista por milhares
de pessoas, enfocando o Planeta do Sul, Santuários, África, Espaços do Norte,
Amazônia e Pantanal. Seu trabalho, que mostra a beleza de nosso planeta e in-
siste na necessidade imperiosa de sua preservação, é comparado ao do francês
Cartier-Bresson e representa, em termos atuais, o que A Família do Homem, de
Steichen, representou nos anos 50.
A mineira Rosângela Rennó (1962) trabalha com apropriação de imagens
e textos, seja álbuns de família, fotos 3 x 4 de estúdios populares, seja foto-
grafias de arquivos, como as de presos do extinto Departamento de Medici-
DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 109

na e Criminologia, pertencentes ao Museu Penitenciário Paulista, que gerou as


séries Cicatriz, de 1996, e Vulgo, de 1998. A autora as explica: “Parafraseando
Walter Benjamin e Paulo Herkenhoff, uma névoa espessa recobre a história
do sistema penitenciário e a torna opaca. É nessa opacidade que reside meu
interesse pelas imagens que já tinham a origem e o destino selados: a invi-
sibilidade. Origem: invisibilidade, quando me refiro à característica intrínseca
daquelas imagens que foram produzidas para serem arquivadas e para que
seus referentes fossem definitivamente esquecidos. Destino: invisibilidade, por-
que estas imagens — que se confundem com a escatologia do próprio sistema
penitenciário — foram quase destinadas ao lixo” (https://www.google.com.br/
url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0ahUKEwij4oaezM7JAh
XEIJAKHbZiD7kQFggcMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.rosangelarenno.com.
br%2Fuploads%2FFile%2FCicatriz_RRenno.pdf&usg=AFQjCNGvrRbv1ZN7RdB
kMOQOxP_0La4Jiw&bvm=bv.109332125,d.Y2I&cad=rja,p.19).
A americana Susan Meiselas (1948) fez importante e inovador uso de fotos
de arquivo. Depois de ter documentado a guerrilha na América Central, princi-
palmente Nicarágua e Guatemala, pediram a ela que produzisse fotos para uma
campanha de denúncia e prevenção à violência doméstica. Não conseguindo
autorização da polícia de São Francisco para acompanhar as próprias mulhe-
res vítimas de violência, ela usou fotos e estatísticas dos arquivos da mesma
polícia, obtendo um resultado perturbador quando, em 1992, foram coladas em
abrigos de ônibus e depois publicadas com o título de “Arquivos do Abuso”.
Uma ação importante foi feita em São Paulo, em 2005, quando o IDDD —
Instituto de Defesa do Direito de Defesa realizou um concurso fotográfico den-
tro dos presídios femininos de São Paulo, distribuindo câmeras descartáveis
para algumas internas e funcionárias. O resultado foi uma exposição e o livro
O Direito do Olhar: Publicar para Replicar. As presas puderam olhar e registrar
seu universo, dando à sociedade outra visão desse mundo tão escondido e
desprezado.
Como se vê, a fotografia é um universo multifacetado que existe por si só,
independentemente de qualquer utilidade que possa ter para a ciência, para a
sociedade, para a identificação, as técnicas forenses, o combate ao crime ou o
direito. Apesar disso, e ao lado de sua função ritual e artística, é um instrumento
poderoso quando dirigido a objetivos tão diversos como uma campanha política,
a venda de objetos de luxo, o resgate da memória ou a luta conta as injustiças.
Inúmeros episódios da história recente ficaram gravados na memória de
todos graças a uma ou mais imagens emblemáticas. É o caso da menina cor-
rendo da chuva de napalm no Vietnã, dos soldados americanos torturando os
prisioneiros em Abu-Ghraib, ou de policiais militares agredindo e ferindo jorna-
listas em protestos no Rio ou em São Paulo.
110 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Muitos artistas optam, num mundo saturado de imagens, por uma espécie
de reciclagem de nossos ícones culturais. Richard Prince ficou famoso com seu
caubói de Marlboro, refotografando outdoors de cigarro. O personagem da
foto original morreu de câncer, mas Prince ficou rico e famoso. Richard Misrach,
em seu Pictures of Paintings (2002), se limita a fotografar detalhes de quadros
de museus, que adquirem enorme força expressiva. Minha exposição de 2011,
Mulheres dos Outros, trouxe imagens criadas a partir de slides comprados em
feirinha. Originalmente, são pin-ups dos anos 50, mas as manchas, o novo cor-
te e o tratamento as aproximam de esculturas gregas e romanas. A escultura,
aliás, foi um dos primeiros temas a ser tratado em fotografia, mas, como em
Lascaux, o foco, o ângulo de visão, o grau de aproximação, a iluminação e as
técnicas laboratório, criam impressionantes reinvenções, como analisou Roxa-
na Marcoci (The Original Copy, Photography of Sculture, 1839 to Today, 2010).
As questões jurídicas que envolvem a fotografia, por outro lado, são in-
termináveis, e vão desde o conflito entre o direito de expressão e a proteção
da imagem e da intimidade, até aquelas relativas à autoria e à propriedade
imaterial, com seus reflexos patrimoniais. O plágio foi recentemente estudado
no livro eletrônico Plágio: palavras escondidas, de Debora Diniz (Fiocruz, 2014).
Nem falta humor aos estudiosos que veem os artistas completamente perdidos
nessas questões. Susan M. Bielstein lançou Permissões, Um Guia de Sobrevivên-
cia, sobre a propriedade intelectual na arte (2006). E a francesa Agnès Tricoire
escreveu um Pequeno Tratado da Liberdade de Criação, nem tão pequeno as-
sim, pois tem 300 páginas (2011).

Tentando chegar a uma conclusão


Como se vê, o direito e a fotografia, o reino das regras e o das imagens, as
duas paredes da nossa caverna, têm mais proximidade do que normalmente se
imagina. E tudo indica que cada vez mais viverão em promíscua, conflituosa e
produtiva companhia.
Cartier-Bresson, apesar de considerado tradicionalista, reconhece que du-
rante o processo de ampliação, é essencial recriar os valores e a atmosfera da
ocasião em que a foto foi feita; ou até modificar a cópia a fim de colocá-la em
concordância com as intenções do fotógrafo no momento em que tirou a foto.
E conclui: “Considerando todas essas razoes, entendemos porque o ato final de
criação em fotografia tem lugar na câmara escura.”5
Da mesma forma, o ato final de criação do direito, sua aplicação ao chama-
do caso concreto, se dá no gabinete do juiz, ou nas câmaras dos tribunais, à luz
das circunstâncias e dos valores da causa, tal como puderam ser reconstruídos.

5 Disponível em: <https://social.stoa.usp.br/escolafocus/blog/o-momento-decisivo-49802>.


DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 111

O laboratorista, em geral, não é o autor da foto, nem a viu sendo feita. Trabalha
apenas com o negativo, para obter a chamada “prova” fotográfica, uma cópia
ou ampliação decorrente de sua intervenção, que representa a solução encon-
trada e, muitas vezes, a versão definitiva. O julgador também não tem contato
direto com os fatos, seus negativos são as evidências, as “provas” jurídicas,
que ele tem que interpretar e avaliar para aplicar o direito de acordo com sua
convicção e que, com a ficção do trânsito em julgado, vai se tornar a versão e
a solução definitiva.
Fotografar, diz Henry Cartier-Bresson, é colocar na mesma linha de mira a
cabeça, o olho e o coração. Julgar também, por mais forte razão. É bom lem-
brar a visão de Bresson a respeito dos fatos:

Devemos nos mostrar lúcidos com relação ao que está acon-


tecendo no mundo, e honestos quanto aos nossos sentimentos.
O assunto não consiste em uma coleção de fatos, pois os fatos
em si oferecem pouco interesse. Através dos fatos, no entanto,
podemos chegar a uma compreensão das leis que os governam
e assim nos tornaremos mais capazes de selecionar as essências,
que comunicam a realidade6.

A Bienal de São Paulo de 2015 teve como tema Medidas da Incerteza,


reunindo artistas que refletem sobre o fim do mundo como o conhecemos e
que traçam o diagnóstico de um planeta em autodestruição, atravessado por
crises na ética e na política e pela devastação ambiental. O Panorama da Arte
Brasileira, por sua vez, se propôs a enfrentar “o enigma do início e de hoje”,
apresentando zoólitos arqueológicos ao lado de peças contemporâneas. São
esculturas de basalto de até 7 mil anos, encontradas nos sambaquis de nossas
regiões litorâneas, que representam em geral aves e peixes e às quais são atri-
buídas funções ritualísticas. Elas estarão contrapostas a trabalhos de seis artis-
tas contemporâneos que lidam com a fotografia: Berna Reale, Cao Guimarães,
Cildo Meirelles, Erika Verzutti, Miguel Rio Branco e Pitágoras Lopes.
Nosso conturbado universo vai se reconstruindo sobre os escombros do
presente, tal um palimpsesto, pergaminho no qual se raspa a primeira inscrição
para traçar outra, que não esconde totalmente a anterior.
Indagado sobre o futuro, o fotógrafo e pensador Joachim Schmid afirmou
com simplicidade: Não tenho qualquer ideia sobre o futuro, e me recuso a fazer
qualquer vaticínio. Se você observar a história das previsões no século XX, verá
que é uma história de fracassos, para a qual não quero contribuir. Estou curioso

6 Disponível em: < https://social.stoa.usp.br/escolafocus/blog/o-momento-decisivo-49802>.


112 CADERNOS FGV DIREITO RIO

e aberto ao que está aí e reagirei à nova situação, se houver uma nova situação,
mas com certeza não vou fazer nenhuma predição sobre o futuro.
I know not what tomorrow will bring: Não sei o que o amanhã vai trazer.
Essa foi a última frase escrita, no hospital e em inglês mesmo, por Fernando
Pessoa, na véspera de sua morte em1935, com 47 anos,
Também não sabemos o que o futuro nos reserva. Sabemos apenas que
não podemos deixar de olhar; olhar e ver; ver e registrar; registrar e guardar.
Se não for possível vislumbrar um caminho melhor, ao menos vamos deixar
imagens que um dia poderão ser descobertas na nossa caverna e, quem sabe,
admiradas por sua beleza ou seus horrores.

Bibliografia

ADES, Dawn. Photomontage. Thames & Hudson. 1986..

ANDUJAR, Claudia.. Yanomami. DBA. 1998.

______. A vulnerabilidade do ser. São Paulo. Cosac Naify. 2005.

______. Marcados. São Paulo. Cosac Naify. 2009.

ARNAUD, André— Jean. 1969. Les origines doctrinales du Code civil français.
LGDJ.

ASSOCIATION OF AMERICAN PHOTOENGRAVERS. 1959. Line Halftone & Co-


lor; an Introduction to Modern Photoengraving.

ASSOULINE, Pierre. Cartier-Bresson. O olhar do século. L&PM. 2012.

ATKINS, Robert. Petit Lexique de l’Art Moderne 1848-1945. Abbeville Press.


1993.

AUMONT, Jacques. O Olho Interminável. São Paulo. Cosac & Naify. 2004.

BADGER, Gerry. 2007. (livro e filme) The Genius of Photography. Quadrille Pu-
blishing

BAJAC, Quentin. 2010. 100 chefs-d’oeuvre de la photographie: Dans les collec-


tions du Centre Pompidou. Editions du Centre Pompidou.
DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 113

BARRET, André. 1994. Nadar. Portraits de ses contemporains. Julliard.

BARTHES, Roland. 1957. Mythologies: Essais. Editions du Seuil.

_________. 2007. O Império dos Signos. WMF Martins Fontes.

BATAILLE, Georges. 1955. Lascaux ou la Naissance de l’Art. Skira.

BAURET, Gabriel. 1992. Approches de la photographie. Nathan Université.

BENJAMIN, Walter. 1995. A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica


e Pequena História da Fotografia, in Obras Escolhidas. Magia E Técnica, Arte E
Política — Volume I. Brasiliense.

BIELSTEIN, Susan M. 2006. Permissions, A Survival Guide: Blunt Talk about Art
as Intellectual Propery. University Of Chicago Press.

BINET, Violaine. 2009. Diane Arbus. Grasset & Fasquelle.

BIROLEAU, Anne. 70’. La photographie américaine. Bibliothèque Nationale de


France — BNF.

BORIS, Kossoy. 2003. Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro. IMS.

BOSWORTH, Patricia. 1995. Diane Arbus: A Biography. W W Norton & Co Inc.

BOUBAT, Edouard. 1989. La Photographie. Livre de Poche.

BOURDIEU, Pierre, and Luc Boltanski. 1965. Un art moyen: Essais sur les usages
sociaux de la photographie. Les Editions de Minuit.

_________. Photography: A Middle-Brown Art. Stanford University Press.1996,

_________. Sur l’Etat ; Cours au Collège de France. Points.2015.

BRANDT, Bill. 1990. London in the Thirties. Herbert Press Ltd.

BRASSAÏ. 2004. Paris de Nuit. Flammarion.

________. 2005. Proust E A Fotografia. Zahar.


114 CADERNOS FGV DIREITO RIO

BROCVIELLE, Vicente. 2012. Petit Larousse da História da Arte. Lafonte.

BRUNET, François. 2009. Photography and Literature. Reaktion Books.

BUENO, Eduardo. 2013. Brasil: Uma Historia. Leya.

BULTEAU, Michel. 2009. Andy Warhol. La Différence.

BURKE, Peter. Testemunha Ocular: História e Imagem. Civilização Brasileira.


2004.

CAMPANY, David. 2008. Photography and Cinema. Reaktion Books.

CAPA, Robert. 2001. Slightly Out of Focus. Modern Library.

CARTIER-Bresson, Anne. Le vocabulaire technique de la photographie. MAR-


VAL.

CARTIER-Bresson, Henri. 1997. Henri Cartier-Bresson. The Early Work. Aperture.

CARTIER-Bresson, Henry, 1994, Photo dessin, dessin photo: Le dessein photo-


graphique. Actes Sud.

CARTIER-Bresson, Henry, 1996, L’Imaginaire d’après Nature, Fata Morgana, Pa-


ris.

CARTIER-Bresson, Henry. 1952. O Momento Decisivo. https://social.stoa.usp.


br/escolafocus/blog/o-momento-decisivo-49802 (Transcrito de “O Momento
Decisivo”, in Bloch Comunicação, nº 6 Bloch Editores — Rio de Janeiro. Pags.
19 a 25, 1965.)

CHAROUX, Clément. 2008. Découverte Gallimard: Henri Cartier-Bresson. Galli-


mard.

CHATELET, Albert ; Bernard-Philippe Groslier. 1995. Histoire De L’art — in Ex-


tenso. Larousse.

CHAUDENSON, Françoise. 2007. A qui appartient l’oeuvre d’art? Armand Colin.

CLEDER, Jean. 2003. Proust et les Images. Presses de Rennes.


DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 115

COELHO DA ROCHA, M. A., 1861, Ensaio sobre a História do Governo e da Le-


gislação de Portugal, Coimbra.

COPANS, Jean. 1995. Introduction à l’ethnologie et à l’anthropologie. Nathan


Université.

COSTA, Helouise. 2004. A Fotografia Moderna no Brasil. Relume Dumará.

COTTON, Charlotte. 2010. A Fotografia Como Arte Contemporânea. WMF Mar-


tins Fontes.

CRAVO NETO, Mário. 1994. Mario Cravo Neto. Abeville Press.

_________. 2001. Laroye. DAP.

_________. 2002. The Eternal Now. Aries.

CUNNINGHAM, David, et al. 2008. Photography and Literature in the Twentieth


Century. Cambridge Scholars Publishing.

CURTIS, Edward S. 2009. The American Indian. BiblioLife.

DELHOUME, Olivier. 2006. Mises au point: paroles de photographes. Editions


Alternatives.

DIDI-HUBERMAN, Georges, 2014, Diante da Imagem.

_________. 2011, Écorces, Éditions de Minuit.

_________. 2013, A Imagem Sobrevivente.

_________. 2000. Devant le temps: Histoire de l’art et anachronisme des ima-


ges. Éditions de Minuit.

_________. 2013. A Imagem Sobrevivente. Contraponto Editora

_________. 2014. Essayer voir. Éditions de Minuit.

_________. 2015. Diante do tempo — História da arte e anacronismo das ima-


gens, UFMG.
116 CADERNOS FGV DIREITO RIO

DINIZ, Débora,2014, Plágio: palavras escondidas, Fiocruz.

DOLBEAR, Amos Emerson. 2002. The Art of Projecting: A Manual of Experi-


mentation in Physics, Chemistry, and Natural History with the Porte Lumiere
and Magic Lantern. Illustrated. Adamant Media Corporation.

DYER, Geoff. 2008. O Instante Contínuo. Companhia das Letras.

EDELMAN, Bernard. 1973. Le droit saisi par la photographie. Flammarion.

EDWARDS, Steven. 2006. Photography: A Very Short Introduction. Oxford Uni-


versity Press.

EVANS, David. 2009. Appropriation. The MIT Press.

EVANS, Walker. 2012. American Photographs. MOMA/NY.

FAURE, Elie. 1988. Histoire de L Art. Gallimard Education

FAUSTO, Boris. 2013. Historia do Brasil. Edusp.

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. 2014. O Direito, Entre o Futuro e o Passado. No-
eses.

FONTCUBERTA, Joan; et al. 2007. Joachim Schmid: Photoworks 1982-2007.


Steidl, Photoworks UK, Tang Museum.

_________. 2010. O Beijo de Judas — Fotografia e Verdade. GG Brasil.

_________. 2013. A câmera de Pandora. GG.

_________. 1990. Fotografia Conceptos Y Procedimientos. Gustavo Gili.

FOREST, Philippe. 2008. Araki Enfin. Gallimard.

FRAMPTON, Hollis. 1971. Nostalgia. Afterall Books/MIT Press (filme e livro).

FRANK, Robert. 1958 e 2008. The Americans. Steidl.

FREUND, Gisèle. 1974. Photographie et société. Seuil.


DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 117

_________. 1992. Gisele Freund, die Frau mit der Kamera: Fotografien 1929-
1988. Schirmer/Mosel.

FRIZOT, Michel. 1985. Identités De Disdéri Au Photomaton. Centre National De


La Photographie.

GATTINONI, Christian, and Yannick Vigouroux. 2001. La photographie, 1839-


1960. Scala.

GAUTHEROT, Marcel. 2010. Norte. IMS.

GENESTE, Jean-Michel. 2012. Lascaux, Gallimard.

GENETTE, Gérard. 1992. Palimpsestes. Seuil.

GOLDIN, Nan, 1986, Balada da Dependência Sexual

GOMES, Laurentino. 2010. 1822. Planeta.

HARRISON, Charles. 2007. Art en Théorie 1900-1990. Hazan.

HERZOG, Werner, 2011, The Cave of Forgotten Dreams, filme.

HOWATSON, M. C., and University of Oxford. 1998. Dictionnaire de l’Antiquité:


Mythologie, littérature, civilisation. Robert Laffont.

HURN, David, and Bill Jay. 2007. On Being a Photographer: A Practical Guide.
Lenswork Pub.

HUYSSEN, Andreas. 2003. Present Pasts: Urban Palimpsests and the Politics of
Memory. Stanford University Press.

INDIANA, Gary. 2010. Andy Warhol and the Can that Sold the World. Basic
Books.

IONESCO, Eugène. 2003. La photo du colonel. Gallimard.

JAUBERT, Alain. 1986. Le commissariat aux archives. Barrault.

JEFFREY, Ian. 1994. Bill Brandt: Photographs 1928-1983. Thames & Hudson.
118 CADERNOS FGV DIREITO RIO

JEFFRY, Ian. 1985. Photography: A Concise History. Thames & Hudson.

JOHNSON, Robert Flynn, William Boyd. 2005. Anonymous: Enigmatic Images


from Unknown Photographers. Thames & Hudson.

JOYCE, James. 2012. Ulysses. Editora Companhia das Letras.

JUNIOR, Rubens Fernandes. 2003. Labirinto E Identidades: Panorama da Foto-


grafia no Brasil. Cosac e Naify.

KOSSOY, Boris. 1999. Realidades e ficções na trama fotografica. Atelie Editorial.

KOSSOY, Boris. 2001. Fotografia & Historia. Atelie Editorial.

KRAUSS, Rosalind E. 2010. O Fotográfico. GG Brasil.

LACAN. 1974. Télévision. Seuil.

LACERDA, Gabriel. 2007. Direito No Cinema. Editora FGV.

LAROUSSE,1996, Dictionnaire de la photo.

LEMAGNY, Jean-Claude, Sylvie Aubenas, and Pierre Borhan. 2000. Atget the
Pioneer. Prestel.

LEVI-STRAUSS, Claude, 2011, L’Anthropologie face aux problèmes du monde


moderne, Seuil.

LIONEL-MARIE, Annick. 2000. Brassai: Notes et Propos Sur la Photographie.


Centre Georges Pompidou.

LISSOVSKI, Maurício. 2008. Máquina de Esperar — Origem e Estética da Foto-


grafia Moderna. Editora Mauad.

MAN RAY. 1998. Autoportrait. Babel.

MARCOCI, Roxana. 2010. The Original Copy, Photography of Sculture, 1839 to


Today.

MARKER, Chris. 2008. La Jetée: ciné-roman. Zone Books.


DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 119

MARTINS, José de Souza. 1994. Sociologia da Fotografia e da Imagem. Contex-


to Textbooks.

MEISELAS, Susan. 1998. Archives of Abuse. Grand Street n. 66.

MEREWETHER, Charles. 2006. The Archive. The MIT Press.

MISRACH, Richard. 2002. Pictures of Paintings.

MOHOLY-NAGY, Lazlo. 1929. Film und Photo. Stuttgart.

MOORE, Rachel. 2006. Hollis Frampton:. Afterall Books.

MOTA, Lourenco Dantas. 1999. Introdução ao Brasil: Um banquete no trópico.


Editora SENAC Sao Paulo.

MUYLAERT ANTUNES, Eduardo. 1972. Natureza Jurídica da Declaração Univer-


sal dos Direitos do Homem, separata da Revista dos Tribunais, vol. 446, págs.
27 a 36. Reproduzido em Baptista, Luiz Olavo. 2012. Direito Internacional: Dou-
trinas Essenciais, vol. 3, págs. 127-144. Editora Revista dos Tribunais.

MUYLAERT, Eduardo. 2003. O Espírito dos Lugares. Editora Terceiro Nome.

_________. 2006. Boa Noite, Paulicéia. Edição da Pinacoteca do Estado de São


Paulo.

_________. 2011. Processo de Criação. Entrevista a Georgia Quintas, no Blog


Olhavê: http://olhave.com.br/2011/02/processo-de-criacao-eduardo-muyla-
ert/

Ottaviani, Isabelle, Philippe Poulain. 1996. Paris de Marcel Proust. Paris-Musées.

PENROSE, Antony. 1995. The Lives of Lee Miller. Thames & Hudson.

PERSICHETTI, Simonetta. 2008. Claudia Andujar. IBEP.

PERSICHETTi, Simonetta. 2008. Miguel Rio Branco. IBEP.

PEYRE, Christian, 1955, L’Histoire de L’Art, Larousse.


120 CADERNOS FGV DIREITO RIO

PLATÃO. 2006. A República. Perspectiva.

POE, Edgar Allan. 1940. O Daguerreotipo.

QUINTAS, Georgia. 2008. Man Ray e a Imagem da Mulher. Editora Georgia


Quintas.

RAHAL, Flávia e outros. 2009. O Direito do Olhar: Publicar para Replicar. IDDD
— Instituto de Defesa do Direito de Defesa.

RANCIÈRE, Jacques. 2004. Le Destin des images. La Fabrique.

RENNÓ, Rosangela. 2003. O arquivo universal e outros. Cosac Naify.

RICE, Shelley. 1999. Parisian Views. The MIT Press.

RIO BRANCO, Miguel. 1998. Miguel Rio Branco — Fotos. Companhia das Letras.

_________. 2012. Silent Book. Cosac Naify.

_________. 2014. Maldicidade. Cosac Naify.

ROEGIERS, Patrick. 1990. Bill Brandt: Essai. Paris audiovisuel.

_________. 2006. Diane Arbus ou le rêve du naufrage. Perrin.

ROSÂNGELA RENNÓ. 1996, Cicatriz. 1998, Vulgo.

ROUILLE, André. 2005. Photographie. Gallimard Education.

_________. 2009. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. Senac.

RYAN, James R. 1998. Picturing Empire: Photography and the Visualization of


the British Empire. University of Chicago Press.

SALGADO, Sebastião, 1996, Trabalhadores: uma Arqueologia da Era Industrial.

_________. 2000, Retratos de Crianças do Êxodo

_________. 2013. Genesis. Taschen.


DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 121

SAMAIN, Etienne. 1998. O fotográfico. CNPq.

SCHWARTZ, Hillel. 1998. The Culture of the Copy: Striking Likenesses, Unreaso-
nable Facsimiles. Zone Books.

SONTAG, Susan. 2003. Diante da Dor Dos Outros. Companhia das Letras.

_________. 2004. Sobre Fotografia. Companhia das Letras.

SOUTY, Jerome. 2011. Pierre Fatumbi Verger. Terceiro Nome.

STANGOS, Nikos e Herbert Read. 1994. The Thames and Hudson Dictionary of
Art and Artists. Thames & Hudson.

STEICHEN, Edward, 1955. The Family of Man. Ed. 2002, MOMA/NY,

STIMSON, Blake. 2006. The Pivot of the World: Photography and Its Nation. The
MIT Press.

SUSSMAN, Elizabeth. 2001. Lisette Model. Phaidon Press.

SUTTON, Damian. 2009. Photography, Cinema, Memory: The Crystal Image of


Time. University of Minnesota Press.

SZARKOWSKI, John. 1999. Modos de Olhar. The Museum of Modern Art New
York, MAM/SP.

_________. 2007. The Photographer’s Eye. The Museum of Modern Art, New
York.

TISSERON, Serge. 2008. Le Mystère de la Chambre Claire/ Photographie et


Inconscient. Editions Flammarion.

TRICOIRE, Agnès. 2011. Petit traité de la liberté de création. La Decouverte.

VERGER, Pierre. 2012. Pierre Verger — 50 anos de fotografia. Pierre Verger.

WALKER, Ian. 2002. City Gorged With Dreams: Surrealism and Documentary
Photography in Interwar Paris. Manchester University Press.
122 CADERNOS FGV DIREITO RIO

WALLIS, Brian. 1989. Blasted Allegories: An Anthology of Writings by Contem-


porary Artists. The MIT Press.

WARE, Katherine. 1995. In Focus: Laszlo Moholy-Nagy: Photographs from the J.


Paul Getty Museum. J. Paul Getty Museum.

WEEGEE. 1945 e 2002. Naked City. Perseus Books.

Filmografia

Antonioni, Michelangelo. 1966. Depois Daquele Beijo (Blow Up). Baseado em


Cortazar, Julio (As Babas do Diabo). Warner Home Video

Boltanski, Christian. 2012. Les Vies possibles de Christian Boltanski — Portrait


fantôme de l’artiste. Arte.

Bombelli, Anja, Heinz Bütler. 2006. Henri Cartier-Bresson: The Impassioned Eye.
Palm Pictures / Umvd.

Borgna, Gianni, Nicola Caracciolo. 2006. La Roma Del Luce. Istituto Luce.

Bunuel, Dali, Max Ernst. 1929. Um Cão Andaluz & A Idade Do Ouro. Versatil.

Burtynsky, Edward. 2006. Paysages manufactures. ED Distribution.

Cartier-Bresson, Henry. 2006. 2 DVD e livro. Éditions Mk2.

Clouzot, Henry-Georges. 2000. O Mistério De Picasso. Magnus Opus.

Contacts Vol. 1, 2 e 3. 2004/5. Vol.1: William Klein, Henri Cartier-Bresson, Ray-


mond Depardon, Joseph Koudelka, Robert Doisneau. Vol.2: Sophie Calle, Tho-
mas Ruff, Mario Giacomelli, Nan Goldin, Lewis Baltz Vol.3: John Baldessari,
Bernd Becher, Hilla Becher, Christian Boltanski, Alain Fleischer

Doisneau, tout simplement. 2000. Éditions Montparnasse

Frampton, Hollis. 2012. A Hollis Frampton Odyssey. Criterion Collection.

Frei, Christian. 2003. War Photographer.


DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 123

Gerry Badger. 2 DVD. 2009. The Genius of Photography. BBC.

Hitchcock, Alfred. 1954. Janela Indiscreta. Universal Pictures

Holzemer, Reiner. 2008. William Eggleston: Photographer. Microcinema Inter-


national.

Klein, William. 3 DVD. 2002. Muhammad Ali the Greatest / Grands soirs et petits
Matins / The French

La Grande aventure de la presse filmée. 2 DVD. 2001. Warner.

La Magie Melies. 2001. Distribuição: Daniel Ceccaldi.

Lartigue, Jacques-Henri. 2003. Le Siècle en positif. France Télévisions.

Leibovitz, Annie. 2007. A Vida Através Das Lentes. Imagem Filmes.

Marker, Chris. 2009. Immemory: A cd-rom by Chris Marker. Exact Change.

Méliès, Georges, Jacques Meny. 2001. Georges Méliès Collection (La magie Mé-
liès / Un homme de tête / L’homme orchestre / Nouvelles luttes extravagantes
/ Barbe-bleue / L’homme à la tête en caoutchouc / Le voyage dans. Arte Video.

Photography, Masters of. 2006. André Kertesz. Kultur Video.

Photography, Masters of. 2006. Diane Arbus. Kultur Video.

Photography, Masters of. 2006. Edward Steichen. Kultur Video.

Riefenstahl, Leni. 2 DVD. 1938. Olympia. Magnus Opus

Schnabel, Julian. 2002. Basquiat. Miramax.

Simon Schama. 2007. Power of Art. BBC.

Strand, Paul. 2002. Under the Dark Cloth. Kino Video.

Warhol, Andy. 2006. My Hustler & I A Man. Magnus Opus.


124 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Weegee. 1992 e DVD em 2011. The public eye. Universal.

Weegee. 2007. Collection Musée Maillol.

Weiwei, Ai. 2011. Ai Weiwei: Fairytale: Documentary DVD. JRP|Ringier.

Weuthen, Johannes, Joshua Falcon, Michael Almereyda. 2006. William Eggles-


ton In the Real World. Palm Pictures / Umvd.

William Klein. 2008. Eclipse Series 9: The Delirious Fictions of William Klein.
Criterion Collection.
JOGOS ELETRÔNICOS E DIREITO
Pedro N. Mizukami1

Talvez seja estranho pensar nas relações entre jogos eletrônicos e ensino ju-
rídico. Ao contrário do uso de obras literárias e cinematográficas em contex-
tos educacionais, a combinação “jogos e direito” pode soar inusitada ou até
mesmo implausível.2 Se é usualmente fácil encontrar exemplos de filmes ou
romances que abordem problemas jurídicos, com ganchos óbvios para uso em
sala de aula, o mesmo não ocorre com os jogos. Pelos menos à primeira vista.
Façamos um rápido teste: o objetivo é explorar, em sala de aula, questões
relacionadas ao direito municipal e planejamento urbano. Gentrificação, por
exemplo. Que obras poderíamos usar? É possível, ainda que com algum esfor-
ço, lembrar-se de filmes que abordam, direta ou indiretamente, o tema. Caso
contrário, pode-se simplesmente fazer uma busca no Internet Movie Database
(IMDB) com a palavra-chave “gentrification” e obter como retorno 54 títulos.3
O mesmo, para romances, a partir de uma busca na seção de literatura da
Amazon.4 E jogos? Pac-Man? Candy Crush Saga? Super Mario Bros.? Street
Fighter? Que jogo abordaria um tema sério como gentrificação?

1 Pedro Mizukami é Mestre em Direito do Estado pela PUC-SP. Doutorando em Políticas Pú-
blicas, Estratégias e Desenvolvimento pela UFRJ. Coordenador acadêmico da equipe brasi-
leira do projeto "Media Piracy in Emerging Economies" do Social Science Research Council
(2011). Coordenador do componente brasileiro do projeto "Ecology of Access to Educatio-
nal Materials in Developing World Universities" da American Assembly (Columbia Universi-
ty). Coautor do relatório “Mapping Digital Media: Brazil” (Open Society Foundations, 2013).
Foi conselheiro titular pela FGV no Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos
contra a Propriedade Intelectual (Ministério da Justiça), mandato 2012-2014. Email: pedro.
mizukami@gmail.comTwitter: @p_mizukami.
2 Desconsiderando-se, é claro, os óbvios paralelos — não abordados por este ensaio — entre
“jogo” e “processo judicial”. De acordo com Huizinga: “That an affinity may exist between
law and play becomes obvious to us as soon as we realize how much the actual practice of
the law, in other words a lawsuit, properly resembles a contest whatever the ideal founda-
tions of the law may be.” HUIZINGA, Johan. Homo ludens: a study of the play element in cul-
ture. London/Boston/Henley: Routledge & Kegan Paul, 1949, p. 82. Ver, ainda, comentando
Huzinga: LASTOWKA, Greg. Law and games studies. Games and Culture, v. 1, n. 1, 2006, pp.
25-68.
3 http://www.imdb.com/search/keyword?keywords=gentrification.
4 http://www.amazon.com/s/ref=sr_nr_n_27?fst=as%3Aoff&rh=n%3A283155%2Cn%3A17%2
Ck%3Agentrification&keywords=gentrification&ie=UTF8&qid=1425501896&rnid=1000.
126 CADERNOS FGV DIREITO RIO

É preciso um tipo peculiar de pessoa para pensar, imediatamente, em Gen-


trification Tycoon.5 Ou mesmo cogitar utilizar uma das várias versões de SimCi-
ty para abordar indiretamente o tema, a partir de uma análise crítica de como
o design do jogo evita contemplar o fenômeno.6 É preciso alguém que tenha
acompanhado de perto o universo dos jogos eletrônicos, testemunhando sua
evolução desde a época das várias máquinas de Pong, passando por Odyssey,
Odyssey 2, Atari 2600, NES, jogos para Amiga e PC, até chegar ao estado
atual da mídia, diverso, multifacetado, multiplataforma e mais fragmentado e
estimulante do que nunca. Ou simplesmente alguém que, mesmo sem muito
conhecimento sobre o campo, não duvide da importância dos jogos enquanto
objeto cultural e artístico, e tenha curiosidade e disposição para enxergar além
do óbvio.
Dependendo dos objetivos de ensino e do conteúdo explorado, utilizar
jogos pode ser um experimento muito proveitoso. Jogos são experiências in-
terativas, imersivas e, por sua própria natureza, divertidas. Requerem o total
engajamento e atenção daqueles que queiram com eles interagir. Colocam o
jogador em situações e papéis que podem conduzir a discussões e reflexões
interessantes, a partir de pontos-de-vista, narrativas e regras que podem ser
explorados didaticamente.
O objetivo do presente ensaio é levantar algumas possibilidades para o
uso de jogos no ensino jurídico, apresentando algumas sugestões e recomen-
dações para professores interessados em incorporar jogos a seus cursos. Não
se pretende, aqui, fazer uma abordagem exaustiva ou analiticamente profunda,
apenas indicar alguns caminhos que podem ser perseguidos por professores
interessados em utilizar jogos como um recurso adicional em sala de aula.

5 Disponível em: http://gamejolt.com/games/strategy-sim/gentrification-tycoon/39586/.


6 Uma análise nesse sentido: “[...] SimCity adequately represents multiple socioeconomic sta-
tuses — low, medium, and high — demonstrating that members of these classes work, shop,
and play in different areas. My biggest issue in this regard, though, is that SimCity had the
opportunity to introduce conflicting socioeconomic interests among groups of people wi-
thout increasing the complexity of its model. When players “plop” high-end parks into nei-
ghborhoods and shopping districts, the property value of the surrounding areas increases.
This, in turn, causes citizens of a higher economic status to move into the neighborhood.
But what happens to the poorer citizens who already live in the area?
“Wow, I’m doing so well that I’m going to remodel my house!”
Rather than simulating the true effects of gentrification, SimCity teaches its users that
people who live in substandard housing can remodel their homes if the surrounding area
is doing well enough. This is simply false, removing a significant issue with which urban
planners must cope. As it is portrayed in the game, higher socioeconomic status is unilate-
rally better, and there are no consequences to gentrification (e.g., the effects of decreased
diversity on children’s education).” SAUCERMAN, Jenny. SimCity: can a god game teach
urban planning? GAPS, 20 de abril de 2013. Disponível em: http://edgaps.org/gaps/simci-
ty/. Acesso em:
JOGOS ELETRÔNICOS E DIREITO 127

O estado da arte
Toda nova mídia passa por um percurso complicado antes de vencer alguns
preconceitos e ser levada a sério como forma de expressão, como arte, como
objeto cultural. Novas mídias costumam causar estranheza e, às vezes, res-
postas regulatórias pouco amigáveis. Elas têm um longo processo de emanci-
pação até se incorporarem ao mainstream cultural. Foi o que aconteceu com
os filmes7 e com os quadrinhos.8 É o que está acontecendo com os jogos
eletrônicos.
Os games passaram de mercado de nicho para um dos principais setores
da indústria de entretenimento, parcialmente em razão do envelhecimento das
primeiras gerações de consumidores de jogos, associada à entrada de consu-
midores mais novos, bem como a uma ampliação qualitativa em relação aos
tipos de jogos produzidos. Da mesma maneira como há diferenças entre as pri-
meiras levas de filmes e quadrinhos e as produções contemporâneas, os jogos
eletrônicos são, atualmente, muito mais numerosos, diversos e complexos do
que costumavam ser no início de sua trajetória. Se a expressão “jogo eletrô-
nico” nos anos 80 remetia a obras como Pac-Man, Super Mario Bros., Ultima,
Street Figher e Monkey Island — jogos já bastante diferentes entre si —, hoje em
dia o repertório é muito mais rico e variado, fruto de um processo cumulativo
e iterativo de design, inspiração criativa, demandas de mercado, e desenvolvi-
mento tecnológico.
Muito ao contrário do que se podia imaginar nem tanto tempo atrás, hoje
temos jogos sobre câncer,9 depressão,10 transgeneridade,11 o cerco de Sara-
jevo12 e controle de fronteiras.13 Games abstratos e experimentais,14 que aten-
dem a pequenos públicos e propósitos, em que predomina mais a dimensão
experiência do que a de jogo. Jogos comerciais de massa, produções caras que
atendem a grandes públicos e se acomodam ao mínimo denominador comum
dos interesses dos consumidores tradicionais.15 Jogos em que predomina o

7 GRIEVESON, Lee. Policing cinema: movies and censorship in early Twentieth-Century Ame-
rica. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 2004.
8 HAJDU, David. The ten-cent plague: the great comic-book scare and how it changed Ame-
rica. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2008. No Brasil: JUNIOR, Gonçalo. A guerra dos
gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos, 1934-64. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004.
9 That Dragon, Cancer (2014, Ryan Green e Amy Green).
10 Depression Quest (2013, Zoe Quinn).
11 Dys4ia (2012, Anna Anthropy).
12 This War of Mine (2014, 11 bit studios).
13 Papers, Please (2013, Lucas Pope).
14 Jogos como, por exemplo, Bientôt l’Été (2012, Tale of Tales), Proteus (2013, Ed Key), Pas-
sage (2007, Jason Rohrer), e Journey (2012, Thatgamecompany).
15 As séries Call of Duty, Assassin’s Creed, Far Cry, Fifa Soccer e Gran Turismo são bons exem-
plos.
128 CADERNOS FGV DIREITO RIO

elemento textual, e que por vezes deixam o audiovisual de lado.16 Jogos em


que predomina o som, em detrimento de elementos textuais e visuais.17 News
games, que nascem da fusão de game design e jornalismo, e procuraram retra-
tar eventos correntes em formato de jogo.18
Navegar por esse universo pode parecer intimidador para quem já não faz
parte dele. Por outro lado, os jogos nunca estiveram tão presentes no ambiente
midiático quanto hoje em dia. A grande proliferação de jogos casuais — ter-
mo que se contrapõe a jogos hardcore — tornou pelo menos uma parcela do
mundo dos jogos onipresente na vida de pessoas que, por muitos anos, apenas
observavam seus filhos pilotando computadores e consoles de videogame.19
Isso ocorreu principalmente a partir da explosão dos mercados de apps para
telefones (App Store, Google Play) e de consoles como o Nintendo Wii, na se-
gunda metade da década de 2000.
O mesmo período também foi o ponto de partida para a explosão de
uma grande variedade de indie games.20 Produzidos por pequenos estúdios,
ou mesmo desenvolvedores individuais, os jogos indie injetaram uma elevada
dose de experimentalismo, diversidade e criatividade em uma indústria que,
até então, era pautada quase que exclusivamente por obras realizadas por es-
túdios de porte maior, para plataformas/sistemas com barreiras de entrada
razoavelmente elevadas. O crescimento dos indies, ainda em evolução, decorre
da ampliação do acesso a ferramentas de desenvolvimento e distribuição de
jogos bem como da apropriação da cultura DIY (“do it yourself”, faça você
mesmo) por desenvolvedores independentes.21

16 Caso de parte dos text adventures, ficção interativa e visual novels, e de jogos que desafiam
categorização, como Device 6 (2013, Simogo).
17 Papa Sangre (2010, Somethin’ Else) é um bom exemplo. Para mais, ver http://www.audio-
games.net/.
18 Ver BOGOST, Ian; FERRARI, Simon; SCHWEIZER, Bobby. Newsgames: journalism at play.
Cambridge/London: The MIT Press, 2010. Um dos exemplos citados pelos autores, Cutthro-
at Capitalism, um jogo sobre pirataria na Somália veiculado pela revista Wired, pode ser
jogado em: http://archive.wired.com/special_multimedia/2009/cutthroatCapitalismThe-
Game.
19 Para uma análise da popularização dos casual games, ver JUUL, Jesper. A casual revolution:
reinventing video games and their players. Cambridge/London: The MIT Press, 2010.
20 Os documentários Indie game: the movie (2012, Canadá, dir. James Swirsky e Lisanne Pajot)
e Gameloading: rise of the indies (2015, Austrália, dir. Anna Brady e Lester Francois) ofe-
recem uma boa visão panorâmica da consolidação dos indie games enquanto movimento
cultural e segmento de mercado.
21 Para compreender o ethos DIY aplicado ao desenvolvimento de jogos indies, ver ANTHRO-
PY, Anna. Rise of the videogame zinesters: how freaks, normals, amateurs, artists, dreamers,
drop-outs, queers, housewives, and people like you are taking back an art form. New York:
Seven Stories Press, 2012.
JOGOS ELETRÔNICOS E DIREITO 129

Narrativa e gameplay
Jogos eletrônicos são geralmente compostos por uma fusão de elementos au-
diovisuais, associados a um conjunto de regras, objetivos, mecânicas de jogo22
e, frequentemente, uma narrativa. Esteticamente, é possível levar em conside-
ração esses elementos separadamente — a música de um jogo, por exemplo
— ou em operação conjunta. O que costuma caracterizar um jogo enquanto tal,
entretanto, é o que se denomina gameplay: aquilo que é gerado pelas regras,
mecânicas e objetivos que estabelecem uma experiência de jogo.23
No campo dos game studies, uma das principais querelas acadêmicas colo-
ca de um lado os “ludologistas”, que insistem em estudar os jogos com foco nos
elementos que os caracterizam enquanto jogos — mecânicas de jogo, regras,
gameplay — e de outro os “narratologistas”, que preferem uma abordagem que
estude os jogos em conjunto com outras mídias que veiculam histórias.24
Analisando a disputa, Jenkins25 observa que: a) nem todo jogo conta uma
história: jogos podem ser abstratos, enfatizar expressão e experiência, e se
aproximam, dessa maneira, mais da música e dança do que do cinema; b) alguns
jogos têm, de fato, aspirações narrativas, e justificam o estudo da interação
entre games e storytelling; c) a análise de narrativas não deve ser prescritiva,
ao contrário do que defendem alguns narratologistas, e o potencial dos jogos
enquanto veículos para narrativas não deve obscurecer suas outras característi-
cas; d) a experiência de se jogar um jogo não pode ser estritamente reduzida à
experiência da exposição de alguém a uma história; e) quando os jogos contam
uma história, eles o fazem de maneira diferente do que outras mídias.
A discussão é relevante quando pensamos no uso de jogos em sala de aula
por três motivos:

22 As mecânicas de jogo são, de acordo com a definição de Sicart, “methods invoked by


agents, designed for interaction with the game state”. Ou, ainda “[…] the action invoked by
an agent to interact with the game world, as constrained by the game rules”. Um exemplo
grosseiro: apertar um botão para fazer um personagem pular. SICART, Miguel. Defining
game mechanics. The International Journal of Computer Game Research, v. 8, n. 2, 2008.
Disponível em: http://gamestudies.org/0802/articles/sicart.
23 Como explicado por Mäyrä, “Gameplay is what you do. It’s not the interface (thus, saving
your game is not gameplay), it’s not the graphics and it’s not the story. It’s the part of the
game that absolutely requires the player’s participation.
Gameplay embodies the rules of the game. For example, in a game like chess, each
playing piece has its own rules, and along the playing field, the chess board, these rules
interact to create gameplay”. MÄYRÄ. Frans. An introduction to game studies: games and
culture. London: SAGE, 2008, p. 16.
24 JENKINS, Henry. Game design as narrative architecture. In: WARDRIP-FRUIN, Hoan e HAR-
RIGAN, Pat (eds.). First person: new media as story, performance and game. Cambridge:
The MIT Press, 2004.
25 Ibidem.
130 CADERNOS FGV DIREITO RIO

1. O componente “narrativa” pode estar mais ou menos presente em de-


terminados jogos, e o uso em sala de aula pode voltar-se, justamen-
te, a vivenciar e discutir a história veiculada. Assim como é possível
transformar em objeto de discussão a história de um filme ou de um
livro, pode-se fazer o mesmo com um jogo que tenha na narrativa seu
elemento mais importante;
2. O componente “gameplay” sempre está, em alguma medida, presente,
ainda que fique em segundo plano em relação à narrativa. Em alguns
casos, pode interessar mais ao ponto debatido em sala de aula o sis-
tema de regras estabelecido por um jogo ou a representação de uma
determinada realidade via esse sistema de regras. É o caso do exemplo
citado no início deste ensaio, com SimCity;
3. A interação entre narrativa e gameplay gera uma experiência expressiva,
ou seja, uma experiência que carrega consigo um significado para além
do conteúdo específico do jogo. A partir dessa experiência é possível
incentivar os alunos a problematizarem e refletirem sobre determinados
temas de maneiras não permitidas por outras mídias. Não se trata, aqui,
de uma pretensa superioridade de uma mídia em relação a outra, mas
sim de diferenças quanto às experiências que elas proporcionam.

Como defendido por Bogost, uma das principais características dos jogos
é a sua aptidão à retórica procedimental, entendida como “[...] the practice of
authoring arguments through processes.”26 Por meio de representações basea-
das em regras, em vez de texto e elementos audiovisuais, é possível criar obras
com um poder persuasivo peculiar, que pode ser direcionado a aplicações nos
campos da política, publicidade e educação. Em outras palavras: jogos carre-
gam expressão e mensagens que se manifestam por meio de procedimentos e
regras, e da submissão dos jogadores a eles.27

26 BOGOST, Ian. Persuasive games: the expressive power of videogames. Cambridge/London:


The MIT Press, 2007, p. 28-29.
27 “Procedurality refers to a way of creating, explaining, or understanding process. And pro-
cesses define the way things work: the methods, the techniques, and logics that drive the
operation of systems, from mechanical systems like engines to organizational systems like
high schools to conceptual systems like religious faith. Rhetoric refers to effective and per-
suasive expression. Procedural rhetoric, then, is a practice of using processes persuasively.
More specifically, procedural rhetoric is the practice of persuading through processes in
general and computational processes in particular. Just as verbal rhetoric is useful for both
the orator and the audience, and just as written rhetoric is useful for both the writer and
the reader, so procedural rhetoric is useful for both the programmer and the user, the game
designer and the player. Procedural rhetoric is a technique for making arguments with
computational systems and for unpacking computational arguments other have created.”
Ibidem, p. 3.
JOGOS ELETRÔNICOS E DIREITO 131

Em alguns jogos, isso é mais claro do que em outros. A retórica procedi-


mental é transparente em jogos como Phone Story (2011), da Molleindustria,
desenvolvedora do designer italiano Paolo Pedercini. O próprio jogo se anuncia
como “a game for smartphone devices that attempts to provoke a critical re-
flection on its own technological platform”, a partir da representação, em forma
de jogo, da cadeia de produção global de smartphones, colocando o jogador
numa posição de “cumplicidade simbólica” com os processos de extração de
coltan no Congo, trabalho em situações análogas à escravidão na China, pro-
dução de lixo eletrônico no Paquistão, e consumismo desenfreado nos países
ricos do ocidente.28
Outros jogos podem ser menos transparentes, mas a retórica procedimen-
tal é um elemento a ser considerado em qualquer análise de jogo. A série Grand
Theft Auto, por exemplo, defende implícita ou explicitamente uma série de
valores, ideias e opiniões sobre uma variedade de temas, por meio de narrati-
va e gameplay. Para identificar como isso ocorre é necessário jogar o jogo, e
a partir dessa experiência realizar uma análise que considere tanto conteúdo
como os sistemas de regras — os elementos procedimentais do jogo —, e o que
eles representam.

