Terra Sonâmbula Mia Couto
Terra Sonâmbula Mia Couto
Terra Sonâmbula Mia Couto
Olá, vestibulando
Como está a rotina de estudo para os vestibulares? Sabemos que
nesta etapa do ano o cansaço é grande e os vestibulares são
muitos. Portanto, mesmo em férias escolares, após alguns dias de
descanso, vale a pena reforçar alguns conteúdos pendentes. Nossa
sugestão para este período é colocar as leituras em dia, afinal é
na segunda fase dos vestibulares que as obras literárias
costumam ser cobradas com mais detalhes e, além disso,
muitas vezes de forma interdisciplinar. Hoje, vamos começar uma
série de comentários a respeito de títulos exigidos em listas de
vestibular, e o primeiro deles é o belíssimo Terra Sonâmbula,
de Mia Couto, que consta na lista da Unicamp 2018.
Esta é uma obra de 1992, escrita pelo autor
moçambicano, e foi considerada uma dos doze melhores
narrativas africanas do século XX. Seu enredo tem como pano de
fundo a Guerra Civil de Moçambique, situação que marca
fortemente todos os personagens do romance. Por se tratar de um
ambiente castigado pela guerra, a terra sonâmbula não dorme, não
pode descansar, precisa ficar vigilante, a fim de se buscar consolo e
sobrevivência. Esta busca, por sua vez, encontra no sonho, na
fantasia, nas crenças populares e nos laços de amizade que se
formam ao longo da narrativa a força necessária para que os
personagens dessa história (man)tenham a esperança de que dias
melhores virão.
E então, que tal começar bem seu fim de ano com esta leitura?
Capa | Editorial | Sumário | Aprese
RESUMO
Com a falência do projeto lusitano de expansão territorial ultramarina, decorrente das lutas de independência de nações africana
regime fascista português, em 1974, estabeleceu-se uma literatura de cunho testemunhal, documental e revelador das condições
nesses textos literários é a guerra e suas diversas implicações, como as mais variadas formas de violência sobre os indivíduos. A
Massacre (1975), de José Martins Garcia, e Terra Sonâmbula (1992), de Mia Couto, busca-se desvelar a maneira como ambos o
respectivamente, representam essa temática, evidenciando-se os distanciamentos, mas, sobretudo, as convergências entre os seu
partir, principalmente, de algumas das principais concepções dos teóricos da Escola de Frankfurt sobre as relações entre a histór
problematizando-se a dimensão social e crítica da arte literária.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura - autoritarismo - pós-colonial
INTRODUÇÃO
A preocupação e o interesse por questões relativas à arte literária engajada4 consistem no ponto inicial para a execução desta pes
literatura, autoritarismo e história. Para tanto vai-se analisar as relações entre o regime autoritário português e a sua representaçã
Garcia, e Terra Sonâmbula, de Mia Couto, romances em que se apresentam fatos históricos reveladores do autoritarismo decorr
Ao passar a vigorar como regime político em Portugal, por meio de um golpe de Estado, o fascismo, tendo Salazar como seu ma
mais subdesenvolvidos da Europa, alicerçado sobre a colonização africana. Dentro desse contexto, focaliza-se, aqui, por meio d
exploração, Guiné e Moçambique, respectivamente, as quais só chegaram à independência nos anos 70, mas cuja soberania é um
que as guerras deixaram. Busca-se, assim, caracterizar a representação do autoritarismo nos romances que são corpus desta pesq
e psicológica, à miséria, à morte, ao racismo e à percepção do mundo dos principais personagens das já referidas obras, articulan
explicitados.
Deve-se evidenciar que a seleção do corpus da presente proposta de análise levou em conta, principalmente, o fato de que essas
Couto, moçambicano, foram publicadas justamente após os anos subseqüentes à derrocada do regime salazarista em Portugal, em
ultramarina. Com um caráter testemunhal e crítico, tais romances abordam, em comum, um tema que, até então, era interditado
independência e suas implicações, representando as vivências traumáticas que foram impostas aos seus participantes. Torna-se r
autores, de diferentes nacionalidades, sobre o autoritarismo, bem como desvelar suas particularidades estéticas e culturais.
De cunho eminentemente bibliográfico, o procedimento analítico deste trabalho divide-se em quatro partes: na primeira, são feit
conceitos e relações que norteiam a investigação, assentadas nas principais concepções dos teóricos da Escola de Frankfurt sobr
conceito de autoritarismo. Subseqüentemente, duas partes intituladas "A história no romance Lugar de Massacre: elementos aut
africano", têm o propósito de desvelar as formas de autoritarismo representadas nas obras. Na última seção, o diálogo entre os ro
convergências com relação à temática central apontada. Por esse percurso, pretende-se ainda, e finalmente, afirmar a dimensão s
Conclusão
Seguindo-se algumas concepções da Escola de Frankfurt, bem como as atuais perspectivas dos estudos pós-coloniais, procurou-
inscritos em diferentes realidades culturais sobre o recente passado de duas nações africanas. De um lado, uma criação literária a
colonial, evidenciando as arbitrariedades vivenciadas no embate entre guienenses e portugueses, enfocando as conseqüências tra
ao regime salazarista. De outro, uma obra literária moçambicana enfocando essa mesma realidade de arbitrariedade e barbárie h
Dessa conjunção de pontos de vistas, constrói-se uma similar crítica e denúncia sobre o drama da colonização, e os seus alicerce
ameaças, a tentativa de resistência do dominado, a intransigência e, por fim, o poder de mover a guerra. À violência da coloniza
a guerra transforma-se na recorrente e triste resposta desse processo.
Distantes espacial e temporalmente, levando-se em conta os dezessete anos que separam a publicação dos romances Lugar de M
diálogo que se compõe de diferentes vozes formando um sentido de complementaridade na dimensão crítica que constroem sobr
Diálogo que, sobretudo, mantém-se atual na sua importância de não silenciar a memória de uma época que, de outro modo, pode
horror. De forma mais ampla, essas obras atestam o poder da literatura de, diante de inimigos como a injustiça, as desigualdades
inimigos, infelizmente, não têm cessado de vencer.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ARAGÃO, Augusto. et al. 43 anos de fascismo em Portugal. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ars Poética, 1992.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e Técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.). Teoria literária: abordagens históricas comtemporâneas. Maringá: Edue
CARVALHO, Joaquim Barradas de. 43 anos de fascismo em Portugal. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1969.
COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Trad. Sandra G. Vasconcelos. São Paulo: Becca, 1999.
DOUGLASS, F. Narrative of the life of Frederick Douglass, and American slave, written by himself. Harmondsworth: Pen
FREUD & LACAN. Dicionário de Psicanálise. Salvador: Ágalma, 1994.
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Walter Benjamin: os cacos da história. São Paulo: Brasiliense, 1982.
