Cadernos FGV DIREITO RIO - Vol. 12
Cadernos FGV DIREITO RIO - Vol. 12
Cadernos FGV DIREITO RIO - Vol. 12
APRESENTAÇÃO
Pedro Rubim Borges Fortes
INTRODUÇÃO
Pedro Rubim Borges Fortes
ATIVISMO CINEMATOGRÁFICO:
A DEFESA DE MINORIAS POR CINEASTAS.
Pedro R. Fortes
Todos os direitos desta edição reservados à FGV DIREITO RIO
CDD — 340
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 7
INTRODUÇÃO 9
ATIVISMO CINEMATOGRÁFICO:
A DEFESA DE MINORIAS POR CINEASTAS. 253
Pedro R. Fortes
APRESENTAÇÃO
A série Cadernos FGV DIREITO RIO acompanha a escola desde seu início como
um espaço privilegiado de reflexão sobre ensino jurídico. Desde a edição inau-
gural de 2005 — quando se publicou seu projeto pedagógico e um estudo do
professor Roberto Mangabeira Unger sobre quais deveriam ser as característi-
cas básicas de uma nova faculdade de direito no Brasil — as publicações têm
trazido uma coleção de artigos, pareceres e relatórios sobre diversas experiên-
cias acadêmicas marcantes da trajetória da FGV DIREITO RIO.
Assim, os cadernos têm funcionado como fórum de discussão teórica e prá-
tica sobre perspectivas pedagógicas, a saber, estratégia de ensino, estrutura das
aulas e composição do currículo. Têm-se, ainda, feito o registro histórico de prá-
ticas acadêmicas diversas, tais como a construção da disciplina Teoria do Direito
Constitucional, de uma prática jurídica qualificada e do ensino do direito por
meio do cinema ou da literatura. Edições foram especialmente dedicadas a cer-
tas metodologias específicas, tais como o estudo de caso — método participati-
vo característico da proposta inovadora de ensino da escola — e a pesquisa jurí-
dica etnográfica — sendo também a pesquisa empírica uma marca registrada da
FGV DIREITO RIO. Outros exemplares, por sua vez, resgataram textos históricos
sobre ensino jurídico, brindando nossos leitores com autores clássicos como Al-
fredo Lamy Filho, Gilberto Freyre e San Tiago Dantas, por exemplo. Funcionando
dentro do espírito da escola como um espaço livre de debates e não hierarqui-
zado, desde um artigo sobre a simplificação da linguagem jurídica em 2006, de
autoria de João Zacharias de Sá, a série já publicou dezenas de textos de nossos
alunos com diversas reflexões sobre variados assuntos. Recentes volumes explo-
raram os temas da Globalização do ensino jurídico e Formação da advocacia con-
temporânea, contendo trabalhos inéditos de renomados autores internacionais
como Helena Alviar, Bryant Garth e Rogelio Perez-Perdomo preparados espe-
cialmente para a nossa série, além de ensaios originais de importantes professo-
res brasileiros. Finalmente, nosso último volume trouxe justamente uma série de
experiências acadêmicas inovadoras com Ensino Jurídico, Cultura Pop e Cultura
Clássica, de maneira que possui um conteúdo complementar a este título.
8 CADERNOS FGV DIREITO RIO
A série Cadernos FGV DIREITO RIO está publicando simultaneamente dois vo-
lumes sobre a relação entre o fenômeno jurídico e a manifestação artística,
seja popular ou clássica. Este volume 12 cuida da relação entre Direito, Cultura
Pop e Cultura Clássica, ao passo que o volume 11 discorreu sobre experiências
inovadoras de Ensino Jurídico, Cultura Pop e Cultura Clássica. Assim, estamos
celebrando o pioneirismo dos professores Gabriel Lacerda e José Garcez Ghi-
rardi, que lecionam cursos respectivamente sobre ‘Direito e Cinema’ no Rio de
Janeiro e sobre ‘Direito e Artes’, em São Paulo. Se o volume anterior apresen-
tou experiências pedagógicas inovadoras, o presente título traz ensaios com
reflexões profundas sobre a relação entre o direito e mídias, fotografia, vide-
ogames, rock, jazz, poesia, literatura, ópera, teatro, séries de televisão e cine-
ma. Esta coleção de ensaios apresenta uma série de trabalhos de professores
renomados do Brasil e do exterior com reflexões sobre a reflexividade entre o
fenômeno jurídico e a expressão artística.
Começamos nossa viagem pelo universo do direito e da cultura pop a
partir da tradução de um texto seminal sobre o tema, a saber, o artigo ‘Direi-
to, Advogados e Cultura Popular’ publicado originalmente há 25 anos no Yale
Law Journal pelo professor Lawrence Friedman, da Stanford Law School. Neste
trabalho clássico sobre a reflexividade entre direito e cultura pop, Lawrence
explica que a cultura jurídica de uma sociedade é influenciada decisivamente
pela representação do fenômeno jurídico na cultura pop, salientando o fato de
que os membros de uma sociedade aprendem direito por meio dos produtos
culturais consumidos como telespectadores. Grande expoente do movimento
Law and Society e autor da expressão cultura jurídica, Lawrence tem por ponto
de partida como o surgimento do automóvel transformou a mobilidade urbana,
o comportamento individualista e nossa interação jurídica. Posteriormente, seu
texto aprofunda a tese da cultura jurídica popular como um reflexo das nor-
mas sociais, discute a relação entre cultura jurídica popular e cultura jurídica e
evidencia como a cultura pop serve como um indicador das formas de autori-
dade presentes em uma determinada sociedade. Ao longo do texto, Lawrence
10 CADERNOS FGV DIREITO RIO
Por sua vez, o professor Manuel Gomez, da FIU College of Law, explora o
universo das séries de televisão com seu ensaio ‘No Limite: A Representação
do Direito e da Ordem Social Não Oficial na Série de Televisão Breaking Bad’.
Manuel discute a representação do direito e da justiça não oficiais na mídia
popular, e sua relação com o conceito de cultura jurídica, por meio da popular
série de televisão Breaking Bad. O Vice-Diretor da Faculdade de Direito da
Florida International University enfoca nos sistemas normativos que se origi-
nam, desenvolvem e operam no submundo, a margem do sistema estatal ou
até mesmo contra o Estado. Manuel explica que estas representações eviden-
ciam que o direito e a justiça não são produtos exclusivos do Estado e que
mesmo no universo improvável das gangues de traficantes são desenvolvidos
certos conceitos sobre o que é certo e errado, bem como o justo e o injusto.
O ensaio conclui que a cultura pop ajuda a conectar tradições, ideologias e
normas sociais com imagens, percepções e valores das pessoas com relação
ao direito.
Finalmente, nossa viagem pelo universo do direito através da cultura
pop e da cultura clássica se encerra com o ensaio Ativismo Cinematográfico:
A Defesa de Minorias por Cineastas, de Pedro Fortes, professor da FGV DI-
REITO RIO. Neste ensaio, investiga-se o ativismo cinematográfico, entendido
como o fenômeno da produção de filmes com uma ambição transformadora
e foco na defesa dos direitos das minorias. A partir do conhecido ditado
‘uma imagem vale mais do que mil palavras’, o ensaio sustenta que a certos
filmes do cinema hollywoodiano possuem uma carga normativa tão ou mais
forte do que leis, decisões ou livros jurídicos. Um exemplo pródigo é o filme
‘Diamante de Sangue’, que mobiliza a opinião pública para violações contra
direitos humanos de maneira impressionante. Os documentários de Micha-
el Moore também disseminaram debates sociojurídicos importantes sobre
controle de armamento, regulação financeira e direito à saúde. Elencando
dezenas de filmes hollywoodianos — tais como O Segredo de Brokeback
Mountain, O Pianista e Faça a Coisa Certa, por exemplo — o texto se refere a
narrativas contra-hegemônicas com potencial para empoderamento de mi-
norias de orientação sexual, de credo religioso e origem racial ou étnica. Os
valores representados por estes filmes têm circulado o globo e têm afetado
a opinião pública a respeito de temas como casamento de mesmo gênero,
liberdade religiosa e ação afirmativa, dentre outros temas relevantes para a
proteção de direitos das minorias. Existe, assim, nítida reflexividade entre o
fenômeno jurídico e expressões artísticas.
O presente volume celebra, aliás, uma década de ensino de direito e cultu-
ra pop na FGV DIREITO RIO e na FGV DIREITO SP com as iniciativas pioneiras
respectivamente de Gabriel Lacerda e de José Garcez Ghirardi. Este volume é
INTRODUÇÃO 15
Este ensaio aborda duas formas distintas, porém relacionadas, pelas quais a
cultura jurídica interage com normas sociais mais gerais, incluindo as normas
refletidas na cultura popular. Em primeiro lugar, a cultura jurídica age como
uma variável interveniente, um mecanismo para adaptar as normas da cultura
popular à forma jurídica. Em segundo lugar, a cultura jurídica e a popular, como
reflexos uma da outra, ajudam a explicar e a esclarecer o conteúdo uma da ou-
tra. Este ensaio examina ainda certos aspectos da cultura jurídica popular. Mas
antes, traçarei algumas definições.
Aqui, cultura jurídica significa nada mais do que “ideias, atitudes, valores,
e opiniões tidas por pessoas de uma sociedade sobre direito.”3 Todos em uma
sociedade têm conceitos e atitudes, sobre os mais variados temas: educação,
crime, sistema econômico, relações entre os gêneros, religião. A cultura jurídica
é esses conceitos e atitudes, quando parte de um contexto majoritariamente
jurídico. Conceitos acerca de tribunais, justiça, polícia, Suprema Corte, advo-
gados e etc. (Obviamente, um aspecto da cultura jurídica é quais problemas
1 Texto originalmente preparado para um simpósio sobre o tema Cultura Jurídica Popular na
Yale Law School, tendo a versão original em inglês sido publicada em 1989 pelo Yale Law
Journal em seu volume 98. Esta versão em português foi expressamente autorizada pelo
autor, tendo sido traduzida do inglês por Julia Nemirovsky e revisada pelo editor da série,
Pedro Fortes.
2 Marion Rice Kirkwood, Professor de Direito, Universidade de Stanford. Eu gostaria de agra-
decer a meus colegas Henry T. Greely e Deborah Rhode por seus comentários valiosos; e
também aos editores do Yale Law Journal; e a Ben Quinones, que me ajudou com algumas
das notas de rodapé.
3 L. FRIEDMAN, TOTAL JUSTICE 30, 31 (1985); ver também Friedman, Legal Culture and
Social Development, 4 LAW & Soc’y REV. 29, 34 (1969); Sarat, Studying American Legal
Culture: an Assessment of Survey Evidence, 11 LAW & Soc’y REV. 427, 427 (1977).
O conceito de cultura jurídica de modo algum significa que uma determinada socieda-
de tenha uma cultura jurídica ou até, necessariamente, uma cultura jurídica dominante. Na
forma definida aqui, cada pessoa tem seu próprio conjunto de atitudes e valores; e prova-
velmente não há dois conjuntos idênticos. Mas há tendências estatísticas que (acredita-se)
demonstram padrões recorrentes, ou seja, que caminham lado a lado a fatores demográfi-
cos (dentre outros), de modo que é muito provável que haja diferentes características na
distribuição desses conceitos e atitudes entre homens e mulheres, brancos e negros, jovens
e idosos, motoristas de taxi e de caminhão, e por aí vai.
18 CADERNOS FGV DIREITO RIO
8 A literatura sobre o tema é ampla e internacional. Ver, e.g., R. COTTERRELL, THE SOCIO-
LOGY OF LAW 87-90 (1984); Luhmann, The Self-Reproduction of Law and its Limits, in
DILEMMAS OF LAW IN THE WELFARE STATE 111 (G. Teubner ed. 1985). In R. LEMPERT &
20 CADERNOS FGV DIREITO RIO
J. SANDERS, AN INVITATION TO LAW AND SOCIAL SCIENCE 401 (1986), os autores defi-
nem um “sistema jurídico autônomo” como “um sistema independente de outras formas de
poder e autoridade na vida social.”
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 21
cidades. Mas o automóvel também limpou a cidade. Ela se livrou dos cavalos,
dos estábulos, do esterco, das moscas, e de uma enorme quantidade de imun-
dice e sujeira. Em algum momento, essas inovações benéficas pareciam essen-
ciais. E acima de tudo, o que o automóvel gerou e ainda gera é um sentimento
de liberdade, de mobilidade, de um modo muito concreto: ter ou usar um carro
dá a milhares de pessoas a possibilidade de se locomover, de se transportar,
de escapar, de se virar, em uma escala sem precedentes. O automóvel dá aos
motoristas uma sensação de poder; eles podem ir passear no campo, podem
escolher morar mais longe das fábricas e dos escritórios do que nunca; eles
acabam com a dependência de trens e de ônibus; eles afrouxam os espartilhos
apertados das famílias tradicionais; por outro lado, diminuem a distância entre
as ovelhas desgarradas e suas famílias; aumentam o comprimento dos laços
que unem as pessoas a amigos e familiares.
Essa mobilidade, subjetiva e objetiva, é a base sobre a qual uma sociedade
fragmentada, atomística, uma sociedade de indivíduos, foi construída no século
XX. Esse não é o individualismo da teoria do século XIX — um individualismo
de mercados e de votos — e sim um individualismo mais característico da vida
moderna, um individualismo “expressivo”,12 um individualismo de hábitos e esti-
los de vida. O automóvel não é o único sustentáculo dessa mobilidade — trens,
aviões, e telefones, entre outros, também têm sua influência — mas ele é uma
força importante, talvez a mais relevante.
A mobilidade tem uma influência profunda no direito e nas instituições
jurídicas, assim como na sociedade em geral; e é certo que, se os postulados
das teorias sociais têm algum sentido, esse deve ser um exemplo. Caracterís-
ticas do direito moderno, a partir do surgimento da sociedade moderna, é a
coroação do consentimento e da escolha individual; se há um único leitmotiv
do direito moderno, seja no direito civil, no direito de família, no direito do in-
quilinato, é uma ênfase extrema no indivíduo, na escolha e no consentimento
individual, todo o sistema gira entorno disso. O direito aqui reflete o que está
acontecendo na sociedade; talvez ele também reforce essas tendências sociais.
O indivíduo jurídico individual, como o indivíduo da cultura popular de hoje,
não deve ser confundido com o pálido autor econômico do século XIX, sem
senso de humor, temente a Deus, trabalhador, um maximizador ansioso; em vez
disso, o indivíduo da era moderna é uma pessoa autônoma e cheia de ímpeto;
um indivíduo expressivo, um indivíduo caleidoscópico, um indivíduo com um
12 Para o termo, ver R. BELLAH, W. SULLIVAN, A. SWIDLER & S. TIPTON, HABITS OF THE
HEART: INDIVIDUALISM AND COMMITMENT IN AMERICAN LIFE (1985). Bellah e os demais
autores distinguem o individualismo expressivo de outras tendências de individualismo na
história americana, como o individualismo “utilitarista” — de modo geral, o individualismo
do século XIX, com sua ênfase no livre mercado, em “ser bem sucedido” na vida profissional
e na vida pública, em vez de no estilo de vida e na vida privada. Id. em 44-46.
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 25
13 E, como costuma ser o caso com a cultura popular, é provável que diferentes grupos ou ele-
mentos da sociedade tenham percepções diferentes. Por exemplo, é sem dúvida verdade
que os negros, mais do que os brancos, sentem-se encurralados nas prisões circunstanciais.
14 Quando utilizo o termo “cultura popular”, aqui e em outras ocasiões, não quero dizer que
haja uma cultura popular, do mesmo modo que não há uma cultura jurídica, ainda mais em
um país tão complexo e heterogêneo como os Estados Unidos; mas, assim como no caso
da cultura jurídica, há sem dúvida generalizações que poderiam ser feitas se tivéssemos
dados suficientes, o que não ocorre na maioria dos casos.
As afirmações feitas no texto não são, é claro, ratificadas por “autoridades”; são in-
terpretações do que vejo e sinto na sociedade, e não são mais ou menos válidas do que
afirmações que um antropólogo poderia fazer depois de anos vivendo em uma cultura
remota, e refletindo sobre ela. Não é que essas afirmações dispensem comprovações ine-
rentemente; a lacuna é empírica, e não teórica. A menos que essa lacuna seja preenchida, e
até que isso ocorra, o único teste de correção de uma interpretação cultural é se ela ressoa
uma nota harmônica na mente do leitor.
26 CADERNOS FGV DIREITO RIO
bilidade, ainda que ela esteja enraizada na “verdade”, não é uma coisa, não é
um elemento do mundo real, e sim, em grande parte, uma construção mental.
O automóvel não nos leva a lugar algum; ele não tem vontade própria; ele vai
aonde o motorista diz para ele ir. O automóvel por si só não cria mobilidade,
ainda que ele possa ser uma condição para a mobilidade; a mudança social é
uma reação química, como dissemos — é uma série de explosões que ocor-
rem quando eventos “reais” (mudanças tecnológicas, terremotos, enchentes)
colidem com pensamentos, hábitos e disposições de determinada população
humana. Entretanto, o principal risco da teoria jurídica, a meu ver, é a tendência
a ignorar eventos “reais”, e a focar a atenção no mundo interno do pensamento
jurídico, na variável interveniente, e pior ainda, na variável interveniente apenas
na forma que ela é refletida nas ideias e textos dos “mandachuvas”.
Em todo caso, o principal ponto do argumento permanece: a cultura jurí-
dica popular, em suas múltiplas manifestações, é essencial para a teoria social
do direito. O ponto de partida da mudança social pode ser identificado no seu
contexto exterior: mudanças tecnológicas e materiais, desastres naturais, e etc.
Mas esses eventos não surtem efeito na ausência de seres humanos ou de uma
sociedade. Eles interagem com uma estrutura pré-existente, e com mentes e
personalidades pré-existentes. Eles criam a cultura jurídica popular; e da cul-
tura jurídica popular surge o direito. Em última instância, as forças sociais, os
movimentos sociais, as mudanças sociais — e o equilíbrio social — levam à mu-
dança no direito. Mas o processo passa pelos estágios descritos.
Eu não estou defendendo, entretanto, que um fator específico, ou uma
combinação de fatores, “determine” todos os outros. Uma sucessão de eventos
foi desencadeada pela invenção do automóvel e culminou nas leis de respon-
sabilidade civil da década de 1980, ainda em vigor. Mas isso não significa que
não houve elementos fortuitos, bifurcações, trampolins. Essa é uma questão
diferente, à parte.
15 Além das obras citadas na supra nota 3, ver Stark, Perry Mason Meets Sonny Crockett: The
History of Lawyers and the Police as Television Heroes, 42 U. MIAMI. L. REV. 229 (1987).
Sobre a distinção entre cultura popular e “literatura”, ver supra nota 3.
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 27
produz e sustenta a cultura popular. Essa sociedade tem sua estrutura, suas
tradições, suas normas e ideologias. Na sociedade, há ideias gerais sobre o que
é certo ou errado, bom ou mau; são modelos a partir dos quais as normas jurí-
dicas são moldadas, e são também ingredientes a partir dos quais as canções
— e os roteiristas — elaboram seus temas e enredos. Como as normas sociais
mudam com o tempo, os temas dos sistemas jurídicos também mudam; e o
mesmo ocorre com a cultura popular. Arte, subarte, e direito caminham lado a
lado — de certo modo.
Vamos considerar, por exemplo, a forma como Hollywood e a televisão
abordaram as relações raciais nos Estados Unidos; vamos considerar o efeito
do movimento feminista em Hollywood e na televisão. Mudanças na atitude dos
“formadores de opinião” sinalizam mudanças na atitude da sociedade em geral;
e também na forma e na essência do direito. Por exemplo, nos primeiros anos
da televisão, os negros eram tão invisíveis quanto costumavam ser na socie-
dade branca; ou seja, eles apenas apareciam na periferia, varrendo o chão, aju-
dando a heroína a se vestir e, de vez em quando, sapateando ou cantando uma
música. Os negros nunca apareciam em comerciais. As mulheres, é claro, eram
essenciais nos roteiros como o “objeto amoroso”, e em novelas; mas elas nun-
ca interpretavam papéis importantes na política ou no mundo dos negócios;
e, sobretudo, nunca como detetives ou policiais. Em comerciais, as mulheres
apareciam como objetos sexuais, ou como criaturas sorridentes, servis, donas
de casa, cujo principal objetivo da vida era casar e enrolar os maridos, passar
um café tão saboroso que os homens lamberiam os beiços, ou assegurar que
as camisas dele estivessem tinindo de brancas.
O fato desses primeiros temas terem mudando ligeiramente18 não decorre
de nenhum comando imperativo, e também certamente não é resultado das
Leis dos Direitos Civis de 196419*, ou de uma ordem direta da Comissão Fe-
deral de Comunicação dos Estados Unidos (FCC). Empresas televisivas, seus
redatores, e seus publicitários simplesmente reagiram — ao que uma parte da
audiência exige e a outra parte respeita ou permite — reagiram, portanto, às
mesmas correntes sociais que produziram as respectivas leis dos direitos civis.
O estilo e o conteúdo da cultura popular foram alterados — sob o impacto
do feminismo, do movimento pelos direitos civis, pela liberação homossexual
e pelo fortalecimento dos movimentos étnicos — de uma maneira evidente:
18 Ver, e.g., Humphrey & Schuman, The Portrayal of Blacks in Magazine Advertisements: 1950-
1982, 48 PUB. OPINION Q. 551 (1984).
19 *
Nota do Editor: Esta legislação teve a iniciativa do Presidente John Kennedy e foi promul-
gada após sua morte pelo Presidente Lyndon Johnson, tendo sido um marco no combate
à discriminação com base em raça, cor, religião, gênero ou origem nacional, pondo um fim
à segregação racial nas escolas, trabalho e espaços públicos em geral. Foi uma importante
vitória para o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos.
30 CADERNOS FGV DIREITO RIO
as piadas que não podem mais ser contadas, os velhos estereótipos que têm
de abrir caminho para novos estereótipos, os clichês que se aposentam, os
novos slogans que correm para tomar seus lugares. As normas dos direitos
civis também afetam a cultura popular de formas mais profundas e mais sutis.
O conceito dos direitos civis é mais amplo do que as categorias que de fato
constituem a doutrina dos direitos civis. Ele é, na sua forma expandida, nada
mais do que uma expressão do próprio individualismo: a noção de que cada
indivíduo é único, de que a tarefa principal do ser humano é ter uma identidade,
escolher uma forma de vida. Isso não implica no fim da identificação com um
grupo. Raça, gênero, etnia e preferência sexual não foram abolidas enquanto
categorias de significação humana. Muito pelo contrário. Mas a cultura redefine
essas categorias de modo característico — como escolhas livres, aspectos pes-
soais da cultura ou do estilo de vida; ou como características “imutáveis” que,
justamente por isso, nunca deveriam ser utilizadas em detrimento do indivíduo
precioso que as reúne.
Esse princípio profundamente arraigado — vago, mas poderoso — colore
e está presente em toda a cultura popular. Não é, por exemplo, inverossímil,
vê-lo como um fator que influencia a forma como os extraterrestres são repre-
sentados na televisão e nos filmes. Criaturas extraterrestres eram quase inva-
riavelmente representadas como hostis nas primeiras obras de ficção científica,
como em H.G Wells, entre outros. Em filmes como A Guerra dos Mundos ou
Os Invasores de Corpos, os aliens são assustadores, desumanos, eles vêm para
destruir o planeta, para nos atacar diretamente, ou às vezes agem sorrateira-
mente, sugando nosso sangue, destruindo nossos corpos, controlando nossas
personalidades. Esses temas permanecem, é claro, comuns na ficção científica.
Porém, nas últimas duas décadas, surgiu uma representação diferente desse
extraterrestre, mais positiva e, às vezes, até simpática. Alguns — o ET é o exem-
plo clássico; ou os aliens de Contatos Imediatos de Terceiro Grau, ou de Cocoon
— são criaturas cordiais, amáveis até; houve uma onda desse tipo de histórias e
filmes; como observa um jornal, os extraterrestres estão “na moda”, oferecen-
do aos “seres humanos embasbacados uma onda irresistível de esperança, fé
e euforia”. 20
20 Goldstein, Outer Space “Inˮ at the Movies, San Francisco Chronicle, 10 Nov 1988, em 36, 39,
col. 1. Goldstein, e outros críticos, interpretaram os filmes de ficção científica da década
de 1950, sobretudo Os Invasores de Corpos, como “alegorias políticas (...) inspiradas pela
paranoia da Guerra Fria e pelos temores gerados pelas novas tecnologias”; esses filmes
“ecoavam um grito de alerta contra uma sociedade conformista, com seus ternos cinza de
flanela”, ao representarem “seres humanos subvertidos por aliens impassíveis”. Os novos
filmes refletem uma visão “amigável” da tecnologia. Eles refletem “visões otimistas” em
uma “época de um ressurgimento religioso e de agitações sociais”. Id. em 38-39.
Eu acho essa explicação político-cultural bastante interessante. Ela não é inconsis-
tente com a justificativa dos “direitos civis”, no texto que acompanha esta nota. E essa
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 31
explicação, por sua vez, também não é inconsistente com outro aspecto da vida ocidental
moderna: o renascimento (se é que ele já esteve morto) do interesse pelo oculto, a popu-
laridade passageira das religiões não convencionais, da astrologia, a mediunidade, as bes-
teiras de Shirley MacLaine, das revoltas contra tecnologia, da euforia por óvnis, dos fãs do
assassinato de Kennedy, dos que acreditam que Elvis não morreu, entre outros, apoiados
por muitos ignorantes, mas também por ludistas intelectuais de quem se esperaria uma
postura mais racional. Tudo isso reflete não apenas um anseio pela fé do passado, mas
também um narcisismo, uma desconfiança do que afirmam os especialistas, o conceito
inflexível de que o que me parece certo é certo para mim, e caso você discorde, isso é um
direito seu; cada um sabe de si.
21 Eu não tenho, é claro, dados sobre a proporção de extraterrestres “bons” ou “maus” em
filmes, livros e programas de TV. Nas ficções científicas recentes — Guerra nas Estralas e
vários episódios e filmes de Jornada nas Estrelas — há muitos tipos de aliens, alguns são
bons, outros são maus, do mesmo jeito que aqui, no Planeta Terra.
22 Junto a essa noção está o pluralismo romântico que permitiu que um jurista tão conserva-
dor quanto o Warren Burger escrevesse, em Wisconsin v. Yoder, 406 U.S. 205 (1972), um
entusiástico tributo aos Amish — um grupo religioso pequeno e peculiar que, no século XIX,
teria sido tratado com o mesmo tipo de repulsa e intolerância que os Mórmons enfrenta-
ram; ou inclusive com a mesma repulsa e intolerância com que o século XIX tratava povos
“primitivos” em geral.
32 CADERNOS FGV DIREITO RIO
23 Nota do editor: a expressão Corte de Warren se refere à Suprema Corte dos Estados Uni-
dos no período entre 1953 e 1969, quando Earl Warren foi o seu Presidente. Tendo sido
o Procurador-Geral de Justiça e o Governador da Califórnia, Warren liderou a corte em
defesa de causas liberais, como a ampliação de garantias penais, o aumento do poder do
judiciário e a defesa das liberdades civis e da igualdade racial.
24 Sobre esse aspecto, ver Stark, supra nota 12, em 230, 238-39, 249, 279.
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 33
25 Nota do editor: Tatiana Tarasoff foi assassinada em 1969 por um paciente diagnosticado
com esquisofrenia paranóica aguda, Prosenjit Poddar, um estudante indiano em Berkeley,
que a tinha beijado numa noite de reveillon e por ela se apaixonado sem ser correspondido.
O pai de Tatiana processou a Universidade de Berkeley porque o estudante tinha confes-
sado sua intenção de cometer o assassinato ao seu psiquiatria, que tinha determinado à
polícia da Universidade que procedesse à detenção do estudante para fins de internação.
Posteriormente, contudo, o supervisor da psiquiatria liberou o estudante da internação,
sem sequer avisar à potencial vítima do risco de morte que ela corria. Após a morte de
Tatiana e a Suprema Corte decidiu que os terapeutas psiquiátricos possuem o dever de
cuidado de advertir pessoas em risco de morte por ataque de doentes psiquiátricos. Legis-
lação estadual especificando este dever foi promulgada em 33 estados nos Estados Unidos
após a morte de Tatiana Tarasoff.
26 17 Cal. 3d 425, 551 P.2d 334, 131 Cal. Rptr. 14 (1976). Em Tarasoff, a Suprema Corte da Cali-
fórnia decidiu que um terapeuta tinha a obrigação de tomar as medidas necessárias para
proteger uma pessoa quando determinasse, ou quando devesse ter determinado com base
nas informações que possuía, que seu paciente apresentava um sério perigo de violência
para essa pessoa.
27 Ver Bowers, Blitch & Givelber, Tarasoff, Myth and Reality: An Empirical Study of Private Law
in Action, 1984 Wisc. L. REV. 443. O estudo demonstrou que a decisão em Tarasoff havia
inicialmente sido comunicada a profissionais de saúde mental por meio de organizações
e do boca a boca; mas os terapeutas receberam a mensagem um pouco truncada. Id. em
459-68.
28 Ver, e.g., Williams & Hall, Knowledge of the Law in Texas, 7 L. & Soc’Y REV. 99, 117-18 (1972);
Podgorecki, Public Opinion on Law, in KNOWLEDGE AND OPINION ABOUT LAW 65 (C.
Campbell, W. Carson & P. Wiles eds. 1973).
34 CADERNOS FGV DIREITO RIO
29 É claro que, em um sentido mais amplo, todos são expostos ao direito e às instituições ju-
rídicas, todos os dias, de diversas formas — sempre que alguém compra o jornal, estaciona
o carro, ou realiza qualquer ato estruturado pela normatividade do direito para o qual os
agentes jurídicos funcionam como sentinelas. Mas me refiro aqui ao sentido mais restrito,
mas popular do direito.
30 Além das obras supra citadas na nota 3, ver Katsh, Is Television Anti—Law?: An Inquiry into
the Relationship Between Law and Media, 7 A.L.S.A. F. 26 (1983); Post, On the Popular Ima-
ge of the Lawyer: Reflections in a Dark Glass, 75 CALIF. L. REV. 379 (1987).
31 “É quase inevitável que tenhamos júris indecisos em grupos com diversos jurados com
opiniões divergentes no início da deliberação. Psicologicamente, os jurados conseguem
resistir a uma maioria apenas quando têm algum apoio inicial.” V. HANS & N. VIDMAR, JUD-
GING THE JURY 168 (1986). A fortiori, a chance de um único jurado realmente conseguir
convencer todos os outros a mudarem de ideia é muito pequena.