Cuidados fundamentais
Ao decidir utilizar um game em sala de aula, além da pertinência do jogo com
os objetivos de ensino e o conteúdo a ser explorado, há peculiaridades ineren-
tes a essa mídia que devem ser consideradas:

Acessibilidade. Praticamente todo aluno possui o equipamento necessário


para se assistir a um filme — que, em todo caso, pode ser exibido pela própria
instituição de ensino. A leitura de um livro é ainda menos complicada. Basta ter
acesso a um exemplar, físico ou digital. Quando falamos em jogos, entretanto,
a situação muda.
Alguns jogos são exclusivos a determinadas plataformas (consoles ou sis-
temas operacionais específicos). Outros têm requerimentos muito rigorosos
em termos de hardware, também algo a se evitar. E alguns são bem caros. O
ideal é escolher jogos que possam ser jogados em computadores (e não con-
soles), disponíveis gratuitamente para Windows, Mac OS e Linux, ou jogáveis a
partir de um browser (navegador).

Dificuldade. Alguns jogos são difíceis. Muito difíceis. É importante levar


em consideração que nem todo aluno vai ser capaz de enfrentar games desa-

28 Uma versão para navegadores pode ser jogada em: http://www.phonestory.org/


132 CADERNOS FGV DIREITO RIO

fiadores, e escolher jogos que atendam a finalidades educativas independente-


mente da habilidade do jogador.

Sensibilidade. Às vezes o objetivo do professor pode ser provocar, mas


é preciso tomar muito cuidado com jogos cujo conteúdo  é violento, racista,
homofóbico etc., a não ser que o objetivo seja, justamente, uma análise críti-
ca desses problemas. Grand Theft Auto 5 é um bom exemplo — há uma cena
de tortura interativa, mulheres são retratadas com considerável misoginia, e
o jogo é bastante violento. Talvez seja possível pensar em boas razões para
utilizá-lo, mas é necessário que o professor tenha sensibilidade quanto ao perfil
de seus alunos e saiba antecipar potenciais problemas.

Duração. Certos jogos só fazem sentido se jogados do começo ao fim. O


que pode demorar, em casos extremos, mais de 100 horas.29
Assim como não se deve exigir uma carga de leitura excessiva da turma,
tampouco é razoável exigir que os alunos fiquem horas para terminar um game.
Não é má ideia escolher jogos que tenham a duração de um filme (ou um pouco
mais, ou menos), ou que não precisem ser jogados até o final.

Sugestões de atividades
Sem qualquer pretensão de exaustividade, seguem três possibilidades de uso
de jogos eletrônicos em sala de aula:

Narrativa. Parte-se da narrativa de um jogo para abordar temas relevantes


às aulas. Trata-se de uma abordagem similar a que se adotaria para um filme ou
romance. Com base na narrativa ou no conteúdo da obra, o professor e alunos
conduzem uma discussão que relaciona a obra à matéria estudada. Pode-se
utilizar, também, leituras complementares ou outras obras artísticas.
Essa não é, entretanto, a maneira mais rica de se utilizar um jogo. Se o
objetivo é apenas introduzir alguns assuntos à aula, talvez seja melhor e mais
eficiente ir diretamente ao cinema ou literatura, e deixar os jogos para quando
a experiência de jogar acrescente algo diferente.

Análise. Pede-se aos alunos que joguem um jogo e façam uma análise da
obra enquanto jogo. Aqui, pode-se tanto escolher jogos que tenham uma nar-
rativa quanto jogos que sejam puro gameplay. Jogos de simulação, por exem-
plo, são material excelente para análise. Toda simulação procura representar,
com um sistema (ou sistemas) de regras inter-relacionadas, uma certa realida-

29 O site How Long to Beat tem uma base de dados com várias informações úteis sobre a
duração de jogos: http://howlongtobeat.com/.
JOGOS ELETRÔNICOS E DIREITO 133

de. Essas regras representam bem ou não a realidade que procuram represen-
tar? Quais os pressupostos adotados pelo jogo, para estabelecer a simulação?
Quais as posições ideológicas por trás do design?
Representações de gênero, raça, etnia e orientação sexual podem ser ob-
jeto de discussão em aulas de direitos humanos. Jogos que têm preocupação
com world building geralmente definem relações sociais, de poder, religiosas,
de gênero, e são ótimos pontos de partida para discussões aprofundadas sobre
essas questões.
Os jogos listados na próxima seção, abaixo, apresentam alguns temas e
jogos que podem se mostrar adequados para uma atividade de análise em
aulas de direito.

Design. Pode soar pouco provável, mas outra maneira de se explorar jogos
em sala de aula é colocar o próprio professor ou seus alunos no papel de game
designer. Realidades que o direito procura regular, ou até as próprias normas
jurídicas, podem ser representadas e colocadas sob novas perspectivas por
meio de um exercício de design.
O resultado final não precisa ser um jogo eletrônico e pode muito bem
ser um jogo de tabuleiro ou de cartas. Mas há ferramentas para construção de
jogos eletrônicos cujo uso não está fora do alcance de alguém que não saiba
programar. Há, é verdade, uma curva de aprendizagem a se considerar, e game
design não é algo trivial de se fazer bem. O exercício de se pensar em como
transformar algo em jogo, entretanto, pode valer a pena ainda que o resultado
final seja um jogo ruim.
Text adventures ou ficção interativa são uma boa opção para designers
principiantes. Predominantemente focados em narrativa literária, com graus
variados de interatividade, esses jogos são fáceis de se criar a partir de uma
ferramenta chamada Twine.30 Diversos exemplos de jogos construídos em Twi-
ne podem ser encontrados no site itch.io.31

Alguns jogos
Como ilustração, por fim, seguem cinco sugestões de jogos que podem ser
utilizados para análise em sala de aula, com temas correspondentes:

Cart Life (2011, Richard Hofmeier)


http://www.richardhofmeier.com/cartlife/
Temas: Trabalho. Desemprego. Seguridade social.

30 http://twinery.org/.
31 http://itch.io/search?q=twine.
134 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Em Cart Life, o jogador pode escolher interpretar 3 diferentes vendedores


de rua, cada qual com um perfil (e problemas) diferentes. O principal objetivo
do jogo é simplesmente sobreviver, repetindo trabalhos tediosos, lidando com
problemas cotidianos, dispondo de pouquíssimos recursos e enfrentando con-
dições adversas. A estética do jogo, pixelada e em preto e branco, contribui
para o clima opressivo e depressivo da realidade dos personagens.
Cada personagem tem uma história própria e exige estratégias diferentes
do jogador. Dentre as 3 opções, há Melanie, que mora com sua filha na casa
da irmã, e tenta reconstruir a vida após o divórcio vendendo café. Andrus, um
imigrante ucraniano que acabou de chegar ao país e administra uma banca de
jornais. E Vinny, que tem um carrinho de bagels, e precisa ganhar o suficiente
para não ser despejado de seu apartamento.

The Republia Times (2012, Lucas Pope)


http://dukope.com/play.php?g=trt
Temas: Liberdade de expressão. Liberdade de imprensa. Comunicação so-
cial. Opinião pública. Propaganda política.

O jogador interpreta um editor recém chegado à redação de um jornal no


país fictício de Republia. Uma ditadura que acabou de sair debilitada de uma
guerra com a nação vizinha de Antegria, Republia agora precisa lidar com for-
ças rebeldes que se movimentam para derrubar o regime e forte insatisfação
popular.
O objetivo do jogador é compor a primeira página de várias edições do
jornal, de modo a influenciar a opinião pública em favor ao regime. Há a possi-
bilidade de escolher quais as manchetes a serem publicadas, a partir de uma lis-
ta de notícias — favoráveis ao governo, favoráveis às forças rebeldes e neutras
— bem como o espaço que elas irão ocupar no jornal. Se o editor não seguir
as recomendações do regime, pode se prejudicar. Caso não siga, também: as
forças rebeldes têm chances reais de sucesso.

Papers Please (2013, Lucas Pope)


http://papersplea.se/
Temas: Burocracia. Controle de fronteiras. Imigração. Discricionariedade
e legalidade.

Mais um jogo de Lucas Pope, ambientado no mesmo universo ficcional de


The Republia Times. O jogador agora trabalha como um agente de imigração
na fronteira de Arstotzka, um país do leste europeu, em 1982. Todo dia, o agen-
te deve conferir os documentos de pessoas que chegam ao país, de acordo
JOGOS ELETRÔNICOS E DIREITO 135

com as regras determinadas por seus superiores. Se os documentos estiverem


incompletos, apresentarem problemas, ou houver contradições entre o que é
dito pelo viajante e os papéis, o agente deve recusar a entrada. Caso contrário,
deve permitir.
As regras que regem a admissão a Arstotzka ficam gradualmente mais
complicadas. O número de documentos, maior, bem como os itens que devem
ser checados pelo agente. Quanto mais indivíduos forem processados com su-
cesso pelo agente, maiores as recompensas salariais. Quanto menos, menos
recursos dispõe o agente para cobrir os gastos com moradia, alimentação e
saúde de sua família. No acumular dos dias, intensifica-se o inferno burocrático
criado pelas ordens recebidas de cima.
Paralelamente, o agente tem que lidar com a ameaça de uma organização
contrária ao governo de Arstotzka — cujos planos pode ajudar ou prejudicar —,
dilemas morais, tráfico de escravas sexuais e questões humanitárias, sempre di-
vidido entre o fiel cumprimento dos deveres burocráticos e a opção por violar
algumas regras, em prejuízo de sua própria posição e a segurança e conforto
de sua família. Há 20 finais possíveis.

Phoenix Wright: Ace Attorney (2001, Capcom)


http://www.capcom.com/phoenixwright/
Temas: Processo. O tempo no processo. Provas. Devido processo legal.

Um dos poucos jogos existentes sobre advogados e processo judicial, e


presença inevitável em qualquer texto sobre games e direito. Ainda que hi-
perbólico e fantasioso — ou talvez justamente por esse motivo —,pode render
boas discussões a respeito de uma série de temas de direito processual penal.
O jogador interpreta Phoenix Wright, um advogado de defesa amador,
resolvendo casos em sequências que alternam instrução probatória e julga-
mento. O sistema processual no universo do jogo exige que todo caso seja
julgado em 3 dias, e Phoenix tem que lidar com a pressão do limite temporal,
sua insegurança enquanto advogado, clientes pouco colaborativos, promoto-
res agressivos, e um juiz com dificuldades cognitivas.
Há cinco jogos na série, cada um com 3 casos, e uma narrativa transver-
sal a eles. Ao contrário dos outros jogos indicados acima, infelizmente esse
não está disponível em muitas plataformas. É possível jogar casos alternativos
elaborados por fãs, com personagens da série oficial, em Ace Attorney Online:
http://aceattorney.sparklin.org/.
136 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Unmanned (2012, Molleindustria)


http://unmanned.molleindustria.org/
Temas: Guerra. Drones.

Unmanned é um jogo composto a partir de uma série de vinhetas que


exploram o cotidiano de um operador de drones americano em meio a uma
guerra no Oriente Médio. Ao mesmo tempo em que pilota os veículos e aciona
ataques aéreos, o soldado lida com atos prosaicos como barbear-se, cantar
uma música enquanto dirige, conversar amenidades com sua colega de sua
trabalho e jogar videogame com seu filho.
O jogo fala sobre guerra e sobre ataques por drones assumindo o ponto
de vista de um soldado que nada mais é do que um funcionário público, atu-
ando em uma guerra com o distanciamento de um jogador de videogames.
O paralelismo entre o jogo eletrônico dentro do jogo, e o jogo que se joga
operando o drone e promovendo ataques aéreos, entrecortado com diálogos
— escolhidos pelo jogador — bem como a transformação de atos corriqueiros
como fumar, dirigir e cantar em mecânicas de jogo, expressam de uma maneira
instigante uma guerra com aspectos tanto absurdos quanto banais.

Referências bibliográficas

ANTHROPY, Anna. Rise of the videogame zinesters: how freaks, normals, ama-
teurs, artists, dreamers, dropouts, queers, housewives, and people like you are
taking back an artform. New York: Seven Stories Press, 2012.

BOGOST, Ian. Persuasive games: the expressive power of videogames. Cam-


bridge/London: The MIT Press, 2007.

BOGOST, Ian; FERRARI, Simon; SCHWEIZER, Bobby. Newsgames: journalism at


play. Cambridge/London: The MIT Press, 2010.

GRIEVESON, Lee. Policing cinema: movies and censorship in early Twentieth-


-Century America. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 2004.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: a study of the play element in culture. London/
Boston/Henley: Routledge & Kegan Paul, 1949.

JENKINS, Henry. Game design as narrative architecture. In: WARDRIP-FRUIN,


Hoan e HARRIGAN, Pat (eds.). First person: new media as story, performance
and game. Cambridge: The MIT Press, 2004.
JOGOS ELETRÔNICOS E DIREITO 137

JUNIOR, Gonçalo. A guerra dos gibis: a formação do mercado editorial brasi-


leiro e a censura aos quadrinhos, 1934-64. São Paulo: Companhia das Letras,
2004.

JUUL, Jesper. A casual revolution: reinventing video games and their players.
Cambridge/London: The MIT Press, 2010.

LASTOWKA, Greg. Law and games studies. Games and Culture, v. 1, n. 1, 2006,
pp. 25-68.

MÄYRÄ. Frans. An introduction to game studies: games and culture. London:


SAGE, 2008.

SAUCERMAN, Jenny. SimCity: can a god game teach urban planning? GAPS, 20
de abril de 2013. Disponível em: http://edgaps.org/gaps/simcity/.

SICART, Miguel. Defining game mechanics. The International Journal of Com-


puter Game Research, v. 8, n. 2, 2008. Disponível em: http://gamestudies.
org/0802/articles/sicart.
138 CADERNOS FGV DIREITO RIO
DIREITO & ROCK: WHEN TWO WORLDS COLLIDE1 OU BREAK
ON THROUGH… TO THE OTHER SIDE2?

Germano Schwartz3

1. Introdução
Em 1998, durante uma encruzilhada na carreira multiplatinada do Iron Mai-
den, na época em que o contestado Blaze Bayley substituía o vocalista Bruce
Dickinson como frontman da banda ícone do New Wave of British Heavy
Metal, o grupo lançou o subestimado disco Virtual XI. Como o próprio nome
diz, o álbum fala de um mundo em que a virtualidade se sobrepõe aos con-
tatos reais.
Uma das músicas da obra em referência é aquela que consta do título
deste ensaio: When Two Worlds Collide. Em síntese, no seu refrão, a donzela
de ferro canta que quando dois mundos diversos colidem, sobram somente a
raiva e a dor. O problema é que os sobreviventes não possuem lugar para se
esconder, pois aquilo que resta é seu único mundo. Monocromático.
De outro lado, Jim Morrison, frontman do The Doors, escreveu a letra da
música que também intitula este artigo. Ela é a faixa que abre o primeiro dis-
co (The Doors) da banda californiana. Uma gravação de alta influência até os
dias de hoje. O ano era o de 1967. Contracultura, subversão, puritanismo, entre
outros, faziam parte de uma sociedade que se encontrava em uma encruzi-
lhada. Era a hora ou de manter o status quo ou de rompê-lo e avançar com
as mudanças sociais. Em qual direção? Para o outro lado. Break on through to
the other side!
O Direito encontra-se nesse exato dilema. Romper e inovar, aceitando no-
vas possibilidades para sua observação, ou deixar colidir dois mundos (Direito
e Sociedade), fazendo com que juristas não tenham mais onde se abrigar, exce-
to naquilo que lhes resta: seu feudo composto de normas jurídicas.
Longe do desencanto apocalíptico pré-século XXI do Iron Maiden, o pre-
sente ensaio quer se juntar à visão de Jim Morrison. Se é sabido que o dia des-
trói a noite e que a noite divide o dia, nada mais elementar que evitar a colisão
dos mundos, tentando correr para o outro lado.

1 Esse é título da quinta música do álbum Virtual XI, lançado em 1998, pela banda britânica
Iron Maiden. MAIDEN, Iron. Virtual XI. EMI: Brasil, 1998. 1 CD.
2 Faixa inaugural do debut da banda californiana The Doors, em álbum cujo título leva o
nome do próprio grupo. DOORS, The. The Doors. Elektra: USA, 1967. 1 CD.
3 Diretor Executivo Acadêmico dos Cursos de Direito da FMU. Coordenador do Mestrado em
Direito e Sociedade do Unilasalle-Canoas. Secretário do Research Committee on Sociology
of Law (RCSL) da International Sociological Association (ISA). Doutor em Direito (Unisinos).
140 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Nesse sentido, parte-se de um ponto de vista gnosiológico: Direito e socie-


dade são interligados4. De uma maneira, será mais bem explicado adiante como
a arte (tal qual o rock) faz parte da sociedade. Por conseguinte, o Direito rece-
be, também do rock, influências5. Como o rock será juridicizado, depende, ape-
nas, da autonomia de cada subsistema da sociedade (Direito e Arte, no caso).
Resta claro, portanto, que a base teórica da análise em comento se dá por
meio da teoria dos sistemas sociais autopoiéticos aplicada ao Direito (TSAD)6.
Em grandes linhas, existe um sistema social global que se baseia em comuni-
cações7. Subsistemas sociais são gerados por meio de sua autorreprodução,
sua auto-organização e sua autorreferência8. São sistemas cognitivamente
abertos e operativamente fechados9. Diferenciam-se funcionalmente uns dos
outros, tornando-se ambiente um do outro10. Advém dessa correção sistema
verso ambiente, o elemento que possibilita a conexão entre Direito & Rock.
Tendo esses pressupostos em mente, o artigo pretende responder às se-
guintes perguntas:

(1) Mas que lado é esse de que fala Jim Morrison?


(2) O que, afinal de contas, o Direito tem a ver com o rock?
(3) Por que a opção pelo rock e não por outro estilo musical para se esta-
belecerem as conexões — todas elas, adiante-se, procurando relacionar
o Direito com a sociedade — aqui pretendidas?

2. Direito & Rock: come as You Are11.


Na hipótese formulada a partir de When Two Worlds Collide, o Direito igno-
ra seu Dark Side of the Moon12 por meio de ficções das normas hipotéticas

4 LUHMANN, Niklas. La Sociedad de La Sociedad. México: Herder, 2007, p. 350.


5 Para um maior aprofundamento sobre esse ponto, veja-se SCHWARTZ, Germano. Direito
& Rock. O Brock e as Expectativas Normativas da Constituição de 1988 e o Junho de 2013.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.
6 Como um texto introdutório sobre a TSAD, consulte-se ROCHA, L.;SCHWARTZ,G.; CLAM,
J.; Introdução à Teoria do Sistema Autopoiético do Direito. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2013.
7 SCHWARTZ, Germano. As Teses Radicais de Luhmann. RECHTD. São Leopoldo: Unisinos,
2014, v.6, n.1, p. 112.
8 É o ciclo autopoiético estabelecido por TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Auto-
poiético. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989.
9 RABAULT, Hugues. Un Monde Sans Réalité? En compagnie de Niklas Luhmann: épistémolo-
gie, politique et droit. Laval: Les Presses de l’Université Laval: 2012, p. 65.
10 AGUIRRE, José Antonio Ibañez. Para Leer a Luhmann. México: Universidad Iberoamericana,
2012, p. 87-126.
11 A música, do Nirvana, diz claramente: “venha, como um amigo”. É um convite ao conhe-
cimento do outro. Trata-se da terceira faixa do disco que estourou a banda. NIRVANA.
Nevermind. DGC: USA, 1991. 1 CD.
12 Título do álbum conceitual seminal do Pink Floyd. PINK FLOYD. Dark Side of The Moon.
Harvest Records: United Kingdom, 1973. 1 CD.
DIREITO & ROCK 141

fundamentais13 e das regras de reconhecimento 14


como se vivesse em uma
Matrix. Suas teias de argumentação e de legitimações internas promovem uma
realidade que Warat, de há muito, referia ter profanado o sagrado no Direito15.
Tornam-se cúmplices do fato de o tempo da sociedade diferir em demasia do
tempo do Direito16.
Aliás, Warat se intitulava como um filho do Maio de 68, movimento pelo
qual Jim Morrison, aquele que escreveu a letra-mote deste artigo, nutria admi-
ração (foi em Paris que ele faleceu e está sepultado no Père Lachaise). O Direito
aprisiona, segundo o autoproclamado jurista baiano-argentino. Mas o que o li-
berta não se encontra, por evidência, no Direito. Contudo, a ele resta conectado.
Daí que o famoso texto dos doze camelos de Luhmann17, ao explicar como
existe um paradoxo fundamental no Direito (ele necessita e, ao mesmo tempo,
não precisa de operações específicas), torna visível seu ponto cego, seu dark
side. Ora, o fundamento do Recht não se apoia exclusivamente em si mesmo.
Ele precisa de sua equivalência funcional, o UnRecht. É uma unidade da dife-
rença18. Em outras palavras: para se reafirmar enquanto Direito, o Direito não
prescinde de suas comunicações com os demais sistemas. O sistema é fechado
porque é aberto. Tautologia. Paradoxo.
Bagnall19 já afirmava, contundentemente, que o Direito consiste numa forma
de trabalho artístico. Mas de que forma isso é possível? Para o autor, as normas
jurídicas se apresentam como uma hipótese artística, já que ambos são abstrações
que se constroem sobre — e a partir de — outras abstrações. Esse é tanto o terreno
das normas quanto das obras de arte. Desse modo, quando se pensa em estraté-
gias cognitivas, não há diferença entre abstrações de abstrações. A maneira pela
qual Direito e Arte elaboram seus processos de conhecimento são correlatos.
Ademais, na ótica da TSAD, a Arte é observada por meio de seu valor20.
Dito em outras palavras: a capacidade de influenciar e de causar impacto na
sociedade constituiu o grande diferencial do sistema artístico. As obras de arte
são prognósticos21. Antecipam-se à evolução social, tornando-se, não raro, sua

13 Nesse sentido, veja-se SCHWARTZ, Germano. Considerações sobre a Teoria Kelseniana.


Revista do Curso de Direito. Unicruz: Cruz Alta, 2000, p. 97-106.
14 HART, Herbert. O Conceito de Direito. 5ªed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2007.
15 WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua Linguagem. Porto Alegre: Fabris, 1992.
16 OST, François. O Tempo do Direito. Lisboa: Piaget, 1999.
17 LUHMANN, Niklas. A Restituição do Décimo Segundo Camelo: do sentido de uma análise
sociológica do Direito. In: LOPES JR., Dalmir; ARNAUD, André-Jean. Niklas Luhmann: do
sistema social à sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 20024, p. 33-107.
18 LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft. Frankfurt Am Main: Suhrkamp, 1997, p. 165-213.
19 BAGNALL, Gary. Law as Art : An Introduction. In: MORRISON, John; BELL, Christine (Eds).
Tall Stories? Reading Law and Literature. Darthmouth : Aldershot, 1996,p. 269.
20 LUHMANN, Niklas. Art as a Social System. Stanford: Stanford University Press, 2000, p. 235.
21 LUHMANN, Niklas. A Obra de Arte e a Auto-Reprodução da Arte. In: OLINTO, Heidrun
Krieger (Org). Histórias da Literatura. São Paulo: Ática, 1996, p. 255: “A arte oferece fre-
142 CADERNOS FGV DIREITO RIO

razão. Por isso a dificuldade de se mensurar o valor das obras de arte. O Direito,
por seu turno, possui seus parâmetros (leis, sanções, entre outras). É dessa for-
ma que as obras artísticas (Rock) possibilitam a aceitação psíquica das expec-
tativas normativas22 existentes nos ambientes dos demais subsistemas sociais.
Nesse sentido, o rock se apresenta como um fenômeno social que possui
alta conexão com o Direito, seja como instrumento de contestação do status
quo (normas jurídicas), seja como catalizador das ambiências sociais. Como
parte do sistema da arte, possui suas próprias características e suas comunica-
ções específicas. Tais comunicações, em grandes linhas, são de ordem subver-
siva, como um American Idiot 23 em plena Guerra do Iraque.
A arte antecipa e o rock é arte. Dessa maneira, o rock, assim como qual-
quer outra forma artística (Literatura)24, pode auxiliar a que se chegue ao outro
lado da Lua, proporcionando novas formas de observação do sistema jurídico e
de suas relações com os demais sistemas.

3. Por que o Rock, afinal “We fought the Law, But Law Won!”25?
Nessa linha de raciocínio, por qual razão rock e Direito, afinal “We“ fought the
Law but Law Won 26
? As respostas, em grande parte, foram alinhadas anterior-
mente. Aduz-se aqui apenas um outro elemento. Das relações recíprocas entre
arte e Direito exsurgem vários cenários. Um deles, a partir do rock, é típico de
uma sociedade que se torna cada vez mais complexa. Dita complexidade ocorre
a cada momento e é incessante27. Essa característica, a complexidade, é eviden-
ciada com maior ênfase em um sistema social global que se torna potencializado
no pós-guerra (1945 em diante) e cuja maior característica é a comunicação28.
Assim, desde os anos 50 do século passado, com Elvis, Little Richard ou
Jerry Lee Lewis, apenas para exemplificar alguns, passando por figuras tais

quentemente sinais de antecipação da evolução social, passíveis de serem lidos, retrospec-


tivamente, como prognósticos”.
22 Expectativas normativas são: “expectativas de comportamento estabilizadas em termos
contrafáticos. Seu sentido implica na incondicionabilidade de sua vigência na medida em
que a vigência é experimentada, e portanto também institucionalizada, independentemen-
te da satisfação fática ou não da norma”. LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de
Janeiro : Tempo Brasileiro, 1983, p. 57.
23 GREEN DAY. American Idiot. Warner Bros Records: USA, 2004. 1CD.
24 Veja-se, como exemplo, SCHWARTZ, Germano. A Constituição, a Literatura e o Direito.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
25 Muito embora tenha conseguido grande sucesso na voz do The Clash, a canção que intitula
esse item é de autoria de Sonny Curtis e foi gravada por sua banda no ano de 1959.
26 MILLARD, Éric. I Fougth the Law. In: MASTOR, W.;MARGUÉNAUD, J-P.; MARCHADIER, Fa-
bien. Droit et Rock. Paris: Dalloz, 2011, p. 193-200.
27 LUHMANN, Niklas. Observaciones de la Modernidad. Racionalidad y Contigencia en la So-
ciedad Moderna. Barcelona: Paidós, 1997.
28 LUHMANN, Niklas. Sistemas Sociales. Lineamientos para una Teoría General. México: Uni-
versidad Iberoamericana, 1998, p. 27.
DIREITO & ROCK 143

como Hendrix, Janis Joplin, Robert Plant, Bono Vox, Curt Cobain, entre outros,
até chegar a figuras atuais como um Mariliyn Manson, o fato é que o rock se
tornou um fenômeno de massa tipicamente global. Há rock cantado em pra-
ticamente todas as línguas conhecidas. Depois dele, o mundo nunca mais foi
o mesmo, mas sua língua corrente, a música, continua inalterada (The Song
Remains the Same — Led Zeppelin): o rock.
O rebolado de Elvis nos anos 50 do século passado teve uma repercus-
são na América puritana daquela época tão grande que não possui condições
de ser mensurado. O The Pelvis teve suas músicas censuradas, pois elas eram
consideradas um poço de sensualidade. Um escândalo. O problema é que a
sociedade já havia sido infectada por aquele vírus, conforme defende Hein29,
para quem o fenômeno do rock dos anos 50 produziu claramente uma série de
efeitos que modificou boa parte das estruturas sociais e econômicas de consi-
derável parte dos países ocidentais.
Muito disso vem do fato de que o rock viabilizou (medium) a comunicação
das expectativas sociais — correlacionadas às expectativas normativas — com
os demais sistemas sociais (Direito), pois basta juntar uma guitarra, um baixo
e uma bateria, com alguma pouca instrução musical30, para se questionarem,
inclusive, instituições centenárias como a monarquia inglesa31. É a filosofia do
you too32, típica do rock, que alcançou para os indivíduos a autonomia nas
comunicações e a possibilidade de produzir realidades para além daquela for-
necida pela mídia tradicional. O rock torna provável o improvável33: comunicar
música com o Direito.
Diante disso, é imperativo tentar descobrir qual a semântica que o rock
chamou para si na sociedade contemporânea e, ainda, o que ele tenciona co-
municar a partir de sua diferenciação social?
Bralic34, sobre esse aspecto, reporta que músicas inovadoras, tal como
o rock, não possuem sentidos correlatos em outros subsistemas sociais. Em
oposição, por respeitar seus próprios limites que, musicalmente, não são, via
de regra, de grandes pretensões, o rock se vê diante de um paradoxo: para se
reafirmar enquanto rock, ele precisa afirmar que não o é. Com isso, seu sentido

29 HEIN, Fabien. Le rock, une musique subersive? In: MASTOR, W.;MARGUÉNAUD, J-P.; MAR-
CHADIER, Fabien. Droit et Rock. Paris: Dalloz, 2011, p. 32.
30 Como é o caso dos Sex Pistols.
31 Lembre-se, aqui, do álbum The Queen is Dead , da banda The Smiths.
32 A partir dessa frase, uma banda irlandesa, muito famosa, montou seu nome. É o U2.
33 LUHMANN, Niklas. A Improbabilidade da Comunicação. 4ªed. Lisboa: Vega, 2006.
34 BRALIC, C. A. La Obra Musical como Punto de Vista. Análisis sistémico sobre la “Música
Contemporánea”. In:: I. Farías & J. Ossandón, eds. Observando Sistemas: neuvas apropria-
ciones y usos de la teoria de Niklas Luhmann. Santiago: RIL Editores; Fundación Soles,
2006, p. 136.
144 CADERNOS FGV DIREITO RIO

vai, rotineiramente, se manifestando. Assim, o próprio compositor, no fim, não


possui a dominância sobre o ato de informação inicial.
É assim que o rock, inserido no sistema da arte, é caracterizado como de
complexidade temporalizada. Nesses sistemas35, uma melhor análise de seus
conceitos é algo que ocorre no tempo. A função do rock, dessa maneira, é a de,
evento em evento (novos álbuns, shows, clipes, entre outros), tornar possível
sua própria autorreprodução dentro do sistema artístico.
Vê-se, portanto, que a opção pelo rock se dá por duas razões: a primeira,
por sua capacidade antecipatória e de impacto comunicacional perante os de-
mais subsistemas sociais; a segunda, em função do tipo de comunicação por
ele estabelecida, de claro caráter subversivo36 (lembre-se de que o Direito é
status quo), significando que seu potencial em relação às expectativas norma-
tivas é muito maior do que em outros gêneros musicais.

4. E por que não outros estilos musicais? It’s Only Rock’n’Roll....


But I like It37.
A partir do exposto, chega-se à ultima pergunta: por que tentar fazer isso tudo
por meio do rock e não com base em outro estilo musical, como, por exemplo, a
bossa nova ou a música popular brasileira? Certamente que tal intento é viável.
Diga-se: o samba brasileiro38, como o de Bezerra da Silva, produziria um tratado
sobre as relações — e os pontos cegos — entre a sociedade brasileira e seu Direito.
Existem várias respostas. A principal, todavia, advém da nascença do rock,
um filho bastardo do country e do blues, segundo Keith Richards39. Aquele é
o canto dos pilgrim`s que vieram no Mayflower. A saudade da terra natal era
superada por uma promessa jurídica: nos Estados Unidos da América todos são
sujeitos de Direito, enquanto na Europa isso não era verdade; este, o blues, por
seu turno, é o lamento dos escravos por deixarem sua África natal, onde eram
sujeitos de Direito, para morarem em uma nova terra, local em que deixariam
de ter direito a ter direitos40.
Não se pode deixar de sublinhar esse fenômeno. Ducray41 refere que a
quantidade de imigrantes que desembarcou na América no ano de 1620, junto

35 CARVALHO, M. V., Série, alea e autopoiesis. In:: J. M. Santos, ed. O Pensamento de Niklas
Luhmann. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2005,p. 167.
36 HEIN, Le rock, une musique subersive?, 2011, p.35.
37 Título de uma das músicas mais famosas dos Rolling Stones.
38 Uma das conexões entre Direito e samba é feita por GRÜNE, Carmela. Samba no Pé & Direi-
to na Cabeça. São Paulo: Saraiva, 2012.
39 RICHARDS, Keith. Vida. São Paulo: Nova Fronteira, 2012.
40 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.
324.
41 DUCRAY, F.. Que faut-il entendre para <<musique rock>>?. In:: M. Wanda, J. Marguénaud &
M. Fabien, eds. Droit et Rock. Paris : Dalloz, 2011, p. 12-13.
DIREITO & ROCK 145

com o Mayflower, tinha uma origem bastante diferenciada. Todos, entretanto


possuíam um objetivo em comum: o respeito aos seus direitos enquanto ci-
dadãos, fato negado na Velha Europa. Eram ingleses, poloneses, irlandeses,
austríacos, franceses, russos, entre outros.
Como, à evidência, não se tratavam de pessoas com grandes posses, eles
não trouxeram consigo, durante a longa travessia atlântica, pianos, cravos ou
outros instrumentos de porte. Note-se, ainda, que o navio também não supor-
taria o peso dessa carga. O que veio com os imigrantes, inclusive para reavi-
var no senso coletivo a sua cultura e o seu folclore, foram os violões. Quando
em solo americano, as baladas anglo-irlandesas, baseadas no som dos violões,
cumpriram a tarefa de denunciar a rotina dramática e violenta ao qual foram
expostos, do mesmo modo que as músicas de danças mais rítmicas e sentimen-
tais, provenientes do Tirol germânico, faziam-nos esquecer tal realidade. É a
hilbilly song — a música caipira-, o gérmen da música country.
Seguindo com Ducray42, uma outra travessia também era feita com des-
tino à América ao mesmo tempo daquela realizada pelo Mayflower. Para essas
pessoas, entretanto, não havia esperança ou uma promessa de liberdade e de
respeito a seus direitos. Eram os escravos negros africanos. Não ocorre imi-
gração. Êxodo. Por óbvio, não traziam nada que lhes acompanhasse durante a
viagem, muito menos instrumentos musicais. Tudo o que poderiam fazer para
passar o tempo era cantar. Um canto triste, visceral, liberador da voz interior
de cada escravo: o blues.
A tristeza (blues) foi a maneira pela qual os negros escravos da América
conseguiram traduzir sua dor em ritmo musical que remete a um deus africa-
no do vodu. Exaltam-se os prazeres da carne, em clara oposição ao passado
pasteurizado dos imigrantes do Mayflower. Veja-se, como exemplo, a condição
que Robert Johnson teve enquanto renegado do blues e seu famoso pacto com
o diabo43. O ritmo do blues e sua essência (soul) são absolutamente essenciais
para compreender o surgimento do rock e seu impacto na sociedade (Direito).
Note-se, para os fins a que se propõe este artigo: o rock nasce de pro-
messas jurídicas cumpridas (peregrinos da América) e descumpridas (escra-
vos). Ele é o Recht/UnRecht. A unidade da diferença. O resultado do Direito na
música. Seu filho (Édipo?). Sua dualidade. Nenhum outro estilo musical possui
tal DNA e, por isso, ele se diferencia funcionalmente dos outros. Daí, portanto,
Direito e Rock!

42 DUCRAY, F.. Que faut-il entendre para <<musique rock>>?. In:: M. Wanda, J. Marguénaud &
M. Fabien, eds. Droit et Rock. Paris : Dalloz, 2011, p. 13.
43 Esse pacto foi tornado filme na película Crossroad, dirigido por Walter Hill e lançado no ano
de 1986.
146 CADERNOS FGV DIREITO RIO

5. Considerações Finais
O presente ensaio teve um propósito bastante específico, espelhado nas per-
guntas a que se propôs responder. Em sua defesa, diga-se que as conexões
entre Direito & Rock são mais profundas e possuem mais potencialidades do
que o corte deste texto apresentou44.
De qualquer sorte, é preciso aduzir que o argumento central repousa em
um dos pressupostos da TSAD. Existem subsistemas sociais que possuem co-
municações específicas que se tornam ambiência um do outro. O processo de
autonomia de cada um deles parte de uma abertura cognitiva e de um fecha-
mento operacional. Códigos e programas fazem a filtragem necessária para
que, tanto Arte quanto Direito, permaneçam diferenciados entre si.
Ao mesmo tempo, tal pressuposto garante a possibilidade de que um sub-
sistema social influencie o outro. De um modo bastante simplista, não se pode
negar, sob essa perspectiva, que tanto o Direito pertence à sociedade45 quanto
a Arte também.
Nessa linha de raciocínio, é, também, bastante fácil, afirmar que Direito &
Arte possuem, sim, conexões que merecem ser apuradas, distantes dos edifí-
cios teórico-normativos que situam o fenômeno jurídico enquanto mera autor-
reprodução de sua auto-organização.
Resta, pois, claro, que o presente ensaio se situa em uma perspectiva so-
ciológica do Direito. Acaso seu leitor ainda não esteja convencido dessa co-
nexão, importante referir que, por exemplo, já existem estudos muito fortes,
no Brasil e no mundo, na área do Direito e Literatura. Tais estudos falam por
si. Todos, entretanto, de alguma forma ou de outra, centram-se nas perguntas
aludidas aqui.
Por fim, acaso o ponto de partida do leitor não seja, precipuamente, as
ligações entre Direito e Sociedade, deixa-se, aqui, um pequeno trecho de uma
música dos Rolling Stones, dedicada a demonstrar a necessidade das unidades
de diferença. Faz-se isso para que, algum dia, tal como no caso dos movimen-
tos sociais da contemporaneidade, esse leitor não diga: “Ninguém esperava!”46.

Pleased to meet you


Hope you guess my name....
(Sympathy for the Devil — Rolling Stones)

44 Sugere-se, aqui, para um maior aprofundamento a leitura de SCHWARTZ, Direito & Rock,
2014.
45 Essa perspectiva é mais bem abordada nos textos que compõem a obra MEDEIROS, Fer-
nanda; SCHWARTZ, Germano (Orgs). O Direito da Sociedade. Canoas: Editora Unilasalle,
2014.
46 CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
DIREITO & ROCK 147

Referências bibliográficas

AGUIRRE, José Antonio Ibañez. Para Leer a Luhmann. México: Universidad Ibe-
roamericana, 2012.

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras,


2006.

BAGNALL, Gary. Law as Art: An Introduction. In: MORRISON, John; BELL, Chris-
tine (Eds). Tall Stories? Reading Law and Literature. Darthmouth: Aldershot,
1996,p. 267-285.

BRALIC, C. A. La Obra Musical como Punto de Vista. Análisis sistémico sobre


la “Música Contemporánea”. In:: I. Farías & J. Ossandón, eds. Observando Sis-
temas: neuvas apropriaciones y usos de la teoria de Niklas Luhmann. Santiago:
RIL Editores; Fundación Soles, 2006, p. 119-138.

CARVALHO, M. V., Série, alea e autopoiesis. In:: J. M. Santos, ed. O Pensamento


de Niklas Luhmann. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2005, p. 165-184.

CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança. Rio de Janeiro: Zahar,


2013.

DOORS, The. The Doors. Elektra: USA, 1967. 1 CD.

DUCRAY, F.. Que faut-il entendre para <<musique rock>>?. In:: M. Wanda, J.
Marguénaud & M. Fabien, eds. Droit et Rock. Paris: Dalloz, 2011, p. 11-27.

GREEN DAY. American Idiot. Warner Bros Records: USA, 2004. 1CD.

GRÜNE, Carmela. Samba no Pé & Direito na Cabeça. São Paulo: Saraiva, 2012.

HART, Herbert. O Conceito de Direito. 5ªed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2007.

HEIN, Fabien. Le rock, une musique subersive? In: MASTOR, W.;MARGUÉNAUD,


J-P.; MARCHADIER, Fabien. Droit et Rock. Paris: Dalloz, 2011.

LUHMANN, Niklas. A Improbabilidade da Comunicação. 4ªed. Lisboa: Vega,


2006.
148 CADERNOS FGV DIREITO RIO

LUHMANN, Niklas. A Obra de Arte e a Auto-Reprodução da Arte. In: OLINTO,


Heidrun Krieger (Org). Histórias da Literatura. São Paulo: Ática, 1996, p. 241-271.

LUHMANN, Niklas. A Restituição do Décimo Segundo Camelo: do sentido de


uma análise sociológica do Direito. In: LOPES JR., Dalmir; ARNAUD, André-
-Jean. Niklas Luhmann: do sistema social à sociologia jurídica. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 20024, p. 33-107.

LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft. Frankfurt Am Main: Suhrkamp,


1997.

_______. Observaciones de la Modernidad. Racionalidad y Contigencia en la


Sociedad Moderna. Barcelona: Paidós, 1997.

_______. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

________. Sistemas Sociales. Lineamientos para una Teoría General. México:


Universidad Iberoamericana, 1998.

_______. Art as a Social System. Stanford: Stanford University Press, 2000.

_______. La Sociedad de La Sociedad. México: Herder, 2007.

MAIDEN, Iron. Virtual XI. EMI: Brasil, 1998. 1 CD.

MEDEIROS, Fernanda; SCHWARTZ, Germano (Orgs). O Direito da Sociedade.


Canoas: Editora Unilasalle, 2014.

MILLARD, Éric. I Fougth the Law. In: MASTOR, W.;MARGUÉNAUD, J-P.; MAR-
CHADIER, Fabien. Droit et Rock. Paris: Dalloz, 2011, p. 193-200.

NIRVANA. Nevermind. DGC: USA, 1991. 1CD.

PINK FLOYD. Dark Side of The Moon. Harvest Records: United Kingdom, 1973.
1CD.

RABAULT, Hugues. Un Monde Sans Réalité? En compagnie de Niklas Luhmann:


épistémologie, politique et droit. Laval: Les Presses de l’Université Laval: 2012.

RICHARDS, Keith. Vida. São Paulo: Nova Fronteira, 2012.


DIREITO & ROCK 149

ROCHA, L.;SCHWARTZ,G.; CLAM, J.; Introdução à Teoria do Sistema Autopoié-


tico do Direito. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

SCHWARTZ, Germano. Considerações sobre a Teoria Kelseniana. Revista do


Curso de Direito. Unicruz: Cruz Alta, 2000, p. 97-106.

_______. A Constituição, a Literatura e o Direito. Porto Alegre: Livraria do Ad-


vogado, 2006.

_______. As Teses Radicais de Luhmann. RECHTD. São Leopoldo: Unisinos,


2014, v.6, n.1, p. 111-114.

TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Lisboa: Calouste


Gulbenkian, 1989.

WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua Linguagem. Porto Alegre: Fabris, 1992.
150 CADERNOS FGV DIREITO RIO
LOOK AT ALL THESE LONELY PEOPLE: AINDA A
INTERPRETAÇÃO EM ARTES E DIREITO
Ana Elvira Luciano Gebara1
José Garcez Ghirardi2

Do rádio do carro vem uma melodia agradável, vagamente reconhecível em


meio às hesitações, atalhos e rupturas que caracterizam esse tipo de jazz. Por
duas ou três vezes, sinto que estou prestes a reconhecer a música, prestes a
adivinhar-lhe o título. Mas logo um acorde inesperado, uma dissonância surpre-
endente de um dos violões oculta novamente as pegadas que poderiam me le-
var até o objeto na memória, e me vejo de novo diante de algo que é ao mesmo
tempo desconhecido e familiar. Pergunto, finalmente, à professora a meu lado:
“Que música é esta?”. “Eleanor Rigby, dos Beatles”.
A resposta me faz sentir um misto de alivio e irritação. É ótimo ver-se livre
dessa pequena angústia de quase saber mas não saber. De posse da chave de
leitura que o título me fornece, começo a apreciar melhor a performance do
grupo, a entender melhor a proposta de diálogo que estabelece com a canção
original. “É “Eleanor Rigby”, claro, como pude deixar de reconhecer?”
Ao alívio inicial do re-conhecimento, junta-se agora esse pequeno agas-
tamento com minha incapacidade de identificar o tema desde logo. Temo se-
cretamente que minha colega passe a crer que sou um bocado ignorante em
matéria de música. Um sujeito que não reconhece uma música dos Beatles,
francamente tem pouca moral para debater cultura pop. Talvez por isto, por
esse desejo de justificar minha incapacidade de compreensão, decido provocar

1 Ana Elvira Luciano Gebara possui graduação em Letras, Italiano-Português (Letras,


USP,1992), Licenciatura em Letras (Educação, USP, 1993), mestrado (1999) e doutorado
(2010) pela FFLCH, USP. Atualmente é professora da FGV DIREITO SP e na Unicsul. Tem
foco de estudos na área de Linguística, atuando principalmente nos seguintes temas: estu-
dos sobre gênero, ensino de poesia, ensino de língua materna para fins específicos na Edu-
cação Superior. Suas publicações abrangem as duas áreas de pesquisa: A poesia na escola:
leitura e análise de poesias para crianças  (2012);  Gêneros textuais: construindo sentidos,
planejando a escrita (2012), em coautoria.
2 Advogado formado pela Universidade de São Paulo (1985). É professor em tempo integral
da FGV DIREITO SP, onde trabalhou também como Coordenador de Metodologia e Ensino.
É responsável pela disciplina Programa de Formação Docente, no Mestrado da FGV DIREI-
TO SP. Atuou como Diretor de Formação Docente da Associação Brasileira de Ensino do
Direito — ABEDi e membro da Comissão de Especialistas da Secretaria de Educação Supe-
rior do MEC para a área de Direito. É autor, entre outras obras, de O instante do encontro:
questões fundamentais para o ensino do Direito (Acadêmica Livre FGV, 2012).
152 CADERNOS FGV DIREITO RIO

minha interlocutora. “Na verdade, isto não é ‘Eleanor Rigby’. É uma versão. Os
Beatles jamais escreveram as notas que estão sendo tocadas e a música não é
mais do que os sons que são produzidos. Uma versão de ‘Eleanor Rigby’ não é
‘Eleanor Rigby’, tanto assim que quem assina essa faixa não é Paul McCartney,
nem John Lennon, mas o Duofel3. Esta é outra música”.
A partir daqui, nosso debate se torna mais sério. Percebemos que há algo
nesse problema — a relação entre a música original e sua versão jazzística —
que guarda semelhanças importantes com o tema clássico da interpretação
no Direito e com os problemas correlatos que envolvem segurança jurídica e
seu enraizamento com a jurisprudência. Há, em ambos os casos, a tensão entre
permanência e ruptura, entre um texto canônico e sua realização particular.
Dessa relação — original e versão —, decorre o problema da interpretação
excessiva, confusa ou insuficiente e, também, a dificuldade de se estabelecer
critérios para saber se uma determinada versão é boa ou ruim (vale qualquer
coisa no jazz?), ou para decidir se este ou aquele músico se manteve mais pró-
ximo do original, e se foi acertado fazê-lo em cada uma das ocorrências. Assim,
dialogando com partituras e interpretações, este artigo discute cada um desses
tópicos, buscando refletir sobre as características da interpretação jurídica por
meio de um paralelo com a dinâmica que rege a produção e fruição das obras
de jazz.
O primeiro problema a ser enfrentado é o do sentido de identidade da
obra original nesse contexto duplo (musical e jurisprudencial). Quando se afir-
ma que o Duofel compôs uma versão de ‘Eleanor Rigby’, ou que Bill Evans e trio
estão interpretando ‘Some day my prince will come’4, há duas premissas apa-
rentemente antagônicas em funcionamento. A primeira delas é a de que aquilo
a que se está ouvindo é uma versão de um objeto cujos traços fundamentais
permanecem, contudo, nessa nova formulação. É essa permanência de traços
que permite que o novo formato seja entendido como versão, como variação
e não como obra original. Se for impossível estabelecer qualquer identidade
entre a recriação jazzística e a canção de origem, não cabe falar em versão.
A questão aqui passa a ser, então, a de se definir o que se considera traços
fundamentais. No jazz, a linha melódica básica é talvez o elemento mais fre-
quentemente apontado como candidato a estabelecer a unidade entre original
e variação. De fato, é bastante comum a um estilo de jazz começar a sessão
apresentando, com alterações mínimas, o tema sobre o qual se irá comentar.