GARCIA, José Martins. Lugar de Massacre. Portugal: Printer Portuguesa, 1975.
PINHEIRO, Sérgio Paulo. Autoritarismo e transição. São Paulo: USP, 1991.
REIS, Carlos. O conhecimento da literatura: Introdução aos Estudos Literários. 2ª edição. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001
SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SAID, E. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SELIGMANN, Márcio José (Org). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. São Paulo: Unicamp, 2
SIMOES, Maria de Lourdes Netto. Literatura Portuguesa e Pós-Colonialismo. Santa Maria: Palloti, 2002.
1
Desenvolvimento do Projeto Final de Graduação.
2
Acadêmica do Curso de Letras - Português / Inglês do Centro Universitário Franciscano.
3
Professora Doutora do Centro Universitário Franciscano.
4
Esse termo associa uma função social à literatura, em que as obras são vistas como espaço de conscientização, a partir da ênfas
5
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ars Poética, 1992.
6
REIS, Carlos. Introdução aos estudos literários. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. p. 353.
7
Idem, ibidem.
8
SAID, E. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 34.
9
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 1985. p. 224.
10
GAGNEBIN, Jeanne - Marie. Walter Benjamin: os cacos da história. São Paulo: Brasiliense, 1982. p.65.
11
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 1985. p.224.
12
ADORNO, Theodor. Engajament. In: Notas de literatura. 1991. p. 53.
13
PAZ E TERRA - 43 Anos de Fascismo em Portugal. 1989. p.4.
14
BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs). Teoria literária: abordagens históricas contemporâneas. Maringá: Eduem,
15
BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.). Teoria literária: abordagens históricas contemporâneas. Maringá: Eduem,
16
CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Trad. Sandra G. Vasconcelos. São Paulo: Becca, 1999. p .125.
17
BENJAMIN, Walter. Teorias do Fascismo alemão. Sobre a coletânea Guerra e guerreiros, editada por Ernest Jünger. In: ____
18
SELIGMANN, Márcio José. Históruia, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. São Paulo: Unicamp. 2003.
19
BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.). Teoria literária: abordagens históricas contemporâneas. 2003. p. 218.
20
DOUGLASS, F. Narrative of the life of Frederick Douglass, an American slave, written by himself. Harmondsworth: Penguin
21
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória e libertação. In: _____. Walter Benjamin: os cacos da história. 1982. p.67.
22
GARCIA, José Martins. Lugar de Massacre. Portugal: Printer Portuguesa. 1975. p. 9. Todas as demais citações foram retirada
páginas, sucedidos de abreviatura LM.
23
WALTER, Benjamin. Sobre o conceito da história. In: _____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense. 1985. p
24
BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.). Teoria literária: abordagens históricas contemporâneas. Maringá: Eduem
25
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Autoritarismo e transição. São Paulo: USP. 1991, p.50.
26
BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.) Teoria literária: abordagens históricas contemporâneas. Maringá: Eduem,
27
CARVALHO, Joaquim Barradas de. 43 anos de fascismo em Portugal. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1969. p. 79.
28
SIMÕES, Maria de Lourdes Netto. Resistência e diferença cultural: a ficção portuguesa contemporânea, como exemplo. In: L
e Cultura. Santa Maria, 1991. p. 26.
29
SELIGMANN, Silva Márcio (Org). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes . São Paulo: Unicamp,
30
SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. p. 225.
31
COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1995. p. 9. Todas as demais citações foram retiradas dessa e
seguidos de abreviatura TS.
32
SELIGMANN, Márcio Silva (Org.). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. São Paulo: Unicamp
33
PINHEIRO, Sérgio Paulo. Autoritarismo e transição. São Paulo: USP, 1991. p. 50.
34
BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs). Teoria literária: abordagens históricas contemporâneas. Maringá: Eduem,
35
ARAGÃO, Augusto. 43 anos de fascismo em Portugal. São Paulo: Paz e Terra, 1969. p. 93.
36
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Autoritarismo e transição. São Paulo: USP, 1991. p. 46.
37
ARAGÃO, Augusto. et al. 43 anos de fascismo em Portugal. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969. p. 215.
38
PINHEIRO, Sérgio Paulo. Autoritarismo e transição. São Paul: USP, 1991. p. 53.
39
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: _____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.p.
40
COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1955. p. 69.
41
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Walter Benjamin: os cacos da história. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 62.
42
GARCIA, José Martins. Lugar de Massacre. Portugal: Printer Portuguesa. P. 159.
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Terra Sonâmbula
Daniela Diana
Professora licenciada em Letras
"Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homens dormiam, a terra
se movia espaços e tempos afora. Quando despertavam, os habitantes olhavam o novo
rosto da paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados pela fantasia
do sonho. (Crença dos habitantes de Matimati)"
Estrutura da Obra
Terra Sonâmbula está dividida em 11 capítulos:
Dentre outras coisas, o garoto descreve sobre seu pai que era um pescador e
sofria de sonambulismo e alcoolismo.
Além disso, Kindzu menciona sobre os problemas da falta de recursos que sua
família sofria, a morte de seu pai, a relação carnal que tem com Farida e o
início da guerra.
Abandonado pela mãe, Kindzu vai relatando em seu diário momentos de sua
vida. Da mesma forma, ele fugiu da guerra civil no país.
Assim, vai se narrando a história dos dois, intercalada com a história do diário
do menino. Os corpos encontrados foram enterrados por eles e o ônibus serviu
de abrigo por um tempo a Muidinga e Tuahir.
Adiante, eles caíram numa armadilha e foram feitos prisioneiros por um velho
chamado Siqueleto. No entanto, logo eles foram libertados. Por fim, Siqueleto,
um dos sobreviventes de sua aldeia, se mata.
Tuahir revela a Muidinga que ele foi levado a um feiticeiro para que sua
memória fosse apagada e com isso evitar muitos sofrimentos. Tuahir tem a
ideia de construir um barco para seguirem a viagem pelo mar.
"Me apetece deitar, me anichar na terra morna. Deixo cair ali a mala onde trago os
cadernos. Uma voz interior me pede para que não pare. É a voz de meu pai que me dá
força. Venço o torpor e prossigo ao longo da estrada. Mais adiante segue um miúdo com
passo lento. Nas suas mãos estão papéis que me parecem familiares. Me aproximo e,
com sobressalto, confirmo: são os meus cadernos. Então, com o peito sufocado, chamo:
Gaspar! E o menino estremece como se nascesse por uma segunda vez. De sua mão
tombam os cadernos. Movidas por um vento que nascia não do ar mas do próprio chão,
as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por uma, se vão convertendo
em grãos de areia e, aos poucos, todos meus escritos se vão transformando em páginas
de terra."
