ARQUÉTIPOS

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PSIQUÊ ‐ CLÍNICA DE PSICOLOGIA E CENTRO DE ESTUDOS C. G.

JUNG
PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOTERAPIA JUNGUIANA

LAHIRI LOURENÇO ARGOLLO

ARQUÉTIPOS

SALVADOR – BAHIA
2020
LAHIRI LOURENÇO ARGOLLO

ARQUÉTIPOS

Atividade avaliativa do Módulo III, apresentada ao


Curso Pós-Graduação em Psicoterapia Junguiana,
da Psiquê ‐ Clínica de Psicologia e Centro de
Estudos C. G. Jung, como parte das exigências
para obtenção do título de Especialista em
Psicoterapia Junguiana.

SALVADOR-BA
2020
SUMÁRIO

1 ARQUÉTIPO: CONCEITO E FORMAÇÃO...........................................................................................4


2 PRINCIPAIS ARQUÉTIPOS................................................................................................................7
2.1 Persona....................................................................................................................................8
2.2 Sombra....................................................................................................................................8
2.3 Anima e Animus.......................................................................................................................9
2.4 Self.........................................................................................................................................10
2.5 Os inúmeros arquétipos.........................................................................................................11
3 O ARQUÉTIPO MATERNO.............................................................................................................11
REFERÊNCIAS...................................................................................................................................14
4

1 ARQUÉTIPO: CONCEITO E FORMAÇÃO

A ideia de arquétipo está intrinsecamente associada à concepção do


inconsciente coletivo, uma estrutura “impessoal ou supra pessoal” onde se
encontram “(...) sedimentos de todas as experiências dos antepassados, mas não
essas experiências em si mesmas” (JUNG, 1981, p. 180), ou seja, uma “(...) aptidão
hereditária a imaginação humana de ser como era nos primórdios” (JUNG, 1981, p.
57).
Esse inconsciente é tratado por Jung como “um substrato psíquico comum”
(2008. p. 15, §3º) ou “um substrato anímico coletivo” (2008. p. 157, §262), sendo
uma estrutura psíquica biologicamente herdada:
De onde procedem então essas fantasias mitológicas, se não têm qualquer
origem no inconsciente pessoal e por conseguinte nas experiências da vida
pessoal? Sem dúvida provêm do cérebro — precisamente do cérebro e não
de vestígios de recordações pessoais, mas da estrutura hereditária do
cérebro. Tais fantasias sempre têm um caráter original, “criativo”:
assemelham-se a novas criações. Evidentemente derivam de uma atividade
criativa do cérebro e não simplesmente de uma atividade reprodutiva. Sabe-
se que juntamente com o nosso corpo recebemos um cérebro altamente
desenvolvido que traz consigo toda a sua história [...] esta estrutura
[cerebral] conta sua história que é a história da humanidade: o mito
interminável de morte e renascimento e da multiplicidade de figuras que
estão envolvidas neste mistério.

Suas primeiras impressões sobre o inconsciente coletivo surgem de um


sonho em 1909, ocorrido em meio a viagem pelos Estados Unidos ao lado de Freud.
Sonhou com uma casa, cujos andares do alto até o subsolo descrevem uma
verdadeira viagem pela história até o passado paleolítico (JUNG, 2019). A partir
desta imagem onírica, Jung constrói empiricamente seu conceito da psiquê objetiva,
graças aos seus extensos conhecimentos sobre mitologia, arqueologia, folclores
populares, história, arte, religiões, além da análise de muitos sonhos de seus
pacientes.
Em seus primeiros escritos sobre os elementos do inconsciente coletivo, Jung
aborda a existência de “dominantes do inconsciente coletivo” (1917), pontos ou
nódulos de grande carga energética (JACOBI, 1995, p. 39). Interessante observar
que a busca de elementos filogenéticos no psiquismo humano não foi exclusiva de
Jung, sendo em certo aspecto compartilhada por Freud:
Essa mesma busca de universais psíquicos, cumpre assinalar, também
intrigou Freud, mas de um modo diferente. Freud procurava um desejo
inconsciente singular - um complexo central- que explicasse todos os
5

conflitos psíquicos, e pensou tê-Ia encontrado na história da horda primitiva.


