Terra Sonâmbula Mia Couto

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Comentamos o livro Terra Sonâmbula, de Mia Couto

Olá, vestibulando
Como está a rotina de estudo para os vestibulares? Sabemos que
nesta etapa do ano o cansaço é grande e os vestibulares são
muitos. Portanto, mesmo em férias escolares, após alguns dias de
descanso, vale a pena reforçar alguns conteúdos pendentes. Nossa
sugestão para este período é colocar as leituras em dia, afinal é
na segunda fase dos vestibulares que as obras literárias
costumam ser cobradas com mais detalhes e, além disso,
muitas vezes de forma interdisciplinar. Hoje, vamos começar uma
série de comentários a respeito de títulos exigidos em listas de
vestibular, e o primeiro deles é o belíssimo Terra Sonâmbula,
de Mia Couto, que consta na lista da Unicamp 2018.
 
Esta é uma obra de 1992, escrita pelo autor
moçambicano, e foi considerada uma dos doze melhores
narrativas africanas do século XX. Seu enredo tem como pano de
fundo a Guerra Civil de Moçambique, situação que marca
fortemente todos os personagens do romance. Por se tratar de um
ambiente castigado pela guerra, a terra sonâmbula não dorme, não
pode descansar, precisa ficar vigilante, a fim de se buscar consolo e
sobrevivência. Esta busca, por sua vez, encontra no sonho, na
fantasia, nas crenças populares e nos laços de amizade que se
formam ao longo da narrativa a força necessária para que os
personagens dessa história (man)tenham a esperança de que dias
melhores virão.
 

O livro é construído em torno de duas histórias


principais, as quais, ao final, mostram-se ser ramificações de
uma mesma trama. De um lado, temos Muidinga e Tuahir, um
menino (o miúdo) e um senhor que se encontram em um campo
de refugiados e, juntos, tentam sobreviver aos horrores da guerra.
Ao se esconderem em um ônibus carbonizado, descobrem uma
maleta ao lado de um cadáver, dentro da qual havia vários diários
de um homem chamado Kindzu. Muidinga, então, começa a ler
esses diários em busca de conforto e, sem perceber, passa a
descobrir detalhes de sua própria vida. Dessa maneira inusitada é
que as histórias desses personagens se cruzam, assim como tocam
muitas outras histórias narradas pelos dois protagonistas e,
também, descritas nos diários de Kindzu. Página a página, o leitor
vai descobrindo novas informações sobre estas três vidas que, de
alguma maneira, estão fadadas a se encontrar.
 

Partindo dessa perspectiva, o leitor vai pouco a pouco


tomando contato com o passado desses personagens, bem como
com a cultura moçambicana, com os horrores da guerra e ainda
com a força do ser humano que, mesmo em meio a tragédias, ainda
sonha e luta por mudanças. Essas relações, essa simbologia e
mesmo a relação intertextual com a colonização africana são
tópicos importantes que podem aparecer na prova do
vestibular, portanto vale ficar atento durante a leitura. Outra
questão interessante é a concernente à linguagem, uma vez que o
texto é repleto de termos regionais que trazem para a narrativa
um pouco mais da cultura popular africana.
 

E então, que tal começar bem seu fim de ano com esta leitura?
 

Bom trabalho e até a próxima.


Profª Aline
 
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LUGAR DE MASSACRE, DE JOSÉ MARTINS GA


SONÂMBULA, DE MIA COUTO: OLHARES CO
SOBRE O AUTORITARISMO1
Evelise de Oliveira Bolzan2
Inara de Oliveira Rodrigues3

RESUMO
Com a falência do projeto lusitano de expansão territorial ultramarina, decorrente das lutas de independência de nações africana
regime fascista português, em 1974, estabeleceu-se uma literatura de cunho testemunhal, documental e revelador das condições
nesses textos literários é a guerra e suas diversas implicações, como as mais variadas formas de violência sobre os indivíduos. A
Massacre (1975), de José Martins Garcia, e Terra Sonâmbula (1992), de Mia Couto, busca-se desvelar a maneira como ambos o
respectivamente, representam essa temática, evidenciando-se os distanciamentos, mas, sobretudo, as convergências entre os seu
partir, principalmente, de algumas das principais concepções dos teóricos da Escola de Frankfurt sobre as relações entre a histór
problematizando-se a dimensão social e crítica da arte literária.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura - autoritarismo - pós-colonial

