David Chalmers e A Refutação Do Materialismo 2 PDF
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Preleções
tido como correto, Descartes levou a busca pela certeza racional ao limite. Seu
objetivo era atingir um ponto firme e seguro (ponto arquimediano), que
constituiria uma base sólida sobre a qual a ciência empírica poderia se erguer, à
semelhança das ciência exatas – matemática e geometria – cujos teoremas são
deduzidos a partir de axiomas.
Em sua busca por algo certo, imune a qualquer suspeita de dúvida,
Descartes exclui quase tudo o que conhece: seus sentidos e suas memórias, por
serem suscetíveis ao engano; o mundo externo, pois, na verdade, poderia ser
apenas quimera; todas as convicções que possui acerca das proposições da
matemática, até as mais banais, já que poderiam ser obra de um gênio maligno
que se diverte em enganá-lo constantemente. Entretanto, por mais que duvide de
tudo, Descartes não pode duvidar de que ele mesmo é um sujeito que duvida, que
pensa. Eis aí então o primeiro princípio da filosofia cartesiana, seu ponto
arquimediano, sua idéia clara e distinta.
Vale observar que o termo “pensamento”, para Descartes, também abarca
faculdades mentais, como o poder da imaginação e a percepção sensorial, além da
vontade e da compreensão. O ato de imaginar e de ter percepções pertence ao
pensamento, mas não seus objetos, que podem simplesmente não existir. Não
posso, por exemplo, duvidar de que estou tendo uma sensação de queda, ou de
que estou imaginando um ladrão atrás da porta. Posso não estar caindo e pode não
16
haver ladrão algum, mas não posso duvidar de que esteja experienciando,
respectivamente, uma sensação e uma imagem mental.
Da primeira certeza, Descartes deduz que esse eu que pensa não pode ser
algo corpóreo, pois só podemos estar certos do mental e não do físico e, portanto,
o sujeito poderia existir sem o corpo. O mental é uma substância inextensa,
adimensional, indivisível, ontologicamente distinta da substância física, corpórea,
extensa, cuja existência é garantida após Descartes ter provado a necessidade da
existência de Deus.
Ao apresentar dois mundos paralelos e independentes, da mente e da
matéria, a filosofia cartesiana permitiu o desenvolvimento da física, livre de
referências ao mental, tratando o mundo de maneira determinista. Na teoria de
Descartes do mundo material, diferentemente da física aristotélica e medieval,
quase não há mais traços de animismo. Não era mais preciso postular almas ou
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Esse apelo a Deus para resolver o problema mente-corpo era muito comum
na filosofia moderna. Na filosofia de G. W. Leibniz (1646-1716), por exemplo, a
interação entre mente e corpo seria garantida não pela intervenção constante de
Deus em cada evento (ocasionalismo), nem pela interação direta entre as duas
substâncias (Descartes), mas sim pelo fato de Deus ter criado o mundo de maneira
tão perfeita que, por sua própria natureza, corpo e mente se relacionam em total
harmonia.1
Outro filósofo moderno, Baruch Spinoza (1632-1677), assim como
Descartes, concebia mente (“coisa pensante”) e corpo (“coisa extensa”) como
sendo tipos diferentes, intimamente relacionados em sua atividade. No entanto,
para Spinoza, mente e corpo não constituem substâncias distintas, mas sim dois
atributos ou aspectos de uma realidade maior subjacente, à qual se referia sob a
denominação de “Natureza” ou “Deus”. A teoria do aspecto dual de Spinoza foi
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O abismo tradicional entre a pesquisa física e a psicológica (...) existe apenas para
o método estereotipado habitual de observação. Uma cor é um objeto físico desde
que consideremos sua dependência, por exemplo, em relação à sua fonte luminosa,
às outras cores, à temperatura, ao espaço, e assim por diante. Porém, quando
consideramos sua dependência em relação à retina (...) a cor se torna um objeto
psicológico, uma sensação. O que é diferente nos dois domínios não é o tema em
questão, mas sim a direção da investigação.2
1
Na verdade, Leibniz rejeita a premissa cartesiana de que corpos são substâncias. Portanto, o
problema da interação da mente com o corpo qua substância não se coloca. Leibniz não era um
dualista ontológico, mas sim adepto de um tipo de pampsiquismo, segundo o qual o mundo é
composto de infinitas “mônadas” (substâncias simples, independentes), cada qual gozando certo
grau de experiência.
2
MACH, E., Contributions to the analysis of sensations, apud VELMANS, M., op. cit., p. 24.
18
Nagel e o próprio David Chalmers, nas quais o Deus de Spinoza é substituído por
outra realidade última, a partir da qual emergem o físico e o mental. Salvo
algumas exceções, o monismo neutro e a teoria do aspecto dual são muito pouco
discutidos na filosofia da mente. Alguns objetam que esse tipo de teoria tenta
resolver um mistério introduzindo outro, ainda maior; outros consideram que
teorias neutras não se sustentam, pois recairiam sempre em alguma forma de
pampsiquismo ou idealismo.