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 35
32 Smith, American Law and the Literary Mind, in LAW AND AMERICAN LITERATURE: A COL-
LECTION OF ESSAYS, 1, 12 (1980).
33 Ver K. ERIKSON, WAYWARD PURITANS 10 (1966).
34 Id. at II.
36 CADERNOS FGV DIREITO RIO
35 Ver, e.g., L. FRIEDMAN & R. PERCIVAL, THE ROOTS OF JUSTICE: CRIME AND PUNISH-
MENT IN ALAMEDA COUNTY, CALIFORNIA, 1870-1910, em 237-60 (1981); M. HARTMAN,
VICTORIAN MURDERESSES (1977).
36 Ver, em geral R. GRISWOLD, FAMILY AND DIVORCE IN CALIFORNIA, 1850-1890 (1982); E.
MAY, GREAT EXPECTATIONS: MARRIAGE AND DIVORCE IN POST—VICTORIAN AMERICA
(1980); Esses dados devem, é claro, ser analisados com muito cuidado, sobretudo em casos
consensuais e sem lide.
37 Ver Maynard, Narratives and Narrative Structure in Plea Bargaining, 22 LAW & SOC’Y REV.
449 (1988).
38 Nota do Editor: Lawrence Friedman posteriormente viria a transformar este argumento
em um excelente livro sobre a sociedade horizontal, a saber, Lawrence M. Friedman, The
Horizontal Society, Yale University Press (1999).
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 37
39 A história veio à tona pela primeira vez em um livro de memórias escrito por Donald T. Re-
gan, antigo Chefe da Casa Civil (Chief of Staff) da Casa Branca. Falava sobre o Presidente
e, sobretudo, sobre sua esposa, Nancy. Ver N.Y. Times, May 4, 1983, em 1, col. 5.
Suspeito que a maioria das pessoas não tenha ficado especialmente chocada. “Há uma
tolerância surpreendente por esse tipo de bobagem em uma sociedade particularmente
interessada pelo ‘estilo de vida’.”
40 CADERNOS FGV DIREITO RIO
A mídia de massa, é claro, exerce aqui um papel importante. Mas essa é apenas
uma parte da história. Uma sociedade de classe média utiliza e contesta o dire-
to — na forma de hipotecas e contratos, multas de trânsito, acordos de divór-
cio, imposto de renda e de diversas outras maneiras. A vida moderna nos Es-
tados Unidos, e no ocidente em geral, é uma escola de direito enorme e difusa.
Mudanças no direito tiveram importância fundamental no papel de desta-
que que as instituições jurídicas assumiram. Já mencionamos a revolução nos
direitos civis. É evidente que os importantes casos da Corte de Warren atraíram
novos olhares para o Judiciário, ou pelo menos para a cúpula desse Poder. A
Corte de Burger se fez extremamente visível — e polêmica — quando decidiu
Roe v. Wade.40,41
É verdade que nem sempre é fácil documentar o que as pessoas pen-
sam exatamente sobre direito, especialmente por ser o direito um domínio tão
grande e amorfo. A comoção pela responsabilidade civil, o lamento e as re-
clamações sem fim sobre a explosão da litigiosidade42, a controvérsia sobre a
superproteção de criminosos — tudo isso aponta para uma opinião bastante
negativa; mas esses pontos de vista são, em certa medida, equivocados. Na
verdade, o público parece ter uma relação de amor e ódio com o direito. Ele
vê o direito como a maleta de um mágico, um poço sem fundo de artifícios e
legalismo; mas ele também vê o direito como a espada afiada da justiça, uma
arma poderosa do interesse público. O direito é, de fato, uma das pedras fun-
damentais da liberdade.
A representação dos advogados é um caso à parte. Muitos advogados
têm, sem dúvida, a impressão de que ninguém os valoriza. Há tantas piadas
e tirinhas sobre advogados que seria fácil publicar um livro de piadas ou de
quadrinhos bem grande; e várias pessoas já fizeram isso.43 Todo mundo tem
sua própria piada de advogado favorita. Acho que não é exagero dizer que
40 Nota do editor: trata-se de uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos que proibiu
a criminalização do aborto, assegurando a todas as mulheres a possibilidade de interrup-
ção da gravidez como parte de seus direitos reprodutivos. A decisão gerou protesto dos
movimentos conservadores católicos, mas foi mantida até o presente com base no direito à
privacidade e na liberdade reprodutiva das mulheres de decidir sobre a questão com ampla
autonomia quanto ao seu corpo e ao planejamento do nascimento de seus filhos. Logo, ao
contrário do Brasil, o aborto não é crime nos Estados Unidos e em quase toda a Europa (as
exceções na Europa são Polônia e Irlanda do Norte).
41 410 U.S. 113 (1973).
42 Sobre o tema da explosão de contenciosos, ver L. FRIEDMAN, supra nota 1, em 6-34; Ga-
lanter, Reading the Landscape of Disputes: What We Know and Don’t Know (and Think We
Know) About Our Allegedly Contentious Society, 31 UCLA L. REV. 4 (1983).
43 Dois exemplos recentes desse gênero um tanto fajuto: B. BERGER & R. MARTINEZ, WHAT
TO Do WITH A DEAD LAWYER (1988) (cartoons); SKID MARKS: COMMON JOKES ABOUT
LAWYERS (M. Rafferty ed. 1988).
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 41
44 Nota do Editor: Marc Galanter viria a publicar um livro exclusivamente sobre o tema das
piadas sobre advogados, a saber, Marc Galanter, Lowering the Bar: Lawyer Jokes and Legal
Culture, The University of Wisconsin Press (2006).
45 Chase, On Teaching Law and Popular Culture, 3 Focus ON L. STUD., Spring 1988, em 1, 9.
46 Conforme exemplo de um filme como um “defensor ardente”, Chase cita O Sol é para To-
dos. Id. em 9. Para um exemplo de um filme com um advogado inescrupuloso, cita Uma
Loura por um Milhão, de Billy Wilder. Id.
42 CADERNOS FGV DIREITO RIO
dos, L.A. Law, virou um grande sucesso47. Sem dúvida, o programa já transmitiu
mais “bytes” de informação (verdadeiras ou não), mais imagens de advogados,
do que todos os cursos de Direito, todas as colunas de opinião, todos os pro-
gramas da PBS juntos48.
É evidente que L.A. Law distorce completamente a realidade: alguns advo-
gados não controlam o riso, outros, o desprezam. Ela transmite, de várias ma-
neiras, a mesma mensagem noticiada em Perry Mason, de forma um tanto mais
complexa, e no formato de uma novela. Os advogados de L.A. Law são pessoas
interessantes, que levam uma vida glamorosa, empolgante, e que lidam com
uma sucessão de problemas fascinantes. Eu assisti apenas a alguns episódios,
mas nenhum dos que vi mostrava que a rotina de trabalho de um advogado é
também penosa e repetitiva. A maioria dos espectadores talvez saiba (ou pelo
menos intua) que não é possível que o trabalho dos advogados seja tão em-
polgante quanto o dos advogados de L.A. Law. Afinal de contas, aquilo é “só
um programa de televisão”. Mas de todo modo elas guardam algum resíduo da
representação que a dose semanal de L.A. Law transmite para elas.
As tramas e subtramas de L.A. Law, até onde sei, parecem girar entorno
de “casos”, ou seja, processos judiciais, exceto quando giram entorno da vida
amorosa dos advogados. Um comentarista reclamou que o pior em L.A. Law,
e em outros programas sobre advogados, “não é a representação imprecisa e
romantizada de juízes e advogados, e sim a representação imprecisa e roman-
tizada do processo judicial”.49
Isso é amplamente reconhecido, mas não podemos negar que L.A. Law é
um indicador social. O excesso de foco no contencioso, com toda sua hipérbole
e besteirol, de fato captura uma tendência da vida jurídica moderna, de uma
forma que Perry Mason nunca fez.50 Eu não consigo imaginar que o trabalho de
47 Nota do Editor: O seriado L.A. Law foi uma série de televisão de sucesso nos Estados Uni-
dos como um drama jurídico, tendo sido transmitido durante oito temporadas pela NBC
entre 1986 e 1994. Nesta passagem do artigo Lawrence Friedman produz uma análise so-
ciojurídica da série televisiva, inaugurando um novo filão da literatura sobre o direito e
cultura pop, explorado com êxito por Michael Asimow, Barbara Villez e, neste volume em
particular, por Manuel Gomez. Veja Manuel A. Gomez, No Limite: A representação da lei e
da ordem social não oficiais na série de televisão Breaking Bad, em Direito, Cultura Popular
e Cultura Clássica, Pedro Fortes (editor), volume 12 da Série CADERNOS FGV DIREITO RIO
(2015).
48 Nota do Editor: A Public Broadcast System é uma rede pública de televisão de alto nível
nos Estados Unidos, correspondeno ao padrão da TV Cultura de São Paulo, da BBC de
Londres e da NHK japonesa.
49 Machlowitz, Lawyers on TV, A.B.A. J. 52, 55 (Nov. 1, 1988). Na TV sempre se faz justiça, prin-
cipalmente se o seu advogado conseguir ganhar do advogado deles.”
50 Perry Mason era advogado, e o herói de um programa investigativo, em que o mistério sem-
pre era solucionado. O clímax quase sempre se passava no tribunal; e quase todos os epi-
sódios exibiam um julgamento criminal. Mas um mistério tem um estilo fixo, extremamente
convencional, que o restringe enormemente; o formato de novela, com uma estrutura mais
flexível, de L.A. Law é muito menos aprisionador.
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 43
um escritório em Wall Street nos anos 1900, ou ainda 1940 desse muito pano
para manga. Eu acredito que haja uma conexão entre o novo mundo dos pro-
cessos contenciosos, radiante ou não, e a advocacia extravagante de L.A. Law.
Os advogados de L.A. Law são caricaturas; mas as caricaturas são sempre cari-
caturas de algo, e esse algo tem que ser real. É muito provável que L.A. Law re-
flita mudanças reais na personalidade típica dos advogados, ou pelo menos na
dos advogados corporativos — mudanças que podem ser relacionadas a mu-
danças nos contenciosos e no estilo dos processos judiciais nos últimos anos.
Precisamos, agora, de um pouco de história. O processo judicial — ou,
pelo menos as audiências judiciais — eram a parte principal do trabalho dos ad-
vogados americanos. Os advogados mais famosos e bem-sucedidos do início
do século XIX eram incríveis guerreiros da sala de audiência, e o protótipo do
advogado herói era Daniel Webster.51 No final do século XIX, junto do desen-
volvimento de uma economia urbana, industrial, houve mudanças enormes nos
níveis mais altos das Ordens dos Advogados dos Estados Unidos.52 Os advoga-
dos mais ricos e bem-sucedidos da época eram os advogados de Wall Street
— advogados da indústria, dos bancos, das ferrovias, dos grandes negócios;
eles faziam planos de negócios, e eram cinzas, invisíveis. Eram notívagos e fo-
tofóbicos, por assim dizer. Evitavam contenciosos e salas de audiência a todos
os custos.
Esses advogados eram grandes mandachuvas, mas seu trabalho era quase
todo feito nos bastidores. Eram eminências em trajes cinza, em vez de verme-
lho. Advogados de Wall Street não precisavam de autopromoção, porque seus
escritórios gerenciavam os negócios para que tivessem uma clientela estável,
fiel. Eles representavam as empresas no longo prazo; participavam do conselho
diretor; estavam interessados em todas as facetas de seus clientes corpora-
tivos, ininterruptamente. Um único escritório de direito cuidava de todas as
demandas jurídicas de seus grandes clientes corporativos; e eles permaneciam
juntos na alegria e na tristeza. Uma empresa quase nunca trocava de escritório
de direito.
Os advogados de Wall Street se viam como cavalheiros; eles eram dis-
cretos; e a última coisa que queriam era ter seus nomes estampados no jornal.
Os advogados exuberantes, indiscretos, aqueles que se gabavam e desfilavam
para o público, os que gritavam seus próprios nomes e se autopromoviam,
eram de uma estirpe inferior. Eram advogados que não tinham clientes per-
51 Sobre os advogados desse período, ver: L. FRIEDMAN, HISTORY OF AMERICAN LAW 303-
33 (1985); G. GAWALT, THE PROMISE OF POWER: THE EMERGENCE OF THE LEGAL PRO-
FESSION IN MASSACHUSETTS, 1760-1840 (1979).
52 Para uma discussão sobre a Ordem dos Advogados nos Estados Unidos durante o final do
século XIX, ver L. FRIEDMAN, supra nota 40, em 633-54.
44 CADERNOS FGV DIREITO RIO
53 O termo se refere às categorias do livro de Marc Galanter Why the “Havesˮ Come Out Ahe-
ad: Speculations on the Limits of Legal Change, 9 LAW & Soc’y REV. 95 (1974), e à distinção
entre litigantes de ocasião (“one-shot litigants”) e atores assíduos (“repeat players”).
54 Para uma descrição dessa desavença, ver, e.g., J. AUERBACH, UNEQUAL JUSTICE: LA-
WYERS AND SOCIAL CHANGE IN MODERN AMERICA (1976).
55 Ver, de modo geral R. NELSON, PARTNERS WITH POWER: SOCIAL TRANSFORMATION
OF THE LARGE LAW FIRM (1988); Galanter & Palay, The Big Law Firm and Its Transforma-
tion (no prelo 1989).
56 Em 1984, de acordo com uma fonte, havia pelo menos 109 empresas de recrutamento
(“headhunting”); ou seja, elas prosperavam graças à “mobilidade lateral”. Abel, United Sta-
tes: the Contradictions of Professionalism, in LAWYERS IN SOCIETY: THE COMMON LAW
WORLD 186, 230 (R. Abel & P. Lewis eds. 1988). De acordo com Nelson, “[a]penas alguns
anos atrás, quase não se ouvia falar de empresas pedirem orçamentos para grandes pro-
cessos ou negócios. Advogados internos de empresas atualmente pedem cada vez mais
esse tipo de orçamento.” R. NELSON, supra nota 44, em 59.
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 45
B. Mérito e Processo
Um segundo aspecto da cultura jurídica popular — a opinião do público sobre
mérito e processo — esclarece a dinâmica política do direito público.
A liberdade e a democracia, na cabeça dos advogados, em comparação
com o público em geral, tende a ser entendida em termos altamente proces-
suais. Os advogados aprendem e são treinados para ver o “devido processo
legal” como a própria essência da equidade e do estado de direito.57 O “devido
processo legal” é utilizado aqui tanto em sentido amplo quanto em sentido es-
trito. O sentido estrito abrange o direito à intimação e à audiência em um pro-
cada vez mais “imperial”. Os tribunais “usurpam” o papel dos outros poderes
do governo. Eles parecem poderosos demais para o bem do país.
Muitas ações dos tribunais prejudicaram o interesse de grupos podero-
sos e de grandes segmentos da população — desde Brown v. Conselho de
Educação58,59 até Roe v. Wade60, entre outros. Ainda assim, o Judiciário ain-
da conta, acredito eu, com amplo apoio do cidadão médio, sobretudo entre
os membros mais desfavorecidos da sociedade. A cultura popular não rotula
como “antidemocrática” uma instituição que defende e amplia direitos. As mu-
lheres “pró-escolha”, ou seja, que defendem o direito ao aborto, não pensam
que o reconhecimento do direito ao aborto foi antidemocrático. Os grupos
“pró-vida”, ou seja, contra o direito ao aborto, não pensam que casos que ex-
cepcionem Roe sejam antidemocráticos, ou que sejam bons por serem mais de-
mocráticos. Grupos ambientalistas não consideram os tribunais antidemocráti-
cos quando impedem a destruição da natureza. Grupos defensores do direito
civil não veem nada antidemocrático na proibição da segregação racial. Esses
grupos — e quase todos nós — nos concentramos nos resultados, no mérito; a
“legitimidade” do direito e das instituições jurídicas, para nós, é compreendida
e mensurada pelo que fazem essas instituições.
O debate entre a “legitimidade” do controle judicial das leis, ou sobre o
ativismo judicial, ou sobre a intenção original, ou sobre o que for, não é desin-
teressante ou pouco importante. Mas há duas formas distintas de entender a
legitimidade. Há a forma teórico-filosófico-normativa. E há a forma descritiva.
Uma instituição é legítima nesse segundo sentido se ela for considerada le-
gítima por algum público específico. Portanto, pelo menos nesta sociedade,
a “legitimidade” do controle judicial, ou do ativismo judicial, ou do culto da
Constituição viva61*, é uma questão de opinião pública ou, mais precisamente,
de cultura jurídica popular.
Essa cultura é voltada para o resultado e, devido ao seu apoio incondi-
cional ao espírito do individualismo moderno, ela é voltada também para os
direitos e para a privacidade. De todo modo, pistas para a legitimidade dos
58 Nota do Editor: Trata-se da importante decisão da Corte Warren contra a segregação nos
Estados Unidos, que proibiu os conselhos de educação de separarem as crianças com base
em sua raça. Esta decisão foi apenas a primeira de uma série de decisões para acabar com
a política vigente até então de ‘iguais, porém separados’.
59 347 U.S. 483 (1954).
60 410 U.S. 113 (1973).
61 Nota do Editor: A expressão Constituição Viva se refere a ideia de que o texto constitu-
cional se adapta organicamente às transformações sociais, em contraponto com a tese do
Originalismo — que preconiza sempre a interpretação conforme a intenção original dos
redatores do texto constitucional. Os proponentes da tese da Living Constitution na aca-
demia são, dentre outros, Bruce Ackerman, David Strauss e Woodrow Wilson. Do lado
do originalismo, por outro lado, está o Justice Antonin Scalia, magistrado conservador da
Suprema Corte dos Estados Unidos.
48 CADERNOS FGV DIREITO RIO
III. Conclusão
Eu argumentei que a cultura jurídica é essencial para qualquer compreensão
social do direito e do sistema jurídico; e tentei destacar alguns pontos de inter-
cessão entre o direito e a cultura popular. Examinei ainda dois aspectos espe-
cíficos da cultura jurídica popular. A forma como o direito é visto e vivenciado
é, sobretudo, normativa. As pessoas de dentro e as pessoas de fora julgam
o direito em termos de bom ou mau, certo ou errado. Não é fácil, portanto,
distinguir o estudo do direito de sua normatividade compulsiva. A maioria dos
movimentos e escolas de pensamento que instigam eruditos (e estudantes)
do direito, sejam eles de direita, esquerda, ou centro, é normativa até a última
gota, às vezes sem se dar conta.
É fácil defender uma compreensão social do direito, intelectualmente; mas
na prática, ela parece pouco atraente. De toda forma, isso não teve grande
influência entre os juristas, e certamente também não nas escolas de direto,
exceto no caso bastante excepcional do direito-e-economia.62 Mas é evidente —
para mim, pelo menos — que há um valor inerente ao estudo das relações entre
o sistema jurídico existente e sua matriz social essencial.
Afinal de contas, vivemos em uma sociedade que enfatiza enormemen-
te a acessibilidade, a democracia, o estado de direito; uma sociedade na qual
62 Ver, de modo geral, Friedman, The Law and Society Movement, 38 STAN. L. REV. 763 (1986).
Owen M. Fiss, ao lançar o novo Yale Journal of Law & the Humanities, descreve a economia
como “a rainha das ciências sociais” e observa que ela se tornou “o método interdisciplinar
de estudo do direito.” Fiss, The Challenge Ahead, 1 YALE J.L. & HUMANITIES viii, ix (1988)
(destaque no original). Ele não menciona outros. Aparentemente, o desafio à nossa frente é
“recriar nos estudos do direito um lugar adequado para a questão dos valores” e restringir a
“ênfase nos estudos puramente comportamentais ou empíricos.” Id. em x, xi. É claro que os
“valores”, enquanto fatos sociais, são e sempre foram uma preocupação central das ciên-
cias sociais; e, por outro lado, algumas das críticas sobre o direito e a economia baseiam-se
no fato deles não enfatizarem “os estudos comportamentais ou empíricos”, mas tais críticas
são excessivamente teóricas ou abstratas.
DIREITO, ADVOGADOS, E CULTURA POPULAR 49
1 Bacharel em Direito pela FGV DIREITO RIO, com semestre cursado na Harvard Law School.
Pesquisadora da FGV DIREITO RIO.
2 BALEEIRO, Aliomar. 1967. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de
Janeiro: Forense.
3 FALCÃO, Joaquim. “Independência de ministro começa na indicação”. Folha de S. Paulo.
Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/62812-independencia-de-ministro-
-comeca-na-indicacao.shtml Acesso em 06.02.2015.
52 CADERNOS FGV DIREITO RIO
ela permanece personagem frequente nas páginas dos jornais de hoje e não é
mais, definitivamente, desconhecida.
4 De acordo com o art. 103 da Constituição, “Podem propor a ação direta de inconstitucio-
nalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: I - o Presidente da República; II - a
Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV a Mesa de Assembleia
Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V o Governador de Estado ou do
Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem
dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional;
IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.”
5 De acordo com o art 5º, LXXI da Constituição Federal: “conceder-se-á mandado de injun-
ção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos
e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à
cidadania.”
6 ARGUELHES, Diego Werneck. Poder Não é Querer: preferências restritivas e redesenho ins-
titucional no Supremo Tribunal Federal pós-democratização. Universitas/Jus (Impresso), v.
25, p. 2, 2014.
7 VIEIRA, O.V. 2008. Supremocracia. Revista DIREITO GV, v. 4, nº 2, pp. 441-464, julho/de-
zembro.
SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR 53
8 MELLO, M. 2001. “A publicidade das decisões judiciais”. Gazeta Mercantil, São Paulo, n.22116,
p.4, 3 jul. Disponível em: www.palavradaamatra8. jex.com.br/jornal+on-line+da+amatra+8/
a+publicidade+das+decisoes+ judiciais. Acesso em 15/05/2012.
9 Canal do STF no YouTube completa um mês com mais de 650 vídeos e 1.326 parceiros In:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=115573 Acesso em
30.01.2015.
10 “Gilmar Mendes responde dúvidas de internautas”. In: Conseultor Jurídico. http://www.
conjur.com.br/2010-abr-14/gilmar-mendes-responde-duvidas-internautas-sexta-feira
Acesso em 30.01.2015.
11 “Twitter do STF é o mais ativo entre as cortes constitucionais.” Disponível em http://stf.
jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=247706 Acesso em 02.02.2015.
12 “Perfil do STF no Twitter chega a 486 mil seguidores”. Disponível em http://www.stf.jus.
br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=271313 Acesso em 02.02.2015.
54 CADERNOS FGV DIREITO RIO
2008 a 2011, os autores mostram que o número de notícias sobre a Corte quase
dobrou, aumentando em 89%. Mas o crescimento não começou em 2004, veio
antes, quando o Supremo começou a interferir mais na vida política nacional.
Analisando-se o número de matérias publicadas com o termo “STF” e com
o termo “Supremo” nos jornais O Globo, Folha de S.Paulo e Estado de S. Paulo,
é possível ver uma tendência linear de crescimento nos últimos 20 anos, como
mostram os gráficos abaixo.
*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “STF” no acervo online do jornal Folha
de S. Paulo.
*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “Supremo” no acervo online do jornal
Folha de S. Paulo.
SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR 55
*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “STF” no acervo online do jornal Estado
de S. Paulo.
*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “Supremo” no acervo online do jornal
Estado de S. Paulo.
56 CADERNOS FGV DIREITO RIO
*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “STF” no acervo online do jornal O
Globo.
*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “Supremo” no acervo online do jornal O
Globo.
*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “STF” sem o termo “mensalão” no acer-
vo online do jornal Folha de S. Paulo.
13 Como exemplo, MACEDO, Ana Paula e SELEME, Ascâneo. “STF nunca foi tão atacado”, O
Globo, 13 de outubro de 1999. Disponível em http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipo
Conteudo=pagina&ordenacaoData=relevancia&allwords=stf&anyword=&noword=&exactw
ord=&decadaSelecionada=1990&anoSelecionado=1999 Acesso em 05.02.2015.
58 CADERNOS FGV DIREITO RIO
*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “Supremo” sem o termo “Mensalão” no
acervo online do jornal Folha de S. Paulo.
*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “STF” sem o termo “Mensalão” no acer-
vo online do jornal Estado de São Paulo.
SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR 59
*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “Supremo” sem o termo “Mensalão” no
acervo online do jornal Estado de São Paulo.
*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “STF” sem o termo “Mensalão” no acer-
vo online do jornal O Globo.
60 CADERNOS FGV DIREITO RIO
*Pesquisa realizada por meio da busca do termo “Supremo” sem o termo “Mensalão” no
acervo online do jornal O Globo.
O aumento foi substancial. Mas não foi apenas a mídia tradicional que co-
briu, comentou e analisou o julgamento. As redes sociais se tornaram importan-
te foco de discussão sobre o caso, a Corte e seus ministros. E também impor-
tante foco de crítica à cobertura da mídia tradicional. O Supremo passou a ser
objeto da discussão popular.
A internet se dividiu: de um lado, pleiteava-se a condenação dos réus,
criticava-se o Partido dos Trabalhadores, e falava-se da suposta falta de mora-
lidade e da corrupção na política brasileira. De outro, defendia-se a absolvição,
com fundamento na ausência de provas suficientes, na tentativa de manipula-
ção feita por aqueles que defendiam a condenação.
Não é difícil imaginar que a representação do Supremo feita pelos dois
grupos era radicalmente oposta. O primeiro elogiava a Corte como exemplo,
como o único poder íntegro da república, cobrindo-a de elogios. A capa da
revista Veja, em setembro de 2012, por exemplo, trazia a manchete: “Até que
enfim. Com as condenações de mensaleiros pelo STF e a perspectiva inédita de
prisão de corruptos, o Brasil reencontra o rumo ético: volta a saber distinguir o
certo do errado”21.
O segundo grupo, ao contrário, criticou duramente o processo, a Corte
e seus ministros. A revista Carta Capital, por exemplo, usando o termo Men-
salão sempre entre aspas, publicou matéria de capa em que ressaltava que
“Para uma extensa lista de envolvidos em escândalos a justiça tarda e falha”,
referindo-se aos condenados na Ação Penal 470 como “presos privilegiados”
por terem sido condenados, dando a entender que eles seriam vítimas em um
sistema em que muitos passam impunes.22
As representações antagônicas da Corte se estenderam, ainda, aos seus
ministros. O ministro Joaquim Barbosa, relator do caso, e em regra mais rígido
quanto à condenação dos réus, e o ministro Ricardo Lewandowski, revisor, e,
na maior parte de seus votos, menos rígido, foram os principais alvos. Ambos
foram retratados de formas extremas e antagônicas nas redes sociais, como
heróis e vilões.
O site Movimento Brasil de Verdade, por exemplo, publicou, em agosto de
2012, matéria intitulada “Internautas manifestaram no facebook a indignação
com o voto de Lewandowski no julgamento do mensalão”, afirmando que os
internautas estavam envergonhados com a decisão do ministro.23 Já na maté-
ria “A função do Juiz, por Lewandowski”, publicada no Blog Luis Nassif Online,
no mesmo mês, internautas manifestam apoio ao ministro, afirmando que o
povo brasileiro se orgulhava dele por “não se submeter à vontade da mídia
manipuladora”24.
Mas o relator e o revisor não foram os únicos alvos da mídia e das redes
sociais. Durante o final do julgamento, também se tornou centro de matérias e
comentários o ministro Celso de Mello. Isto porque no ano de 2013, na última
sessão de julgamento, cabia a ele o voto de desempate sobre admitir ou não
os embargos infringentes, que levariam algumas questões para serem reanali-
sadas pelo Supremo. A sessão que declarou a votação empatada encerrou-se
na quinta-feira, 12 de setembro de 2013, e a sessão seguinte, quando votaria o
ministro Celso, ocorreria apenas na semana seguinte.
Ao longo desses dias, o ministro foi capa de jornais e revistas semanais,
objeto de matérias em sites, blogs e de comentários de internautas. Após seu
voto admitindo os embargos, Celso de Mello permaneceu por alguns dias como
alvo principal da mídia e da internet25. A reportagem “Antes de decidir Mensa-
lão, Celso de Mello sofre pressão nas redes sociais”, por exemplo, do portal de
notícias Terra, trazia mais de dez montagens com o ministro, criadas por inter-
nautas, fazendo alusão a seu voto de desempate. A matéria “Jornais começam
22 Revista Carta Capital, 23 de novembro de 2013, edição 776. Disponível em: http://www.
cartacapital.com.br/revista/776 . Acesso em 01/02/2015.
23 _____, “Internautas manifestaram no facebook a indignação com o voto de Lewandowski
no julgamento do mensalão”, Disponível em http://movimentobrasildeverdade.com/inter-
nautas-manifestam-no-facebook-a-indignacao-com-o-voto-de-lewandowski-no-julgamen-
to-do-mensalao-do-pt/ Acesso em 01/02/2015.
24 D, Ricardo. “A função de juiz, por Lewandowski”, Disponível em: http://jornalggn.com.br/
blog/luisnassif/a-funcao-do-juiz-por-lewandowski Acesso em 01/02/2015.
25 Sobre o tema, a reportagem “Antes de decidir Mensalão, Celso de Mello sofre pressão nas
redes sociais”, Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/politica/julgamento-do-
-mensalao/antes-de-decidir-mensalao-celso-de-mello-sofre-pressao-nas-redes-sociais,84
6f23011b821410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html Acesso em 02.01.2015.
64 CADERNOS FGV DIREITO RIO
Mas não foi apenas na mídia que cresceu a cobertura sobre o Supremo
durante o Mensalão. Para além dos jornais, revistas, sites e blogs que falaram
do julgamento e da Corte, o caso do Mensalão representou um turning point
da relação do Supremo com a cultura popular: foi com ele que a Corte passou,
definitivamente, a ser conhecida pela população e a de fato a fazer parte da
cultura popular.
Esta relação pode ser vista a partir de alguns exemplos, nas mais variadas
áreas. O julgamento foi, por exemplo, retratado em quadrinhos no jornal Extra,
explicando o caso, e o comparando à novela Avenida Brasil, que estava no ar
naquele momento28. O caso foi também retratado em quadrinhos pelo cartunis-
ta Angeli29. É possível também ver que, com o julgamento, o Supremo passou
a ocupar uma posição na discussão cotidiana da população, e mesmo em suas
atividades de lazer.
Foram feitos, durante o julgamento, dois jogos de internet sobre o caso.
Primeiro, foi criado o jogo “Batalha do Mensalão”, em que o ministro Joaquim
Barbosa tentava acertar os réus da ação com lasers, e era atrapalhado pelo
26 BOCCHINI, Lino. “Jornais começam a pressionar Celso de Mello”, Disponível em: http://
www.cartacapital.com.br/blogs/midiatico/jornais-comecam-a-pressionar-celso-de-
-mello-8379.html Acesso em 01/02/2015.