3 Duofel é um dueto de violonistas, formado por Luís Bueno e Fernando Melo. Essa versão de
Eleanor Rigby está em Duofel plays the Beatles (Fine Music, 2009).
4 “Some day my prince will” come é uma das canções do filme do Estúdio de Walt Disney,
Branca de Neve (1937). Essa canção ficou famosa entre os músicos de jazz e pop que fize-
ram inúmeras versões. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=KUT06K5eGz4 , a versão
de Bill Evans e trio.
LOOK AT ALL THESE LONELY PEOPLE 153

Mas esse elo de ligação não é um absoluto e, muitas vezes, se mostra mesmo
bastante frágil. Alguns dos melhores momentos de Miles Davis em suas varia-
ções sobre “Summertime”, por exemplo, parecem destacar-se completamente
do encadeamento melódico original. Andamento, tonalidade, encadeamento de
notas se transformam a ponto de fazer desaparecer da superfície sonora, qual-
quer indício de seu suposto ponto de partida. Devemos dizer que, nesse mo-
mento, ele deixou de tocar a música de Gershwin para iniciar uma nova canção?
Parece difícil responder afirmativamente a essa questão sem fazer qua-
lificações importantes. Para além de aspectos mais técnicos (o trabalho com
o tempo, por exemplo), outras considerações tornam difícil sustentar a tese
de que existe ali uma obra totalmente nova. Não parece possível, portanto,
entender a performance de Davis sem ter presente, o tempo todo, a melo-
dia conforme foi composta para Porgy and Bess5. A arte do jazzista consiste,
justamente, em sua habilidade de reconfigurar uma referência compartilhada
com o público. Sem isto, perde-se o próprio sentido do que ocorre na jam ses-
sion. Só é possível compreender a “Summertime” de Davis porque se conhece
a “Summertime” de Gershwin e porque se entende que há uma continuida-
de programaticamente suposta entre uma e outra. Trata-se de uma evocação,
uma música “fantasma” que se insinua por entre os espaços da versão atual
levando-nos a outros diálogos que, dependendo de nosso repertório, irá nos
guiar ao original.
É importante lembrar que só existe original porque existem reedições.
Sem as retomadas, “Summertime” e “Eleanor Rigby” não poderiam ser denomi-
nadas “original”. Quando elas são interpretadas pelos próprios artistas ou pelos
grupos que fazem cover6, há a busca de evocação da primeira experiência,
não uma inovação. Basta trazer à memória grupos que se vestem como os ori-
ginais, imitam as vozes e mantêm os arranjos tal como na primeira ocorrência.
Por outro lado, há artistas que se baseiam na primeira edição, para recriá-las.
É, nesse momento, que a primeira versão se torna original, no sentido de ser a
origem desses outros objetos, cuja estrutura se funda na tensão entre perma-
nência e ruptura, conservação e inovação.
Há várias estratégias para se estabelecer esse diálogo com o texto-fonte.
Trata-se da intertextualidade, como Julia Kristeva denominou os diálogos entre
textos7, em que cada uma das aproximações indica um movimento em relação

5 Considerada uma ópera folclórica, Porgy and Bess, 1935, foi composta por Gershwin e Du-
Bose Heyward, sobre a história de um grupo de afroamericanos em Catfish Row, na Caroli-
na do Sul, em 1920.
6 Regravação ou performances de canção ou música, uma espécie de tributo ao original do
qual pouco se afasta.
7 Cf. KOCH, I. V.; CAVALCANTI, M.; BENTES, A. C. Intertextualidade: diálogos possíveis. São
Paulo: Cortez, 2007. Nesse livro as autoras discutem cada uma das formas de intertextua-
154 CADERNOS FGV DIREITO RIO

a esse texto. Pode ser respeito, homenagem e inspiração como a estilização;


pode ser crítica, reestruturação avaliativa de componentes ou temas como na
sátira e na paródia; pode ainda ser mais próximo do original com mínimas mo-
dificações como acontece na paráfrase.
Esse ponto da tensão constitutiva do ato de interpretar pode ser ilustra-
do fazendo-se um paralelo com as obras de Picasso. Para apreciar sua Mulher
Chorando (1937) 8, o espectador tem que fazer referência a seu conhecimento
de mundo anterior, isto é, ele deve ser capaz de reconhecer que as mulheres,
mesmo quando choram, normalmente não se parecem em nada com a obra
do artista. De fato, muitas vezes esse conhecimento anterior é utilizado justa-
mente para criticar a arte moderna: “Será que ele não sabia pintar? Quem já
viu uma mulher assim?”, dizem aqueles que abominam o cubismo. O original é
condição necessária à compreensão da obra derivada, assim como no caso do
“Summertime” por Miles Davis.
O paralelo com Picasso nos ajuda ainda a apreender uma segunda dimen-
são constitutiva desse tipo de problema de produção/interpretação. Mulher
chorando se distancia tão absolutamente do que seria uma versão mimética ou
realista de uma mulher chorando que se torna claro que a intenção do pintor
não era a de mimese. Um dos maiores artistas que já conhecemos, Picasso não
teria a menor dificuldade em compor uma obra nos moldes clássicos da repre-
sentação realista (como, de fato fez, no início de sua carreira).9
Se ele decidiu não fazê-lo, foi porque seu esforço como artista operava
em outra direção: a pintura de Picasso nos convida a pensar na subjetivida-
de daquele que vê antes do que na objetividade daquilo que se vê. O estra-
nhamento causado pelo não mimético de suas figuras conduz o espectador a
experimentar outras possibilidades de percepção de um objeto que se acre-
ditava estável, familiar. Ele sugere que todo olhar é interpretação, que não
é possível distinguir uma coisa e outra, que não fazemos senão interpretar
continuamente o mundo. Essa perspectiva, em que as fronteiras entre inter-
pretação e objeto se tornam confusas ou desaparecem, revolucionaria a Arte
e abalaria profundamente o Direito.
Tampouco Miles Davis teria qualquer dificuldade para reproduzir fielmente
as notas na partitura original de “Summertime”. Sua decisão de afastar-se dela
indica que seu interesse não era o de empreender um esforço mimético, no
sentido estrito (replicar de forma neutra um evento anterior seja proveniente

lidade além de apresentar o percurso histórico desse conceito.


8 Disponível em: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/1/14/Picasso_The_Weeping_
Woman_Tate_identifier_T05010_10.jpg .Acesso em 02/03/2015 às 14h18.
9 Se fosse necessário comprová-lo, bastaria conferir, Primeira Comunhão (1896) em que um
jovem Picasso mostra perfeito domínio das premissas e técnicas da pintura clássica.
LOOK AT ALL THESE LONELY PEOPLE 155

da realidade ou de uma das formas culturais que com ela se relacionam). Seu
objetivo central parece ser o de explorar as múltiplas possibilidades de se com-
preender o clássico de Gershwin.
Importa, porém, notar que tanto Davis, quanto Picasso, exploram suas res-
pectivas linguagens a partir de uma referência à forma convencional de per-
ceber os objetos dentro da área em que circulam suas produções. Ao trazer
“Summertime” para seu repertório, Davis deixa claro que a construção de sua
obra supõe o conhecimento socialmente partilhado de uma obra anterior. Isto
não seria absolutamente necessário: ele era um compositor talentosíssimo e
poderia simplesmente oferecer ao público (como fez tantas vezes) uma obra
que não citasse um trabalho alheio já amplamente conhecido.10 Seu objetivo
ao retomar uma obra consagrada parece ser justamente o de construir algo de
novo nesse espaço do já conhecido. Dito de outra forma: seu objetivo parece
ser o de realizar, concretamente, o sentido da palavra intérprete.
O termo, como se sabe, traz de sua origem a ideia de negociação: o in-
térprete era aquele que se colocava entre (inter) duas partes para ajudá-las
a definir um preço (pretium) que parecesse justo a ambas.11 Sua função era,
portanto, a de fazer convergir entendimentos diferentes de modo a possibilitar
uma ação comum. Tanto a discordância, quanto o ponto comum são indispen-
sáveis à sua ação. Sem discrepância quanto ao valor ou sentido de algo, não há
necessidade de intérprete; sem algum ponto de consenso, não há viabilidade
para o intérprete. Seu trabalho se dá no espaço entre a impressão individual e
o sentido coletivamente partilhado.
Miles Davis é um intérprete justamente porque é capaz de responder a
múltiplas leituras de uma mesma peça e apresentar um ponto, insuspeitado
por aquelas que já a conheciam, capaz de fazer convergir leituras individuais
potencialmente divergentes. Esse caráter de estabilização e convergência faz
com que muitas interpretações se tornem clássicas ou canônicas, isto é, que
passem a ser consideradas como objetos primeiros e não como objetos deri-
vados. Davis, dessa forma, leva Gershwin a novos diálogos para além de seu
tempo, para além de seus interlocutores originais. Agora ambos soam con-
comitantemente aos nossos ouvidos não importando qual música estejamos
apreciando se a original ou a interpretação. “Summertime” é mais do que uma
canção no singular.
A função do intérprete é, assim, justamente a de definir ou esclarecer,
para uma comunidade, algum sentido controverso ou obscuro em uma obra

10 Da mesma forma como Picasso poderia ter optado pela pintura abstrata, sem qualquer
referência a um elemento de conhecimento comum.
11 Cf. etimologia da palavra intérprete: http://www.dicionarioetimologico.com.br/busca/
?q=int%C3%A9rprete
156 CADERNOS FGV DIREITO RIO

compartilhada por tal comunidade. Sem esse aspecto comum, coletivo não há
lugar ou sentido para a ação do intérprete, isto é, a interpretação. A atividade
de interpretar requer essa negociação social de sentido e implica, por isso as
premissas de que

a) a obra tem sentido para um grupo;


b) esse sentido é compreensível;
c) ele é compreendido de maneiras diversas, quiçá mesmo conflitantes,
por membros da mesma comunidade;
d) há modos mais e menos adequados de se estabelecer o sentido da
obra para o grupo;
e) há pessoas (ou instituições) mais autorizadas ou mais capacitadas que
outras a realizar essa tarefa de esclarecimento ou fixação de sentido.

A ação do intérprete se dá, justamente, nesse espaço entre a crença na


estabilidade de um objeto e a experiência de sua fluidez.
Por sua vez, a recepção do trabalho feito pelo intérprete é construída sobre
as essas mesmas premissas. Por isso, interpretações diversas parecem ter me-
nos a ver com a qualidade técnica da execução, e mais a ver com a compreen-
são de fundo abraçada pelo interlocutor para aquela área específica. Partidários
da corrente do jazz clássico podem não apreciar o trabalho de Miles ainda que
reconheçam sua competência como músico. É da proposta de fundo de Davis
que eles discordam. Da mesma forma, controvérsias no mundo jurídico pare-
cem emergir menos de críticas à qualidade da argumentação jurídica e mais
da discordância de fundo do que significa o Direito e sua função na sociedade.
Realistas e positivistas podem apresentar argumentos igualmente sofisticados,
mas isto não é suficiente para dirimir suas diferenças, pois elas se encontram em
outro lugar, a saber, a visão mais ampla que decidiram adotar sobre o Direito.
A psicanálise oferece um contraexemplo que ajuda a pôr em evidência essa
dimensão necessariamente coletiva da atividade de interpretação. É comum que
alguns analistas se recusem a interpretar o sonho para o paciente, muito embora
estejam prontos a ajudá-lo a fazê-lo. A razão parece a de que as imagens que
surgem no sonho de cada um, embora se comuniquem com sentidos socialmen-
te partilhados, têm um significado especifico para aquele que sonha. O analista
certamente terá suas hipóteses interpretativas para o texto que é o sonho, mas
ele não se sente autorizado como intérprete porque entende que não dispõe das
mesmas condições de estabelecimento de sentido que o analisando.
A autoridade do intérprete depende assim, do reconhecimento de que ele
participa de um repertório cultural comum, repertório esse que irá delimitar,
por um lado, o campo dos sentidos possíveis e, de outro, as condições para
LOOK AT ALL THESE LONELY PEOPLE 157

que se arbitre qual o melhor sentido no caso de uma obra específica. Nesse
viés, a interpretação se autoriza por seu aspecto conservador, na medida em
que é percebida como um instrumento para estabilizar um significado como
dominante ou hegemônico, e para repelir outras construções possíveis. O intér-
prete aqui parece conservar as crenças tradicionais, porque mostra que o que
parecia novo é, de fato, uma reedição do já conhecido.
Por outro lado, a autoridade do intérprete está também na sua capacidade
de inovar, vale dizer, de fazer uma conciliação inédita de elementos. O caráter
obscuro ou ambíguo de uma obra só subsiste enquanto o elenco de hipóteses
interpretativas disponíveis para sua superação se mostrar incapaz de fazê-lo.
O bom intérprete será aquele que oferecer uma nova hipótese, seja pela reor-
ganização de elementos já presentes nas hipóteses tradicionais, seja pela intro-
dução de novos elementos. Como nos versos de Caetano, o novo aqui é uma
estratégia para revelar e estabelecer o antigo: “E aquilo que nesse momento se
revelará aos povos/Surpreenderá a todos não por ser exótico/Mas pelo fato de
poder ter sempre estado oculto/Quando terá sido o óbvio”.12
Não surpreende, assim, que o prestígio de Bill Evans, Davis ou Monk ve-
nha do fato que eles sejam fabulosos intérpretes, isto é, que sejam capazes de
revelar sentidos possíveis e profundamente convincentes para textos de co-
nhecimento comum. O modo como Davis apresenta “Summertime” não surge,
portanto, como uma traição à obra de Gershwin, mas como uma epifania, como
uma exegese que revela o que pode estar oculto, tendo sido o óbvio.
Em seu clássico Tradition and the Individual Talent, T.S. Eliot discute exata-
mente essa tensão entre ruptura e permanência intrínseca à atividade de inter-
pretação, bem como o caráter necessariamente ativo do intérprete:

Nenhum poeta, nenhum artista, tem a sua significação com-


pleta sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos
constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artis-
tas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo, para
contraste e comparação, entre os mortos. Entendo isso como um
princípio de estética, não apenas histórica, mas no sentido crítico.
É necessário que ele seja harmônico, coeso, e não unilateral; o que
ocorre quando uma nova obra de arte aparece é, às vezes, o que
ocorre simultaneamente com relação a todas as obras de arte que
a precedem. Os monumentos existentes formam uma ordem ide-
al entre si, e esta só se modifica pelo aparecimento de uma nova
(realmente nova) obra entre eles. A ordem existente é completa

12 “Um índio” é uma das canções do álbum Bicho, de Caetano Veloso (1977).
158 CADERNOS FGV DIREITO RIO

antes que a nova obra apareça; para que a ordem persista após
a introdução da novidade, a totalidade da ordem existente deve
ser, se jamais o foi sequer levemente, alterada: e desse modo as
relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao todo
são reajustados; e aí reside a harmonia entre o antigo e o novo.13

A premissa de Eliot de que no artist of any art has his complete meaning
alone retoma, pelo ponto de vista do patrimônio coletivo, a discussão até aqui
estruturada a partir da figura do intérprete. Não há possibilidade de interpre-
tação sem a existência de um repertório aceito como referencial por uma co-
munidade.
Por outro lado, esse repertório não tem um sentido estável, dado de uma
vez por todas. Pelo contrário: o sentido do todo é reordenado cada vez que a ele
se agrega um novo elemento O sentido das obras de Plutarco, sugere Eliot, mu-
daram depois de sua apropriação por Shakespeare;14 o mesmo se poderia dizer
da Ilíada de Homero após sua retomada por James Joyce em Ulysses; de “Sum-
mertime” por Davis, da Mona Lisa, por Salvador Dali, etc. Não há necessidade de
estender a lista de citações para sublinhar a relevância do argumento de Eliot:
não apenas são indissociáveis os atos de interpretar e de criar, mas os próprios
sentidos anteriormente consolidados se modificam por força da obra posterior.
Postular essa dinâmica para a interpretação e essa função criativa para o
intérprete implica postular que não há oposição, mas sim complementaridade,
entre evento original e evento derivado. Em termos jurídicos, significa dizer
que não há qualquer antagonismo substantivo entre segurança jurídica e dis-
cricionariedade do magistrado. Tanto no jazz, como no Direito, a expectativa
da realização do intérprete é a de que ele sempre inove e sempre conserve.
E isto não significa propor uma antinomia, mas reconhecer o funcionamento
necessariamente dialético da interpretação.

13 No poet, no artist of any art, has his complete meaning alone. His significance, his apprecia-
tion is the appreciation of his relation to the dead poets and artists. You cannot value him
alone; you must set him, for contrast and comparison, among the dead. I mean this as a prin-
ciple of æsthetic, not merely historical, criticism. The necessity that he shall conform, that he
shall cohere, is not one-sided; what happens when a new work of art is created is something
that happens simultaneously to all the works of art which preceded it. The existing monu-
ments form an ideal order among themselves, which is modified by the introduction of the
new (the really new) work of art among them. The existing order is complete before the new
work arrives; for order to persist after the supervention of novelty, the whole existing order
must be, if ever so slightly, altered; and so the relations, proportions, values of each work
of art toward the whole are readjusted; and this is conformity between the old and the new
ELIOT, T. S. The Sacred Wood. New York: Alfred A. Knopf, 1921; Bartleby.com, 1996. http://
www.bartleby.com/200/sw4.html#5 . Acesso em 24-02-2015. Trad. de Ivan Junqueira in
ELIOT, T.S. Ensaios. São Paulo: Faber & Faber, 1989.
14 Op. cit.
LOOK AT ALL THESE LONELY PEOPLE 159

Ao abordar esse problema sob a perspectiva da tradução (também uma


interpretação por sua vez), Umberto Eco descreve, com inteligência e humor
característicos, a dinâmica de equilíbrio entre esses opostos de conservar e
inovar e as dificuldades com que ela inevitavelmente se defronta:

O que quer dizer traduzir? A primeira e consoladora respos-


ta gostaria de ser: dizer a mesma coisa em outra língua. Só que,
em primeiro lugar, temos muitos problemas para estabelecer o
que significa “dizer a mesma coisa” e não sabemos bem o que
isso significa por causa daquelas operações a que chamamos de
paráfrase, definição, explicação, reformulação, para não falar das
supostas substituições sinonímicas. Em segundo lugar, porque,
diante de um texto a ser traduzido, não sabemos também o que
é a coisa. E, enfim, em certos casos é duvidoso até mesmo o que
quer dizer. 15 [grifos nossos]

O compositor Gershwin, se voltarmos ao nosso exemplo central, elaborou


sua “coisa”, e ela foi sendo interpretada pelos ouvintes de seu tempo que atri-
buíram valores, imagens e lugares para que circulasse e nos quais fosse fixada.
Essa estabilidade é questionada pela interpretação que, como já ressaltado,
permite a ampliação tanto do que já existe como daquilo que virá a existir. Ao
“dizer a mesma coisa”, como nos provoca Eco em relação ao processo tradutó-
rio, o tradutor — intérprete que negocia entre espaços de língua e cultura acaba
por redescobrir o objeto, mesmo quando acredita repeti-lo.
José Reinaldo de Lima Lopes, em importante estudo sobre Paul Ricouer,
aponta nessa direção agora na esfera jurídica:

Ao contrário do que se pensa, às vezes ingenuamente, a re-


lação entre uma lei e uma decisão que sobre ela se baseia (ou
dela tira sua validade) — seja essa decisão uma sentença, um ato
administrativo, a elaboração de uma lei ordinária pelo parlamen-
to, etc. — não é uma simples repetição. Não é tampouco fruto da
inferência lógica. A dogmática do direito não procede segundo a
lógica formal pelo muito simples fato de que opera com classifi-
cações e os processos de classificação tendem para a analogia. 16

15 ECO, U. Quase a mesma coisa. Tradução de São Paulo. Record, 2007, p. 9.


16 LOPES, J. R. L. Hermenêutica e completude do ordenamento. in Revista de Informação
Legislativa. Brasília, v. 26, n. 104, out/dez 1989, p. 244.
160 CADERNOS FGV DIREITO RIO

A sentença mais recente não apenas reatualiza, assim, o sentido prévio da


jurisprudência: ela o ressignifica, e não apenas quando diverge das soluções
anteriores, mas mesmo quando parece simplesmente repeti-la (sua aplicação
a outro caso, contexto e tempo amplia necessariamente o espectro de sua
aplicabilidade).17 Isto não significa dizer que as decisões judiciais são substan-
cialmente imprevisíveis. A maioria dos casos aponta justamente para a situação
oposta, sobretudo nesses tempos que juntam a pressão pela produtividade às
ferramentas da informática. Mas significa balizar de outra forma as ideias de
segurança jurídica e de discricionariedade.
A tensão tradicionalmente apontada entre os conceitos, remete, como se
percebe, à mesma dinâmica entre repertório (jurisprudência) e intérprete (juiz)
que se observa na arte. Em um caso, como em outro, parece mais proveitoso
entender o fenômeno como sendo essencialmente dialético, não como uma
contradição a ser superada. Pensar a questão a partir de pares antagônicos
como juiz boca da lei/juiz ativista; segurança/inovação; previsibilidade/singu-
laridade parece conduzir a uma leitura que obscurece o que há de mais carac-
terístico no Direito: seu caráter de ponderação singular, caso a caso a partir
de um repertório comum, geral. Parece infundado acreditar que seja possível
separar em campos estanques o universal do singular e, ainda assim, seguir
fazendo o que entendemos por Direito.

Referências

ECO, U. Quase a mesma coisa. Tradução de São Paulo. Record, 2007.

ELIOT, T. S. The Sacred Wood. New York: Alfred A. Knopf, 1921.

KOCH, I. V.; CAVALCANTI, M.; BENTES, A. C. Intertextualidade: diálogos pos-


síveis. São Paulo: Cortez, 2007. Nesse livro as autoras discutem cada uma das
formas de intertextualidade além de apresentar o percurso histórico desse con-
ceito.

LOPES, J. R. L. Hermenêutica e completude do ordenamento. in Revista de In-


formação Legislativa. Brasília, v. 26, n. 104, out/dez 1989.

17 Cf. Debate entre Dworkin (“My reply to Stanley Fish (and Walter Benn Michaels): Please
don’t talk about objectivity any more”) e Fish (“Working on the chain gang” “Wrong again”).
PRISÕES, BORDÉIS E AS PEDRAS DA LEI:
DISCURSOS MODERNOS SOBRE O DIREITO
EM JOHN AUSTIN E WILLIAM BLAKE
José Garcez Ghirardi1

A existência da lei é uma coisa; seu mérito ou demérito é outra.


Uma lei, que exista de fato, é uma lei, ainda que não gostemos dela […] 2
John Austin, The Province of Jurisprudence Determined, 1832

“As prisões são construídas com as pedras da Lei,


os bordéis com os tijolos da religião”
William Blake, The Marriage of Heaven and Hell, 17903

As obras de John Austin e William Blake são amiúde apontadas como pontos
de origem, respectivamente, do positivismo no Direito e do Romantismo na
poesia. Esse artigo sugere que sua importância se estende para além de seu
impacto nessas áreas específicas. Sustenta-se aqui que as obras dos autores
representam também respostas antagônicas ao projeto da Modernidade — e
aos discursos sobre o Direito que dele decorrem — ideias essas que se tor-
naram matriciais para a forma de o Ocidente pensar o jurídico e sua função
na sociedade.

Traçando fronteiras: definindo a província da jurisprudência


O projeto Moderno4 se caracteriza, em larga medida, pela emergência simul-
tânea de um tipo específico de crença e de um tipo específico de descrença.

1 Advogado formado pela Universidade de São Paulo (1985). É professor em tempo integral
da FGV DIREITO SP, onde trabalhou também como Coordenador de Metodologia e Ensino.
É responsável pela disciplina Programa de Formação Docente, no Mestrado da FGV DIREI-
TO SP. Atuou como Diretor de Formação Docente da Associação Brasileira de Ensino do
Direito — ABEDi e membro da Comissão de Especialistas da Secretaria de Educação Supe-
rior do MEC para a área de Direito. É autor, entre outras obras, de O instante do encontro:
questões fundamentais para o ensino do Direito (Acadêmica Livre FGV, 2012).
2 The existence of law is one thing; its merit or demerit is another. Whether it be or be not is one
enquiry; whether it be or be not conformable to an assumed standard, is a different enquiry. A
law, which actually exists, is a law, though we happen to dislike it, or though it vary from the
text, by which we regulate our approbation and disapprobation. Austin 1832: Lecture V, p. 157.
Austin, John, 1832, The Province of Jurisprudence Determined, W. Rumble (ed.), Cambridge:
Cambridge University Press, 1995 (todas as traduções são do autor desse artigo).
3 Erdman, D.V. (ed.). The Complete Poetry & Prose of William Blake. Anchor Books, 1982.
(Esta obra será a fonte para todas as citações de Blake, ao longo do texto).
4 Ao longo desse texto, os adjetivos Moderno e Romântico aparecerão com a inicial em
maiúscula para indicar que estão sendo utilizados não em sua acepção corriqueira (i.e.
moderno = atual, contemporâneo; romântico = sentimental., apaixonado) mas como mar-
cadores, respectivamente, de períodos históricos específicos: o Moderno (sobretudo em
seu desdobramento Iluminista, a partir do final do século XVII) e o Romântico (sobretudo
a partir das primeiras décadas do século XIX).
162 CADERNOS FGV DIREITO RIO

No polo positivo, acredita-se, com fervor cada vez maior, na capacidade de os


seres humanos observarem e descreverem relações causais entre eventos. Essa
causalidade decorre da natureza das coisas e independe da vontade ou das ca-
racterísticas do sujeito que as observa. A ciência Moderna é uma ciência que se
quer objetiva e neutra. Na visão de seus adeptos, ela está livre dos preconceitos
e superstições que, promovidos e sancionados pelas autoridades religiosas e
políticas, haviam distorcido, durante séculos, o olhar dos seres humanos sobre
o mundo que os cerca.
A marcha inexorável do tempo, somada à ousadia de alguns pioneiros
(Galileu surge como paradigma do cientista herói/mártir lutando contra o obs-
curantismo da superstição) foi aos poucos dissipando as trevas da religião para
instaurar o reinado de luz da Razão. Essa é, pelo menos, entende a narrativa
celebratória desse processo, que Charles Taylor denomina de narrativas de
subtração.5
A versão mais conhecida e influente dessa narrativa de avanço contínuo
talvez seja a do positivismo comtiano, com seu postulado de uma progres-
são que leva as sociedades do estágio teológico ao metafísico e deste ao
positivo ou científico. Nesse terceiro estágio, “a mente deixa de buscar cau-
sas para os fenômenos e se limita, estritamente, às leis que os governam”6.
Os milagres desaparecem quando examinados à luz dessa nova forma de
conhecer, que não aceita como verdade senão aquilo que é passível de com-
provação empírica.
A ciência nova se legitima, dessa forma, por sua capacidade de, a partir
da neutralidade da observação racional dos objetos, formular leis gerais que, a
exemplo da Natureza que buscam descrever, não admitem exceções. Tais leis
têm por objetivo expressar uma causalidade regular, isto é, uma conexão entre
eventos que inevitavelmente se repetirá caso se repitam, também, condições
idênticas às de sua primeira ocorrência.
Sua fórmula requer uma série de movimentos complexos: em primeiro lu-
gar, é preciso que o observador seja capaz de despir-se de todas as suas con-
vicções anteriores, de todos os seus afetos e interesses particulares para que
possa se tornar capaz de observar os fenômenos, com a neutralidade isenta de
pré-conceitos que caracteriza o cientista Moderno. É preciso evitar, sobretudo,
a tentação de valorá-los moralmente ou de buscar sentidos metafísicos para
sua ocorrência.

5 TAYLOR, Charles. A Secular Age. Harvard University Press, 2007, p.22.


6 “In the positive state, the mind stops looking for causes of phenomena, and limits it-
self strictly to laws governing them”. Bourdeau, Michel, “Auguste Comte”, The Stanford
Encyclopedia of Philosophy (Winter 2014 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <http://
plato.stanford.edu/archives/win2014/entries/comte/>.
PRISÕES, BORDÉIS E AS PEDRAS DA LEI 163

Em seguida, é necessário descrever tais fenômenos com todo rigor e mi-


núcia, de modo a tornar possível, pelo acúmulo das observações e pela re-
corrência consistente de alguns traços, a elaboração de uma formulação geral
que os encapsule. Essa formulação assume tipicamente a forma de uma lei
universal, que se ancora em uma metodologia específica e em um conjunto
claramente definido de conceitos, definições e premissas.
Uma vez erigida essa formulação universal a partir do episódico dos even-
tos singulares, o passo seguinte é o de determinar o lugar que essa categoria
de seres ou fenômenos ocupa em relação a outros seres e fenômenos já ob-
servados e descritos. O amplo curso e o potencial explicativo que a ideia da
Grande Cadeia do Ser teve, a partir do século XVIII, ilustra a perfeição esse mo-
vimento que leva da observação à lei geral e, deles, à ideia de sistema. A tabela
periódica, as famílias na botânica e na zoologia, bem como as periodizações
na literatura revelam todas, embora cada uma à sua maneira, esse influxo da
noção Moderna de Ciência.
A legitimidade desse influxo, vale repetir, depende de seu caráter de neu-
tralidade objetiva: sua força de convencimento emerge de não ser um apanha-
do de opiniões mas um conjunto de fatos, cuja verdade independe da vontade
do observador. Esse o grande trunfo e o grande apelo do discurso cientifi-
co para uma Europa Ocidental que sofrera terrivelmente, por séculos, com as
guerras de religião, mais violentas porque seu objeto — proposições de fé — se
furtavam, por definição à comprovação empírica ou a decisões baseadas em
critérios racionais comuns.
A observação famosa de Jean Meslier em seu Testamento (1729 — a obra
seria editada por Voltaire em 1762) de que o homem só será livre quando o
último monarca for enforcado com as entranhas do último padre, 7 sintetiza
uma avalição bastante difundida entre os contemporâneos de que o discurso
religioso, colocando-se acima de questionamentos baseados na observação
empírica da vida, estava a serviço do despotismo e da injustiça. O caráter de-
mocrático da Razão que, ao contrário dos títulos de nobreza e das filigranas te-
ológicas, está ao alcance de todos emprestava uma aura libertária ao discurso
da racionalidade científica.
As características desse processo de legitimação da ciência — objetivida-
de de observação e neutralidade valorativa — excluem, por princípio, qualquer
argumento que não pudesse ser sustentado com base em uma demonstração

7 «Je voudrais, et ce sera le dernier et le plus ardent de mes souhaits, je voudrais que le
dernier des rois fût étranglé avec les boyaux du dernier prêtre.» Jean Meslier, Testament,
1729. A compilação de Voltaire, que escolheu e publicou excertos da obra em 1762, é pro-
vavelmente a grande responsável pela popularidade da obra. A edição eletrônica do Tes-
tament está disponível em http://classiques.uqac.ca/collection_documents/meslier_jean/
testament/testament_tdm.html.
164 CADERNOS FGV DIREITO RIO

de causalidade objetiva, observável, apta a ser formulado, em termos idênti-


cos, por qualquer sujeito racional de boa-fé. Vale dizer, argumentos de matriz
moral, religiosa ou política não têm lugar nessa compreensão do que sejam as
condições para o debate público sobre o real. A moral, a religião e a política são
discursos que articulam um sentido metafisico para os eventos, muitas vezes
à despeito, ou ao arrepio, de conexões causais comprovadas. O discurso da
ciência Moderna, por seu lado, é um discurso de causalidade e de um sistema
de causalidades articuladas, não um discurso de sentido, nem de legitimações
metafísicas. Nas palavras de Charles Taylor:

A grande invenção do Ocidente foi a de uma ordem imanen-


te na Natureza, cujo funcionamento podia ser sistematicamente
compreendido e explicado em seus próprios termos, deixando em
aberto a questão de saber se essa ordem, em seu todo, tinha um
significado mais profundo e, caso tivesse tal significado, se deverí-
amos inferir daí a existência de um Criador transcendente.8

Não surpreende, assim, que pensadores, como John Austin, desejavam dar
aos estudos jurídicos um caráter verdadeiramente científico, que buscassem li-
vrar o campo de todas as impurezas que o tornavam bastante mal talhado para
essa abordagem de Ciência. Angústia semelhante seria sentida por estudiosos
de todos os campos do saber que não se ocupavam das ciências da natureza
(literatura, ética, ciência política, etc.): o conjunto dos esforços que cada área
empreendeu para acomodar-se aos paradigmas do conceito Moderno de Ciên-
cia — então percebido como o único realmente legítimo — ilustra um momento
crucial da formação do pensamento do Ocidente a partir do século XVIII.
O projeto de Austin9 de delinear fronteiras nítidas para a jurisprudência e
de circunscrevê-la de modo a insulá-la de outros discursos está perfeitamente
em linha com o projeto da Modernidade conforme descrito acima. Ele deseja,
em primeiro lugar, dispor de um objeto que possa ser observado de fora, por
assim dizer, um objeto que independa do observador, que exista e funcione
independentemente dos sujeitos que irão analisá-lo. Esta é condição sine qua
non para atender a premissa de observação neutra sem a qual ninguém pode
se pretender cientista. Só assim, também, será possível descrever as caracterís-

8 The great invention of the West was that of an immanent order in Nature, whose working
could be systematically understood and explained on its own terms, leaving open the ques-
tion whether this whole order had a deeper significance, and whether, if it did, we should
infer a transcendent Creator beyond it. TAYLOR, op. cit. p. 15.
9 cf. Bix, Brian, “John Austin”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2015 Edi-
tion), Edward N. Zalta (ed.), URL = <http://plato.stanford.edu/archives/spr2015/entries/
austin-john/>.
PRISÕES, BORDÉIS E AS PEDRAS DA LEI 165

ticas básicas do objeto jurídico — que deverão ser, forçosamente, universais —


e as relações constantes e necessárias entre seus elementos constitutivos (seu
sistema interno) que, por sua vez, serão imprescindíveis para sua classificação
dentro de um conjunto mais amplo de sistemas.
Isto não implica dizer, é claro, que Austin não soubesse que o Direito fun-
ciona de modos muitos diversos em diferentes situações, países e lugares, nem
tampouco significa que ele acreditasse ser impossível articular outros tipos de
discurso sobre o Direito (históricos, sociológicos, etc.). Mas significa que ele
postula que um discurso científico sobre o Direito deve forçosamente assumir
algumas características que o diferenciam de outros discursos. Dado o prestí-
gio do discurso científico na Inglaterra do século XIX, este não é um postulado
banal ou desprovido de consequências. Pelo contrário: é esta perspectiva me-
todológica pioneira de Austin, mais talvez que sua teoria dos comandos (desde
muito cedo criticada), que iria se tornar um dos principais eixos de autorização
de discursos dentro e sobre o Direito a partir de então.
Não é demais lembrar a sintonia dessa perspectiva com discursos con-
temporâneos em outras áreas, discursos esses que se tornaram provavelmente
ainda mais influentes que o de Austin. A celebrada teoria de Adam Smith sobre
a mão invisível do mercado postulava, de forma muito convincente para os
contemporâneos, a existência de um sistema que funcionava para além das
vontades individuais dos sujeitos (embora as incorporasse como elemento ne-
cessário). A noção de leis econômicas universais e invariáveis espelhava exem-
plarmente o paradigma das ciências duras, e apontava o caminho para uma
abordagem de fenômenos sociais a partir de uma dicção teórica antes caracte-
rística de outros campos do saber.
Bentham, Mills (com diferenças) adotariam um olhar semelhante sobre a
organização social, propondo quantificar e mensurar elementos básicos (dor,
prazer) para estabelecer o melhor modo de agir sobre o objeto. Assim, a exem-
plo do que ocorre na teoria econômica, também no trabalho dos Utilitaristas é
possível notar a força da ideia de sistema, que incorpora mas ultrapassa e, em
última instância, independe de vontades e crenças individuais.
Todas essas construções teóricas se viam reforçadas pelo prestígio cres-
cente da teoria de Darwin e de sua proposição de que fazemos parte de um
sistema evolutivo mais amplo, a que não podemos controlar. A força impessoal
do funcionamento dos sistemas, com suas inexoráveis leis gerais, tampouco é
componente insignificante no pensamento de Marx e de Freud, dois dos discur-
sos que moldaram a Modernidade como a experimentamos hoje.
The Province of Jurisprudence Determined é, assim, uma tentativa de er-
guer os estudos jurídicos ao patamar de dignidade que caracteriza a verdadei-
ra ciência. O caráter por vezes confuso e obscuro de suas proposições, assim
166 CADERNOS FGV DIREITO RIO

como suas eventuais contradições internas, não invalidam a força da proposta


geral: é preciso pensar o objeto jurídico cientificamente, vale dizer, é preciso
descrevê-lo em sua constituição elementar, apontando suas características in-
variáveis e o seu funcionamento como sistema.
Do ponto de vista da ciência Moderna, uma descrição adequada de to-
dos esses elementos seria condição necessária para discursos racionais sobre
o Direito. Dentro dessa perspectiva, interessam a nitidez da individualização
de cada elemento e a integridade e coerência internas do sistema, não as con-
sequências concretas de seu funcionamento no mundo. Esse insulamento pro-
gramático do real exterior tem sido uma fonte perene de censuras à proposta
positivista.
Nos termos em que foi formulada, entretanto, essa proposta não indica,
ao menos não necessariamente, que Austin ou adeptos do nascente positivis-
mo, acreditassem que o impacto prático do Direito na vida das pessoas não
fosse importante, nem que pudesse ser ignorado. Eles não desconheciam, nem
negavam, a importância de outros tipos de discurso e outros tipos de ação,
não regidos pelas solicitações a que estão submetidos os cientistas: mas eles
desejavam diferenciar bem os campos (científico/prático), determinar bem as
províncias, para que, bem delimitado, cada discurso pudesse otimizar sua ca-
pacidade de propor soluções.
A premissa implícita nesse insulamento da ciência jurídica é mais modesta,
porém nem por isso menos relevante: ela estabelece que o discurso científico
sobre o Direito é um discurso sobre sua causalidade, não sobre seu sentido.
Ponderações morais, políticas, ou religiosas, bem como argumentos conse-
quencialistas, não fazem parte do repertório desse tipo de ciência jurídica, em-
bora possam ser proveitosamente articulados em outros espaços.
Dado, ainda uma vez, o já mencionado prestígio social da Ciência, esse
modelo das ciências naturais iria migrar e se tornar critério de compreensão,
autorização e validade de outras práticas sociais: é nele que se moldam, e se
autorizam o processo da grande internação descrito por Foucault, o apego
quase religioso ao laissez-faire na economia e as práticas médicas/higieniza-
ção dos vitorianos para ficar os apenas em alguns exemplos de impacto mais
amplo.
As instituições e práticas do Direito na Inglaterra do século XIX não fica-
ram imunes a esse movimento. Construções teóricas e práticas judiciais vão
paulatinamente incorporando e naturalizando esse modelo positivista de com-
preensão do mundo. Os debates sobre questões como a validade das normas,
sua hierarquia e fontes, bem como sobre a natureza dos comandos, ou sobre
a integridade do sistema vão se tornar proeminentes, ocupando um lugar de
destaque que antes pertencia a discussões sobre a justiça substantiva ou às
PRISÕES, BORDÉIS E AS PEDRAS DA LEI 167

relações entre prescrições divinas, leis naturais e normas humanas. Mas não é
só a ênfase dos debates que se modifica. A lógica de validação se transforma
igualmente, para excluir do campo dos argumentos aceitáveis aqueles que re-
corram a saberes ou valores externos ao sistema.
Veja-se, a título de ilustração, o quanto diferem o debate tomista sobre o
problema das leis injustas e o tratamento que Austin dá ao mesmo problema
de legitimidade. São Tomás reflete sobre o fenômeno jurídico como elemento
necessariamente integrado a um plano maior, que é indispensável para que
seja corretamente apreendido. Vale dizer: para entender elementos internos ao
Direito, é preciso ter em mente o sentido do Direito na ordem geral do mun-
do e este sentido é, evidentemente, exterior e superior ao jurídico. Em outros
termos: para São Tomás, há um sentido mais amplo que representa a moldura
dentro da qual causalidades especificamente jurídicas podem ser compreendi-
das e discutidas.
Ao discutir o problema da legitimidade, Austin adota uma posição dia-
metralmente oposta: os termos do problema só estarão bem colocados se o
horizonte de discussão estiver restrito àquilo que é especificamente jurídico,
sem qualquer contaminação por elementos exógenos. Assim, se a integridade
sistêmica da cadeia de comandos estiver garantida, a lei será legítima, indepen-
dentemente de seu conteúdo substantivo. A valoração ética desse conteúdo é
incapaz de afetar sua juridicidade. A existência da lei é uma coisa; seu mérito ou
demérito é outra. Uma lei, que exista de fato, é uma lei, ainda que não gostemos
dela […]. Por isso, torna-se imprescindível que a província da jurisprudência
seja bem mapeada e que suas fronteiras sejam guardadas contra incursões de
conceitos impertinentes.10
Esse mapeamento preciso e seu propósito declarado de estabelecer, com
nitidez absoluta, um dentro e um fora do Direito atestam o fervor, a confiança e
o otimismo com que Austin buscava trazer as premissas Modernas para o mun-
do jurídico. Implícito em seu projeto analítico está a crença na superioridade
dessa proposta, em seu caráter civilizatório: um olhar sobre o Direito baseado
na pura causalidade interna ao sistema era, a seus olhos, muito mais promissor
às antigas apropriações moralizantes, retóricas e impressionistas.
O rigor metodológico (Moderno) de Austin e sua metodologia (Moderna)
de análise permitiriam, ou assim entendiam seus adeptos, uma discussão obje-
tiva sobre os fenômenos jurídicos, algo que era impossível no bazar de referen-
ciais sobrepostos que caracterizava os discursos anteriores. O abandono da ilu-
são metafísica (ao menos na Ciência) parecia-lhe um formidável avanço porque
exorciza, para todo o sempre, o medo de que os homens empreendam guerras

10 Cf. LOPES, J.R.L. Hermenêutica e completude do ordenamento. R.Inf. Legisl. Brasília, a.26 n.
104 out/dez 1989. pp. 237-246.
168 CADERNOS FGV DIREITO RIO

horripilantes por conta da superstição e da ignorância. Esse relato triunfante da


Razão Moderna pareceria profundamente equivocado à perspectiva Românti-
ca de Wiliam Blake.

O tolo e o sábio não veem a mesma árvore11: o olhar Romântico


sobre a Modernidade
A publicação de O Casamento do Céu e do Inferno (1790) dá voz a uma avalia-
ção diametralmente oposta do projeto Moderno. Nessa obra, Blake apresenta
uma leitura muito mais ambígua dos supostos ganhos trazidos por essa Moder-
nidade apaixonada pela ideia de Razão Universal. A segmentação da vida em
campos estanques, requerida pelo modo industrial de produção, é vista pelos
Românticos como dissolução de um quotidiano antes muito mais rico de pos-
sibilidades para a realização humana. A delimitação de províncias que Austin
realiza orgulhosamente, porque vê como avanço, é percebida por Blake como
um equívoco profundo que leva a um desastre irreversível.
De fato, para Blake, e os Românticos, a plenitude da experiência humana
só podia ser atingida se aceitássemos, e vivêssemos plenamente, o fato de
sermos um lócus de profundas ambiguidades, cuja complexidade está muito
acima de nossa capacidade racional de compreensão e explicação. Como su-
gere o título do livro pioneiro de Blake, somos constituídos de forças opostas:
a capacidade de observar o mundo como objeto externo, de descrevê-lo e de
sujeitá-lo a nossos desígnios vem da clareza luminosa da Razão que, de ma-
neira importante, nos determina; a capacidade de sentir o mundo como objeto
interno, de perceber sua grandeza inefável e de saborear seu mistério profun-
do, que também nos envolve e define, vem da obscura intuição de que há mais
entre o céu e a terra do que pode supor nossa vã filosofia.12
O caminho para a plenitude humana, para o poeta Blake, é aceitar que
esta aporia nos constitui, que somos feitos dessa ambiguidade, que habitamos,
simultaneamente, o céu e o inferno:

Sem contrários, não há progresso. Atração e repulsa, razão


e energia, amor e ódio são necessários para a existência humana.
Desses contrários emerge o que as pessoas religiosas chamam de
Bem e Mal. O Bem é o passivo que obedece a Razão. O Mal é o
ativo que emana da Energia. O Bem é o Céu. O Mal é o Inferno.13

11 A fool sees not the same tree that a wise man sees.
12 There are more things in heaven and earth, Horatio, /Than are dreamt of in your philosophy.
- Hamlet (I,.5).
13 “Without Contraries is no progression. Attraction and Repulsion,/Reason and Energy, Love
and Hate are necessary to Human existence./From these contraries spring what the reli-
PRISÕES, BORDÉIS E AS PEDRAS DA LEI 169

Estabelecer uma hierarquia entre essas duas dimensões — como é o pro-


jeto da ciência Moderna, que busca submeter o natural e o instintivo à cultura e
à técnica — cinde aquilo que deveria estar unido. É a tensão entre os dois ter-
mos que constitui o humano e que dá sentido à experiência. A Razão Moderna
destrói a vida que busca entender, justamente porque o faz por meio de uma
clivagem absoluta entre os termos, por uma separação sistemática entre sujei-
to e mundo, sensibilidade e razão, sentido e causa. No verso famoso de Wor-
dsworth, matamos para dissecar:14 a forma Moderna de tentar compreender a
vida implica, necessária e paradoxalmente, sua destruição.
É no quadro da crítica à prepotência da Razão, e da disciplina severa a
que ela submete os desejos que Blake sustenta a superioridade de “os tigres da
ira” sobre “os cavalos da instrução”.15 A sabedoria dos primeiros vem de sua
liberdade selvagem, de sua capacidade de aceitar que a ferocidade e a ira são
elementos de sua natureza, que não devem ser negados ou suprimidos, nem
podem ser domesticados para atender aos desejos da Ordem.
Em Canções de Inocência e de Experiência (1789), Blake retoma o tema
da ambiguidade constitutiva do humano e do alcance restrito da Razão para
captar o que há de mais relevante na vida. A oposição entre as Canções de Ino-
cência, marcada pela regularidade de algo pasmoso da Ordem e o fascínio do
turbilhão desordenado das Canções de Experiência resume, com a densidade
do discurso poético, o conjunto das críticas Românticas ao projeto Moderno: a
demarcação nítida de províncias entre o racional e o não racional destrói a pos-
sibilidade de se encontrar sentido — não causalidade — para as ações humanas.
A literatura do período — e não apenas a poesia — repropõe, obsessiva-
mente, essa invectiva contra o modo Moderno de organizar o mundo: Uma Mo-
desta Proposta, de Swift (1726) é uma denúncia cruel e sarcástica da frieza da
racionalidade tecnoburocrática frente à condição dos miseráveis; Frankenstein,
de Mary Shelley (1818); O Médico e o Monstro, de Stevenson (1886) são fábulas
de terror que evocam a loucura que se esconde sob a soberba cega da Razão;
Bleak House e Oliver Twist de Dickens, vituperam contra as consequências per-
versas da aplicação prática de princípios econômicos e políticos cientificamen-
te comprovados. A cisão do humano leva, forçosamente, à cisão social.

gious call Good & Evil./Good is the passive that obeys Reason. Evil is the active springing
from Energy. Good is Heaven. Evil is Hell.”
14 “Doce é o ensinamento que a Natureza nos traz/nosso intelecto curioso/deforma a beleza
das coisas/matamos para dissecar”. “Sweet is the lore which Nature brings;/Our meddling
intellect/Mis-shapes the beauteous forms of things:--/We murder to dissect”. Wiliam Wor-
dsworth. The Tables Turned, 1888.
15 “The tigers of wrath are wiser than the horses of instruction.”
170 CADERNOS FGV DIREITO RIO

É nesse sentido que os versos de Blake se tornam paradigmáticos da críti-


ca Romântica ao projeto Moderno, em geral, e ao Direito, em particular. Quan-
do propõe, em Provérbios do Inferno, que as prisões são construídas com as
pedras da Lei, os bordéis com os tijolos da religião, o poeta dá voz a esse sen-
timento de que esses discursos normativos, e as instituições que os articulam,
punem os seres humanos por serem humanos, isto é, por serem constitutiva-
mente ambíguos e necessariamente formados pelo racional e pelo não racional.
As normas religiosas, com suas múltiplas proibições, negam a verdade incon-
tornável do desejo, enquanto as leis, com sua pretensão universal, fecham os
olhos às singularidades das condições individuais que caracterizam a vida real.
Do ponto de vista dos Românticos, tanto mais racional e universal se pre-
tenda o Direito, tanto mais ele será um instrumento de opressão, exclusão e
injustiça (A mesma lei para o leão e o boi é Opressão)16. A descrição do fun-
cionamento das cortes nos romances ingleses do período é profundamente
crítica: tais romances deploram justamente a ideia de sistema autônomo que a
perspectiva de Austin celebrava. Onde Austin e os positivistas desejam separa-
ção nítida, Blake e os Românticos preconizam fusão absoluta.
Os projetos de John Austin e de William Blake parecem dialogar, assim,
em um nível mais profundo do que se poderia supor à primeira vista. Ambos
se posicionam frente ao projeto Moderno, reagindo desigualmente ao cataclis-
ma da Revolução Industrial, suas premissas filosóficas (noções de Razão e de
Ciência) e suas consequências sociais. Austin abraça com otimismo essa pro-
posta de erigir a causalidade — e não o sentido — como paradigma último não
apenas para estabelecer o conhecimento científico, mas também para formular
o melhor modo de se construir a organização social. Sua perspectiva para a
ciência do Direito iria, sem surpresa, transbordar também para o quotidiano
das práticas jurídicas, afetando profundamente a forma como os profissionais
do Direito entendem sua função. É possível ainda hoje observar ecos dessa po-
sição pioneira de Austin em certo tipo de crítica ao chamado ativismo judicial.
William Blake, por sua vez, rejeita a proposta Moderna porque entende
que ela parte de uma premissa equivocada sobre a vida humana. A cisão me-
tódico e o procedimento de segmentação ordenada que caracterizam a Razão
que impulsiona a vertiginosa mecanização e automação dos primórdios da In-
glaterra industrial parecem-lhe uma perversão daquilo que há de mais precioso
nos seres humanos. O olhar cético e amargo que ele lança sobre o Direito, cujas
normas se tornam instrumento de opressão em nome da igualdade, também
reverberaria com força no Ocidente. Da crítica marxista ao realismo jurídico
norte-americano, a crença de que a integridade do sistema e a universalidade

16 One Law for the Lion and Ox is Oppression.


PRISÕES, BORDÉIS E AS PEDRAS DA LEI 171

das regras não são capazes, por si só, de produzirem justiça (embora sejam ca-
pazes, muitas vezes, de produzir seu oposto), tem alimentado alguns dos mais
importantes esforços de apresentar princípios que resolvam satisfatoriamente
aos hard cases da vida concreta. Examinar, em Austin e Blake, as origens des-
sas linhas antagônicas que balizam hoje o debate jurídico podem ajudar para a
difícil construção de um novo lugar para o Direito.