INTRODUÇÃO
A preocupação e o interesse por questões relativas à arte literária engajada4 consistem no ponto inicial para a execução desta pes
literatura, autoritarismo e história. Para tanto vai-se analisar as relações entre o regime autoritário português e a sua representaçã
Garcia, e Terra Sonâmbula, de Mia Couto, romances em que se apresentam fatos históricos reveladores do autoritarismo decorr
Ao passar a vigorar como regime político em Portugal, por meio de um golpe de Estado, o fascismo, tendo Salazar como seu ma
mais subdesenvolvidos da Europa, alicerçado sobre a colonização africana. Dentro desse contexto, focaliza-se, aqui, por meio d
exploração, Guiné e Moçambique, respectivamente, as quais só chegaram à independência nos anos 70, mas cuja soberania é um
que as guerras deixaram. Busca-se, assim, caracterizar a representação do autoritarismo nos romances que são corpus desta pesq
e psicológica, à miséria, à morte, ao racismo e à percepção do mundo dos principais personagens das já referidas obras, articulan
explicitados.
Deve-se evidenciar que a seleção do corpus da presente proposta de análise levou em conta, principalmente, o fato de que essas
Couto, moçambicano, foram publicadas justamente após os anos subseqüentes à derrocada do regime salazarista em Portugal, em
ultramarina. Com um caráter testemunhal e crítico, tais romances abordam, em comum, um tema que, até então, era interditado
independência e suas implicações, representando as vivências traumáticas que foram impostas aos seus participantes. Torna-se r
autores, de diferentes nacionalidades, sobre o autoritarismo, bem como desvelar suas particularidades estéticas e culturais.
De cunho eminentemente bibliográfico, o procedimento analítico deste trabalho divide-se em quatro partes: na primeira, são feit
conceitos e relações que norteiam a investigação, assentadas nas principais concepções dos teóricos da Escola de Frankfurt sobr
conceito de autoritarismo. Subseqüentemente, duas partes intituladas "A história no romance Lugar de Massacre: elementos aut
africano", têm o propósito de desvelar as formas de autoritarismo representadas nas obras. Na última seção, o diálogo entre os ro
convergências com relação à temática central apontada. Por esse percurso, pretende-se ainda, e finalmente, afirmar a dimensão s