Análise da Obra
Escrito em prosa poética, o foco central do escritor é fazer um panorama de
Moçambique após anos de guerra civil no país.
Essa guerra sangrenta, que durou cerca de 16 anos (1976 a 1992), deixou 1
milhão de mortos.
Trechos da Obra
Para conhecer melhor a linguagem utilizada pelo escritor, confira abaixo alguns
trechos da obra:
Capítulo 1
“Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se
arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de
tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão
sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar
asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se
acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte.”
Capítulo 2
“Por cima da página, Muidinga espreita o velho. Ele está de olhos fechados,
parece dormido. Fim ao cabo, tenho estado a ler apenas para minhas orelhas,
pensa Muidinga. Também há já três noites que vou lendo, é natural o cansaço
do velho, condescende Muidinga. Os cadernos de Kindzu se tinham tornado o
único acontecer naquele abrigo. Procurar lenha, cozinhar as reservas da mala,
carretar água: em tudo o rapaz se apressava.”
Capítulo 3
“Muidinga acorda com a primeira claridade. Durante a noite, seu sono se
estremunhara. Os escritos de Kindzu lhe começam a ocupar a fantasia. De
madrugada até lhe parecera ouvir os tais cabritos embriagados de Taímo. E
sorri, ao se lembrar. O velho ainda ressona. O miúdo se espreguiça ao sair do
machimbombo. O cacimbo é tão cheio que mal se enxerga. A corda do cabrito
permanece atada aos ramos da árvore. Muidinga puxa por ela para trazer o
bicho às vistas. Então, sente que a corda está solta. O cabrito fugira? Mas, se
assim tinha sido, qual a razão daquele vermelho tintando o laço?”
Capítulo 4
“Uma vez mais Tuhair decide explorar os matos vizinhos. A estrada não traz
ninguém. Enquanto a guerra não terminasse era mesmo melhor que nenhuma
pessoa estradeasse por ali. O velho sempre repetia:
- Alguma coisa, algum dia, há-de acontecer. Mas não aqui, emendava
baixinho.”
Capítulo 5
“Muidinga pousou os cadernos, pensageiro. A morte do velho Siqueleto o
seguia, em estado de dúvida. Não era o puro falecimento do homem que lhe
pesava. Não nos vamos habituando mesmo ao nosso próprio desfecho? A
gente vai chegando à morte como um rio desencorpa no mar: uma parte está
nascendo e, simultânea, a outra já se assombra no sem-fim. Contudo, no
falecimento de Siqueleto havia um espinho excrescente. Com ele todas as
aldeias morriam. Os antepassados ficavam órfãos da terra, os vivos deixavam
de ter lugar para eternizar as tradições. Não era apenas um homem mas todo
um mundo que desaparecia.”
Capítulo 6
“À volta do machimbombo Muidinga quase já não reconhece nada. A paisagem
prossegue suas infatigáveis mudanças. Será que a terra, ela sozinha,
deambula em errâncias? De uma coisa Muidinga está certo: não é o arruinado
autocarro que se desloca. Outra certeza ele tem: nem sempre a estrada se
movimenta. Apenas de cada vez que ele lê os cadernos de Kindzu. No dia
seguinte à leitura, seus olhos desembocam em outras visões.”
Capítulo 7
“A chuva timbilava (Timbilar: tocar marimba, de mbila (singular), tjmbila (plural))
no tecto do machimbombo. Os dedos molhados do céu se entretinham naquele
tintintilar. Tuahir está embrulhado numa capulana. Olha o miúdo que está
deitado, de olhos abertos, em sincero sonho.
- Charra, faz frio. Agora, nem se pode fazer uma fogueira, a lenha toda está
molhada. Você me anda a ouvir, miúdo?
Muidinga continuava absorto. Segundo a tradição, ele se devia alegrar: a chuva
era um bom prenúncio, sinal de bons tempos batendo à porta do destino.
- Te falta é uma mulher, disse o velho. Estiveste a ler sobre essa mulher, a tal
Farida. Devia ser bonita, a gaja.”
Capítulo 8
“- Lhe vou confessar miúdo. Eu sei que é verdade: não somos nós que
estamos a andar. É a estrada.
- Isso eu disse desde há muito tempo.
- Você disse, não. Eu é que digo.
E Tuahir revela: de todas as vezes que ele lhe guiara pelos caminhos era só
fingimento. Porque nenhuma das vezes que saíram pelos matos eles se tinham
afastado por reais distâncias.
- Sempre estávamos aqui pertinho, a reduzidos metros.”
Capítulo 9
“Olhando as alturas, Muidinga repara nas várias raças das nuvens. Brancas,
mulatas, negras. E a variedade dos sexos também nelas se encontrava. A
nuvem feminina, suave: a nua-vem, nua-vai. A nuvem-macho, arrulhando com
peito de pombo, em feliz ilusão de imortalidade.
E sorri: como se pode jogar com as mais longínquas coisas, trazer as nuvens
para perto como pássaros que vêm comer em nossa mão. Se recorda da
tristeza que o manchara na noite anterior.”
Capítulo 10
“O jovem nem sabe explicar. Mas era como se o mar, com seus infinitos, lhe
desse um alívio de sair daquele mundo. Sem querer ele pensava em Farida,
esperando naquele barco. E parecia entender a mulher: ao menos, no navio,
ainda havia espera. Por isso, ele enfrenta aquela marcha pelo pântano.
Chapinham numa imensidão: lodos, lamas e argilas fedorosas.”
Capítulo 11
“As ondas vão subindo a duna e rodeiam a canoa. A voz do miúdo quase não
se escuta, abafada pelo requebrar das vagas. Tuahir está deitado, olhando a
água a chegar. Agora, já o barquinho balouça. Aos poucos se vai tornando leve
como mulher ao sabor de carícia e se solta do colo da terra, já livre, navegável.
Começa então a viagem de Tuahir para um mar cheio de infinitas fantasias.
Nas ondas estão escritas mil estórias, dessas de embalar as crianças do inteiro
mundo.”
Quem é Mia Couto?
Antônio Emílio Leite Couto, conhecido como Mia Couto, nasceu em 1955 na
cidade de Beira, Moçambique, África. "Terra Sonâmbula" (1992) foi seu
primeiro romance publicado.
Além de escritor, ele trabalhou também como jornalista e biólogo. Mia Couto
possui uma vasta obra literária que inclui romances, poesias, contos e crônicas.
Filme
O longa metragem “Terra Sonâmbula” foi lançado em 2007 e dirigido por
Teresa Prata. O filme é uma adaptação do romance de Mia Couto.