Referências

BIX, Brian, “John Austin”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring


2015 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <http://plato.stanford.edu/archi-
ves/spr2015/entries/austin-john/>.

ERDMAN, D.V. (ed.). The Complete Poetry & Prose of William Blake. Anchor
Books, 1982.

LOPES, J.R.L. Hermenêutica e completude do ordenamento. R.Inf. Legisl. Brasí-


lia, a.26 n. 104 out/dez 1989.

TAYLOR, Charles. A Secular Age. Harvard University Press, 2007.


172 CADERNOS FGV DIREITO RIO
DIREITO E LITERATURA: SONHO DE UM DILETANTE? PARTE B1
William Twining2

Introdução
Em novembro de 2013 dei uma palestra na Wolfson College, Oxford, intitulada:
“DIREITO E LITERATURA: SONHO DE UM DILETANTE?”. A palestra aconteceu
em duas partes. Parte A expressava um ceticismo cauteloso com relação ao
“Movimento Direito e Literatura”. A tese era simples: Neste contexto, nem a
“Literatura” nem o “Direito” tem um referente. Como áreas acadêmicas, es-
sas disciplinas são muito amplas e fragmentadas internamente para possuir
um conjunto coerente de relações; como fenômenos (por exemplo, a literatura
como um legado de textos, direito como instituições, processos no “mundo
real”, leis como ideias) elas são muito variadas e amorfas para serem reduzidas
a um conjunto coerente de matérias que podem ser sensatamente justapostas.
Há assuntos e tópicos específicos que geraram produtos iluminadores como
ideias e hipóteses constitucionais de Shakespeare, mas grande parte da discus-
são secundária do “movimento” é excessivamente generalizada.
Na parte B, deixando de lado qualquer esforço em generalizar o movimento
ou o suposto “campo”, parti para uma autobiografia. Contei algumas histórias es-
pecíficas sobre como alguns compromissos ecléticos com a “literatura” influen-
ciaram minha maneira de pensar e meu trabalho: não apenas como um toque
final, ou para deixar uma cotação ou para me mostrar ou brincar. A parte B foi
mais bem-sucedida do que a parte A. Ela sugeriu uma pergunta que cada um de
vocês pode se perguntar: Há algo que influenciou de forma significativa o meu
trabalho em direito dentro do legado da literatura ou estudos literários? Por quê?
A parte B foi reproduzida aqui com pequenas alterações apenas. Nesta
versão, mantive o estilo informal da palestra, mas adicionei algumas notas de

1 Traduzido do inglês por Flávio Jardim.


2 William Twining é o Professor Emérito Quain de Jurisprudence da Faculdade de Direito
da UCL, tendo ocupado cátedras anteriormente em Warwick e Belfast, além de ter sido
professor visitante nos Estados Unidos, Sudão e Tanzânia. É autor de inúmeros livros e ar-
tigos publicados, merecendo destaque as obras 'Karl Llwewllyn and the realist movement'
e 'General Jurisprudence: Understanding Law from a Global Perspective'. É membro proe-
minente do movimento 'direito em contexto'.
174 CADERNOS FGV DIREITO RIO

rodapé.3 Trata-se de três temas: (I) ponto de vista; (II) narrativa e argumento
nos apuramentos dos fatos; (III) Italo Calvino e Jurisprudência.

Perspectiva4
Meu primeiro exemplo de ter sido ajudado pela “literatura” enquanto jurista se
refere ao que atualmente é considerado crítica literária à moda antiga. Como
estudante de graduação, o meu interesse em teoria do direito, de fato, recebeu
inspiração de Herbert Hart, especialmente da sua aula inaugural realizada em
1952.5 No entanto, ao longo do tempo me tornei cada vez mais insatisfeito
com a sua visão limitada com relação à pauta da teoria do direito.6 Isso ligado
a uma preocupação de adolescente sobre o pluralismo de crenças do qual não
consegui me livrar: como lidar com o fato de que existem muitos sistemas de
crenças, todas alegando serem corretos? Pouco tempo depois de que me for-
mei, li e fiquei fascinado com a Autobiography de Collingwood — certamente
uma grande obra de literatura, mais precisamente de ficção.7 A ideia-chave na
minha opinião foi que toda a história é a história do pensamento: para compre-
ender as decisões de Aristóteles ou Nelson em Trafalgar, é preciso colocar-se
no lugar do escritor ou do ator e tentar entender a sua situação, preocupações,
conceitos e informações a fim de reconstruir o que eles estavam pensando e o
que significava. Ler Collingwood foi para mim um grande passo, mas não che-
gou a resolver todos os meus quebra-cabeças.
Logo depois de ficar animado com Collingwood, li Aspects of the Novel,
escrito em 1927 por E.M. Forster.8 Como um sério autodidata, li até mesmo al-

3 As ideias exploradas nesta palestra foram tratadas de maneira mais extensa em minhas
obras. Veja, por exemplo, William Twining, The Great Juristic Bazaar: juristic texts and la-
wyers’ stories. Aldershot: Ashgate, 2002 (posteriormente GJB); William Twining, Globalisa-
tion and Legal Theory. London: Butterworth, 2000 (posteriormente GLT); William Twining,
General Jurisprudence. Cambridge: Cambridge University Press, 2009 (posteriormente
GJP); William Twining, T. Anderson, and D. Schum, Analysis of evidence, Cambridge: Cam-
bridge University Press, 2005; William Twining, Rethinking evidence. Cambridge: Cambrid-
ge University Press, 2006; William Twining and David Miers, How to do things with rules:
a primer of interpretation. Cambridge: Cambridge University Press, 1999 (posteriormente,
HTDTWR).
4 Consultar especialmente GJB Cap. 2, 3 et passim (ver índice), HTDTWR XV-XVI, 15-23, et
passim, Análise 115-117, RE 120-134, 368-369 RE, 406-410.
5 H.L..A. Hart, Definition and Theory in Jurisprudence 70 Law Quarterly Review 57 (1953),
reeditado em várias coleções. Esta palestra inaugural apresentou a um ingênuo estudante
de graduação a algumas ideias surpreendentes: perguntas como “o que é direito?” e “O que
é um direito?” podem ser colocadas de forma errônea ou enganosa; que muito depende
de quem está fazendo as perguntas; e que a atribuição de diferentes perguntas a textos
aparentemente conflitantes é uma forma de diferenciar discordância de mera diferença.
6 William Twining, “Academic Law and Legal Philosophy; the Significance of Herbert Hart”,
95 Law Quarterly Review 557-80(1979).
7 R. G. Collingwood, An Autobiography. Oxford: Oxford University Press, 1939, reimpressão
1970 discutido GJB Cap. 2.
8 E.M. Forster, Aspects of the Novel Londres: Edward Arnold (1927) (posteriormente, novel).
DIREITO E LITERATURA 175

guns dos trabalhos que ele debatia. Duas ideias aparentemente contraditórias,
mas relacionadas me fisgaram. Primeiro Forster elogiou The Craft of Fiction de
Percy Lubbock, publicado em 1921, e citou com aprovação a sua declaração:
“acredito que toda a complexa questão de método, em Craft of Fiction, é regi-
da pela questão do ponto de vista — a questão da relação em que o narrador
defende a história”.9
Devorei Lubbock e suas distinções entre o espectador imparcial ou parcial
e o autor onisciente; e de ver tudo através dos olhos de um ou mais participan-
tes. Isso desenvolveu a percepção de Collingwood sobre a história diferencian-
do vários tipos diferentes de pontos de vista, e como veremos, teve ressonân-
cia imediata em relação ao estudo do direito.
Nas últimas partes de Aspects of the Novel parece que Forster alterou
o rumo. Ele criticou duramente Henry James por apoiar de forma demasiado
rígida um ponto de vista consistente — sacrificando a humanidade e a vida à
forma estética. Em particular, em The Ambassadors, James desenvolveu uma
forma esteticamente completa como uma ampulheta: “Mas a que preço! [...]
o preço é uma pequena lista de personagens — um observador que tenta in-
fluenciar a ação e o forasteiro de segunda classe — e esses personagens [...] se
desenvolvem a partir de falas bastante mesquinhas [...] Por que tão desumano
com seres humanos?”10
Em suma, o formalismo de James afasta a confusa realidade da vida. As-
sim era exatamente como me sentia sobre o direito e a tradição dominante —
apenas um pouco menos dominante hoje em dia — do formalismo doutrinário
(seja o que for que isso signifique). Então, eu troquei Hart — pelo menos foi o
que ele pensou — por algo chamado “realismo” e desde então, pontos de vista
e perspectivas múltiplas tornaram-se conceitos-chave.
Logo reconheci que a diferenciação de ponto de vista já era uma ferramenta
poderosa na teoria analítica do direito e na filosofia.11 Por exemplo, a diferencia-
ção feita por Bentham entre teoria do direito expositiva e sensorial; a reivindica-
ção de Rawls para dissolver uma perplexidade sobre o utilitarismo de ação e de
regras, atribuindo à primeira ao questionamento do juiz e a última ao questio-

9 Percy Lubbock, The Craft of Fiction Londres: Jonathan Cape 1921 / Li a edição de 1954 com
o novo prefácio, página 251.
10 Forster, novel. págs. 147-8. Henry James, The Ambassadors (publicado pela primeira vez
em 1903). Forster reconhece que “Há uma hábil análise [por Percy Lubbock] a partir de
outro ponto de vista em The Craft of Fiction” id. na pág. 141.
11 O conceito de ponto de vista é altamente ambíguo e significa coisas diferentes em contex-
tos diferentes. Termos como ponto de vantagem, situação, papel, perspectiva e objetivos
precisam ser diferenciados — o grau de importância de cada um deles em grande parte
depende do contexto. Por exemplo, “esclarecimentos sobre o ponto de vista” é diferente
para um estudante de Direito se preparando para escrever uma análise sobre causalidade e
um advogado que irá se encontrar com seu cliente pela primeira vez. Consulte GJB 29-37.
176 CADERNOS FGV DIREITO RIO

namento do legislador com relação à punição: o legislador pergunta quem deve


ser punido e em que condições? O juiz pergunta: devo punir essa pessoa? Em
teoria do direito, Hart, Lasswell e McDougal, e Holmes estavam entre aqueles que
usaram diferenciação de pontos de vista para promover suas ideias.12
No entanto, pareceu-me que a análise de ponto de vista não deve parar
em distinções abstratas entre observadores e participantes, pontos de vista
internos e externos, e diferenciações indescritíveis entre o subjetivo e o objeti-
vo — tais distinções muitas vezes falham. Tomemos, por exemplo, a distinção
entre os participantes, observadores e participantes-observadores. Muito do
conhecimento jurídico, teorização jurídica e educação jurídica, é orientada para
o participante. Uma parte central das tradições anglo-americanas de pedago-
gia compreende fazer os alunos adotarem papéis diferentes: aconselhar o seu
cliente; defender o caso para o autor; decidir este caso; mudar a lei — pedir
para que interpretem diferentes tipos de atores, principalmente nos poderes
superiores do sistema: Juízes da Suprema Corte; legisladores; Chefes do Judi-
ciário ou Ministros da Justiça.13 Com menor frequência eles interpretam atores
inferiores, como consumidores, vítimas, criminosos condenados ou outros usu-
ários de direito e dos processos jurídicos. Pontos de vista subalternos não es-
tão bem desenvolvidos em nossa tradição de direito acadêmico, mas têm sido
aproveitados por alguns membros do movimento Direito e Literatura.14
Nietzsche sugeriu que a forma mais comum de estupidez consiste em es-
quecer o que se está tentando fazer.15 Para os meus alunos, descobri que a
forma mais comum de estupidez é esquecer o que estão fingindo ser. Portanto,
torno o esclarecimento dos pontos de vista um primeiro passo essencial por
meio de uma variedade de exercícios intelectuais.16

12 Ref. Jeremy Bentham, A Fragment on government (T.H. Burns and H.L.A. Hart eds), London:
Athlone Press, 1977, páginas 397-8; John Rawls, Two Concept of Rules, 64 Philosophical Re-
view 72 (1955); H.L.A. Hart, Punishment and Responsibility, Oxford: Oxford University Press
(1968) Cap. 1; R.G. Collingwood, ‘On the so-called idea of Causation’. Proceedings of the
Aristotelian Society, New Series, Vol. 38 (1937 - 1938), pp. 85-112.; Harold Lasswell e Myres
MacDougal esp; Legal Education and Public Policy 52 Yale L. J. 203 (1943), O. W. Holmes,
The Path of the Law 10 Harvard L. Rev. 457 (1897). Consultar GJB Cap.3.
13 HTDTWR Prefácio XV-XVI.
14 Na minha opinião, um dos argumentos mais poderosos para que as vozes dos subalternos
sejam ouvidas e seus direitos reconhecidos, foram apresentados por um jurista, Upendra
Baxi, em Voices of Suffering: Fragmented Universality and the Future of Human Rights
(1998) Law and Contemporary Problems 125, reproduzido na íntegra em W. Twining (ed.)
Human Rights: Southern Voices. Cambridge: Cambridge University Press, 162ff <Cap. 5>
(2009).
15 Muitas vezes traduzido como “esquecer os próprios propósitos” F. Nietszche, Human, all
too human: a book for free spirits. Cambridge: Cambridge University Press. 2nd edition
(1996), a passagem está no trecho intitulado The Wanderer and his Shadow, originalmente
de 1880.
16 É claro que há muitos tipos de historiadores e muitos tipos de observadores que podem ser
ainda mais diferenciados.
DIREITO E LITERATURA 177

Há um repertório padrão de papéis estereotipados ou abstratos no dis-


curso legal — o legislador, o juiz, um promotor, o advogado de defesa, o nego-
ciador, o conselheiro e assim por diante. Há também imagens padrão, como o
homem econômico, a perspectiva interna de Hart (principalmente das autori-
dades), o “ponto de vista legal” de Kelsen,17 o juiz ideal de Dworkin, Hercules,
o homem mau caráter de Holmes, o intérprete confuso, um consultor fiscal
cínico, interrogatório policial “tira mau/tira bom”, o juiz correto.18 Existem mui-
tos tipos de atores jurídicos e cada tipo pode ser subdividido em subespécies.
Mas em algum momento, especialmente em estudos sociojurídicos, é preciso
se concentrar em particularidades. Se alguém está interessado em saber o que
realmente acontece, como os participantes realmente são e as experiências da
vida real, é preciso pensar empiricamente em termos das características reais
de pessoas reais — como elas de fato pensam, raciocinam, discutem, decidem,
e se comportam.
Dois críticos ou comentaristas literários dos anos 20 serviram de inspira-
ção para algumas das coisas que para mim tem sido um conjunto essencial de
ferramentas para pensar sobre o direito. É claro que a teoria literária evoluiu
e se tornou mais sofisticada — na verdade, frequentemente demasiado sofis-
ticada para um mero jurista. De tempos em tempos tenho me dividido entre a
teoria da resposta do leitor, perspectivismo, a falácia intencionista, a descons-
trução, e alguns outros modismos, modas e brincadeiras dos estudos literários
acadêmicos. Mas isso tem sido mais como um diletantismo da minha parte e
pessoalmente não achei nenhuma delas muito útil.

Ponto de vista e narrativa: O Shakespeariano e o jurista


As sutilezas da análise de ponto de vista foram ilustradas por meio de uma
colaboração peculiar que eu tive com o especialista em Shakespeare (e his-
toriador social) René Weis do departamento de inglês da University College
London. Durante anos, ao ensinar a estudantes de direito como analisar provas
e desenvolver argumentos sobre questões relativas a fatos complexos, utilizei a
causa célèbre britânica da década de 20 de R v Bywaters e Thompson.19 Frede-
rick Bywaters e Edith Thompson foram condenados pelo homicídio do marido
de Edith Percy — Freddy por tê-lo esfaqueado, e Edith por incitar Freddy a
matar Percy. Edith foi condenada em grande parte com base em 60 cartas de
amor que enviou a Freddy, muitas escritas com um estilo elíptico e um fluxo de

17 Sobre isso consulte Joseph Raz, The Authority of Law Oxford University Press, 1979, págs.
140-43.
18 Para obter exemplos, consulte HTDTWR págs. 15-23.
19 Veja Análise. Cap. 7, RE Cap. 12.
178 CADERNOS FGV DIREITO RIO

consciência efusivo.20 Escolhi o caso, porque, como disse um aluno: “Se você
consegue analisar a prosa de Edith, consegue analisar qualquer coisa”. O caso,
assim como o caso Sacco Vanzetti nos Estados Unidos,21 se tornou uma espécie
de evento literário: estimulou várias peças, pelo menos um filme muito ruim, e
um brilhante romance feminista, Pin to See the Peepshow.22 As opiniões quanto
à culpa de Edith ainda se dividem.
Depois de alguns anos, escrevi um artigo usando Bywaters e Thompson
para ilustrar o método de análise e desenvolvimento de argumentos que estava
tentando ensinar.23 Somente após a conclusão desse trabalho foi que soube
que um colega britânico na UCL tinha acabado de terminar um livro inteiro
sobre o caso, argumentando com entusiasmo a inocência de Edith.24 Compara-
mos nossas anotações e decidimos publicar nossos trabalhos separadamente
sem alterá-los, mas, em seguida, escrever um trabalho em conjunto comparan-
do nossas abordagens diferentes para o caso.25 Para mim foi uma experiência
fascinante e educativa. Aqui, só vou lidar com isso na medida em que ilustro as
complexidades do ponto de vista. Nós dois chegamos a conclusões semelhan-
tes sobre a ausência de culpa de Edith, mas por caminhos bastante diferentes.
O primeiro ponto era saber se, ao considerar Edith culpada, estávamos
abordando a mesma questão. A resposta a esta pergunta é discutível. Eu afir-
mo que nós não estávamos preocupados com a imparcialidade do julgamento,
mas adotando o ponto de vista dos historiadores. Oitenta anos após o even-
to, perguntávamo-nos se Edith era criminalmente responsável pela morte de
Percy com base na lei daquele momento. Para responder à pergunta, um his-
toriador teria de conhecer a lei para homicídios aplicável, incluindo a doutrina
obscura em torno da incitação e coautoria26. A perspectiva, objetivos e méto-
dos de Weis eram diferentes dos meus e ele produziu uma grande quantidade

20 Os autos do julgamento e algumas cartas foram publicadas na íntegra no livro The Trial
of Frederick Bywaters and Edith Thompson de Filson Young (ed.). Edimburgo: W. Hodge,
1923.
21 David Felix, Protest: Sacco-Vanzetti and the Intellectuals. Bloomington Ind.: University of
Indiana Press, 1965.
22 F. Tennyson Jesse, A Pin to See the Peepshow. Londres, Heinemann, 1934.
23 W. Twining, “Anatomy of a cause célèbre” no RE (1990) Cap.8 e 9 (abreviado em RE 2ª ed.
Cap..12, partes 1 e 2.)
24 R. Weis, Criminal Justice: the True Story of Edith Thompson. Londres: Heinemann, 1934; pb.
Penguin, 2001.
25 William Twining e René Weis, “Reconstructing the Truth about Edith Thompson: The
Shakespearian and the Jurist” in W. Twining and Ian Hampsher-Monk (eds) Evidence and
Inference in History and Law (Evanston: Northwestern University Press, 2003) Cap. 2; reim-
presso em RE (2006) Cap.12.
26 Nota do editor: originalmente, o termo conspiracy foi adotado. Trata-se de um delito autô-
nomo na Inglaterra e Estados Unidos de conspiração para a prática de ilícitos criminais, cuja
aplicação é mais fácil de demonstrar na prática do que os crimes de quadrilha ou bando
adotados pelo direito brasileiro.
DIREITO E LITERATURA 179

de novos dados. O fato de Weis não ser um advogado é irrelevante. Alguns dos
meus estudantes discordam de mim, afirmando que a perspectiva, os objetivos
e os métodos de Weis eram diferentes dos meus. Em minha opinião, eles estão
errados. Nossa questão foi por nós compartilhada.
De fato, nossos métodos foram muito diferentes e trouxemos visões dife-
rentes. Eu foquei nos autos do julgamento, principalmente nas cartas de Edith
para seu amante, e os expus a uma análise crítica, ilustrando o método que es-
tava tentando ensinar. Cheguei à conclusão de que as evidências de coautoria
eram muito fracas, mas a evidência de incitação era válida, mas não forte o su-
ficiente para satisfazer o padrão de dúvida razoável, especialmente em relação
à questão de saber se Freddy matou Percy por ter sido encorajado por Edith
— um júri e comentaristas razoáveis poderiam discordar disso.
O que o shakespeariano fez? Primeiro, ele ambientou o julgamento dentro
das condições e atitudes sociais da época, as histórias de vida dos atores prin-
cipais e, o mais impressionante, dentro do ambiente turbulento do relaciona-
mento. Ele desenterrou uma grande quantidade de material novo sobre o julga-
mento, as personalidades envolvidas e os romances em que Edith mergulhou,
usando tudo isso para desenvolver uma teoria de que ela estava vivendo em
um mundo de fantasia e nunca planejou o assassinato de Percy. Em segundo lu-
gar, ele elaborou uma narrativa mestra da vida e da morte de Edith no contexto
social de sua época. Em terceiro lugar, ele utilizou suas habilidades como um
estudioso textual instantaneamente e realizou uma análise detalhada das car-
tas de Edith. Ele elaborou um relato detalhado e quase diário do relacionamen-
to de 18 meses com Freddy e então classificou cada carta dentro do contexto
de altos e baixos da relação. Ao fazer isso para cada carta significativa, ele foi
capaz de deduzir o humor de Edith, o efeito de cada passagem, e que algumas
palavras e frases eram temáticas ou parte do código dos amantes.
Como vocês podem imaginar, este simples advogado ficou de olhos ar-
regalados com este brilhante desempenho. Eu aprendi muito sobre o caso e
como ler cartas de amor, mas quase nada sobre Shakespeare. Havia uma falha.
O argumento de Weis foi que Edith não tinha intenção criminosa. Pelo menos
uma dúzia de cartas poderia ser interpretada como atos de incitamento — algu-
mas sutis, mas algumas bastante óbvias: “Quem dera não tivéssemos luz elétri-
ca, seria fácil.”27 “O que exatamente seria tão fácil, senhora Thompson?”. “Usei
a ‘lâmpada’ três vezes, mas na terceira vez ele encontrou um pedaço, então eu
desisti até você chegar em casa.”28 “Vou arriscar e tentar se você também o fi-
zer”. Um pouco parecida à afirmação de Bashar Al-Assad na Síria de que todos
os quinze ataques de armas químicas eram coisa de rebeldes, é pedir demais

27 Analise pág. 189.


28 Idem, pág. 185.
180 CADERNOS FGV DIREITO RIO

à imaginação que nenhuma dessas passagens esteja implicando a intenção de


matar Percy e incitar Freddy. Weis não se concentrou exatamente sobre o que
a promotoria tinha que provar e nos diversos fatos relevantes, como nós, advo-
gados, os chamamos. Uma linha melhor de defesa seria que Freddy não levou
as cartas de Edith a sério e que o esfaqueamento de Percy foi espontâneo, em
vez de premeditado, de modo que ele não matou Percy porque foi encorajado
por Edith ou devido a uma coautoria delitiva.
É tentador dizer que Weis utilizou uma abordagem narrativa e eu, uma
abordagem lógica. Mas isso leva a resultados enganosos. Cada um de nós utili-
zou ambos. Weis testou elementos-chave em suas grandes narrativas e subtra-
mas contra evidências — especialmente a prova das cartas. Eu usei narrativas
para imaginar cenários possíveis, para elaborar hipóteses e para resumir o caso
a favor e contra Edith em uma história coerente, que faria sentido para o caso
como um todo. No momento em que comecei a escrever sobre o caso, já esta-
va convencido de que eram necessárias tanto a narrativa quanto a lógica para
reconstruir os eventos passados. Houve, no entanto, um grande problema teó-
rico: neste tipo de abordagem para reconstruir eventos específicos do passado,
qual é a relação entre as provas, a narrativa e o argumento?

Narrativa

Usos e abusos da narrativa: histórias como necessárias, mas perigosas


Isso nos leva a outra história. Certa vez, no início dos anos setenta, o filósofo
francês, Paul Ricoeur, visitou a Universidade de Warwick. Seu legado foi uma
série de seminários sobre “narrativa como um instrumento cultural”, que era in-
terpretado como cultura acadêmica. Os organizadores dividiram as disciplinas
acadêmicas em três categorias principais: “Não óbvio”, como a economia, a
filosofia da ciência, a física e geografia; “Óbvio”, tais como a literatura, a história
e a teologia; e “Meio termo”, incluindo o direito, a antropologia e a sociologia.29
Eles começaram com a categoria “Não óbvio” e convidaram acadêmicos
das disciplinas dentro dessa categoria para discutir o papel da narrativa em sua
própria disciplina ou subdisciplina. Tenham ou não pensado nisso antes, todos
os colaboradores acharam que a narrativa desempenhou diversos papéis em
seu campo.30 Por exemplo, um filósofo da ciência, Rom Harré, relatou como

29 Christopher Nash (ed.), Narrative and Culture: the uses of stotytelling in the sciences, philo-
sophy and literature. Nova Iorque: Routledge, 1986. Uma versão estendida do meu trabalho
se encontra em RE (2006) Cap. 10.
30 Um exemplo surpreendente é Donald McCloskey, que passou a escrever The Rhetoric of
Economics. Madison: University of Wisconsin Press, 1985, em que ele demonstrou que “o
‘mais difícil’ das ciências sociais era ser literário mesmo se tratando de matemática, retóri-
ca, até mesmo não verbal. Em argumentos e estudos de casos detalhados em geral, ele re-
DIREITO E LITERATURA 181

as revistas científicas raramente oferecem um relato realista sobre a história


de um experimento (“o assistente de pesquisa espirrou e derrubou o material
no laboratório”, ou “como lidamos quando o financiamento da pesquisa aca-
bou”); em vez disso, trabalham em relatos sobre as contribuições do pesquisa-
dor principal, fornecendo assim, autoridade para os resultados, e elaborando
projetos de pesquisa científica, como se fossem missões heroicas, com heróis,
vilões e ajudantes mágicos.31
Quando eles se voltaram ao direito, convidaram o Lorde Denning, o mais
famoso juiz de sua época, que era bem conhecido tanto como narrador quanto
pelas vívidas evocações dos fatos de casos em seus julgamentos32*. O convite
não poupou elogios. Ele dizia: “Lorde Denning, acreditamos que você seja o
maior contador de histórias jurídicas de sua geração. Você poderia vir a Wa-
rwick para nos contar o (s) seu (s) segredo (s)?”Acredita-se que Lorde Denning
respondeu algo parecido a:” Cara Warwick, eu sou de fato o maior contador de
histórias da minha geração, talvez do século XX, mas estou muito velho para
viajar para Warwick. Atenciosamente, Denning.”
Houve duas continuações a esta rejeição. Primeiro, desesperados por en-
contrar um substituto para Denning, os organizadores convidaram dois juristas
acadêmicos — Professor Bernard Jackson, quem tinha escrito sobre semiótica
jurídica; e eu, um ex-membro da equipe de professores de Warwick, e conhe-
cido por um interesse diletante na literatura. Eu aceitei, mas também sugeri
que, se o Lorde Denning não podia vir a Warwick, Warwick poderia ir até Lorde
Denning. Foi o que fizemos, foi divertido, mas essa já é outra história.33
Até estes workshops de Warwick, nunca tinha pensado muito sobre narra-
tiva com relação ao direito. Meu compromisso prévio com o direito e a literatu-
ra tinha sido principalmente em relação ao ponto de vista e as citações como
notas ornamentais. Assim que me concentrei em narrativas, histórias e temas
apareceram em muitos contextos diferentes: “histórias de guerra” de advoga-
dos, piadas sobre advogados, relatos de causas célèbres e erros da justiça, ma-

vela à medida que o discurso econômico emprega metáfora, autoridade, simetria e outros
meios retóricos de persuasão”. (Sinopse de capa).
31 Sou grato a Rom Harré por ter verificado isso.
32 * Nota do Editor: Lorde Denning foi magistrado por quatro décadas no Reino Unido, tanto
em primeira instância, quanto nos tribunais de instância superior. Educado em Oxford, o
Barão Alfred Thompson Denning proferiu julgamentos notórios, que transformaram signifi-
cativamente o direito inglês e influenciaram inúmeras reformas legislativas. Lorde Denning
ficou conhecido como um juiz do povo, sendo que seu estilo de linguagem simples, direto e
com boa narrativa foi importante para a sua popularidade. Mesmo após sua aposentadoria
como magistrado, continuou a dicutir o direito inglês por meio de livros e de palestras. Mor-
reu em 1999 aos 100 anos de idade. Lorde Denning é considerado, por muitos, o magistrado
mais influente do Reino Unido nos século XX por seu impacto para popularizar e mudar o
direito inglês.
33 Brevemente relatado no RE (2006) nas págs.280-83.
182 CADERNOS FGV DIREITO RIO

ravilhosos estudos contextuais sobre precedentes importantes feitos por Brian


Simpson, novelas com advogados, as famosas histórias pós-jantar do Lorde
Denning e assim por diante.34 Porém, além de tais frivolidades, as histórias
também aparecem de forma proeminente na prática jurídica. Os repositórios
de jurisprudência são uma vasta antologia de contos sobre disputas de todo
tipo. E nos repositórios, é possível encontrar vários tipos de história em uma
única sentença: os fatos do caso (muitas vezes recontados duas ou três vezes),
a história do processo que levou à decisão (mas raramente é o fim da história
na opinião das partes); e a história do direito, traçando o desenvolvimento da
doutrina aplicável através de uma série de precedentes, muitas vezes, remon-
tando a um século ou mais (o Lorde Denning era um mestre nessa técnica). Ou
um caso pode ser apenas um episódio em uma longa disputa ou campanha.
Em matéria de provas, a narrativa é frequentemente comparada ao argumento
racional e análise lógica, e o “atomismo” com o “holismo”.35 Psicólogos co-
mentam que os júris tomam suas decisões mais ao considerar a plausibilida-
de de histórias concorrentes do que por meio de uma análise cuidadosa das
provas.36 Manuais de defesa salientam a importância de elaborar e apresentar
histórias vivas, coerentes e persuasivas.37 Mesmo em casos de segunda instân-
cia, o mantra padrão é: “A apresentação dos fatos é o cerne do argumento”.38
Essa introdução à “virada narrativa” teve um impacto imediato sobre a mi-
nha abordagem com relação a evidências. Até então eu vinha me concentrando
na lógica das provas e no método gráfico de Wigmore para interpretar e criti-
car os argumentos sobre fatos em disputa em casos complexos.39 Estava cien-
te de que psicólogos tinham demonstrado que os júris americanos se decidiam
por histórias plausíveis em vez de tentar decidir de uma forma essencialmente
lógica, mas que isso sugeria uma deficiência na tomada de decisão do júri.40
Wigmore havia afirmado que a sua lógica sobre provas foi uma alternativa su-
perior ao “método de narrativas”, o qual ele descartou como impressionismo
preguiçoso e improvisação.41 Logo ficou claro para mim que Wigmore estava

34 Veja A. W. B. Simpson, Leading cases in the common law, Oxford: Oxford University Press,
1995. Uma série de treze volumes sobre estórias jurídicas feitas com base no método de
Simpson foi publicada pela Foundation Press.
35 RE, esp. págs. 306-11.
36 N. Pennington e R. Hastie, “A Cognitive Theory of Jury Decision-making: The Story Model”,
13 Cardozo L. Rev. 519 (1991); desenvolvido ainda mais em R.Hastie (ed.), Inside the Juror.
Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
37 RE, págs. 306-320.
38 Karl Llewellyn, The Common Law Tradition: Deciding Appeals Boston: Little Brown, 1960,
pág. 238, RE págs. 296-303.
39 T. Anderson et al., Analysis of Evidence, Cambridge: Cambridge University Press 2ª ed.
,2005, esp. XXX.
40 Vide nota 33 acima.
41 J.H. Wigmore, The Science of Judicial Proof. Boston: Little, Brown 3red edn., 1937, s.36.
DIREITO E LITERATURA 183

errado e que as histórias têm um papel crucial na investigação, defesa, e a de-


terminação judicial dos fatos e “em fazer sentido de um caso”, o que quer que
isso signifique. Menos óbvio foi o fato de que contar histórias transcende a di-
visão entre questões de fato e questões de direito e que uma narrativa persua-
siva é parte importante da determinação das questões controvertidas da lei em
casos específicos.42 A relação entre o argumento racional e a narrativa e entre
generalizações e histórias de fundo se tornaram uma preocupação central do
meu trabalho em buscar evidências.43
Decidi que as histórias desempenhavam um papel importante, talvez es-
sencial, na investigação, defesa e julgamento, mas também percebi o quão
perigosas poderiam ser. O entusiasmo pela virada narrativa levou a muitos
excessos: “narrativa” se tornou uma espécie de varinha mágica para resolver
problemas; o prazo foi prorrogado para além de histórias bem definidas — en-
volvendo temporalidade, particularidade e coerência — para quase qualquer
tipo de discurso; e em alguns documentos que foram louvados como substitu-
tos para provas: por exemplo, em um estudo empírico, dois sociólogos ameri-
canos, Bennett e Feldman argumentaram que as histórias servem como ajuda
para escolher entre uma superfluidade de informações e para preencher lacu-
nas na informação. Seu argumento era que as histórias forneciam referência
para a avaliação e interpretação das provas em termos de integridade e con-
sistência.44 Mas a ideia de que as histórias podem ser usadas para preencher
lacunas nas provas vai contra todas as normas jurídicas de determinação de
fatos; isso significa o mesmo que esconder alguns detalhes dos argumentos.
Uma investigação adicional, incluindo a literatura negligenciada dos manuais
de advocacia, sugeriu que as histórias são meios maravilhosos de trapacear
de acordo com ideias justificáveis ​sobre o que está envolvido em provar fatos:
explicações, confabulação, valendo-se de fatos irrelevantes ou sem base algu-
ma, com foco no ator em vez do ato, apelando a preconceitos e estereótipos
ocultos, linguagem emotiva, e que outros meios duvidosos de persuasão são
comuns na advocacia.45 E, evidentemente, boas histórias são frequentemente
mais atraentes do que histórias verdadeiras.46 Não são apenas os advogados

42 RE págs. 296-306.
43 RE Cap. 8-11, Anderson et al., Cap. 10 T. Anderson, ‘On Generalizations, a Preliminary.Explo-
ration’, 40 South Texas L. Rev. 455 (1999), e ‘Generalisations and Evidential Reasoning’ in
P. Dawid, M. Vasilaki e W. Twining (eds.), Evidence, Inference and Enquiry, London: British
Academy, 2011, Cap. 8.
44 W. Lance Bennett e Martha S. Feldman, Reconstructing Reality in the Courtroom. New
Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1981. Em seu interessante livro, Anchored Narra-
tives (H. F. M. Crombag, W. Wagenaar, e P. Von Koppen., Londres: Harvester Wheatsheaf,
1993), três cientistas sociais holandeses sugerem que os principais apoios de narrativas são
generalizações de fundo, em vez de evidência particular, discutido em GJB Cap.13.
45 “Lawyers’ Stories” em RE Cap.10.
46 GJB Cap. 14.
184 CADERNOS FGV DIREITO RIO

que usam histórias dessas maneiras. No parágrafo de abertura do famoso caso


de Miller v Jackson47 podemos demonstrar que Lorde Denning, um contador
de histórias brilhante, mas errático, não se comportou conforme um juiz de
diversas formas: O parágrafo de abertura diz;

No verão, o críquete é o deleite de todos. Quase todos os


vilarejos têm seu próprio campo de críquete, onde os homens
jovens jogam e os mais velhos assistem. No vilarejo de Lintz,
no condado de Durham, eles possuem um local próprio, onde
têm jogado nos últimos 70 anos. A área é bem cuidada. A área
da meta é bem ondulada e cortada. A grama da parte exterior
do campo é mantida curta. Ela tem uma boa sede social de clu-
be para os jogadores e arquibancadas para os espectadores. O
time do vilarejo joga lá aos sábados e domingos. Eles perten-
cem a uma liga, competindo com os vilarejos vizinhos. Eles trei-
nam durante a noite, depois do trabalho, enquanto durar a luz.
No entanto, após esses 70 anos um desembargador do Tribunal
de Justiça ordenou que eles não devem jogar mais lá. Ele con-
cedeu uma liminar para impedi-los. Ele ordenou isso a pedido
de um recém-chegado que não gosta de críquete. Este recém-
-chegado construiu, uma casa à beira do campo de críquete,
que há quatro anos era um campo onde o gado pastava. Os ani-
mais não se importavam com o críquete. Mas agora esse cam-
po adjacente foi transformado em um conjunto habitacional. O
recém-chegado comprou uma das casas à beira do campo de
críquete. O espaço aberto era sem dúvida um local de venda.
Agora, ele se queixa de que, quando um batedor faz pontos, a
bola vai parar em seu jardim ou dentro ou perto de sua casa. Sua
esposa ficou tão chateada com isso, que eles sempre viajavam
finais de semana. Eles não vão ao jardim quando estão jogando
críquete. Eles dizem que a situação é intolerável. Então, eles
pediram ao desembargador para proibir os jogos de críquete.
E o magistrado, muito contra a sua vontade, achou que deveria
determinar para interromperem os jogos de críquete; a conse-
quência, suponho, que o Lintz Cricket Club irá desaparecer. O
campo de críquete será utilizado para outra coisa. Acredito que
para construir mais casas ou uma fábrica. Os jovens teriam que
se ocupar com outras atividades em vez do críquete. O vilarejo

47 [1977] QB 966 (CA), discutido RE (2006) pág.303-5.


DIREITO E LITERATURA 185

inteiro se tornaria um lugar sem vida. E tudo isso por causa de


um recém-chegado que acabou de comprar uma casa ao lado
do campo de críquete.48

Nesta passagem, extraordinária até mesmo para os padrões de direito,


o famoso juiz pode ser condenado por invenção de fatos, supressão de fatos,
por uso de termos emotivos para caracterizar uma das partes, e por deixar
uma impressão completamente equivocada do contexto do caso, evocando
imagens nostálgicas do vilarejo de críquete da década de trinta na zona rural
de Hampshire em contraste a um jogo mais violento disputado entre vilarejos
de mineiros no norte.49
É claro que há questões profundas sobre a relação entre lógica e retórica,
entre a narração de histórias e o raciocínio inferencial, e quais são as técnicas
legítimas e ilegítimas de persuasão em contextos forenses. As tensões no es-
tudo de provas são particularmente graves porque as provas em contextos
jurídicos é um campo que foi invadido por estatísticos, especialmente bayesia-
nos, céticos epistemológicos e pós-modernistas que obscurecem ou negam as
diferenças entre fato e ficção. 50
Esse é um tema fascinante, mas devo prosseguir com Calvino.

Italo Calvino
A Crítica literária que influenciou minha visão sobre ponto de vista – a virada
narrativa — desafiou algumas suposições importantes sobre provas em direito;
os escritos de Italo Calvino tiveram outros efeitos importantes. Perceba que as
minhas preocupações e influências literárias eram de tipos diferentes. Perceba,
também, que cada um desses exemplos é um tema adequado para estudos so-
ciojurídicos. Esclarecimento do ponto de vista é tão importante na investigação

48 Id., 340-1.
49 * RE nas págs. 303-306.
50 Sobre probabilidades e provas, uma boa introdução para os debates é o trabalho intitulado
Criminal Evidence de Paul Roberts e Adrian Zuckerman, Oxford: Oxford University Press,
2ª ed. 2010, págs. 148-63. Um dos primeiros exemplos de falta de clareza deliberada das
linhas entre fato e ficção é a obra Dead Certainties (Unwarranted Speculations) de Simon
Schama (Nova Iorque: Knopf, 1991), contendo reconstruções imaginativas das mortes de
General Wolfe e um professor de Harvard, afirmando ser “fiel aos fatos”, mas preenchendo
as lacunas por meio de reconstrução imaginativa, e contadas como narrativas consisten-
tes. Richard Rorty é o cético epistemológico pós-moderno mais citado, embora ele tenha
negado o rótulo. Vide especialmente, R.Rorty, Objectivity, Relativism, Truth. Nova Iorque:
Cambridge University Press 1991 (Philosophical Papers vol. I) esp. Parte I e Contingency,
Irony and Solidarity. Nova Iorque: Cambridge University Press, 1989. Para ler uma crítica
mordaz feita de forma brilhante e persuasiva sobre as alegações de Rorty sobre ser um
“pragmático” na tradição de Peirce e Dewey, vide o trabalho de Susan Haack, Manifesto
of A Passionate Moderate. Chicago: University of Chicago Press, 1998, Cap.2 “We Pragma-
tists… Peirce and Rorty in Conversation” (posteriormente, Manifesto).
186 CADERNOS FGV DIREITO RIO

empírica quanto em análise jurídica e prática jurídica; estudos de como atores


jurídicos de fato argumentam e usam histórias são tão importantes quanto o
pensamento normativo sobre como eles devem ou não argumentar ou usar
histórias; e, creio eu, Calvino é pelo menos tão relevante para as investigações
sociojurídicas quanto para alguns outros interesses da disciplina de Direito.
Comprometi-me a defender o argumento da importância de Italo Calvino
para a teoria do direito. Minha opinião sobre ponto de vista e narrativa recebeu
muita ajuda de obras de literatura. Calvino explorou outros assuntos ainda mais
importantes. Vou começar com um relato pessoal sobre três formas em que fui
influenciado por ele, antes de defender o argumento geral. Irei focar em dois
livros: Palomar e Cidades Invisíveis.51
Meu primeiro encontro com o Sr. Palomar se deu quando estava começan-
do a pensar sobre as implicações da chamada “globalização” para compreen-
der o direito no mundo como um todo — certamente uma aspiração digna para
nossa disciplina.52 O Sr. Palomar desejava entender o universo e “reduzi-lo a
seu mecanismo mais simples”.53 Ele decidiu começar com particularidades. Ele
tentou primeiro ver e corrigir em sua mente uma onda individual como um
objeto preciso e finito. Ele falhou. Ele tentou uma e outra vez e se tornou neu-
rastênico. Ele tentou descobrir como controlar seu gramado, concentrando-se
em um único metro quadrado dele. A fim de contar quantas folhas de grama
existem, sua espessura, e sua distribuição, utilizou análise estatística, descri-
ção, narrativa e interpretação. Ele falhou novamente. Ele se sentiu oprimido,
inseguro. Ele quase teve um colapso nervoso. Talvez descrever a lua ou uma
constelação de estrelas vista da Terra seja mais fácil do que descrever uma
onda ou um pedaço de grama. Mas “esta observação das estrelas transmite
um conhecimento instável e contraditório”.54 Elas se movem, mudam, há leves
lampejos. Ele desconfia dos mapas celestes.55
A situação do Sr. Palomar é como a de qualquer estudioso lidando com um
assunto complexo. A situação obviamente se aplica às investigações sociojurí-
dicas. Também é especialmente sensível àqueles que tentam escrever histórias
do mundo ou fazer um relato sobre o universo do direito. Para se ter certeza,
existem padrões a serem discernidos, mas eles podem ser evasivos, frágeis,
instáveis, impressionistas, e principalmente, superficiais. Se quisermos evitar

51 Italo Calvino, Mr Palomar (trs. William Weaver, San Diego: Harcourt Brace 1985 (daqui em
diante MP)); Invisible Cities Nova Iorque: Harcourt Brace, 1974, (daqui em diante IC). Vide
ainda GJB.
52 “Direito”, neste contexto, refere-se genericamente aos temas centrais, mas variados, da
nossa disciplina.
53 MP 6.
54 MP 47; cf. IC 98: “[A] forma das coisas pode ser percebida melhor à distância”.
55 “Oprimido, inseguro, ele fica nervoso com relação às cartas celestes, da mesma forma que
com os horários dos trens enquanto procura uma conexão”. (MP 47).
DIREITO E LITERATURA 187

a neurose e a paralisia do Sr. Palomar, teremos que nos contentar com pintar
retratos corajosos e seletivos com materiais frágeis, brutos e não-confiáveis. E,
como Palomar percebe, não existe um fim para a pesquisa acadêmica.
A segunda inspiração de Calvino diz respeito a cartografia jurídica. Ao
pensar sobre a globalização, comecei a explorar a ideia de retratar fenômenos
jurídicos no mundo como um todo e porções significativas deles, em termos
de mapas: tanto mapas físicos quanto mentais.56 Encontrei ajuda na literatura
sobre sociologia urbana — por exemplo, que há quatro imagens de cidades re-
correntes nesse campo: a cidade como organismo, como máquina, como bazar,
e como selva.57 Imediatamente me ocorreu que essas imagens ou metáforas
poderiam ser quase igualmente aplicadas para representar sistemas jurídicos
ou ordens normativas institucionalizadas.
Imagens do direito como uma forma orgânica ou como uma espécie de
engenharia social são comuns em nossa disciplina. Os pontos de vista de pes-
soas como usuários ou consumidores de direito em um bazar são menos de-
senvolvidos. A metáfora da selva é ricamente ambígua: queremos preservar e
visitar as florestas tropicais, mas a imagem da selva pode ser hostil, opressiva,
exigindo habilidades de sobrevivência. Esta é uma imagem do direito como um
produto hostil do poder de outras pessoas. Este foi um contraponto útil para
o pensamento que descreve a lei em termos de mapas físicos, mas também
não resolveu o problema de descrever fenômenos imensamente complexos e
variados em termos de uma imagem completa.
Após eu ter apresentado minhas ideias rudimentares sobre cartografia ju-
rídica em um seminário em Miami, um colega (Michael Froomkin) veio até mim
e disse: “Pensei que gostasse de Calvino. Por que diabos você não usou sua
obra Cidades Invisíveis?” A resposta foi que não a tinha lido. Quando a li, não
apenas tive que reescrever meu trabalho, mas também retificar minhas ideias.
Ele abriu territórios novos e imensuráveis na forma de pensar e de ver o direito.
Cidades Invisíveis é um livro rico, indescritível, maravilhoso. Se apenas uma
pessoa do público se sentir motivada a lê-lo, essa palestra terá valido a pena. Não
tem como eu falar tudo o que penso dele aqui. Mas posso destacar alguns temas:

56 GLT Cap. 6. Versões posteriores são GJB 322-328, GJP cap.3 e cap. 4.4. Embora considere
o mapeamento físico útil para o realismo demográfico básico sobre a ampla distribuição de
fenômenos jurídicos (por exemplo, no mundo da common law, a lei islâmica, a lei Luo existe
sob a forma de práticas normativas institucionalizadas), a metáfora de mapeamento mental
tem uma aplicação mais ampla. (GJP 67n 10.) Eu prefiro tratar a ideia de um atlas histórico
de fenômenos jurídicos no mundo como um projeto virtual em vez de real, o que na prática
pode ter uma utilidade bastante limitada.
57 Para esta sugestão sou grato a Peter Langer, “Sociology: Four Images of Organized Diver-
sity” in Lloyd Rodwin e Robert M. Hollister (eds.) Cities of the Mind: images and themes of
the city in the social sciences. New York: Plenum Press, 1984. Cap. 6.
188 CADERNOS FGV DIREITO RIO

O principal de Cidades Invisíveis é quando Marco Polo, o viajante do mun-


do, descreve ao grande imperador, Kublai Khan, os lugares que ele visitou em
suas viagens. Esmeralda é apenas uma das 55 representações de diferentes
cidades, ou talvez 55 representações de uma cidade, Veneza. Esmeralda me
passa uma imagem de como as pessoas vivem e usam ordens jurídicas que
estudos jurídicos e mesmo sóciojurídicos raramente conseguem atingir. As 55
representações são fantásticas, divertidas, envolventes e enigmáticas; a maio-
ria está aberta a diferentes interpretações. Calvino parece concordar com Sir
Patrick Geddes, um urbanista de destaque que: “Embora a trama da vida de
cada cidade seja única, e isso pode acontecer cada vez mais com cada novo
acontecimento, as principais mudanças ocorrem de forma bastante semelhante
entre as cidades.”58 O mesmo acontece com os sistemas jurídicos. É possível
imaginar um sistema jurídico de estado moderno sem uma constituição, órgãos
legisladores, tribunais, juízes, leis penais, órgãos de execução59, contratos, re-
gistros e assim por diante? Enquanto buscamos palavras, existe uma mesmice
nos sistemas jurídicos municipais. Como Calvino observou: “Apenas os nomes
dos aeroportos mudam”. No entanto, para ele, a variedade dentro de cada ci-
dade é infinita, e quase tudo parece mudar. A preocupação central de Calvi-
no é apresentar universalidade de uma forma antirreducionista. Ele faz isso
apresentando a quase infinita possibilidade de múltiplas perspectivas sobre até
mesmo objetos simples; “Cidades, como os sonhos, são construídas com base
em desejos e medos, mesmo se o fio de sua lógica é obscuro, suas regras ab-
surdas, suas perspectivas enganosas.”60 “Apenas após os relatos de Marco Polo,
Kublai Khan foi capaz de discernir, por meio das muralhas e torres destinadas
a desmoronar-se, o padrão de trabalho tão sutil que poderia escapar da ação
dos cupins”.61
Cidades Invisíveis capta as dificuldades intermináveis de descrever, ex-
plicar e fazer generalizações a respeito de cidades e fenômenos jurídicos. É
especialmente sugestivo em relação ao direito comparado — na minha opinião,
um assunto ainda pouco teorizado.
Confrontando o pós-modernismo
Nos anos 90, ideias na moda sobre o “pós-modernismo” alcançaram a
teoria do direito em grande parte através da teoria literária após um atraso

58 Haack, Manifesto, pág. 157.


59 Nota do Editor: O termo usado originalmente enforcement agencies não possui um equi-
valente preciso na língua portuguesa e foi traduzido como órgão de execução, que pode
se referir a promotores de justiça e outros atores importantes para a aplicação da lei, mas
deveríamos construir um neologismo para nos referirmos ao “enforçamento do direito”,
bem como às “agências de enforçamento do direito”.
60 IC pág. 50.
61 IC págs. 5-6.
DIREITO E LITERATURA 189

intelectual típico. Minha reação foi profundamente ambivalente. Meu trabalho


com direito probatório tinha me convencido de que eu era um cognitivista na
epistemologia. Seguindo Susan Haack, aceitei seu “realismo inocente”, que se
baseia no trabalho do pragmatista americano, Charles Sanders Peirce. Há um
mundo real em grande parte independente de nosso conhecimento. Uma des-
crição é verdade “se algo é assim... quer você ou eu, ou qualquer pessoa pen-
se que é verdade ou não.”62 Como dar sentido à ideia de provas e raciocínio
inferencial sem pelo menos fazer uma distinção entre ontologia (que existe) e
epistemologia (a forma como averiguamos se algo existe)? Quando comecei a
confrontar o pós-modernismo em suas muitas formas, incluindo o relativismo
cultural, pseudo-pragmatismo Rortyiano, vários tipos de ceticismo epistemo-
lógico, era ao mesmo tempo um realista inocente e um fã de Borges, Barthes
e alguns romances do realismo fantástico. Então, senti que estava vivenciando
uma dissonância cognitiva.
O pós-modernismo tem feito muito para enfraquecer as opiniões simplistas
de interpretação e de desafiar dicotomias nítidas entre fato e ficção, a razão
e a imaginação, objetividade e subjetividade. Achei essas ideias importantes,
mas perigosas. São desafios saudáveis, mas que podem descender para formas
extremas de irracionalismo, irrealismo, ou relativismo que ameaçam ideias que
vale a pena defender. Por exemplo, no que diz respeito a provas, como se pode
falar de erros da justiça, condenação injusta de inocentes, evidência convincen-
te (por exemplo, de armas de destruição em massa ou de armas químicas), dúvi-
da razoável, histórias boas em vez de verdadeiras, ou erros de fato sem alguma
diferenciação entre ontologia e epistemologia, entre fato e ficção ou falsidade?
Calvino (juntamente com Charles Sanders Peirce e seu seguidor Sher-
lock Holmes) me resgatou dessa profunda ambivalência em relação ao pós-
-modernismo. Ele enfatiza a indefinição e as complexidades da realidade,
múltiplas perspectivas e múltiplas descrições e antirreducionismo, mas ainda
mantém uma distinção entre epistemologia e ontologia, e, na minha leitura,
ele é um cognitivista de uma forma compatível com o realismo inocente, o
que permite todos estes. Várias descrições do mesmo objeto são importan-
tes, muitas vezes necessárias, mas descrições incompatíveis não podem ser
conjuntamente verdadeiras.63
É evidente que o “pós-modernismo” significa muitas coisas e Calvino está
aberto a muitas interpretações. Ele rejeitou o rótulo, mas não gostava de ser
rotulado. Eu acabei fazendo a diferenciação entre pós-modernismo imaginati-
vo simbolizado por Calvino e pós-modernismo irreal, tipificado inter alias por
Richard Rorty. Há muito que poderíamos debater sobre isso.