Enquanto Jung estava escrevendo Psicologia do Inconsciente, Freud
preparava a publicação de Totem e Tabu. Com material clínico numa das
mãos e O Ramo de Ouro, de Frazer, na outra, Freud estava desenvolvendo
um projeto semelhante ao de Jung; fora dada a largada para a corrida sobre
quem faria primeiro a Grande Descoberta. Quer seja preferida a versão de
Freud ou a de Jung, o denominador comum é que a mente humana possui
estruturas universais, tal como o corpo humano, e elas podem ser
descobertas através de um método interpretativo e comparativo. (STEIN,
2001, p. 87).

Jung passa a denominar esses elementos do inconsciente coletivo de


“imagens originárias” ou “imagens protótipos”, a partir de paralelos que fez entre “(...)
entre imagens e mitos de indivíduos e grupos em períodos e locais históricos sem
qualquer relação entre si”, que instigaram-no a buscar explicações (STEIN, 2001).
Seriam mitologemas, “(...) motivos oriundos da mitologia, das lendas e dos contos,
capazes de expressar, num retrato vivo, os comportamentos comuns do homem”. A
partir de 1927, o termo arquétipo é introduzido em seus escritos 1, retirado das obras
Corpus Hermeticum e Dionísio Areopagita (JACOBI, 1995, p. 39).
O inconsciente coletivo é definido por Jung como sendo a totalidade dos
instintos e arquétipos, enquanto estes últimos são “(...) formas a priori, inatas, de
intuição, (...) determinantes necessárias e a priori de todos os processos psíquicos”
(JUNG, 1991, p. 137, §270). Um aspecto importante para a compreensão do
arquétipo está na separação de Jung faz entre o arquétipo em si e sua imagem, uma
possibilidade de representação. “O arquétipo é um elemento vazio e formal em si,
nada mais sendo do que uma facultas praeformandi, uma possibilidade dada a priori
da forma da sua representação (JUNG, 2008, p. 91, §155). Daí Silveira tratá-lo como
uma virtualidade, comparável a “(...) um nódulo de concentração de energia psíquica
(...)” capaz de formar imagens arquetípicas (SILVEIRA, 1996, p. 80).
Jacobi (1995, p. 51) compara o arquétipo a um campo magnético “(...) que
está na base da transformação do decurso psíquico em imagem”. Assim, enquanto
estrutura do inconsciente, é " (...) um mero sistema de prontidão”, contendo a
possibilidade de vir a se manifestar apresentando-se “(...) em determinadas formas
em virtude da projeção”. Não é, portanto, a imagem em si, mas a possibilidade
herdada de gerá-las. “Uma descrição melhor é que o arquétipo seja como um molde
psíquico no qual são despejadas as experiências individuais e coletivas, onde elas

1
A Dinâmica do Inconsciente, p. 137.
6

tomam forma, mas isso é distinto dos símbolos e imagens em si” (HOPCKE, 2012, p.
25). Imagem, nesse contexto, é a expressão dinâmica do arquétipo.
Jung usa o exemplo da reprodução da mariposa da flor da iúca para denotar a
ação do arquétipo, demonstrando ser difícil explicar o complexo processo como
mera aprendizagem e repetição, implicando num fator intuitivo. Ele acrescenta ao
instinto, um impulso predeterminado de comportamento, o arquétipo, como a
“apreensão teleológica de uma situação”. (JUNG, 1991, p. 136, §268/269).
Stein (2001) ressalta a visão junguiana do arquétipo como a fonte de energia
primária e padronização psíquica. “Constitui a fonte essencial de símbolos psíquicos,
os quais atraem energia, estruturam-na e levam, em última instância, à criação de
civilização e cultura” (STEIN, 2001, p. 81). Como molde dos mais variados
comportamentos humanos, numa perspectiva filogenética, o arquétipo assume
diferentes matizes, uma vez que é vazio em si mesmo, preenchendo-se com os
conteúdos específicos da experiência individual, aos quais confere uma
configuração temática de caráter universal. De acordo com Jung (2008, p. 42, §69),
Basta saber que não existe uma só ideia ou concepção essencial que não
possua antecedentes históricos. Em última análise, esses se fundamentam
em formas arquetípicas primordiais, cuja concretude data de uma época em
que a consciência ainda não pensava, mas percebia.

Deduz-se do seu pensamento a ideia do arquétipo com uma possibilidade.