27 Relatório do índice de Confiança no Judiciário. 4º trimestre de 2012. Páginas 16 e 17. Dis-
ponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10754/Relato-
rio_ICJBrasil_4TRI_2012.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em 01/02/2015.
28 “Avenida Brasi: a novela do mensalão”. Disponível em: http://extra.globo.com/noticias/
brasil/no-ar-pais-da-vida-real-clique-leia-historia-em-quadrinhos-5663238.html Acesso
em 01/02/2015.
29 ANGELI, CARVALHO, Mario Cesar e BERCITO, Diogo. “O incrível mensalão”, Disponível
em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/61728-o-incrivel-mensalao.shtml Acesso em
01/02/2015.
SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR 65
Alguns meses depois, foi lançado o Jogo “Angry STF”, inspirado no jogo
Angry Birds, em que os réus deveriam ser acertados e derrubados pelo Ministro
Joaquim Barbosa e pelo Procurador Geral da República, Antonio Gurgel. No
final de 2012, o jogo já contava com mais de 5 mil acessos.31
Os vídeos de charges feitos durante os meses principais em que foi julga-
do o Mensalão,32 usando-se aqui como referência o site Charges.com, foram
outro exemplo de representação cultural na internet durante o julgamento. O
Supremo, que até então havia aparecido apenas 4 vezes nos mais de dez anos
do site, foi o tema central de 4 charges nos meses de agosto a dezembro de
2012. Número este que considera apenas as charges com os ministros. Caso
se considerem charges que tratam do episódio, o número mais do que dobra,
chegando a 9, apenas no segundo semestre de 201233.
Seguindo, ainda, na internet, outro claro exemplo de que o Supremo se
tornou, ao longo do julgamento, tema central das redes sociais e da cultura dos
internautas nesse período, são os “memes”34 e vídeos que surgiram. Neles, não
há a deferência e distanciamento que já foram no passado característicos das
representações dos ministros, mas sim a representação dos ministros como
alvo de elogios, críticas e mesmo deboche35, aproximando-os de ditados popu-
lares (com as frequentes referências à possibilidade de o julgamento acabar em
“pizza”, com absolvições), ou de personagens populares (como a representa-
36 SETTI, Ricardo, “Ministro Joaquim Barbosa torna-se “herói” em peça que circula pela web
segundo a qual “Batman é para os fracos”. In: http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/
politica-cia/ministro-joaquim-barbosa-vira-heroi-em-peca-que-circula-por-e-mail-dizen-
do-que-batman-e-para-os-fracos/ Acesso em 01/02/2015.
37 Charge de Amarildo, publicada em agosto de 2012, caracterizando Joaquim Barbosa como
o “herói do martelo”, disponível em https://amarildocharge.wordpress.com/tag/thor/
Acesso em 01/02/2015.
38 VILLA, Marco Antônio. “Mensalão- O julgamento do maior caso de Corrupção da história
política brasileira”. Editora Leya: 2012.
39 EMEDIATO, Luiz Fernando. In: LEITE, Paulo Moreira. A outra história do Mensalão.
40 PEREIRA, Merval. “Mensalão- o dia a dia do mais importante julgamento da História Política
do Brasil”. Rio de Janeiro, Record: 2013.
41 FALCÃO, Joaquim (org). “Mensalão- diário de um julgamento”. Rio de Janeiro, Campus
Elsevier: 2013.
SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR 67
42 PITA, Antonio. Máscara do Ministro Joaquim Barbosa é a mais procurada para o carnaval.
Disponível em: http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,mascara-do-ministro-joaquim-
-barbosa-e-a-mais-procurada-para-o-carnaval,982318 Acesso em 01/02/2015.
43 ____, “Foto de Joaquim Barbosa com empresário condenado gera polêmica”. Disponível
em: http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2014-02-03/foto-de-joaquim-barbosa-com-
-empresario-condenado-gera-polemica.html Acesso em 01/02/2015.
44 ____, “Joaquim Barbosa é aplaudido por eleitores durante votação no Rio”. Disponível em:
http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/joaquim-barbosa-e-aplaudido-por-eleitores-duran-
te-votacao-no-rio Acesso em 01/02/2015.
68 CADERNOS FGV DIREITO RIO
destaque nos jornais, revistas e sites de fofocas, que noticiaram suas viagens45,
sua namorada.46
Sua popularidade foi tamanha que o ministro começou a ser cogitado
para se candidatar à presidência, possibilidade essa considerada pelos prin-
cipais institutos de pesqusia eleitorais, que davam ampla quantidade de votos
ao ministro.47
Para grande parte da população, Barbosa gerava empatia, representava a
população brasileira, e era um exemplo que deveria ser seguido.
É claro que, como já mencionado, os demais ministros também foram ob-
jeto de interesse nacional. O ministro Ricardo Lewandowski foi capa de jornais
e revistas e, assim como Barbosa, objeto de charges, jogos, e representações
na internet. O mesmo aconteceu com o ministro Celso de Mello no final do jul-
gamento, quando seu voto era determinante para o desempate. A escolha dos
ministros Teori Zawascki e Roberto Barroso foi acompanhada mais de perto
pela mídia do que as sabatinas dos ministros anteriores e o vídeo do Ministro
Luiz Fux tocando guitarra e cantando na posse de Joaquim Barbosa na presi-
dência do Supremo provavelmente não teria tido a mesma repercussão antes
do Mensalão48. Ainda assim, a atenção dada aos demais ministros não se com-
para àquela dada ao relator.
Vê-se, desta forma, que no julgamento da Ação Penal 470 a cobertura da
mídia, o interesse despertado na sociedade e as representações da Corte na cul-
tura popular foram, sem dúvida, pontos fora da curva, na história do Supremo49.
45 ARAÚJO, Ricardo. “Joaquim Barbosa, presidente eleito do STF, escolhe Natal para des-
cansar” Disponível em: http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2012/11/
joaquim-barbosa-presidente-eleito-do-stf-escolhe-natal-para-descansar.html Acesso em
01/02/2015.
46 ______, “”É um desrespeito”, diz Fontenelle sobre boato de que estaria saindo com Joaquim
Barbosa”. In: http://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/entretenimento/2014/12/12/e-
-um-desrespeito-diz-antonia-fontenelle-sobre-boato-de-que-estaria-tendo-um-caso-com-
-o-ex-presidente-do-stf.htm Acesso em 01/02/2015.
47 RODRIGUES, Fernando. “Joaquim Barbosa e Marina Silva poderiam forçar 2º turno”. In:
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/02/1416499-joaquim-barbosa-e-marina-silva-
-poderiam-forcar-2-turno.shtml Acesso 01/02/2015.
48 _______, “Ministro Luiz Fux toca guitarra e canta na posse de Joaquim Barbosa”. In: http://
g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2012/11/ministro-luiz-fux-toca-guitarra-e-canta-na-
-posse-de-joaquim-barbosa.html Acesso EM 01/02/2015.
49 Expressão usada pelo Ministro Roberto Barroso em sua sabatina no Senado, ao se referir
ao caso. Ver ÉBOLI, Evandro. “Barroso diz que julgamento do mensalão foi ´ponto fora da
curva´”. Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/barroso-diz-que-julgamento-do-
-mensalao-foi-ponto-fora-da-curva-8596481. Acesso em 06.02.2015.
SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR 69
50 Como ocorreu, por exemplo, com os casos sobre aborto de feto anencefálicos e cotas ra-
ciais em universidades públicas.
51 Operação da polícia federal que trata de suposto esquema de corrupção e propina em que
estariam envolvidos políticos, importantes empreiteiras brasileiras e a Petrobras.
SUPREMO, MÍDIA E CULTURA POPULAR 71
Referências
ÉBOLI, Evandro. “Barroso diz que julgamento do mensalão foi ´ponto fora da
curva´”. Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/barroso-diz-que-julga-
mento-do-mensalao-foi-ponto-fora-da-curva-8596481. Acesso em 06.02.2015.
72 CADERNOS FGV DIREITO RIO
MACEDO, Ana Paula e SELEME, Ascâneo. “STF nunca foi tão atacado”, O Glo-
bo, 13 de outubro de 1999.
______, Canal do STF no YouTube completa um mês com mais de 650 ví-
deos e 1.326 parceiros In: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.
asp?idConteudo=115573 Acesso em 30.01.2015.
____, “Joaquim Barbosa é aplaudido por eleitores durante votação no Rio”. Dis-
ponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/joaquim-barbosa-e-aplaudi-
do-por-eleitores-durante-votacao-no-rio Acesso em 01/02/2015.
_______, “Ministro Luiz Fux toca guitarra e canta na posse de Joaquim Barbosa”.
In: http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2012/11/ministro-luiz-fux-toca-
-guitarra-e-canta-na-posse-de-joaquim-barbosa.html Acesso em 01/02/2015.
74 CADERNOS FGV DIREITO RIO
SETTI, Ricardo, “Ministro Joaquim Barbosa torna-se “herói” em peça que cir-
cula pela web segunod a qual “Batman é para os fracos”. In: http://veja.abril.
com.br/blog/ricardo-setti/politica-cia/ministro-joaquim-barbosa-vira-heroi-em-
-peca-que-circula-por-e-mail-dizendo-que-batman-e-para-os-fracos/ Acesso
em 01/02/2015.
1. Introdução
Não é preciso um esforço imaginativo para relacionar fotografia e cultura po-
pular. Várias décadas de inovações revolucionárias no mundo da fotografia
aprofundaram sua influência em nossas vidas, que vai hoje desde hábitos e
expectativas das pessoas até as políticas governamentais. A cultura popular
torna essa influência evidente.
Sabemos que a câmera digital de hoje em dia é apenas uma das muitas
inovações que já se tornaram lugar-comum, em uma sucessão de triunfos tec-
nológicos. Muitas pessoas veem como banais e até indispensáveis os difun-
didos recursos digitais e eletrônicos do mundo moderno, de smartphones a
internet. Para outras, sobretudo as mais velhas, que cresceram com uma versão
mais antiga da cultura popular, essas inovações mudaram a experiência coti-
diana de suas vidas pessoais e profissionais.
Uma característica da fotografia nos dias de hoje afeta todas as gerações
— a onipresença da câmera. Somos todos fotógrafos; somos todos fotografa-
dos. As câmeras estão hoje embutidas em smartphones extremamente portá-
teis, em tablets e aparelhos do gênero, sendo um dentre os muitos recursos
que esses aparelhos oferecem. Elas são nossas companheiras. Como é fácil
fotografar hoje em dia, em comparação com a forma mais deliberada e tra-
balhosa de fotografar de uma geração atrás. A nossa capacidade moderna de
fotografar em um piscar de olhos é comparável à nossa capacidade de ouvir
música praticamente quando quisermos, o que, por si só, demonstra a enorme
distância entre os dias de hoje e os milênios em que só se era possível ouvir
música quando nós mesmos a tocávamos ou quando estávamos ao alcance da
1 Traduzido do inglês por Julia Nemirovsky e revisado pelo editor, Pedro Fortes, e por André
Bogossian.
2 Henry J. Steiner é Jeremiah Smith Jr Professor of Law, Emeritus, Harvard Law School. Suas
publicações dizem respeito principalmente ao direito internacional e relações internacio-
nais, com ênfase, desde a década de 1980, em direitos humanos. Em 1984 ele fundou o Pro-
grama de Direitos Humanos da Harvard Law School e foi seu diretor até se tornar professor
emérito em 2005. Steiner proferiu palestras e prestou consultoria em mais de 35 países.
76 CADERNOS FGV DIREITO RIO
voz de quem o fizesse. Nosso apetite pela realização imediata dos nossos mais
variados desejos não para de crescer.
Os diferentes usos dessa câmera onipresente vão tão longe quanto nossa
imaginação. Ela pode produzir a imagem perfeita desejada pela maior parte
dos fotógrafos amadores que “batem” fotos praticamente o tempo todo para
registrar passeios turísticos, amigos e membros da família — de recém-nas-
cidos a avós —, ou para registrar situações incomuns que encontramos por
acaso. O recurso de gravação de vídeos com áudio dos smartphones expande
o repertório dos fotógrafos, aí incluindo toda uma sucessão de eventos em
vez de apenas momentos específicos. A memória humana não tem mais que
carregar todo o fardo de recordar a aventura de ontem ou de tempos remotos.
Iniciando-se o seu terceiro século de vida, a câmera assume essa tarefa cada
vez mais.
Esse ensaio aborda duas formas diferentes pelas quais a fotografia assu-
me um papel proeminente na transformação da cultura popular, destacando-
-se na miríade de outros dispositivos eletrônicos (O termo “fotografia”, aqui,
significa fotos e registros audiovisuais). A primeira discussão é baseada na
minha própria transição do ambiente social da minha infância e juventude
para a vida em um novo contexto de cultura popular. Para ilustrar essa tran-
sição, imagino as pessoas assistindo hoje a registros audiovisuais que mos-
tram seus antepassados muitas décadas atrás, e especulo qual o efeito desse
“acesso” fácil aos mortos em suas lembranças dos que partiram e na compre-
ensão da história. O sistema jurídico formal não tem qualquer relação com
essa primeira discussão.
A segunda discussão é voltada para um aspecto diferente da cultura po-
pular. Meu tema aqui não é o efeito causado nas pessoas que veem a nova
forma de fotografia, mas o efeito naqueles que são vistos, naqueles que (talvez
sem saberem) estão sendo fotografados. Esse tema aborda a operação de sis-
temas avançados de vigilância por autoridades governamentais com o objetivo
de monitorar os espaços públicos na tentativa de reduzir a probabilidade de
ocorrência de crimes comuns e de terrorismo. Os meios de vigilância e a forma
com que os dados reunidos são utilizados podem levantar sérias questões so-
bre a violação de direitos constitucionais, sobretudo do direito à privacidade.
Sistemas de vigilância pública e as relativas questões constitucionais se torna-
ram parte da atividade cotidiana do Congresso, de várias assembleias legis-
lativas estaduais, e também dos tribunais. As decisões judiciais têm um papel
central nessa discussão.
Ainda que o tema principal desse ensaio seja a fotografia, meus exemplos
em ambas as discussões também abordam outras inovações tecnológicas. Por
exemplo, a primeira discussão aborda mudanças ambientais e visuais, sobretu-
FOTOGRAFIA, CULTURA POPULAR E DIREITO 77
portanto, compreendem parte dos seus passados de forma mais vívida e pro-
funda. Eles podem preencher parcialmente o vazio deixado pelo quase desa-
parecimento dos diários pessoais na cultura moderna, que podiam ser bastante
informativos para os descendentes. Os vídeos podem reavivar a memória so-
bre as relações familiares, mostrando nossos antepassados (muitas vezes sem
que eles saibam) conversando, brincando juntos, abraçando-se, fazendo cara
feia, dando ou recebendo ordens, intimamente conectados uns com os outros
ou mantendo-se distantes. Talvez assistir a vídeos venha a ser um elemento
importante em rituais anuais de recordação, complementando o acender uma
vela ou a visita ao cemitério. Talvez os pacientes de psicanalistas levarão víde-
os na tentativa de ilustrar a sessão terapêutica.
Como podemos aplicar esses pensamentos a antepassados mais remo-
tos? Vamos supor que a nossa tecnologia e as câmeras de hoje em dia esti-
vessem disponíveis no meio do século XIX. Quão mais rico poderia se tornar
o nosso conhecimento sobre a nossa genealogia e sobre a história da nossa
família se pudéssemos assistir a vídeos que nos levassem pelo menos até
nossos bisavós, observando esses antepassados em seus ambientes familia-
res, sociais e culturais. Em um país de imigrantes como os Estados Unidos,
a capacidade de explorar a história da família poderia “transportar” muitos
americanos para as vidas de seus ascendentes antes da emigração, em cultu-
ras e países estrangeiros.
Podemos ainda tentar imaginar a vida daqui a 150 anos, quando os filhos
dos nossos bisnetos estarão assistindo a nossas vidas com certo espanto. Os
vídeos, transmitidos de geração em geração, podem se tornar uma parte do le-
gado e da educação de uma família, podem fortalecer a compreensão das suas
próprias raízes, e ajudar a moldar as crenças dos membros das famílias sobre
quem são. Talvez os vídeos mostrem como a riqueza, o status e a educação de
uma família aumentaram ou diminuíram a cada geração. Talvez ao ver esses
vídeos os espectadores possam expandir a noção de sua própria família para
incluir muitas pessoas tidas hoje como desconhecidas, e desse modo reforcem
o sentimento de conexão humana. Talvez, observar os antepassados partici-
pando de cerimônias e rituais realizados até hoje possa fortalecer identidades
particulares: rezar à mesa, ir a um batizado, realizar o sêder, quebrar o jejum do
Ramadã. Ou talvez o contrário.
Outra consequência da nova fotografia é a relativa à educação — por
exemplo, o estudo da história. Considere o ensino da história americana, no
qual fotografias ocupam, hoje, uma posição não muito relevante. Se eu ima-
ginar que o conhecimento tecnológico e os aparelhos sofisticados de hoje em
dia estivessem disponíveis no meio do século XIX, as aulas de hoje poderiam
FOTOGRAFIA, CULTURA POPULAR E DIREITO 79
3 Nota do Editor: O discurso de Gettysburg foi proferido pelo Presidente Abraham Lincoln
durante a consagração de um cemitério de soldados em Gettysburg, Pennsylvania, me-
ses após a União ter obtido uma importante vitória sobre os Confederados na Batalha de
Gettysburg. O discurso é famoso pelas afirmações de Lincoln a respeito dos princípios e
aspirações dos Estados Unidos da América.
80 CADERNOS FGV DIREITO RIO
4 Nota do Editor: Nos Estados Unidos, o termo utilizado para descrever o “voto” dado pelos
integrantes da Corte é “opinion”. Por exemplo, uma “opinion” assinada por cinco dos nove
Ministros da Suprema Corte (Opinion of the Court) pode ser acompanhada de um “voto”
concorrente (concurring opinion) de um ministro e por um voto dissentindo (dissenting
opinions) assinada pelos outros três ministros. No caso, há apenas uma decisão, mas três
votos diferentes.
5 132 S.Ct. 945, 565 U.S. ___ (2012).
6 Nota do Editor: O termo Ministros no context deste artigo é tratado como o equivalente do
termo Justice, referindo-se aos Justices da Suprema Corte dos EUA.
FOTOGRAFIA, CULTURA POPULAR E DIREITO 83
pessoa por meios eletrônicos, sem a ocorrência de uma invasão, seja uma in-
vasão de privacidade inconstitucional; mas o presente caso não exige que essa
questão seja respondida.” Note que essa observação não indica qual argumen-
to jurídico poderia levar a essa decisão, nem em qual dispositivo constitucional
ela se fundamentaria.7
Em seu voto concorrente, a Ministra Sotomayor, assim como a Corte, en-
tendeu que a invasão era suficiente para configurar uma violação. Entretanto, ela
seguiu uma linha diferente de argumentação. Muitas formas contemporâneas de
vigilância não exigem invasão física de um espaço privado. Ainda assim, elas po-
dem violar a “expectativa subjetiva de privacidade que uma sociedade reconhe-
ce como razoável”, sobretudo se a vigilância for direcionada pelo governo desde
o início para coleta informações sobre a conduta de uma pessoa ou instituição
específica, e não para monitoramento um espaço público (como um parque) no
interesse da segurança de modo geral. Por exemplo, uma câmera de vigilância
pode estar direcionada para a entrada da sede de uma determinada organização
com o objetivo de saber mais sobre seus membros. Ou a vigilância pode acom-
panhar os movimentos de um carro específico utilizando leitores de placas.
Em relação à variedade de fatos sobre uma pessoa que essa vigilância
específica pode revelar, a Ministra Sotomayor pergunta “se as pessoas têm
uma expectativa razoável de que seus movimentos serão gravados e colecio-
nados de forma a permitir ao governo” descobrir diversas informações sobre
suas crenças e condutas — por exemplo, laços religiosos e políticos e hábitos
sexuais. Ao decidir se a privacidade havia sido invadida inconstitucionalmente,
a Ministra Sotomayor levaria em consideração “a existência de uma expectativa
7 Todos os três votos podem ser entendidos como levantando, em algum grau, a questão se
as decisões judiciais relativas à vigilância eletrônica de espaços públicos devem continuar a
ter a Quarta Emenda como a única fundamentação para os argumentos sobre privacidade
e constitucionalidade. Devemos lembrar que a Suprema Corte construiu uma doutrina de
direito à privacidade independente dos termos da Quarta Emenda, aplicável a contextos
muito variados. Essas decisões, envolvendo, sobretudo, os estados (em oposição ao gover-
no federal) e a ação estatal (state action), são às vezes reunidas sob a denominação “de-
vido processo legal substantivo”, em referência à Cláusula do Devido Processo Legal (due
process of law) da Décima Quarta Emenda, aplicável aos governos estaduais. As principais
decisões envolvem, principalmente, questões relacionada a casamento, família, procriação
e relações sexuais. Elas localizam a fonte de um direito à privacidade constitucional de
diversas formas relacionadas, porém distintas, referindo-se ou explicitamente sustentando-
-se em: a Cláusula da Liberdade (Liberty Clause) da Décima Quarta Emenda, certas previ-
sões da Bill of Rights (as primeiras dez emendas) tal como a Primeira Emenda (liberdade
de expressão) e a Quarta Emenda, e uma área de penumbra formada de emanações de
diversos direitos declarados na Bill of Rights. Algumas declarações nos votos de Jones
podem ser interpretadas como uma expressão de simpatia a essa abordagem, ou pelo
menos de abertura a ela. As principais decisões que consideraram as regulações estatais
inconstitucionais e que eram baseadas nesse direito de privacidade incluem Griswold v.
Connecticut, 381 U.S. 479 (1965) (direito de fazer uso de contraceptivos) e Roe v. Wade,
410 U.S. 113 (1973) (direito ao aborto, sujeito a determinadas condições).
FOTOGRAFIA, CULTURA POPULAR E DIREITO 85
4. Conclusão
Considero dramáticas e significativas as mudanças na nossa cultura po-
pular que esse ensaio aborda: os novos caminhos que os indivíduos estão se-
guindo para explorar o passado, e os novos caminhos que os governos estão
traçando para monitorar o presente. A fotografia de hoje é um meio para todas
essas mudanças. É muito provável que minhas observações sobre essas mu-
danças contemplem apenas a proverbial ponta do iceberg. Cientistas, enge-
nheiros, investidores de risco, e autores de ficção científica podem ter ideias
mais bem definidas sobre aonde estamos indo. Eu certamente não tenho. O
que parece evidente, entretanto, é que a onda de invenções e a velocidade
com que os novos produtos criaram mercados enormes e neles tiveram êxito
ainda não chegou ao fim. Tudo parece possível nesse “admirável mundo novo”
que se gaba de ter carros que dispensam motoristas e robôs para todos os fins.
A cultura popular ainda vai enfrentar grandes choques. O sistema jurídico vai
necessariamente precisar se engajar nessa batalha sempre que as inovações e
visões de hoje desafiarem valores fundamentais.
Bibliografia
KERR, Orin. “The Mosaic Theory of the Fourth Amendment”. In: Michigan Law
Review, vol. 111, n. 3, dezembro 2012, pp. 311-354.
SONTAG, Susan. On Photography. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1973.
SULLIVAN, Kathleen and GUNTHER Gerald (eds.). Constitutional Law 17a ed.
New York: Foundation Press, 2010.
DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA
CAVERNA
Eduardo Muylaert1
Uma imagem, mais uma vez, chocou o mundo. Até os já acostumados à visão do
planeta enrubescido pelos reflexos perversos do elemento fogo se assustaram.
Pudemos ver, em fevereiro de 2015, o piloto jordaniano Muath al-Kasasbeh, de
26 anos, sendo queimado vivo dentro de uma jaula. A imagem, estampada em
todos os jornais, foi extraída do vídeo divulgado pelo ISIS, a organização terro-
rista autodenominada Estado Islâmico. Horas depois, em retaliação, a Jordânia
enforcaria um homem e uma mulher condenados por terrorismo. Sem as ima-
gens, o enforcamento acabou tendo menos impacto. A única rede americana a
divulgar, em seu site, os 22 minutos da agonia do piloto foi a conservadora Fox
News. Os simpatizantes do ISIS, por sua vez, espalharam os links pelo Twitter.
Paradoxalmente, os dois lados pareciam acreditar que a divulgação das ima-
gens podia servir a seus ideais. Enquanto isso, o mundo voltava a se perguntar:
há lógica na barbárie?
Uma imagem, mais uma vez, foi usada para mobilizar a opinião pública. O
Centre Pompidou, em Paris, afixou em sua fachada uma enorme foto da cami-
nhada de protesto contra o atentado à redação do jornal humorístico Charlie
Hebdo, invadido no fatídico 7 de janeiro de 2015. Terroristas bem treinados
assassinaram friamente jornalistas e funcionários, a pretexto da profanação da
imagem do profeta Maomé.
Uma imagem, mais uma vez, foi usada para provar um fato. Os jornais de
fevereiro de 2015 reproduziram uma foto de Fidel Castro, divulgada nos sites
oficiais cubanos, para demonstrar que o líder ainda estava vivo aos 88 anos.
Em janeiro de 2015 o mundo celebrou com tristeza os 70 anos da liberação
do campo de concentração de Auchwitz. As fotos das cerimônias, na presença
de sobreviventes e chefes de Estado, não dão a mais pálida ideia da dimensão
quando duas coisas se esfregam uma contra a outra, no caso palavras contra
imagens. Cada foto queimada libera a imagem de seu lugar fixo na história,
para atingir nova função de significado, permitindo, na linguagem de Nietzs-
che, uma relação plástica com o passado. (Hollis Frampton — Nostalgia, Afterall
Books/MIT Press).
Vivemos num mundo em que tudo parece transitório, pessoas, imagens,
regras, a vida. Será que da fricção entre as regras que nos obrigam e as ima-
gens que nos assustam podemos também extrair alguma chama, alguma luz,
algum sinal?
As imagens do paleolítico
As melhores imagens do paleolítico sobreviveram e foram descobertas por
acaso. No outono de 1940, um rapaz de férias em Montignac, a uma hora de
Paris, passeava com seu cão num bosque próximo ao castelo de Lascaux. A
perseguição de um coelho acabou levando a um buraco que poderia ser uma
saída do castelo, mas se revelou a entrada da caverna onde jazia o magnífico
tesouro, perfeitamente conservado há 17.000 anos. Podemos penetrar nessa
preciosidade pelas imagens, tanto do filme The Cave of Forgotten Dreams, de
92 CADERNOS FGV DIREITO RIO
O papel da fotografia
Um jornal de literatura e belas artes fundado em Paris em 1830, L’Artiste, muda
de mãos em 1856, inaugurando seu melhor período, com Téophile Gautier
como chefe de redação. Já no número inaugural da nova fase proclama que as
96 CADERNOS FGV DIREITO RIO
A verdade na caverna
Nem pela fotografia, nem pelo direito, se pode chegar à verdade. Nenhum dos
dois campos tem essa pretensão, ou objetivo, mas ainda há muita confusão a
respeito. Todo mundo já ouviu falar na alegoria da caverna, mas poucos lem-
bram bem do que se trata. Platão, nascido em Atenas quatro séculos antes da
era cristã, trata da organização política e do ser humano na sua clássica Repú-
blica. No livro VII, aparece o mito da caverna, paradigma definitivo da questão
aparência versus realidade e do processo de conhecimento.
Em singelo resumo, há homens presos desde a infância numa caverna,
todos acorrentados e voltados para uma parede onde a luz que vem de fora
projeta cenas do exterior. Como é natural, eles tomam as sombras por reali-
A ficção na fotografia
A fotografia, antes de se pretender arte, já brincava com a realidade, desde
o nascedouro e por todo o sempre, amém. Hippolyte Bayard se decepcionou
quando a Academia, que havia consagrado o daguerreotipo como grande in-
venção, negou reconhecimento ao seu importante processo fotográfico. Como
resposta, encenou em 1840 um autorretrato como afogado, escrevendo no ver-
so: “O cadáver que vocês veem aqui atrás é do Senhor Bayard, inventor do pro-
cesso que acabam de observar e do qual verão os maravilhosos resultados. (...)
O governo, que havia dado tanto ao Senhor Daguerre, disse nada poder fazer
pelo Senhor Bayard, e este se afogou”3 O Estado francês, efetivamente, deu
uma pensão anual de 10.000 francos a Daguerre e seu sócio, o filho e herdeiro
de Nièpce, mas Bayard só conseguiu 600 francos para compra de material fo-
tográfico. Coisas da lei e do governo, que o primeiro selfie de ficção questionou
com muito mais vigor do que qualquer petição ou recurso.
A expansão da fotografia
O objeto da fotografia, no século de sua invenção, pode ser classificado nas
mesmas categorias do Code Civil: pessoas, bens, propriedades. As fotos de
paisagens do início da fotografia hoje atingem valores incalculáveis, na casa
100 CADERNOS FGV DIREITO RIO
com os preços mais baixos do processo, todos queriam ter seu cartão de visita
ilustrado para dar, trocar, enviar pelo correio ou colar em álbuns. Milhões des-
ses cartões foram produzidos, ampliando o campo da fotografia e sua difusão.
Chegando ao século XX
O primeiro jornal a publicar uma fotografia, em 4 de março de 1880, foi o New
York Daily Graphic. A reprodução fotográfica em livros e jornais foi facilitada e
barateada com o uso do halftone, o meio-tom que caracteriza o pontilhado dos
clichês e já apontava para a expansão da imprensa no século XX.
A primeira câmera Kodak surgiu no ano da Lei Áurea, 1888, com o slogan
“Você aperta o botão, nós fazemos o resto. A única câmera que qualquer um
pode usar sem instruções”. A partir daí, o instantâneo passou a se espalhar e a
popularização da fotografia, com Charles Eastman vendendo sua Brownie a um
dólar, abriria as portas para a fotografia popular do século XX. Não é à toa que o
filósofo Pierre Bourdieu, ao estudar os usos sociais da fotografia, a caracterizou
como uma arte de classe média, inclusive, mas não só, pela acessibilidade das
ferramentas (câmeras) e facilidade de seu uso. O grande Henry Cartier-Bresson
lembra que, como muitos outros garotos, entrou no mundo da fotografia com
uma Brownie de caixão, que usava para colher instantâneos nas férias.
O século XX trouxe mais inovações e mudanças do que todos os períodos
anteriores, abrindo caminho para o que, confortavelmente ou não, somos hoje.
Tudo se acelera, a tecnologia avança, alcançamos a Lua, estamos conectados,
mas o planeta Terra continua devastado por guerras, destruição, fome, epide-
mias, ódios. O direito e a fotografia não têm como escapar a essas realidades,
das quais ora são meros espectadores impotentes, ora agentes tentando intervir.