62 Haack, Manifesto, pág. 22, citando C.S. Peirce.


63 Haack, Manifesto, pág. 157.
190 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Portanto, achei Calvino útil no que diz respeito à natureza do conhecimen-


to [e investigação] na cartografia jurídica, no direito comparado, sobre pontos
de vista e narrativa e, em confronto com o pós-modernismo e para muitos in-
sights específicos. Calvino me cativa de várias formas: Eu adoro sua concisão;
seu jeito brincalhão, bem como suas intenções sérias; ele acrescenta novas di-
mensões ao conceito de ponto de vista; ele insiste sobre os limites, bem como
os usos da linguagem; ele enfatiza a história; ele é no fundo um pessimista,
porém uma ótima leitura. Mas além dos meus gostos pessoais e preocupações
especiais, ele me parece oferecer muito para a compreensão de fenômenos
jurídicos: vocês irão encontrar outros temas e impressões específicas; acho que
a analogia entre as representações das cidades e as ordens jurídicas é alta-
mente sugestiva; ele tem muito a ensinar sobre os problemas de descrever,
comparar e generalizar sobre instituições e relações sociais e jurídicas e como
elas funcionam na prática. E isso é divertido de ler. Se eu tivesse que escolher
um tema geral e central para a minha disciplina seriam os intercâmbios entre
Marco Polo e Kublai Khan. Eles são tão significativos quanto as descrições de
determinadas cidades. O grande Khan está preocupado em reduzir o seu impé-
rio de modo a tentar controlá-lo. Ele é um sistematizador, um reducionista. Em
uma passagem maravilhosa, eles estão contemplando um tabuleiro de xadrez:
“Ao desincorporar suas conquistas para reduzi-las ao essencial, Kublai chegou
a uma operação extrema: a conquista definitiva, dos quais os tesouros multifor-
mes do império foram apenas envelopes ilusórios. Foi reduzido a um quadrado
de madeira aplainada.”64 Em seguida, Marco Polo falou:

O seu tabuleiro de xadrez, senhor, é incrustado com duas


madeiras: ébano e bordo. O quadrado em que o seu olhar mara-
vilhado está fixado foi cortado do anel de um tronco que cresceu
em um ano de seca: vê como as suas fibras estão organizadas?
Aqui, formou-se um nódulo malformado: um broto tentou bro-
tar em um dia prematuro da primavera, mas a noite de geada
obrigou-o a desistir [...]65

E Polo prosseguiu falando sobre “florestas de ébano, sobre balsas carre-


gadas com toras que descem os rios, de diques, de mulheres nas janelas [...]”.66
Para Polo um único quadrado em um tabuleiro de xadrez é um ponto de parti-
da para uma investigação com um infinito potencial. Kathryn Hume sugere que
os intercâmbios entre Polo e Kublai Khan podem ser tratados como um diálogo

64 IC 131.
65 IC131.
66 IC 132.
DIREITO E LITERATURA 191

dentro de uma única mente composta.67 Acho que isso é correto tanto para
Calvino quanto para as tensões básicas dentro da disciplina de Direito.

Referências

ANDERSON, T. et al., Analysis of Evidence, Cambridge: Cambridge University


Press 2ª ed., 2005.

ANDERSON T., ‘On Generalizations, a Preliminary.Exploration’, 40 South Texas


L. Rev. 455 (199).

BENNETT, W. Lance; FELDMAN, Martha S. Reconstructing Reality in the Cour-


troom. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1981.

BENTHAM, Jeremy, A Fragment on government (T.H. Burns and H.L.A. Hart


eds), London: Athlone Press, 1977.

CALVINO, I. Invisible Cities, Nova Iorque: Harcourt Brace 1974.

CALVINO, I. Mr Palomar, San Diego: Harcourt Brace 1985.

COLLINGWOOD, R. G. An Autobiography. Oxford: Oxford University Press,


1939.

COLLINGWOOD, R. G., ‘On the so-called idea of Causation’. Proceedings of the


Aristotelian Society, New Series, Vol. 38 (1937 — 1938),

FELIX, David. Protest: Sacco-Vanzetti and the Intellectuals (Bloomington Ind.:


University of Indiana Press 1965).

FELIX, David. ‘Generalisations and Evidential Reasoning’ in P. Dawid, M. Vasilaki


e W. Twining (eds.), Evidence, Inference and Enquiry (British Academy, 2011),
Cap. 8.

FORSTER, E.M. Aspects of the Novel Londres: Edward Arnold, 1927.

67 Kathryn Hume, “Grains of Sand in a Sea of Objects: Italo Calvino as Essayist”, (1992) 87
Modern Languages Review 72, página 75; e Kathryn Hume, Calvino’s Fictions: Cogito and
Cosmos. Oxford: Oxford University Press, 1992.
192 CADERNOS FGV DIREITO RIO

HAACK, Susan. Manifesto of A Passionate Moderate. Chicago: University of Chi-


cago Press, 1998.

HART, H. L. A, Definition and Theory in Jurisprudence 70 Law Quarterly Review


57 (1953).

HART, H. L. A,, Punishment and Responsibility, Oxford: Oxford University Press


1968.

HASTIE, R. (ed.), Inside the Juror. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.

HOLMES, O. W., The Path of the Law 10 Harvard L. Rev. 457 (1897).

HUME, Kathryn, Calvino’s Fictions: Cogito and Cosmos. Oxford: Oxford Univer-
sity Press, 1992.

HUME, Kathryn, “Grains of Sand in a Sea of Objects: Italo Calvino as Essayist”,


(1992) 87 Modern Languages Review 72.

JESSE, Tennyson F, A Pin to See the Peepshow. Londres, Heinemann, 1934.

LANGER, Peter. “Sociology: Four Images of Organized Diversity” in Lloyd Ro-


dwin e Robert M. Hollister (eds.) Cities of the Mind: images and themes of the
city in the social sciences. New York: Plenum, 1984.

LASSWELL, Harold e Myres MacDougal; Legal Education and Public Policy 52


Yale L. J. 203 (1943).

LLEWELLYN, The Common Law Tradition: Deciding Appeals Boston: Little Bro-
wn, 1960.

LUBBOCK, Percy. The Craft of Fiction Londres: Jonathan Cape, 1921.

MCCLOSKEY, Donald, The Rhetoric of Economics. Madison: University of Wis-


consin Press, 1985.

NASH, Christopher (ed.), Narrative and Culture: the uses of stotytelling in the
sciences, philosophy and literature. Nova Iorque: Routledge, 1986.
DIREITO E LITERATURA 193

NIETSZCHE, F., Human, all too human: a book for free spirits. Cambridge: Cam-
bridge University Press, 2nd edition, 1996.

PENNINGTON, N. e R. Hastie, “A Cognitive Theory of Jury Decision-making: The


Story Model”, 13 Cardozo L. Rev. 519 (1991).

RAWLS, John Rawls, Two Concept of Rules, 64 Philosophical Review 72 (1955).

RAZ, Joseph, The Authority of Law, Oxford University Press, 1979,

ROBERTS, Paul Roberts e Adrian Zuckerman, Criminal Evidence, Oxford:


Oxford University Press, 2ª ed. 2010.

RORTY, R, Objectivity, Relativism, Truth. Nova Iorque: Cambridge University


Press 1991 (Philosophical Papers vol. I).

RORTY, R. Contingency, Irony and Solidarity. Nova Iorque: Cambridge Univer-


sity Press, 1989.

SIMPSON, A. W. B., Leading cases in the common law, Oxford: Oxford Univer-
sity Press, 1995.

TWINING, William. “Academic Law and Legal Philosophy; the Significance of


Herbert Hart”, 95 Law Quarterly Review 557-80 (1979).

TWINING, William, ANDERSON T., and SCHUM D., Analysis of evidence, Cam-
bridge: Cambridge University Press, 2005.

TWINING, William, General Jurisprudence. Cambridge: Cambridge University


Press, 2009.

TWINING, William, Globalisation and Legal Theory. London: Butterworth, 2000.

TWINING, William, and MIERS David, How to do things with rules: a primer of
interpretation. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

TWINING, William (ed.) Human Rights: Southern Voices. Cambridge: Cambrid-


ge University Press, 2009.
194 CADERNOS FGV DIREITO RIO

TWINING, William; WEIS, René. “Reconstructing the Truth about Edith Thomp-
son: The Shakespearian and the Jurist” in W. Twining and Ian Hampsher-Monk
(eds) Evidence and Inference in History and Law. Evanston: Northwestern Uni-
versity Press, 2003.

TWINING, William, Rethinking evidence. Cambridge: Cambridge University


Press, 2006.

WEIS, R. Criminal Justice: the True Story of Edith Thompson. Londres: Penguin,
2001.

WIGMORE, J.H. (1937) The Science of Judicial Proof. Boston: Little, Brown 3red
edn, 1937.

YOUNG, Filson (ed.). The Trial of Frederick Bywaters and Edith Thompson.
Edimburgo: W. Hodge, 1923.
MOSES UND ARON:
MÚSICA E LIBRETO DE ARNOLD SCHOENBERG
Tercio Sampaio Ferraz Junior1

Schoenberg inventou, no século XX, a música dodecafônica. Trata-se de uma


quebra dos princípios de harmonia conhecidos desde o século XIV. Sua impor-
tância é reconhecida. No gênero operístico, Moisés e Arão é um trabalho singu-
lar, com uma implicação para o mundo jurídico igualmente singular.
O enredo da ópera refere-se a um episódio bíblico do Antigo Testamento,
num momento expressivamente decisivo: Moisés recebe de Deus as tábuas da
lei e, após longo retiro, dirige-se ao povo de Israel, para dar-lhe conhecimento
dos mandamentos divinos.
Sucede, porém, que, segundo o relato bíblico, Moisés tinha problemas com
sua fala (há insinuações de que era gago) ou, pelo menos, tinha, mais generica-
mente, dificuldades de comunicação.
Daí o expediente de valer-se de Arão, seu irmão, que, ao contrário, comu-
nicava-se com facilidade e se fazia entender pelo povo.
Schoenberg escolhe o momento da comunicação das leis do Senhor para
construir, com grande dramaticidade, a tragédia que culmina com a adoração
do bezerro de ouro. As leis do Senhor, ditadas por Ele a Moisés, são, afinal,
comunicadas. Mas o povo entende o que Arão fala, não, propriamente, o que
Moisés relata a Arão.
No trecho que praticamente inicia o enredo, Moisés acaba de descer do
Monte Sinai, onde recebeu as taboas da lei. Encontra o povo em torno do be-
zerro de ouro. Diante de sua cólera, o bezerro se esvanece e o povo grita: “A luz
do ouro se embaça, nosso Deus é outra vez invisível; todo prazer, toda alegria
e toda esperança estão banidos; tudo é pardo de novo, sem luz; fujamos de seu
poder!”
Entra Moisés que então diz a Arão:

1 Tercio Sampaio Ferraz Junior é Professor Aposentado de Filosofia do Direito da USP, bem
como Professor Titular da PUC-SP, da FADISP e Consultor do CAPES. É graduado em filo-
sofia e em ciências jurídicas pela USP, tendo obtido doutorado em filosofia pela Johannes
Gutemberg Universität de Mainz na Alemanha e em direito pela USP. É advogado, sócio de
Sampaio Ferraz Advogados.
196 CADERNOS FGV DIREITO RIO

“Arão, que tu fizeste?”


Que responde:
“Nada de novo! Apenas aquilo que sempre foi minha missão: quando teu
pensamento nenhuma palavra produzia, nem minha palavra, imagens, cumpria
um milagre diante dos seus ouvidos e diante dos seus olhos”.
“Por ordem de quem?” pergunta Moisés.
“Como sempre — diz Arão —: eu sentia a voz dentro de mim”.
Contesta Moisés: “Mas eu não lhe disse nada”.
E Arão: “Mesmo assim eu compreendi”.
“Cala-te!” diz Moisés.
E Arão, com medo: “Tua boca... tu estiveste longe tanto tempo...”
“Com meus pensamentos! Tu devias entender” comenta Moisés.
E Arão: “Quando tu te vais sozinho, nós te tomamos por morto; o povo
esperou a palavra da tua boca por muito tempo, a palavra que fixasse a lei e
o direito; assim eu tive de lhes dar uma imagem bem visível para contemplar”.
“Diante de minha palavra ela se dissolveu,” diz Moisés.
E Arão: “Tua palavra não era capaz de engendrar nenhuma imagem, ne-
nhum milagre; no entanto, o milagre não era mais que uma imagem, quando tua
palavra destruiu minha imagem”.
“É a eternidade de Deus que quebra todas as imagens!” grita Moisés.
E pergunta então se Arão compreende o poder do pensamento (razão)
sobre as palavras (cantadas) e sobre as imagens. Ao que Arão responde: “Eu
compreendo deste modo: esse povo deve ser preservado; mas um povo só
consegue sentir! Eu amo esse povo, eu vivo para ele e quero preserva-lo!”.
Pelo pensamento! Eu amo minha ideia e vivo para ela! Diz Moisés.
E diz Arão: Tu o amarias, esse povo, se tiveste visto como ele vive, quando
ele pode sentir e esperar: um povo não crê se não no que sente!
Moisés: Tu não me impressionas; O povo deve compreender a ideia; ele
vive só para isto!
“Mas nenhum povo compreende senão um fragmento da ideia, da imagem
que exprime a parte concebível do pensamento”, diz Arão. E Moisés: Devo fal-
sificar a ideia?
Arão: Deixe-me explicar, reescrevendo, sem falar: as proibições criam
grande medo, para que possam ser obedecidas, asseguram a constância, ao
transfigurar a necessidade. Os comandos, duros, mas carregados de esperança,
se enraízam na ideia. Inconscientemente o povo fará tua vontade. Tu o acharás
humanamente hesitante, mas assim digno de ser amado.
Isto eu não quero viver!
Mas deves! Não há outra maneira!
O diálogo prossegue, mas isto já é suficiente.
MOSES UND ARON 197

Conforme o libreto, que, inicialmente deveria servir a um oratório e de-


pois se transforma em texto para uma ópera, Arão e o povo (o coro) usam da
mesma linguagem. O texto destinado a Moisés, porém, não é musicado: Moisés
apenas fala, sem qualquer melodia.
No drama musical, o povo ora pende para Moisés, ora para Arão. Há mo-
mentos em que o coro (o povo) também fala, não canta.Até que obriga Arão,
agora transformado num artista, a criar o bezerro de ouro. Com isso desvenda-
-se o conteúdo da ópera: diante do decreto divino — tu não farás para ti nenhu-
ma imagem — Moisés confere à lei uma interpretação rigorosa. Para ele, Deus é
puro pensamento, uma forma absoluta que escapa de qualquer representação
sensível. No entanto, no canto melodioso de Arão, sente-se a necessidade de
dar à ideia absoluta alguma representação sensível.
Na ópera de Schoenberg, por tudo isso, tem-se a impressão de que Moisés
e Arão são, no fundo, a mesma pessoa. Essa é a tragédia do humano em face
do divino: corpo e alma versus puro espírito.
Numa linguagem contemporânea, talvez se pudesse dizer que Arão é um
grande comunicador. Mas, para tornar inteligíveis os mandamentos, produz al-
guma forma de distorção: mais inteligíveis, porém, não propriamente fiéis.
Daí o desespero de Moisés, quando escuta o que diz Arão, motivo pelo
qual o recrimina, chamando-lhe a atenção.
Essa possível incongruência comunicativa revela-se como um embate en-
tre a razão (divina) e a emoção (humana). Entre a linguagem da Razão e a
linguagem da Emoção. Mesmo sendo apto a compreender os enunciados da
Razão, o homem fala emocionalmente a fala racional.
Schoenberg capta esse dilema maravilhosamente, mediante um recurso
de grande expressividade.
Em sua ópera, a música domina, todos os personagens cantam, isto é, se
expressam musicalmente. Salvo Moisés, que não canta!
Moisés fala o seu texto, sem interferência musical (nem melodia, nem rit-
mo, nem harmonia musicais). Daí o dilema: estaria o povo compreendendo as
leis (discurso da razão divina), quando as recebe na forma inebriada da melo-
dia, isto é, mediante algo que lhes é apropriado: a emoção?
O contraste entre o divino (razão) e o humano (emoção) aparece na dis-
tinção entre o racional (que tem a ver com o espírito puro, cuja expressão é,
na ópera, o discurso recitado) e o sensível (música como pura sensibilidade).
Que os homens são sensíveis, sua entrega ao bezerro de ouro o demons-
tra. Mas o demonstra mais a dança, a verdadeira bacanal que ocorre ao ensejo
de uma melodia inebriante.
Arão, que se esforça por comunicar ao povo a lei divina (expressão da
razão), o faz mediante música. Isto é, sabe que a lei (abstração, norma geral,
198 CADERNOS FGV DIREITO RIO

enunciado meramente válido, puro dever-ser), por si só, não atinge a dimensão
sensível do ser humano. Uma forma antecipada, talvez, de entender a oposição
entre ser e dever-ser, realidade e normatividade. Daí o sentido do seu esforço:
tornar sensível o que pertence ao mundo do insensível, ou melhor, do inteligível
(mundus sensibilis ac intelligibilis).
Moisés diz o inteligível. Na sua fala não há sensibilidade (música). Mas Moi-
sés sabe também que é preciso valer-se do sensível para comunicar o inteligí-
vel: é necessário o corporal para manifestar o espiritual. Seu desespero está em
que, mesmo sabendo-o, sabe mais, pois foi escolhido por Deus para receber
diretamente (imediatidade da comunicação racional) a lei. A lei é razão, é inte-
lecto, é espírito. Daí, talvez, a expressão: espírito da lei e o ensinamento romano
de Celsus: scire leges non hoc est, verba earum tenere, sed vim ac potestatem
(saber as leis não é conhecer-lhes as palavras, porém a sua força e seu poder).
Como, porém, fazer compreender a lei mediante a sensibilidade sem de-
turpar-lhe a racionalidade?
A ópera de Schoenberg — Moses und Aron — é um trabalho inacabado.
O autor faleceu (num estúpido acidente: voltava para casa, após a segunda
Guerra Mundial, for do horário permitido e foi alvejado pelo policial militar que
o advertia com uma ordem de cessar qualquer movimento) antes de concluí-la.
Na verdade, antes de concluir a música. O texto do libreto, porém, é completo.
Musicados foram o primeiro e o segundo ato. O terceiro nunca o foi. Na ver-
dade, porque Schoenberg relutou por muito tempo em dar-lhe o acabamento.
Uma dúvida o assaltava: o terceiro ato, constituído de uma só cena, deveria ser
apenas falado ou deveria ser musicado?
A completude do libreto e a incompletude da música acabaram por pro-
duzir um resultado surpreendente.
A ópera só pode ser representada na forma incompleta. Isto é, cessa num
clima trágico: a lei divina não é entendida pelo povo. A incomunicabilidade en-
tre razão e sensibilidade (fala e música) triunfa. Não há conciliação.
No libreto, Schoenberg, no entanto, escreve mais um ato (não musicado
por causa de sua morte prematura), em que parece esboçar-se uma conciliação.
A Moisés é retirado o direito de penetrar a terra escolhida e o povo é
obrigado a peregrinar por mais quarenta anos. Mas, ao final, ocorre uma curio-
sa alteração do relato bíblico. Neste, Arão se retira e não é punido. Na ópera,
Schoenberg faz Arão ser trazido perante Moisés, aprisionado em correntes.
Moisés, porém, o libera. Contudo, Arão, libertado, tomba sobre o solo, como
uma árvore quando abatida. O que nos faz pensar que o princípio dualista, ele
próprio de origem racionalista, não seria compatível com a totalidade mítica do
tema. Afinal, a própria música composta por Schoenberg não deixava de ser
manifestação sensível. Diante desse paradoxo — quando Arão, no momento em
MOSES UND ARON 199

que se liberta, morre — Schoenberg acaba por assumi-lo: a imagem que ele se
faz da interdição de fazer imagens (negação do sensível) tomba, por sua vez,
diante da própria interdição divina. De um lado, o triunfo divino. De outro, o
paradoxo da vida humana.
Qual o significado disso para o direito? Ou, em que sentido pode-se ver
nessa ópera algum aspecto jurídico?
Do ponto de vista da arte (emoção), não é possível saber se, ao final, Moi-
sés também cantaria: nada foi composto por Schoenberg, do qual temos ape-
nas as falas do personagem.
Assim, como o libreto do último ato é mudo (musicalmente), resta inevi-
tável a grande interrogação: como é possível, para o ser humano, ser racional
e sensível ao mesmo tempo? Falar e cantar? Compreender leis com a razão e
obedecer a elas com a emoção?
Em suma e trazendo o tema para o campo jurídico.
As leis, supostamente, dão um sentido (racional ou, pelo menos, razoável)
à ação. O sentido das normas vem, assim, desde o seu aparecimento, “domes-
ticado”’. Disso se encarrega o intérprete. Mesmo quando, no caso de lacunas,
integramos o ordenamento (por analogia, por princípios gerais, até por equida-
de, dando, nesse caso, a impressão de que o intérprete está guiando-se pelas
exigências do próprio real concreto), o que fazemos, na verdade, é guiar-nos
pelas próprias avaliações do sistema interpretado. Essa astúcia da razão dog-
mática põe-se, assim, a serviço do enfraquecimento das tensões sociais, na
medida em que neutraliza a pressão exercida pelos problemas de distribuição
de poder, de recursos e de benefícios escassos. E o faz, ao torná-los conflitos
abstratos, isto é, definidos em termos jurídicos e em termos juridicamente in-
terpretáveis e decidíveis. Quem desvia o dinheiro depositado pelo cliente no
banco vê, de repente, que muitas das justificações subjetivas para seu ato não
contam. Seu desejo de comprar o que a propaganda incessante do comércio
lhe oferece acima de suas posses não tem, para o conflito neutralizado (racio-
nalizado dogmaticamente) pela hermenêutica, o sentido objetivo que o direito
reclama (embora, em pequena escala, lhe parecesse objetivo: em seu círculo
de relações, seria compreensível, ainda que não justificável). Desse modo, a
hermenêutica possibilita uma espécie de neutralização dos conflitos sociais, ao
projetá-los numa dimensão harmoniosa — o mundo do legislador racional — no
qual, em tese, tornam-se todos decidíveis. Mas, assim, ela não elimina as con-
tradições, apenas as torna suportáveis. Portanto, propriamente não as oculta,
mas as disfarça, trazendo-as para o plano de suas conceptualizações racionais.
Repete-se, pois, na hermenêutica, o que ocorre no drama de Moisés e Arão.
Enquanto aquela, porém, exerce sua função ao isolar o direito num sistema
racional, o saber interpretativo conforma o sentido do comportamento social
200 CADERNOS FGV DIREITO RIO

sensível à luz da incidência normativa. Ela cria assim condições para a decisão.
Contudo, não diz como deve ocorrer a decisão, sempre sujeita às ingerências
da emoção. Mas isso também pode significar que a interpretação jurídica, ao
fim e ao cabo, não consegue realizar seu propósito: obtenção de um sentido
racionalmente (ou razoavelmente) generalizável. Daí a conhecida disputa entre
interpretação autêntica e doutrinária.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO
CONSTITUCIONAL1
Denis J. Galligan2

O contexto
Escrevendo ao final do século XVII, o historiador e filósofo David Hume ob-
serva que:

qualquer pessoa com propensão para as indagações filosó-


ficas irá se admirar da facilidade com que a maioria é governada
pela minoria e da submissão implícita pela qual os homens renun-
ciam a seus próprios sentimentos em favor dos sentimentos de
seus governantes.3

Este fato se torna ainda mais curioso, prossegue Hume, quando se consi-
dera que o poder, o poder em estado bruto, está sempre nas mãos dos gover-
nados uma vez que “os governantes não dispõem de nada para sustentá-los
além da opinião”. Como, então, se controla esse poder em estado bruto que
está com o povo? Como se conduz a opinião à aquiescência4? São essas as
questões sobre direito e sociedade, e sobre o fundamento social das consti-
tuições a que tenho me dedicado, há algum tempo e para as quais encontrei
algumas respostas. Esta conferência é parte de um projeto mais amplo e toma
como ponto de referência uma seleção de peças de William Shakespeare.

1 Texto originalmente apresentado em palestra proferida na sala Haldane do Wolfson Colle-


ge, em Oxford, no dia 05 de março de 2014, como parte do programa de ‘Direito, Cinema e
Literatura’ da Fundação para Direito, Justiça e Sociedade. Tradução e notas de José Garcez
Ghirardi, professor em tempo integral na FGV DIREITO SP e autor de O Mundo Fora de Prumo:
Transformação Social e Teoria Política em Shakespeare. Almedina, 2011. Exceto quando indica-
do, as versões em português dos excertos das peças também são do tradutor do artigo.
2 *
Professor de Estudos Sociojurídicos da Universidade de Oxford.
3 Anyone of a philosophical mind will wonder at the ease with which the many are governed
by the few; and the implicit submission, with which men resign their own sentiments to tho-
se of their rulers D. Hume. Selected Essays (ed) S. Copley and A. Edgar (Oxford University
Press, 2008), p. 25.
4 NT: Aquiescence, no original. A opção por aquiescência, em português, visa preservar as
ideias de aprovação, concordância e obediência sugeridas pelo termo em inglês.
202 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Desde o século XVIII, muitas coisas aconteceram no que tange às consti-


tuições, mas a mesma preocupação que perseguia Hume poderia ocorrer, ainda
hoje, a uma mente curiosa. Os textos das constituições contemporâneas reve-
lam uma linguagem, um rol de conceitos e um repertório de práticas que, to-
mados em seu conjunto, definem um modo específico de pensar. Ele se baseia
em três conceitos principais, todos bastante antigos na história constitucional:
soberania, representação e consentimento. O povo é soberano ou, se não so-
berano, ao menos a fonte da soberania ou supremacia. Ele elege representan-
tes que governam em seu nome e espera-se que consinta em todas as ações
de tais representantes. Os textos constitucionais expressam essas ideias, esse
modo de pensar, são apontados como o ápice a que se chegou após séculos
de embates, e dos quais emergiu o povo vitorioso, responsável por seu próprio
destino. Nós, o povo as palavras de abertura de muitos textos constitucionais
são uma confiante afirmação da soberania e do autogoverno.
Olhadas de perto, as coisas não são tão simples. As constituições são, de
fato, populares, mas o povo está estranhamente ausente delas. Ele não tem
nenhum papel constitucional na conduta de seu quotidiano; ele é governando
por representantes e funcionários públicos, sobre os quais tem controle extre-
mamente limitado. Esse modo de pensar — que irei chamar de registro elitiza-
do5 do pensamento constitucional — parece, à primeira vista, ser o registro
do povo; visto com mais cuidado, ele tem, na verdade, o efeito de manter esse
mesmo povo fora da constituição. Seu papel constitucional começa e termina
com o voto esporádico para algum pequeno setor do governo, deixando-se
depois a tarefa de governar para os representantes e os funcionários públicos.
A grande narrativa democrática de um povo que emerge triunfante em seu
autogoverno apresenta um enorme furo, bem no centro.
Se a narrativa da soberania que se autogoverna está em descompasso
com a realidade social, então o que sustenta as modernas ordens constitu-
cionais? Esta é uma pergunta intrigante porque estamos lidando com ordens
estáveis e funcionais, ordens que oferecem um governo eficiente, a que o
povo aquiesce. “Aquiescência” é a palavra de Hume: o povo aquiesce ou
aceita tacitamente governos efetivos. Isto é atraente de um ponto de vista
sociológico e um avanço em relação à doutrina medieval de que o povo era
obrigado a obedecer a menos que, ou até que, o governante atingisse um
grau intolerável de tirania. Mas a resposta de Hume ainda não está completa:
desejamos saber em que condições o povo aquiesce ou recusa aquiescência.
Isto não pode derivar do medo, pois a eficácia do medo é curta e dificilmente

5 NT: Upper register, no original. Utilizarei os termos registro elitizado/registro popular (lo-
wer register) para manter o paralelo, evocado pelo texto, com as distinções entre diferen-
tes registros no campo da linguagem.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 203

funcionaria como fundamento para uma constituição duradoura. O consenti-


mento pleno também é implausível, pois quem, do povo, não lança um olhar
crítico sobre muito daquilo que é feito em seu nome? Em algum ponto entre
o inferno do medo e o paraíso do consentimento, em algum lugar neste lim-
bo, é que podemos descobrir os elementos da aquiescência e os segredos do
sucesso constitucional.
Em lugar da visão exposta acima, a perspectiva das elites dominantes e
de suas ideias sobre as constituições, quero examinar uma visão a partir de
baixo, a perspectiva do povo comum — suas ideias, linguagem e práticas. Estou
seguro de que isto nos ajudará a revelar um universo constitucional diferente,
embebido na experiência e que, estando assim embebido, é ao mesmo tempo
socialmente autêntico e essencial para a compreensão das constituições, seja
as de hoje, seja as de há quinhentos anos. A esta visão eu chamarei de registro
popular do pensamento constitucional.
Traços desse registro popular que, por sua natureza, tende a estar es-
condido e a carecer de celebração e documentos, podem ser encontrados em
lugares inesperados: na “economia moral da multidão”, um conceito inventa-
do por E.P.Thompson; 6
nas formas passivas de resistência em condições de
opressão e confinamento, tais como o feudalismo, a servidão e a escravidão:
as “armas dos fracos”, um termo sugestivo cunhado pelo antropólogo James
Scott;7 e, de modo mais notável, nas rebeliões: de que são exemplos Wat Ty-
ler, Jack Cade, e os Levellers.8 A essas fontes já bastante abundantes, gostaria
de adicionar outra, menos óbvia, mas imensamente rica: refiro-me às peças
de William Shakespeare. Eu não posso, é claro, fazer justiça a todo o conjunto
de peças, porém, ao focar em algumas delas, espero mostrar o suficiente para
provar meu argumento. Minha tese é a de que, ao longo de todas as peças, há
uma compreensão da natureza da autoridade, da fragilidade da ordem consti-
tucional, e de divisões sociais, inatas e persistentes, que podem ser, no máximo,
minoradas, jamais removidas. O que é suficiente para fazer de Shakespeare

6 E. P. Thompson, “The Moral Economy of the English Crowd in the Eighteenth Century”
(1971) 50 Past and Present 76-136. NT: Em Português, ver Thompson, E. P. Economia moral
da multidão na Inglaterra do século XVIII. trad. Frederico Agoas e José Neves, Antigona,
2008.
7 J. Scott, The Weapons of the Weak: Everyday Forms of Popular Resistance (Yale University
Press, 1985).
8 Ideas developed in: D.J.Galligan, “Populism and the Constitution” (Paper presented to the
Foundation for Law Justice and Society Workshop, Rye NYS, September 2013). NT: Literal-
mente, niveladores. Grupo político atuante durante a Guerra Civil inglesa, que lutava pela
soberania popular e pela ampliação dos direitos de voto. Em português, ver Hill, Chris-
topher O Mundo de ponta-cabeça- Ideias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640.
Trad. Renato Janine Ribeiro. Companhia das Letras, 1987. Ao longo do texto, manterei a
designação em inglês por ela ser habitualmente utilizada nos debates em português sobre
o período.
204 CADERNOS FGV DIREITO RIO

um teórico da constituição e um respeitável especialista em sociologia jurídica,


ainda que essa não fosse nem a primeira, nem talvez mesmo a última, de suas
amplas ambições.9

A perspectiva do registro elitizado


Pensamos hoje nas constituições como textos escritos que estabelecem regras
de governo. Essa é uma ideia moderna. “Constituição” significava, historica-
mente, algo diverso; falava-se de “corpo político” e a “constituição” era seu
estado de saúde e bem-estar.10 Na década de 1640, membros do parlamento e
outros grupos, inclusive os Levellers, concordavam que, após anos de governo
pessoal, o corpo político apresentava uma constituição enfraquecida e preci-
sava ter sua saúde restaurada. Talvez tenha sido John de Salisbury, séculos
antes, um dos primeiros a utilizar essa imagem para se referir à constituição
inglesa. A nação gozará de boa constituição se todas as partes estiverem em
seus lugares, funcionando bem. Cada parte tem seu lugar: Deus, a alma; o prín-
cipe, o cérebro; os coletores de impostos, o ventre; e assim por diante; o povo,
naturalmente, é os pés.
O corpo político e a constituição orgânica são traços familiares nas peças
de Shakespeare. O exemplo mais conhecido é o discurso de Ulisses em Troilo e
Créssida. As coisas não estão indo bem para os gregos e os generais se reúnem
para avaliar a situação. Agamemnon começa o debate perguntando: “Prínci-
pes, que tristeza vos faz tão melancólicos?”11 [1:3:1]. Depois de listar as agruras
que os invasores sofreram nas mãos de Heitor, ele os exorta a terem coragem,
o que anima Nestor, em resposta, a decidir-se a confrontar a fortuna. Ulisses in-
tervém e pede atenção. Não se deve culpar a fortuna, argumenta, nem o poder
da espada de Heitor, mas a própria Grécia onde:

A natureza singular da autoridade tem sido desprezada


E vede quantas tendas gregas se mostram
Abandonadas nessa planície [1:3:77[12

9 Devo muito, na preparação deste ensaio, ao estudo realizado por Annabel Patterson sobre
a voz do povo nas Shakespeare’s plays: A. Patterson, Shakespeare and the Popular Voice
(Basil Blackwell, 1989). Foi por meio da leitura desse excelente artigo que pude perceber a
presença do registro popular (conceito que não é utilizado por Patterson) e muitas outras
peças além das peças históricas em que, normalmente, encontramos temas constitucionais.
O outro estudo seminal para esse tema é: R. Weimann, Shakespeare and the Popular Tradi-
tion in the Theatre ((Baltimore, 1978).
10 Gerald Stourzh, From Vienna to Chicago and back: essays on intellectual history and politi-
cal thought in Europe and America (University of Chicago Press, 2007).
11 Princes, what grief hath set the jaundice on your cheeks?
12 The specialty of rule hath been neglected/And look how many Grecian tents do stand/
Hollow upon this plane’.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 205

E continua:

Quando a hierarquia se vê mascarada


O mais indigno dos homens parece galante na farsa;
O próprio céu, os planetas e este centro
Observam hierarquia, prioridade, posição,
Título, uso, proporção, forma,
Cargo e costume, tudo em boa ordem.13

Portanto o “glorioso planeta Sol”14 é “entronizado e reverenciado pelas


esferas”.15 As metáforas físicas aparecem pois o “olhar medicinal”16 do Sol
corrige “o curso equivocado de planetas perversos”.17

Mas quando os planetas


Em conluio pérfido buscam a desordem,
Quantas pragas, portentos, motins?
Como se enfurece o mar e estremece a terra?
Ventos furiosos, medo, instabilidade, horror
Desfazem e rompem, rasgam e arrancam
A unidade e a tranquila paz dos estados
Do eixo em que se firmavam.18

Essa “unidade e tranquila paz” é o cimento da sociedade civil. Tudo depen-


de da hierarquia. Como poderiam as comunidades, o comércio e a paz sobrevi-
ver sem a hierarquia? Como poderá haver autoridade — coroas, cetros e lauréis
— a menos que “a hierarquia ocupe seu lugar autêntico”?19 Se a autoridade for
banida do mundo, os males que se seguirão serão terríveis:

Oh, quando a hierarquia é abalada


Ela que é a escada por onde se sobe a todo desígnio elevado

13 Degree being vizarded,/ Th’unworthiest shows as fairly in the masque/The heavens them-
selves, the planets, and this centre/Observe degree, priority, and place,/Infixture, course,
proportion, form,/Office and custom, all in line of order.
14 glorious planet Sol’.
15 ‘enthroned and sphered’.
16 med’cinable eye.
17 the ill aspects of planets evil’.
18 But when the planets/In evil mixture to disorder wander,/What plagues and what portents,
what mutiny?
What raging of the sea, shaking of earth?/Commotion in the winds, frights, changes,
horrors/Divert and crack, rend and deracinate/The unity and married calm of states/Quite
from their fixture.
19 ‘degree stand in authentic place’.
206 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Tudo o mais adoece —


Desterre-se a hierarquia, desafine-se apenas essa corda
E vede que discórdia se instaura. Cada coisa
Pugnaria com seu contrário
A força se tornaria senhora da imbecilidade
E o filho rude mataria o pai.
A força seria direito — ou antes, direito e transgressão,
Entre cujas margens infinitas a justiça reside,
Perderiam seus nomes, e assim também a justiça.
Então tudo se resumiria à força,
E a força à vontade, e a vontade ao apetite;
E o apetite, lobo universal,
Assim armado de vontade e força,
Deve necessariamente tornar-se uma presa universal
E, por fim, a si mesmo devorar. Grande Agamenão,
Quando a hierarquia é sufocada, o caos
Se segue à asfixia. 20

Quando todos estão em seus lugares, tudo vai bem, a ordem é mantida e
o corpo político goza de boa constituição. “Desafine-se essa corda e a ordem
será destruída e, com ela, a vida civilizada”.
O lugar do povo é distante dos assuntos de estado; o rei, com o conse-
lho de nobres, comanda e o povo obedece. Thomas Smith, figura pública do
século XVI, escreveu: “O povo comum não tem voz nem autoridade em nossa
república,21 e nenhuma importância se dá a ele a não ser a de ser governado”.22
A relação entre a cabeça e os pés é de comando e obediência. A obediência é
passiva; ela não permite nem solicita o engajamento ativo do povo no governo
ou na fiscalização dos governantes. Esse sentimento amplamente compartilha-
do, e tido como natural, era central para o registro elitizado do pensamento
constitucional.

20 O when degree is shaked,/Which is the ladder to all high designs,/The enterprise is sick.
-----/Take but degree away, untune that string/And hark what discord follows. Each thing
meets/In mere oppugnancy. ---/ Strength should be lord of imbecility/And the rude son
should strike his father dead./Force should be right — or rather, right and wrong,/Between
whose endless jar justice resides,/Should lose their names, and so should justice too./Then
everything includes itself in power,/Power into will, will into appetite;/And appetite, an
universal wolf,/So doubly seconded with will and power,/Must make perforce an universal
prey,/And last eat up himself. Great Agamemnon,/This chaos, when degree is suffocate,/
Follows the choking. ---‘
21 Ao longo do texto, esta será a tradução para o termo inglês Commonwealth.
22 Quoted in Change and Continuity in Seventeenth Century England (Nicolson, London,
1974), p. 186.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 207

Em Henrique VI Parte II, o Duque de York é sucinto: “Deixe que obede-


çam aqueles que não sabem como governar”23 — e o povo comum não sabe
como governar. Como devemos compreender essa relação? Ela é certamente
incompleta e carece de fundamento social quando lembramos da advertência
de Hume de que o poder, em última instância, está nas mãos do povo. Para
John de Salisbury, um dos primeiros realistas Humenianos, os pés não foram
feitos para governar, nem podem estar junto à cabeça. Entretanto, sendo es-
senciais para o todo do organismo, eles precisam ser cuidados. Pois se os pés
pararem de funcionar, o corpo se verá obrigado a rastejar “vergonhosamente,
inutilmente e ofensivamente ou então a ser movido com o auxílio de animais”.
O dever dos ricos e poderosos é o de “calçar os pés de seus trabalhadores”,
pois nada “é mais vergonhoso que uma república descalça”.
A advertência de John diz respeito apenas ao poder bruto de pés rebel-
des? Ou há outra sugestão, a de que o povo seja mais do que o sustentáculo
do corpo político? A questão é apenas a de manter os pés bem calçados —
benevolência paternalista que mantém o povo na linha — ou há a necessidade
de algo mais? John de Salisbury oferece um diagnóstico da doença, mas não
apresenta o remédio.
Antes de considerar que remédio esse poderia ser, precisamos indicar
como o registro elitizado do pensamento constitucional lida com o povo. A
constituição orgânica impõe suas convenções e limites. Em Henrique VI, Parte
II, Lorde Salisbury, referindo-se criticamente a Buckingham e Somerset, declara:

Enquanto esses trabalham para seu próprio benefício24


Cabe a nós trabalhar pelo reino. [1:1:179]

Aqueles que governam devem “trabalhar pelo reino”. E assim se manifesta


sobre o odiado Cardeal Beaufort:

Muitas vezes vi o Cardeal soberbo


Mais parecendo um soldado que um homem da Igreja
Tão seguro e altivo como se de tudo fosse senhor,
Xingar como um rufião, e rebaixar-se indecorosamente
Para o governante de uma república.25 [1:1:184]

23 W. Shakespeare, The First Part of the Contention in The Complete Works of Shakespeare
(ed) S. Wells and G. Taylor (Oxford University Press, 1987): Act 5:1:6.
24 While these do labour for their own preferment/Behoves it us to labour for the realm. [Hen-
ry VI:II 1:1:179].
25 Oft have I seen the haughty Cardinal,/More like a soldier than a man o’th’ church,/As stout
and proud as he were lord of all,/Swear like a ruffian, and demean himself/Unnlike the ruler
of a commonwealth [1:1:184].
208 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Há padrões que se esperam de um governante.