Assim, quando o indivíduo se vê diante uma situação que tenha uma
correspondência temática com um arquétipo, este é ativado, manifestando-se numa
força impulsiva de percepção e de ação (correlata a milhares de experiências
similares vividas ao longo da trajetória humana na terra) atualizada naquela
condição específica que o acionou. Nas palavras do próprio Jung, “quando algo
ocorre que corresponde a um arquétipo, este é ativado e surge uma compulsão que
se impõe a modo de uma reação instintiva contra toda a razão e vontade” (JUNG,
2008, p. 58, §99).
Silveira (1996) aponta duas possibilidades para a origem dos arquétipos.
Numa, seriam o resultado de vivências fundamentais, impressões superpostas que
experiências repetidas ao longo de milênios teriam gravado no mais profundo o
psiquismo humano. Nas palavras do próprio Jung,
Intermináveis repetições imprimiram essas experiências na constituição
psíquica não sob a forma de imagens preenchidas de um conteúdo, mas
precipuamente apenas formas sem conteúdo, representando a mera
7

possibilidade de um determinado tipo de percepção e ação. (JUNG, 2008, p.


58, §99).

Noutra, “seriam disposições inerentes à estrutura do sistema nervoso que


conduziriam à produção de representações sempre análogas” (SILVEIRA, 1996, p.
80). Jacobi (1995) inclina-se a esta última concepção, uma vez que características
adquiridas ao longo da vida não são transmitidas geneticamente. Assim,
compreende o arquétipo como uma condição estrutural do cérebro, um princípio
formal capaz de gerar padrões recorrentes no funcionamento psíquico. É a
interpretação que faz do conceito de Jung do arquétipo como “sedimentação da
função psíquica” dos ancestrais (JUNG, 1991, §589).
Todavia, o próprio Jung recusou a visão mecanicista que reduzia a psique a
mero produto de acontecimentos físicos. “Pelo contrário, inúmeros fatos provam que
a alma traduz o processo físico em sequências de imagens, as quais muitas vezes
não tem conexão visível com o processo objetivo”. E, reforçando seu pensamento,
acrescenta: “Não há razão alguma para se considerar a psique como algo
secundário, ou como um epifenômeno, mas há motivos suficientes para concebê-la
– pelo menos hipoteticamente – como um factor sui generis” (JUNG, 2008, p. 70,
§117).
Em extenso estudo bibliográfico, Martini (2012) demonstra que a dificuldade
de se explicar a origem dos arquétipos pela teoria junguiana advém do próprio
método de seu fundador: “Jung tentou unir a psicologia, o comportamento, a biologia
e o espírito na construção de unus mundus. Sentiu que seria um erro considerar
esta área insondável da psique como derivada da base instintiva e neurológica”
(MARTINI, 2012, p. 14).

2 PRINCIPAIS ARQUÉTIPOS

Jung disse existir “tantos arquétipos quantas as situações típicas da vida”


JUNG, 2008, p. 58, §99). Todavia alguns arquétipos se destacam, seja por terem
importante papel na estrutura da personalidade, seja por serem frequentemente
ativados nas vivências diárias. O próprio processo de individuação, proposto por
Jung (1981), perpassa por motivos arquetípicos: a conscientização da persona, o
8

confronto com a sombra, o contato com a anima/animus e o encontro com o self


(JACOBI, 2013)

2.1 Persona
Persona é o termo utilizado por Jung para definir “(...) a máscara da psique coletiva
(...) um compromisso entre o indivíduo e a sociedade” (JUNG, 1981, p. 146, §246).
Etimologicamente, remete ao conceito de máscara, objeto utilizado pelos atores da Grécia
antiga. Jung a utiliza justamente pela ideia de ser um papel a ser desempenhado. Assume,
portanto, uma função mediadora entre o eu e o mundo.
Hall e Nordby (1985) lembram que, pela perspectiva evolucionista, todos os
arquétipos devem ser úteis ao indivíduo ou o tornariam inadaptado ao meio. Por isso,
afirmam ser a persona imprescindível para a vida social, lembrando o exemplo de Franz
Kafka, que “confessou repetidas vezes que odiava o trabalho, mas seus superiores jamais
se deram conta deste seu modo de sentir-se, vendo-o cumprir zelosamente as obrigações
do emprego” (HALL; NORDBY, 1985, p. 36). De certa forma, a persona é uma exigência da
sociedade, que espera do indivíduo o seu melhor desempenho no seu “papel” dentro da
coletividade.
Por outro lado, quem não a desenvolve satisfatoriamente sofre a dificuldade da
integração e aceitação. O risco, do outro lado, é a identificação do eu com a persona,
levando as pessoas a acreditarem que são o papel que interpretam, dissolvendo-se no
coletivo: “O perigo está, no entanto, na identificação com a persona; o professor com seu
manual, o tenor com sua voz...” (JUNG, 2019, p. 407/408).