Ana Gomes
... é um país que está em estado de ficção. E é muito jovem. Moçambique está agora a
tentar encontrar um espaço de comunhão. Sou mais velho que meu próprio país(...)Há
processos que se sedimentarão como tempo. Tenho certeza de que iremos nos encontrar
e, como fazem as famílias, nos juntaremos para fazer um retrato e dizer: “isto é
Moçambique”. (PEREIRA-JÚNIOR, Luiz Costa. A voz de Moçambique [Entrevista
com Mia Couto). Língua Portuguesa. São Paulo, Ano III, nº 33, p. 12-16, julho de
2008.])
Há uma terra que não descansa, que nela revolvem estórias, espantos, sonhos e memórias. Terra que,
por sua história, não consegue dormir e “sonâmbula” busca , incessantemente, refazer-se lugar.
Assim é Moçambique que Mia Couto apresenta em Terra sonâmbula (2007) e que este trabalho
“revisita”.
Em Terra sonâmbula o espaço assume importância acentuada, tanto no que se refere ao
desenvolvimento da narrativa, quanto ao relacionamento dos personagens com este lugar e que
revelam os aspectos históricos, sociais, ideológicos e humanos.
A narrativa tem início apresentando a trajetória do velho Tuahir e o menino Muidinga caminhando
por um “estrada morta pela guerra”, onde “só as hienas se arrastavam” e os vivente se acostumaram
ao chão , em resignada aprendizagem da morte.” Velho e menino, passado e futuro, caminham em
busca de saber e de memória e do seu lugar de pertença, como também caminham por esta toda
Moçambique. Esse espaço geográfico destroçado é ao mesmo tempo, o resultado da guerra e a
representação da experiência emocional desse povo sem caminho e sem esperança.
Outro espaço fundamental deste romance de Mia Couto é o machimbombo ( autocarro, ônibus) que
se torna o abrigo do menino e do velho. O lugar está cheio de cadáveres, e novamente esbarram-se as
referências simbólicas daquele momento que representam que também estão mortas as relações
afetivas entre os dois e em toda a nação, onde as destruições da guerra trazem contradições tão
profundas quanto as que fazem os pais não quererem ter seus filhos vivos.
Lhe peço, tio Tuahir. É que estou farto de viver entre os mortos.
O velho se apressa a emendar: não sou seu tio! E ameaça: o moço que não abuse de
familiaridade. Mas aquele tratamento é só maneira da tradição, argumenta Muidinga.
Em você eu não gosto.
Não lhe chamo nunca mais.
E me diga: você quer encontrar seus pais porque?
Já expliquei tantas vezes.
Desconsigo de entender. Vou lhe contar uma coisa : seus pais não vão lhe quer é
ver nem vivo:
Porque?
Em tempos de guerra filhos são um peso que trapalha maningue.
(Couto,2007,p.11 e 12).
Neste ponto é possível observar o que aponta José Pires Laranjeiras(2001 ) como uma das marcas da
escrita de Mia Couto que é o de explorar as variadas temáticas e conflitos surgidos como
consequência da Guerra Civil, observando seus meandros simbólicos assim como os
desnorteamentos que atingiram e afligiram a população.
Naquele espaço de devastidão , enquanto enterram cadáveres eles encontram uma mala com comidas
e caderno. O velho prefere o alimento do corpo e o jovem opta pelos cadernos e passa a saciar com
elas as necessidades psicológicas.
A partir deste pontos duas estórias são narradas e entrelaçadas. A de Tuahir e Muidinga em onze
capítulos e a de Kindzu em onze cadernos. Abrem-se concomitantemente os espaços e paisagens de
tradição e renovação, de saber, de cultura e de memória por onde se aprende e se reconstrói a vida
desses personagens. Aqui começam também as transformações na paisagem que, muitas vezes, se
confundem com seus sonhos.
Em Terra sonâmbula nada é estático. A terra não para e vai se modificando pela ação do tempo e
também na medida que a estrada imaginária de Kindzu vai ganhando amplitude na imaginação do
menino e do velho de tal forma que a paisagem real talvez não existisse se não houvesse a paisagem
imaginada. Numa apresentação dicotômica e ao mesmo tempo dialética o paisagem simboliza a
preservação da memória, da história , da cultura, da identidade e do conhecimento humano como um
todo.
Bibliografia:
BELO, Juliana Morais. Terra Sonâmbula de Mia Couto: uma terra da paisagem e da memória.
Deller/UFMA. Revista Littera, v.1,n1, 2010.
OLIVEIRA, Ana Maria Abraão dos Santos. As impermanências da paisagem em Terra sonâmbula.
Sonho e resistência. Revista do núcleo de história portuguesa e africana,vol.2 n2, 2009.
PEREIRA-JÚNIOR, Luiz Costa. A voz de Moçambique [Entrevista com Mia Couto). Língua
Portuguesa. São Paulo, Ano III, nº 33, p. 12-16, julho de 20
quarta-feira, 22 de março de 2017
Observe-se que Tuahir não sabia ler nem escrever, enquanto que o
garoto sabia. Há uma referência muito explícita a cultura tradicional e a nova
imposição da cultura letrada. No entanto, em Terra Sonâmbula (1993) não há
uma sobreposição da segunda sobre a primeira, pois se bem observado se
verá que, apesar de o letramento estar ligado a Muidinga, este dá continuidade
a tradição da oralidade quando conta as estórias dos cadernos de Kindzu a
Tuahir. Esse contar é feito ritualisticamente à beira da fogueira, como nas
comunidades arcaicas.
Farida pede a Kindzu que encontre seu filho Gaspar, e ele parte
novamente para o continente em busca do filho de Farida. Começa então uma
outra viagem, agora de resgate. Interessante observar que em ambas as
viagens, tanto de Muidinga quanto de Kindzu, há uma vontade de construir
uma identidade. Muidinga para isso quer encontrar seus pais, Kindzu quer se
tornar um naparama, um guerreiro que poderia lutar por seu povo. Ambos
personagens acabam voltando a lugares já percorridos, no entanto, nunca os
veem com o mesmo olhar. Sempre há uma mudança, não no lugar e sim no
observador, no viajante. Segundo IANNI (1990, p.19) o viajante “tanto se perde
como se encontra, ao mesmo tempo que se reafirma e modifica. No curso da
viagem há sempre alguma transfiguração, de tal modo que aquele que parte
não é nunca o mesmo que regressa.