O contraste é com o Cardeal Warwick, filho de Salisbury:

Vossos feitos, vossa humildade e vossa diligência


Granjearam-vos a suprema aprovação do povo simples.26

O povo deve obedecer, mas não se trata, afinal de contas, de uma obedi-
ência cega: a obediência tem que ser conquistada.
E sobre York, irmão de Salibury, que havia subjugado os irlandeses e retor-
nava agora da guerra na França, diz-se que tais façanhas:

Vos fizeram temido e louvado do povo. 27 [1:1:196]

O louvor se junta ao temor. O governo deve ser para o “reino”, a república,


o “bem comum”,28 “o benefício comum do país” — todas, expressões conheci-
das. Ele deve existir para o bem de todos. Quando isto ocorre, o povo honra e
obedece a seus governantes. Uma vez que é difícil associar honra com os pés,
uma relação bem diferente emerge entre governados e governante. A essência
é a reciprocidade: se os governantes governam bem, conquistam o louvor dos
governados. Mas por que a reciprocidade importa? Ela importa porque confere
um fundamento social à obediência: os governantes que conquistam o louvor
do povo, que governam bem, provavelmente serão obedecidos e, assim, a boa
constituição do corpo político será preservada.
Mas não é fácil manter essa ligação entre governados e governante, con-
quistar o louvor do povo. Outras realidades se imiscuem. O povo é parte inte-
gral do corpo político, porém, ao mesmo tempo, é-lhe também uma ameaça
— pois esse mesmo povo pode destruí-lo. O corpo político de boa constituição,
em que todas as partes estão em harmonia, é uma invenção, uma metáfora, um
modo de pensar cujo propósito é o de sublimar uma realidade dura em que
poucos têm muito e muitos têm pouco, em que as desigualdades gritantes, as
injustiças e a opressão infligiriam, na ausência dessa ficção, um ferimento san-

26 Thy deeds, thy plainness, and thy housekeeping/Hath won thee greatest favour of the com-
mons [1:1:188].
27 Have made thee feared and honoured of the people [1:1:196].
28 NT: Ao longo de sua exposição, o professor Galligan utiliza indistintamente as expressões
“common good” e “common weal” e, assim, ambas foram traduzidas aqui por “bem co-
mum”. O termo commonwealth, utilizado, sobretudo, a partir do século XV, é mais recente
do que a expressão common weal. Essa, empregada reiteradamente ao longo do ensaio,
designava, em séculos anteriores, o bem-estar coletivo, mas não evocava a organicidade
de um corpo político.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 209

grento e fatal ao corpo político. Ao ser traduzido para um universo de ideias, o


sangramento é estancado.
Este é, entretanto, um universo descasado da realidade social e, assim, o
corpo político se enfraquece, reaparecendo a ameaça permanente do colapso
dessa realidade social, a brutal realidade social descrita por Thomas Hobbes,
para quem não havia nada mais imperativo do que evitar tal retrocesso. Os go-
vernantes têm grandes dificuldades para tratar este dilema: o povo precisa ser
incluído no corpo político, mas ele é desprezível, incompetente, ignorante: em
seus piores momentos ele é uma turba. O respeito exigido pela reciprocidade é
presa fácil para os instintos mais baixos.
Nesta arena, o mais inofensivo dos perigos é a complacência. Em Sonhos
de uma noite de verão,29 às vésperas da celebração de seu casamento, o duque
pergunta “[...] qual é o divertimento que teremos hoje? Mascarada? Música?”.30
Egeu, um cortesão, responde: “uma peça, senhor, que terá o comprimento de
umas dez palavras”31 [5:1:62].32 A peça é ao mesmo tempo enfadonha e hila-
riante, pois os atores são:

Homens de mãos rudes, que trabalham aqui em Atenas,


E jamais, até agora, trabalharam com o espírito.
Eles fatigaram a rústica memória
Com semelhante peça para o dia de vossas bodas.33 [5:1:72]

“Jamais, até agora, trabalharam com o espírito”: eles são artesãos rudes e
ignorantes. Contra os conselhos de Egeu, o Duque Teseu, governante honrado,
insiste na apresentação da peça:

Nada há de impróprio
Quando é inspirada pela simplicidade e pelo dever.34 [5:1:82]

Os artesãos — carpinteiro, tanoeiro, alfaiate e consertador de foles — são


apresentados como rudes e inferiores, mas o duque conhece seus deveres
como governante e sabe como conquistar o louvor. O recém-casado Lisandro,

29 SHAKESPEARE, William. Sonhos de uma noite de verão. Tradução: F. Carlos de Almeida


Cunha Medeiros e Oscar Mendes. São Paulo: Círculo do Livro, 1994.
30 What masque, what music?
31 A play there is some ten lines long.
32 See further on A Midsummer Night’s Dream, A. Patterson, Shakespeare and the popular
Voice, Chapter 3.
33 Hard-handed men that work in Athens here,/Which never laboured in their minds till now,/
And now have toiled with unbreathed memories,/With this same play against your nuptial
[5:1:72].
34 For never anything can be amiss,/When simpleness and duty tender it [5:1:82].
210 CADERNOS FGV DIREITO RIO

a exemplo de Egeu, reclama que os artesãos são ineptos para a tarefa, “não são
capazes de fazer nada aceitável nesse gênero”, isto é, representar uma peça.
O duque é firme:

Maior será a nossa bondade ao agradecer-lhes essa coisa al-


guma.
Nosso divertimento consistirá em compreender o que não
compreendem,
Pois, quando a boa vontade é impotente para agradar,
Uma nobre benevolência considera o esforço e não o méri-
to.35
[5:1:88]

“Maior será a nossa bondade” — “nobre benevolência”: essas são as virtu-


des que se esperam de um bom governante. Mas a majestade do governo está
acima e distante: mesmo os grandes funcionários perdem a voz na presença do
duque e “ficam mudos sem me desejar as boas-vindas”. Entretanto:

Esse silêncio me servia perfeitamente de boas-vindas.


E a modéstia do zelo amedrontado era mais demonstrativo
Do que tudo que pudera expressar a língua buliçosa
De uma eloquência audaz e impertinente.36 [5:1:100]

O que importa é que os súditos demonstrem um “zelo amedrontado” mes-


mo se os meios para expressá-lo são “modestos”. Temor e louvor, lembremos,
andam juntos. Voltaremos a falar da peça apresentada no casamento.
A complacência está muito próxima do desprezo e facilmente nele se
converte. A Tempestade se inicia com uma furiosa tormenta e com os es-
forços dos marinheiros para enfrentá-la.37 Os nobres — incluindo o rei de
Nápoles e o usurpador duque de Milão — sobem para o convés, postam-se
no caminho dos marinheiros e começam a interferir em seus trabalhos. Em
face do perigo extremo, as convenções sociais ficam sobre pressão. O con-
tramestre protesta:

35 The kinder we, to give them thanks for nothing,/Our sport shall be to take what they mis-
take,/And what poor duty cannot do,/Noble respect takes it in might, not merit [5:1:88].
36 Out of this silence yet I picked a welcome,/And in the modesty of fearful duty/I read as
much as from the rattling tongue/Of saucy and audacious eloquence [5:1:100].
37 W. Shakespeare, The Tempest in Complete Works of Shakespeare, Volume -, p.- . See fur-
ther: A. Patterson, Shakespeare and the Popular Voice, Chapter 7.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 211

Os senhores estão atrapalhando nosso trabalho.


Voltem para os seus camarotes; estão ajudando a tempes-
tade.[ 1.1.4]38

A isto replica Gonçalo, um nobre napolitano:

Muito bem. Mas lembra-te de quem tens a bordo. [ 1:1:18]39

Saiba o seu lugar e demonstre respeito. Mas é vão invocar a superioridade


convencional: diante da natureza, a grande equalizadora, as convenções per-
dem o sentido. O contramestre pergunta a Gonçalo, um homem acostumando
a exercer a autoridade, se ele pode ordenar “a estes elementos da Natureza
que silenciem”. Use sua autoridade, ele insiste: mas é claro que a autoridade é,
nessas circunstâncias, uma invenção social inútil. Aqui, os marinheiros são os
senhores e é sua habilidade que representa a única possibilidade de sobrevi-
vência. O contramestre entende a situação; Gonçalo, não. Se o nobre não pode
dar ordens aos elementos, então o contramestre tem razão em ordenar-lhe que
“saia do caminho”.
Para Gonçalo, preso ao registro elitizado, incapaz de ver que este se tor-
nou obsoleto pela força da realidade, a linha do respeito foi cruzada. Gonçalo
diz do contramestre:

Quer me parecer que ele não tem jeito de quem nasceu para
morrer afogado; tem cara de quem vai com certeza morrer na
forca.[ 1:1:30]40

Ele nasceu para ser enforcado, não para morrer afogado. Eles estão segu-
ros, portanto; mas

Se morrer enforcado não é a sina dele,


O nosso é um caso perdido.[ 1:1:31]41

Isto porque ele fez seu trabalho. O pior ainda está por vir. Quando o con-
tramestre retorna e vê Gonçalo ainda no convés, ele pergunta em tom áspero:

38 You mar our labour,/Keep your cabins; you do assist the storm [1.1.4].
39 Good, yet remember whom thou hast abord [1:1:18].
40 Hath no drowning mark upon him: his complexion is perfect gallows [1:1:30].
41 If he were not born to be hanged,/Our case is miserable. [1:1:31].
212 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Mas... e de novo? — O que fazem os senhores aqui? Devemos


parar e afogar-nos?
É desejo dos senhores afundar-nos? [1:1:37]42

Sebastian, irmão do rei de Nápoles, intervém em tom equivalente:

Que a sífilis te devore a garganta, seu gritão, seu cachorro


blasfemo e intolerante!43

Ao que o contramestre sensatamente sugere:

Trabalhem os senhores, então.44

O usurpador duque Antonio, a seu turno, vocifera:

Vai te enforcar, seu vira-lata! Vai te enforcar, filho de uma


cadela!45

A culpa é claramente dos marinheiros. Antonio continua:

Nossas vidas estão simplesmente sendo roubadas de nós, e


por bêbados.46

Sem se incomodar de que não haja qualquer indício da verdade do que


diz, ele afirma que

Esse esponja desse patife. — Pois eu quero mais é que tu te


afogues, e que teu corpo fique boiando por dez marés.47

Para Gonçalo, a morte por afogamento é boa demais para o marinheiro:

Ele ainda vai ser enforcado, embora cada gota d’água escon-
jure contra isso e se arreganhe toda para abocanhá-lo.[ 1:1:56]48

42 Yet again? What do you here? Shall we give o’er and drown?,/Have you a mind to sink?
[1:1:37].
43 A pox o’your throat, you bawling, blasphemous incharitable dog!
44 Work you, then.
45 Hang, cur, hang, you whoreson insolent noise maker.
46 We are merely cheated of our lives by drunkards.
47 This wide-chopped rascal — would thou mightst lie drowning,/The washing of ten tides.
48 He’ll be hanged yet,/Though every drop of water swear against it,/And gape at wid’st tp
glut him [1:1:56].
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 213

Desaparecem todos os traços dos limites convencionais: o verniz da ordem


orgânica e do respeito mútuo é descartado, deixando exposta a divisão profun-
da: as relações sociais se veem reduzidas à selvageria do estado de natureza.
A espiral segue em descendente: da complacência ao desprezo e do des-
prezo ao ódio puro, cuja intensidade atinge um novo ápice em Caio Márcio,
também conhecido como Coriolano.49 Tendo sido agraciado com o título de
“Coriolano” por sua coragem na vitória sobre os Volcianos, Caio Márcio é sele-
cionado pelo Senado para o cargo de cônsul. Para ser nomeado, ele precisa ob-
ter a aclamação do povo, o que convencionalmente ocorre, desde que certos
procedimentos sejam respeitados: ele deve se apresentar aos comuns, mostrar
suas feridas de guerra e pedir seu apoio.50 Coriolano, um homem orgulhoso,
tem dificuldade em submeter-se dessa forma ao escrutínio popular. A razão,
segundo um oficial é a de que:

Esse é um bravo; mas orgulhoso até as últimas, e não ama a


gente simples.51 [2:2:5]

Não amar o povo é não respeitar o laço de reciprocidade e é, assim, um


impedimento à nomeação. A tensão aumenta entre o povo e seus tribunos, e
entre Coriolano e os senadores. As relações entre eles são complexas e sutis,
e tomariam tempo demais para explicar nesse momento. Por ora, basta dizer
que as relações entre Coriolano e o povo são moldadas e envenenadas pelos
tribunos. Sem a duplicidade perversa desses, Coriolano teria sido aclamado.52
O problema imediato da nomeação de Coriolano dá lugar a um debate
mais profundo sobre autoridade e governo, sobre as relações entre o Senado,
onde se encontram os governantes sábios e naturais, e o povo, os detentores
do poder em estado bruto. O povo é intrínseco ao corpo político, e disso é sinal
o fato de nomearem cônsules. No entanto, ele é também a turba. Quando as
tensões aumentam, o povo deixa de ser, na mente e no discurso de Coriolano,
aquele cuja voz é a legítima vox populii, para se converter em turba. Mas, para
os senadores, ceder ao poder em estado bruto significa:

49 SHAKESPEARE, William. Coriolano. Tradução: Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova


Aguilar, 2004.
50 On the constitutional arrangements of Republican Rome: A. N. Sherwin-White, The Roman
Citizenship (Oxford University Press, 1973); C. Nicolet, The World of the Citizen in Republi-
can Rome (University of California Press, 1980).
51 That’s a brave fellow, but he’s vengeance proud and loves not the common people [2:2:5].
52 Para uma discussão de Coriolanus, ver: J.E. Green, The Eyes of the People: Democracy in an
Age of Spectatorship (Oxford University Press, 2011).
214 CADERNOS FGV DIREITO RIO

[...] degradamos os cargos, com essa corja


Chamando medo ao cuidado, e com o tempo,
Arrombando as barreiras do Senado
Vão trazer corvos para picar as águias.53 [3:1:138]

Ceder ao povo — os corvos — seria rebaixar a elevada dignidade do Se-


nado — as águias. Os tribunos ordenam-lhe que pare. Ele persiste. Mas agora o
véu do limite constitucional foi rasgado, a imagem de um corpo político orgâni-
co, destruída e as relações sociais expostas em toda a sua crueza. Não há mais
campo comum, nem há uma linguagem comum de que se socorrer: os partidos
se confrontam, separados por um golfo insuperável. O povo agora é a turba ig-
norante, “o monstro de muitas cabeças”, o detentor da força bruta. Os patrícios
“desprezam com razão” a plebe, ao passo que a plebe, no dizer de Coriolano:

Insulta sem razão; e aonde


O berço, o título e a sabedoria
Têm de guiar-se pelo sim ou não
Da ignorância[...]54 [3:1:146.]

Observe-se o contraste entre os patriarcas, os senhores sábios e nobres, e


a plebe ignorante. A consequência de ceder à plebe:

[...] um corpo submetido a uma cura perigosa


que seguramente levará à morte.55 [3:1:157]

É a de que o corpo político estaria condenado. O único remédio:

[...] arranquem fora agora


Essa múltipla língua: não a deixem
Lambê-los com veneno. [3:1:158]56

O povo agora é a língua, um órgão maligno que deve ser extirpado para
que o corpo político recobre a saúde e tenha sua boa constituição restaura-
da. Isto é demais para os tribunos que pedem ao povo que se reúna e julgue

53 […] debase the nature of our seats,/And make the rabble/Call our cares fears, which will in
time/Break ope the locks o’th’senate and bring in/The crows to peck the eagles [3:1:138].
54 Insult without all reason where gentry, title, wisdom/Cannot conclude but by the yea and
no/Of general ignorance[…] [3:1:146] .
55 a body with a dangerous physic/That’s sure of death
56 […] at once pluck out/The multitudinous tongue; let them not lick/The sweet which is their
poison [3:1:158].
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 215

Coriolano. Enquanto isto, em nome do povo, Sicínio, um dos tribunos, ataca


Coriolano como:

[...] traidor, com tal proposta,


E inimigo do povo.57 [3:1:176]

Invocar o “bem comum” é utilizar um trunfo, pois a proteção e aumento do


bem comum é a fonte da autoridade e seu propósito.
Os papéis se invertem: Coriolano é agora a ameaça e Menênio, um res-
peitado patrício, tenta uma mediação junto ao povo, comparando Coriolano a:

Um membro que tem uma doença mortal


A ser cortado, para que a cura se efetue.58 [3:1:98]

A metáfora corporal está sempre disponível: a saúde pode ser restaurada


desde que se ampute o membro doente. O ritmo se acelera. Volúmnia, mãe de
Coriolano, suplica ao filho que ele faça as pazes com o povo, custe o que cus-
tar, que ele diga o que for preciso, a despeito de suas crenças, não importa o
quanto isto afronte sua natureza.

[...] com palavras


Tão só decoradas por sua língua [...]
Eu dissimularia a natureza
Onde o fado e os amigos o exigissem;
E o faria com honra.59 [3:2:56.]

Faça o que for necessário, mesmo que tenha que “dissimular”; uma bela
palavra, dissimular. Tarde demais. Os tribunos querem vingança e acusam Co-
riolano de “buscar instaurar a tirania”. O povo se alvoroça e, a despeito de um
último pedido de Menênio, Coriolano se resigna à morte ou ao exílio:

Eu não compraria
Nem por uma palavra o seu perdão.60 [3:3:94.]

57 A traitorous innovator/A foe to the public weal [3:1:176].


58 A limb that has but a disease /Mortal to cut it off, to cure it easy.
59 […] with such words/That are but roted in your tongue[…]/I would dissemble with my na-
ture where/My fortune and my friends at stake required/I should do so in honour [3:2:56].
60 I would not buy/Their mercy at the price of one fair word. [3:3:94].
216 CADERNOS FGV DIREITO RIO

A maldição que lança ao partir, proferida parte por raiva, parte por convic-
ção, supera todos os eventos anteriores:

Ó matilha de cães de hálito imundo


Como o do poço envenenado! Odeio-os
Como às carcaças que, desenterradas,
Corrompem-nos o ar. Eu os renego [...] 61 [3:3:124.]

Mesmo na Roma Republicana, em que o povo comum tinha um lugar na cons-


tituição e voz no governo, essa inimizade é mal disfarçada e o desdém dos patrí-
cios reprimido a muito custo. Vemos como era pouco espesso o caldo das ideias
constitucionais e com quão pouco apetite o corpo político dele se alimentava.
O imponente edifício do pensamento constitucional e a república que ele abriga
dependem da força dessas ideias para conter os conflitos e promover a harmonia
social. Não obstante, elas funcionam: o governo é efetivo, o povo obedece e o
corpo político floresce. A perspectiva do registro elevado fornece algum grau de
explicação que não é, contudo, suficiente,pois, esse registro — e a forma de pen-
samento que incorpora — fratura-se e se desintegra quando se vê sob pressão.
O restante da resposta à questão de Hume, sua parte principal, deve ser
buscada em outro lugar. Precisamos agora investigar a perspectiva que vem de
baixo: como o povo comum percebe e compreende a autoridade, porque a ela
aquiesce. Shakespeare será chamado a nos ajudar nessa empreitada. O outro
registro de pensamento, de baixo para cima, embora não tão óbvio quanto o
primeiro, surge logo quando começamos a procurá-lo.
Antes de analisarmos essa descoberta, entretanto, há uma última e terrível
cena de revelação, de insight quanto à realidade do governo e à pobreza da
autoridade. Em Rei Lear, as raízes da autoridade e da ordem constitucional são
expostas em toda a sua crueza.62 Lear está na charneca, “louco, coroado com
ervas daninhas e flores”. Ele encontra o já cego Gloucester e seu filho Edgar,
o legítimo. Gloucester reconhece a voz de Lear e se ajoelha. Acreditando que
Gloucester esteja pedindo perdão, Lear é:

[...] de alto a baixo um Rei.


Quando fixo o olhar, reparem como tremem meus vassalos.
[4:6:106]63

61 You common cry of curs, whose breath I hate/As reek o’th’rotten fens, whose loves I prize/
As the dead carcasses of unburied men/That do corrupt my air: I banish you […] [3:3:124].
62 W. Shakespeare, The Tragedy of King Lear in Complete Works of Shakespeare, Volume - ,
p. -. For further reflections on Lear, see: R. Patterson, Shakespeare and the Popular Voice,
Chapter 5.
63 --- every inch a king./When I do stare, we see the subject quake [4:6:106].
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 217

Ele então passa a desmontar a própria ordem que é obrigação da “realeza”


sustentar. Ele pergunta se o pedido de Gloucester diz respeito a adultério. Se
for este o caso, ele não será condenado à morte, pois:

O rouxinol o comete e a mosquinha dourada fornica diante


de mim.
Copulem livremente!64

Descarte-se o artifício e restaure-se o estado natural. Ele se recompõe:

[...] meu boticário, para desempestar minha imaginação.


[4:6:128]65

Ele pede a Gloucester que leia algo que Lear deposita em suas mãos. Glou-
cester responde:

Mesmo que cada letra fosse um sol, eu não conseguiria vê-


-las.[ 4:6:136]66

Lear então se dá conta de que Gloucester está cego. E, ainda assim:

[...] vês como vai indo o mundo?67


Gloucester:

Um mundo sentido.68

Mas, responde Lear, não é preciso olhos para ver “como anda o mundo”:

[...] olha com as orelhas. Vê como aquele juiz ofende aquele


humilde ladrão.
Escuta com o ouvido, troca os dois de lugar, como pedras
na mão;

64 The wren goes to’t, and the small gilded fly,/Does lecher in my sight./Let copulation thrive.
65 ---good apothecary, sweeten my imagination [4:6:128].
66 Were all the letters suns, I would not see [4:6:136].
67 --- you see how this world goes.
68 I see it feelingly.
218 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Qual o juiz, qual o ladrão? Já viste um cão da roça ladrar para


um miserável? [4:6:146]69

“Como pedras na mão, qual o juiz, qual o ladrão?” Gloucester aquiesce.


Lear prossegue:

E o pobre diabo correr do vira-latas? Pois tens aí a importan-


te imagem da autoridade.
Até um vira-lata é obedecido quando ocupa um cargo.
Oficial velhaco, suspende tua mão ensanguentada!
O usuário enforca o devedor.
Os buracos de uma roupa esfarrapada não conseguem es-
conder o menor vício;
Mas as togas e os mantos de púrpura escondem tudo.
Cobre o crime com placas de ouro e, por mais forte que seja
a lança da justiça, se quebra inofensiva.
Um crime coberto de trapos a palha de um pigmeu o atra-
vessa.
Não há ninguém culpado, ninguém — digo, ninguém!
Eu me responsabilizo.
Podes acreditar em mim, amigo, tenho o poder para lacrar os
lábios do acusador.
Arranja olhos de vidro e, como um político rasteiro, finge ver
aquilo que não vês.[ 4:6:160]70

O registro elevado tem “togas e mantos de púrpura”, as “placas de ouro”


para esconder a crueza da injustiça e da opressão no mundo real. Mas Lear
enxergou através desse véu. Em um mundo mais natural, “[n]ão há ninguém
culpado, ninguém — digo, ninguém!”; ele irá “lacrar os lábios do acusador”.
Edgar entende a mensagem:

69 ---- look with thine ears. See how yon./Justice rails upon you simple thief./Hark in thine
ear:/Change places, and handy-dandy, which is the justice, which is the thief?/Thou has
seen a farmer’s dog bark at a beggar? [4:6:146].
70 An the creature run from the cur, there thou mightst behold the great image of authority. A
dog’s obeyed in office./Thou rascal beadle, hold thy bloody hand./ ---- The usurper hangs
the cozener./Through tattered clothes great vices do appear;/Robes and furred gowns
hide all. Plate sin with gold,/And the strong lance of justice hurtles breaks;/Arm it in rags,
a pygmy’s straw does piece it./None does offend, none, I say none. I’ll able ‘em./Take that
from me, my friend, who have the power,/To seal th’accuser’s lips. Get thee glass eyes,/
And, like a scurvy politician, seem,/To see the things thou dost not [4:6:160].
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 219

Oh, que mistura de bom senso e de absurdo.


— A razão na loucura!71

Da razão à revelação, da revelação à resignação. Lear:

Assim que nós nascemos, choramos por nos vermos neste


imenso palco de loucos. [4:6:178]72

“Este imenso palco de loucos”. Trata-se de um palco, um escape da reali-


dade social. A loucura de Lear é a loucura que vem da revelação profunda de
que tudo não é mais que um palco. Mas um palco do qual não podemos fugir,
pois assim são as coisas, e o único modo de lidar com isto é pela resignação,
pela aceitação estóica daquilo que é “o mistério das coisas”.

Olhando de baixo para cima: o registro popular do pensamento


constitucional
Analisamos o registro elitizado e seu produto, a constituição orgânica. Vimos
como ele se apoia com dificuldade na realidade social e como se desintegra
sob pressão. Mas nada avançamos no que diz respeito a saber como ou o por-
quê a ordem constitucional — nossa própria versão da constituição orgânica,
cantada em verso e prosa — funciona. Há um sistema organizado e coerente de
ideias constitucionais claramente presente, mas ele é socialmente infundado.
Quando buscamos seus fundamentos sociais, vemos que eles não se mostram
presentes: soberania, representação e consentimento carecem de uma base
nas relações sociais. Encontramos, no nível superior, um manto de civilidade
sob o qual ferve o ódio alimentado pelo medo; e vimos como é preciso pouco
para que o medo se transborde em ódio e desfaça o manto. Não obstante, o
povo aquiesce. O “poder soberano inerente à maioria”, na expressão de Ed-
mund Burke, é controlado e contido de acordo com a constituição e o governo
de uns poucos.73
Como conciliar as coisas? Onde encontrar as peças que faltam nesse que-
bra-cabeça constitucional? O lugar óbvio para procurar é no próprio povo, para
descobrir esse olhar que vem de baixo. O que pensam os Peter Quinces, os
Nick Bottoms, os Tom Snouts74 — esses artesãos comuns e ignorantes? Como
percebem, vivem e compreendem a ordem social e as convenções constitucio-

71 O, matter and impertinency mixed,/- reason in madness!


72 When we are born, we cry that we are come to this great stage of fools [4:5:178].
73 E. Burke, An Appeal from the New to the Old Whigs in Works of Edmund Burke (Oxford
University Press, 1907) Volume V:102-3.
74 Personagens em A Midsummer Night’s Dream (1598) The Complete Works of Shakespeare
(eds), S. Wells and G. Taylor (Oxford University Press, 1987): Volume I.
220 CADERNOS FGV DIREITO RIO

nais que ela sustenta? Será que essas perguntas nos levarão a um pensamento
constitucional fundado nas relações sociais e não sobreposto a elas? Talvez
nos tornemos capazes de responder à indagação de Hume sobre as razões de
o povo entregar tão prontamente seu poder natural a uns poucos. Aqui, aden-
tramos o registro popular do pensamento constitucional.
Talvez não haja nada aqui, nenhum registro popular, nenhum mundo cons-
titucional para o povo habitar. Que não haja algo assim é uma ideia arraigada
e resistente: o povo comum existe para ser governado e para obedecer a seus
governantes. Não a obediência no sentido de Aristóteles, que nos diz que os
cidadãos obedecem porque foram ensinados a governar e, sabendo como go-
vernar, obedecem de modo deliberado e intencional. Isto não é para os arte-
sãos: espera-se que sua obediência seja cega e que se alimente da deferência.
Eles devem permanecer, de acordo com o duque Teseu, “na simplicidade e no
dever”. Karl Marx e Antonio Gramsci lançaram sobre a “simplicidade e o dever”
um sufocante manto de explicação; o povo é incapaz de imaginar um mundo
diferente daquele em que habita. O tecido grosseiro da necessidade se trans-
forma no manto de uma ordem natural e justa. Se é certo que alienação e a
falsa consciência têm seu lugar, porque deveríamos acreditar, entretanto, que
o povo é incapaz de pensar uma ordem diferente da sua?75
Shakespeare sabia das coisas. Primeiro, um indício: o caso amoroso de
Nick Bottom com a rainha das fadas, Titania, é só um sonho. Mas se um tecelão
transformado em asno pode namorar uma rainha, uma rainha das fadas, então
é possível imaginar qualquer coisa. As coisas poderiam ser diferentes. Peter
Quince não tem problemas para imaginar um mundo em que ele não seria en-
forcado por ofender uma dama da nobreza. O mundo convencional paira pe-
sadamente sobre a realidade, mas o fato de que paire sugere que desce lá de
cima e pousa, com dificuldade, sobre uma base mais profunda.
Os artesãos de Sonhos de uma Noite de Verão nos permitem entrever essa
outra realidade. Esses homens, desprezados pela duquesa por não haverem
nunca ‘”trabalhado com o espírito” são capazes de conceber, escrever e repre-
sentar Píramo e Tisbe. Eles podem não ter estudado Ovídio, mas sabem algo
sobre os clássicos. O fato que Nick Bottom e Peter Quince possam debater se
a cadência poética deve ser “oito e seis” ou “seis e oito” indica que eles são
alfabetizados, ao passo que sua performance elaborada mostra que eles não
desconhecem o teatro. E o fato de que Tom Snout previna às damas na plateia
de que ele não é um leão de verdade, e que não irá rugir demasiado alto, apon-
ta para seu cuidado em não assustá-las e em não ferir suas suscetibilidades.

75 See further: P. Zagorin, Rebels and Rulers 1500-1660 (Cambridge University Press, 1982)
Part I.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 221

Longe de serem analfabetos, rudes ou incapazes de consideração para


com os outros, os artesãos são educados, respeitosos e moralmente astutos.
O contraste com os jovens aristocratas é gritante. Enquanto os artesãos tra-
balham na peça, os aristocratas, que pensam somente em flertes e não fazem
outra coisa senão se entregar a namoricos alegres, se veem presos ao encanto
das fadas brincalhonas.
Quando se inicia a peça dentro da peça, o contraste se aprofunda: a pla-
teia composta pelo duque recém-casado e sua corte é notável pela insipiência
de seus comentários, por sua ignorância do mundo dos artesãos e por seus
preconceitos contra eles. Quince vai à frente do palco para declamar o Prólogo.
É fluente, bem construído, sutil em seu tema, na pior das hipóteses um pouco
apressado. Lisandro consegue apenas reclamar:

Ele montou no prólogo como num potro selvagem, sem sa-


ber como pará-lo.76 [5:1:119]

E prossegue:

[...] ele representou o prólogo como uma criança com uma


gaita: notas sem nenhum compasso.77 [5:1:118]

As ações de tocar bem um instrumento e de governar são colocadas lado


a lado: uma criança não sabe tocar flauta, um homem do povo não sabe gover-
nar. O duque concorda:

O discurso que nos disse parecia uma corrente emaranhada;


Não faltava um só anel,
Mas todos em desordem.78 [5:1:120]

A desordem é o oposto do governo.


Mas o duque, lembremos, é um grande homem em cuja presença:

[...] grandes sábios quiseram


Saudar-me com boas-vindas premeditadas;
Eu os vi tremer e empalidecer,
Parar no meio das frases,

76 He hath rid his prologue like a rough colt; he knows not the stop [5:1:119].
77 […] he hath played on this prologue like a child on a recorder — a sound, but not in gover-
nment [5:1:118].
78 His speech was like a tangled chain — nothing impaired/But all disordered [5:1:120].
222 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Afogar no temor seus habituais acentos e,


Concluindo, ficar mudos.79 [5:1:93]

Este não é o caso dos artesãos. Eles podem não estar totalmente à vonta-
de — que ator jamais está? — mas representam com confiança diante da nata
da sociedade ateniense.
O duque, como sempre, é generoso:

Epílogo não, por favor; vossa peça não necessita de desculpa.


Nada de escusas, pois, quando todos os atores estão mortos,
Não há ninguém a censurar.
[...] teria sido uma magnífica tragédia; assim como está,
É uma peça muito boa e notavelmente representada.80
[5:1:348]

O que estarão pensando os artesãos? Como interpretam a situação? Eles


estão calmos e focados em seu propósito: divertir e honrar o duque e sua corte.
Eles sabem que precisam ter cuidado. O rugido do leão é preocupante. Bottom
se vangloria de ser um bom rugidor. Peter Quince, autor da peça e homem
sensato, recomenda cautela:

Se representares com tanta ferocidade,


A Duquesa ficará aterrorizada e as damas, a ponto de gritar,
E seria o bastante para que nos enforcassem a todos.81
[1:2:70]

Os outros concordam:

Seria o suficiente para que nossas mães tivessem, cada uma,


um filho enforcado.82 [1:2:71]

Bottom, pragmático como sempre, concorda em:

79 […] great clerks have purposed/To greet me with premeditated welcomes,/Where I have
seen them shiver and look pale,/Make periods in the midst of sentences/Throttle their prac-
ticed accent in their fears,/And in conclusion dumbly have broke off [5:1:93].
80 No epilogue, I pray you; for your play needs no excuse./Never excuse; for when the players
are all dead
there need none to be blamed. […] it would have been a fine tragedy; and so it is,
truly,/And very notably discharged [5:1:348].
81 An you should do it too terribly you would fright/The Duchess and the ladies that they
would shriek, and/That were enough to hang us all [1:2:70].
82 That would hang us every mother’s son [1:2:71].
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 223

[...] eu abaixarei minha voz de modo que rugirei tão doce-


mente quanto uma pombinha. 83[1:2:76]

Quince não se deixa convencer. É melhor que Bottom represente Píramo:

Píramo é um homem simpático; um homem completo,


Como deve ser visto num dia de verão,
Um homem extremamente simpático e cavalheiresco. 84
[1:2:80]

Os artesãos são respeitosos e resignam-se a seus lugares. Mas será que


se pode perceber um traço de ressentimento? Como pode ser que um homem
seja enforcado por rugir demasiado alto e assustar as senhoras? Por que o
povo comum deveria trabalhar sob tal ameaça? Como os artesãos entendem
esse mundo? Em Hamlet, o príncipe, pertencendo ao registro elitizado, mas
tendo agora se colocado fora dele, deixa claro aquilo que os artesãos não ou-
sam dizer.85
Todos conhecemos a passagem:

Ser ou não ser — eis a questão.


Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra o mar de angústias —
E, combatendo-o, dar-lhe fim? [3:1:58]86

Mas sigamos com a leitura. Por que viver, pergunta Hamlet, quando

Morrer — dormir —
Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo! [3:1:66]87

Aí está o obstáculo: não sabemos o que jaz além, pois, se soubéssemos:

83 ---- aggravate my voice so that I shall roar you as gently as any sucking dove [1:2:76].
84 For Pyramus is a sweet-faced man; a proper man as one shall see/In a summer’s day; a most
lovely gentlemanlike man [1:2:80].
85 W. Shakespeare, The Tragedy of Hamlet, Prince of Denmark in Complete Works of Shakes-
peare, Volume -, p. -. On Hamlet, see A. Patterson’s perceptive account: Shakespeare and
the Popular Voice, Chapter 5.
86 To be, or not to be; that is the question:/Whether ‘tis nobler in the mind to suffer,/The slin-
gs and arrows of outrageous fortune,/Or to take arms against a sea of troubles,/And, by
opposing, end them [3:1:58].
87 To die,/To sleep, perchance to dream/Ay there’s the rub [3:1:66].
224 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Pois quem suportaria o açoite e os insultos do mundo,


A afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,
As pontadas do amor humilhado, as delongas da lei,
A prepotência do mando, e o achincalhe
Que o mérito paciente recebe dos inúteis,
Podendo, ele próprio, encontrar seu repousoCom um sim-
ples punhal?[ 3:1:72]88

Mas isto é tudo?

[...] o terror de alguma coisa após a morte —


O país não descoberto, de cujos confins
Jamais voltou nenhum viajante[ 3:1:82]89

Será que isto é o suficiente para explicar a aquiescência do povo? Não


haverá mais a se aprender sobre sua mentalité’?
Uma maneira de sabê-lo é estudando a rebelião. É preciso que haja uma
rebelião para que se revele aquilo que normalmente permanece escondido. Ela
mostra sob quais condições o respeito e a resignação dão lugar à resistência,
à rebelião, até mesmo à revolta — todas significando que algo de errado acon-
teceu no corpo político de modo que a aquiescência normal se vê revogada ou
suspensa. Entre a resistência silenciosa e a rebelião aberta há muitos matizes
de dissenso, mas todos eles evidenciam a doença no corpo político. Quando
eclode a rebelião, a aparência de unidade, de integridade orgânica do corpo
político, rompe-se e se desintegra. De um certo ponto de vista, a rebelião é a
patologia, a aberração, um desvio, até mesmo uma ameaça à ordem constitu-
cional. De outro, ela é o chamado à restauração de uma ordem constitucional
mais fundamental, uma ordem que tem autenticidade social e que está ancora-
da nas realidades das relações sociais; uma ordem que é capaz de incorporar
o poder natural do povo, ao invés de suprimi-lo. É a constituição fundamental
obscurecida e deixada para trás quando o registro elitizado do pensamento e
da prática constitucional se descola para viver uma vida própria.
As rebeliões são comuns em Shakespeare, mas para nosso propósito aqui,
nenhuma é melhor do que a de Jack Cade que, em 1450, liderou o povo de Kent

88 Who would bear the whips and scorns of time,/The oppressor’s wrong, the strong man’s
contumely,/The pangs of disprized love, the law’s delay,/The insolence of office, and the
spurns,/That patient merit of th’unworthy takes,/When he himself might his quietus make,/
With a bare bodkin [3:1:72].
89 […] the dread of something after death,/The undiscovered country from whose bourn,/No
traveller returns [3:1:82].
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 225

a Blackheath e exigiu uma audiência com o rei. Ao lado de Wat Tyler, que lide-
rou os camponeses em uma revolta sessenta e nove anos antes, Jack Cade ocu-
pa um lugar privilegiado no panteão dos vilões. Carlos I não era o único a apre-
sentá-los como mestres da demagogia e como prova do que acontece quando
o povo é incitado a se transformar em turba. E se era preciso por em relevo a
reputação de Cade como um maníaco assassino, Shakespeare assumiu a tare-
fa.90 Cade é apresentado como um homem que, além do gosto pela carnificina,
considera escrever “uma coisa tão deplorável”91 que qualquer um pego no ato
de fazê-lo deveria ser imediatamente executado como vilão e traidor. Acadê-
micos, advogados, cortesãos e aristocratas são “lagartas mentirosas”92que de-
vem ser assassinadas assim que avistadas; as grammar schools93* “corrompem
a juventude do reino”,94 e falar francês é traição. A ambição de Jack Cade é a de
ser “a boca do Parlamento”95 e de que todos o reverenciem como seu senhor. A
lista poderia ser expandida. O Jack Cade de Henrique VI Part II teria dificuldade
em conseguir o nosso voto.96
Entretanto, como é hábito em Shakespeare, há uma causa que, obscureci-
da pelas idiossincrasias da personagem, frequentemente passa despercebida.
Na causa, ouvimos a voz do povo.
Os rebeldes entram e o primeiro rebelde diz:

Pois eu lhe digo, Jack Cade, o alfaiate, pretende vestir


A República e transformá-la, e cobri-la com um novo manto.97
[4:2:6]

O segundo rebelde apresenta as razões:

Era preciso que ele o fizesse, pois ela está rota. E eu lhes
digo que
Nunca houve felicidade na Inglaterra desde que

90 His Majestie’s Answer to the Nineteen Propositions of Both Houses of Parliament (1642) in:
Divine Right and Democracy (ed) D. Wootton (Penguin Books, 1986)
91 ‘a lamentable thing’
92 ‘false caterpillars’
93 * Nota do Editor: Estas escolas eram centros pelo ensino de línguas clássicas, notadamente
o latim, e artes liberais, tendo sido responsáveis pelo ensino da elite até a era Vitoriana no
século XIX, quando se popularizaram e passaram a ensinar também ciências naturais para
um contingente maior de alunos.
94 ‘corrupt the youth of the realm’.
95 the mouth of parliament.
96 On the real Jack Cade, see: A. Wood, The 1549 rebellions and the Making of Early Modern
England (Cambridge UP, 2007) and Riot, Rebellion and Popular Politics in Early Modern
England (Palgrave, 2002).
97 I tell thee, Jack Cade the clothier means to dress up/The Commonwealth, and turn it, and
set a new nap upon it.
226 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Aristocratas nela se instalaram.98

Rebeldes e bufões se unem. Lembremo-nos do coveiro em Hamlet:

Vem, minha pá! Não há nobreza mais antiga


Do que a dos jardineiros, agricultores e coveiros:
Eles continuam a tradição de Adão.99 [5:1]

O que os nobres teriam feito para desgastar seu prestígio? Responde o


primeiro rebelde:

Ó, tempos miseráveis! A virtude não é reconhecida em arte-


sãos.100

A falta de virtude gera a falta de respeito. O segundo rebelde observa:

A nobreza crê que é vergonhoso trajar-se em aventais de


couro.101

A nobreza não trabalha e o trabalho honesto dos artesãos não é valoriza-


do. Retorna o primeiro rebelde:

Digo-vos mais, os conselheiros do rei não são bons operá-


rios.102

Os nobres não conseguem nem mesmo governar bem. O segundo rebelde


vai mais além:

Verdade; e foi dito “Trabalhe em sua vocação”;


O que vale dizer “que os magistrados
Sejam trabalhadores”; e assim, nós deveríamos ser magistra-
dos.103 [4:2:6].

98 So he had need, for ‘tis threadbare. Well, I say/It was never merry world in England since/
Gentlemen came upon it.
99 Come, my spade. There is no ancient/Gentlemen, but gardeners, ditchers, and grave-
makers;/They hold up Adam’s profession:
100 O, miserable age! Virtue is not regarded in handicraftsmen.
101 The nobility think scorn to go in leather aprons.
102 Nay more, the King’s Council are no good workmen.
103 True; and it is said ‘Labour in thy vocation’/Which is as much as to say ‘let the magistrates/
Be labouring men’; and therefore should we be magistrates.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 227

Os papéis poderiam ser invertidos: nós, trabalhadores honestos, podería-


mos governar. Mas o uso do subjuntivo — “que os magistrados sejam trabalha-
dores” — mostra que este é um pensamento passageiro. O povo comum sabe
que nunca irá governar: as forças sempre lhe serão adversas. O que é mais
urgente, e possível, é insistir em um bom governo. O bom governo é o índice,
o padrão para aquiescência.
Deixando de lado, por um instante, os rebeldes, observemos o ambi-
cioso Ricardo em Ricardo III.104 Tendo sabido da morte do rei Eduardo e do
prospecto de seu jovem filho se tornar rei, um grupo de cidadãos discute a
situação.
Diz o terceiro cidadão:

Ai da terra que é governada por uma criança.105

Replica o segundo:

Nele, há esperança de governo,


Neste infante que se submete agora ao conselho,
E que quando maduro, ele mesmo
Sem dúvida então, e só então, governará bem.106 [2:3:12]

O terceiro cidadão está pessimista. Quando Henrique VI era uma criança:

[...] esta terra era famosa por ser agraciada


Com conselheiros graves e sagazes; então o rei
Contava com tios virtuosos para protegê-lo.107[ 2:3:19]

Mas agora as coisas serão diferentes, pois o jovem rei está cercado de
perigos e carece dos “conselheiros graves e sagazes”. O Duque de Gloucester,
futuro Ricardo III, tomado por uma ambição desenfreada e impiedosa, está à
espreita:

Cheio de malícia é o Duque de Gloucester


E os irmãos da rainha, pretensiosos e arrogantes;

104 The Tragedy of King Richard the Third in The Complete Works of Shakespeare (eds) S.
Wells and G. Taylor (Oxford UP, 1987), Volume -, p. 115.
105 Woe to the land that’s governed by a child[2:3:11].
106 In him there is a hope of government,/Which in his nonage council under him/And in his full
and ripened years himself,/No doubt shall then, and till then, govern well:
107 this land was famously enriched/ With politic, grave counsel; then the king/Had virtuous
uncles to protect his grace.
228 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Se fossem governados, ao invés de governar,


Essa terra adoentada poderia vicejar como antes.108 [2:3:27]

Não é o rei que deve ser culpado pelo mau governo. São os conselheiros,
os maus conselheiros, que aconselham mal e induzem o rei a erro. Estes “senho-
res pretensiosos e arrogantes”109 não servem ao bem comum mas buscam seus
próprios interesses. Eles são instrumento para um governo fraco e corrupto.
Mas voltemos aos rebeldes em Henrique VI: porque a república — o meio
para o bem comum — está tão desgastada? De que modo ela é mal governada?
A resposta de Cade é precisa:

Digo-vos que Lorde Saye castrou o reino


E fez dele um eunuco.110 [3:2:182]

O governo deveria ser para “o bem do reino”, mas Lorde Saye o utilizou
para proveito próprio [1:1:203]. E outras queixas vêm à luz. Mais cedo, um grupo
aproximara-se de Gloucester, o Lorde Protetor, para apresentar-lhe uma peti-
ção. As petições eram o único caminho para o povo comum trazer suas queixas
ao rei ou ao protetor. E quais eram as queixas?
Um reclama de um dos servos do Cardeal:

Por manter-me afastado de meu cavalo, terras e esposa.111 [1:3:3]

Outro, um suplicante pobre que fala em nome de seu vilarejo, se queixa


de Suffolk:

[...] por cercar as terras comuns em Melford. 112[1:3:23]

E um terceiro:

Contra meu senhor, Thomas Horner, por dizer


Que o Duque de York era herdeiro legítimo do trono.113
[1:3:32]

108 O full of danger is the Duke of Gloucester/And the queens’ brothers haugth and proud./
And were they to be ruled and not to rule,/This sickly land might solace as before.
109 brothers haught and proud.
110 I tell you that Lord Saye hath gelded the commonwealth,/And made it an eunuch.
111 For keeping my house and lands and wife from me.
112 for enclosing the commons at Melford.
113 Against my master, Thomas Horner, for saying/That the Duke of York was rightful heir to
the throne.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 229

Elas estão sem sorte: o grupo se engana e se apresenta não a Glouces-


ter, mas a seu inimigo Suffolk, que está acompanhado da rainha Margaret,
sua amante. O grupo é tratado com desprezo por Suffolk e brutalidade por
Margaret, que, apoplética, rasga freneticamente as petições e expulsa a “ralé
ordinária”.114 [1:3:43].
Em outra cena, o Lorde Protetor é acusado de violar a lei ao punir crimi-
nosos, ao se apropriar do dinheiro dos impostos que cobrara para pagar os
soldados na França, ao vender cargos e cidades na França. Suffolk é acusado
pelos marinheiros antes de ser por eles assassinado: “por engolir os tesouros
do reino; por ter se tornado poderoso e rico; por estratagemas diabólicos; por
ter vendido Anjou e Maine à França”.115 [4:1:75].
No cerne de tudo está o bem comum, aquilo que é bom para todos e
beneficia a todos. Todos compartilham do mesmo reino. A autoridade do rei
deriva desse bem comum e a ele se dirige. Separada do bem comum, a realeza
se dissolve e se torna nada. Em Henrique VI Parte II, o rei declara:

Ficarei muito satisfeito com qualquer escolha


Que leve à glória de Deus e ao bem do reino.116 [5:1:26]

Tudo é feito em nome do rei e do bem comum. Esta é uma fórmula a ser
recitada. Ao descobrir as ações da duquesa de Gloucester em uma situação
que envolvera a prática de bruxaria, York declara:

O rei e o reino
Ficam em débito profundo convosco por esses trabalhos.117
[1:4: 43]

E o Cardinal Beaufort, ao acusar seu inimigo Gloucester de ambicionar a


coroa:

Protetor pernicioso, Par malicioso


Que ages assim contra o rei e o reino.118 [2:1: 22]

114 base scullions.


115 for swallowing the treasures of the realm’; for growing great and wealthy: ‘by devilish po-
licy’: for selling Anjou and Maine to the French.
116 I shall be well content with any choice/Tends to God’s glory and my country’s weal.
117 The king and common weal/Are deep indebted for this piece of pains: Henry II Part II.
118 Pernicious Protector, dangerous peer/That smooth’st it so with King and common weal.
230 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Ao confrontar sua esposa que caíra em desgraça e sabendo que seria o


próximo, Gloucester declara:

Madame, de minha parte, protesto aos céus


O quanto amei ao rei e ao reino.119 [2:1:207]

Não há espaço para adornos ou dissimulação aqui, nem para as “togas e


mantos de púrpura” de Lear, nenhum pecado que possa ser purgado com “pla-
cas de ouro”. Todos devem ser julgados pelo bem comum. O rei, a autoridade
soberana, em última instância decide o que é melhor para o bem comum. Este
é o próprio conceito de realeza. O rei deve tomar conselho, mas tendo ouvido
seus ministros, precisa decidir. Em Rei João, o rei convida uma delegação de
nobres para perguntar-lhes:120

O que gostaríeis de reformar, que não está bem


E vereis o contentamento
Com que ouvirei e deferirei vossos pedidos.121 [4:2:44]

Pembroke pede a libertação de Arthur, que havia sido preso pelo tio do rei.
Ele encerra seus argumentos fazendo um apelo ao bem comum:

[...] que o pedido


que nos ordenastes fazer, seja sua libertação;
pois para nós nada mais desejamos
senão nosso bem, que depende de vós, e assim
Considereis que é vosso bem libertá-lo.122[ 4:2:63]

O rei “reina” não “dá ordens”, diferença sutil, mas vital, pois “reinar” sugere
a realeza como autoridade impessoal para o bem comum, e não autoridade
pessoal para impor suas ordens ao povo. Entre o rei e o povo comum há uma
ligação, uma mutualidade fundamental. Ela constitui o fundamento do reino. O
povo comum precisa do rei para preservar e fazer avançar o bem comum. O
bem comum é de todos; o rei não pode ter um bem separado do bem do reino.

119 Madam, for myself, to heaven I do appeal/How I have loved my king and common weal.
120 W. Shakespeare, The History of King John in Complete Works of Shakespeare, Volume -, p.
121 What you would have reformed that is not well/And you shall hear how willingly/I will both
hear and grant you your requests.
122 let it be our suit/That you have bid us ask, his liberty;/Which for our goods we do not further
ask/Than whereupon our weal, on you depending/Counts it your weal to have his liberty.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 231

O rei, por sua vez, assim como o cônsul Coriolano, precisa do povo co-
mum para sua autoridade. Ele pode ser desprezado como “uma plebe ignara”123
(Love’s Labour’s Lost: Armado: 5:1:82);124 como um bando de “camponeses
rudes”125 (Henry VI Part II, Suffolk to Warwick: 3:2:212); mas é ele quem decide
o destino de reis e de cônsules. O duque de York — pai de Ricardo III — tem
ambições em relação ao trono. Ele incita Jack Cade:

A causar um tumulto, tão bem quanto possa [...]