Eugène Atget andava por Paris com sua pesada câmera, por volta de 1900,
e deixaria uma obra maravilhosa de documentação da cidade, só reconhecida
mais tarde. Os irmãos Lumière começavam a exibir seus filmes, mudos, é claro.
Nos Estados Unidos, Alfred Stieglitz editava Camera Notes e ajudava a fundar
a Photo-Secession, que até o fim da guerra de 14-18 seria fiel ao pictorialismo
à americana. Na Alemanha, August Sander começava sua longa série de retra-
tos sobre as profissões e condições sociais, que foi proscrita no nazismo, pois
sua visão da realidade se distanciava muito do modelo ariano idealizado por
Hitler. Na América, Edward S. Curtis convence J. P. Morgan a financiar a pu-
blicação de The American Indian, sua monumental coleção em vinte volumes,
obra magnífica, mas que traz uma aura de heroísmo e glorificação bem distante
da realidade. Em contrapartida, Lewis S. Hine e Jacob Riis inauguram o docu-
mentário social, fotografando os imigrantes, a pobreza e o trabalho infantil em
Nova Iorque. Em 1929, enquanto a crise decorrente do crash da Bolsa devas-
tava os Estados Unidos, na Europa a fotografia moderna, com destaque para
102 CADERNOS FGV DIREITO RIO
Acomodação e rebeldia
As estrelas dos anos 50, no cinema, ainda eram Marilyn Monroe e Grace Kelly. A
Lady e o Vagabundo, de Disney, estourava nas bilheterias. A censura continua-
va vigilante, com medo de que o comunismo e as batalhas pelos direitos civis
contaminassem o American Way of Life. Mas, já surgiam sombras de inquieta-
ção com James Dean e Natalie Wood em Rebelde sem Causa, A Leste do Éden,
de Elia Kazan, e até a saia esvoaçante de Marilyn em O Pecado Mora ao Lado.
Em 1958, o livro The Americans, do suíço Robert Frank, com prefácio de
Jack Kerouack, quebra os padrões tradicionais e recebe críticas ferozes, mas
teria uma influência definitiva na nova fotografia americana. Os anos 60 trazem
a revolução, com os Beatles na música e Andy Warhol e Robert Rauschenberg
incorporando as imagens fotográficas ao mundo da arte moderna.
Nos anos 70 a fotografia foi reconhecida e incorporada pelos museus e
pela universidade. Nessa época, os temas que até hoje são um desafio para o
direito foram francamente abordados, mas não sem escândalo. Diane Arbus,
que morreu em 1971, deixou o conforto do mundo da moda para explorar a mi-
séria da condição humana, os deficientes, os desajustados, os freaks; hoje ela é
um dos ícones da fotografia contemporânea e sua obra tem valor incalculável.
Robert Mapplethorpe, fotógrafo negro e homossexual, chocou a América
com seus corpos esculturais de homens, causando escândalo quando expôs
um branco sexualmente submetido a um negro. Em 1990 acabou absolvido
da acusação de obscenidade, motivada pela exposição de seus trabalhos num
museu de Ohio. Depois, Mapplethorpe foi reverenciado numa das galerias do
Guggenheim Museum e é um clássico.
DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 105
que indica que a maior parte dessa produção pode se perder. As imagens de
Lascaux não eram muitas, mas com a migração do povo que as habitava e as
boas condições naturais de preservação, o tesouro se salvou. O mundo digital
trouxe a multiplicação das imagens, mas as cavernas virtuais, os discos rígidos,
os meios de armazenamento, inclusive na nuvem, não são favoráveis à preser-
vação por mais do que alguns meses ou anos.
Os escritos que Fernando Pessoa guardava num baú de madeira estão
hoje depositados numa caixa-forte no subsolo da Biblioteca Nacional de Por-
tugal, vigiados por câmeras e protegidos até de um terremoto como o de 1755,
que devastou Lisboa. Aliás, estamos todos vigiados por câmeras, desde as que
nos olham na frente de nossos computadores e dos nossos celulares, até as que
estão em cada prédio e em cada poste e são monitoradas inclusive pela po-
derosa NSA, a National Security Administration do governo americano. Apesar
disso, não estamos tão protegidos quanto os papéis do poeta, e nem o mun-
do está protegido. Ao contrário, numa espécie de círculo vicioso, parece que
quanto maior a insegurança, maior a vigilância, e vice-versa.
Vivian Mayer, que é considerada uma das mais importantes street photo-
graphers, trabalhou como babá nos Estados Unidos por 40 anos e sua obra só
foi descoberta depois que morreu, em 2009. Quando Atget morreu, em 1927,
grande parte de seus preciosos negativos de vidro poderiam ter se perdido; fo-
ram salvos ao serem comprados pela americana Berenice Abott, outra grande
fotógrafa, que tinha sido assistente de Man Ray. Hoje, estão no MOMA e foram
objeto de dois dos estudos mais importantes até hoje escritos sobre fotografia:
a Pequena História da Fotografia e A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade
Técnica, de Walter Benjamin.
Lee Miller, que viveu com Man Ray e foi atriz de Jean Cocteau, interpre-
tando a linda estátua de O Sangue de um Poeta, fotografava moda para a Vo-
gue, mas na segunda guerra vestiu uniforme e foi, em companhia de David
Scherman, da revista Life, trabalhar como correspondente de guerra. Miller foi
a primeira mulher a entrar em Buchenwald e Dachau com o exército aliado e
conseguiu registros impressionantes, enquanto muitos de seus colegas homens
passavam mal. Ela fez depois o conhecido autorretrato na banheira de Hitler,
em Munich. Tendo largado a fotografia, morreu doente e depressiva em 1977 e
aí seu filho, Anthony Penrose, achou num sótão o acervo da mãe e descobriu
que a ela tinha sido uma grande fotógrafa. Hoje ele dirige a fundação que cuida
e divulga essa obra em museus, livros e filmes.
Assim como as pinturas de Lascaux, esses são alguns exemplos de precio-
sidades que poderiam ter se perdido, mas que sobreviveram e são importantes
documentos de nossa humanidade. Todas foram salvas graças ao suporte físi-
co que ficou resguardado. A quantidade razoável, e a durabilidade do material,
DIREITO E FOTOGRAFIA, DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA 107
Dividir e conhecer
O direito tem vários ramos e divisões que formam as disciplinas de seu estudo.
Assim o direito civil, com os pedaços que cuidam das pessoas, das coisas, dos
contratos, das obrigações, das sucessões, da família, etc.; o direito penal, que
trata basicamente dos crimes e das penas; o direito do trabalho e o da seguri-
dade social; o direito comercial, o econômico, o da empresa, o administrativo,
e assim por diante. Tais componentes, entretanto, entrelaçam-se na estrutura
central do sistema jurídico de cada país e, em tese, buscam legitimidade na lei
maior, a Constituição. Esta, por sua vez, estrutura a repartição dos poderes e
das competências, ficando a cargo do legislador a elaboração das normas, do
executivo a sua execução e do judiciário sua interpretação e aplicação, quando
acionado. O juiz comum, em começo de carreira, em geral não é especializado,
julgando casos de qualquer natureza.
108 CADERNOS FGV DIREITO RIO
Muitos artistas optam, num mundo saturado de imagens, por uma espécie
de reciclagem de nossos ícones culturais. Richard Prince ficou famoso com seu
caubói de Marlboro, refotografando outdoors de cigarro. O personagem da
foto original morreu de câncer, mas Prince ficou rico e famoso. Richard Misrach,
em seu Pictures of Paintings (2002), se limita a fotografar detalhes de quadros
de museus, que adquirem enorme força expressiva. Minha exposição de 2011,
Mulheres dos Outros, trouxe imagens criadas a partir de slides comprados em
feirinha. Originalmente, são pin-ups dos anos 50, mas as manchas, o novo cor-
te e o tratamento as aproximam de esculturas gregas e romanas. A escultura,
aliás, foi um dos primeiros temas a ser tratado em fotografia, mas, como em
Lascaux, o foco, o ângulo de visão, o grau de aproximação, a iluminação e as
técnicas laboratório, criam impressionantes reinvenções, como analisou Roxa-
na Marcoci (The Original Copy, Photography of Sculture, 1839 to Today, 2010).
As questões jurídicas que envolvem a fotografia, por outro lado, são in-
termináveis, e vão desde o conflito entre o direito de expressão e a proteção
da imagem e da intimidade, até aquelas relativas à autoria e à propriedade
imaterial, com seus reflexos patrimoniais. O plágio foi recentemente estudado
no livro eletrônico Plágio: palavras escondidas, de Debora Diniz (Fiocruz, 2014).
Nem falta humor aos estudiosos que veem os artistas completamente perdidos
nessas questões. Susan M. Bielstein lançou Permissões, Um Guia de Sobrevivên-
cia, sobre a propriedade intelectual na arte (2006). E a francesa Agnès Tricoire
escreveu um Pequeno Tratado da Liberdade de Criação, nem tão pequeno as-
sim, pois tem 300 páginas (2011).
O laboratorista, em geral, não é o autor da foto, nem a viu sendo feita. Trabalha
apenas com o negativo, para obter a chamada “prova” fotográfica, uma cópia
ou ampliação decorrente de sua intervenção, que representa a solução encon-
trada e, muitas vezes, a versão definitiva. O julgador também não tem contato
direto com os fatos, seus negativos são as evidências, as “provas” jurídicas,
que ele tem que interpretar e avaliar para aplicar o direito de acordo com sua
convicção e que, com a ficção do trânsito em julgado, vai se tornar a versão e
a solução definitiva.
Fotografar, diz Henry Cartier-Bresson, é colocar na mesma linha de mira a
cabeça, o olho e o coração. Julgar também, por mais forte razão. É bom lem-
brar a visão de Bresson a respeito dos fatos:
e aberto ao que está aí e reagirei à nova situação, se houver uma nova situação,
mas com certeza não vou fazer nenhuma predição sobre o futuro.
I know not what tomorrow will bring: Não sei o que o amanhã vai trazer.
Essa foi a última frase escrita, no hospital e em inglês mesmo, por Fernando
Pessoa, na véspera de sua morte em1935, com 47 anos,
Também não sabemos o que o futuro nos reserva. Sabemos apenas que
não podemos deixar de olhar; olhar e ver; ver e registrar; registrar e guardar.
Se não for possível vislumbrar um caminho melhor, ao menos vamos deixar
imagens que um dia poderão ser descobertas na nossa caverna e, quem sabe,
admiradas por sua beleza ou seus horrores.
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liès / Un homme de tête / L’homme orchestre / Nouvelles luttes extravagantes
/ Barbe-bleue / L’homme à la tête en caoutchouc / Le voyage dans. Arte Video.
William Klein. 2008. Eclipse Series 9: The Delirious Fictions of William Klein.
Criterion Collection.
JOGOS ELETRÔNICOS E DIREITO
Pedro N. Mizukami1
Talvez seja estranho pensar nas relações entre jogos eletrônicos e ensino ju-
rídico. Ao contrário do uso de obras literárias e cinematográficas em contex-
tos educacionais, a combinação “jogos e direito” pode soar inusitada ou até
mesmo implausível.2 Se é usualmente fácil encontrar exemplos de filmes ou
romances que abordem problemas jurídicos, com ganchos óbvios para uso em
sala de aula, o mesmo não ocorre com os jogos. Pelos menos à primeira vista.
Façamos um rápido teste: o objetivo é explorar, em sala de aula, questões
relacionadas ao direito municipal e planejamento urbano. Gentrificação, por
exemplo. Que obras poderíamos usar? É possível, ainda que com algum esfor-
ço, lembrar-se de filmes que abordam, direta ou indiretamente, o tema. Caso
contrário, pode-se simplesmente fazer uma busca no Internet Movie Database
(IMDB) com a palavra-chave “gentrification” e obter como retorno 54 títulos.3
O mesmo, para romances, a partir de uma busca na seção de literatura da
Amazon.4 E jogos? Pac-Man? Candy Crush Saga? Super Mario Bros.? Street
Fighter? Que jogo abordaria um tema sério como gentrificação?
1 Pedro Mizukami é Mestre em Direito do Estado pela PUC-SP. Doutorando em Políticas Pú-
blicas, Estratégias e Desenvolvimento pela UFRJ. Coordenador acadêmico da equipe brasi-
leira do projeto "Media Piracy in Emerging Economies" do Social Science Research Council
(2011). Coordenador do componente brasileiro do projeto "Ecology of Access to Educatio-
nal Materials in Developing World Universities" da American Assembly (Columbia Universi-
ty). Coautor do relatório “Mapping Digital Media: Brazil” (Open Society Foundations, 2013).
Foi conselheiro titular pela FGV no Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos
contra a Propriedade Intelectual (Ministério da Justiça), mandato 2012-2014. Email: pedro.
mizukami@gmail.comTwitter: @p_mizukami.
2 Desconsiderando-se, é claro, os óbvios paralelos — não abordados por este ensaio — entre
“jogo” e “processo judicial”. De acordo com Huizinga: “That an affinity may exist between
law and play becomes obvious to us as soon as we realize how much the actual practice of
the law, in other words a lawsuit, properly resembles a contest whatever the ideal founda-
tions of the law may be.” HUIZINGA, Johan. Homo ludens: a study of the play element in cul-
ture. London/Boston/Henley: Routledge & Kegan Paul, 1949, p. 82. Ver, ainda, comentando
Huzinga: LASTOWKA, Greg. Law and games studies. Games and Culture, v. 1, n. 1, 2006, pp.
25-68.
3 http://www.imdb.com/search/keyword?keywords=gentrification.
4 http://www.amazon.com/s/ref=sr_nr_n_27?fst=as%3Aoff&rh=n%3A283155%2Cn%3A17%2
Ck%3Agentrification&keywords=gentrification&ie=UTF8&qid=1425501896&rnid=1000.
126 CADERNOS FGV DIREITO RIO
O estado da arte
Toda nova mídia passa por um percurso complicado antes de vencer alguns
preconceitos e ser levada a sério como forma de expressão, como arte, como
objeto cultural. Novas mídias costumam causar estranheza e, às vezes, res-
postas regulatórias pouco amigáveis. Elas têm um longo processo de emanci-
pação até se incorporarem ao mainstream cultural. Foi o que aconteceu com
os filmes7 e com os quadrinhos.8 É o que está acontecendo com os jogos
eletrônicos.
Os games passaram de mercado de nicho para um dos principais setores
da indústria de entretenimento, parcialmente em razão do envelhecimento das
primeiras gerações de consumidores de jogos, associada à entrada de consu-
midores mais novos, bem como a uma ampliação qualitativa em relação aos
tipos de jogos produzidos. Da mesma maneira como há diferenças entre as pri-
meiras levas de filmes e quadrinhos e as produções contemporâneas, os jogos
eletrônicos são, atualmente, muito mais numerosos, diversos e complexos do
que costumavam ser no início de sua trajetória. Se a expressão “jogo eletrô-
nico” nos anos 80 remetia a obras como Pac-Man, Super Mario Bros., Ultima,
Street Figher e Monkey Island — jogos já bastante diferentes entre si —, hoje em
dia o repertório é muito mais rico e variado, fruto de um processo cumulativo
e iterativo de design, inspiração criativa, demandas de mercado, e desenvolvi-
mento tecnológico.
Muito ao contrário do que se podia imaginar nem tanto tempo atrás, hoje
temos jogos sobre câncer,9 depressão,10 transgeneridade,11 o cerco de Sara-
jevo12 e controle de fronteiras.13 Games abstratos e experimentais,14 que aten-
dem a pequenos públicos e propósitos, em que predomina mais a dimensão
experiência do que a de jogo. Jogos comerciais de massa, produções caras que
atendem a grandes públicos e se acomodam ao mínimo denominador comum
dos interesses dos consumidores tradicionais.15 Jogos em que predomina o
7 GRIEVESON, Lee. Policing cinema: movies and censorship in early Twentieth-Century Ame-
rica. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 2004.
8 HAJDU, David. The ten-cent plague: the great comic-book scare and how it changed Ame-
rica. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2008. No Brasil: JUNIOR, Gonçalo. A guerra dos
gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos, 1934-64. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004.
9 That Dragon, Cancer (2014, Ryan Green e Amy Green).
10 Depression Quest (2013, Zoe Quinn).
11 Dys4ia (2012, Anna Anthropy).
12 This War of Mine (2014, 11 bit studios).
13 Papers, Please (2013, Lucas Pope).
14 Jogos como, por exemplo, Bientôt l’Été (2012, Tale of Tales), Proteus (2013, Ed Key), Pas-
sage (2007, Jason Rohrer), e Journey (2012, Thatgamecompany).
15 As séries Call of Duty, Assassin’s Creed, Far Cry, Fifa Soccer e Gran Turismo são bons exem-
plos.
128 CADERNOS FGV DIREITO RIO
16 Caso de parte dos text adventures, ficção interativa e visual novels, e de jogos que desafiam
categorização, como Device 6 (2013, Simogo).
17 Papa Sangre (2010, Somethin’ Else) é um bom exemplo. Para mais, ver http://www.audio-
games.net/.
18 Ver BOGOST, Ian; FERRARI, Simon; SCHWEIZER, Bobby. Newsgames: journalism at play.
Cambridge/London: The MIT Press, 2010. Um dos exemplos citados pelos autores, Cutthro-
at Capitalism, um jogo sobre pirataria na Somália veiculado pela revista Wired, pode ser
jogado em: http://archive.wired.com/special_multimedia/2009/cutthroatCapitalismThe-
Game.
19 Para uma análise da popularização dos casual games, ver JUUL, Jesper. A casual revolution:
reinventing video games and their players. Cambridge/London: The MIT Press, 2010.
20 Os documentários Indie game: the movie (2012, Canadá, dir. James Swirsky e Lisanne Pajot)
e Gameloading: rise of the indies (2015, Austrália, dir. Anna Brady e Lester Francois) ofe-
recem uma boa visão panorâmica da consolidação dos indie games enquanto movimento
cultural e segmento de mercado.
21 Para compreender o ethos DIY aplicado ao desenvolvimento de jogos indies, ver ANTHRO-
PY, Anna. Rise of the videogame zinesters: how freaks, normals, amateurs, artists, dreamers,
drop-outs, queers, housewives, and people like you are taking back an art form. New York:
Seven Stories Press, 2012.
JOGOS ELETRÔNICOS E DIREITO 129
Narrativa e gameplay
Jogos eletrônicos são geralmente compostos por uma fusão de elementos au-
diovisuais, associados a um conjunto de regras, objetivos, mecânicas de jogo22
e, frequentemente, uma narrativa. Esteticamente, é possível levar em conside-
ração esses elementos separadamente — a música de um jogo, por exemplo
— ou em operação conjunta. O que costuma caracterizar um jogo enquanto tal,
entretanto, é o que se denomina gameplay: aquilo que é gerado pelas regras,
mecânicas e objetivos que estabelecem uma experiência de jogo.23
No campo dos game studies, uma das principais querelas acadêmicas colo-
ca de um lado os “ludologistas”, que insistem em estudar os jogos com foco nos
elementos que os caracterizam enquanto jogos — mecânicas de jogo, regras,
gameplay — e de outro os “narratologistas”, que preferem uma abordagem que
estude os jogos em conjunto com outras mídias que veiculam histórias.24
Analisando a disputa, Jenkins25 observa que: a) nem todo jogo conta uma
história: jogos podem ser abstratos, enfatizar expressão e experiência, e se
aproximam, dessa maneira, mais da música e dança do que do cinema; b) alguns
jogos têm, de fato, aspirações narrativas, e justificam o estudo da interação
entre games e storytelling; c) a análise de narrativas não deve ser prescritiva,
ao contrário do que defendem alguns narratologistas, e o potencial dos jogos
enquanto veículos para narrativas não deve obscurecer suas outras característi-
cas; d) a experiência de se jogar um jogo não pode ser estritamente reduzida à
experiência da exposição de alguém a uma história; e) quando os jogos contam
uma história, eles o fazem de maneira diferente do que outras mídias.
A discussão é relevante quando pensamos no uso de jogos em sala de aula
por três motivos:
Como defendido por Bogost, uma das principais características dos jogos
é a sua aptidão à retórica procedimental, entendida como “[...] the practice of
authoring arguments through processes.”26 Por meio de representações basea-
das em regras, em vez de texto e elementos audiovisuais, é possível criar obras
com um poder persuasivo peculiar, que pode ser direcionado a aplicações nos
campos da política, publicidade e educação. Em outras palavras: jogos carre-
gam expressão e mensagens que se manifestam por meio de procedimentos e
regras, e da submissão dos jogadores a eles.27
Cuidados fundamentais
Ao decidir utilizar um game em sala de aula, além da pertinência do jogo com
os objetivos de ensino e o conteúdo a ser explorado, há peculiaridades ineren-
tes a essa mídia que devem ser consideradas:
Sugestões de atividades
Sem qualquer pretensão de exaustividade, seguem três possibilidades de uso
de jogos eletrônicos em sala de aula:
Análise. Pede-se aos alunos que joguem um jogo e façam uma análise da
obra enquanto jogo. Aqui, pode-se tanto escolher jogos que tenham uma nar-
rativa quanto jogos que sejam puro gameplay. Jogos de simulação, por exem-
plo, são material excelente para análise. Toda simulação procura representar,
com um sistema (ou sistemas) de regras inter-relacionadas, uma certa realida-
29 O site How Long to Beat tem uma base de dados com várias informações úteis sobre a
duração de jogos: http://howlongtobeat.com/.
JOGOS ELETRÔNICOS E DIREITO 133
de. Essas regras representam bem ou não a realidade que procuram represen-
tar? Quais os pressupostos adotados pelo jogo, para estabelecer a simulação?
Quais as posições ideológicas por trás do design?
Representações de gênero, raça, etnia e orientação sexual podem ser ob-
jeto de discussão em aulas de direitos humanos. Jogos que têm preocupação
com world building geralmente definem relações sociais, de poder, religiosas,
de gênero, e são ótimos pontos de partida para discussões aprofundadas sobre
essas questões.
Os jogos listados na próxima seção, abaixo, apresentam alguns temas e
jogos que podem se mostrar adequados para uma atividade de análise em
aulas de direito.
Design. Pode soar pouco provável, mas outra maneira de se explorar jogos
em sala de aula é colocar o próprio professor ou seus alunos no papel de game
designer. Realidades que o direito procura regular, ou até as próprias normas
jurídicas, podem ser representadas e colocadas sob novas perspectivas por
meio de um exercício de design.
O resultado final não precisa ser um jogo eletrônico e pode muito bem
ser um jogo de tabuleiro ou de cartas. Mas há ferramentas para construção de
jogos eletrônicos cujo uso não está fora do alcance de alguém que não saiba
programar. Há, é verdade, uma curva de aprendizagem a se considerar, e game
design não é algo trivial de se fazer bem. O exercício de se pensar em como
transformar algo em jogo, entretanto, pode valer a pena ainda que o resultado
final seja um jogo ruim.
Text adventures ou ficção interativa são uma boa opção para designers
principiantes. Predominantemente focados em narrativa literária, com graus
variados de interatividade, esses jogos são fáceis de se criar a partir de uma
ferramenta chamada Twine.30 Diversos exemplos de jogos construídos em Twi-
ne podem ser encontrados no site itch.io.31
Alguns jogos
Como ilustração, por fim, seguem cinco sugestões de jogos que podem ser
utilizados para análise em sala de aula, com temas correspondentes:
30 http://twinery.org/.
31 http://itch.io/search?q=twine.
134 CADERNOS FGV DIREITO RIO
Referências bibliográficas
ANTHROPY, Anna. Rise of the videogame zinesters: how freaks, normals, ama-
teurs, artists, dreamers, dropouts, queers, housewives, and people like you are
taking back an artform. New York: Seven Stories Press, 2012.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: a study of the play element in culture. London/
Boston/Henley: Routledge & Kegan Paul, 1949.
JUUL, Jesper. A casual revolution: reinventing video games and their players.
Cambridge/London: The MIT Press, 2010.
LASTOWKA, Greg. Law and games studies. Games and Culture, v. 1, n. 1, 2006,
pp. 25-68.
SAUCERMAN, Jenny. SimCity: can a god game teach urban planning? GAPS, 20
de abril de 2013. Disponível em: http://edgaps.org/gaps/simcity/.
Germano Schwartz3
1. Introdução
Em 1998, durante uma encruzilhada na carreira multiplatinada do Iron Mai-
den, na época em que o contestado Blaze Bayley substituía o vocalista Bruce
Dickinson como frontman da banda ícone do New Wave of British Heavy
Metal, o grupo lançou o subestimado disco Virtual XI. Como o próprio nome
diz, o álbum fala de um mundo em que a virtualidade se sobrepõe aos con-
tatos reais.
Uma das músicas da obra em referência é aquela que consta do título
deste ensaio: When Two Worlds Collide. Em síntese, no seu refrão, a donzela
de ferro canta que quando dois mundos diversos colidem, sobram somente a
raiva e a dor. O problema é que os sobreviventes não possuem lugar para se
esconder, pois aquilo que resta é seu único mundo. Monocromático.
De outro lado, Jim Morrison, frontman do The Doors, escreveu a letra da
música que também intitula este artigo. Ela é a faixa que abre o primeiro dis-
co (The Doors) da banda californiana. Uma gravação de alta influência até os
dias de hoje. O ano era o de 1967. Contracultura, subversão, puritanismo, entre
outros, faziam parte de uma sociedade que se encontrava em uma encruzi-
lhada. Era a hora ou de manter o status quo ou de rompê-lo e avançar com
as mudanças sociais. Em qual direção? Para o outro lado. Break on through to
the other side!
O Direito encontra-se nesse exato dilema. Romper e inovar, aceitando no-
vas possibilidades para sua observação, ou deixar colidir dois mundos (Direito
e Sociedade), fazendo com que juristas não tenham mais onde se abrigar, exce-
to naquilo que lhes resta: seu feudo composto de normas jurídicas.
Longe do desencanto apocalíptico pré-século XXI do Iron Maiden, o pre-
sente ensaio quer se juntar à visão de Jim Morrison. Se é sabido que o dia des-
trói a noite e que a noite divide o dia, nada mais elementar que evitar a colisão
dos mundos, tentando correr para o outro lado.
1 Esse é título da quinta música do álbum Virtual XI, lançado em 1998, pela banda britânica
Iron Maiden. MAIDEN, Iron. Virtual XI. EMI: Brasil, 1998. 1 CD.
2 Faixa inaugural do debut da banda californiana The Doors, em álbum cujo título leva o
nome do próprio grupo. DOORS, The. The Doors. Elektra: USA, 1967. 1 CD.
3 Diretor Executivo Acadêmico dos Cursos de Direito da FMU. Coordenador do Mestrado em
Direito e Sociedade do Unilasalle-Canoas. Secretário do Research Committee on Sociology
of Law (RCSL) da International Sociological Association (ISA). Doutor em Direito (Unisinos).
140 CADERNOS FGV DIREITO RIO
razão. Por isso a dificuldade de se mensurar o valor das obras de arte. O Direito,
por seu turno, possui seus parâmetros (leis, sanções, entre outras). É dessa for-
ma que as obras artísticas (Rock) possibilitam a aceitação psíquica das expec-
tativas normativas22 existentes nos ambientes dos demais subsistemas sociais.
Nesse sentido, o rock se apresenta como um fenômeno social que possui
alta conexão com o Direito, seja como instrumento de contestação do status
quo (normas jurídicas), seja como catalizador das ambiências sociais. Como
parte do sistema da arte, possui suas próprias características e suas comunica-
ções específicas. Tais comunicações, em grandes linhas, são de ordem subver-
siva, como um American Idiot 23 em plena Guerra do Iraque.
A arte antecipa e o rock é arte. Dessa maneira, o rock, assim como qual-
quer outra forma artística (Literatura)24, pode auxiliar a que se chegue ao outro
lado da Lua, proporcionando novas formas de observação do sistema jurídico e
de suas relações com os demais sistemas.
3. Por que o Rock, afinal “We fought the Law, But Law Won!”25?
Nessa linha de raciocínio, por qual razão rock e Direito, afinal “We“ fought the
Law but Law Won 26
? As respostas, em grande parte, foram alinhadas anterior-
mente. Aduz-se aqui apenas um outro elemento. Das relações recíprocas entre
arte e Direito exsurgem vários cenários. Um deles, a partir do rock, é típico de
uma sociedade que se torna cada vez mais complexa. Dita complexidade ocorre
a cada momento e é incessante27. Essa característica, a complexidade, é eviden-
ciada com maior ênfase em um sistema social global que se torna potencializado
no pós-guerra (1945 em diante) e cuja maior característica é a comunicação28.
Assim, desde os anos 50 do século passado, com Elvis, Little Richard ou
Jerry Lee Lewis, apenas para exemplificar alguns, passando por figuras tais
como Hendrix, Janis Joplin, Robert Plant, Bono Vox, Curt Cobain, entre outros,
até chegar a figuras atuais como um Mariliyn Manson, o fato é que o rock se
tornou um fenômeno de massa tipicamente global. Há rock cantado em pra-
ticamente todas as línguas conhecidas. Depois dele, o mundo nunca mais foi
o mesmo, mas sua língua corrente, a música, continua inalterada (The Song
Remains the Same — Led Zeppelin): o rock.
O rebolado de Elvis nos anos 50 do século passado teve uma repercus-
são na América puritana daquela época tão grande que não possui condições
de ser mensurado. O The Pelvis teve suas músicas censuradas, pois elas eram
consideradas um poço de sensualidade. Um escândalo. O problema é que a
sociedade já havia sido infectada por aquele vírus, conforme defende Hein29,
para quem o fenômeno do rock dos anos 50 produziu claramente uma série de
efeitos que modificou boa parte das estruturas sociais e econômicas de consi-
derável parte dos países ocidentais.
Muito disso vem do fato de que o rock viabilizou (medium) a comunicação
das expectativas sociais — correlacionadas às expectativas normativas — com
os demais sistemas sociais (Direito), pois basta juntar uma guitarra, um baixo
e uma bateria, com alguma pouca instrução musical30, para se questionarem,
inclusive, instituições centenárias como a monarquia inglesa31. É a filosofia do
you too32, típica do rock, que alcançou para os indivíduos a autonomia nas
comunicações e a possibilidade de produzir realidades para além daquela for-
necida pela mídia tradicional. O rock torna provável o improvável33: comunicar
música com o Direito.
Diante disso, é imperativo tentar descobrir qual a semântica que o rock
chamou para si na sociedade contemporânea e, ainda, o que ele tenciona co-
municar a partir de sua diferenciação social?