“Mais adiante segue um miúdo com passo lento. Nas suas mãos estão
papéis que me parecem familiares. Me aproximo e, com sobressalto, confirmo:
são os meus cadernos. Então, com o peito sufocado, chamo: Gaspar! E o
menino estremece como se nascesse por uma segunda vez. De sua mão
tombam os cadernos. Movidas por um vento que nascia não do ar, mas do
próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por
uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos meus
escritos se vão transformando em páginas de terra.” (COUTO, 1993, p. 245)
Temos todas as aná lises das obras indicadas pelos vestibulares, UFU, IMEPAC,
UNICAMP
Para fazer seu pedido envie uma mensagem no whatsapp: (34) 9 9149 2401
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Letras de Hoje
Print version ISSN 0101-3335On-line version ISSN 1984-7726
LITERATURA HIPERCONTEMPORÂNEA
Jorge Alves Santana1
1
Universidade Federal de Goiás – Goiânia – Goiás – Brasil
RESUMO:
“Naparama? Nunca eu tinha ouvido falar em gente dessa.” Com essa pergunta, o
narrador Kindzu, criado pelo escritor moçambicano Mia Couto, apresenta-nos um dos
eixos políticos e psicossociais do romance Terra sonâmbula (1992). Acompanharemos,
nesse estudo, Kindzu, perspectivado pelos simbolismos, pela razão prática e poética dos
Naparamas, dinamizando estratégias multiculturais através de suas ações e da escrita
de diários, para compreender seu lugar no complexo processo pós-colonial de
Moçambique. Através dos diários do filho de Taímo, em narrativa mise en abyme, o
velho Tuahir e o adolescente Muindiga terão elementos tradicionais e contemporâneos
para a coexistência nas espacialidades tensionadas de lugares e não lugares (AUGÉ,
2010 2012
; ), com o objetivo de sobreviver ao corolário da guerra civil e para compreender
possíveis mecanismos de reconstrução de sua nação.
ABSTRACT:
“Naparama? Never have I heard of such people.” With this question, the narrator
Kindzu, created by the Mozambican writer Mia Couto, introduces us to one of the
political and psychosocial center lines of the novel Sleepwalking Land (1992). We'll
follow, in this study, Kindzu, by the prospect of symbolism, practical reason and the
poetic of Naparamas, giving dynamism to multicultural strategies through his actions
and journal writing, to understand his place in the complex Post-Colonial process in
Mozambique. Through the journals of Taímo's son, in mise en abyme narrative, the old
Tuahir and the teenager Muindiga will have traditional and contemporary elements to
coexist in tense spatiality of places and non-places (AUGÉ, 2010; 2012), with the purpose of
surviving the corollary of the civil war and understanding possible mechanisms of the
nation's reconstruction.
Meu pai sofria de sonhos, saía pela noite de olhos transabertos. Como dormia fora,
nem dávamos conta. Minha mãe, manhã seguinte, é que nos convocava:
– Mas na estrada não é mais perigoso, Tuahir? Não é melhor esconder no mato?
– Não vale a pena queixar. Culpa é sua: não é você que quer procurar seus pais?
INTRODUÇÃO
O escritor moçambicano Mia Couto publica seu romance Terra sonâmbula no ano de
1992. Época singular que coincide com o relativo término de uma das mais
sangrentas guerras civis contemporâneas do Continente Africano.1 Tensionada
entre o projeto político afro-marxista e o neoliberal de Moçambique pós-
independência de Portugal, sendo que o primeiro assume o governo ao final da
independência oficial, a engenharia de tal romance é montada pelos destroços do
imperialismo luso-tropical. Fato que aponta para necessidades e possiblidades da
reconstrução nacional, tendo em vista a desejada democracia multipartidária.
Quando dos ataques cruzados entre as duas bélicas forças políticas que exigem o
domínio do governo nacional, essa família fomenta a estratégia de se tornar
invisível, para preservar sua ordem social e suas próprias vidas. No entanto, tal
postura estratégica não os impedirá de sofrer as consequências da fragmentação
sociocultural na qual o país está imerso. Kindzu, uma espécie de indivíduo que
funciona como arrimo para o núcleo parental, estará impedido de localizar-se na
rede intergeracional3 capaz de preservar e disseminar os elementos da cultural
regional para planos mais macroculturais. Através de seus diários, vemos que o
rapaz, em consequência do ambiente de guerra no qual está inserto/incerto, já não
confia tanto nos valores e nas crenças ensinados pelas pessoas idosas de sua
coexistência. Também já não acredita tanto na educação recebida pela instituição
cristã, através das relações mantidas com o pastor Afonso. Tanto os velhos
feiticeiros de sua etnia, quanto a religiosidade lusitana são colocados na berlinda,
quando a terra é envolvida pelos rigores da guerra civil por tantos anos.
Quem o recolhera fora o velho Tuahir, quando todos outros o haviam abandonado.
O menino estava já sem estado, os ranhos lhe saíam não do nariz mas de toda a
cabeça. O velho teve que lhe ensinar todos os inícios: andar, falar, pensar.
Muidinga se meninou outra vez. Esta segunda infância, porém, fora apressada pelos
ditados da sobrevivência. (COUTO, 2007, p. 2).
– Você não sabe nada, miúdo. O que já está queimado não volta a arder. Muidinga
não ganha convencimento. Olha a planície, tudo parece desmaiado. Naquele
território, tão despido de brilho, ter razão é algo que já não dá vontade. Por isso ele
não insiste. Roda à volta do machimbombo. O veículo se despistara, ficara meio
atravessado na rodovia. A dianteira estava amassada de encontro a um imenso
embondeiro. Muidinga se encosta ao tronco da árvore e pergunta:
– Mas na estrada não é mais perigoso, Tuahir? Não é melhor esconder no mato? –
Nada. Aqui podemos ver os passantes. Está-me compreender?
– Não vale a pena queixar. Culpa é sua. Não é você que quer procurar seus pais?
(COUTO, 2007, p. 2).
O miúdo se levanta e escolhe entre os papéis, receando rasgar uma folha escrita.
Acaba por arrancar a capa de um dos cadernos. Para fazer fogo usa esse papel.
Depois se senta ao lado da fogueira, ajeita os cadernos e começa a ler. Balbucia
letra a letra, percorrendo o lento desenho de cada uma. Sorri com a satisfação de
uma conquista. Vai-se habituando, ganhando despacho.
– Estou a ler.
– É verdade, já esquecia. Você era capaz ler. Então leia em voz alta que é para me
dormecer.
O miúdo lê em voz alta. Seus olhos se abrem mais que a voz que, lenta e
cuidadosa, vai decifrando as letras. Ler era coisa que ele apenas agora se
recordava saber. O velho Tuhair, ignorante das letras, não lhe despertara a
faculdade da leitura. A lua parece ter sido chamada pela voz de Muidinga. A noite
toda se vai enluarando. Pratinhada, a estrada escuta a estória que desponta dos
cadernos. Quero pôr os tempos… (COUTO, 2007, p.4-5).
Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as
lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me
roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos,
serei de novo uma sombra sem voz. Sou chamado de Kindzu. É o nome que se dá
às palmeiritas mindinhas, essas que se curvam junto às praias. Quem não lhes
conhece, arrependidas de terem crescido, saudosas do rente chão? Meu pai me
escolheu para esse nome, homenagem à sua única preferência: beber sura (Sura:
aguardente feita dos rebentos de palmeira), o vinho das palmeiras (COUTO, 2007, p. 6).