2.2 Sombra
Presente na psique humana, é a “soma de todos os elementos psíquicos
pessoais e coletivos que, incompatíveis com a forma de vida conscientemente
escolhida, não foram vividos”, agrupando-se numa personalidade inconsciente
parcialmente autônoma e contraposta à consciência. (JUNG, 2019, p. 410). Surge
com figura arquetípica na representação dos primitivos, estando fortemente presente
no ser humano civilizado, justamente pela tendência deste de repudiar da
consciência aquilo que seja bárbaro.
A identificação do indivíduo com o arquétipo da sombra pode torná-lo nocivo
para a sociedade, personificando figuras mitológicas representantes do mal em toda
sua pureza. “Os nazistas, os homens-bomba, os torturadores de todos os exércitos e
órgãos de repressão social, os que praticam a crueldade de forma sádica e
9

consciente, estão identificados totalmente com o lado negativo desse arquétipo”


(ARGOLLO, 2010, p. 128). Não é preciso, entretanto, uma identificação total para
que ela se manifeste. É comum a manifestação desse arquétipo no influxo do
cotidiano, nos abusos da autoridade em todas as esferas da vida, pela tendência
tirânica que habita no interior de todos.
Por representar tudo aquilo que é rejeitado pelo ego, Jung (1981) afirma que
a integração da sombra à consciência pela análise uma atividade sofrida, “(...) tanto
mais penosa (como é geralmente o caso) quanto mais se negligenciou, antes, o lado
oposto” (JUNG, 1981, p130, §225). Todavia, levar em consideração que, por ser
arquetípica, está presente na espécie humana, é um fator importante para a
aceitação e integração da sombra.

2.3 Anima e Animus


Em suas memórias, Jung (2019) refere-se a um momento em que, anotando suas
fantasias para fins de estudo, questiona-se se o que faz é arte ou ciência. Uma voz mental
feminina lhe respondeu: “O que fazes é arte”. Jung sentiu-se “extremamente interessado
pelo fato de que uma mulher, que provinha de meu seu íntimo, se imiscuísse em meus
pensamentos (JUNG, 2019, p. 193). Num grande esforço para compreender quem era essa
mulher, Jung concluiu ser sua própria alma, num sentido muito mais primitivo da expressão:
“Compreendi mais tarde que esta figuração feminina em mim correspondia a uma
personificação típica ou arquetípica no inconsciente do homem, designei-a pelo termo
anima. À figura correspondente no inconsciente da mulher, chamei aninus” (JUNG, 2019, p.
194).
Se a persona é a “face externa” da psique, a anima/animus é sua face interna
(JUNG. 1981). Todo homem possui em seu interior a imagem feminina, assim como toda
mulher carrega em seu íntimo uma psique masculina, tão naturalmente quanto o corpo
masculino secreta progesterona e o corpo feminino secreta testosterona. Se no biológico
cada pessoa carrega aspectos do sexo oposto, não há mistério de que o mesmo ocorra no
psiquismo (HALL; NORDBY, 1985, p. 36).
Animus, em latim, corresponde a intelecto, logos. Já anima, alma ou sopro. Mas Jung
não toma os termos pelo aspecto filosófico, e sim psicológico. Como arquétipos, são
inobserváveis diretamente, mas deduzidos pelos efeitos gravitacionais que irradiam no
psiquismo. Assim como a persona é uma ponte para o mundo, a anima e o animus são a
ponte para o mundo interior (STEIN, 2001).
Na mulher, o arquétipo do animus se atualiza nas figuras masculinas que
influenciaram sua vida, especialmente a paterna, que norteará sua visão inconsciente de
10

mundo. Da mesma forma a contraparte inconsciente no homem, a anima, se ancora nas


experiências com o feminino ao longo da vida, com destaque para a figura materna. Nos
relacionamentos, a busca do outro é a projeção inconsciente de harmonia desses aspectos.
“Logos e Eros se buscam para estabelecerem, numa analogia com o princípio dos vasos
comunicantes, um equilíbrio emocional onde a frieza do Logos se aquece no fogo do Eros,
enquanto o esfogueado Eros ameniza seu calor solar sob o impacto refrigerante do Logos”
(ARGOLLO, 2010, p. 126).