I. Considerações sobre literatura, história e autori


Na Poética, Aristóteles coloca: a literatura não tem compromisso com a verdade, mas com o arranjo convincente de seus elemen
diferencia-se da História, caracterizada pelo comprometimento com a veracidade dos fatos. 5
Com a consagração do gênero romance, permanece, no entanto, essa perspectiva maior de pensar a literatura em relação ao cam
de cunho narrativo, que constitui um discurso que incide sobre a realidade vivida. Posto que a linguagem está no centro das prát
linguagem e da literatura. O romance, como caso particular do modo narrativo, segundo Reis, "permite algumas conexões com e
favorecida justamente pelas potencialidades modelizantes da narratividade. 6 Ainda, a narratividade pode ser concebida como fat
homem e da sua história,recuperando aspectos da vida cotidiana.
Estruturada em ações, a modelação discursiva, desenvolve uma intriga coesa, traduzindo uma espécie dialética entre sucessivida
resumo dessas ações.7 Além disso, as personagens apresentam uma série de elementos semânticos (temáticos, ideológicos) dom
solicita sua inserção em espaços que por elas são transformados e completam sua caracterização.
Revela-se, desse modo, fundamental a compreensão das coordenadas espaço - temporais que direcionam as vivências das person
da realidade pós-colonial, entendida como eixo de questionamentos vividos antes, durante e depois das independências da naçõe
se a dimensão crítica da arte literária, por esse poder de desconstruir, segundo Said, "a natureza do poder colonial", 8 e de reverte
sobre todos os outros, que deles não fazem parte, imagem essa que foi construída por historiadores durante séculos.
Ao questionar a historiografia dominante, segue-se uma concepção benjaminiana, em que a tarefa do historiador seria a de não d
sua conservação, de contribuir na reapropriação desse fragmento da história esquecida pelo discurso histórico oficial. 9 Quando s
entre história e literatura, logo é possível, por meio das cenas dos romances, Lugar de Massacre e Terra Sonâmbula, desnuda
Guiné e Moçambique, nações vitimadas pela política colonialista de Portugal, e não permitir que a história dos oprimidos caia n
Para tanto, é necessário orientar o uso dos termos correntes nesse trabalho: ficção identifica-se com fingimento, com simulação
comprometimento com a veracidade dos fatos, a partir de uma base documental. O presente estudo possibilita o cruzamento des
como ação repressora e coercitiva oriunda de um grupo de indivíduos sobre outros. Ao cruzar essas conceituações, nos moldes d
de modo muitas vezes mais esclarecedor e convincente do que naquele que costuma ser evidenciado em relatos propriamente fa
De acordo com Gagnebin,10 a historiografia vigente descreve o vasto espetáculo da história universal, mas não a questiona; está,
da história dos vencedores as tentativas de uma outra história que fracassou. As causas desse fracasso não se constituem, via de
como manifestações dos mais fortes, sem que se indague a respeito das condições preestabelecidas de uma luta desigual.
Segundo Benjamin, é preciso arrancar a tradição do conformismo,11 construindo uma história que recupere o passado daqueles q
instrumentos das classes dominantes que justificam seus meios em nome de um falso progresso.
A partir de tais colocações pode-se afirmar que o primeiro romance sobre a guerra colonial, escrito em 1975, Lugar de Massacr
escrito em 1992, viabilizam o resgate da história, do passado das nações africanas Guiné e Moçambique, ao apresentarem forte t
autoritarismo imposto sobre essas nações oprimidas.
Ambos os escritores apresentam estilos ficcionais que se caracterizam pelo engajamento.12 Esse termo associa uma função socia
conscientização, a partir da ênfase em aspectos realistas. Nos textos em análise, trata-se de uma forma de denúncia do massacre
Paz e Terra,13
Portugal possuía o último dos grandes impérios coloniais. Mas para o manter achou-se envolvido em três guerras coloniais, a m
homens constitui a ossatura do gigantesco aparelho militar que tentou impedir, à custa de muito sangue, a independência das "pr