Dos vários ecos culturais que Kindzu ainda consegue perceber de sua cultura, um
dos que moverá sua diáspora psicossocial será o das estórias dos lendários
guerreiros Naparamas. Tais guerreiros, um tanto lendários e também de
referencialidade pragmática, seria capazes de trazer a paz a certos segmentos
moçambicanos, vítimas dos conflitos colonialistas e pós-colonialistas. Quem eram
tais guerreiros, o jovem perguntava a um de seus poucos amigos, o comerciante
indiano Surendra Valá:
– Esse é um Naparama.
– Veio pedir panos. Precisam deles para iniciar outros que se oferecem para ser
Naparamas (COUTO, 2007, p. 13).
A procura que Kindzu faz dos guerreiros Naparamas, supõe uma intricada
cartografias de lugares e de não lugares. A espacialidade de tais lugares é expressa
pela estrada que só aparentemente não levaria as pessoas a destino algum. De
início teríamos que:
A estrada que agora se abre a nossos olhos não se entrecruza com outra nenhuma.
Está mais deitada que os séculos, suportando sozinha toda a distância. Pelas
bermas apodrecem carros incendiados, restos de pilhagens. Na savana em volta,
apenas os embondeiros contemplam o mundo a desflorir. Um velho e um miúdo
vão seguindo pela estrada. Andam bambolentos como se caminhar fosse seu único
serviço desde que nasceram. Vão para lá de nenhuma parte, dando o vindo por não
ido, à espera do adiante. Fogem da guerra, dessa guerra que contaminara toda a
sua terra. Vão na ilusão de, mais além, haver um refúgio tranquilo (COUTO, 2007, p.2).
Para fugir da guerra que contamina a terra e a todos que dela são feitos e nela
estão imersos, há de se reconstituir as espacialidades da tradição. Nesse ponto,
lembramo-nos do velho Taímo, que aconselha ao filho que ele não deixe a casa de
sua família. Mas que lugar familiar é esse? Na casa de Kindzu, as possibilidades de
vivenciar os espaços dados estão em crise. O pai já não dorme mais dentro de
casa, por exemplo. Dorme do lado de fora da casa, pois não se sente confortável no
simulacro de um lar que reflete intimamente as consequências do estado de guerra
civil. Em certa altura dos acontecimentos, o irmão Junhito (nome dado ao menino
em homenagem à data da Independência de Moçambique: 25 de junho de 1975),
que em uma estratégia alegórica dessa narrativa, é disfarçado de galo e colocado
no galinheiro da casa, para safar-se de uma possível morte ocasionada pelas forças
nacionais de repressão policial. Sendo que tal morte fora sonhada pelo seu pai.
Soma-se a isso, o espaço inessencial representado pela canoa mortuária em que o
velho pai é depositado, ao fim da desestruturação intensa na qual o espaço familiar
é lançado.
Esse lugar familiar, transformado em não lugar pela guerra, é disposto em uma
estrutura maior que a viagem de formação de Kindzu proporciona. Acompanhamos
o rapaz chegar à comunidade de Matimati, na qual interagirá com variados
segmentos humanos que representam a heterogeneidade social de Moçambique. Aí,
também o vemos relacionar-se com a personagem Farida, outra singular
subjetividade diaspórica do romance, envolvida com a ambiência marítima em sua
relação com uma ilha e um farol, e na constante busca de seu filho desaparecido.
Sendo que esse último elemento dará certa tônica de suspense ao enredo, no
sentido de que a personagem Farida também estará diretamente envolvida na
narrativa de Tuahir e Muidinga.
– Por isso eu digo: não é o destino que conta mas o caminho. Que ele falava de
uma viagem cujo único destino era o desejo de partir novamente. Essa viagem,
porém, teria que seguir o respeito de seu conselho: eu deveria ir pelo mar,
caminhar no último lábio da terra, onde a água faz sede e a areia não guarda
nenhuma pegada. Eu que levasse o amuleto dos viajeiros e o guardasse em velha
casca do fruto ncuácu. E procurasse os confins onde os homens não amealham
nenhuma lembrança. Para me livrar de ser seguido por meu pai eu não podia
deixar sinais do meu percurso. Minha passagem se faria igual aos pássaros
atravessando os poentes (COUTO, 2007, p. 162).
As ondas vão subindo a duna e rodeiam a canoa. A voz do miúdo quase não se
escuta, abafada pelo requebrar das vagas. Tuahir está deitado, olhando a água a
chegar. Agora, já o barquinho balouça. Aos poucos se vai tornando leve como
mulher ao sabor de carícia e se solta do colo da terra, já livre, navegável. Começa
então a viagem de Tuahir para um mar cheio de infinitas fantasias. Nas ondas estão
escritas mil estórias, dessas de embalar as crianças do inteiro mundo. (COUTO, 2007,
p.115).
Na segunda:
O que queria mesmo era ir mar adentro, como Assma, empurrado num barquinho
sem destino. Ou fazer como minha mãe me ensinou: ser a mais delicada sombra. É
isso que desejo: me apagar, perder voz, desexistir. Ainda bem que escrevi, passo
por passo, esta minha viagem. Assim escritas estas lembranças ficam presas no
papel, bem longe de mim. Este é o último caderno. Depois, arrumo tudo na mala
que me deu Surendra. No final, Surendra é o único de quem eu aceito companhia.
O indiano mais sua nação sonhada: o oceano sem nenhum fim. (COUTO, 2007, p. 117).
Mesmo com as latências dos simbólicos lugares aquáticos, presentes nas últimas
esperanças dos personagens, eles só são assumidos quando a finitude física de fato
ocorre. Os corpos mortos são neles lançados, talvez confirmando crenças místicas
de que suas almas andarão a procura de metafísicos portos seguros. No entanto,
essa metafísica da consolação não é a tônica do romance. Nele, os lugares e não
lugares7 formam os palcos reais, nos quais tais personagens são instigadas a
assumir seus papéis de agentes sociais, montando seus enredos com certo
conhecimento, mesmo que ainda de modo irregular e provisório, de seus contextos
vivenciais.
A citação de Fanon nos é útil para destacamos o contexto no qual, ele nos aponta
que “A descolonização, sabemo-lo, é um processo histórico complexo e de longa
duração, isto é, não pode ser compreendida, não encontra a sua inteligibilidade”. O
processo político e cultural não é tão perceptível em si mesmo. A transparência do
processo de descolonização exige, pois, maior atenção e perspectivações múltiplas
e heterogêneas dos colonizados. Tais sujeitos são colocados na posição de agentes
sociais que resgatam, desconstroem e reconstroem as estruturas e funcionalidades
de seu socius em sistemática. E nessa ação necessária “espectadores
sobrecarregados de inessencialidade devem ser transformados atores privilegiados,
colhidos de modo quase grandioso pela roda viva da história”.