O idealismo é também apontado como uma tendência do cogito cartesiano.
Com efeito, uma vez que o “eu penso” é estabelecido como única realidade da
qual temos certeza, o problema da consciência desaparece, ou melhor, inverte-se.
O mistério não está mais no surgimento da consciência a partir do mundo natural,
mas sim em explicar como o mundo que experimentamos como externo e material
poderia ser construído a partir de algo tão aparentemente evanescente como a pura
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elaborou um idealismo menos puro do que o dos idealistas alemães que lhe
sucederam, como G. Hegel (1770-1831) e A. Schopenhauer (1788-1869).3
Na passagem para o século XX, a filosofia sofreu a influência do
desenvolvimento do darwinismo e da psicologia científica. A teoria evolucionista
de Charles Darwin (1809-1882), ao sugerir o desenvolvimento das diferentes
espécies a partir de leis naturais, apenas pela força do acaso e da seleção natural
imposta pelo ambiente, suscitou questões relacionadas à emergência da vida e da
consciência a partir da matéria. A primeira, relacionada à vida, levou a muitas
controvérsias vitalistas. A segunda, a respeito da emergência da consciência a
partir de uma visão de mundo científica naturalista, levou à versão contemporânea
do problema da consciência: o problema central passou a ser integrar a
consciência ou a mente com o ponto de vista científico, evitando assim tanto a
metafísica idealista quanto o construtivismo fenomenalista. Até hoje, os filósofos
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3
Cf. SEAGER, W., “A brief history of the philosophical problem of consciousness”, p. 25-26.
20
4
WATSON, J.B., “Psychology as the behaviorist views it”, apud SCHULTZ, D. História da
psicologia moderna, p. 221.
5
RYLE, G., The concept of mind. p. 16.
22
é tido como um fenômeno físico, o behaviorismo pode ser visto como uma forma
de materialismo.
Assim como o dualismo, o behaviorismo foi alvo de muitas objeções. A
principal delas diz respeito à análise behaviorista do mental em termos de
disposições de comportamento. A tese é totalmente contra-intuitiva, pois não
concebemos que nossa sensação de dor seja simplesmente nossa disposição para
nos comportarmos de determinada maneira (urrando, por exemplo). Para
demonstrar que estados mentais são distintos de estados ou disposições
comportamentais, Hilary Putnam utiliza o argumento dos super-espartanos. Trata-
se de um experimento de pensamento – muito comum em filosofia da mente – em
que Putnam supõe a existência de seres altamente treinados (super-espartanos)
que, embora sintam dor, não expressam nenhuma disposição comportamental
associada.7
Outra dificuldade, comum ao materialismo, encontra-se na incapacidade do
behaviorismo em explicar nossa intuição de que nossos estados mentais (nossas
crenças e vontades, por exemplo) causam nosso comportamento, ao invés de se
identificarem com nosso comportamento. Com efeito, intuímos obviamente que,
6
CARNAP, R., “Psychology in physical language”, p. 39.
7
Cf. PUTNAM, H., “Brains and behavior”, p. 49.
23
por exemplo, minha crença de que Gabeira é o melhor candidato a prefeito do Rio
(causa) faz com que eu decida votar nele (ação, comportamento).8
Em meio a essas dificuldades, surgiu uma nova teoria materialista, a teoria
da identidade mente-cérebro ou fisicalismo, a qual postula que estados mentais
são idênticos a estados cerebrais. Essa identificação não se baseia, como no caso
do behaviorismo, numa análise dos conceitos. Trata-se de uma asserção empírica,
análoga ao fato de que a água é idêntica a H2O ou que o raio é uma descarga de
elétrons. A identidade entre estados mentais e estados cerebrais é classificada
como identidade “tipo-tipo” (type-type), isto é, cada tipo de estado mental é
idêntico a um tipo neurológico, descrito de modo materialista. Assim, “memória”
seria idêntica à atividade neurológica de estados neurônios gama, enquanto
“percepção” seria idêntica à atividade dos neurônios psi. A identidade “tipo-tipo”
difere da identidade “espécime-espécime” (token-token). O termo “tipos” refere-
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8
Todavia, a possibilidade de livre-arbítrio e de causação mental é muito controversa na filosofia.
Esse tema será mais discutido no capítulo 4.
9
A teoria da identidade de J.J.C. Smart é muito semelhante à de Place, enfatizando também a idéia
de que a identidade entre consciência e processos cerebrais é descoberta empiricamente pela
ciência.
24
10
PLACE, U. T., “Is consciousness a brain process?”, p. 59.
11
FEIGL, H., “The ‘mental’ and the ‘physical’”, p. 69
25
12
Vale notar que, pela definição, não há restrição lógica quanto à natureza dos estados que
desempenham os papéis causais. Pode-se dizer, portanto, que, embora a maioria dos funcionalistas
seja de materialistas, em tese, o funcionalismo é neutro entre dualismo e materialismo.