As obras denunciam a realidade repressora e cruel que se formou e que vai de encontro às intenções e ideais de uma sociedade j
José Martins Garcia e de Mia Couto destacam - se por ter a intenção de enfatizar os problemas sociais desencadeados pela guerr
Moçambique e os desmandos de um regime que desconsidera a liberdade e a vida alheia.
O colonialismo, expressão que aqui permeia as atitudes impostas pelo regime português, caracteriza o modo como ocorreu a exp
causada pela expansão européia, que nos séculos XV e XVI coincidiu como início do sistema capitalista de trocas econômicas, n
primas que sustentaria o poder central da metrópole.
A história do pós - colonialismo, de acordo com Bonnici,14 iniciou-se no século XX com um triste panorama composto por deze
milhões de negros, descendentes de escravos, discriminados em seus direitos fundamentais, pelo poder político e econômico nas
Ao mesmo tempo, contudo, isso não significou passividade, mas, sim, uma permanente, ainda que mais ou menos eficaz, luta de
De todo modo, a dominação cultural imposta pelos colonizadores, conseguiu, praticamente até meados do século XX, inviabiliz
produzidas seguiam padrões eurocêntricos. Até então,
Um conjunto de textos, consagrados como esteticamente excelentes, era escolhido pelo grupo social e politicamente dominante,
de outros textos que não coadunavam com o ponto de vista do grupo hegemônico".15
A teoria colonial, segundo Culler,16 constitui-se num conjunto relacionado de questões teóricas que surgem na tentativa de comp
conseqüências. Nesse legado, as experiências pós - coloniais, se misturam com as práticas discursivas do Ocidente.
Ressalta-se que o autoritarismo, aprofundando-se a definição já explicitada, caracteriza-se como o controle das práticas arbitrári
interações entre os cidadãos nas transições políticas e sobre os governos democráticos que delas emergiram, além de significar a
desiguais. A guerra, segundo Benjamin,17 caracteriza uma forma de autoritarismo, pois foge a qualquer economia regida pela int
desmedido, gigantesco, algo que lembra um processo vulcânico, uma erupção elementar, uma onda colossal de vida, dirigida po
os campos de batalha, que hoje já se tornam míticos, canalizada para tarefas que ultrapassam os limites do que hoje pode ser com
Paralelamente à guerra, quando se aborda termos que remetem ao autoritarismo, se faz necessário resgatar ainda aspectos que de
aqueles que foram submetidos a um ambiente de guerra. Pode-se dizer, que a experiência traumática não pode ser totalmente ass
logo, a memória só existe, de acordo com Seligmann,18 "ao lado do esquecimento: um alimenta e completa o outro, um é o fund
Assim sendo, por meio das obras em estudo pretende-se evidenciar as experiências históricas e traumáticas, mostrando-se como
recuperarem as línguas nativas e sua cultura, via literatura. O processo total de descolonização não se concentra unicamente em
poder imperial, mas procurar alternativas que reprimam o discurso imperialista, e, por esse ângulo, a descolonização literária é u
De acordo com o que foi colocado, pode-se dizer que o que se busca enfatizar é uma literatura pós - colonial, mesmo sabendo qu
o corpus dessa pesquisa, sofrerão por muito tempo ainda com as marcas da dominação e da exploração. Segundo Bonnici, "enga
independência política produz, por si, a descolonização da mente(...). Ao contrário do que muita gente pensa, a descolonização é
A relevância da escrita no processo de libertação e emancipação pode ser avaliado no sentimento expresso por um escravo afro-
Houve uma nova e especial revelação, explicando coisas até então obscuras e misteriosas, contra as quais o meu entendimento j
grande vitória, estimada por mim sobremaneira. A partir daquele momento, entendi o caminho para a liberdade". 20
Ao abordarem em suas obras aspectos violentos da vida em sociedade, os autores conseguem "fazer emergir as esperanças não r
apelo por um mundo diferente. 21 Tal apelo é o que temos no romance que será analisado a seguir.