Bralic34, sobre esse aspecto, reporta que músicas inovadoras, tal como
o rock, não possuem sentidos correlatos em outros subsistemas sociais. Em
oposição, por respeitar seus próprios limites que, musicalmente, não são, via
de regra, de grandes pretensões, o rock se vê diante de um paradoxo: para se
reafirmar enquanto rock, ele precisa afirmar que não o é. Com isso, seu sentido
29 HEIN, Fabien. Le rock, une musique subersive? In: MASTOR, W.;MARGUÉNAUD, J-P.; MAR-
CHADIER, Fabien. Droit et Rock. Paris: Dalloz, 2011, p. 32.
30 Como é o caso dos Sex Pistols.
31 Lembre-se, aqui, do álbum The Queen is Dead , da banda The Smiths.
32 A partir dessa frase, uma banda irlandesa, muito famosa, montou seu nome. É o U2.
33 LUHMANN, Niklas. A Improbabilidade da Comunicação. 4ªed. Lisboa: Vega, 2006.
34 BRALIC, C. A. La Obra Musical como Punto de Vista. Análisis sistémico sobre la “Música
Contemporánea”. In:: I. Farías & J. Ossandón, eds. Observando Sistemas: neuvas apropria-
ciones y usos de la teoria de Niklas Luhmann. Santiago: RIL Editores; Fundación Soles,
2006, p. 136.
144 CADERNOS FGV DIREITO RIO
35 CARVALHO, M. V., Série, alea e autopoiesis. In:: J. M. Santos, ed. O Pensamento de Niklas
Luhmann. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2005,p. 167.
36 HEIN, Le rock, une musique subersive?, 2011, p.35.
37 Título de uma das músicas mais famosas dos Rolling Stones.
38 Uma das conexões entre Direito e samba é feita por GRÜNE, Carmela. Samba no Pé & Direi-
to na Cabeça. São Paulo: Saraiva, 2012.
39 RICHARDS, Keith. Vida. São Paulo: Nova Fronteira, 2012.
40 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.
324.
41 DUCRAY, F.. Que faut-il entendre para <<musique rock>>?. In:: M. Wanda, J. Marguénaud &
M. Fabien, eds. Droit et Rock. Paris : Dalloz, 2011, p. 12-13.
DIREITO & ROCK 145
42 DUCRAY, F.. Que faut-il entendre para <<musique rock>>?. In:: M. Wanda, J. Marguénaud &
M. Fabien, eds. Droit et Rock. Paris : Dalloz, 2011, p. 13.
43 Esse pacto foi tornado filme na película Crossroad, dirigido por Walter Hill e lançado no ano
de 1986.
146 CADERNOS FGV DIREITO RIO
5. Considerações Finais
O presente ensaio teve um propósito bastante específico, espelhado nas per-
guntas a que se propôs responder. Em sua defesa, diga-se que as conexões
entre Direito & Rock são mais profundas e possuem mais potencialidades do
que o corte deste texto apresentou44.
De qualquer sorte, é preciso aduzir que o argumento central repousa em
um dos pressupostos da TSAD. Existem subsistemas sociais que possuem co-
municações específicas que se tornam ambiência um do outro. O processo de
autonomia de cada um deles parte de uma abertura cognitiva e de um fecha-
mento operacional. Códigos e programas fazem a filtragem necessária para
que, tanto Arte quanto Direito, permaneçam diferenciados entre si.
Ao mesmo tempo, tal pressuposto garante a possibilidade de que um sub-
sistema social influencie o outro. De um modo bastante simplista, não se pode
negar, sob essa perspectiva, que tanto o Direito pertence à sociedade45 quanto
a Arte também.
Nessa linha de raciocínio, é, também, bastante fácil, afirmar que Direito &
Arte possuem, sim, conexões que merecem ser apuradas, distantes dos edifí-
cios teórico-normativos que situam o fenômeno jurídico enquanto mera autor-
reprodução de sua auto-organização.
Resta, pois, claro, que o presente ensaio se situa em uma perspectiva so-
ciológica do Direito. Acaso seu leitor ainda não esteja convencido dessa co-
nexão, importante referir que, por exemplo, já existem estudos muito fortes,
no Brasil e no mundo, na área do Direito e Literatura. Tais estudos falam por
si. Todos, entretanto, de alguma forma ou de outra, centram-se nas perguntas
aludidas aqui.
Por fim, acaso o ponto de partida do leitor não seja, precipuamente, as
ligações entre Direito e Sociedade, deixa-se, aqui, um pequeno trecho de uma
música dos Rolling Stones, dedicada a demonstrar a necessidade das unidades
de diferença. Faz-se isso para que, algum dia, tal como no caso dos movimen-
tos sociais da contemporaneidade, esse leitor não diga: “Ninguém esperava!”46.
44 Sugere-se, aqui, para um maior aprofundamento a leitura de SCHWARTZ, Direito & Rock,
2014.
45 Essa perspectiva é mais bem abordada nos textos que compõem a obra MEDEIROS, Fer-
nanda; SCHWARTZ, Germano (Orgs). O Direito da Sociedade. Canoas: Editora Unilasalle,
2014.
46 CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
DIREITO & ROCK 147
Referências bibliográficas
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roamericana, 2012.
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DUCRAY, F.. Que faut-il entendre para <<musique rock>>?. In:: M. Wanda, J.
Marguénaud & M. Fabien, eds. Droit et Rock. Paris: Dalloz, 2011, p. 11-27.
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GRÜNE, Carmela. Samba no Pé & Direito na Cabeça. São Paulo: Saraiva, 2012.
MILLARD, Éric. I Fougth the Law. In: MASTOR, W.;MARGUÉNAUD, J-P.; MAR-
CHADIER, Fabien. Droit et Rock. Paris: Dalloz, 2011, p. 193-200.
PINK FLOYD. Dark Side of The Moon. Harvest Records: United Kingdom, 1973.
1CD.
WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua Linguagem. Porto Alegre: Fabris, 1992.
150 CADERNOS FGV DIREITO RIO
LOOK AT ALL THESE LONELY PEOPLE: AINDA A
INTERPRETAÇÃO EM ARTES E DIREITO
Ana Elvira Luciano Gebara1
José Garcez Ghirardi2
minha interlocutora. “Na verdade, isto não é ‘Eleanor Rigby’. É uma versão. Os
Beatles jamais escreveram as notas que estão sendo tocadas e a música não é
mais do que os sons que são produzidos. Uma versão de ‘Eleanor Rigby’ não é
‘Eleanor Rigby’, tanto assim que quem assina essa faixa não é Paul McCartney,
nem John Lennon, mas o Duofel3. Esta é outra música”.
A partir daqui, nosso debate se torna mais sério. Percebemos que há algo
nesse problema — a relação entre a música original e sua versão jazzística —
que guarda semelhanças importantes com o tema clássico da interpretação
no Direito e com os problemas correlatos que envolvem segurança jurídica e
seu enraizamento com a jurisprudência. Há, em ambos os casos, a tensão entre
permanência e ruptura, entre um texto canônico e sua realização particular.
Dessa relação — original e versão —, decorre o problema da interpretação
excessiva, confusa ou insuficiente e, também, a dificuldade de se estabelecer
critérios para saber se uma determinada versão é boa ou ruim (vale qualquer
coisa no jazz?), ou para decidir se este ou aquele músico se manteve mais pró-
ximo do original, e se foi acertado fazê-lo em cada uma das ocorrências. Assim,
dialogando com partituras e interpretações, este artigo discute cada um desses
tópicos, buscando refletir sobre as características da interpretação jurídica por
meio de um paralelo com a dinâmica que rege a produção e fruição das obras
de jazz.
O primeiro problema a ser enfrentado é o do sentido de identidade da
obra original nesse contexto duplo (musical e jurisprudencial). Quando se afir-
ma que o Duofel compôs uma versão de ‘Eleanor Rigby’, ou que Bill Evans e trio
estão interpretando ‘Some day my prince will come’4, há duas premissas apa-
rentemente antagônicas em funcionamento. A primeira delas é a de que aquilo
a que se está ouvindo é uma versão de um objeto cujos traços fundamentais
permanecem, contudo, nessa nova formulação. É essa permanência de traços
que permite que o novo formato seja entendido como versão, como variação
e não como obra original. Se for impossível estabelecer qualquer identidade
entre a recriação jazzística e a canção de origem, não cabe falar em versão.
A questão aqui passa a ser, então, a de se definir o que se considera traços
fundamentais. No jazz, a linha melódica básica é talvez o elemento mais fre-
quentemente apontado como candidato a estabelecer a unidade entre original
e variação. De fato, é bastante comum a um estilo de jazz começar a sessão
apresentando, com alterações mínimas, o tema sobre o qual se irá comentar.
3 Duofel é um dueto de violonistas, formado por Luís Bueno e Fernando Melo. Essa versão de
Eleanor Rigby está em Duofel plays the Beatles (Fine Music, 2009).
4 “Some day my prince will” come é uma das canções do filme do Estúdio de Walt Disney,
Branca de Neve (1937). Essa canção ficou famosa entre os músicos de jazz e pop que fize-
ram inúmeras versões. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=KUT06K5eGz4 , a versão
de Bill Evans e trio.
LOOK AT ALL THESE LONELY PEOPLE 153
Mas esse elo de ligação não é um absoluto e, muitas vezes, se mostra mesmo
bastante frágil. Alguns dos melhores momentos de Miles Davis em suas varia-
ções sobre “Summertime”, por exemplo, parecem destacar-se completamente
do encadeamento melódico original. Andamento, tonalidade, encadeamento de
notas se transformam a ponto de fazer desaparecer da superfície sonora, qual-
quer indício de seu suposto ponto de partida. Devemos dizer que, nesse mo-
mento, ele deixou de tocar a música de Gershwin para iniciar uma nova canção?
Parece difícil responder afirmativamente a essa questão sem fazer qua-
lificações importantes. Para além de aspectos mais técnicos (o trabalho com
o tempo, por exemplo), outras considerações tornam difícil sustentar a tese
de que existe ali uma obra totalmente nova. Não parece possível, portanto,
entender a performance de Davis sem ter presente, o tempo todo, a melo-
dia conforme foi composta para Porgy and Bess5. A arte do jazzista consiste,
justamente, em sua habilidade de reconfigurar uma referência compartilhada
com o público. Sem isto, perde-se o próprio sentido do que ocorre na jam ses-
sion. Só é possível compreender a “Summertime” de Davis porque se conhece
a “Summertime” de Gershwin e porque se entende que há uma continuida-
de programaticamente suposta entre uma e outra. Trata-se de uma evocação,
uma música “fantasma” que se insinua por entre os espaços da versão atual
levando-nos a outros diálogos que, dependendo de nosso repertório, irá nos
guiar ao original.
É importante lembrar que só existe original porque existem reedições.
Sem as retomadas, “Summertime” e “Eleanor Rigby” não poderiam ser denomi-
nadas “original”. Quando elas são interpretadas pelos próprios artistas ou pelos
grupos que fazem cover6, há a busca de evocação da primeira experiência,
não uma inovação. Basta trazer à memória grupos que se vestem como os ori-
ginais, imitam as vozes e mantêm os arranjos tal como na primeira ocorrência.
Por outro lado, há artistas que se baseiam na primeira edição, para recriá-las.
É, nesse momento, que a primeira versão se torna original, no sentido de ser a
origem desses outros objetos, cuja estrutura se funda na tensão entre perma-
nência e ruptura, conservação e inovação.
Há várias estratégias para se estabelecer esse diálogo com o texto-fonte.
Trata-se da intertextualidade, como Julia Kristeva denominou os diálogos entre
textos7, em que cada uma das aproximações indica um movimento em relação
5 Considerada uma ópera folclórica, Porgy and Bess, 1935, foi composta por Gershwin e Du-
Bose Heyward, sobre a história de um grupo de afroamericanos em Catfish Row, na Caroli-
na do Sul, em 1920.
6 Regravação ou performances de canção ou música, uma espécie de tributo ao original do
qual pouco se afasta.
7 Cf. KOCH, I. V.; CAVALCANTI, M.; BENTES, A. C. Intertextualidade: diálogos possíveis. São
Paulo: Cortez, 2007. Nesse livro as autoras discutem cada uma das formas de intertextua-
154 CADERNOS FGV DIREITO RIO
da realidade ou de uma das formas culturais que com ela se relacionam). Seu
objetivo central parece ser o de explorar as múltiplas possibilidades de se com-
preender o clássico de Gershwin.
Importa, porém, notar que tanto Davis, quanto Picasso, exploram suas res-
pectivas linguagens a partir de uma referência à forma convencional de per-
ceber os objetos dentro da área em que circulam suas produções. Ao trazer
“Summertime” para seu repertório, Davis deixa claro que a construção de sua
obra supõe o conhecimento socialmente partilhado de uma obra anterior. Isto
não seria absolutamente necessário: ele era um compositor talentosíssimo e
poderia simplesmente oferecer ao público (como fez tantas vezes) uma obra
que não citasse um trabalho alheio já amplamente conhecido.10 Seu objetivo
ao retomar uma obra consagrada parece ser justamente o de construir algo de
novo nesse espaço do já conhecido. Dito de outra forma: seu objetivo parece
ser o de realizar, concretamente, o sentido da palavra intérprete.
O termo, como se sabe, traz de sua origem a ideia de negociação: o in-
térprete era aquele que se colocava entre (inter) duas partes para ajudá-las
a definir um preço (pretium) que parecesse justo a ambas.11 Sua função era,
portanto, a de fazer convergir entendimentos diferentes de modo a possibilitar
uma ação comum. Tanto a discordância, quanto o ponto comum são indispen-
sáveis à sua ação. Sem discrepância quanto ao valor ou sentido de algo, não há
necessidade de intérprete; sem algum ponto de consenso, não há viabilidade
para o intérprete. Seu trabalho se dá no espaço entre a impressão individual e
o sentido coletivamente partilhado.
Miles Davis é um intérprete justamente porque é capaz de responder a
múltiplas leituras de uma mesma peça e apresentar um ponto, insuspeitado
por aquelas que já a conheciam, capaz de fazer convergir leituras individuais
potencialmente divergentes. Esse caráter de estabilização e convergência faz
com que muitas interpretações se tornem clássicas ou canônicas, isto é, que
passem a ser consideradas como objetos primeiros e não como objetos deri-
vados. Davis, dessa forma, leva Gershwin a novos diálogos para além de seu
tempo, para além de seus interlocutores originais. Agora ambos soam con-
comitantemente aos nossos ouvidos não importando qual música estejamos
apreciando se a original ou a interpretação. “Summertime” é mais do que uma
canção no singular.
A função do intérprete é, assim, justamente a de definir ou esclarecer,
para uma comunidade, algum sentido controverso ou obscuro em uma obra
10 Da mesma forma como Picasso poderia ter optado pela pintura abstrata, sem qualquer
referência a um elemento de conhecimento comum.
11 Cf. etimologia da palavra intérprete: http://www.dicionarioetimologico.com.br/busca/
?q=int%C3%A9rprete
156 CADERNOS FGV DIREITO RIO
compartilhada por tal comunidade. Sem esse aspecto comum, coletivo não há
lugar ou sentido para a ação do intérprete, isto é, a interpretação. A atividade
de interpretar requer essa negociação social de sentido e implica, por isso as
premissas de que
que se arbitre qual o melhor sentido no caso de uma obra específica. Nesse
viés, a interpretação se autoriza por seu aspecto conservador, na medida em
que é percebida como um instrumento para estabilizar um significado como
dominante ou hegemônico, e para repelir outras construções possíveis. O intér-
prete aqui parece conservar as crenças tradicionais, porque mostra que o que
parecia novo é, de fato, uma reedição do já conhecido.
Por outro lado, a autoridade do intérprete está também na sua capacidade
de inovar, vale dizer, de fazer uma conciliação inédita de elementos. O caráter
obscuro ou ambíguo de uma obra só subsiste enquanto o elenco de hipóteses
interpretativas disponíveis para sua superação se mostrar incapaz de fazê-lo.
O bom intérprete será aquele que oferecer uma nova hipótese, seja pela reor-
ganização de elementos já presentes nas hipóteses tradicionais, seja pela intro-
dução de novos elementos. Como nos versos de Caetano, o novo aqui é uma
estratégia para revelar e estabelecer o antigo: “E aquilo que nesse momento se
revelará aos povos/Surpreenderá a todos não por ser exótico/Mas pelo fato de
poder ter sempre estado oculto/Quando terá sido o óbvio”.12
Não surpreende, assim, que o prestígio de Bill Evans, Davis ou Monk ve-
nha do fato que eles sejam fabulosos intérpretes, isto é, que sejam capazes de
revelar sentidos possíveis e profundamente convincentes para textos de co-
nhecimento comum. O modo como Davis apresenta “Summertime” não surge,
portanto, como uma traição à obra de Gershwin, mas como uma epifania, como
uma exegese que revela o que pode estar oculto, tendo sido o óbvio.
Em seu clássico Tradition and the Individual Talent, T.S. Eliot discute exata-
mente essa tensão entre ruptura e permanência intrínseca à atividade de inter-
pretação, bem como o caráter necessariamente ativo do intérprete:
12 “Um índio” é uma das canções do álbum Bicho, de Caetano Veloso (1977).
158 CADERNOS FGV DIREITO RIO
antes que a nova obra apareça; para que a ordem persista após
a introdução da novidade, a totalidade da ordem existente deve
ser, se jamais o foi sequer levemente, alterada: e desse modo as
relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao todo
são reajustados; e aí reside a harmonia entre o antigo e o novo.13
A premissa de Eliot de que no artist of any art has his complete meaning
alone retoma, pelo ponto de vista do patrimônio coletivo, a discussão até aqui
estruturada a partir da figura do intérprete. Não há possibilidade de interpre-
tação sem a existência de um repertório aceito como referencial por uma co-
munidade.
Por outro lado, esse repertório não tem um sentido estável, dado de uma
vez por todas. Pelo contrário: o sentido do todo é reordenado cada vez que a ele
se agrega um novo elemento O sentido das obras de Plutarco, sugere Eliot, mu-
daram depois de sua apropriação por Shakespeare;14 o mesmo se poderia dizer
da Ilíada de Homero após sua retomada por James Joyce em Ulysses; de “Sum-
mertime” por Davis, da Mona Lisa, por Salvador Dali, etc. Não há necessidade de
estender a lista de citações para sublinhar a relevância do argumento de Eliot:
não apenas são indissociáveis os atos de interpretar e de criar, mas os próprios
sentidos anteriormente consolidados se modificam por força da obra posterior.
Postular essa dinâmica para a interpretação e essa função criativa para o
intérprete implica postular que não há oposição, mas sim complementaridade,
entre evento original e evento derivado. Em termos jurídicos, significa dizer
que não há qualquer antagonismo substantivo entre segurança jurídica e dis-
cricionariedade do magistrado. Tanto no jazz, como no Direito, a expectativa
da realização do intérprete é a de que ele sempre inove e sempre conserve.
E isto não significa propor uma antinomia, mas reconhecer o funcionamento
necessariamente dialético da interpretação.
13 No poet, no artist of any art, has his complete meaning alone. His significance, his apprecia-
tion is the appreciation of his relation to the dead poets and artists. You cannot value him
alone; you must set him, for contrast and comparison, among the dead. I mean this as a prin-
ciple of æsthetic, not merely historical, criticism. The necessity that he shall conform, that he
shall cohere, is not one-sided; what happens when a new work of art is created is something
that happens simultaneously to all the works of art which preceded it. The existing monu-
ments form an ideal order among themselves, which is modified by the introduction of the
new (the really new) work of art among them. The existing order is complete before the new
work arrives; for order to persist after the supervention of novelty, the whole existing order
must be, if ever so slightly, altered; and so the relations, proportions, values of each work
of art toward the whole are readjusted; and this is conformity between the old and the new
ELIOT, T. S. The Sacred Wood. New York: Alfred A. Knopf, 1921; Bartleby.com, 1996. http://
www.bartleby.com/200/sw4.html#5 . Acesso em 24-02-2015. Trad. de Ivan Junqueira in
ELIOT, T.S. Ensaios. São Paulo: Faber & Faber, 1989.
14 Op. cit.
LOOK AT ALL THESE LONELY PEOPLE 159
Referências
17 Cf. Debate entre Dworkin (“My reply to Stanley Fish (and Walter Benn Michaels): Please
don’t talk about objectivity any more”) e Fish (“Working on the chain gang” “Wrong again”).
PRISÕES, BORDÉIS E AS PEDRAS DA LEI:
DISCURSOS MODERNOS SOBRE O DIREITO
EM JOHN AUSTIN E WILLIAM BLAKE
José Garcez Ghirardi1
As obras de John Austin e William Blake são amiúde apontadas como pontos
de origem, respectivamente, do positivismo no Direito e do Romantismo na
poesia. Esse artigo sugere que sua importância se estende para além de seu
impacto nessas áreas específicas. Sustenta-se aqui que as obras dos autores
representam também respostas antagônicas ao projeto da Modernidade — e
aos discursos sobre o Direito que dele decorrem — ideias essas que se tor-
naram matriciais para a forma de o Ocidente pensar o jurídico e sua função
na sociedade.
1 Advogado formado pela Universidade de São Paulo (1985). É professor em tempo integral
da FGV DIREITO SP, onde trabalhou também como Coordenador de Metodologia e Ensino.
É responsável pela disciplina Programa de Formação Docente, no Mestrado da FGV DIREI-
TO SP. Atuou como Diretor de Formação Docente da Associação Brasileira de Ensino do
Direito — ABEDi e membro da Comissão de Especialistas da Secretaria de Educação Supe-
rior do MEC para a área de Direito. É autor, entre outras obras, de O instante do encontro:
questões fundamentais para o ensino do Direito (Acadêmica Livre FGV, 2012).
2 The existence of law is one thing; its merit or demerit is another. Whether it be or be not is one
enquiry; whether it be or be not conformable to an assumed standard, is a different enquiry. A
law, which actually exists, is a law, though we happen to dislike it, or though it vary from the
text, by which we regulate our approbation and disapprobation. Austin 1832: Lecture V, p. 157.
Austin, John, 1832, The Province of Jurisprudence Determined, W. Rumble (ed.), Cambridge:
Cambridge University Press, 1995 (todas as traduções são do autor desse artigo).
3 Erdman, D.V. (ed.). The Complete Poetry & Prose of William Blake. Anchor Books, 1982.
(Esta obra será a fonte para todas as citações de Blake, ao longo do texto).
4 Ao longo desse texto, os adjetivos Moderno e Romântico aparecerão com a inicial em
maiúscula para indicar que estão sendo utilizados não em sua acepção corriqueira (i.e.
moderno = atual, contemporâneo; romântico = sentimental., apaixonado) mas como mar-
cadores, respectivamente, de períodos históricos específicos: o Moderno (sobretudo em
seu desdobramento Iluminista, a partir do final do século XVII) e o Romântico (sobretudo
a partir das primeiras décadas do século XIX).
162 CADERNOS FGV DIREITO RIO
7 «Je voudrais, et ce sera le dernier et le plus ardent de mes souhaits, je voudrais que le
dernier des rois fût étranglé avec les boyaux du dernier prêtre.» Jean Meslier, Testament,
1729. A compilação de Voltaire, que escolheu e publicou excertos da obra em 1762, é pro-
vavelmente a grande responsável pela popularidade da obra. A edição eletrônica do Tes-
tament está disponível em http://classiques.uqac.ca/collection_documents/meslier_jean/
testament/testament_tdm.html.
164 CADERNOS FGV DIREITO RIO
Não surpreende, assim, que pensadores, como John Austin, desejavam dar
aos estudos jurídicos um caráter verdadeiramente científico, que buscassem li-
vrar o campo de todas as impurezas que o tornavam bastante mal talhado para
essa abordagem de Ciência. Angústia semelhante seria sentida por estudiosos
de todos os campos do saber que não se ocupavam das ciências da natureza
(literatura, ética, ciência política, etc.): o conjunto dos esforços que cada área
empreendeu para acomodar-se aos paradigmas do conceito Moderno de Ciên-
cia — então percebido como o único realmente legítimo — ilustra um momento
crucial da formação do pensamento do Ocidente a partir do século XVIII.
O projeto de Austin9 de delinear fronteiras nítidas para a jurisprudência e
de circunscrevê-la de modo a insulá-la de outros discursos está perfeitamente
em linha com o projeto da Modernidade conforme descrito acima. Ele deseja,
em primeiro lugar, dispor de um objeto que possa ser observado de fora, por
assim dizer, um objeto que independa do observador, que exista e funcione
independentemente dos sujeitos que irão analisá-lo. Esta é condição sine qua
non para atender a premissa de observação neutra sem a qual ninguém pode
se pretender cientista. Só assim, também, será possível descrever as caracterís-
8 The great invention of the West was that of an immanent order in Nature, whose working
could be systematically understood and explained on its own terms, leaving open the ques-
tion whether this whole order had a deeper significance, and whether, if it did, we should
infer a transcendent Creator beyond it. TAYLOR, op. cit. p. 15.
9 cf. Bix, Brian, “John Austin”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2015 Edi-
tion), Edward N. Zalta (ed.), URL = <http://plato.stanford.edu/archives/spr2015/entries/
austin-john/>.
PRISÕES, BORDÉIS E AS PEDRAS DA LEI 165
relações entre prescrições divinas, leis naturais e normas humanas. Mas não é
só a ênfase dos debates que se modifica. A lógica de validação se transforma
igualmente, para excluir do campo dos argumentos aceitáveis aqueles que re-
corram a saberes ou valores externos ao sistema.
Veja-se, a título de ilustração, o quanto diferem o debate tomista sobre o
problema das leis injustas e o tratamento que Austin dá ao mesmo problema
de legitimidade. São Tomás reflete sobre o fenômeno jurídico como elemento
necessariamente integrado a um plano maior, que é indispensável para que
seja corretamente apreendido. Vale dizer: para entender elementos internos ao
Direito, é preciso ter em mente o sentido do Direito na ordem geral do mun-
do e este sentido é, evidentemente, exterior e superior ao jurídico. Em outros
termos: para São Tomás, há um sentido mais amplo que representa a moldura
dentro da qual causalidades especificamente jurídicas podem ser compreendi-
das e discutidas.
Ao discutir o problema da legitimidade, Austin adota uma posição dia-
metralmente oposta: os termos do problema só estarão bem colocados se o
horizonte de discussão estiver restrito àquilo que é especificamente jurídico,
sem qualquer contaminação por elementos exógenos. Assim, se a integridade
sistêmica da cadeia de comandos estiver garantida, a lei será legítima, indepen-
dentemente de seu conteúdo substantivo. A valoração ética desse conteúdo é
incapaz de afetar sua juridicidade. A existência da lei é uma coisa; seu mérito ou
demérito é outra. Uma lei, que exista de fato, é uma lei, ainda que não gostemos
dela […]. Por isso, torna-se imprescindível que a província da jurisprudência
seja bem mapeada e que suas fronteiras sejam guardadas contra incursões de
conceitos impertinentes.10
Esse mapeamento preciso e seu propósito declarado de estabelecer, com
nitidez absoluta, um dentro e um fora do Direito atestam o fervor, a confiança e
o otimismo com que Austin buscava trazer as premissas Modernas para o mun-
do jurídico. Implícito em seu projeto analítico está a crença na superioridade
dessa proposta, em seu caráter civilizatório: um olhar sobre o Direito baseado
na pura causalidade interna ao sistema era, a seus olhos, muito mais promissor
às antigas apropriações moralizantes, retóricas e impressionistas.
O rigor metodológico (Moderno) de Austin e sua metodologia (Moderna)
de análise permitiriam, ou assim entendiam seus adeptos, uma discussão obje-
tiva sobre os fenômenos jurídicos, algo que era impossível no bazar de referen-
ciais sobrepostos que caracterizava os discursos anteriores. O abandono da ilu-
são metafísica (ao menos na Ciência) parecia-lhe um formidável avanço porque
exorciza, para todo o sempre, o medo de que os homens empreendam guerras
10 Cf. LOPES, J.R.L. Hermenêutica e completude do ordenamento. R.Inf. Legisl. Brasília, a.26 n.
104 out/dez 1989. pp. 237-246.
168 CADERNOS FGV DIREITO RIO
11 A fool sees not the same tree that a wise man sees.
12 There are more things in heaven and earth, Horatio, /Than are dreamt of in your philosophy.
- Hamlet (I,.5).
13 “Without Contraries is no progression. Attraction and Repulsion,/Reason and Energy, Love
and Hate are necessary to Human existence./From these contraries spring what the reli-
PRISÕES, BORDÉIS E AS PEDRAS DA LEI 169
gious call Good & Evil./Good is the passive that obeys Reason. Evil is the active springing
from Energy. Good is Heaven. Evil is Hell.”
14 “Doce é o ensinamento que a Natureza nos traz/nosso intelecto curioso/deforma a beleza
das coisas/matamos para dissecar”. “Sweet is the lore which Nature brings;/Our meddling
intellect/Mis-shapes the beauteous forms of things:--/We murder to dissect”. Wiliam Wor-
dsworth. The Tables Turned, 1888.
15 “The tigers of wrath are wiser than the horses of instruction.”
170 CADERNOS FGV DIREITO RIO
das regras não são capazes, por si só, de produzirem justiça (embora sejam ca-
pazes, muitas vezes, de produzir seu oposto), tem alimentado alguns dos mais
importantes esforços de apresentar princípios que resolvam satisfatoriamente
aos hard cases da vida concreta. Examinar, em Austin e Blake, as origens des-
sas linhas antagônicas que balizam hoje o debate jurídico podem ajudar para a
difícil construção de um novo lugar para o Direito.
Referências
ERDMAN, D.V. (ed.). The Complete Poetry & Prose of William Blake. Anchor
Books, 1982.
Introdução
Em novembro de 2013 dei uma palestra na Wolfson College, Oxford, intitulada:
“DIREITO E LITERATURA: SONHO DE UM DILETANTE?”. A palestra aconteceu
em duas partes. Parte A expressava um ceticismo cauteloso com relação ao
“Movimento Direito e Literatura”. A tese era simples: Neste contexto, nem a
“Literatura” nem o “Direito” tem um referente. Como áreas acadêmicas, es-
sas disciplinas são muito amplas e fragmentadas internamente para possuir
um conjunto coerente de relações; como fenômenos (por exemplo, a literatura
como um legado de textos, direito como instituições, processos no “mundo
real”, leis como ideias) elas são muito variadas e amorfas para serem reduzidas
a um conjunto coerente de matérias que podem ser sensatamente justapostas.
Há assuntos e tópicos específicos que geraram produtos iluminadores como
ideias e hipóteses constitucionais de Shakespeare, mas grande parte da discus-
são secundária do “movimento” é excessivamente generalizada.