26
como dor, desejo etc., desde que desempenhem o papel que lhe cabe dentro da
teoria psicológica em questão.13
Outra versão ficou conhecida como “funcionalismo analítico”. Essa
denominação provém da tentativa de filósofos como David Armstrong e David
Lewis14 de analisar o significado de conceitos mentais e, tal como o behaviorismo
lógico, estabelecer uma linguagem neutra. Se para Putnam, a análise funcional é
uma hipótese científica, para Armstrong e Lewis a análise funcional é a priori,
isto é, diz respeito apenas aos significados dos termos mentais.
Armstrong propõe uma análise causal dos conceitos mentais e conclui que
“o conceito de estado mental envolve e é esgotado pelo conceito de um estado que
está apto a ser a causa de certos efeitos ou apto a ser o efeito de certas causas”.15
Um exemplo de conceito causal seria “veneno”, isto é, “algo que quando
introduzido num organismo, causa a doença e/ou a morte”16. Lewis leva mais
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13
LEVINE, J., “Functionalism”.
14
Outros, como Sydney Shoemaker e J.C.C. Smart, também defendem posições na linha do
funcionalismo analítico.
15
ARMSTRONG, D., “A causal theory of the mind”, p. 82.
16
Id.
27
17
Cf. CHALMERS, D.J., Philosophy of mind, p. 5.
18
BLOCK, N., “Troubles with functionalism”, p. 96.
28
2.2. A consciência
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19
CHALMERS, D.J., The conscious mind, p. 167.
20
Ibid. p. 4.
21
Id.
22
Id.
23
Id.
24
Id.
29
25
Id.
26
Id.
30
27
Ibid., p. 3.
28
Id.
29
Ibid, p.5.
30
Ibid, p.3.
31
Ibid., p. xviii.
32
Id.
33
Cf. Ibid, p. xvii et seq.
31
34
Cf. Ibid., p. 11.
32
fundamental do que sua qualidade fenomenal. Com isso, Chalmers quer mostrar
que, sem entrar em discussão sobre qual dos dois aspectos é o mais essencial para
o caso da dor, pode-se evidenciar a ambigüidade e riqueza de nossos conceitos
usuais, que exibem componentes fenomenais e psicológicos combinados.
Chalmers analisa alguns outros termos mentais ambíguos, como
“percepção” e “sensação”. O conceito de percepção, por exemplo, é mais usado
no sentido psicológico do que o conceito de sensação, cujo aspecto fenomenal é
mais proeminente. Com efeito, “a idéia de percepção inconsciente parece fazer
mais sentido do que a idéia de sensação inconsciente”.36 De forma geral, segundo
Chalmers, um bom teste para sabermos se uma noção mental M é mais
psicológica do que fenomenal é nos perguntarmos se algo pode ser uma instância
de M sem que lhe seja associada uma qualidade fenomenal qualquer; caso
contrário, M é fenomenal, ou pelo menos, uma combinação equilibrada de
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35
Está claro que o termo “psicológico”, tal como empregado por Chalmers, tem uso muito mais
restrito do que o conceito popular de “estado psicológico”, o qual se refere também a conceitos
fenomenais, além de conceitos funcionais.
36
Ibid., p. 18.
37
Cf. Id.
38
SEARLE, J., Mente, cérebro e ciência, p. 74.
33
espaço para um terceiro componente. Tudo o que precisa ser explicado acerca dos
estados intencionais pertence a duas classes de fenômenos: aqueles aos quais
temos acesso de terceira pessoa e aqueles aos quais temos acesso de primeira
pessoa. À primeira classe (psicológica), pertencem o comportamento e as relações
com o ambiente; e à segunda, as experiências associadas às crenças. Não há uma
terceira classe, pois não podemos sequer conceber alguém igual a Sócrates, por
exemplo, em todos os aspectos psicológicos e fenomenológicos, mas que pensa,
crê, teme ou acredita de forma diferente de Sócrates. Para Chalmers, portanto,
estados intencionais não são mais primitivos ou fundamentais que os conceitos
psicológicos e fenomenais, já que não podem variar independentemente destes.40
As experiências conscientes, apesar de fundamentais, não ocorrem no
vácuo, pelo menos no caso da mente humana: “toda vez que uma propriedade
fenomenal é instanciada, uma propriedade psicológica correspondente é
instanciada”.41 Essa co-ocorrência do fenomenal e do psicológico é, segundo
Chalmers, um fato empírico de nosso mundo. Experiência sem a contraparte
psicológica seria concebível apenas no sentido lógico. Uma conseqüência
interessante dessa co-ocorrência é o fato de que a linguagem que empregamos
para descrever qualidades fenomenais é derivada de nossa linguagem não
39
Cf. CHALMERS, D. J., op. cit., p. 19-20.
40
Cf. Ibid., p. 21.
41
Ibid, p. 22.
34
42
Ibid., p. 22-23.
43
Cf. Idid., p. 24.
35
44
BLOCK, N., “Concepts of consciousness”, p. 206.
45
ROSENTHAL, D., “Explaining consciousness”.
36