Pois assim descobrirei o desejo do povo
E como ele vê a Casa e o demanda de York.126 [3:1:357, 372]

Importa-lhe o modo como o povo percebe suas credenciais para o trono.


Em Ricardo III, o Prefeito de Londres, desconfortável depois do assassinato
de Catesby a mando de Ricardo, sem nem mesmo a farsa de um julgamento,
concorda em:

[...] apresentar a nossos bons cidadãos


toda a justiça de vosso procedimento neste caso.127 [3:5:63]

Para tomar a coroa ao rei Eduardo, Ricardo de Gloucester tem que provar
que tem melhor título ao trono, por força de seu nascimento. Ele envia Buckin-
gham para que apresente seus argumentos diante do povo. Quando retorna,
Ricardo está impaciente para saber o resultado.
Ricardo:

Vamos, vamos! O que dizem os cidadãos?

Buckingham:

Juro pela mãe de nosso Senhor,

Os cidadãos permaneceram mudos, não disseram uma palavra sequer.


Ricardo:

123 rude multitude.


124 W. Shakespeare, Love’s Labour’s Lost in Complete Works of Shakespeare, Volume -, p.
125 stern untutored churls.
126 To make commotion, as full well he can /By this I shall perceive the commons’ mind/How
they affect the house and claim of York.
127 acquaint our duteous citizens/With all your just proceedings in this case.
232 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Mencionastes a bastardia dos filhos de Eduardo?128

Buckingham confirma que tudo mencionara. Ele relata a Ricardo os deta-


lhes de seu discurso e conclui:

E quando meu discurso chegou ao fim


Pedi-lhes que amassem o bem do reino
Gritando “Deus guarde a Ricardo, legítimo rei da Inglaterra”!

Ricardo:

E eles o fizeram?129

A resposta:

Não, valha-me Deus. Não disseram palavra,


Mas, como estátuas mudas ou pedras que respiram,
Entreolharam-se e empalideceram.130 [3:7:21]

Os bons cidadãos já não são assim tão bons. Ricardo:

Como pedras mudas ficaram? Não disseram nada?131 [3:7:42]

A resposta:

Juro-vos que não, meu senhor.132 [3:7:44]

Ricardo não pode tornar-se rei sem a aclamação do povo comum, não
importa o quão sólidas sejam suas credenciais hereditárias.
Começa a surgir uma nova imagem do corpo político. Longe de ser os pés,
o povo agora ocupa órgãos mais nobres. É mais do que uma questão de o rei
depender dele, como depende dos pés. É mais do que precisar de sua aclama-
ção para subir ao trono, embora isto seja necessário. O povo tem um papel e

128 Richard: How now, how now! What say the citizens?/Buckingham: Now, by the holy mother
of our Lord,The citizens are mum, say not a word./Richard: Touched you the bastardy of
Edward’s children?
129 And when mine oratory grew toward end/I bid them that did love their country’s good/Cry
‘God save Richard, England’s royal king!’/Richard: And did they say?
130 No, so God help me. They spake not a word,/But, like dumb statues or breathing stones,/
Stared each on other and looked deadly pale.
131 What tongueless blocks were they? Would they not speak?
132 No, by my troth, my lord.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 233

uma responsabilidade adicionais: o bem comum é seu bem; é a ele que o rei e
seus conselheiros devem prestar contas.
O povo, em resumo, é o guardião do bem comum. Ele não governa, nem
deseja governar, e talvez nem mesmo tenha a capacidade de fazê-lo: mas ele
quer um bom governo. Ele sabe a diferença entre um governo bom e um go-
verno ruim. Ele sabe quando o governo é corrupto ou incompetente, quando
os conselheiros e funcionários estão agindo para servir seus próprios interesses
e não o interesse comum.
O Conde de Warwick conquista grande estima133 entre o povo por seus:

Feitos, simplicidade e prudência.134 [1:1:188]

Quando o Duque de Gloucester, então Protetor, homem respeitado pelo


povo, é falsamente acusado de violar o bem comum e é assassinado, há uma
comoção popular:

O povo comum, como abelhas enfurecidas


Que, quando perdem seu líder, espalham-se por toda a parte
E não se importam com quem aferroam em sua vingança.
Eu mesmo contivera seu motim violento
Até ouvirem o modo de sua morte.135 [3:2:125]

Em lugar de reis e funcionários “darem ordens” ao povo, superiores co-


mandando inferiores, o governo é um instrumento, um meio, para realizar o
bem comum. Ele é construído para desempenhar uma função, realizar uma sé-
rie de tarefas, não para se desligar de seus fundamentos sociais e se tornar uma
fonte de poder independente.
Tais tendências são inevitáveis; distinções com base em riqueza e poder
são inescapáveis e alguns estarão mais aptos a governar que outros. Preservar
o bem comum significa conter essas tendências naturais. O governo é o servo
do bem comum e do povo comum, não seu senhor. Para governar bem, a auto-
ridade deve fazê-lo “sob os olhos do povo”. Note-se a expressão: “sob os olhos
do povo”. Ela encerra todo um mundo constitucional.

133 ‘greatest favour’.


134 Deeds, plainness, and housekeeping.
135 The commons, like an angry hive of bees,/That want their leader, scatter up and down/And
care not who they sting in his revenge./Myself have calmed their spleenful mutiny/Until
they hear the order of his death.
234 CADERNOS FGV DIREITO RIO

A infeliz Duquesa Eleanor, esposa de Gloucester, ao ser arrastada pelas


ruas em trajes humildes, antes de ser enviada para uma prisão distante, lamen-
ta-se com o marido:

Veja como eles perscrutam


Como a plebe ignorante aponta
E aprova, como lançam olhares sobre ti
Ah, Gloucester! Esconde-te desses olhares odiosos!136
[2:4:22]

Para Eleanor, presa ao registro elitizado, o povo ainda é a plebe ignorante.


A perspectiva a partir do registro popular é diferente: o povo comum está lá,
em toda a parte, sempre observando. Ele não é uma plebe ignorante nem um
bando de observadores volúveis das loucuras dos nobres; ele é, ao contrário,
o guardião do bem comum. Este é seu papel constitucional e seu dever, e seu
olhar atento é o instrumento para exercê-los.
Os nobres naturalmente resistem, uma vez que estão em jogo poder e
privilégios. Eles se referem ao povo como “um populacho ignaro”, “aldeões
analfabetos que desejam palavras doces” “abelhas enfurecidas que não se im-
portam com quem aferroam”.137 Eles não têm qualquer dúvida de que o reino
é deles, para dar ordens, seu patrimônio por direito de nascença. Eles definem
o bem comum segundo seus interesses; qualquer sentido mais profundo é trai-
ção e é perigoso o povo comum que defende tais sentidos.
Temos agora uma alternativa a esta visão, uma nova visão do corpo polí-
tico em que reclamações e queixas assumem um novo significado. Elas devem
ser vistas dentro da moldura do bem comum. A resposta tempestiva às quei-
xas, sejam elas contra nobres ou contra o governo, é um elemento essencial do
bem comum. As queixas mais políticas, longe de serem uma ameaça à harmo-
nia e à ordem, são sinais de problemas na conduta do governo e, portanto, de
ações danosas ao bem comum.
O povo aceita, talvez a contragosto, que o governo é mais bem conduzido
por outros, os escalões mais altos da sociedade. Mas esses escalões precisam
ser vigiados em relação à corrupção e à incompetência. Uma reclamação corri-
queira é a de que o rei não nomeou conselheiros capacitados, enquanto que o
risco de corrupção é omnipresente. Ceder a autoridade a uns poucos não dimi-
nui o papel do povo como guardião do bem comum: outros podem realizar as

136 Look how they gaze,/See how the giddy multitude do point/And nod their heads, and
throw their eyes on thee/Ah, Gloucester, hide thee from their hateful looks.
137 rude unpolished hinds’, illiterate townsmen to be flattered, ‘angry bees who care not who
they sting.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 235

funções de governo mas eles prestam contas ao povo. E devem fazê-lo, pois o
poder em estado bruto está com o povo.
Veja-se este diálogo ente Salisbury e o rei Henrique:

Admirável senhor, o povo comum enviou-me a dizer-vos


Que a menos que Lorde Suffolk seja imediatamente execu-
tado
Ou das doces terras inglesas banido
Eles pela força irão arrancá-lo de vosso palácio
Para torturá-lo e dar-lhe morte horrenda.138 [3:2:245]

Repetindo o refrão “eles dizem,” “eles dizem”, Salisbury narra as acusa-


ções que o povo comum fizera, denunciando os ilícitos de Suffolk, pelo que o
rei pede a Salisbury que lhes agradeça o “amoroso cuidado”139[3:2:283]. “Pri-
sioneiro das lentes do registro elitizado”, Suffolk não pode senão expressar
surpresa que “o populacho ignaro” pudesse enviar tal mensagem a seu sobe-
rano (3:2:274). Aos olhos de Suffolk, Lorde Salisbury, um dos grandes pares do
reino, merece o máximo desprezo pois:

Vós, meu senhor, vos agradastes da empreitada


Para fazer brilhar vossa excelência como orador.
Mas a única honra que Salisbury granjeou
Foi a de ser o Lorde Embaixador
Enviado ao rei pelo populacho.140 [3:2:276]

O rei é um homem piedoso, mas fraco (piedoso o suficiente para que sua
esposa Margaret proponha que ele se torne papa e passe a ostentar “uma trípli-
ce coroa “),141 saberia bem que “o populacho” era o povo em cujo nome reinava
e cujo julgamento rude contém uma realidade de grande força: força que vem
de ser a consciência do bem comum e o detentor do poder em estado puro.
Contra tal força, as pretensões dos grandes, dos criadores do registro elitizado
devem ter soado vazias a um rei sagaz.

138 Dread lord, the commons send you word by me/Unless Lord Suffolk straight be done to
death,/Or banished from fair England’s territories/They will by violence tear him from your
palace/And torture him with grievous death:
139 their tender loving care.
140 You, my lord, were glad to be employed/To show how quaint an orator you are./But all
the honour of Salisbury hath won/Is that he was the Lord Ambassador/Sent from a sort of
tinkers to the king.
141 ‘set the triple crown on his head’.
236 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Qual é o bem comum de que o povo é guardião? Será uma abstração que
pode receber qualquer significado? Serão os caprichos mutantes da “multidão
ignorante”? Será que tem um “fundo”, como Bottom perguntou a respeito de
sua experiência idílica com a rainha das Fadas? A resposta é que o bem comum
tem um significado definido; ele é uma noção bem desenvolvida e o povo, o
povo comum entende seu verdadeiro sentido. Qual é o “ reino” que está sendo
castrado e transformado em eunuco? O verdadeiro Jack Cade e seu bando de
Kent produziram duas “listas de Artigos em resposta à indagação do rei Henri-
que sobre seus pedidos”. O bem comum, de acordo com os artigos, está sendo
destruído pela perversidade dos conselheiros reais, pela opressão e pelo mau
governo. A culpa não é do rei, pois ele é impedido, pela corrupção daqueles
que o cercam, de reinar “como um verdadeiro monarca”. “Pessoas mesquinhas”
tomaram o lugar dos honrados e naturais conselheiros do rei e elas adminis-
tram o Privy Council142 e agem às escondidas do rei.
O povo comum paga o preço: ele é detido e encarcerado sem o julga-
mento requerido pela lei; é diariamente submetido à extorsão e opressão; não
tem coragem de fazer nada para proteger seus títulos de propriedade quando
suas terras são tomadas pelos “servos menores” do rei. O xerife e seus homens,
sobretudo os coletores de impostos, são opressores e exigem mais do que é
devido. A eleição dos cavaleiros do reino é corrupta, pois os grandes proprie-
tários de terras impõem seus homens em prejuízo daqueles que haviam sido
escolhidos pelo povo.
Os Artigos têm grande força porque se baseiam nos fundamentos da com-
preensão constitucional: toda pessoa, independentemente de sua posição hie-
rárquica, faz jus à proteção legal de seus direitos e liberdades; o bem comum
consiste em preservar o reino para o bem de todos e em respeitar o valor jurí-
dico de cada pessoa na distribuição desse bem. Este é o fundamento último do
constitucionalismo ocidental. Não é preciso que as coisas sejam assim e nem
todas as sociedades são organizadas dessa forma.
Para bem entender o significado dessa proposição precisaríamos ir mais
fundo nas fundações sociais das ordens constitucionais, naquilo que Giambat-
tista Vico chamou de “direito natural das nações”.143 Cada nação aprende, com
o tempo, seu direito natural. Ele é um direito natural em um sentido social:
significa a estrutura de relações sociais que cada nação estabelece de acordo
com sua necessidade e utilidade. Do direito natural das nações surge uma or-
dem constitucional para atender necessidade e utilidade, que estão fundadas

142 NT: Órgão composto pelos principais conselheiros do rei. No século XVII, detinha enorme
poder por sua capacidade de influenciar diretamente as políticas reais.
143 G. Vico, New Science: Principles of the New Science Concerning the Common Nature of
Nations (1744) (Penguin Books, 1999).
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 237

em relações sociais. Nós recebemos o legado da República Romana em que a


relação social fundamental é a igualdade cívica, não material — mas igualdade
em um sentido constitucional, jurídico.
Este sentido de igualdade, gostaria de sugerir, é o fundamento último do
pensamento constitucional ocidental, do qual derivam direitos, liberdades e
leis. Esse sentido de igualdade subjaz, e dá força, às reclamações e queixas do
povo comum. A igualdade, nesse sentido, é o princípio norteador do registro
popular do pensamento constitucional.144
Permitam-me ilustrar essa ideia com um último episódio da fascinante
saga de Jack Cade. Sentindo-se uma estrela em ascensão, Jack se torna mais
arrogante e anuncia seu programa:

[...]sete broas de meio vintém


serão vendidas por um vintém
barris com três aros terão dez aros145
e será crime beber cerveja aguada.
Todo o reino pertencerá a todos.146 [4:1:67]

O açougueiro o interrompe com um assunto mais urgente:

A primeira coisa a fazer é matar todos os advogados.147

Jack concorda e explica o porquê:

Sim, é o que pretendo fazer. Não é lamentável


Que a pele de uma ovelha inocente se torne pergaminho?
E que esse pergaminho, coberto pela escrita, possa desgra-
çar um homem?
Alguns dizem que as abelhas dão ferroadas, mas
Digo-vos que é a cera das abelhas que o faz. Pois bastou-me
uma vez colocar

144 See further: A. Schiavone, The Invention of Law in the West (Harvard University Press,
2012).
145 NT: Os aros de ferro serviam para manter juntas as tábuas que formam o barril. Ao aumen-
tar o número de aros de três para dez, Jack Cade parece indicar que em seu governo os
barris serão maiores, reforçando, assim, a ideia de abundância que marca seu discurso.
146 --- seven halfpenny/ loaves will be sold for a penny, /the three-hooped pot shall have ten
hoops, /and it will be a felon to drink small beer./All the realm shall be in common:
147 The first thing we do let’s kill all the lawyers.
238 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Meu selo148 em um documento, e nunca mais fui dono de meu


destino.149 [4:1:78]

Livros são proibidos e os clérigos enforcados por saberem escrever o pró-


prio nome; Lorde Saye é ridicularizado por “construir uma escola”; falar francês
é traição. Será que isto é prova de que o povo comum é, no fim das contas, uma
turba ignorante, intolerante e sanguinária? É o que parece pela perspectiva do
registro elitizado. Mas há outra explicação. Escolas, escrita e imprensa são uti-
lizados como instrumentos de opressão do povo comum. Um homem que não
sabe ler é incapaz de responder às acusações que lhe são feitas pelas autori-
dades, e elas são frequentemente em francês, língua que ele não compreende.
Latim, o outro idioma do Direito, oculta ao homem comum o conhecimento de
seus direitos de nascença. Manter o povo na ignorância é uma arma contra os
fracos150.
Jack Cade e seu fiel assistente, o açougueiro, são vilões assassinos. Como
é comum em movimentos populistas, Cade se torna ambicioso: ele irá “vestir”
todos os seus cidadãos-irmãos em libré, e nesta libré eles irão “venerar-me
como seu senhor”151. Sua “boca será o Parlamento da Inglaterra “152 [4:7:13]. À
medida que o caráter horroroso de sua ambição vai se tornando claro, seus
seguidores desaparecem, abandonando Cade a seu terrível destino. Mas, ainda
uma vez, é preciso que a personalidade não obscureça a causa: Cade se torna
um empecilho para vermos o profundo entendimento que o povo tem do que
seja o bem comum, em cujo cerne estão a noção de igualdade e o respeito que
dela emerge.
Será que encontramos, então, a resposta à indagação de Hume escondida
nos subterrâneos das peças de Shakespeare? Há indícios de um registro popu-
lar do pensamento constitucional, ancorado na realidade social e eficaz para
promover o bom governo? Certamente. O povo aceita a autoridade, e reconhe-
ce a lei de ferro da sociedade pela qual os poucos sempre governam; mas ele
insiste em ser bem governado. Tendo a capacidade de decidir quem governa,

148 NT: Nos documentos de maior formalidade, imprimia-se a marca dos interessados em um
lacre ou porção de cera quente afixada ao lado ou em lugar das assinaturas.
149 Nay, that I mean to do. Is this not a lamentable/thing that of the skin of an innocent lamb
should be made parchment? /That parchment, being scribbled o’er, should undo a man?/
Some say the bee stings, but
I say ‘tis the bee’s wax. For I did but seal once to a/Thing, and I was never my own
man since.
150 Nota do Editor: durante séculos, o idioma oficial dos procedimentos judiciais na Inglaterra
era o francês ou o latim e não o inglês, idioma falado pela maior parte dos ingleses mas não
adotado nos procedimentos da corte.
151 ‘worship me their lord’.
152 ‘mouth shall be the Parliament of England’.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 239

os meios para examinar o governo e o poder final para se livrar de governantes,


de substituir um grupo por outro, o povo é sempre o guardião do bem comum.
O povo comum é realista. Ele sabe que o bem comum nunca será plena-
mente realizado, que um conjunto de bens sociais básicos — proteção, respeito
e os recursos para viver uma vida remediada — é tudo o que ele pode esperar.
Ele sabe que a autoridade leva à ambição cega, que os “pretensiosos e arro-
gantes” sempre farão de tudo para aumentar sua autoridade, enriquecer-se e
criar um mundo separado do povo. Ele sabe que a autoridade sempre se valerá
de conceitos sofisticados — soberania, representação e consentimento — e se
adornará com símbolos de majestade e de pompa. Não obstante, ao manter as
autoridades sempre sob seus olhos, ao aplicar-lhes ferroadas quando ferroadas
são necessárias, ele sabe que os poucos podem ser contidos e controlados.
Por essas razões — complexas, sutis, mal-compreendidas — o povo deixa de
lado seu poder em estado puro e aquiesce com uma ordem social menos que
perfeita.
Esse é o “mistério das coisas” que Lear conseguiu ver, visão que o fez lou-
co. Mas não há nenhum modo, como vimos, de sair do palco. Lear e Cordélia
pelo menos aprendem que se trata de um palco. Esta revelação leva à resigna-
ção. O conhecimento permite o distanciamento, o olhar crítico, como o de uma
plateia, mesmo se para eles o palco tenha se tornado uma prisão, a exemplo
de Hamlet, para quem o mundo é simultaneamente palco e prisão, um cárcere
para a mente:

[...] E então, nada é


Nem bom, nem ruim, mas pensar o faz assim.
Para mim, uma prisão.153 [2:2:250]

Lear e Cordélia se reconciliam, mas não sabem que a lei de ferro da tragé-
dia lhes reserva ainda um último e terrível tributo. Por um breve instante, na-
quela reconciliação, a resignação de Lear é completa. É uma resignação sábia,
uma resignação que se distancia e quase se diverte com o “mistério das coisas”.
Deixemos que Lear, dirigindo-se a Cordélia, tenha a última palavra:

Vem, vamos para a prisão.


Nós dois sozinhos cantaremos como pássaros na gaiola.
Quando me pedires a bênção eu me ajoelharei e te pedirei
perdão.

153 […] for there is nothing/Either good or bad but thinking makes it so./To me it is a prison
[2:2:250].
240 CADERNOS FGV DIREITO RIO

E assim viveremos, rezando e cantando, lembrando de his-


tórias antigas,
Rindo enquanto ouvimos os pobres vagabundos contarem
as novidades
Sobre as borboletas douradas da corte.
E também vamos conversar com eles:
De quem perde e de quem ganha;
De quem vai e de quem fica;
E penetraremos o mistério das coisas como se fôssemos es-
piões de Deus;
E entre os muros da prisão sobreviveremos às seitas e parti-
dos dos poderosos,
Que sobem e descem como a maré debaixo da lua.154 [5:3:8]

Referências

A. N. Sherwin-White, The Roman Citizenship (Oxford University Press, 1973); C.


Nicolet, The World of the Citizen in Republican Rome (University of California
Press, 1980).

A. Patterson, Shakespeare and the Popular Voice (Basil Blackwell, 1989).

A. Schiavone, The Invention of Law in the West (Harvard University Press, 2012).

D.J.Galligan, “Populism and the Constitution” (Paper presented to the Founda-


tion for Law Justice and Society Workshop, Rye NYS, September 2013).

E. Burke, An Appeal from the New to the Old Whigs in Works of Edmund Burke
(Oxford University Press, 1907) Volume V:102-3.

E. P. Thompson, “The Moral Economy of the English Crowd in the Eighteenth


Century” (1971) 50 Past and Present 76-136.

154 […] Let’s away to prison./We two alone shall sing like birds i’th’ cage./When thou dost
ask me blessing, I’ll kneel down/And ask of thee forgiveness; so we’ll live,/And pray, and
sing, and tell old tales, and laugh/At gilded butterflies, and hear poor rogues/Talk of court
news, and we’ll talk with them too/ - Who loses, and who wins, who’s in, who’s out,/And
take upon’s the mystery of things/As if we were God’s spies; and we’ll wear out/In a walled
prison packs and sects of great ones/That ebb and flow by the moon [5:3:8].
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 241

Gerald Stourzh, From Vienna to Chicago and back: essays on intellectual his-
tory and political thought in Europe and America (University of Chicago Press,
2007).
G. Vico, New Science: Principles of the New Science Concerning the Com-
mon Nature of Nations (1744) (Penguin Books, 1999).

J.E. Green, The Eyes of the People: Democracy in an Age of Spectatorship


(Oxford University Press, 2011).

J. Scott, The Weapons of the Weak: Everyday Forms of Popular Resistance


(Yale University Press, 1985).

Hill, Christopher O Mundo de ponta-cabeça— Idéias radicais durante a Revolu-


ção Inglesa de 1640. Trad. Renato Janine Ribeiro. Companhia das Letras, 1987.

R. Weimann, Shakespeare and the Popular Tradition in the Theatre ((Baltimore,


1978).

Thompson, E. P. Economia moral da multidão na Inglaterra do século XVIII. trad.


Frederico Agoas e José Neves, Antigona, 2008.

SHAKESPEARE, William. Coriolano. Tradução: Barbara Heliodora. Rio de Janei-


ro: Nova Aguilar, 2004.

SHAKESPEARE, William. Sonhos de uma noite de verão. Tradução: F. Carlos


de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. São Paulo: Círculo do Livro, 1994.

W. Shakespeare, The First Part of the Contention in The Complete Works of


Shakespeare (ed) S. Wells and G. Taylor (Oxford University Press, 1987): Act
5:1:6.

W. Shakespeare, The Tempest in Complete Works of Shakespeare, Volume —,


p.-. See further: A. Patterson, Shakespeare and the Popular Voice, Chapter 7.

W. Shakespeare, The Tragedy of Hamlet, Prince of Denmark in Complete Works


of Shakespeare, Volume —, p. —. On Hamlet, see A. Patterson’s perceptive ac-
count: Shakespeare and the Popular Voice, Chapter 5.
NO LIMITE: A REPRESENTAÇÃO DO DIREITO
E DA ORDEM SOCIAL NÃO OFICIAIS NA SÉRIE
DE TELEVISÃO BREAKING BAD1
Manuel A. Gómez2

I. O retrato da justiça e direitos oficiais e não oficiais nas mídias


populares
Este ensaio discute a representação da justiça e direito não oficial na mídia
popular, e sua relação com o conceito de cultura jurídica. Quanto a este último,
o foco está nos valores, percepções, e imagens sobre o direito que são transmi-
tidos para o público por meio da popular série de televisão. Não é de interesse
a representação do direito oficial ou das instituições jurídicas que provêm do
Estado ou estão relacionadas a ele. Em vez disso, o foco está nos sistemas
normativos que originam, desenvolvem e operam fora do aparelho estatal, e
que são, na sua maioria, retratados como sendo contra ele. A popular série de
televisão Breaking Bad é utilizada como pano de fundo para a minha discussão.
Como parecem emergir dentro de um contexto específico fora do Esta-
do, eles são citados como sistemas jurídicos privados, não oficiais ou locais.3
Esses sistemas não oficiais são geralmente retratados como dependentes de
seus próprios conjuntos de normas, instituições e mecanismos de execução. Os
exemplos mais comuns dessas estruturas privadas de ordenação são as máfias,
gangues e outros grupos do submundo, como a família Corleone na trilogia O
Poderoso Chefão, a família Soprano na série Os Sopranos, e mais recentemen-

1 Traduzido do original em inglês por Flávio Jardim.


2 Diretor associado de Estudos de Pós-Graduação e Internacional, e Professor de Direito
da Faculdade de Direito da Florida International University. Gostaria de agradecer a Pe-
dro Fortes pelo amável convite para participar deste volume, e aos participantes da mesa
redonda de terça-feira na Florida International University pelos seus valiosos feedbacks e
comentários.
3 Consulte o trabalho Indigenous Law and Official Law in the Contemporary United States 1
(“Direito Local e Direito Oficial nos Estados Unidos Contemporâneo 1”), Simpósio em Bella-
gio, na Itália: State Institutions and Their Use of Folk Law: Theoretical and Practical Issues
(“Instituições de Estado e seu uso da Lei Popular: questões teóricas e práticas (21 a 25 de
setembro de 1981) (manuscrito não publicado) (em arquivo do autor) [daqui em diante
Direito Local, de Galanter]. Segundo Galanter, “por direito local (nós) não nos referimos
a alguma consciência popular difusa, mas a padrões concretos de ordenamento social en-
contrados em uma variedade de configurações institucionais.” Id. at 2.
244 CADERNOS FGV DIREITO RIO

te, a Organização Barksdale na famosa série de televisão da HBO The Wire, e o


cartel de drogas Vuente/Fring na série de televisão Breaking Bad.
Em cada uma dessas histórias, o tema envolve uma organização que pos-
sui uma estrutura hierárquica na qual os principais membros estão relacionados
entre si por meio de laços com múltiplas ramificações que incluem a família,
etnia e patrimônio comum. Os laços que resultam dessas conexões reforçam o
sentimento de identidade intergrupo e reforçam a cooperação.4 Os papéis em
cada uma dessas organizações também estão definidos claramente de cima
para baixo, e reconhecido tanto dentro como fora da organização. No núcleo
dessas ordens locais estão seus próprios conjuntos de “leis”, e mecanismos de
controle interno que garantem o cumprimento dessas leis. Nenhuma das leis
locais; no entanto, parecem estar incluídas em algum documento ou registro
escrito, o que não é de se surpreender dada a suposta natureza ilegal dessas
organizações. Apesar disso, nunca parece haver confusão quanto ao alcance e
os efeitos destas leis, ou os seus significados, os quais todos os membros pare-
cem compreender e respeitar.
Em termos de controle social interno, dependendo da gravidade da infra-
ção e da natureza da norma sendo violada, as sanções intergrupais geralmente
retratadas podem incluir multas e outras consequências econômicas, tais como
a perda de participação de mercado, uma comissão ganha, ou a imposição
de um imposto especial. No outro lado do espectro, as infrações mais graves
tendem a justificar sanções mais duras, tais como intimidação, danos físicos, ou
até mesmo a morte. Algumas sanções podem incluir vingança, retaliação, ou
a transmissão de informações às autoridades oficiais, para que essas últimas
possam, por sua vez, processar e punir o infrator.
Sanções intracomunitárias são geralmente decididas em processo sumário
no mais alto nível pelos chefes ou líderes, mas executadas por mandantes es-
pecialmente designados (por exemplo, Strinkum e Wee-Bey no The Wire, Luca
Brassi em O Poderoso Chefão, ou Tuco Salamanca em Breaking Bad) geral-
mente descritos como indivíduos sem escrúpulos e incondicionalmente leais a
seus patrões. As violações intergrupo, por outro lado, geralmente são tratadas
diretamente por organismos coletivos formados pelos chefes de cada família,
uma aliança de gangues ou cartéis de drogas, atuando como um tribunal de
última instância (por exemplo, o Conselho das Cinco famílias em O Poderoso
Chefão, ou a New Day Co-Op em The Wire). A eficácia de cada sistema é condi-
cionada por quem são seus membros, como eles interagem com outros grupos,
e também pela sua relação com o Estado, que é normalmente representada por
agências de aplicação da lei.

4 Consultar Why People Cooperate: The Role of Social Motivations (“Por que as pessoas co-
operam: a função dos motivadores sociais”) 34 (2011) de Tom R. Tyler.
NO LIMITE 245

A representação da mídia popular de como as organizações criminosas —


e outros exemplos de ordenação privada — operam, a sua suposta eficiência
interna, e a sua relação com o sistema jurídico oficial é mais provavelmente
uma versão idealizada e exagerada da vida real. Neste sentido, a cultura popu-
lar não pode ser considerada “um espelho preciso da real situação do direito
vivo”,5 uma representação precisa das relações sociais que essas leis deveriam
regular, ou até mesmo o conteúdo da própria lei. Não obstante, a cultura popu-
lar — ou, mais precisamente, os roteiristas e autores que produzem os progra-
mas de televisão e outras mídias em massa — criam e mantêm uma importante
conexão com as tradições, ideologias, e normas da sociedade mais ampla que
ela representa.
Cultura popular é tanto uma expressão retocada para os fenômenos so-
ciais reais, e também um influenciador; e considerando que as representações
oferecidas pela cultura popular podem ser preconceituosas ou parciais, elas
também ajudam a entender a dinâmica da vida real perante o sistema jurídico.
Além disso, a mídia popular reflete um determinado conjunto de valores, con-
ceitos e atitudes que certas pessoas têm sobre a lei (cultura jurídica), e por sua
vez contribui para remodelar e difundir valores semelhantes, ideias e atitudes
de volta para a sociedade, como em uma espécie de movimento bidirecional.
Além disso, o conceito de justiça, como um elemento chave em qualquer
relacionamento que envolve o sistema jurídico, não pode ser deixado de fora.
A mídia popular serve como um canal que transmite uma versão da justiça dos
roteiristas — por meio dos personagens que eles criam — para os telespecta-
dores, e desses para o resto da sociedade. Por outro lado, a visão de justiça do
público em geral é também suscetível a ser coletada e reinterpretada para ser
ainda divulgada pelas mídias populares; e assim o ciclo continua.
Em muitos filmes e séries de televisão relacionados com o direito o con-
ceito de justiça é apresentado em mais de uma maneira.6 A representação
mais evidente está associada ao sistema jurídico oficial e aos personagens que
interpretam os papéis de advogados, juízes e agentes policiais chamados para
defender o direito oficial, mesmo que isso exija que eles realizem atos heroi-
cos. Uma representação menos visível da justiça — mas não menos importante
— ocorre a nível não oficial, e envolve diferentes tipos de atores que vão de

5 Law, Lawyers, and Popular Culture, 98 (“Direito, Advogados e Cultura Popular”), de La-
wrence M. Friedman, The Yale Law Journal 1579, 1588 (1989). Para a versão em português,
veja Lawrence Friedman, Direito, Advogados e Cultura Popular, em Direito, Cultura Popular
e Cultura Clássica, Pedro Fortes (editor), volume 12 da série CADERNOS FGV DIREITO RIO
(2015).
6 Popular Culture, Legal Films, and Legal Film Critics (“Cultura popular, filmes jurídicos e
críticos de filmes jurídicos”), 40 de James R. Elkins, Loyola de Los Angeles Law Review 475
(2007).
246 CADERNOS FGV DIREITO RIO

cidadãos comuns, que exercem o papel de vigilantes que fazem a “justiça” com
as próprias mãos, a comunidades, organizações e outros grupos sociais, como
as empresas criminosas descritas acima, que imitam os tribunais e outras ins-
tituições estatais. O que é particularmente interessante sobre essas últimas é
o importante espaço ocupado pela percepção de justiça, mesmo entre alguns
dos personagens mais perversos retratados como fora da lei ou anti-heróis.
Em cada um dos filmes e séries de televisão mencionados acima, alguns
dos personagens retratados como criminosos parecem colocar uma grande
importância em sua própria versão de justiça, integridade e outros ideais ge-
ralmente associados com o sistema jurídico oficial. Seus códigos interorgani-
zacionais de conduta também parecem enfatizar a importância da honra, leal-
dade e, em alguns casos, o devido processo legal. Sua noção de justiça está,
naturalmente, a serviço da sua família, grupo ou empresa, e não dentro dos
interesses da sociedade em geral.
Isso contribui para mostrar que o direito e a justiça não são serviço exclu-
sivo do Estado, e que, mesmo nas camadas mais improváveis da sociedade,
as pessoas são capazes de desenvolver uma noção do que é certo e errado,
justo e injusto — embora de forma egoísta — independentemente do seu grau
de proximidade com o sistema jurídico oficial. Irei desenvolver essa ideia na
seção seguinte através das lentes da amplamente aclamada série de televisão
Breaking Bad, que fornece um bom exemplo de uma faceta de modo geral
inexplorada da relação entre o direito oficial e não oficial, e a interação entre
esses dois conceitos.

II. Direito não oficial e a ordem social em Breaking Bad


Uma das séries de televisão de maior audiência de todos os tempos, Breaking
Bad se desenvolveu ao longo de 62 episódios que foram ao ar nos Estados
Unidos entre 2008 e 2013. Durante a sua exibição, a série ganhou mais de cem
prêmios da indústria, incluindo dezesseis Primetime Emmy Awards, dois prê-
mios Peabody, e o Writers Guild of America Award for Television por dois anos
consecutivos. O sucesso de Breaking Bad inspirou o spin-off Better Call Saul,
uma versão dublada em espanhol chamada Metástasis, e também serviu como
inspiração para uma ópera contemporânea. Devido ao seu foco no comércio
ilegal de drogas e outros problemas relacionados, a série também provocou
um debate público sobre o seu potencial efeito nocivo sobre a sociedade ame-
ricana. Um promotor, por exemplo, acusou o programa de glorificar a fabrica-
ção e tráfico de metanfetamina7, uma das drogas ilegais mais perigosas nos
Estados Unidos.

7 Breaking Bad Normalizes Meth, Argues Prosecutor (“Breaking Bad normaliza mentafetami-
nas, argumenta o promotor”), 20 de setembro de 2013, de Blake Ewing; Ver também, How
NO LIMITE 247

A premissa do programa é a trágica história de Walter White, um pro-


fessor de química de uma escola pública de Albuquerque, do estado de Novo
México, nos EUA, que, ao ser diagnosticado com um câncer terminal se tornou
um fabricante e comerciante de metanfetamina cristalizada, a fim de ajudar a
fazer um pé de meia para sua esposa grávida e seu filho adolescente que sofria
de paralisia cerebral. White lançou seu perigoso empreendimento em parceria
com um ex-aluno, Jesse Pinkman, um traficante de drogas amador com conta-
tos no submundo. Logo após perceber o potencial sucesso econômico, que se
deve, em grande parte, aos seus produtos de alta qualidade, White e Pinkman
se uniram a um excêntrico chefão chamado Tuco Salamanca, e mais tarde à
organização do distribuidor Gustavo Fring, que por sua vez trabalhava para o
poderoso Cartel Juarez, liderado por Don Eladio Vuente. O efeito impactante
da história foi reforçado pelo fato de que o cunhado de White, Hank Schrader,
era um importante agente de repressão às drogas, cuja principal missão era
derrubar o comércio ilícito de drogas no estado do Novo México.
Breaking Bad é cheia de voltas e reviravoltas impressionantes, suspense, e
até mesmo uma certa dose de humor negro. A história central coloca alguns di-
lemas morais como a decisão de Walter White de “chutar o pau da barraca”8*9
e se transformar em um traficante implacável, a fim de sustentar sua família
antes de sua morte iminente.10 Outro personagem importante, Gustavo Fring,
se apresenta como um homem de negócios meticulosamente organizado com
um gosto sofisticado para a boa comida e a música, mas sua outra persona é a
de um traficante de drogas de sangue frio. Nesse último papel, Fring é o chefe
do cartel de drogas de maior sucesso do sudoeste americano, e associado de
longa data e provedor das regras do cartel Juarez Cartel, baseado no México,
de Don Eladio Vuente.
A presença do sistema jurídico oficial em Breaking Bad não é surpreenden-
te, considerando que o tráfico de drogas ilícitas é parte essencial da história. Ao
contrário de algumas outras séries relacionadas à lei, que tendem a destacar as
imperfeições da aplicação do direito oficial, mostrando o abuso policial, a cor-
rupção e a ineficiência; quase nenhuma delas ocorre em Breaking Bad. A repre-

Breaking Bad helped end the war on drugs (“Como Breaking Bad ajudou a acabar com a
guerra contra as drogas”) de 16 de agosto de 2013 de Stephen Marche; e Breaking Bad’s
failed American dream (“O fracasso do sonho americano de Breaking Bad”, de 11 de julho
de 2012 de Max Rivlin-Nadler.
8 *
Nota do Editor: A expressão Breaking Bad foi traduzida como sendo equivalente chutando
o pau da barraca em português.
9 Lily Rothman, Breaking Bad: What does that phrase actually mean? (“Breaking Bad: o que
essa frase realmente significa?”) 23 de setembro de 2013, Time. Disponível em: http://en-
tertainment.time.com/2013/09/23/breaking-bad-what-does-that-phrase-actually-mean/
10 Crime and Punishment: Greed, Pride and Guilt in Breaking Bad (“Crime e punição: ganância,
orgulho e culpa em Breaking Bad”, de Pablo Echart & Alberto N. García.
248 CADERNOS FGV DIREITO RIO

sentação do sistema jurídico oficial na série, o qual é retratado principalmente


por membros da Drug Enforcement Agency — DEA (Agência de Combate às
Drogas dos Estados Unidos) liderada por Hank Schrader, e, em menor grau,
pela força policial local, o sistema correcional do estado, e o advogado Saul
Goodman; é de um sistema que funcionava razoavelmente bem, administrado
por agentes competentes dispostos a sacrificar suas próprias vidas para o bem
da sociedade. Além de Schrader e seu colega Steven Gomez, que é morto en-
quanto estava em serviço, nenhum dos personagens que interpretam papéis
de aplicação do direito11 se tornaram conhecidos por seus atos heroicos, como
habitualmente ocorre em séries dessa natureza. Cada personagem agente da
lei na série parece realizar seu trabalho normalmente, e com exceção de Schra-
der, leva uma vida bem comum.
A personagem de Saul Goodman é, por outro lado, bastante singular. O
advogado extravagante que representa clientes duvidosos, e que se torna ad-
vogado da White e Pinkman, personifica o oposto do que um advogado ético
deveria se esforçar para ser. Seu comportamento estereotipado de um indiví-
duo faminto por dinheiro, com uma visão utilitarista do sistema jurídico, e sua
vontade de contornar qualquer regra possível no caminho de seu ganho pes-
soal, contribui para construir o caráter amoral de Goodman.12 Em ocasiões, no
entanto, Goodman parece trazer bom senso para seus clientes desesperados
e oferece-lhes conselhos práticos, mas também é rápido em ajudá-los a cobrir
seus rastros, lavar seu dinheiro, e se safar do sistema judicial.
Saul Goodman é, evidentemente, uma personagem interpretada de forma
exagerada, cujo desmedido comportamento antiético ridiculariza advogados,
ao mesmo tempo em que traz um eventual humor negro aos espectadores.
A personagem de Goodman se tornou tão popular que os escritores da série
decidiram criar uma adaptação centrada na carreira jurídica de Goodman antes
de ele conhecer Walter White. Esta prequela, que está sendo exibida no mo-
mento da redação deste documento, se chama Better Call Saul, que é o slogan
publicitário de Goodman em comerciais de TV e outdoors discretamente exibi-
dos em muitas das cenas de Breaking Bad.
Apesar das frequentes aparições de Hank Schrader, de seus colegas agen-
tes da lei, e do advogado Saul Goodman como representantes do sistema ju-
rídico oficial, a série também salienta a existência de um sistema de justiça
privado embutido nas organizações criminosas de Fring e Vuente. Essa ordem,

11 Nota do editor: a expressão original law enforcement não possui um conceito equivalente
em português e deveríamos criar um neologismo para expressar este enforcamento da lei.
12 Para uma discussão geral sobre ética legal na cultura popular, consulte Moral Pluck: Legal
Ethics in Popular Culture (“Determinação moral: ética legal na cultura popular”), 101, Colum-
bia Law Review 421 (2001).
NO LIMITE 249

que é exibida em pedaços durante toda a série, tem como foco principal a apli-
cação das regras por meio de sanções intracomunitárias efetuadas por pessoas
especialmente designadas que aparecem para seguir as ordens de seus chefes
sem hesitação. Na maioria das vezes, as hierarquias internas das organizações
criminosas descritas em Breaking Bad parecem estar bem definidas.
O grupo mais proeminente é o do Cartel Juárez, liderado por Don Eladio
Vuente, um personagem parecido ao poderoso chefão que também simboli-
za o estereótipo latino parecido ao Tony Montana no filme Scarface, a Força
do Poder. Em algum momento da série, um pouco da história sobre a relação
entre Vuente e seus antigos colegas de trabalho Gustavo Fring e Hector “Tio”
Salamanca é passada aos telespectadores. Durante a maior parte da série, no
entanto, Salamanca aparece como um homem doente e com uma deficiência
grave, provavelmente vítima de um AVC ou outra condição incapacitante, e
só se comunica por meio de um sino ligado à sua cadeira de rodas ou de suas
expressões faciais desesperadas. Durante sua juventude, fica evidente que Sa-
lamanca era um membro ativo do cartel e mandante de Vuente, embora ele
também parecesse ser admirado dentro de sua própria família.
Fring, por outro lado, aparece como um homem de negócios bem-esta-
belecido e calculista que usa sua bem-sucedida cadeia de fast food Los Pollos
Hermanos como uma fachada para seu laboratório de metanfetamina e outros
negócios relacionados a drogas ilícitas. Enquanto as operações de Vuente fi-
cavam restritas ao México, Fring e Salamanca atuavam apenas nos Estados
Unidos. Embora Eladio Vuente parecesse ser o líder mais influente e poderoso,
Fring e Salamanca tinham suas próprias áreas de influência e não se percebiam
totalmente subordinados a Vuente. Uma cena em particular na 3ª temporada
serve para ilustrar este ponto.
Ao saber de seu tio Hector que Walter White tinha matado seu primo “Tuco”,
Leonel e Marco Salamanca se dirigiram à casa de Walter para executá-lo. Quan-
do eles estavam prestes a realizar essa missão, uma mensagem de texto com a
palavra “Pollos” (tal como no restaurante de Gustavo Fring) fez com que eles
abortassem a missão e fossem a uma reunião entre Gus e Hector, onde Juan Bol-
sa (mais um dos associados a Vuente) atuou como mediador. Durante a reunião,
Fring convenceu os irmãos Salamanca a poupar a vida de Walter no momento,
porque ele o estava usando para produzir metanfetamina, e lhes propôs matar
Hank Schrader. As partes chegaram a um acordo, embora Fring o tenha violado
mais tarde, advertindo Hank, e passando informações sobre Juan Bolsa à polícia
mexicana. Pelo menos no sentido formal, o processo se assemelhou a uma me-
diação que poderia ter ocorrido dentro dos limites do sistema legal oficial.
A utilização da mediação como mecanismo de resolução de litígios na situ-
ação descrita acima parece ser a melhor opção dada a situação semelhante das
250 CADERNOS FGV DIREITO RIO

partes em conflito dentro da organização, e seu aparente interesse em manter


seu relacionamento de longo prazo. Juan Bolsa não era totalmente neutro, mas
seu papel como representante do Cartel de Juárez teve peso importante, e
mereceu certo respeito. A forma com que a mediação foi realizada, permitindo
que cada uma das partes apresentasse seus argumentos e propusesse uma so-
lução facilitada pela parte neutra, também mostrou a preocupação das partes
pela equidade processual. Embora usada em alguns casos, a mediação não foi,
de modo algum, o mecanismo preferido em Breaking Bad.
Ao longo da série, diferentes partes litigantes pareciam preferir lidar com
seus conflitos por meio de várias formas de autoajuda, incluindo intimidação
e violência. Isso é o que podemos constatar em uma das primeiras interações
entre Tuco Salamanca, Jesse Pinkman e Walter White, quando Tuco ameaça e
intimida Jesse e Walter, a fim de forçá-los a fechar um negócio. Outras cenas
semelhantes envolvem Victor, um dos capangas de Gustavo Fring, que costu-
mava utilizar a intimidação para forçar Walter a vender metanfetamina para
Fring a um preço fixo. Outro personagem contratado como carrasco e limpa-
dor de rastros foi Mike Ehrmantraut, um ex-policial que trabalha para Gus Fring,
e de vez em quando, para Saul Goodman. Diferentemente de todos os outros
pistoleiros da série, Mike pareceu ter mais discernimento e evitou ferir pessoas
inocentes ou transeuntes, o que o fez parecer uma pessoa justa.
O certo nível de ordem demonstrado pela maioria dos membros das orga-
nizações criminosas existentes em Breaking Bad, e sua obediência às normas e
códigos de conduta internos do seu grupo é muito diferente do que vemos no
comportamento de Walter White. Sua personagem passa de um fabricante de
medicamentos medroso e amador a um criminoso ambicioso, vaidoso e impla-
cável com tolerância zero para erros, e um grande desprezo pela compaixão
e lealdade.13 As ações aparentemente louváveis de Walter, como quando ele
tenta salvar Hank de seus algozes, ou quando ele pede a seus antigos amigos
Elliot e Gretchen Schwartz para criar um fundo para seus filhos com o dinheiro
ilegal, são prejudicadas pela sua conduta frequentemente fria e irracional.14
O comportamento desmedido e interpretado de forma exagerada de Walter
White em Breaking Bad oferece um contraste interessante com a conduta apa-
rentemente ordenada dos líderes do submundo, e seus subordinados. O de-
clínio caótico de White à anarquia não é apenas uma provocação ao sistema

13 Becoming Badass:Teaching Katz’s “Ways of the Badass” using the Breaking Bad Television
Series (“Tornando-se um vilão: ensinando as maneiras de se tornar um vilão de Katz usando
a série de televisão Breaking Bad”), 26, Journal of Criminal Education 94 (2015).
14 Morgan Fritz, Television from the Superlab: The Postmodern Serial Drama and the New
Petty Bourgeoisie in Breaking Bad (“Televisão do super laboratório: a série dramática pós-
-moderna e a nova e mesquinha burguesia em Breaking Bad”), Journal of American Studies
1 (2014).
NO LIMITE 251

jurídico oficial, mas — mais importante — à ordem normativa privada criada e


mantida pelos Fring, Vuente e até mesmo os Salamanca.

III. Conclusão
Apesar de ser uma manifestação manipulada dos fenômenos sociais reais, a
cultura popular é também um fator que ajuda a entender a dinâmica da vida
real perante o sistema legal. A cultura popular também tem o potencial de
fazer refletir um determinado conjunto de valores, conceitos e atitudes que
certas pessoas têm sobre o direito, tanto no nível oficial quanto no não oficial.
Uma série de televisão, como a Breaking Bad, cujo foco central não é apenas
sobre como o sistema jurídico formal responde ao crime, mas sim como as or-
ganizações criminosas regulam a si mesmas; oferece um exemplo interessante
de como os conceitos de direito e da justiça podem se desenvolver e receber
apoio fora do sistema jurídico formal. Enquanto a representação da ordem nor-
mativa privada em Breaking Bad é obviamente acentuada para dar um efeito
impactante, ela ajuda a compreender a relação entre direito e cultura, e “entre
o sistema jurídico em funcionamento e sua matriz social essencial”.15

Referências

Becoming Badass:Teaching Katz’s “Ways of the Badass” using the Breaking


Bad Television Series (“Tornando-se um vilão: ensinando as maneiras de se tor-
nar um vilão de Katz usando a série de televisão Breaking Bad”), 26, Journal of
Criminal Education 94 (2015).

ECHART, Pablo; GARCÍA, Alberto N. Crime and Punishment: Greed, Pride and
Guilt in Breaking Bad (“Crime e punição: ganância, orgulho e culpa em Breaking
Bad)”.