Na parte B, deixando de lado qualquer esforço em generalizar o movimento
ou o suposto “campo”, parti para uma autobiografia. Contei algumas histórias es-
pecíficas sobre como alguns compromissos ecléticos com a “literatura” influen-
ciaram minha maneira de pensar e meu trabalho: não apenas como um toque
final, ou para deixar uma cotação ou para me mostrar ou brincar. A parte B foi
mais bem-sucedida do que a parte A. Ela sugeriu uma pergunta que cada um de
vocês pode se perguntar: Há algo que influenciou de forma significativa o meu
trabalho em direito dentro do legado da literatura ou estudos literários? Por quê?
A parte B foi reproduzida aqui com pequenas alterações apenas. Nesta
versão, mantive o estilo informal da palestra, mas adicionei algumas notas de
rodapé.3 Trata-se de três temas: (I) ponto de vista; (II) narrativa e argumento
nos apuramentos dos fatos; (III) Italo Calvino e Jurisprudência.
Perspectiva4
Meu primeiro exemplo de ter sido ajudado pela “literatura” enquanto jurista se
refere ao que atualmente é considerado crítica literária à moda antiga. Como
estudante de graduação, o meu interesse em teoria do direito, de fato, recebeu
inspiração de Herbert Hart, especialmente da sua aula inaugural realizada em
1952.5 No entanto, ao longo do tempo me tornei cada vez mais insatisfeito
com a sua visão limitada com relação à pauta da teoria do direito.6 Isso ligado
a uma preocupação de adolescente sobre o pluralismo de crenças do qual não
consegui me livrar: como lidar com o fato de que existem muitos sistemas de
crenças, todas alegando serem corretos? Pouco tempo depois de que me for-
mei, li e fiquei fascinado com a Autobiography de Collingwood — certamente
uma grande obra de literatura, mais precisamente de ficção.7 A ideia-chave na
minha opinião foi que toda a história é a história do pensamento: para compre-
ender as decisões de Aristóteles ou Nelson em Trafalgar, é preciso colocar-se
no lugar do escritor ou do ator e tentar entender a sua situação, preocupações,
conceitos e informações a fim de reconstruir o que eles estavam pensando e o
que significava. Ler Collingwood foi para mim um grande passo, mas não che-
gou a resolver todos os meus quebra-cabeças.
Logo depois de ficar animado com Collingwood, li Aspects of the Novel,
escrito em 1927 por E.M. Forster.8 Como um sério autodidata, li até mesmo al-
3 As ideias exploradas nesta palestra foram tratadas de maneira mais extensa em minhas
obras. Veja, por exemplo, William Twining, The Great Juristic Bazaar: juristic texts and la-
wyers’ stories. Aldershot: Ashgate, 2002 (posteriormente GJB); William Twining, Globalisa-
tion and Legal Theory. London: Butterworth, 2000 (posteriormente GLT); William Twining,
General Jurisprudence. Cambridge: Cambridge University Press, 2009 (posteriormente
GJP); William Twining, T. Anderson, and D. Schum, Analysis of evidence, Cambridge: Cam-
bridge University Press, 2005; William Twining, Rethinking evidence. Cambridge: Cambrid-
ge University Press, 2006; William Twining and David Miers, How to do things with rules:
a primer of interpretation. Cambridge: Cambridge University Press, 1999 (posteriormente,
HTDTWR).
4 Consultar especialmente GJB Cap. 2, 3 et passim (ver índice), HTDTWR XV-XVI, 15-23, et
passim, Análise 115-117, RE 120-134, 368-369 RE, 406-410.
5 H.L..A. Hart, Definition and Theory in Jurisprudence 70 Law Quarterly Review 57 (1953),
reeditado em várias coleções. Esta palestra inaugural apresentou a um ingênuo estudante
de graduação a algumas ideias surpreendentes: perguntas como “o que é direito?” e “O que
é um direito?” podem ser colocadas de forma errônea ou enganosa; que muito depende
de quem está fazendo as perguntas; e que a atribuição de diferentes perguntas a textos
aparentemente conflitantes é uma forma de diferenciar discordância de mera diferença.
6 William Twining, “Academic Law and Legal Philosophy; the Significance of Herbert Hart”,
95 Law Quarterly Review 557-80(1979).
7 R. G. Collingwood, An Autobiography. Oxford: Oxford University Press, 1939, reimpressão
1970 discutido GJB Cap. 2.
8 E.M. Forster, Aspects of the Novel Londres: Edward Arnold (1927) (posteriormente, novel).
DIREITO E LITERATURA 175
guns dos trabalhos que ele debatia. Duas ideias aparentemente contraditórias,
mas relacionadas me fisgaram. Primeiro Forster elogiou The Craft of Fiction de
Percy Lubbock, publicado em 1921, e citou com aprovação a sua declaração:
“acredito que toda a complexa questão de método, em Craft of Fiction, é regi-
da pela questão do ponto de vista — a questão da relação em que o narrador
defende a história”.9
Devorei Lubbock e suas distinções entre o espectador imparcial ou parcial
e o autor onisciente; e de ver tudo através dos olhos de um ou mais participan-
tes. Isso desenvolveu a percepção de Collingwood sobre a história diferencian-
do vários tipos diferentes de pontos de vista, e como veremos, teve ressonân-
cia imediata em relação ao estudo do direito.
Nas últimas partes de Aspects of the Novel parece que Forster alterou
o rumo. Ele criticou duramente Henry James por apoiar de forma demasiado
rígida um ponto de vista consistente — sacrificando a humanidade e a vida à
forma estética. Em particular, em The Ambassadors, James desenvolveu uma
forma esteticamente completa como uma ampulheta: “Mas a que preço! [...]
o preço é uma pequena lista de personagens — um observador que tenta in-
fluenciar a ação e o forasteiro de segunda classe — e esses personagens [...] se
desenvolvem a partir de falas bastante mesquinhas [...] Por que tão desumano
com seres humanos?”10
Em suma, o formalismo de James afasta a confusa realidade da vida. As-
sim era exatamente como me sentia sobre o direito e a tradição dominante —
apenas um pouco menos dominante hoje em dia — do formalismo doutrinário
(seja o que for que isso signifique). Então, eu troquei Hart — pelo menos foi o
que ele pensou — por algo chamado “realismo” e desde então, pontos de vista
e perspectivas múltiplas tornaram-se conceitos-chave.
Logo reconheci que a diferenciação de ponto de vista já era uma ferramenta
poderosa na teoria analítica do direito e na filosofia.11 Por exemplo, a diferencia-
ção feita por Bentham entre teoria do direito expositiva e sensorial; a reivindica-
ção de Rawls para dissolver uma perplexidade sobre o utilitarismo de ação e de
regras, atribuindo à primeira ao questionamento do juiz e a última ao questio-
9 Percy Lubbock, The Craft of Fiction Londres: Jonathan Cape 1921 / Li a edição de 1954 com
o novo prefácio, página 251.
10 Forster, novel. págs. 147-8. Henry James, The Ambassadors (publicado pela primeira vez
em 1903). Forster reconhece que “Há uma hábil análise [por Percy Lubbock] a partir de
outro ponto de vista em The Craft of Fiction” id. na pág. 141.
11 O conceito de ponto de vista é altamente ambíguo e significa coisas diferentes em contex-
tos diferentes. Termos como ponto de vantagem, situação, papel, perspectiva e objetivos
precisam ser diferenciados — o grau de importância de cada um deles em grande parte
depende do contexto. Por exemplo, “esclarecimentos sobre o ponto de vista” é diferente
para um estudante de Direito se preparando para escrever uma análise sobre causalidade e
um advogado que irá se encontrar com seu cliente pela primeira vez. Consulte GJB 29-37.
176 CADERNOS FGV DIREITO RIO
12 Ref. Jeremy Bentham, A Fragment on government (T.H. Burns and H.L.A. Hart eds), London:
Athlone Press, 1977, páginas 397-8; John Rawls, Two Concept of Rules, 64 Philosophical Re-
view 72 (1955); H.L.A. Hart, Punishment and Responsibility, Oxford: Oxford University Press
(1968) Cap. 1; R.G. Collingwood, ‘On the so-called idea of Causation’. Proceedings of the
Aristotelian Society, New Series, Vol. 38 (1937 - 1938), pp. 85-112.; Harold Lasswell e Myres
MacDougal esp; Legal Education and Public Policy 52 Yale L. J. 203 (1943), O. W. Holmes,
The Path of the Law 10 Harvard L. Rev. 457 (1897). Consultar GJB Cap.3.
13 HTDTWR Prefácio XV-XVI.
14 Na minha opinião, um dos argumentos mais poderosos para que as vozes dos subalternos
sejam ouvidas e seus direitos reconhecidos, foram apresentados por um jurista, Upendra
Baxi, em Voices of Suffering: Fragmented Universality and the Future of Human Rights
(1998) Law and Contemporary Problems 125, reproduzido na íntegra em W. Twining (ed.)
Human Rights: Southern Voices. Cambridge: Cambridge University Press, 162ff <Cap. 5>
(2009).
15 Muitas vezes traduzido como “esquecer os próprios propósitos” F. Nietszche, Human, all
too human: a book for free spirits. Cambridge: Cambridge University Press. 2nd edition
(1996), a passagem está no trecho intitulado The Wanderer and his Shadow, originalmente
de 1880.
16 É claro que há muitos tipos de historiadores e muitos tipos de observadores que podem ser
ainda mais diferenciados.
DIREITO E LITERATURA 177
17 Sobre isso consulte Joseph Raz, The Authority of Law Oxford University Press, 1979, págs.
140-43.
18 Para obter exemplos, consulte HTDTWR págs. 15-23.
19 Veja Análise. Cap. 7, RE Cap. 12.
178 CADERNOS FGV DIREITO RIO
consciência efusivo.20 Escolhi o caso, porque, como disse um aluno: “Se você
consegue analisar a prosa de Edith, consegue analisar qualquer coisa”. O caso,
assim como o caso Sacco Vanzetti nos Estados Unidos,21 se tornou uma espécie
de evento literário: estimulou várias peças, pelo menos um filme muito ruim, e
um brilhante romance feminista, Pin to See the Peepshow.22 As opiniões quanto
à culpa de Edith ainda se dividem.
Depois de alguns anos, escrevi um artigo usando Bywaters e Thompson
para ilustrar o método de análise e desenvolvimento de argumentos que estava
tentando ensinar.23 Somente após a conclusão desse trabalho foi que soube
que um colega britânico na UCL tinha acabado de terminar um livro inteiro
sobre o caso, argumentando com entusiasmo a inocência de Edith.24 Compara-
mos nossas anotações e decidimos publicar nossos trabalhos separadamente
sem alterá-los, mas, em seguida, escrever um trabalho em conjunto comparan-
do nossas abordagens diferentes para o caso.25 Para mim foi uma experiência
fascinante e educativa. Aqui, só vou lidar com isso na medida em que ilustro as
complexidades do ponto de vista. Nós dois chegamos a conclusões semelhan-
tes sobre a ausência de culpa de Edith, mas por caminhos bastante diferentes.
O primeiro ponto era saber se, ao considerar Edith culpada, estávamos
abordando a mesma questão. A resposta a esta pergunta é discutível. Eu afir-
mo que nós não estávamos preocupados com a imparcialidade do julgamento,
mas adotando o ponto de vista dos historiadores. Oitenta anos após o even-
to, perguntávamo-nos se Edith era criminalmente responsável pela morte de
Percy com base na lei daquele momento. Para responder à pergunta, um his-
toriador teria de conhecer a lei para homicídios aplicável, incluindo a doutrina
obscura em torno da incitação e coautoria26. A perspectiva, objetivos e méto-
dos de Weis eram diferentes dos meus e ele produziu uma grande quantidade
20 Os autos do julgamento e algumas cartas foram publicadas na íntegra no livro The Trial
of Frederick Bywaters and Edith Thompson de Filson Young (ed.). Edimburgo: W. Hodge,
1923.
21 David Felix, Protest: Sacco-Vanzetti and the Intellectuals. Bloomington Ind.: University of
Indiana Press, 1965.
22 F. Tennyson Jesse, A Pin to See the Peepshow. Londres, Heinemann, 1934.
23 W. Twining, “Anatomy of a cause célèbre” no RE (1990) Cap.8 e 9 (abreviado em RE 2ª ed.
Cap..12, partes 1 e 2.)
24 R. Weis, Criminal Justice: the True Story of Edith Thompson. Londres: Heinemann, 1934; pb.
Penguin, 2001.
25 William Twining e René Weis, “Reconstructing the Truth about Edith Thompson: The
Shakespearian and the Jurist” in W. Twining and Ian Hampsher-Monk (eds) Evidence and
Inference in History and Law (Evanston: Northwestern University Press, 2003) Cap. 2; reim-
presso em RE (2006) Cap.12.
26 Nota do editor: originalmente, o termo conspiracy foi adotado. Trata-se de um delito autô-
nomo na Inglaterra e Estados Unidos de conspiração para a prática de ilícitos criminais, cuja
aplicação é mais fácil de demonstrar na prática do que os crimes de quadrilha ou bando
adotados pelo direito brasileiro.
DIREITO E LITERATURA 179
de novos dados. O fato de Weis não ser um advogado é irrelevante. Alguns dos
meus estudantes discordam de mim, afirmando que a perspectiva, os objetivos
e os métodos de Weis eram diferentes dos meus. Em minha opinião, eles estão
errados. Nossa questão foi por nós compartilhada.
De fato, nossos métodos foram muito diferentes e trouxemos visões dife-
rentes. Eu foquei nos autos do julgamento, principalmente nas cartas de Edith
para seu amante, e os expus a uma análise crítica, ilustrando o método que es-
tava tentando ensinar. Cheguei à conclusão de que as evidências de coautoria
eram muito fracas, mas a evidência de incitação era válida, mas não forte o su-
ficiente para satisfazer o padrão de dúvida razoável, especialmente em relação
à questão de saber se Freddy matou Percy por ter sido encorajado por Edith
— um júri e comentaristas razoáveis poderiam discordar disso.
O que o shakespeariano fez? Primeiro, ele ambientou o julgamento dentro
das condições e atitudes sociais da época, as histórias de vida dos atores prin-
cipais e, o mais impressionante, dentro do ambiente turbulento do relaciona-
mento. Ele desenterrou uma grande quantidade de material novo sobre o julga-
mento, as personalidades envolvidas e os romances em que Edith mergulhou,
usando tudo isso para desenvolver uma teoria de que ela estava vivendo em
um mundo de fantasia e nunca planejou o assassinato de Percy. Em segundo lu-
gar, ele elaborou uma narrativa mestra da vida e da morte de Edith no contexto
social de sua época. Em terceiro lugar, ele utilizou suas habilidades como um
estudioso textual instantaneamente e realizou uma análise detalhada das car-
tas de Edith. Ele elaborou um relato detalhado e quase diário do relacionamen-
to de 18 meses com Freddy e então classificou cada carta dentro do contexto
de altos e baixos da relação. Ao fazer isso para cada carta significativa, ele foi
capaz de deduzir o humor de Edith, o efeito de cada passagem, e que algumas
palavras e frases eram temáticas ou parte do código dos amantes.
Como vocês podem imaginar, este simples advogado ficou de olhos ar-
regalados com este brilhante desempenho. Eu aprendi muito sobre o caso e
como ler cartas de amor, mas quase nada sobre Shakespeare. Havia uma falha.
O argumento de Weis foi que Edith não tinha intenção criminosa. Pelo menos
uma dúzia de cartas poderia ser interpretada como atos de incitamento — algu-
mas sutis, mas algumas bastante óbvias: “Quem dera não tivéssemos luz elétri-
ca, seria fácil.”27 “O que exatamente seria tão fácil, senhora Thompson?”. “Usei
a ‘lâmpada’ três vezes, mas na terceira vez ele encontrou um pedaço, então eu
desisti até você chegar em casa.”28 “Vou arriscar e tentar se você também o fi-
zer”. Um pouco parecida à afirmação de Bashar Al-Assad na Síria de que todos
os quinze ataques de armas químicas eram coisa de rebeldes, é pedir demais
Narrativa
29 Christopher Nash (ed.), Narrative and Culture: the uses of stotytelling in the sciences, philo-
sophy and literature. Nova Iorque: Routledge, 1986. Uma versão estendida do meu trabalho
se encontra em RE (2006) Cap. 10.
30 Um exemplo surpreendente é Donald McCloskey, que passou a escrever The Rhetoric of
Economics. Madison: University of Wisconsin Press, 1985, em que ele demonstrou que “o
‘mais difícil’ das ciências sociais era ser literário mesmo se tratando de matemática, retóri-
ca, até mesmo não verbal. Em argumentos e estudos de casos detalhados em geral, ele re-
DIREITO E LITERATURA 181
vela à medida que o discurso econômico emprega metáfora, autoridade, simetria e outros
meios retóricos de persuasão”. (Sinopse de capa).
31 Sou grato a Rom Harré por ter verificado isso.
32 * Nota do Editor: Lorde Denning foi magistrado por quatro décadas no Reino Unido, tanto
em primeira instância, quanto nos tribunais de instância superior. Educado em Oxford, o
Barão Alfred Thompson Denning proferiu julgamentos notórios, que transformaram signifi-
cativamente o direito inglês e influenciaram inúmeras reformas legislativas. Lorde Denning
ficou conhecido como um juiz do povo, sendo que seu estilo de linguagem simples, direto e
com boa narrativa foi importante para a sua popularidade. Mesmo após sua aposentadoria
como magistrado, continuou a dicutir o direito inglês por meio de livros e de palestras. Mor-
reu em 1999 aos 100 anos de idade. Lorde Denning é considerado, por muitos, o magistrado
mais influente do Reino Unido nos século XX por seu impacto para popularizar e mudar o
direito inglês.
33 Brevemente relatado no RE (2006) nas págs.280-83.
182 CADERNOS FGV DIREITO RIO
34 Veja A. W. B. Simpson, Leading cases in the common law, Oxford: Oxford University Press,
1995. Uma série de treze volumes sobre estórias jurídicas feitas com base no método de
Simpson foi publicada pela Foundation Press.
35 RE, esp. págs. 306-11.
36 N. Pennington e R. Hastie, “A Cognitive Theory of Jury Decision-making: The Story Model”,
13 Cardozo L. Rev. 519 (1991); desenvolvido ainda mais em R.Hastie (ed.), Inside the Juror.
Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
37 RE, págs. 306-320.
38 Karl Llewellyn, The Common Law Tradition: Deciding Appeals Boston: Little Brown, 1960,
pág. 238, RE págs. 296-303.
39 T. Anderson et al., Analysis of Evidence, Cambridge: Cambridge University Press 2ª ed.
,2005, esp. XXX.
40 Vide nota 33 acima.
41 J.H. Wigmore, The Science of Judicial Proof. Boston: Little, Brown 3red edn., 1937, s.36.
DIREITO E LITERATURA 183
42 RE págs. 296-306.
43 RE Cap. 8-11, Anderson et al., Cap. 10 T. Anderson, ‘On Generalizations, a Preliminary.Explo-
ration’, 40 South Texas L. Rev. 455 (1999), e ‘Generalisations and Evidential Reasoning’ in
P. Dawid, M. Vasilaki e W. Twining (eds.), Evidence, Inference and Enquiry, London: British
Academy, 2011, Cap. 8.
44 W. Lance Bennett e Martha S. Feldman, Reconstructing Reality in the Courtroom. New
Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1981. Em seu interessante livro, Anchored Narra-
tives (H. F. M. Crombag, W. Wagenaar, e P. Von Koppen., Londres: Harvester Wheatsheaf,
1993), três cientistas sociais holandeses sugerem que os principais apoios de narrativas são
generalizações de fundo, em vez de evidência particular, discutido em GJB Cap.13.
45 “Lawyers’ Stories” em RE Cap.10.
46 GJB Cap. 14.
184 CADERNOS FGV DIREITO RIO
Italo Calvino
A Crítica literária que influenciou minha visão sobre ponto de vista a virada
narrativa — desafiou algumas suposições importantes sobre provas em direito;
os escritos de Italo Calvino tiveram outros efeitos importantes. Perceba que as
minhas preocupações e influências literárias eram de tipos diferentes. Perceba,
também, que cada um desses exemplos é um tema adequado para estudos so-
ciojurídicos. Esclarecimento do ponto de vista é tão importante na investigação
48 Id., 340-1.
49 * RE nas págs. 303-306.
50 Sobre probabilidades e provas, uma boa introdução para os debates é o trabalho intitulado
Criminal Evidence de Paul Roberts e Adrian Zuckerman, Oxford: Oxford University Press,
2ª ed. 2010, págs. 148-63. Um dos primeiros exemplos de falta de clareza deliberada das
linhas entre fato e ficção é a obra Dead Certainties (Unwarranted Speculations) de Simon
Schama (Nova Iorque: Knopf, 1991), contendo reconstruções imaginativas das mortes de
General Wolfe e um professor de Harvard, afirmando ser “fiel aos fatos”, mas preenchendo
as lacunas por meio de reconstrução imaginativa, e contadas como narrativas consisten-
tes. Richard Rorty é o cético epistemológico pós-moderno mais citado, embora ele tenha
negado o rótulo. Vide especialmente, R.Rorty, Objectivity, Relativism, Truth. Nova Iorque:
Cambridge University Press 1991 (Philosophical Papers vol. I) esp. Parte I e Contingency,
Irony and Solidarity. Nova Iorque: Cambridge University Press, 1989. Para ler uma crítica
mordaz feita de forma brilhante e persuasiva sobre as alegações de Rorty sobre ser um
“pragmático” na tradição de Peirce e Dewey, vide o trabalho de Susan Haack, Manifesto
of A Passionate Moderate. Chicago: University of Chicago Press, 1998, Cap.2 “We Pragma-
tists… Peirce and Rorty in Conversation” (posteriormente, Manifesto).
186 CADERNOS FGV DIREITO RIO
51 Italo Calvino, Mr Palomar (trs. William Weaver, San Diego: Harcourt Brace 1985 (daqui em
diante MP)); Invisible Cities Nova Iorque: Harcourt Brace, 1974, (daqui em diante IC). Vide
ainda GJB.
52 “Direito”, neste contexto, refere-se genericamente aos temas centrais, mas variados, da
nossa disciplina.
53 MP 6.
54 MP 47; cf. IC 98: “[A] forma das coisas pode ser percebida melhor à distância”.
55 “Oprimido, inseguro, ele fica nervoso com relação às cartas celestes, da mesma forma que
com os horários dos trens enquanto procura uma conexão”. (MP 47).
DIREITO E LITERATURA 187
a neurose e a paralisia do Sr. Palomar, teremos que nos contentar com pintar
retratos corajosos e seletivos com materiais frágeis, brutos e não-confiáveis. E,
como Palomar percebe, não existe um fim para a pesquisa acadêmica.
A segunda inspiração de Calvino diz respeito a cartografia jurídica. Ao
pensar sobre a globalização, comecei a explorar a ideia de retratar fenômenos
jurídicos no mundo como um todo e porções significativas deles, em termos
de mapas: tanto mapas físicos quanto mentais.56 Encontrei ajuda na literatura
sobre sociologia urbana — por exemplo, que há quatro imagens de cidades re-
correntes nesse campo: a cidade como organismo, como máquina, como bazar,
e como selva.57 Imediatamente me ocorreu que essas imagens ou metáforas
poderiam ser quase igualmente aplicadas para representar sistemas jurídicos
ou ordens normativas institucionalizadas.
Imagens do direito como uma forma orgânica ou como uma espécie de
engenharia social são comuns em nossa disciplina. Os pontos de vista de pes-
soas como usuários ou consumidores de direito em um bazar são menos de-
senvolvidos. A metáfora da selva é ricamente ambígua: queremos preservar e
visitar as florestas tropicais, mas a imagem da selva pode ser hostil, opressiva,
exigindo habilidades de sobrevivência. Esta é uma imagem do direito como um
produto hostil do poder de outras pessoas. Este foi um contraponto útil para
o pensamento que descreve a lei em termos de mapas físicos, mas também
não resolveu o problema de descrever fenômenos imensamente complexos e
variados em termos de uma imagem completa.
Após eu ter apresentado minhas ideias rudimentares sobre cartografia ju-
rídica em um seminário em Miami, um colega (Michael Froomkin) veio até mim
e disse: “Pensei que gostasse de Calvino. Por que diabos você não usou sua
obra Cidades Invisíveis?” A resposta foi que não a tinha lido. Quando a li, não
apenas tive que reescrever meu trabalho, mas também retificar minhas ideias.
Ele abriu territórios novos e imensuráveis na forma de pensar e de ver o direito.
Cidades Invisíveis é um livro rico, indescritível, maravilhoso. Se apenas uma
pessoa do público se sentir motivada a lê-lo, essa palestra terá valido a pena. Não
tem como eu falar tudo o que penso dele aqui. Mas posso destacar alguns temas:
56 GLT Cap. 6. Versões posteriores são GJB 322-328, GJP cap.3 e cap. 4.4. Embora considere
o mapeamento físico útil para o realismo demográfico básico sobre a ampla distribuição de
fenômenos jurídicos (por exemplo, no mundo da common law, a lei islâmica, a lei Luo existe
sob a forma de práticas normativas institucionalizadas), a metáfora de mapeamento mental
tem uma aplicação mais ampla. (GJP 67n 10.) Eu prefiro tratar a ideia de um atlas histórico
de fenômenos jurídicos no mundo como um projeto virtual em vez de real, o que na prática
pode ter uma utilidade bastante limitada.
57 Para esta sugestão sou grato a Peter Langer, “Sociology: Four Images of Organized Diver-
sity” in Lloyd Rodwin e Robert M. Hollister (eds.) Cities of the Mind: images and themes of
the city in the social sciences. New York: Plenum Press, 1984. Cap. 6.
188 CADERNOS FGV DIREITO RIO
64 IC 131.
65 IC131.
66 IC 132.
DIREITO E LITERATURA 191
dentro de uma única mente composta.67 Acho que isso é correto tanto para
Calvino quanto para as tensões básicas dentro da disciplina de Direito.
Referências
67 Kathryn Hume, “Grains of Sand in a Sea of Objects: Italo Calvino as Essayist”, (1992) 87
Modern Languages Review 72, página 75; e Kathryn Hume, Calvino’s Fictions: Cogito and
Cosmos. Oxford: Oxford University Press, 1992.
192 CADERNOS FGV DIREITO RIO
HASTIE, R. (ed.), Inside the Juror. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
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TWINING, William; WEIS, René. “Reconstructing the Truth about Edith Thomp-
son: The Shakespearian and the Jurist” in W. Twining and Ian Hampsher-Monk
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YOUNG, Filson (ed.). The Trial of Frederick Bywaters and Edith Thompson.
Edimburgo: W. Hodge, 1923.
MOSES UND ARON:
MÚSICA E LIBRETO DE ARNOLD SCHOENBERG
Tercio Sampaio Ferraz Junior1
1 Tercio Sampaio Ferraz Junior é Professor Aposentado de Filosofia do Direito da USP, bem
como Professor Titular da PUC-SP, da FADISP e Consultor do CAPES. É graduado em filo-
sofia e em ciências jurídicas pela USP, tendo obtido doutorado em filosofia pela Johannes
Gutemberg Universität de Mainz na Alemanha e em direito pela USP. É advogado, sócio de
Sampaio Ferraz Advogados.
196 CADERNOS FGV DIREITO RIO
enunciado meramente válido, puro dever-ser), por si só, não atinge a dimensão
sensível do ser humano. Uma forma antecipada, talvez, de entender a oposição
entre ser e dever-ser, realidade e normatividade. Daí o sentido do seu esforço:
tornar sensível o que pertence ao mundo do insensível, ou melhor, do inteligível
(mundus sensibilis ac intelligibilis).
Moisés diz o inteligível. Na sua fala não há sensibilidade (música). Mas Moi-
sés sabe também que é preciso valer-se do sensível para comunicar o inteligí-
vel: é necessário o corporal para manifestar o espiritual. Seu desespero está em
que, mesmo sabendo-o, sabe mais, pois foi escolhido por Deus para receber
diretamente (imediatidade da comunicação racional) a lei. A lei é razão, é inte-
lecto, é espírito. Daí, talvez, a expressão: espírito da lei e o ensinamento romano
de Celsus: scire leges non hoc est, verba earum tenere, sed vim ac potestatem
(saber as leis não é conhecer-lhes as palavras, porém a sua força e seu poder).
Como, porém, fazer compreender a lei mediante a sensibilidade sem de-
turpar-lhe a racionalidade?
A ópera de Schoenberg — Moses und Aron — é um trabalho inacabado.
O autor faleceu (num estúpido acidente: voltava para casa, após a segunda
Guerra Mundial, for do horário permitido e foi alvejado pelo policial militar que
o advertia com uma ordem de cessar qualquer movimento) antes de concluí-la.
Na verdade, antes de concluir a música. O texto do libreto, porém, é completo.
Musicados foram o primeiro e o segundo ato. O terceiro nunca o foi. Na ver-
dade, porque Schoenberg relutou por muito tempo em dar-lhe o acabamento.
Uma dúvida o assaltava: o terceiro ato, constituído de uma só cena, deveria ser
apenas falado ou deveria ser musicado?
A completude do libreto e a incompletude da música acabaram por pro-
duzir um resultado surpreendente.
A ópera só pode ser representada na forma incompleta. Isto é, cessa num
clima trágico: a lei divina não é entendida pelo povo. A incomunicabilidade en-
tre razão e sensibilidade (fala e música) triunfa. Não há conciliação.
No libreto, Schoenberg, no entanto, escreve mais um ato (não musicado
por causa de sua morte prematura), em que parece esboçar-se uma conciliação.
A Moisés é retirado o direito de penetrar a terra escolhida e o povo é
obrigado a peregrinar por mais quarenta anos. Mas, ao final, ocorre uma curio-
sa alteração do relato bíblico. Neste, Arão se retira e não é punido. Na ópera,
Schoenberg faz Arão ser trazido perante Moisés, aprisionado em correntes.
Moisés, porém, o libera. Contudo, Arão, libertado, tomba sobre o solo, como
uma árvore quando abatida. O que nos faz pensar que o princípio dualista, ele
próprio de origem racionalista, não seria compatível com a totalidade mítica do
tema. Afinal, a própria música composta por Schoenberg não deixava de ser
manifestação sensível. Diante desse paradoxo — quando Arão, no momento em
MOSES UND ARON 199
que se liberta, morre — Schoenberg acaba por assumi-lo: a imagem que ele se
faz da interdição de fazer imagens (negação do sensível) tomba, por sua vez,
diante da própria interdição divina. De um lado, o triunfo divino. De outro, o
paradoxo da vida humana.
Qual o significado disso para o direito? Ou, em que sentido pode-se ver
nessa ópera algum aspecto jurídico?
Do ponto de vista da arte (emoção), não é possível saber se, ao final, Moi-
sés também cantaria: nada foi composto por Schoenberg, do qual temos ape-
nas as falas do personagem.