2.4 Self
Si Mesmo, ou Self, é a denominação de Jung para o arquétipo da totalidade.
Abrangendo a psique consciente e inconsciente, é, funcionalmente, o centro do aparelho
psíquico, constituindo a personalidade mais ampla (JUNG, 2019). Apresenta-se
simbolicamente na cultura e nos sonhos como uma personalidade superior (um rei, um
salvador, um sábio, o sol, uma deidade etc.). A ânima e o ânimus são imagens virtuais
respectivamente do feminino e do masculino presentes no inconsciente. São “categorias
apriorísticas” de natureza coletiva, coletânea de “(...) imagens de pais, homem, mulher,
filhos em geral (...)”, porém “(...) isentas de conteúdos” (JUNG, 2004, p. 180).
Jung chegou à concepção do Self nos anos de confronto com seu inconsciente, após
a ruptura com Freud. Pintando suas mandalas, compreendeu pouco a pouco que vivia um
processo de reorganização mental (individuação) que o direcionava a um centro ordenador
de seu psiquismo:

De 1918 a perto de 1920, tornou-se claro para mim que a meta do


desenvolvimento psíquico é o Si-mesmo. A aproximação em direção a este
último não é linear, isto é, "cincum-ambulatória". Uma evolução unívoca
existe quando muito no princípio; depois, tudo não é mais que referência ao
centro. Compreender isso deu-me firmeza e progressivamente,
restabeleceu-se a paz interior. Atingira, com a mandala - expressão do "si-
mesmo" — a descoberta última a que poderia chegar. Alguém poderá ir
além, eu não (JUNG, 2019, p. 200).

Robertson (1999) alerta para o cuidado de não se tomar o Self pelo aspecto
moral. As constantes comparações com símbolos transcendentes, como deidades,
anjo da guarda ou entidade superior, carregam uma falsa impressão de moralidade.
Como arquétipo, possui um caráter inumano, expresso por Jung na sua análise da
história de Jó.
A ideia de uma singularidade ordenadora e originária povoa todo o
conhecimento humano sobre a natureza. Da expansão de uma totalidade primordial,
amorfa, indiferenciada, surgiu o universo com suas complexidades e diferenciações.
11

“As mitologias de todos os tempos guardaram a intuição do processo, quando


fizeram tudo surgir do caos inicial, onde todas as coisas estavam em potencialidade”
(ARGOLLO, 2010, p. 124). Um processo de individuação indica uma situação de
perfeita cooperação entre o ego e o Self, uma singularidade psíquica promovedora
de um estado interno de equilíbrio.

2.5 Os inúmeros arquétipos

Arquétipos com somo sombra, anima e animus, segundo Jung (2008),


apresentam-se na experiência direta de modo personificado. Entretanto, o arquétipo
é um dado anímico imediato de um conteúdo inconsciente. Sendo o inconsciente um
amálgama de impressões de experiências milenares, incontáveis são os “moldes”
psíquicos para as vivências atuais.
Daí ser comum o estudo dos arquétipos pelas suas expressões mitológicas,
presentes em todas as culturas. O Herói, a Criança, a Mãe, o Pai, o Ancião, o
Trapaceiro e o Sábio são algumas das figuras recorrentes nos mitos, formações
culturais de comportamentos arquetípicos. Para a finalidade deste trabalho, elegeu-
se o arquétipo materno para maior aprofundamento.