II. Lugar de Massacre: autoritarismo e resistência


Lugar de Massacre evidencia as vivências dramáticas que a guerra impôs aos seus participantes; o choque de culturas, a miséria
abandono a que estavam relegados os combatentes na fase final da campanha de colonização, a barbárie como resultado da perd
e, por fim, o retorno dos soldados portugueses de uma guerra já sem sentido histórico e a difícil retomada das atividades cotidian
buscava se reordenar.
Algumas situações tornam-se recorrentes na narrativa: a ação bélica coloca em evidência o indivíduo masculino, jovem, obrigad
assegurado.
O romance inicia com a chegada de um dos personagens principais à Guiné-Bissau, o jovem Conde d'Avince, que assim é descr
por imposição da paz e da prosperidade(...) Fizera seu treino com afinco e muita atenção ao espírito traiçoeiro". 22 Conde d'Avinc
para a Salvação do Passado, e por sua mãe, Dona Violante. Sempre foi educado para não se misturar à plebe e não conviver com
todas as matérias e, com o alastramento da guerra, foi chamado à carreira das armas.
Num primeiro plano, Conde d'Avince, completamente avesso à "plebe", permanece sempre fechado, calando protestos, reconfor
mantinha seu padrão de acordo com os ensinamentos recebidos, que era o da mais irretocável educação e presteza. Perturbava-s
acordo com seus pensamentos,
Sexualizavam a indumentária, os objetos cortantes, perfurantes, redondos, rígidos ou flexíveis, bem como as plantas, os animais
intenções. E os hinos adulteravam-se em paródias indecorosas, enquanto tambores e clarins colaboravam, havendo para cada rit
debochada. ( LM, p. 12)
Ao mencionar os pensamentos de Conde d'Avince acerca do comportamento de seus companheiros, deve-se levar em conta que
deve-se considerar a descrença dos soldados portugueses no que tange a seriedade dos valores pelos quais estavam lutando.
Abordar a questão do racismo é imprescindível para a compreensão da crítica ao autoritarismo que permeia a obra, pois Conde d
ideário de que existem raças superiores a outras. O personagem caracteriza e julga os seres humanos por sua cor, analisa os com
raça loura com superioridade, como se esta fosse responsável pelo desenvolvimento da civilização, enquanto os outros, represen
Ao refletir-se sobre o posicionamento de Conde d'Avince, é possível perceber o quanto o regime fascista apregoou a idéia da su
era o de que as nações mais desenvolvidas deveriam mostrar sua superioridade atendendo ao apelo dos países menos favorecido
reencontrarem.
Uma cena em que se evidencia o racismo mencionado desenrola-se quando Conde d' Avince e seu companheiro, eleito por sua r
confeccionar calções para o jovem. Ao saber que o alfaiate era judeu, o Conde manifesta todo o seu ódio e desprezo:
Grande foi a cólera do Conde d'Avince ao saber da raça judaica do alfaiate. -Essa praga! - resumiu para o alcólito. Tinham mina
destruir a raça loura, o motor da História, pra dominarem o mundo em vez dos legítimos dominadores. Tão resistentes, tão diabó
dessa autêntica praga, pareciam renascer das cinzas. (LM, p. 21. 22)
Ao mencionar "raça loura, o motor da História", o personagem contraria um dos postulados de Walter Benjamin, 23 que diz que n
dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição do conformismo, e ter certeza de que os morto
segurança se o inimigo vencer. De acordo com Benjamin, esse inimigo não tem cessado de vencer.
Esse inimigo são todos aqueles que reforçam a desigualdade, que afirmam o preconceito, caso, além do já mencionado Conde d
com aqueles que representassem a raça ariana, e o louro soldado Guilherme foi vítima de suas constantes "investidas", era subor
"fossem porcos ou cristãos, resistia aos assaltos com heroísmo." (LM, p. 73)
Outro cidadão que foi incumbido de lutar em Guiné pelas tropas portuguesas foi Pierre Avince, caracterizado como um boçal, se
pertencia seu colega de lutas. Pierre Avince mostrava grande insatisfação em estar naquele ambiente, bebia e não manifestava n
designado. Perante o comandante Pássaro, que chefiava os Serviços da Conjugação, e suas colocações acerca da selva, parecia e
cerimônia de fidelidade ao chão, ao ar e à rede hidrográfica, a qual eram submetidos todos os soldados que chegavam nas colôn
prometiam tentar conquistar com bravura todos os bens naturais que pertencessem às terras dominadas.
Pierre Avince mostrava-se insatisfeito com o sistema colonialista, circunstância evidenciada na seguinte passagem,
- Um dos piores defeitos da nossa colonização é o anacronismo. Transpõem-se para os colonizadores valores caídos em desuso.