Assim, como o libreto do último ato é mudo (musicalmente), resta inevi-
tável a grande interrogação: como é possível, para o ser humano, ser racional
e sensível ao mesmo tempo? Falar e cantar? Compreender leis com a razão e
obedecer a elas com a emoção?
Em suma e trazendo o tema para o campo jurídico.
As leis, supostamente, dão um sentido (racional ou, pelo menos, razoável)
à ação. O sentido das normas vem, assim, desde o seu aparecimento, “domes-
ticado”’. Disso se encarrega o intérprete. Mesmo quando, no caso de lacunas,
integramos o ordenamento (por analogia, por princípios gerais, até por equida-
de, dando, nesse caso, a impressão de que o intérprete está guiando-se pelas
exigências do próprio real concreto), o que fazemos, na verdade, é guiar-nos
pelas próprias avaliações do sistema interpretado. Essa astúcia da razão dog-
mática põe-se, assim, a serviço do enfraquecimento das tensões sociais, na
medida em que neutraliza a pressão exercida pelos problemas de distribuição
de poder, de recursos e de benefícios escassos. E o faz, ao torná-los conflitos
abstratos, isto é, definidos em termos jurídicos e em termos juridicamente in-
terpretáveis e decidíveis. Quem desvia o dinheiro depositado pelo cliente no
banco vê, de repente, que muitas das justificações subjetivas para seu ato não
contam. Seu desejo de comprar o que a propaganda incessante do comércio
lhe oferece acima de suas posses não tem, para o conflito neutralizado (racio-
nalizado dogmaticamente) pela hermenêutica, o sentido objetivo que o direito
reclama (embora, em pequena escala, lhe parecesse objetivo: em seu círculo
de relações, seria compreensível, ainda que não justificável). Desse modo, a
hermenêutica possibilita uma espécie de neutralização dos conflitos sociais, ao
projetá-los numa dimensão harmoniosa — o mundo do legislador racional — no
qual, em tese, tornam-se todos decidíveis. Mas, assim, ela não elimina as con-
tradições, apenas as torna suportáveis. Portanto, propriamente não as oculta,
mas as disfarça, trazendo-as para o plano de suas conceptualizações racionais.
Repete-se, pois, na hermenêutica, o que ocorre no drama de Moisés e Arão.
Enquanto aquela, porém, exerce sua função ao isolar o direito num sistema
racional, o saber interpretativo conforma o sentido do comportamento social
200 CADERNOS FGV DIREITO RIO
sensível à luz da incidência normativa. Ela cria assim condições para a decisão.
Contudo, não diz como deve ocorrer a decisão, sempre sujeita às ingerências
da emoção. Mas isso também pode significar que a interpretação jurídica, ao
fim e ao cabo, não consegue realizar seu propósito: obtenção de um sentido
racionalmente (ou razoavelmente) generalizável. Daí a conhecida disputa entre
interpretação autêntica e doutrinária.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO
CONSTITUCIONAL1
Denis J. Galligan2
O contexto
Escrevendo ao final do século XVII, o historiador e filósofo David Hume ob-
serva que:
Este fato se torna ainda mais curioso, prossegue Hume, quando se consi-
dera que o poder, o poder em estado bruto, está sempre nas mãos dos gover-
nados uma vez que “os governantes não dispõem de nada para sustentá-los
além da opinião”. Como, então, se controla esse poder em estado bruto que
está com o povo? Como se conduz a opinião à aquiescência4? São essas as
questões sobre direito e sociedade, e sobre o fundamento social das consti-
tuições a que tenho me dedicado, há algum tempo e para as quais encontrei
algumas respostas. Esta conferência é parte de um projeto mais amplo e toma
como ponto de referência uma seleção de peças de William Shakespeare.
5 NT: Upper register, no original. Utilizarei os termos registro elitizado/registro popular (lo-
wer register) para manter o paralelo, evocado pelo texto, com as distinções entre diferen-
tes registros no campo da linguagem.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 203
6 E. P. Thompson, “The Moral Economy of the English Crowd in the Eighteenth Century”
(1971) 50 Past and Present 76-136. NT: Em Português, ver Thompson, E. P. Economia moral
da multidão na Inglaterra do século XVIII. trad. Frederico Agoas e José Neves, Antigona,
2008.
7 J. Scott, The Weapons of the Weak: Everyday Forms of Popular Resistance (Yale University
Press, 1985).
8 Ideas developed in: D.J.Galligan, “Populism and the Constitution” (Paper presented to the
Foundation for Law Justice and Society Workshop, Rye NYS, September 2013). NT: Literal-
mente, niveladores. Grupo político atuante durante a Guerra Civil inglesa, que lutava pela
soberania popular e pela ampliação dos direitos de voto. Em português, ver Hill, Chris-
topher O Mundo de ponta-cabeça- Ideias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640.
Trad. Renato Janine Ribeiro. Companhia das Letras, 1987. Ao longo do texto, manterei a
designação em inglês por ela ser habitualmente utilizada nos debates em português sobre
o período.
204 CADERNOS FGV DIREITO RIO
9 Devo muito, na preparação deste ensaio, ao estudo realizado por Annabel Patterson sobre
a voz do povo nas Shakespeare’s plays: A. Patterson, Shakespeare and the Popular Voice
(Basil Blackwell, 1989). Foi por meio da leitura desse excelente artigo que pude perceber a
presença do registro popular (conceito que não é utilizado por Patterson) e muitas outras
peças além das peças históricas em que, normalmente, encontramos temas constitucionais.
O outro estudo seminal para esse tema é: R. Weimann, Shakespeare and the Popular Tradi-
tion in the Theatre ((Baltimore, 1978).
10 Gerald Stourzh, From Vienna to Chicago and back: essays on intellectual history and politi-
cal thought in Europe and America (University of Chicago Press, 2007).
11 Princes, what grief hath set the jaundice on your cheeks?
12 The specialty of rule hath been neglected/And look how many Grecian tents do stand/
Hollow upon this plane’.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 205
E continua:
13 Degree being vizarded,/ Th’unworthiest shows as fairly in the masque/The heavens them-
selves, the planets, and this centre/Observe degree, priority, and place,/Infixture, course,
proportion, form,/Office and custom, all in line of order.
14 glorious planet Sol’.
15 ‘enthroned and sphered’.
16 med’cinable eye.
17 the ill aspects of planets evil’.
18 But when the planets/In evil mixture to disorder wander,/What plagues and what portents,
what mutiny?
What raging of the sea, shaking of earth?/Commotion in the winds, frights, changes,
horrors/Divert and crack, rend and deracinate/The unity and married calm of states/Quite
from their fixture.
19 ‘degree stand in authentic place’.
206 CADERNOS FGV DIREITO RIO
Quando todos estão em seus lugares, tudo vai bem, a ordem é mantida e
o corpo político goza de boa constituição. “Desafine-se essa corda e a ordem
será destruída e, com ela, a vida civilizada”.
O lugar do povo é distante dos assuntos de estado; o rei, com o conse-
lho de nobres, comanda e o povo obedece. Thomas Smith, figura pública do
século XVI, escreveu: “O povo comum não tem voz nem autoridade em nossa
república,21 e nenhuma importância se dá a ele a não ser a de ser governado”.22
A relação entre a cabeça e os pés é de comando e obediência. A obediência é
passiva; ela não permite nem solicita o engajamento ativo do povo no governo
ou na fiscalização dos governantes. Esse sentimento amplamente compartilha-
do, e tido como natural, era central para o registro elitizado do pensamento
constitucional.
20 O when degree is shaked,/Which is the ladder to all high designs,/The enterprise is sick.
-----/Take but degree away, untune that string/And hark what discord follows. Each thing
meets/In mere oppugnancy. ---/ Strength should be lord of imbecility/And the rude son
should strike his father dead./Force should be right — or rather, right and wrong,/Between
whose endless jar justice resides,/Should lose their names, and so should justice too./Then
everything includes itself in power,/Power into will, will into appetite;/And appetite, an
universal wolf,/So doubly seconded with will and power,/Must make perforce an universal
prey,/And last eat up himself. Great Agamemnon,/This chaos, when degree is suffocate,/
Follows the choking. ---‘
21 Ao longo do texto, esta será a tradução para o termo inglês Commonwealth.
22 Quoted in Change and Continuity in Seventeenth Century England (Nicolson, London,
1974), p. 186.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 207
23 W. Shakespeare, The First Part of the Contention in The Complete Works of Shakespeare
(ed) S. Wells and G. Taylor (Oxford University Press, 1987): Act 5:1:6.
24 While these do labour for their own preferment/Behoves it us to labour for the realm. [Hen-
ry VI:II 1:1:179].
25 Oft have I seen the haughty Cardinal,/More like a soldier than a man o’th’ church,/As stout
and proud as he were lord of all,/Swear like a ruffian, and demean himself/Unnlike the ruler
of a commonwealth [1:1:184].
208 CADERNOS FGV DIREITO RIO
O povo deve obedecer, mas não se trata, afinal de contas, de uma obedi-
ência cega: a obediência tem que ser conquistada.
E sobre York, irmão de Salibury, que havia subjugado os irlandeses e retor-
nava agora da guerra na França, diz-se que tais façanhas:
26 Thy deeds, thy plainness, and thy housekeeping/Hath won thee greatest favour of the com-
mons [1:1:188].
27 Have made thee feared and honoured of the people [1:1:196].
28 NT: Ao longo de sua exposição, o professor Galligan utiliza indistintamente as expressões
“common good” e “common weal” e, assim, ambas foram traduzidas aqui por “bem co-
mum”. O termo commonwealth, utilizado, sobretudo, a partir do século XV, é mais recente
do que a expressão common weal. Essa, empregada reiteradamente ao longo do ensaio,
designava, em séculos anteriores, o bem-estar coletivo, mas não evocava a organicidade
de um corpo político.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 209
“Jamais, até agora, trabalharam com o espírito”: eles são artesãos rudes e
ignorantes. Contra os conselhos de Egeu, o Duque Teseu, governante honrado,
insiste na apresentação da peça:
Nada há de impróprio
Quando é inspirada pela simplicidade e pelo dever.34 [5:1:82]
a exemplo de Egeu, reclama que os artesãos são ineptos para a tarefa, “não são
capazes de fazer nada aceitável nesse gênero”, isto é, representar uma peça.
O duque é firme:
35 The kinder we, to give them thanks for nothing,/Our sport shall be to take what they mis-
take,/And what poor duty cannot do,/Noble respect takes it in might, not merit [5:1:88].
36 Out of this silence yet I picked a welcome,/And in the modesty of fearful duty/I read as
much as from the rattling tongue/Of saucy and audacious eloquence [5:1:100].
37 W. Shakespeare, The Tempest in Complete Works of Shakespeare, Volume -, p.- . See fur-
ther: A. Patterson, Shakespeare and the Popular Voice, Chapter 7.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 211
Quer me parecer que ele não tem jeito de quem nasceu para
morrer afogado; tem cara de quem vai com certeza morrer na
forca.[ 1:1:30]40
Ele nasceu para ser enforcado, não para morrer afogado. Eles estão segu-
ros, portanto; mas
Isto porque ele fez seu trabalho. O pior ainda está por vir. Quando o con-
tramestre retorna e vê Gonçalo ainda no convés, ele pergunta em tom áspero:
38 You mar our labour,/Keep your cabins; you do assist the storm [1.1.4].
39 Good, yet remember whom thou hast abord [1:1:18].
40 Hath no drowning mark upon him: his complexion is perfect gallows [1:1:30].
41 If he were not born to be hanged,/Our case is miserable. [1:1:31].
212 CADERNOS FGV DIREITO RIO
Ele ainda vai ser enforcado, embora cada gota d’água escon-
jure contra isso e se arreganhe toda para abocanhá-lo.[ 1:1:56]48
42 Yet again? What do you here? Shall we give o’er and drown?,/Have you a mind to sink?
[1:1:37].
43 A pox o’your throat, you bawling, blasphemous incharitable dog!
44 Work you, then.
45 Hang, cur, hang, you whoreson insolent noise maker.
46 We are merely cheated of our lives by drunkards.
47 This wide-chopped rascal — would thou mightst lie drowning,/The washing of ten tides.
48 He’ll be hanged yet,/Though every drop of water swear against it,/And gape at wid’st tp
glut him [1:1:56].
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 213
O povo agora é a língua, um órgão maligno que deve ser extirpado para
que o corpo político recobre a saúde e tenha sua boa constituição restaura-
da. Isto é demais para os tribunos que pedem ao povo que se reúna e julgue
53 […] debase the nature of our seats,/And make the rabble/Call our cares fears, which will in
time/Break ope the locks o’th’senate and bring in/The crows to peck the eagles [3:1:138].
54 Insult without all reason where gentry, title, wisdom/Cannot conclude but by the yea and
no/Of general ignorance[…] [3:1:146] .
55 a body with a dangerous physic/That’s sure of death
56 […] at once pluck out/The multitudinous tongue; let them not lick/The sweet which is their
poison [3:1:158].
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 215
Faça o que for necessário, mesmo que tenha que “dissimular”; uma bela
palavra, dissimular. Tarde demais. Os tribunos querem vingança e acusam Co-
riolano de “buscar instaurar a tirania”. O povo se alvoroça e, a despeito de um
último pedido de Menênio, Coriolano se resigna à morte ou ao exílio:
Eu não compraria
Nem por uma palavra o seu perdão.60 [3:3:94.]
A maldição que lança ao partir, proferida parte por raiva, parte por convic-
ção, supera todos os eventos anteriores:
61 You common cry of curs, whose breath I hate/As reek o’th’rotten fens, whose loves I prize/
As the dead carcasses of unburied men/That do corrupt my air: I banish you […] [3:3:124].
62 W. Shakespeare, The Tragedy of King Lear in Complete Works of Shakespeare, Volume - ,
p. -. For further reflections on Lear, see: R. Patterson, Shakespeare and the Popular Voice,
Chapter 5.
63 --- every inch a king./When I do stare, we see the subject quake [4:6:106].
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 217
Ele pede a Gloucester que leia algo que Lear deposita em suas mãos. Glou-
cester responde:
Um mundo sentido.68
Mas, responde Lear, não é preciso olhos para ver “como anda o mundo”:
64 The wren goes to’t, and the small gilded fly,/Does lecher in my sight./Let copulation thrive.
65 ---good apothecary, sweeten my imagination [4:6:128].
66 Were all the letters suns, I would not see [4:6:136].
67 --- you see how this world goes.
68 I see it feelingly.
218 CADERNOS FGV DIREITO RIO
69 ---- look with thine ears. See how yon./Justice rails upon you simple thief./Hark in thine
ear:/Change places, and handy-dandy, which is the justice, which is the thief?/Thou has
seen a farmer’s dog bark at a beggar? [4:6:146].
70 An the creature run from the cur, there thou mightst behold the great image of authority. A
dog’s obeyed in office./Thou rascal beadle, hold thy bloody hand./ ---- The usurper hangs
the cozener./Through tattered clothes great vices do appear;/Robes and furred gowns
hide all. Plate sin with gold,/And the strong lance of justice hurtles breaks;/Arm it in rags,
a pygmy’s straw does piece it./None does offend, none, I say none. I’ll able ‘em./Take that
from me, my friend, who have the power,/To seal th’accuser’s lips. Get thee glass eyes,/
And, like a scurvy politician, seem,/To see the things thou dost not [4:6:160].
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 219
nais que ela sustenta? Será que essas perguntas nos levarão a um pensamento
constitucional fundado nas relações sociais e não sobreposto a elas? Talvez
nos tornemos capazes de responder à indagação de Hume sobre as razões de
o povo entregar tão prontamente seu poder natural a uns poucos. Aqui, aden-
tramos o registro popular do pensamento constitucional.
Talvez não haja nada aqui, nenhum registro popular, nenhum mundo cons-
titucional para o povo habitar. Que não haja algo assim é uma ideia arraigada
e resistente: o povo comum existe para ser governado e para obedecer a seus
governantes. Não a obediência no sentido de Aristóteles, que nos diz que os
cidadãos obedecem porque foram ensinados a governar e, sabendo como go-
vernar, obedecem de modo deliberado e intencional. Isto não é para os arte-
sãos: espera-se que sua obediência seja cega e que se alimente da deferência.
Eles devem permanecer, de acordo com o duque Teseu, “na simplicidade e no
dever”. Karl Marx e Antonio Gramsci lançaram sobre a “simplicidade e o dever”
um sufocante manto de explicação; o povo é incapaz de imaginar um mundo
diferente daquele em que habita. O tecido grosseiro da necessidade se trans-
forma no manto de uma ordem natural e justa. Se é certo que alienação e a
falsa consciência têm seu lugar, porque deveríamos acreditar, entretanto, que
o povo é incapaz de pensar uma ordem diferente da sua?75
Shakespeare sabia das coisas. Primeiro, um indício: o caso amoroso de
Nick Bottom com a rainha das fadas, Titania, é só um sonho. Mas se um tecelão
transformado em asno pode namorar uma rainha, uma rainha das fadas, então
é possível imaginar qualquer coisa. As coisas poderiam ser diferentes. Peter
Quince não tem problemas para imaginar um mundo em que ele não seria en-
forcado por ofender uma dama da nobreza. O mundo convencional paira pe-
sadamente sobre a realidade, mas o fato de que paire sugere que desce lá de
cima e pousa, com dificuldade, sobre uma base mais profunda.
Os artesãos de Sonhos de uma Noite de Verão nos permitem entrever essa
outra realidade. Esses homens, desprezados pela duquesa por não haverem
nunca ‘”trabalhado com o espírito” são capazes de conceber, escrever e repre-
sentar Píramo e Tisbe. Eles podem não ter estudado Ovídio, mas sabem algo
sobre os clássicos. O fato que Nick Bottom e Peter Quince possam debater se
a cadência poética deve ser “oito e seis” ou “seis e oito” indica que eles são
alfabetizados, ao passo que sua performance elaborada mostra que eles não
desconhecem o teatro. E o fato de que Tom Snout previna às damas na plateia
de que ele não é um leão de verdade, e que não irá rugir demasiado alto, apon-
ta para seu cuidado em não assustá-las e em não ferir suas suscetibilidades.
75 See further: P. Zagorin, Rebels and Rulers 1500-1660 (Cambridge University Press, 1982)
Part I.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 221
E prossegue:
76 He hath rid his prologue like a rough colt; he knows not the stop [5:1:119].
77 […] he hath played on this prologue like a child on a recorder — a sound, but not in gover-
nment [5:1:118].
78 His speech was like a tangled chain — nothing impaired/But all disordered [5:1:120].
222 CADERNOS FGV DIREITO RIO
Este não é o caso dos artesãos. Eles podem não estar totalmente à vonta-
de — que ator jamais está? — mas representam com confiança diante da nata
da sociedade ateniense.
O duque, como sempre, é generoso:
Os outros concordam:
79 […] great clerks have purposed/To greet me with premeditated welcomes,/Where I have
seen them shiver and look pale,/Make periods in the midst of sentences/Throttle their prac-
ticed accent in their fears,/And in conclusion dumbly have broke off [5:1:93].
80 No epilogue, I pray you; for your play needs no excuse./Never excuse; for when the players
are all dead
there need none to be blamed. […] it would have been a fine tragedy; and so it is,
truly,/And very notably discharged [5:1:348].
81 An you should do it too terribly you would fright/The Duchess and the ladies that they
would shriek, and/That were enough to hang us all [1:2:70].
82 That would hang us every mother’s son [1:2:71].
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 223
Mas sigamos com a leitura. Por que viver, pergunta Hamlet, quando
Morrer — dormir —
Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo! [3:1:66]87
83 ---- aggravate my voice so that I shall roar you as gently as any sucking dove [1:2:76].
84 For Pyramus is a sweet-faced man; a proper man as one shall see/In a summer’s day; a most
lovely gentlemanlike man [1:2:80].
85 W. Shakespeare, The Tragedy of Hamlet, Prince of Denmark in Complete Works of Shakes-
peare, Volume -, p. -. On Hamlet, see A. Patterson’s perceptive account: Shakespeare and
the Popular Voice, Chapter 5.
86 To be, or not to be; that is the question:/Whether ‘tis nobler in the mind to suffer,/The slin-
gs and arrows of outrageous fortune,/Or to take arms against a sea of troubles,/And, by
opposing, end them [3:1:58].
87 To die,/To sleep, perchance to dream/Ay there’s the rub [3:1:66].
224 CADERNOS FGV DIREITO RIO
88 Who would bear the whips and scorns of time,/The oppressor’s wrong, the strong man’s
contumely,/The pangs of disprized love, the law’s delay,/The insolence of office, and the
spurns,/That patient merit of th’unworthy takes,/When he himself might his quietus make,/
With a bare bodkin [3:1:72].
89 […] the dread of something after death,/The undiscovered country from whose bourn,/No
traveller returns [3:1:82].
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 225
a Blackheath e exigiu uma audiência com o rei. Ao lado de Wat Tyler, que lide-
rou os camponeses em uma revolta sessenta e nove anos antes, Jack Cade ocu-
pa um lugar privilegiado no panteão dos vilões. Carlos I não era o único a apre-
sentá-los como mestres da demagogia e como prova do que acontece quando
o povo é incitado a se transformar em turba. E se era preciso por em relevo a
reputação de Cade como um maníaco assassino, Shakespeare assumiu a tare-
fa.90 Cade é apresentado como um homem que, além do gosto pela carnificina,
considera escrever “uma coisa tão deplorável”91 que qualquer um pego no ato
de fazê-lo deveria ser imediatamente executado como vilão e traidor. Acadê-
micos, advogados, cortesãos e aristocratas são “lagartas mentirosas”92que de-
vem ser assassinadas assim que avistadas; as grammar schools93* “corrompem
a juventude do reino”,94 e falar francês é traição. A ambição de Jack Cade é a de
ser “a boca do Parlamento”95 e de que todos o reverenciem como seu senhor. A
lista poderia ser expandida. O Jack Cade de Henrique VI Part II teria dificuldade
em conseguir o nosso voto.96
Entretanto, como é hábito em Shakespeare, há uma causa que, obscureci-
da pelas idiossincrasias da personagem, frequentemente passa despercebida.
Na causa, ouvimos a voz do povo.
Os rebeldes entram e o primeiro rebelde diz:
Era preciso que ele o fizesse, pois ela está rota. E eu lhes
digo que
Nunca houve felicidade na Inglaterra desde que
90 His Majestie’s Answer to the Nineteen Propositions of Both Houses of Parliament (1642) in:
Divine Right and Democracy (ed) D. Wootton (Penguin Books, 1986)
91 ‘a lamentable thing’
92 ‘false caterpillars’
93 * Nota do Editor: Estas escolas eram centros pelo ensino de línguas clássicas, notadamente
o latim, e artes liberais, tendo sido responsáveis pelo ensino da elite até a era Vitoriana no
século XIX, quando se popularizaram e passaram a ensinar também ciências naturais para
um contingente maior de alunos.
94 ‘corrupt the youth of the realm’.
95 the mouth of parliament.
96 On the real Jack Cade, see: A. Wood, The 1549 rebellions and the Making of Early Modern
England (Cambridge UP, 2007) and Riot, Rebellion and Popular Politics in Early Modern
England (Palgrave, 2002).
97 I tell thee, Jack Cade the clothier means to dress up/The Commonwealth, and turn it, and
set a new nap upon it.
226 CADERNOS FGV DIREITO RIO
98 So he had need, for ‘tis threadbare. Well, I say/It was never merry world in England since/
Gentlemen came upon it.
99 Come, my spade. There is no ancient/Gentlemen, but gardeners, ditchers, and grave-
makers;/They hold up Adam’s profession:
100 O, miserable age! Virtue is not regarded in handicraftsmen.
101 The nobility think scorn to go in leather aprons.
102 Nay more, the King’s Council are no good workmen.
103 True; and it is said ‘Labour in thy vocation’/Which is as much as to say ‘let the magistrates/
Be labouring men’; and therefore should we be magistrates.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 227
Replica o segundo:
Mas agora as coisas serão diferentes, pois o jovem rei está cercado de
perigos e carece dos “conselheiros graves e sagazes”. O Duque de Gloucester,
futuro Ricardo III, tomado por uma ambição desenfreada e impiedosa, está à
espreita:
104 The Tragedy of King Richard the Third in The Complete Works of Shakespeare (eds) S.
Wells and G. Taylor (Oxford UP, 1987), Volume -, p. 115.
105 Woe to the land that’s governed by a child[2:3:11].
106 In him there is a hope of government,/Which in his nonage council under him/And in his full
and ripened years himself,/No doubt shall then, and till then, govern well:
107 this land was famously enriched/ With politic, grave counsel; then the king/Had virtuous
uncles to protect his grace.
228 CADERNOS FGV DIREITO RIO
Não é o rei que deve ser culpado pelo mau governo. São os conselheiros,
os maus conselheiros, que aconselham mal e induzem o rei a erro. Estes “senho-
res pretensiosos e arrogantes”109 não servem ao bem comum mas buscam seus
próprios interesses. Eles são instrumento para um governo fraco e corrupto.
Mas voltemos aos rebeldes em Henrique VI: porque a república — o meio
para o bem comum — está tão desgastada? De que modo ela é mal governada?
A resposta de Cade é precisa:
O governo deveria ser para “o bem do reino”, mas Lorde Saye o utilizou
para proveito próprio [1:1:203]. E outras queixas vêm à luz. Mais cedo, um grupo
aproximara-se de Gloucester, o Lorde Protetor, para apresentar-lhe uma peti-
ção. As petições eram o único caminho para o povo comum trazer suas queixas
ao rei ou ao protetor. E quais eram as queixas?
Um reclama de um dos servos do Cardeal:
E um terceiro:
108 O full of danger is the Duke of Gloucester/And the queens’ brothers haugth and proud./
And were they to be ruled and not to rule,/This sickly land might solace as before.
109 brothers haught and proud.
110 I tell you that Lord Saye hath gelded the commonwealth,/And made it an eunuch.
111 For keeping my house and lands and wife from me.
112 for enclosing the commons at Melford.
113 Against my master, Thomas Horner, for saying/That the Duke of York was rightful heir to
the throne.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 229
Tudo é feito em nome do rei e do bem comum. Esta é uma fórmula a ser
recitada. Ao descobrir as ações da duquesa de Gloucester em uma situação
que envolvera a prática de bruxaria, York declara:
O rei e o reino
Ficam em débito profundo convosco por esses trabalhos.117
[1:4: 43]
Pembroke pede a libertação de Arthur, que havia sido preso pelo tio do rei.
Ele encerra seus argumentos fazendo um apelo ao bem comum:
O rei “reina” não “dá ordens”, diferença sutil, mas vital, pois “reinar” sugere
a realeza como autoridade impessoal para o bem comum, e não autoridade
pessoal para impor suas ordens ao povo. Entre o rei e o povo comum há uma
ligação, uma mutualidade fundamental. Ela constitui o fundamento do reino. O
povo comum precisa do rei para preservar e fazer avançar o bem comum. O
bem comum é de todos; o rei não pode ter um bem separado do bem do reino.
119 Madam, for myself, to heaven I do appeal/How I have loved my king and common weal.
120 W. Shakespeare, The History of King John in Complete Works of Shakespeare, Volume -, p.
121 What you would have reformed that is not well/And you shall hear how willingly/I will both
hear and grant you your requests.
122 let it be our suit/That you have bid us ask, his liberty;/Which for our goods we do not further
ask/Than whereupon our weal, on you depending/Counts it your weal to have his liberty.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 231
O rei, por sua vez, assim como o cônsul Coriolano, precisa do povo co-
mum para sua autoridade. Ele pode ser desprezado como “uma plebe ignara”123
(Love’s Labour’s Lost: Armado: 5:1:82);124 como um bando de “camponeses
rudes”125 (Henry VI Part II, Suffolk to Warwick: 3:2:212); mas é ele quem decide
o destino de reis e de cônsules. O duque de York — pai de Ricardo III — tem
ambições em relação ao trono. Ele incita Jack Cade:
Para tomar a coroa ao rei Eduardo, Ricardo de Gloucester tem que provar
que tem melhor título ao trono, por força de seu nascimento. Ele envia Buckin-
gham para que apresente seus argumentos diante do povo. Quando retorna,
Ricardo está impaciente para saber o resultado.
Ricardo:
Buckingham:
Ricardo:
E eles o fizeram?129
A resposta:
A resposta:
Ricardo não pode tornar-se rei sem a aclamação do povo comum, não
importa o quão sólidas sejam suas credenciais hereditárias.
Começa a surgir uma nova imagem do corpo político. Longe de ser os pés,
o povo agora ocupa órgãos mais nobres. É mais do que uma questão de o rei
depender dele, como depende dos pés. É mais do que precisar de sua aclama-
ção para subir ao trono, embora isto seja necessário. O povo tem um papel e
128 Richard: How now, how now! What say the citizens?/Buckingham: Now, by the holy mother
of our Lord,The citizens are mum, say not a word./Richard: Touched you the bastardy of
Edward’s children?
129 And when mine oratory grew toward end/I bid them that did love their country’s good/Cry
‘God save Richard, England’s royal king!’/Richard: And did they say?
130 No, so God help me. They spake not a word,/But, like dumb statues or breathing stones,/
Stared each on other and looked deadly pale.
131 What tongueless blocks were they? Would they not speak?
132 No, by my troth, my lord.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 233
uma responsabilidade adicionais: o bem comum é seu bem; é a ele que o rei e
seus conselheiros devem prestar contas.
O povo, em resumo, é o guardião do bem comum. Ele não governa, nem
deseja governar, e talvez nem mesmo tenha a capacidade de fazê-lo: mas ele
quer um bom governo. Ele sabe a diferença entre um governo bom e um go-
verno ruim. Ele sabe quando o governo é corrupto ou incompetente, quando
os conselheiros e funcionários estão agindo para servir seus próprios interesses
e não o interesse comum.
O Conde de Warwick conquista grande estima133 entre o povo por seus:
136 Look how they gaze,/See how the giddy multitude do point/And nod their heads, and
throw their eyes on thee/Ah, Gloucester, hide thee from their hateful looks.
137 rude unpolished hinds’, illiterate townsmen to be flattered, ‘angry bees who care not who
they sting.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 235
funções de governo mas eles prestam contas ao povo. E devem fazê-lo, pois o
poder em estado bruto está com o povo.
Veja-se este diálogo ente Salisbury e o rei Henrique:
O rei é um homem piedoso, mas fraco (piedoso o suficiente para que sua
esposa Margaret proponha que ele se torne papa e passe a ostentar “uma trípli-
ce coroa “),141 saberia bem que “o populacho” era o povo em cujo nome reinava
e cujo julgamento rude contém uma realidade de grande força: força que vem
de ser a consciência do bem comum e o detentor do poder em estado puro.