Evasão da espacialidade infernal. Pulsão básica da vida diante outra pulsão básica
que nos dirige para a morte, como promessa de equilibração psicossocial. Para
preservar o frágil equilíbrio individual e coletivo é que os pais de Kindzu o exortam
a continuar no território da casa familiar, mesmo que essa casa já se trate de um
lugar inclementemente hibridizado pelas potências dos não lugares antropológicos.
A distopia inclemente, dessa forma, avançaria pelos campos dos projetos feitos
pela razão prática da reconstrução do homem moçambicano e de seus lugares
antropológicos, construídos por seus desejos e interesses próprios.
No final, porém, restará uma manhã como esta, cheia de luz nova e se escutar uma
voz longínqua como se fosse uma memória de antes de sermos gente. E surgirão
os doces acordes de uma canção, o terno embalo da primeira mãe. Esse canto, sim,
ser nosso, a lembrança de uma raiz profunda que não juram capazes de nos
arrancar. Essa voz nos dar a força de um novo princípio e, ao escutá-la, os
cadáveres sossegarão nas covas e os sobreviventes abraçarão a vida com o
ingénuo entusiasmo dos namorados. Tudo isso se fará se formos capazes de nos
despirmos deste tempo que nos fez animais. Aceitemos morrer como gente que já
não somos. Deixai que morra o animal em que esta guerra nos converteu (COUTO, 2007,
p. 118-119).
Nesse ponto final de nossa análise, voltamos às reflexões de Frantz Fanon sobre a
condição do negro, em suas tentativas de desalienação diante contextos de crítica
repressão estruturada tanto por condições etnorraciais e políticas:
O preto não é. Não mais do que o branco. Todos os dois têm de se afastar das
vozes desumanas de seus ancestrais respectivos, a fim de que nasça uma autêntica
comunicação. Antes de se engajar na voz positiva, há a ser realizada uma tentativa
de desalienação em prol da liberdade. Um homem, no início de sua existência, é
sempre congestionado, envolvido pela contingência. A infelicidade do homem é ter
sido criança. É através de uma tentativa de retomada de si e de despojamento, é
pela tensão permanente de sua liberdade que os homens podem criar as condições
de existência ideais em um mundo humano. Superioridade? Inferioridade? Por que
simplesmente não tentar sensibilizar o outro, sentir o outro, revelar-me outro? Não
conquistei minha liberdade justamente para edificar o mundo do Ti? […] Minha
última prece: Ô meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona! (FANON,
2008
, p. 191).
CONCLUSÃO
Terra solâmbula, romance incluso em várias listas dos melhores livros africanos do
Século XX, traça-nos um panorama vigoroso e dialógico da sociedade
moçambicana, em seu período pós-colonial. Nele, acompanhamos os protagonistas,
Kindzu, Tuahir e Muindiga/Gaspar em dinâmica de composição subjetiva inclusiva e
espelhada. Esta dinâmica supõe estratégias de sobrevivência psicossocial no
período da guerra civil que dizimará grande parte da população local.
A educação deve inicialmente ensinar a todos a mudar o tempo para sair do eterno
presente fixado pelas imagens em círculo, e fazer mudar o espaço, isto é, a mudar
no espaço, a sempre ir ver mais de perto e a não se nutrir exclusivamente de
imagens e mensagens. É preciso aprender a sair de si, a sair de seu entorno, a
compreender que é a exigência do universal que relativiza as culturas e não o
inverso. (AUGÉ, 2010, p. 109).
Ir mais perto dos variados fatos das realidades multidimensionais nas quais
estamos imersos. Deslocarmo-nos de nossos entornos para compreendermos os
movimentos multiculturais que nos conformam como agentes sociais capazes de
co-autoriarmos nossos destinos. Essas são das camadas semânticas também
responsáveis pela engenharia da diáspora psicossocial e das
reconstruções/imaginações de Kindzu, que afetam diretamente os demais
personagens da narrativa.
Me apetece deitar, me anichar na terra morna. Deixo cair ali a mala onde trago os
cadernos. Uma voz interior me pede para que não pare. É a voz de meu pai que me
dá força. Venço o torpor e prossigo ao longo da estrada. Mais adiante segue um
miúdo com passo lento. Nas suas mãos estão papéis que me parecem familiares.
Me aproximo e, com sobressalto, confirmo: são os meus cadernos. Então, com o
peito sufocado, chamo: Gaspar! E o menino estremece como se nascesse por uma
segunda vez. De sua mão tombam os cadernos. Movidas por um vento que nascia
não do ar mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as
letras, uma por uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos
meus escritos se vão transformando em páginas de terra. (COUTO, 2007, p. 119-120).
1
Do ponto de vista estatístico e também qualitativo sobre a independência e a
guerra civil de Moçambique, fomos influenciados pelos estudos de João Paulo
Borges Coelho (jun. 2016), da Universidade Eduardo Mondlane, das mais
reconhecidas do país. Para perspectivamos as questões através de estudos de
africanistas, acompanhamos, mesmo que de modo indireto, Alice Dinerman (2006).
Seguimos também a homepage oficial do governo moçambicano (jun. 2016), com a
finalidade de compreendermos como algumas questões aqui abordadas se
encontram atualmente.
2
As relações multiculturais e intergeracionais são uma constante na literatura de
Mia Couto. Exemplo disso é o conto Nas águas do Tempo, do livro Terra
Abensonhada (2009), no qual seguimos um avô educando seu neto sobre uma
figura lendária da tradição do lugar, que é o Namwetxo Moha: um ente que surgia à
noite, feito só de metades: um olho, uma perna, um braço. Essa alegoria particular
do Namwetxo apontaria para a necessária dinâmica de inclusão, mesmo que de
elementos diferentes e contraditórios, que produz seres e fenômenos. Para
acompanhar outros tantos levantamentos culturais feitos por Mia Couto, queira ver
a home-page oficial do autor (07 jun. 2016), que é prolífica e militante no propósito
de divulgar tais materiais moçambicanos e dos demais países africanos para a
aldeia global.
3
Por geração, seguimos os estudos do sociólogo húngaro Karl Mannheim (1982), que
compreende essa realidade tal qual um fundante dispositivo de formação social,
disposto no tempo e no espaço, envolvendo indivíduos de faixa etária diferenciada.
Tal dispositivo pode ser medido por aspectos de temporalidade quantitativa; ou
seja, pelo conjunto de pessoas que vive em certa medida temporal e que possuem
ainda a semelhança de compartilharem de situações socioculturais semelhantes.