ELKINS, James R. Popular Culture, Legal Films, and Legal Film Critics (“Cultura
popular, filmes jurídicos e críticos de filmes jurídicos”), 40, Loyola de Los An-
geles Law Review 475 (2007).

EWING, Blake. Breaking Bad Normalizes Meth, Argues Prosecutor (“Breaking


Bad normaliza mentafetaminas, argumenta promotor”), 20 de setembro de
2013.

15 Law, Lawyers, and Popular Culture (“Direito, Advogados e Cultura Popular”) de Friedman,
1605.
252 CADERNOS FGV DIREITO RIO

FRIEDMAN, Lawrence M. Law, Lawyers, and Popular Culture, 98 (“Lei, Advoga-


dos e Cultura Popular”), de, The Yale Law Journal 1579, 1588 (1989).

FRITZ, Morgan. Television from the Superlab: The Postmodern Serial Drama and
the New Petty Bourgeoisie in Breaking Bad (“Televisão do super laboratório:
a série dramática pós-moderna e a nova e mesquinha burguesia em Breaking
Bad”), Journal of American Studies 1 (2014).

MARCHE, Stephen. How Breaking Bad helped end the war on drugs (“Como
Breaking Bad ajudou a acabar com a guerra contra as drogas”) de 16 de agosto
de 2013.

Moral Pluck: Legal Ethics in Popular Culture (“Determinação moral: ética legal
na cultura popular”), 101, Columbia Law Review 421 (2001).

RIVLIN-NADLER, Max. Breaking Bad’s failed American dream (“O fracasso do


sonho americano de Breaking Bad”), de 11 de julho de 2012.

ROTHMAN, Lily. Breaking Bad: What does that phrase actually mean? (“Bre-
aking Bad: o que essa frase realmente significa?”) 23 de setembro de 2013,
Time. Disponível em: http://entertainment.time.com/2013/09/23/breaking-
-bad-what-does-that-phrase-actually-mean/.

TYLER, Tom R. Why People Cooperate: The Role of Social Motivations (“Por
que as pessoas colaboram: a função dos motivadores sociais”) 34 (2011).
ATIVISMO CINEMATOGRÁFICO:
A DEFESA DE MINORIAS POR CINEASTAS1.
Pedro R. Fortes2

Introdução
Este ensaio analisa o “ativismo cinematográfico”, entendido como o fenômeno
da produção de filmes com uma ambição transformadora e foco na defesa dos
direitos de minorias. Em outras palavras, cineastas também podem funcionar
como ativistas da ação afirmativa. Existem diferentes maneiras em que as nar-
rativas podem propagar a proteção simbólica de indivíduos vulneráveis ​​dentro
de uma determinada sociedade. Um exemplo pródigo é a representação de uma
história dramática em que os personagens são vítimas de discriminação, como
consequência de sua crença religiosa, raça ou orientação sexual3. Outra for-
ma importante de estimular a transformação da sociedade por meio do cinema
provém de narrativas com elementos contraintuitivos que indicam o que deve
ser feito a fim de tornar a sociedade mais justa e mais igual. Inúmeros cineastas
expressam essas ambições transformadoras da sociedade em seus filmes4.
Questões sociojurídicas complexas podem ser apresentadas por meio de
sequencias de imagem e som. Neste sentido, o cinema pode disseminar ideias
transformadoras sobre direitos humanos, liberdades civis e políticas e direitos
das minorias em geral. As imagens de vídeo são capazes de representar con-

1 Uma versão deste trabalho em inglês foi publicada como capítulo do livro de Michael Asi-
mow, Kathryn Brown, and David Papke (eds), Law and Popular Culture: International Pers-
pectives (Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2014). A pesquisa foi apresentada no
seminário de pesquisa Law and Public Affairs na Faculdade de Direito de Oxford e em uma
conferência internacional na Universidade de Tilburg em 2013, estando o autor grato pelo
excelente feedback recebido e que foi incorporado ao texto.
2 Pedro Rubim Borges Fortes é professor da FGV DIREITO RIO. É graduado em direito pela
UFRJ, em administração pela PUC-Rio, LL.M. pela Harvard Law School, J.S.M. pela Stanford
Law School e doutorando em direito por Oxford. Foi professor visitante na WB NUJS em
Calcutá, na Índia, na Universidade Goethe, em Frankfurt, e pesquisador visitante no Instituto
Max Planck de Hamburgo, Alemanha. Dentre suas honras acadêmicas, foi professor home-
nageado em 2004, 2005 e 2011 e foi selecionado para o IV International Junior Faculty Fo-
rum em 2011. É ex-procurador do Banco Central e promotor de justiça no MPRJ desde 2000.
3 Michael Asimow and Shannon Mader, Law and Popular Culture: A Course Book (New York:
Peter Lang Publishing, 2007), 36.
4 Laurent Jullier, Analyser un film: de l´emotion à l´interpretation (Paris: Flammarion, 2012),
108-9.
254 CADERNOS FGV DIREITO RIO

trovérsias jurídicas em uma série de fragmentos visuais e, como tal, introduzir


aspectos-chave de questões complexas para grandes audiências e disseminar
os debates jurídicos da sociedade contemporânea. A literatura sobre a cultura
popular e o direito sugere que a televisão e cinema podem cultivar certas ideias
dentro das mentes dos espectadores sem plena consciência dessa influência
subconsciente5. Filmes podem comunicar ideias normativas que não são in-
feridas por meio de argumentos lógicos. Desde os irmãos Lumière e Georges
Méliès, os estudiosos têm debatido se o cinema constitui uma reprodução da
realidade ou uma fábrica artística de sonhos6. Em algum ponto intermediário,
imagens cinematográficas não são fatos, mas representações simbólicas e for-
mas de expressão que, de acordo com a escolha do diretor, podem expressar
ideias normativas sobre como a realidade deve ser. Assim, o cinema é ativista,
quando os cineastas produzem narrativas contendo instruções sobre como mi-
norias vulneráveis ​​devem ser protegidas.
Minorias se beneficiam deste ativismo cinematográfico para a sua eman-
cipação social, porque o poder é exercido na sociedade, não só por meio da
coerção e da violência, mas também de dominação cultural. Narrativas he-
gemônicas funcionam como meios ideológicos de controlar e subordinar os
oprimidos7. Valores tradicionais são difundidos como ideias de senso comum
mediante artefatos culturais, e essa hegemonia cultural pode consolidar assi-
metrias de poder — inclusive nas mentes das próprias minorias. Neste contexto,
a maioria dos filmes produzidos por Hollywood contém narrativas hegemôni-
cas, reproduz hierarquias sociais injustas e divulga os valores tradicionais para
o público. Em contraste, o ativismo cinematográfico produz narrativas contra-
-hegemônicas, denuncia injustiças e, assim, desafia o status quo. Elas narrativas
contra-hegemônicas objetivam desconstruir ideias dominantes cultivadas por
narrativas hegemônicas e, em consequencia, defender as minorias contra a dis-
criminação com base em religião, raça ou orientação sexual.

Valeria um filme mais do que mil palavras jurídicas?


De acordo com um ditado americano bem conhecido, “uma imagem vale mais
que mil palavras”. Este provérbio do século XX transmite o pensamento de
que as imagens podem representar ideias complexas e facilitar a aquisição de
conhecimentos por meio da expressão audiovisual. Neste sentido, os cineastas
muitas vezes podem abrir importantes fóruns para debates jurídicos comple-

5 Asimow and Mader, Law and Popular Culture, 54-8.


6 Benjamin Beil, Jürgen Kühnel, and Christian Neuhaus, Studienhandbuch filmanalyse: Ästhe-
tik und Dramaturgie des Spielfilms (München: Wilhelm Fink, 2012), 23-4.
7 Antonio Gramsci expandiu o concept de ideologia, incluindo aspectos culturais dentre os
materiais ideológicos da classe dominante em seus cadernos do cárcere. See Antonio Gra-
msci, Prison notebooks — volume II. (New York: Columbia University Press, 1996), 52-3.
ATIVISMO CINEMATOGRÁFICO 255

xos. Isso ocorre não só em dramas de tribunais, mas também em filmes do


cinema contemporâneo que confrontam os espectadores com dilemas jurí-
dicos significativos do nosso tempo. Por exemplo, um filme de “ação” pode
desencadear intensas discussões sobre os direitos humanos internacionais, a
responsabilidade social das empresas e da chamada “maldição da abundância”
debatida entre os estudiosos no campo do direito e desenvolvimento. Isso é o
que Diamante de Sangue (2006) nos proporciona com seu relato da relação
entre o comércio de diamantes e as violações de direitos humanos na África.
Este filme conseguiu condensar as implicações sociojurídicas de um proble-
ma complexo em um thriller de 143 minutos e revelou como o comércio da
joia financia o conflito militar8. Além da enorme bilheteria e ser indicado para
cinco estatuetas do oscar, Diamante de Sangue foi muito elogiado pela Anis-
tia Internacional e pela Human Rights Watch como sendo meio extremamente
importante para compreender essas questões complexas. Este filme não é ape-
nas bom entretenimento, mas também um fragmento do discurso internacional
dos direitos humanos. As películas não são substitutas para livros jurídicos ou
decisões judiciais, mas podem oferecer instantâneos de ideias normativas im-
portantes. Neste caso, por exemplo, o retrato cinematográfico de um conflito
militar financiado pela indústria de mineração aumentou a consciência global
sobre a questão, rotulando um bem de consumo desejável como uma merca-
doria manchada — e mostrando a necessidade da certificação internacional de
joias. Diamante de Sangue não é um exemplo isolado.
Vários filmes recentes transmitem ideais normativas por meio de suas
narrativas. Uma série de exemplos vem dos documentários de Michael Moo-
re. O premiado Tiros de Columbine (2002) é uma crítica profunda da Segun-
da Emenda da Constituição dos Estados Unidos e da noção de que o “direito
do povo de manter e portar armas não deve ser infringido.” Fahrenheit 9/11
(2004) discute a legitimidade da guerra contra o terrorismo e também abor-
da a perda de liberdades civis e políticas após o ataque terrorista Al Qaeda
contra os Estados Unidos. Em Sicko — SOS Saúde (2007) Moore discute o
sistema de saúde americano, comparando e contrastando-a com o Canadá,
Cuba e França, onde os cidadãos têm acesso a hospitais públicos, médi-
cos e medicina a um baixo custo. Mais recentemente, em Capitalismo: Uma
Estória de Amor (2009) Moore denuncia a injustiça do sistema financeiro
americano, abordando exemplos de captura regulatória. Em cada um des-

8 Para uma detalhada análise sociojurídica do comércio de diamantes na Africa, veja Greg
Campbell, Blood diamonds: tracing the deadly path of the world´s most precious stones
(Boulder: Westview press, 2002); Janine Roberts, Glitter & Greed: the secret world of the
diamond cartel (New York. Disinformation Co, 2003); Tom Zoellner, The heartless stones
(New York: St. Martin’s press, 2006).
256 CADERNOS FGV DIREITO RIO

ses filmes, Moore condensa questões jurídicas extremamente complexas em


snapshots audiovisuais — controle de armamentos no contexto de tiroteios
em escolas; liberdades civis no contexto da guerra contra o terror; saúde
como um direito econômico, social, cultural e fornecido pelo Estado; erosão
do sistema financeiro por lobbies poderosos; e a relação do congresso e dos
reguladores com grupos de interesses especiais. Moore mostra ao público o
quão facilmente alguém pode comprar balas nos Estados Unidos e questiona
se massacres escolares estão relacionados com o acesso irrestrito a armas e
munições. Ele também mostra as despesas de assistência médica nos Esta-
dos Unidos e exibe imagens de pacientes americanos chocados ao descobrir
serviços equivalentes e mais baratos em outros lugares. Ilustrando o efeito
corrosivo do dinheiro na capital do país, Moore brinda a audiência com uma
imagem de vários deputados dos Estados Unidos com balões mostrando a
quantidade de contribuições de campanha que cada um tinha recebido dos
lobistas que deveriam regular. Como mencionado, essas imagens não são
substitutas para a literatura jurídica sobre as questões subjacentes9, mas va-
lem a pena pelo menos mil palavras como uma expressão de síntese dessas
controvérsias legais e regulamentares. Esses documentários têm o mérito de
enquadrar debates jurídicos importantes para grandes audiências, expondo
os principais aspectos do argumento, e de elevar a consciência de uma pla-
teia internacional sobre esses conflitos de interesse. Mesmo que Moore não
seja um advogado e seu gênero não seja o drama de tribunal tradicional, suas
narrativas retratam conflitos sociojurídicos que são roteirizados para influen-
ciar a forma como o espectador percebe o controle de armas, terrorismo,
saúde e do sistema financeiro.
De acordo com a “análise de cultivação”, a televisão influencia as pers-
pectivas de espectadores frequentes10. A literatura acadêmica sobre a cultura
popular e o direito também sugere que o cinema pode ter um impacto gran-
de, moldando a perspectiva do público sobre questões jurídicas11. Também se
pode argumentar que há uma relação recíproca entre o direito e a cultura po-
pular. Por um lado, a prática jurídica inspira produtores de cinema para criar
representações ficcionais de dramas de tribunal e desenvolver narrativas que
reproduzem ou discutem controvérsias sociojurídicas. Por outro lado, a prática
jurídica também é moldada pelo cinema, na medida em que espectadores (in-
cluindo, em muitos casos, aqueles que decidem se tornar advogados) podem

9 Eu tenho em mente, por exemplo, dentre outros: Lawrence Lessig, Republic, lost: how money
corrupts congress and a plan to stop it (New York: Twelve, 2011); Mark Tushnet, Out of range:
why the constitution can´t end the battle over guns (Oxford: Oxford University Press, 2007).
10 George Gerbner, “Cultivation analysis: an overview”, Mass communication & society, 3/4
(1998): 175-94.
11 Asimow and Mader, Law and Popular Culture, 54-8.
ATIVISMO CINEMATOGRÁFICO 257

desenvolver suas perspectivas sobre a profissão legal, o sistema judicial e a


própria justiça por meio do cinema12.

Contêm os filmes ideias normativas?


Filmes podem assumir a forma de expressões visuais como síntese de dilemas
complexos e narrativas que transmitem ideias morais13. No entanto, isso não
significa necessariamente que conclusões normativas podem ser logicamente
inferidas a partir de filmes. De acordo com uma lição bem conhecida de David
Hume, as declarações morais não podem ser logicamente inferidas a partir de
declarações factuais14. Por exemplo, pode ser verdade que (1) a compra de
diamantes provenientes de regiões em conflito na África está a financiar a com-
pra de equipamentos militares e que (2) estes equipamentos militares estão a
causar a morte de milhões de indivíduos. No entanto, a verdade das afirmações
(1) e (2) não significa que alguém poderia logicamente inferir que não devemos
comprar diamantes provenientes de regiões em conflito na África. Raciocínio
factual não fornece uma base suficiente para enunciados morais, uma vez que
as operações lógicas envolvidas na análise dos fatos (o que é e o que não é)
seriam ontologicamente distintas da análise moral (o que deveria ou não deve-
ria ser). Neste sentido, a moralidade não seria uma questão de fato, mas uma
questão de valores15.
No contexto específico do cinema, esta investigação filosófica pode nos
convidar a uma reflexão sobre a possibilidade de se inferir logicamente con-
clusões morais a partir de filmes. Poderia um espectador inferir logicamente
a partir de Diamante de Sangue que não devemos comprar diamantes prove-
nientes de regiões em conflito em África? A discussão preliminar sobre esta
questão está relacionada com o status dos materiais audiovisuais. Como men-
cionado acima, as imagens cinematográficas não necessariamente correspon-
dem a fatos, mas são expressões simbólicas. Filmes são feitos principalmente
para o entretenimento, e materiais de ficção geralmente contêm mensagens
de exonerações de responsabilidade em relação à semelhança de personagens
com pessoas reais. Portanto, as condições de verdade de uma declaração logi-
camente válida podem ser consideradas ausentes do universo do cinema. Por
outro lado, a narrativa artística de uma película pode conter elementos norma-

12 Para ensaios sobre como a cultura pop influencia a prática jurídica, veja, por exemplo, La-
wrence Friedman, “Law, lawyers, and pop culture”, Yale Law Journal, 98 (1989): 1579-1606;
Richard K Sherwin. Law and Popular Culture in Austin Sarat (ed.), The Blackwell Companion
to Law and Society, Oxford: Blackwell Publishing Ltd (2004).
13 Jullier, Analyser un film, 26.
14 David Hume, A treatise of human nature, David Fate Norton and Mary J. Norton (eds),
(Oxford: Oxford University Press, 2000), 293-302.
15 Hume, A treatise of human nature, 302-6.
258 CADERNOS FGV DIREITO RIO

tivos e transmitir mensagens morais. Por meio de técnicas cinematográficas,


Diamante de Sangue critica claramente o conflito militar na Serra Leoa em re-
lação a questões de direitos humanos internacionais relativas ao comércio de
diamantes. Nesse sentido, mesmo que o filme não contenha uma sequência de
afirmações verdadeiras de fato, a cadeia de imagens e som que é editada de
acordo com a perspectiva do diretor pode, contudo, incluir elementos norma-
tivos. Em outras palavras, o conteúdo normativo de filmes não é derivado da
verdade de imagens, mas a partir dos valores que moldam a sua narrativa. São
estes valores que podem transformar filmes em pedaços de filosofia prática em
que os problemas éticos são descritos e apresentados a um público amplo16.
Às vezes, uma narrativa é centrada na história e a presença do contador
de histórias é relativamente discreta; em outras ocasiões, o contador de his-
tórias é central e claramente narra o filme. Michael Moore aparece em todos
os seus documentários fazendo perguntas não só a diferentes entrevistados,
mas também aos espectadores. A clara presença do narrador ajuda a comuni-
car as ideias normativas do filme, eis que ele identifica e discute as questões
em jogo em uma determinada controvérsia. Moore não é, certamente, um
contador de histórias tímido17. O público pode identificar facilmente a sua
agenda política, ouvindo seus comentários, perguntas, ironias e críticas como
de esquerda, liberal democrata. Em contraste com documentários de Moore,
a maioria dos filmes de Hollywood contém uma normatividade implícita. Por
exemplo, Diamante de Sangue é contado a partir de uma sequencia de ima-
gens e som sem qualquer intervenção óbvia do diretor. No entanto, ideias
normativas ainda fazem parte da narrativa do filme, desde a sua representa-
ção de personagens, técnicas de edição e o roteiro — que constituem uma crí-
tica moral de conflitos militares financiados pelo comércio de diamantes. Um
exemplo nítido das ideias éticas contidas nas películas é encontrado em sua
cena final: a conferência em Kimberly, África do Sul, que levou ao Sistema de
Certificação do Processo de Kimberley. Ao associar esta conferência com um
típico “final feliz” Hollywoodiano, o filme demonstra sutilmente apoio a esta
iniciativa como uma solução potencial para as violações dos direitos humanos
anteriormente descritos.
Ambições dos cineastas em suas representações de controvérsias socio-
jurídicas indicam se um filme contém elementos normativos em sua narrativa.
Alguns filmes têm ambições mais descritivas, enquanto outros poderiam ser
classificados como tendo os elementos transformadores que visam provocar

16 Jullier, Analyser un film, 133.


17 A distinção entre narrador tímido e narcisístico pode ser encontrada em Jullier, Analyser un
film, 65.
ATIVISMO CINEMATOGRÁFICO 259

mudanças no mundo real18. Esta última categoria inclui ficções preventivas


(narrativas que descrevem cenários negativos que são ignorados no mundo
real), em que o filme tenta transmitir que o problema permanecerá sem solu-
ção se a sociedade não intervier. Ambições transformadoras também incluem
ficções votivas — narrativas que retratam histórias contraintuitivas que suge-
rem uma leitura moral do que deve ser feito e indicam sutilmente as ambições
transformadoras do filme19. Meu ponto é que o impacto ético de um filme não
pode ser logicamente inferido a partir de uma análise científica das suas ima-
gens e sons, mas sim por meio de uma apreciação holística e interpretação da
estrutura narrativa do trabalho e dos valores que ela encarna20.

Precisam as minorias do ativismo cinematográfico?


Como a análise fílmica, entendimentos do significado e conteúdo da lei va-
riam. Por exemplo, os juristas têm repetidamente sua atenção voltada para a
questão de quais os grupos sociais devem ser legalmente reconhecidos como
“minorias separadas e insulares” conforme a famosa nota 4 de United States v.
Carolene Products Company, 304 US 144 (1938). Deveriam, por exemplo, “os
indivíduos pobres” ser reconhecidos como membros de um grupo minoritário
e, portanto, ter direito a cuidados de saúde gratuitos? Deveriam moradores de
áreas de conflito na África ser considerados como “pessoas vulneráveis” com
direito a proteção especial por parte da comunidade internacional? As respos-
tas a estas e outras questões dependem das posições políticas dos legisladores
dentro de um determinado sistema jurídico.
No contexto do filme, o reconhecimento das minorias depende das esco-
lhas narrativas feitas por cineastas dentro de um determinado filme. Em con-
traste com Sicko — SOS Saúde, de Michael Moore, alguns filmes retratam per-
sonagens pobres como indivíduos ignorantes, preguiçosos que não merecem
empatia ou proteção. Um exemplo é encontrado no subenredo de Menina de
Ouro (2004), em que a mãe da pugilista se recusa a receber uma casa de sua
filha, pois pode pôr em perigo os pagamentos de seguridade social e benefícios
médicos. Descrevendo os pobres como “white trash”, a narrativa cinematográ-
fica não convida a plateia a apoiar cuidados de saúde gratuitos para a popula-
ção. Em contraste com a narrativa de Diamantes de Sangue, um exemplo mais
sutil revela que personagens africanas não são sempre protegidos no cinema:
em Um Príncipe em Nova Iorque (1988), um príncipe africano se muda para

18 A classificação entre ambição descritiva e transformadora pode ser encontrada em Jullier,


Analyser un film, 101-12.
19 A distinção entre ambição preventiva e votiva pode ser encontrada em Jullier, Analyser un
film, 108-112.
20 A distinção entre ambição preventiva e votiva pode ser encontrada em Jullier, Analyser un
film, 17-22.
260 CADERNOS FGV DIREITO RIO

Nova York em busca de uma rainha, simplesmente porque não existe mulher
suficientemente interessante para ele em todo o continente africano. De acordo
com a narrativa, as mulheres africanas são subservientes, como mostrado por
uma cena em que uma possível noiva fica em um pé e late, a fim de demonstrar
que ela foi treinada para ser totalmente obediente ao marido. Esta cena pro-
move a ideia de que as mulheres africanas não são nem independentes, nem
adequadas como parceiras, e que o príncipe deve buscar sua esposa nos Esta-
dos Unidos. Assim, indivíduos pobres e personagens africanas não são sempre
construídos através de uma lente positiva em uma determinada narrativa.
Ao contrário, a maioria dos filmes de Hollywood contém narrativas tra-
dicionais que reproduzem assimetrias de poder que existem no seio da so-
ciedade. Por exemplo, o cinema Hollywood tradicional costuma descrever a
busca de amor entre personagens brancos heterossexuais, que são, ao final,
unidos como par romântico. Enquanto há tipicamente um conflito que exige
uma resolução no desfecho dessas narrativas românticas, o problema raramen-
te é devido à religião, raça, orientação sexual ou de gênero das personagens.
Por exemplo, em Mensagem pra você (1998) os protagonistas são separados
porque o protagonista masculino tem medo de admitir a sua contraparte fe-
minina que sua família é proprietária de uma enorme cadeia de livrarias que
ameaça a existência de sua livraria familiar de esquina. Em Como Perder um
Homem em 10 Dias (2003), os personagens são distanciados pelo fato de que
eles se conheceram quando a protagonista feminina tinha sido encarregada de
escrever um artigo para uma revista feminina sobre os erros clássicos que as
mulheres cometem e as levam a “perder um cara”. Outro exemplo é Como se
fosse a primeira vez (2004), em que uma amnésia bizarra interfere com relacio-
namento de um casal, já que a heroína esquece tudo sobre o dia anterior após
uma noite regular de sono. Dezenas de outros exemplos poderiam ser dados
para demonstrar que a maioria dos filmes de Hollywood contém um elemento
de conflito baseado não na religião, raça ou orientação sexual, mas em um ar-
tifício narrativo que é artificial e facilmente superado21. Ao não fornecer uma
plataforma para se discutir as questões prementes da sociedade contemporâ-
nea, Hollywood reforça as ideologias dominantes. Na verdade, ao se recusar
a discutir essas questões, Hollywood, paradoxalmente, reconhece a condição
destes conflitos enquanto controvérsias sociojurídicas sensíveis — tabus.

21 O elemento fantástico em O Curioso Caso de Benjamin Button (2008) é o fato de a perso-


nagem gradualmente se tornar jovem ao longo do tempo, o que afasta os protagonistas.
Em Ghost (1990), ‘a morte os separa’, já que o herói é morto e ainda continua a proteger sua
amada com o apoio de uma médium. Em contraste, o herói em Highlander (1986) é imortal,
o que impede ele de ter uma vida normal e uma estória de amor regular.
ATIVISMO CINEMATOGRÁFICO 261

De acordo com Gramsci22, artefatos culturais apoiam a manutenção do


poder dentro das sociedades. Sua teoria da hegemonia cultural identifica a im-
portância da ideologia como meio de controle e subordinação. Portanto, assi-
metrias de poder podem ser mascaradas pela hegemonia cultural que resulta
na defesa pela classe trabalhadora de ideias que são prejudiciais para eles e
benéficas para a burguesia. Alienação cultural implica uma crença ideológica
alimentada por ideias hegemônicas que são defendidas por indivíduos que es-
tão subordinados e oprimidos pelo mesmo sistema de valores que defendem.
Originalmente, Gramsci estava preocupado com a burguesia e o proletariado,
em linha com o marxismo23, mas leituras pós-marxistas de alienação cultural ex-
pandiram essa análise para incluir opressão e subordinação baseada não só na
pobreza, mas também sobre as origens nacionais, crença religiosa, orientação
sexual e raça24. Estereótipos associados com a religião tem danificado a reputa-
ção das minorias durante séculos, Shylock de O Mercador de Veneza e Klingsor
de Parsifal sendo exemplos de estereótipos judaicos — de Shakespeare e Wag-
ner, respectivamente25 — que alimentaram a opressão e a violência no mundo.
Artefatos culturais contribuíram para a opressão, violência e assassinato em
massa de milhões de judeus na história recente, servindo como propaganda
ideológica dirigida contra esta minoria religiosa. Além disso, minorias raciais e
indivíduos LGBT também foram retratados de forma negativa desde os anos de
silêncio de Hollywood. Por exemplo, O Nascimento de uma Nação (1915) retrata
membros da Ku Klux Klan como heróis e homens afro-americanos como pouco
inteligentes e sexualmente agressivos em relação às mulheres brancas. Em A
Florida Enchantment (1914), Lillian engole uma semente mágica e se transforma
em um homem, Lawrence; seu marido Fred também muda sua orientação sexu-
al depois de engolir uma semente mágica e, por conta disso, é perseguido por
uma multidão enfurecida; no final, é revelado que Lillian apenas teve um sonho
horrível. Este filme é o primeiro a incluir uma temática LGBT, mas reforça os
estereótipos de gênero, descrevendo a experiência como um pesadelo.
Estes exemplos sugerem que minorias poderiam se beneficiar de ativis-
mo cinematográfico. Narrativas hegemônicas nutrem as percepções dos es-

22 Sua teoria cultural é encontrada em muitas partes diferentes do seu trabalho, mas é suma-
rizada em Gramsci, Prison notebooks, vol. II, 52-3.
23 Gramsci, Prison notebooks, vol. I, 42-64.
24 Eu tenho em mente especialmente a tradição post-colonialista e trabalhos como Edward
Said, Culture and imperialism (New York: Vintage, 1994); Edward Said, Orientalism (New
York: Vintage, 1979).
25 Uma crítica cultural do caráter social da obra de Wagner — especialmente o anti-Semitismo
em Parsifal — pode ser encontrada em Theodor Adorno, In search of Wagner (London:
Verso, 2005), 8-17. Uma breve nota sobre como Shakespeare abertamente se aproximou
da classe social dominante e produziu arte aristocrática pode ser encontrada em Gramsci,
Prison notebooks, vol. II, 123.
262 CADERNOS FGV DIREITO RIO

pectadores frequentes, cujos valores são moldados pela cultura popular que
consomem por meio de televisão e filmes. Por intermédio da cultivação, os
telespectadores podem reproduzir os estereótipos expressos pelos artefatos
culturais sem necessariamente estar consciente do impacto dessa hegemo-
nia cultural em suas mentes. Casais românticos de Hollywood são geralmente
compostos por ricos, brancos, indivíduos heterossexuais, e essa caracterização
padrão pode impactar percepções do espectador sobre a mistura de raça ou
casais homossexuais. Entre 1930 e 1968, o retrato de casais miscigenados nas
telas hollywoodianas era restrito por diretrizes de censura estabelecidas pelo
Código de Produção. De acordo com estas diretrizes de censura, a miscige-
nação (relações sexuais entre pessoas de raças diferentes) e qualquer suges-
tão de “perversão sexual” (relativos à intimidade sexual entre indivíduos do
mesmo sexo) foram estritamente proibidas26. Com exceção de algumas raras
concessões — como dois homens dançando juntos no Wonder Bar (1934) —
Hollywood cultivava a noção de que as relações normais consistem de amor
romântico entre indivíduos heterossexuais da mesma etnia. O ativismo cine-
matográfico é necessário para desconstruir tais discursos hegemônicos e para
proteger as minorias da opressão cultural e subordinação social — ideologica-
mente suportada pelas narrativas dominantes que excluem sistematicamente
os não brancos, não heterossexuais e outras minorias representadas na tela.

Quando os cineastas defendem as minorias?


O ativismo cinematográfico pode desenvolver narrativas contra-hegemônicas
de várias maneiras. Por exemplo, Quentin Tarantino produz fantasias que são
separadas da tradição realista, mas suas histórias provocadoras são capazes de
desconstruir suposições tradicionais. Por exemplo, o escravo liberto que caça
bandidos brancos em Django Livre (2012) e o esquadrão militar judaico secreto
que assassina Hitler em Bastardos Inglórios (2009) são peças de ficção inacre-
ditáveis, mas que podem emancipar minorias simbolicamente. Essas narrati-
vas fantásticas reinventam a história e colocam minorias subordinadas em uma
posição hierarquicamente diferente. Nestes filmes, um afro-americano pode
montar um cavalo, carregar uma arma, ou jantar com um senhor de engenho
do Sul dos Estados Unidos no século XIX, e soldados judeus podem interrogar
e torturar opositores nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. O público,
obviamente, entende que estas são narrativas ficcionais, mas a popularidade
destes filmes também indica que os espectadores apreciam essas narrativas
contra-hegemônicas em que são atribuídos papéis poderosos aos indivíduos
oprimidos dentro das sociedades injustas. Sua vingança simbólica nesses fil-

26 Asimow and Mader, Law and Popular Culture, 22-4; 205-07.


ATIVISMO CINEMATOGRÁFICO 263

mes lembra à audiência que essas minorias merecem proteção jurídica especial
como compensação por seu sofrimento na história recente. Nesse sentido, sua
justificação ficcional na tela pode servir de apoio à reivindicação de seus direi-
tos nas sociedades contemporâneas.
Minorias também podem ser protegidas no cinema mediante de histórias
realistas. Em O Pianista (2002), Roman Polanski abre a narrativa com imagens
de Varsóvia no final de 1930, pouco antes da invasão alemã, e demonstra aos
espectadores que ele está trazendo uma história real. A trama traça as memó-
rias biográficas do pianista judeu polonês Wladyslaw Szpilman durante a Se-
gunda Guerra Mundial e cobre os episódios históricos relevantes da ocupação
alemã — incluindo a revolta do gueto de Varsóvia, o transporte de judeus para
campos de concentração a partir da Umschlagplatz e a destruição de Varsóvia
após o levante polonês. Retratando a vida de uma personagem como uma bio-
grafia filmada, os telespectadores são muitas vezes atraídos pela ideia de que
eles estão assistindo a uma história real dentro da estrutura especial de tempo
biográfico27 e sentem empatia com os personagens que sofrem injustiças28. No
caso deste filme, Polanski foi ele próprio um sobrevivente do Holocausto judeu
da Varsóvia ocupada e sempre quis gravar suas próprias memórias do tempo
de guerra em um de seus filmes. Portanto, O Pianista também contém recor-
dações do diretor, que foi elogiado por sua objetividade, embora a narrativa
retrate uma visão subjetiva de Varsóvia ocupada29. Em última análise, o perso-
nagem principal sobreviveu por causa da simpatia e proteção de um pequeno
número de indivíduos que conseguiu desafiar a ocupação nazista.
Outro filme de guerra épica com uma mensagem equivalente é Lista de
Schindler (1993), uma obra que conta a história de um empresário alemão
(Oskar Schindler) que salvou cerca de mil judeus poloneses do Holocausto,
empregando-os em sua fábrica na zona ocupada de Cracóvia. Este filme em-
prega estilo visual típico das biografias filmadas. Ele foi filmado em preto e
branco e com câmeras de mão para aumentar a impressão de um documentá-
rio de guerra. O diretor Steven Spielberg considera seu primeiro filme com uma
mensagem mais profunda e confessou ter dificuldades em filmá-lo por causa
de suas próprias raízes judaicas e familiares que sobreviveram ao holocausto30.
Em relação à representação do caráter de Oskar Schindler, sua transformação
de um simpatizante nazista a um protetor dos judeus era para ser sutil e gra-

27 A dimensão especial do tempo biográfico no cinema é ressaltada por Beil, Kühnel, and
Neuhaus, Studienhandbuch filmanalyse: Ästhetik und Dramaturgie des Spielfilms, 278-9.
28 Asimow and Mader, Law and Popular Culture, 36.
29 James Greenberg, Roman Polanski: seine Filme, sein Leben. (München: Knesebeck, 2013),
208-12.
30 Richard Schickel, Steven Spielberg: seine Filme, sein Leben. (München: Knesebeck,
2012),157-62.
264 CADERNOS FGV DIREITO RIO

dual. Uma menina vestida em vermelho é o único personagem colorido, e sua


execução marca não só a mudança de Schindler, mas também simboliza o fato
de que os Estados Unidos, Grã-Bretanha, e Rússia sabiam a respeito da dizi-
mação dos judeus poloneses e, na opinião de Spielberg, não tomaram medidas
concretas para interromper o holocausto31. Neste sentido, o filme carrega a
forte mensagem normativa que as minorias religiosas devem ser protegidas.
Após o sucesso de bilheteria do filme, Spielberg criou a Fundação Shoah para
registrar e preservar testemunhos de sobreviventes do Holocausto para as fu-
turas gerações.
Outros filmes também carregam fortes mensagens normativas de que as
minorias raciais devem ser protegidas. Cabana do Pai Tomás (1927) e O Sol é
para Todos (1962) são exemplos controversos, em que personagens afro-ame-
ricanos são considerados virtuosos, na medida em que são vítimas de diferentes
formas nas mãos dos brancos. Como explicam Asimow e Mader, o público pode
sentir empatia com “a representação de um homem negro sofrendo em termos
diferentes, porém semelhantes a Cristo.” 32 No entanto, alguns espectadores
podem simplesmente internalizar as hierarquias sociais reproduzidas nesses
filmes e desenvolver a ideia de que os indivíduos oprimidos exigem a proteção
de bem-intencionados advogados — porém socialmente e economicamente fa-
vorecidos por serem brancos. Hollywood raramente elenca atores negros para
o papel de advogados, Filadélfia (1993), sendo uma das poucas exceções. A
vida de ativista dos direitos civis e Supremo Tribunal de Justiça, Thurgood Mar-
shall, inspirou um brilhante monólogo teatral estrelado por Lawrence Fishburne
na Broadway, embora Thurgood (2011) não possa ser descrito como um filme
biográfico. Exceto por uma breve aparição em Tempos de glória (1989) e um
recente documentário biográfico, o líder abolicionista Frederick Douglass ainda
aguarda uma biografia dramática filmada adequada. Hollywood também não
produziu homenagens merecidas para Martin Luther King Jr. e outros líderes
do movimento dos direitos civis, como Rosa Parks. A Rosa Parks Story (2002),
por exemplo, foi um filme produzido apenas para a televisão.
Na data da elaboração deste ensaio, o único filme de Hollywood dedi-
cado a um líder Afro-americano é Malcolm X (1992). Este filme dramatiza a
biografia de Malcolm X, desde sua carreira criminosa até seu assassinato, e
também descreve sua conversão ao Islã e seus pontos de vista sobre a luta
racial nos Estados Unidos. Um elemento narrativo importante neste filme é o
uso de flashbacks, que gradualmente revelam mais sobre a personagem, me-
mórias de discriminação como uma criança e de seus problemas familiares. O
arco de desenvolvimento da personagem fornece explicações possíveis para a

31 Schickel, Steven Spielberg: seine Filme, sein Leben, 160-1.


32 Asimow and Mader, Law and Popular Culture, 36.
ATIVISMO CINEMATOGRÁFICO 265

sua transformação em um importante líder Afro-americano. Em entrevistas, o


diretor Spike Lee admitiu ter uma ambição transformadora em seus filmes. Em
Malcolm X, Lee pediu o apoio financeiro dos membros proeminentes da co-
munidade negra para ser capaz de manter sua liberdade artística e de realizar
esta imagem em movimento da maneira em que ele tinha imaginado. Seu filme
condensa o discurso emancipatório de Malcolm X, comunicando os complexos
desafios da luta racial a um público amplo e difunde a idéia normative de que
todas as pessoas devem ser tratadas igualmente. Esta mensagem é clara desde
o início do filme, que abre com uma bandeira americana queimando junto com
a imagem de Rodney King sendo espancado nas ruas de Los Angeles e voz do
ator Denzel Washington citando Malcolm X: “nós não vemos o sonho america-
no; temos experimentado apenas o pesadelo americano”.
Esta mensagem estava presente em filmes anteriores de Lee, como Faça
a Coisa Certa (1989) e Febre da Selva (1991). Cada um destes filmes mostra as
dificuldades de relações inter-raciais nos Estados Unidos. Este assunto já tinha
sido explorado em Adivinhe quem vem para jantar (1967). Em contraste com o
complicado relacionamento romântico em A Febre da Selva, este filme apoia o
casamento inter-racial. Ele forneceu uma poderosa narrativa contra-hegemôni-
ca, representando de forma positiva a relação romântica entre um médico ne-
gro e sua noiva branca. Como tanto o noivo e a noiva tem que persuadir os seus
pais liberais para aceitar seu casamento, esta narrativa contém a mensagem
normativa de que os casais não devem ser julgados pela cor de sua pele e que
o amor pode transcender o preconceito. O lançamento do filme coincidiu com
decisão histórica da Suprema Corte dos Estados Unidos em Loving v. Virginia,
388 US 1 (1967), que derrubou as leis em 17 estados que proibiam o casamento
inter-racial. A narrativa contra-hegemônica de Adivinhe Quem Vem para Jantar
pode ser vista como um importante artefato cultural que ajudou a desconstruir
a oposição generalizada ao casamento inter-racial nos Estados Unidos, convi-
dando o público a discutir o preconceito racial e refletir sobre este complexa
questão sociojurídica. Este filme também conteve o primeiro beijo inter-racial
em Hollywood, já que o Código de Produção expressamente proibia qualquer
intimidade entre os personagens brancos e negros até os anos 1960.
Relações do mesmo sexo também foram censuradas em Hollywood até o
final dos anos 1960 e personagens LGBT foram condenados a permanecer em
um “armário de celulóide” durante décadas33. Uma vez que a censura acabou,
no entanto, os personagens LGBT foram muitas vezes retratados no cinema
por meio de estereótipos cruéis. Por exemplo, em O Silêncio dos Inocentes
(1991) e Instinto Selvagem (1992) o papel do vilão sanguinário é atribuído a

33 Uma análise ampla deste fenômenono pode ser encontrado em Russo, Vito. Celluloid clo-
set: homosexuality in the movies (New York: Harper and Row, 1987).
266 CADERNOS FGV DIREITO RIO

um travesti e uma lésbica, respectivamente. Não foi até Filadelfia (1993) que
personagens gays foram retratados de forma positiva na tela34. Nos últimos
anos, os filmes de Hollywood têm repetidamente denunciado a homofobia
e, pelo menos simbolicamente, têm protegido os indivíduos LGBT. Meninos
Não Choram (1999) conta a história dramática de um homem transgênero,
Brandon Teena (anatomicamente uma mulher e originalmente chamado de
Teena Brandon) sendo estuprada e assassinada por dois conhecidos de sua
namorada. O Segredo de Brokeback Mountain (2005) narra o romance proi-
bido entre dois cowboys que têm relações sexuais por mais de duas décadas
até que um deles é assassinado. Milk (2008) é a biografia do ativista dos
direitos gay Harvey Milk desde o início de sua carreira política em San Fran-
cisco até o ataque que terminou sua vida. Todas estas narrativas provocam
empatia no público por meio da representação da violência brutal e injusta
cometida contra personagens LGBT. Brokeback Mountain disseminou a uma
vasta audiência a questão sociojurídica complexa de casamento do mesmo
sexo discutido pela Suprema Corte dos Estados Unidos em Hollingsworth v.
Perry 570 US (2013) e United States v. Windsor 570 US (2013). No entanto,
ao retratar o sofrimento dos protagonistas e condenar a violência cometida
contra eles, esta narrativa contra-hegemônica transforma esses personagens
gays em mártires simbólicos da causa do casamento do mesmo gênero. A
mensagem normativa de Brokeback Mountain é que a sociedade deveria le-
galizar, aceitar e proteger os casamentos do mesmo gênero. Como outros
exemplos do ativismo cinematográfico, este filme também tem uma ambição
transformadora clara e visa proteger as minorias por meio da promulgação de
uma narrativa contra-hegemônica.

Conclusão
Os estudos culturais tradicionalmente referem-se a “hegemonia cultural”35 ao
descrever como a televisão influencia a perspectiva dos espectadores frequen-
tes por meio da cultivção de ideias tradicionais36. A literatura sobre a cultura
popular e o direito sugere que o cinema pode também moldar perspectivas dos
espectadores sobre determinadas questões37, mas não há nenhuma evidência
científica que sugira que as ideias de uma pessoa são influenciadas pelos filmes
a que assistem. Este ensaio tem explorado este assunto, centrando-se sobre o
trabalho de cineastas com uma ambição transformadora, cujas películas con-
têm ideias normativas sobre como as minorias devem ser protegidas. Esses

34 Asimow and Mader, Law and Popular Culture, 207.


35 Gramsci, Prison notebooks, vol. III, 64-5.
36 Gerbner, “Cultivation analysis: an overview”, 175-94.
37 Asimow and Mader, Law and Popular Culture, 54-8.
ATIVISMO CINEMATOGRÁFICO 267

cineastas esperam influenciar seus públicos e intervir ativamente em debates e


controvérsias legais em matéria de religião, raça e orientação sexual.
Além disso, estudos empíricos são necessários para examinar à medida
que os espectadores são influenciados por essas narrativas contra-hegemôni-
cas de ativismo cinematográfico. Pode ser difícil realizar esses estudos entre
o público estadunidense, já que as ideias normativas veiculadas em filmes são
muitas vezes simultaneamente discutidas no Congresso, tribunais e academia.
Por outro lado, seria interessante examinar a influência do ativismo cinemato-
gráfico em países onde as ideias normativas relevantes de um filme não foram
discutidas em arenas políticas no momento da sua transmissão. Por exemplo, o
Brasil não tem uma fonte normativa sólida (lei, precedente, doutrina ou traba-
lho acadêmico) para decidir os casos sobre o Holocausto, o casamento do mes-
mo gênero ou cotas raciais. No entanto, em uma série de decisões marcantes,
as minorias têm sido protegidas pelo Supremo Tribunal Federal. Por exemplo, o
tribunal manteve a condenação de Siegfried Ellwanger por publicação e venda
de livros que negavam a existência do holocausto (STF — HC 82.424 / RS —
2003); derrubou, por unanimidade, a cláusula do Código Civil que restringe o
casamento às relações entre um homem e uma mulher, reconhecendo-se judi-
cialmente a validade do casamento do mesmo gênero (STF — ADPF 132-2011);
aprovou, por unanimidade, as cotas raciais para 20% dos estudantes negros na
Universidade de Brasília (STF — ADPF 186-2012). Obviamente, nenhums das
sentenças judiciais citou filmes como O Pianista, Brokeback Mountain ou Faça
a coisa certa, mas os juízes também não dispunham das fontes tradicionais do
direito para seu juízo de valor. Teriam os valores divulgados por meio do ati-
vismo cinematográfico sido influentes no sentido de incentivar a proteção das
minorias nestes casos marcantes?
Finalmente, é importante reconhecer que o impacto do ativismo cine-
matográfico na mentalidade dos indivíduos e sua capacidade de estimular a
mudança legal não podem ser facilmente comprovados por dados científicos.
Em contraste com dados quantitativos utilizados para demonstrar o efeito da
cultivação38, o ensaio explorou maneiras em que algumas narrativas contra-he-
gemônicas podem moldar as perspectivas das audiências sobre o casamento
do mesmo gênero, relacionamento inter-racial, e a proteção das minorias reli-
giosas. Diretores de cinema podem ter essa ambição transformadora, mas será
que eles realmente conseguem proteger as minorias por meio de seus filmes?
Neste estágio, a influência do ativismo cinematográfico depende de nossos
pontos de vista sobre como os filmes em geral podem moldar opiniões sociais.
Nesta fase exploratória da pesquisa, este ensaio examinou os casos em que os

38 A metodologia usada, por exemplo, por Gerbner, “Cultivation analysis”, 175-94.


268 CADERNOS FGV DIREITO RIO

cineastas procuram defender as minorias, mas deixa em aberto a questão de


saber se o ativismo cinematográfico pode atingir esse objetivo na prática.

Bibliografia

ADORNO, Theodor. In Search of Wagner. London: Verso, 2005.

ASIMOW, Michael. “When Harry met Perry and Larry: Criminal defense lawyers
in television”, Berkeley J. Ent. & Sports L. 1 (2012): 77—98.

ASIMOW, Michael and Shannon Mader, Law and Popular Culture: A Course
Book. New York: Peter Lang Publishing, 2007.

BEIL, Benjamin, Jürgen Kühnel, Christian Neuhaus. Studienhandbuch filmanaly-


se: Ästhetik und Dramaturgie des Spielfilms. München: Wilhelm Fink, 2012.

CAMPBELL, Greg. Blood diamonds: tracing the deadly path of the world´s most
precious stones. Boulder: Westview Press, 2002.

FRIEDMAN, Lawrence. “Law, lawyers, and pop culture”, Yale Law Journal 98
(1989): 1579-1606.

GERBNER, George. “Cultivation analysis: An Overview”, (3/4) Mass communi-


cation & society (1998): 175-194.

GRAMSCI, Antonio. Prison notebooks. 3 vols. New York: Columbia University


Press, 1996.

GREENBERG, James. Roman Polanski: seine Filme, sein Leben. München: Kne-
sebeck, 2013.

HUME, David. A Treatise of Human Nature. David Fate Norton and Mary J. Nor-
ton (eds). Oxford: Oxford University Press, 2000.

JOLY, Martine. Introduction à l´analyse de l´image. Paris: Armand Colin, 2009.

JULLIER, Laurent. Analyser un film: de l´emotion à l´interpretation. Paris: Flam-


marion, 2012.
ATIVISMO CINEMATOGRÁFICO 269

LESSIG, Lawrence. Republic, lost: how money corrupts congress and a plan to
stop it. New York: Twelve, 2011.

ROBERTS, Janine. Glitter & Greed: the secret world of the diamond cartel. New
York. Disinformation Co., 2003.

RUSSO, Vito. Celluloid closet: homosexuality in the movies. New York: Harper
and Row, 1987.

SAID, Edward. Culture and Imperialism. New York: Vintage, 1994.

________. Orientalism. New York: Vintage, 1979.

SCHICKEL, Richard. Steven Spielberg: seine Filme, sein Leben. München: Kne-
sebeck, 2012.

SHERWIN, Richard K. Law and Popular Culture in Austin Sarat (ed.), The Bla-
ckwell Companion to Law and Society. Oxford: Blackwell Publishing Ltd, 2004.

TUSHNET, Mark. Out of range: why the constitution can´t end the battle over
guns. Oxford: Oxford University Press, 2007.

ZOELLNER, Tom. The Heartless Stones. New York: St. Martin’s Press, 2006.
270 CADERNOS FGV DIREITO RIO
Este livro foi produzido pela FGV DIREITO RIO,
composto com a família tipográfica Gotham
e impresso em papel offset,
no ano de 2015.
CadernosFGVDIREITORIO
ISBN 978-85-63265-60-9

Você também pode gostar