Contra tal força, as pretensões dos grandes, dos criadores do registro elitizado
devem ter soado vazias a um rei sagaz.
138 Dread lord, the commons send you word by me/Unless Lord Suffolk straight be done to
death,/Or banished from fair England’s territories/They will by violence tear him from your
palace/And torture him with grievous death:
139 their tender loving care.
140 You, my lord, were glad to be employed/To show how quaint an orator you are./But all
the honour of Salisbury hath won/Is that he was the Lord Ambassador/Sent from a sort of
tinkers to the king.
141 ‘set the triple crown on his head’.
236 CADERNOS FGV DIREITO RIO
Qual é o bem comum de que o povo é guardião? Será uma abstração que
pode receber qualquer significado? Serão os caprichos mutantes da “multidão
ignorante”? Será que tem um “fundo”, como Bottom perguntou a respeito de
sua experiência idílica com a rainha das Fadas? A resposta é que o bem comum
tem um significado definido; ele é uma noção bem desenvolvida e o povo, o
povo comum entende seu verdadeiro sentido. Qual é o “ reino” que está sendo
castrado e transformado em eunuco? O verdadeiro Jack Cade e seu bando de
Kent produziram duas “listas de Artigos em resposta à indagação do rei Henri-
que sobre seus pedidos”. O bem comum, de acordo com os artigos, está sendo
destruído pela perversidade dos conselheiros reais, pela opressão e pelo mau
governo. A culpa não é do rei, pois ele é impedido, pela corrupção daqueles
que o cercam, de reinar “como um verdadeiro monarca”. “Pessoas mesquinhas”
tomaram o lugar dos honrados e naturais conselheiros do rei e elas adminis-
tram o Privy Council142 e agem às escondidas do rei.
O povo comum paga o preço: ele é detido e encarcerado sem o julga-
mento requerido pela lei; é diariamente submetido à extorsão e opressão; não
tem coragem de fazer nada para proteger seus títulos de propriedade quando
suas terras são tomadas pelos “servos menores” do rei. O xerife e seus homens,
sobretudo os coletores de impostos, são opressores e exigem mais do que é
devido. A eleição dos cavaleiros do reino é corrupta, pois os grandes proprie-
tários de terras impõem seus homens em prejuízo daqueles que haviam sido
escolhidos pelo povo.
Os Artigos têm grande força porque se baseiam nos fundamentos da com-
preensão constitucional: toda pessoa, independentemente de sua posição hie-
rárquica, faz jus à proteção legal de seus direitos e liberdades; o bem comum
consiste em preservar o reino para o bem de todos e em respeitar o valor jurí-
dico de cada pessoa na distribuição desse bem. Este é o fundamento último do
constitucionalismo ocidental. Não é preciso que as coisas sejam assim e nem
todas as sociedades são organizadas dessa forma.
Para bem entender o significado dessa proposição precisaríamos ir mais
fundo nas fundações sociais das ordens constitucionais, naquilo que Giambat-
tista Vico chamou de “direito natural das nações”.143 Cada nação aprende, com
o tempo, seu direito natural. Ele é um direito natural em um sentido social:
significa a estrutura de relações sociais que cada nação estabelece de acordo
com sua necessidade e utilidade. Do direito natural das nações surge uma or-
dem constitucional para atender necessidade e utilidade, que estão fundadas
142 NT: Órgão composto pelos principais conselheiros do rei. No século XVII, detinha enorme
poder por sua capacidade de influenciar diretamente as políticas reais.
143 G. Vico, New Science: Principles of the New Science Concerning the Common Nature of
Nations (1744) (Penguin Books, 1999).
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 237
144 See further: A. Schiavone, The Invention of Law in the West (Harvard University Press,
2012).
145 NT: Os aros de ferro serviam para manter juntas as tábuas que formam o barril. Ao aumen-
tar o número de aros de três para dez, Jack Cade parece indicar que em seu governo os
barris serão maiores, reforçando, assim, a ideia de abundância que marca seu discurso.
146 --- seven halfpenny/ loaves will be sold for a penny, /the three-hooped pot shall have ten
hoops, /and it will be a felon to drink small beer./All the realm shall be in common:
147 The first thing we do let’s kill all the lawyers.
238 CADERNOS FGV DIREITO RIO
148 NT: Nos documentos de maior formalidade, imprimia-se a marca dos interessados em um
lacre ou porção de cera quente afixada ao lado ou em lugar das assinaturas.
149 Nay, that I mean to do. Is this not a lamentable/thing that of the skin of an innocent lamb
should be made parchment? /That parchment, being scribbled o’er, should undo a man?/
Some say the bee stings, but
I say ‘tis the bee’s wax. For I did but seal once to a/Thing, and I was never my own
man since.
150 Nota do Editor: durante séculos, o idioma oficial dos procedimentos judiciais na Inglaterra
era o francês ou o latim e não o inglês, idioma falado pela maior parte dos ingleses mas não
adotado nos procedimentos da corte.
151 ‘worship me their lord’.
152 ‘mouth shall be the Parliament of England’.
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 239
Lear e Cordélia se reconciliam, mas não sabem que a lei de ferro da tragé-
dia lhes reserva ainda um último e terrível tributo. Por um breve instante, na-
quela reconciliação, a resignação de Lear é completa. É uma resignação sábia,
uma resignação que se distancia e quase se diverte com o “mistério das coisas”.
Deixemos que Lear, dirigindo-se a Cordélia, tenha a última palavra:
153 […] for there is nothing/Either good or bad but thinking makes it so./To me it is a prison
[2:2:250].
240 CADERNOS FGV DIREITO RIO
Referências
A. Schiavone, The Invention of Law in the West (Harvard University Press, 2012).
E. Burke, An Appeal from the New to the Old Whigs in Works of Edmund Burke
(Oxford University Press, 1907) Volume V:102-3.
154 […] Let’s away to prison./We two alone shall sing like birds i’th’ cage./When thou dost
ask me blessing, I’ll kneel down/And ask of thee forgiveness; so we’ll live,/And pray, and
sing, and tell old tales, and laugh/At gilded butterflies, and hear poor rogues/Talk of court
news, and we’ll talk with them too/ - Who loses, and who wins, who’s in, who’s out,/And
take upon’s the mystery of things/As if we were God’s spies; and we’ll wear out/In a walled
prison packs and sects of great ones/That ebb and flow by the moon [5:3:8].
SHAKESPEARE E O REGISTRO POPULAR DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL 241
Gerald Stourzh, From Vienna to Chicago and back: essays on intellectual his-
tory and political thought in Europe and America (University of Chicago Press,
2007).
G. Vico, New Science: Principles of the New Science Concerning the Com-
mon Nature of Nations (1744) (Penguin Books, 1999).
4 Consultar Why People Cooperate: The Role of Social Motivations (“Por que as pessoas co-
operam: a função dos motivadores sociais”) 34 (2011) de Tom R. Tyler.
NO LIMITE 245
5 Law, Lawyers, and Popular Culture, 98 (“Direito, Advogados e Cultura Popular”), de La-
wrence M. Friedman, The Yale Law Journal 1579, 1588 (1989). Para a versão em português,
veja Lawrence Friedman, Direito, Advogados e Cultura Popular, em Direito, Cultura Popular
e Cultura Clássica, Pedro Fortes (editor), volume 12 da série CADERNOS FGV DIREITO RIO
(2015).
6 Popular Culture, Legal Films, and Legal Film Critics (“Cultura popular, filmes jurídicos e
críticos de filmes jurídicos”), 40 de James R. Elkins, Loyola de Los Angeles Law Review 475
(2007).
246 CADERNOS FGV DIREITO RIO
cidadãos comuns, que exercem o papel de vigilantes que fazem a “justiça” com
as próprias mãos, a comunidades, organizações e outros grupos sociais, como
as empresas criminosas descritas acima, que imitam os tribunais e outras ins-
tituições estatais. O que é particularmente interessante sobre essas últimas é
o importante espaço ocupado pela percepção de justiça, mesmo entre alguns
dos personagens mais perversos retratados como fora da lei ou anti-heróis.
Em cada um dos filmes e séries de televisão mencionados acima, alguns
dos personagens retratados como criminosos parecem colocar uma grande
importância em sua própria versão de justiça, integridade e outros ideais ge-
ralmente associados com o sistema jurídico oficial. Seus códigos interorgani-
zacionais de conduta também parecem enfatizar a importância da honra, leal-
dade e, em alguns casos, o devido processo legal. Sua noção de justiça está,
naturalmente, a serviço da sua família, grupo ou empresa, e não dentro dos
interesses da sociedade em geral.
Isso contribui para mostrar que o direito e a justiça não são serviço exclu-
sivo do Estado, e que, mesmo nas camadas mais improváveis da sociedade,
as pessoas são capazes de desenvolver uma noção do que é certo e errado,
justo e injusto — embora de forma egoísta — independentemente do seu grau
de proximidade com o sistema jurídico oficial. Irei desenvolver essa ideia na
seção seguinte através das lentes da amplamente aclamada série de televisão
Breaking Bad, que fornece um bom exemplo de uma faceta de modo geral
inexplorada da relação entre o direito oficial e não oficial, e a interação entre
esses dois conceitos.
7 Breaking Bad Normalizes Meth, Argues Prosecutor (“Breaking Bad normaliza mentafetami-
nas, argumenta o promotor”), 20 de setembro de 2013, de Blake Ewing; Ver também, How
NO LIMITE 247
Breaking Bad helped end the war on drugs (“Como Breaking Bad ajudou a acabar com a
guerra contra as drogas”) de 16 de agosto de 2013 de Stephen Marche; e Breaking Bad’s
failed American dream (“O fracasso do sonho americano de Breaking Bad”, de 11 de julho
de 2012 de Max Rivlin-Nadler.
8 *
Nota do Editor: A expressão Breaking Bad foi traduzida como sendo equivalente chutando
o pau da barraca em português.
9 Lily Rothman, Breaking Bad: What does that phrase actually mean? (“Breaking Bad: o que
essa frase realmente significa?”) 23 de setembro de 2013, Time. Disponível em: http://en-
tertainment.time.com/2013/09/23/breaking-bad-what-does-that-phrase-actually-mean/
10 Crime and Punishment: Greed, Pride and Guilt in Breaking Bad (“Crime e punição: ganância,
orgulho e culpa em Breaking Bad”, de Pablo Echart & Alberto N. García.
248 CADERNOS FGV DIREITO RIO
11 Nota do editor: a expressão original law enforcement não possui um conceito equivalente
em português e deveríamos criar um neologismo para expressar este enforcamento da lei.
12 Para uma discussão geral sobre ética legal na cultura popular, consulte Moral Pluck: Legal
Ethics in Popular Culture (“Determinação moral: ética legal na cultura popular”), 101, Colum-
bia Law Review 421 (2001).
NO LIMITE 249
que é exibida em pedaços durante toda a série, tem como foco principal a apli-
cação das regras por meio de sanções intracomunitárias efetuadas por pessoas
especialmente designadas que aparecem para seguir as ordens de seus chefes
sem hesitação. Na maioria das vezes, as hierarquias internas das organizações
criminosas descritas em Breaking Bad parecem estar bem definidas.
O grupo mais proeminente é o do Cartel Juárez, liderado por Don Eladio
Vuente, um personagem parecido ao poderoso chefão que também simboli-
za o estereótipo latino parecido ao Tony Montana no filme Scarface, a Força
do Poder. Em algum momento da série, um pouco da história sobre a relação
entre Vuente e seus antigos colegas de trabalho Gustavo Fring e Hector “Tio”
Salamanca é passada aos telespectadores. Durante a maior parte da série, no
entanto, Salamanca aparece como um homem doente e com uma deficiência
grave, provavelmente vítima de um AVC ou outra condição incapacitante, e
só se comunica por meio de um sino ligado à sua cadeira de rodas ou de suas
expressões faciais desesperadas. Durante sua juventude, fica evidente que Sa-
lamanca era um membro ativo do cartel e mandante de Vuente, embora ele
também parecesse ser admirado dentro de sua própria família.
Fring, por outro lado, aparece como um homem de negócios bem-esta-
belecido e calculista que usa sua bem-sucedida cadeia de fast food Los Pollos
Hermanos como uma fachada para seu laboratório de metanfetamina e outros
negócios relacionados a drogas ilícitas. Enquanto as operações de Vuente fi-
cavam restritas ao México, Fring e Salamanca atuavam apenas nos Estados
Unidos. Embora Eladio Vuente parecesse ser o líder mais influente e poderoso,
Fring e Salamanca tinham suas próprias áreas de influência e não se percebiam
totalmente subordinados a Vuente. Uma cena em particular na 3ª temporada
serve para ilustrar este ponto.
Ao saber de seu tio Hector que Walter White tinha matado seu primo “Tuco”,
Leonel e Marco Salamanca se dirigiram à casa de Walter para executá-lo. Quan-
do eles estavam prestes a realizar essa missão, uma mensagem de texto com a
palavra “Pollos” (tal como no restaurante de Gustavo Fring) fez com que eles
abortassem a missão e fossem a uma reunião entre Gus e Hector, onde Juan Bol-
sa (mais um dos associados a Vuente) atuou como mediador. Durante a reunião,
Fring convenceu os irmãos Salamanca a poupar a vida de Walter no momento,
porque ele o estava usando para produzir metanfetamina, e lhes propôs matar
Hank Schrader. As partes chegaram a um acordo, embora Fring o tenha violado
mais tarde, advertindo Hank, e passando informações sobre Juan Bolsa à polícia
mexicana. Pelo menos no sentido formal, o processo se assemelhou a uma me-
diação que poderia ter ocorrido dentro dos limites do sistema legal oficial.
A utilização da mediação como mecanismo de resolução de litígios na situ-
ação descrita acima parece ser a melhor opção dada a situação semelhante das
250 CADERNOS FGV DIREITO RIO
13 Becoming Badass:Teaching Katz’s “Ways of the Badass” using the Breaking Bad Television
Series (“Tornando-se um vilão: ensinando as maneiras de se tornar um vilão de Katz usando
a série de televisão Breaking Bad”), 26, Journal of Criminal Education 94 (2015).
14 Morgan Fritz, Television from the Superlab: The Postmodern Serial Drama and the New
Petty Bourgeoisie in Breaking Bad (“Televisão do super laboratório: a série dramática pós-
-moderna e a nova e mesquinha burguesia em Breaking Bad”), Journal of American Studies
1 (2014).
NO LIMITE 251
III. Conclusão
Apesar de ser uma manifestação manipulada dos fenômenos sociais reais, a
cultura popular é também um fator que ajuda a entender a dinâmica da vida
real perante o sistema legal. A cultura popular também tem o potencial de
fazer refletir um determinado conjunto de valores, conceitos e atitudes que
certas pessoas têm sobre o direito, tanto no nível oficial quanto no não oficial.
Uma série de televisão, como a Breaking Bad, cujo foco central não é apenas
sobre como o sistema jurídico formal responde ao crime, mas sim como as or-
ganizações criminosas regulam a si mesmas; oferece um exemplo interessante
de como os conceitos de direito e da justiça podem se desenvolver e receber
apoio fora do sistema jurídico formal. Enquanto a representação da ordem nor-
mativa privada em Breaking Bad é obviamente acentuada para dar um efeito
impactante, ela ajuda a compreender a relação entre direito e cultura, e “entre
o sistema jurídico em funcionamento e sua matriz social essencial”.15
Referências
ECHART, Pablo; GARCÍA, Alberto N. Crime and Punishment: Greed, Pride and
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TYLER, Tom R. Why People Cooperate: The Role of Social Motivations (“Por
que as pessoas colaboram: a função dos motivadores sociais”) 34 (2011).
ATIVISMO CINEMATOGRÁFICO:
A DEFESA DE MINORIAS POR CINEASTAS1.
Pedro R. Fortes2
Introdução
Este ensaio analisa o “ativismo cinematográfico”, entendido como o fenômeno
da produção de filmes com uma ambição transformadora e foco na defesa dos
direitos de minorias. Em outras palavras, cineastas também podem funcionar
como ativistas da ação afirmativa. Existem diferentes maneiras em que as nar-
rativas podem propagar a proteção simbólica de indivíduos vulneráveis dentro
de uma determinada sociedade. Um exemplo pródigo é a representação de uma
história dramática em que os personagens são vítimas de discriminação, como
consequência de sua crença religiosa, raça ou orientação sexual3. Outra for-
ma importante de estimular a transformação da sociedade por meio do cinema
provém de narrativas com elementos contraintuitivos que indicam o que deve
ser feito a fim de tornar a sociedade mais justa e mais igual. Inúmeros cineastas
expressam essas ambições transformadoras da sociedade em seus filmes4.
Questões sociojurídicas complexas podem ser apresentadas por meio de
sequencias de imagem e som. Neste sentido, o cinema pode disseminar ideias
transformadoras sobre direitos humanos, liberdades civis e políticas e direitos
das minorias em geral. As imagens de vídeo são capazes de representar con-
1 Uma versão deste trabalho em inglês foi publicada como capítulo do livro de Michael Asi-
mow, Kathryn Brown, and David Papke (eds), Law and Popular Culture: International Pers-
pectives (Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2014). A pesquisa foi apresentada no
seminário de pesquisa Law and Public Affairs na Faculdade de Direito de Oxford e em uma
conferência internacional na Universidade de Tilburg em 2013, estando o autor grato pelo
excelente feedback recebido e que foi incorporado ao texto.
2 Pedro Rubim Borges Fortes é professor da FGV DIREITO RIO. É graduado em direito pela
UFRJ, em administração pela PUC-Rio, LL.M. pela Harvard Law School, J.S.M. pela Stanford
Law School e doutorando em direito por Oxford. Foi professor visitante na WB NUJS em
Calcutá, na Índia, na Universidade Goethe, em Frankfurt, e pesquisador visitante no Instituto
Max Planck de Hamburgo, Alemanha. Dentre suas honras acadêmicas, foi professor home-
nageado em 2004, 2005 e 2011 e foi selecionado para o IV International Junior Faculty Fo-
rum em 2011. É ex-procurador do Banco Central e promotor de justiça no MPRJ desde 2000.
3 Michael Asimow and Shannon Mader, Law and Popular Culture: A Course Book (New York:
Peter Lang Publishing, 2007), 36.
4 Laurent Jullier, Analyser un film: de l´emotion à l´interpretation (Paris: Flammarion, 2012),
108-9.
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8 Para uma detalhada análise sociojurídica do comércio de diamantes na Africa, veja Greg
Campbell, Blood diamonds: tracing the deadly path of the world´s most precious stones
(Boulder: Westview press, 2002); Janine Roberts, Glitter & Greed: the secret world of the
diamond cartel (New York. Disinformation Co, 2003); Tom Zoellner, The heartless stones
(New York: St. Martin’s press, 2006).
256 CADERNOS FGV DIREITO RIO
9 Eu tenho em mente, por exemplo, dentre outros: Lawrence Lessig, Republic, lost: how money
corrupts congress and a plan to stop it (New York: Twelve, 2011); Mark Tushnet, Out of range:
why the constitution can´t end the battle over guns (Oxford: Oxford University Press, 2007).
10 George Gerbner, “Cultivation analysis: an overview”, Mass communication & society, 3/4
(1998): 175-94.
11 Asimow and Mader, Law and Popular Culture, 54-8.
ATIVISMO CINEMATOGRÁFICO 257
12 Para ensaios sobre como a cultura pop influencia a prática jurídica, veja, por exemplo, La-
wrence Friedman, “Law, lawyers, and pop culture”, Yale Law Journal, 98 (1989): 1579-1606;
Richard K Sherwin. Law and Popular Culture in Austin Sarat (ed.), The Blackwell Companion
to Law and Society, Oxford: Blackwell Publishing Ltd (2004).
13 Jullier, Analyser un film, 26.
14 David Hume, A treatise of human nature, David Fate Norton and Mary J. Norton (eds),
(Oxford: Oxford University Press, 2000), 293-302.
15 Hume, A treatise of human nature, 302-6.
258 CADERNOS FGV DIREITO RIO
Nova York em busca de uma rainha, simplesmente porque não existe mulher
suficientemente interessante para ele em todo o continente africano. De acordo
com a narrativa, as mulheres africanas são subservientes, como mostrado por
uma cena em que uma possível noiva fica em um pé e late, a fim de demonstrar
que ela foi treinada para ser totalmente obediente ao marido. Esta cena pro-
move a ideia de que as mulheres africanas não são nem independentes, nem
adequadas como parceiras, e que o príncipe deve buscar sua esposa nos Esta-
dos Unidos. Assim, indivíduos pobres e personagens africanas não são sempre
construídos através de uma lente positiva em uma determinada narrativa.
Ao contrário, a maioria dos filmes de Hollywood contém narrativas tra-
dicionais que reproduzem assimetrias de poder que existem no seio da so-
ciedade. Por exemplo, o cinema Hollywood tradicional costuma descrever a
busca de amor entre personagens brancos heterossexuais, que são, ao final,
unidos como par romântico. Enquanto há tipicamente um conflito que exige
uma resolução no desfecho dessas narrativas românticas, o problema raramen-
te é devido à religião, raça, orientação sexual ou de gênero das personagens.
Por exemplo, em Mensagem pra você (1998) os protagonistas são separados
porque o protagonista masculino tem medo de admitir a sua contraparte fe-
minina que sua família é proprietária de uma enorme cadeia de livrarias que
ameaça a existência de sua livraria familiar de esquina. Em Como Perder um
Homem em 10 Dias (2003), os personagens são distanciados pelo fato de que
eles se conheceram quando a protagonista feminina tinha sido encarregada de
escrever um artigo para uma revista feminina sobre os erros clássicos que as
mulheres cometem e as levam a “perder um cara”. Outro exemplo é Como se
fosse a primeira vez (2004), em que uma amnésia bizarra interfere com relacio-
namento de um casal, já que a heroína esquece tudo sobre o dia anterior após
uma noite regular de sono. Dezenas de outros exemplos poderiam ser dados
para demonstrar que a maioria dos filmes de Hollywood contém um elemento
de conflito baseado não na religião, raça ou orientação sexual, mas em um ar-
tifício narrativo que é artificial e facilmente superado21. Ao não fornecer uma
plataforma para se discutir as questões prementes da sociedade contemporâ-
nea, Hollywood reforça as ideologias dominantes. Na verdade, ao se recusar
a discutir essas questões, Hollywood, paradoxalmente, reconhece a condição
destes conflitos enquanto controvérsias sociojurídicas sensíveis — tabus.
22 Sua teoria cultural é encontrada em muitas partes diferentes do seu trabalho, mas é suma-
rizada em Gramsci, Prison notebooks, vol. II, 52-3.
23 Gramsci, Prison notebooks, vol. I, 42-64.
24 Eu tenho em mente especialmente a tradição post-colonialista e trabalhos como Edward
Said, Culture and imperialism (New York: Vintage, 1994); Edward Said, Orientalism (New
York: Vintage, 1979).
25 Uma crítica cultural do caráter social da obra de Wagner — especialmente o anti-Semitismo
em Parsifal — pode ser encontrada em Theodor Adorno, In search of Wagner (London:
Verso, 2005), 8-17. Uma breve nota sobre como Shakespeare abertamente se aproximou
da classe social dominante e produziu arte aristocrática pode ser encontrada em Gramsci,
Prison notebooks, vol. II, 123.
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pectadores frequentes, cujos valores são moldados pela cultura popular que
consomem por meio de televisão e filmes. Por intermédio da cultivação, os
telespectadores podem reproduzir os estereótipos expressos pelos artefatos
culturais sem necessariamente estar consciente do impacto dessa hegemo-
nia cultural em suas mentes. Casais românticos de Hollywood são geralmente
compostos por ricos, brancos, indivíduos heterossexuais, e essa caracterização
padrão pode impactar percepções do espectador sobre a mistura de raça ou
casais homossexuais. Entre 1930 e 1968, o retrato de casais miscigenados nas
telas hollywoodianas era restrito por diretrizes de censura estabelecidas pelo
Código de Produção. De acordo com estas diretrizes de censura, a miscige-
nação (relações sexuais entre pessoas de raças diferentes) e qualquer suges-
tão de “perversão sexual” (relativos à intimidade sexual entre indivíduos do
mesmo sexo) foram estritamente proibidas26. Com exceção de algumas raras
concessões — como dois homens dançando juntos no Wonder Bar (1934) —
Hollywood cultivava a noção de que as relações normais consistem de amor
romântico entre indivíduos heterossexuais da mesma etnia. O ativismo cine-
matográfico é necessário para desconstruir tais discursos hegemônicos e para
proteger as minorias da opressão cultural e subordinação social — ideologica-
mente suportada pelas narrativas dominantes que excluem sistematicamente
os não brancos, não heterossexuais e outras minorias representadas na tela.
mes lembra à audiência que essas minorias merecem proteção jurídica especial
como compensação por seu sofrimento na história recente. Nesse sentido, sua
justificação ficcional na tela pode servir de apoio à reivindicação de seus direi-
tos nas sociedades contemporâneas.
Minorias também podem ser protegidas no cinema mediante de histórias
realistas. Em O Pianista (2002), Roman Polanski abre a narrativa com imagens
de Varsóvia no final de 1930, pouco antes da invasão alemã, e demonstra aos
espectadores que ele está trazendo uma história real. A trama traça as memó-
rias biográficas do pianista judeu polonês Wladyslaw Szpilman durante a Se-
gunda Guerra Mundial e cobre os episódios históricos relevantes da ocupação
alemã — incluindo a revolta do gueto de Varsóvia, o transporte de judeus para
campos de concentração a partir da Umschlagplatz e a destruição de Varsóvia
após o levante polonês. Retratando a vida de uma personagem como uma bio-
grafia filmada, os telespectadores são muitas vezes atraídos pela ideia de que
eles estão assistindo a uma história real dentro da estrutura especial de tempo
biográfico27 e sentem empatia com os personagens que sofrem injustiças28. No
caso deste filme, Polanski foi ele próprio um sobrevivente do Holocausto judeu
da Varsóvia ocupada e sempre quis gravar suas próprias memórias do tempo
de guerra em um de seus filmes. Portanto, O Pianista também contém recor-
dações do diretor, que foi elogiado por sua objetividade, embora a narrativa
retrate uma visão subjetiva de Varsóvia ocupada29. Em última análise, o perso-
nagem principal sobreviveu por causa da simpatia e proteção de um pequeno
número de indivíduos que conseguiu desafiar a ocupação nazista.
Outro filme de guerra épica com uma mensagem equivalente é Lista de
Schindler (1993), uma obra que conta a história de um empresário alemão
(Oskar Schindler) que salvou cerca de mil judeus poloneses do Holocausto,
empregando-os em sua fábrica na zona ocupada de Cracóvia. Este filme em-
prega estilo visual típico das biografias filmadas. Ele foi filmado em preto e
branco e com câmeras de mão para aumentar a impressão de um documentá-
rio de guerra. O diretor Steven Spielberg considera seu primeiro filme com uma
mensagem mais profunda e confessou ter dificuldades em filmá-lo por causa
de suas próprias raízes judaicas e familiares que sobreviveram ao holocausto30.
Em relação à representação do caráter de Oskar Schindler, sua transformação
de um simpatizante nazista a um protetor dos judeus era para ser sutil e gra-
27 A dimensão especial do tempo biográfico no cinema é ressaltada por Beil, Kühnel, and
Neuhaus, Studienhandbuch filmanalyse: Ästhetik und Dramaturgie des Spielfilms, 278-9.
28 Asimow and Mader, Law and Popular Culture, 36.
29 James Greenberg, Roman Polanski: seine Filme, sein Leben. (München: Knesebeck, 2013),
208-12.
30 Richard Schickel, Steven Spielberg: seine Filme, sein Leben. (München: Knesebeck,
2012),157-62.
264 CADERNOS FGV DIREITO RIO
33 Uma análise ampla deste fenômenono pode ser encontrado em Russo, Vito. Celluloid clo-
set: homosexuality in the movies (New York: Harper and Row, 1987).
266 CADERNOS FGV DIREITO RIO
um travesti e uma lésbica, respectivamente. Não foi até Filadelfia (1993) que
personagens gays foram retratados de forma positiva na tela34. Nos últimos
anos, os filmes de Hollywood têm repetidamente denunciado a homofobia
e, pelo menos simbolicamente, têm protegido os indivíduos LGBT. Meninos
Não Choram (1999) conta a história dramática de um homem transgênero,
Brandon Teena (anatomicamente uma mulher e originalmente chamado de
Teena Brandon) sendo estuprada e assassinada por dois conhecidos de sua
namorada. O Segredo de Brokeback Mountain (2005) narra o romance proi-
bido entre dois cowboys que têm relações sexuais por mais de duas décadas
até que um deles é assassinado. Milk (2008) é a biografia do ativista dos
direitos gay Harvey Milk desde o início de sua carreira política em San Fran-
cisco até o ataque que terminou sua vida. Todas estas narrativas provocam
empatia no público por meio da representação da violência brutal e injusta
cometida contra personagens LGBT. Brokeback Mountain disseminou a uma
vasta audiência a questão sociojurídica complexa de casamento do mesmo
sexo discutido pela Suprema Corte dos Estados Unidos em Hollingsworth v.
Perry 570 US (2013) e United States v. Windsor 570 US (2013). No entanto,
ao retratar o sofrimento dos protagonistas e condenar a violência cometida
contra eles, esta narrativa contra-hegemônica transforma esses personagens
gays em mártires simbólicos da causa do casamento do mesmo gênero. A
mensagem normativa de Brokeback Mountain é que a sociedade deveria le-
galizar, aceitar e proteger os casamentos do mesmo gênero. Como outros
exemplos do ativismo cinematográfico, este filme também tem uma ambição
transformadora clara e visa proteger as minorias por meio da promulgação de
uma narrativa contra-hegemônica.
Conclusão
Os estudos culturais tradicionalmente referem-se a “hegemonia cultural”35 ao
descrever como a televisão influencia a perspectiva dos espectadores frequen-
tes por meio da cultivção de ideias tradicionais36. A literatura sobre a cultura
popular e o direito sugere que o cinema pode também moldar perspectivas dos
espectadores sobre determinadas questões37, mas não há nenhuma evidência
científica que sugira que as ideias de uma pessoa são influenciadas pelos filmes
a que assistem. Este ensaio tem explorado este assunto, centrando-se sobre o
trabalho de cineastas com uma ambição transformadora, cujas películas con-
têm ideias normativas sobre como as minorias devem ser protegidas. Esses
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270 CADERNOS FGV DIREITO RIO
Este livro foi produzido pela FGV DIREITO RIO,
composto com a família tipográfica Gotham
e impresso em papel offset,
no ano de 2015.
CadernosFGVDIREITORIO
ISBN 978-85-63265-60-9