Disso, surge uma espécie de enteléquia, o que seria o espírito da época, que
homogeneizaria o leque de ações e compreensão de ações que se pode ter em
comum. Os estudos de Karl Mannheim também recolocam o conceito de geração
nos moldes de um fato social inserido nas variáveis temporais, sociais, psicológicas,
culturais e outras. Dessa forma, o que seria a clássica unidade geracional é vista
sob variáveis formações discursivas que constrói um fenômeno ontologicamente
heterogêneo. Baseados nesses estudos é que discutimos aqui o dispositivo social da
geração e das relações intergeracionais.
4
O diários de Kindzu, escritos através da focalização homodiegética autotélica, dão
o tom da voz relativamente própria deste protagonista. Ou seja, um jovem negro
moçambicano dominando a escrita oficial e representando o mundo no qual se
insere, de acordo com sua formação psicossocial. Sobre tal estratégia
composicional, a de dar voz a uma personagem marginalizada, efetivada por Mia
Couto, lembramo-nos de Gayatri C. Spivak (2008; 2010) que nos alerta para a necessidade de
o intelectual/artista esforçar-se por permitir que o subalterno fale por conta de seu
próprio estrato sociocultural. Para ela, é comum defendermos uma causa política de
um povo vulnerabilizado, considerando-o como coletividade homogênea. Que
devemos nos preocupar, Spivak ainda insiste, em deixar o povo subjugado ter
condições de construir e consolidar sua própria capacidade de fala. Assim, a
codificação de identidades heterogêneas, mesmo que através de estratégias do uso
de certos essencialismos, seria uma necessidade para se tensionar os vários
interesses presentes em contextos pós-coloniais, no que diz respeito à autonomia e
independência dos agentes sociais envolvidos no processo.
5
No que diz respeito à invenção/reinvenção e imaginação da nação/ nacionalidade,
embasamo-nos em Benedict Anderson (1989; 2008). Este pensador desnaturaliza o que de fato
é a construção diacrônica do fenômeno nação/nacionalidade, em sua moldura
sociopolítica. Anderson nos ensina que: “Afirmei, fundamentalmente, que a
possibilidade mesma de se imaginar a nação só surgiu historicamente quando, e
onde, três conceitos culturais básicos, todos extremamente antigos, deixaram de
ter domínio axiomático sobre o pensamento dos homens. O primeiro deles era a
ideia de que uma determinada língua escrita oferecia acesso privilegiado à verdade
ontológica, precisamente por ser parcela inseparável daquela verdade. […] O
segundo era a crença de que a sociedade era organizada de maneira natural em
torno de e sob centros elevados — monarcas que eram pessoas distintas dos outros
seres humanos e que governavam por alguma forma de disposição cosmológica
(divina). […] Em terceiro lugar, a concepção de temporalidade, em que a
cosmologia e a história não se distinguiam, sendo essencialmente idênticas as
origens do mundo e dos homens.” (ANDERSON, 2008, p. 45).
6
Estes enraizamentos antropológicos dizem respeito ao conceito de lugar
antropológico, refletido por Marc Augé, quando o autor nos ensina que:
“Reservamos o termo ‘lugar antropológico’ àquela construção concreta e simbólica
do espaço que não poderia dar conta, somente por ela, das vicissitudes e
contradições da vida social, mas à qual se referem todos aqueles a quem ela
designa um lugar, por mais humilde e modesto que seja. […] Esses lugares têm
pelo menos três características comuns. Eles se pretendem (pretendem-nos)
identitários, relacionais e históricos. O projeto da casa, as regras de residência, os
guardiões da aldeia, os altares, as praças públicas, o recorte das terras
correspondem para cada um a um conjunto de possibilidades, prescrições e
proibições cujo conteúdo é, ao mesmo tempo, espacial e social. Nascer é nascer
num lugar, ser designado à residência.” (AUGÉ, 2012, p. 51-52).
7
Por serem importantes para o desenvolvimento de nosso estudo, convém
explicitarmos que os conceitos de lugar e de não lugar são desenvolvidos por Marc
Augé, como começamos a desenvolver anteriormente. O autor reflete sobre os dois
conceitos vinculados à ideia da sobremodernidade (surmodernité); ou seja, o que é
nossa época contemporânea, composta por excessos temporais, espaciais e
identitários. Assim, as espacialidades estariam dispostas em lugares e não lugares,
sendo que o espaços possíveis são produzidos pelas relações sociais históricas. Para
o autor, não lugar diz respeito a “um espaço empiricamente identificável (um
aeroporto, um hipermercado ou um monitor de televisão), mas como o espaço
criado pelo olhar que o toma como objeto, podemos admitir que o não lugar de uns
(por exemplo, os passageiros em trânsito num aeroporto) seja o lugar de outros
(por exemplo, os que trabalham nesse aeroporto).” (AUGÉ, 2012, p. 116). Enquanto que
para um lugar, teríamos que: “Se um lugar pode se definir como identitário,
relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário,
nem como relacional, nem como histórico definirá um não-lugar. A hipótese aqui
defendida é a de que a sobremodernidade é produtora de não-lugares, isto é, de
espaços que não são em si lugares antropológicos e que, contrariamente à
modernidade baudelairiana, não integram os lugares antigos: estes, repertoriados,
classificados e promovidos a ‘lugares de memória’, ocupam aí um lugar circunscrito
e específico. (AUGÉ, 2012, p. 73). Os dois tipos de espaços podem ser intercambiáveis
ou hibridizados, o que não lhes confere, pois, essencialidade ontológica excludente.
Aqui, enfatizamos o que seriam os não lugares cotidianos, a estrada e os campos
de refugiados, bem como as consequências que esses dois lugares produzem nas
trajetórias dos personagens, em condição diaspórica em seu próprio país. Tais não
lugares são evidenciados como lugares antropológicos temporários, nos quais se
produzem/imaginam narrativas pessoais e coletivas, alicerces para a nova nação,
com seus lugares construídos de modo coletivo.
8
“– Que morram as estradas, se apaguem os caminhos e desabem as pontes!”
Sobre tal passagem, vale aqui lembrar que essa fala nos remete quase a um slogan
de guerra de certa frente política moçambicana. Tal frente objetivava atacar as
estruturas sociais de produção do primeiro governo do período pós-independência.
A hipótese, aqui, é a de que Mia Couto tenta apresentar os dois projetos políticos
para Moçambique pós-independência – o socialista inicial e o neoliberal que tentam
manter diálogos ainda contemporaneamente. Tal representação tende a ser
dialética no sentido de que a paz no país seria atingida quando tais forças políticas
conseguissem produzir um governo inclusivo, expresso talvez por plataformas
políticas multipartidárias, como relativamente vem acontecendo no país.
REFERÊNCIAS
COUTO, Mia. Terra sonâmbula. São Paulo: Cia. das Letras, 2007. [ Links ]
Contato: jorgeufg@bol.com.br
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