3 O ARQUÉTIPO MATERNO

O arquétipo materno possui profundas raízes no psiquismo humano, fato


natural dada à condição a priori e essencial de uma espécie mamífera: é preciso
nascer de uma mulher para ser um humano. Retomando-se a discussão inicial sobre
uma das possíveis origens dos arquétipos, reiteradas experiências humanas ao
longo da história sedimentam no substrato psíquico a temática arquetípica. E não
existe experiência mais repetida pela humanidade que a maternidade, o que explica
a grande diversidade de expressões do arquétipo:

Como todo arquétipo, o materno também possui uma variedade incalculável


de aspectos. Menciono apenas algumas das formas mais características: a
própria mãe e a avó; a madrasta e a sogra; uma mulher qualquer com a
qual nos relacionamos, bem como a ama-de-leite ou ama-seca, a
antepassada e a mulher branca; no sentido da transferência mais elevada, a
deusa, especialmente a mãe de Deus, a Virgem (enquanto mãe
rejuvenescida, por exemplo Demeter e Core), Sofia (enquanto mãe que é
também a amada, eventualmente também o tipo Cibele-Átis, ou enquanto
12

filha-amada (mãe rejuvenescida); a meta da nostalgia da salvação (Paraíso,


Reino de Deus, Jerusalém Celeste); em sentido mais amplo, a Igreja, a
Universidade, a cidade ou país, o Céu, a Terra, a floresta, o mar e as águas
quietas: a matéria, o mundo subterrâneo e a Lua; em sentido mais restrito,
como o lugar do nascimento ou da concepção, a terra arada, o jardim, o
rochedo, a gruta, a árvore, a fonte, o poço profundo, a pia batismal, a flor
como recipiente (rosa e lótus); como círculo mágico (a mandala como
padma) ou como cornucópia; em sentido mais restrito ainda, o útero,
qualquer forma oca (por exemplo, a porca do parafuso); a yoni; o forno, o
caldeirão; enquanto animal, a vaca, o coelho e qualquer animal útil em
geral. (JUNG, 2008, p. 91, §156)

Mais que uma vivência repetida, a ligação entre filho e mãe é literalmente
visceral. A dependência do materno é absoluta na gestação, expandindo-se num
hiperativo de sobrevivência pelos anos que se seguem ao parto. Todavia,
diferentemente dos animais “a mãe humana não apenas procria, ela se realiza
psiquicamente pela procriação” (ARGOLLO, 2010, p. 83). Forma-se um elo psíquico,
de desejos e projeções, com impactos singulares no desenvolvimento da
personalidade da criança, sejam positivos ou não. Logo, indiscutível a força do
arquétipo materno na sociedade:
E agora perguntar-me-ão: O que dizer dos eventos mais corriqueiros, das
realidades mais imediatas e mais próximas de nós, como o marido, a
mulher, o pai, a mãe, os filhos? Os fatos mais comuns da vida quotidiana,
que se repetem eternamente, produzem os arquétipos mais poderosos, cuja
atividade incessante é imediatamente reconhecível em toda parte, mesmo
em nossa época racionalista. (JUNG, 2000, p. 93, §336)

Como uma totalidade que é, o arquétipo encerra em si atributos de polos


distintos. De um lado, apresenta aspectos favoráveis da maternidade: sabedoria,
espiritualidade, bondade, cuidado, nutrição, fertilidade, renascimento, proteção etc.
De outro, “(...) o secreto, o oculto, o obscuro, o abissal, o mundo dos mortos, o
devorador, sedutor e venenoso, o apavorante e fatal” (JUNG, 2008, p. 92, §158).
O arquétipo materno está no núcleo do complexo materno, um “grupo de
ideias carregadas de sentimento, associadas com a experiência e a imagem da
mãe” (SHARP, 1991, p. 38). Jung (2008) defende que o complexo materno está na
origem das perturbações infantis, ainda que não possa ser imputada ao
comportamento da mãe real, posto que “(...) é a esfera instintiva da criança que se
encontra perturbada, constelando assim arquétipos que se interpõem entre a criança
e a mãe como um elemento estranho, muitas vezes causando angústia” (JUNG
2008, p. 94, §161). Ou seja, o caráter mitológico oriundo do arquétipo é maior que a
influência da mãe real.
13

Certo é que a figura da mãe pessoal (biológica, adotiva, avó-mãe, tia-mãe,


etc) poderá parecer preponderar na imagem que cada um traz deste
arquétipo; aqueles que desconhecem a própria mãe, ou não tiveram
contanto algum com a mãe pessoal, também serão muito, ou até mais,
influenciados por este arquétipo, visto ser herdado, de importância psíquica
estruturante e inescapável ao que nasce (SOUZA JUNIOR, 2018, p. 320).

Stein (2001) lembra que a psique é repleta de diversos complexos, formados


no desenvolvimento da personalidade. São entidades psíquicas inconscientes cuja
força dependerá da quantidade de energia psíquica que contiver. Quando
constelados, podem apontar, no sujeito, seus problemas emocionais mais sérios,
sendo capazes de trazer perturbações à consciência. Mas o complexo não é
patológico em si. Sua ação perturbadora é inversamente proporcional à consciência
que indivíduo tem do seu complexo.
O complexo materno constelado produz efeitos diversos. No filho, segundo
Jung (2008), não será puro pela diferença sexual, com forte influência da anima.
Poderá resultar numa estética acentuada, bom gosto e equilíbrio na moda e no
designe numa facilidade para estabelecer vínculos com outras pessoas. Da mesma
forma, “(...) o homossexualismo, o donjuanismo e eventualmente também a
impotência” (JUNG, 2008, p. 95, §162). Todavia, os efeitos negativos do complexo
materno podem ser alterados se o homem conseguir estabelecer uma ligação
saudável com sua anima.
Na filha, Jung (2008) aponta quatro grupos principais de consequências,
variando segundo as peculiaridades próprias:
a) hipertrofia do aspecto maternal, no qual o Eros manifesta-se como forma
de poder, aniquilando inconsciente a própria personalidade, a do homem e
a dos filhos. Ser mãe torna-se o centro de suas ações, transformando todo
o resto em objeto do desejo materno;
b) exacerbação do Eros: a inibição ou extinção do instinto materno, tornando
o relacionamento com o seu objetivo. O ciúme inconsciente da mãe impõe
a necessidade de superá-la, manifestando-se num comportamento
obsessivo, controlador, com ciúmes exagerados;
c) identificação com a mãe: provoca a inibição do feminino, projetando seu
Eros e instinto maternal na própria mãe, pela qual dedica-se
devotadamente devoção, inconscientemente transformada em tirania pelo
sentimento de inferioridade que nutre.
14

d) defesa contra a mãe: o fascínio que a mãe lhe causa encontra uma
resistência obstinada, na busca pela diferenciação. Há uma tendência às
atividades intelectuais, pelo desenvolvimento de aspectos masculinos da
personalidade (logos).

O arquétipo materno não se limita aos aspectos individuais. Apresenta-se


também nas produções e comportamentos da coletividade. A Grande-Mãe é um
exemplo constante nas mais diversas culturas. Na mitologia grega, Gaia é a Mãe-
Terra original, elemento primordial, ligada à fertilidade e fecundidade, seguida na
mitologia por Perséfone, que renova o aspecto maternal. Já “na iconografia egípcia,
Ísis representa o trono. O faraó se senta no trono que é Isis como uma criança no
colo da mãe” (CAMPBELL, 1990, p. 188). No cristianismo, Isis é Maria, que gera ao
mundo filho divino e o recolhe em seus braços, na sua morte. Enquanto no
hinduísmo Cáli, a Mãe Natureza de quatro braços (Criação, Preservação, Destruição
e Salvação) simboliza o equilíbrio entre a vida e a morte.
A riqueza do arquétipo materno traduz de modo particular a dinâmica do
símbolo mitológico e seu poder integrador entre forças psíquicas e objetos opostos e
antagônicos. Contém em si, portanto um caráter também de transcendência, de
superação dos opostos pela ressignificação de seus conteúdos.

REFERÊNCIAS

ARGOLLO, D. M. Desenvolvimento pessoal: uma proposta de individuação.


Salvador: AMAR, 2010.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Entrevista de Joseph a Bill Moyers.


Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990

HALL, C. S.; NORDBY, V. J. Introdução à psicologia junguiana. Tradução de


Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Editora Cultrix, 1985.

HOPCKE, R. H. Guia para a Obra Completa de C. G. Jung. Tradução de Edgar


Orth e Reinaldo Orth. 3ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.

JACOBI, J. A Psicologia de C. G. Jung: uma introdução às obras completas.


Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2013.
15

JACOBI, J. Complexo, Arquétipo, Símbolo na Psicologia de C. G. Jung.


Tradução de Margit Martincic, 10ª ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1995.

JUNG, C. G. A dinâmica do inconsciente. Tradução de Mateus Ramalho Rocha. 2ª


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