subdesenvolvidos a tralha que deixou de dar lucro. Quando derem a estes gajos uma fábrica de armamento, é porque já foi inven
Isto é o mundo que a Europa criou. A Europa e seu falso pudor. (LM, p. 42)
Em Portugal, as colônias constituem o alicerce de uma ideologia cuja prática explica, em parte, a estagnação econômica que por
orientação parasitária, que acabou por afetar todos os setores da sociedade portuguesa, freando um desenvolvimento autônomo.
regime imperialista imposto pela Europa, enquanto continente que exerce monopólio sobre países africanos, norteia para os pov
atrás da exploração material para o enriquecimento da metrópole. De acordo com Bonnici,24 "entre o colonizador e o colonizado
jamais admitir um equilíbrio no relacionamento econômico, social e cultural".
Em uma fala do personagem Pierre Avince presentifica-se a questão do preconceito racial, da triste imagem que o negro carrega
- Um dia todas as espingardas se hão de voltar para trás... E nós veremos as mulheres brancas condenadas por parirem gente bra
cadáver, como dizem os negros de Catió. Branco cheira a morto, dizem eles... (LM. p. 74)
A condição traumática da vivência negra confere a eles um apagamento de sua memória, mas não um apagamento de seu passad
elevaram muito acima do animal pelos seus esforços. Em Moçambique e em Guiné, um negro não podia andar pela calçada, ent
europeus. Mas o desenrolar dos fatos, principalmente na Guiné, veio provar que esse povo esteve disposto aos maiores sacrifício
acontecimentos, como peças fundamentais das transformações em curso.
Salazar, pela sua fidelidade intransigente ao colonialismo, se tornou indiretamente responsável pelo aparecimento na história de
liberdade, pois as instituições de violência, como a tortura, o racismo, as prisões, não são transformados pelas transições, mesmo
segundo Pinheiro,25 como antes das transições e depois delas, continuam a ter o mesmo papel relevante para a reprodução da do
Nessa circunstância, a opressão, o silêncio e a repressão das sociedades pós - coloniais decorrem justamente de uma ideologia d
segundo Bonnici,26 mantém-se "uma hierarquia em que o oprimido é fixado pela superioridade moral do dominador. (...) Por ou
roupa, sem religião, sem lar (...), em nível bestial".
Com a chegada à Guiné- Bissau do Conde Enxeque, Conde d'Avince encontra um português da elite social e, juntos, ficam incu
Conjugação. Ambos questionam a presença de Pierre Avince. Enxeque coloca que, durante anos, a seleção era feita com base na
Conjugação precisavam de pessoas com certo nível cultural, logo, um grande número de "intelectuais" foram convocados a part
segundo Conde Enxeque, "esses intelectuais podiam assimilar rapidamente os moldes de funcionamento dos Serviços, mas não
Universidade".(LM, p. 44, 45)
Ao encontro do comentário pejorativo pronunciado pelo personagem Enxeque acerca daqueles que estudavam em universidades
português, é possível associar que uma das principais vítimas da política salazarista foi a Universidade, e os principais meios de
as demissões isoladas e coletivas de professores. Entre os estudantes existia a necessidade de lutar contra o regime fascista, evid
construindo uma resistência à violência dentro desse regime.
A universidade arcaica e obsoleta, em que os estudantes portugueses estudavam durante o regime fascista, faz com que os mesm
universidade sob regime fascista, exigir autonomia significa exigir a sobrevivência da universidade como instituição cultural, em
a liberdade de pensamento estava comprometida. As associações de estudantes constituíam uma luta diária, eram as únicas asso
alvo de ataques, na medida em que reivindicavam conquistas intelectuais e, desde cedo, os jovens aprenderam a odiar o fascism
De acordo com as considerações acima, é possível associar uma passagem da obra Lugar de Massacre, a um trecho do contexto
em Portugal, em que se evidenciam claramente as relações entre história e ficção. Trata-se da fala do personagem Enxeque, ace
imposições do regime,
(...) esses << intelectuais >>, se podiam assimilar rapidamente os moldes de funcionamento dos Serviços, não ofereceram sempr
Universidade andava contaminada pelo Serviço Traiçoeiro. Assim, dos oito << intelectuais >> recrutados por Pierre Avince, cin
envergadura (...) Só posteriormente, graças a minucioso inquérito, se vasculhara devidamente o passado de cada um . (...) Só fic
decidira enviar os suspeitos para locais onde lhes fosse vedada qualquer doutrinação, ficando os ditos vigiados por alguém de co
Sempre é algo positivo. (LM, p. 44, 45)
Com a passagem abaixo, igualmente entrecruzam-se a literatura e a história, percebendo como a literatura resgata elementos his
comprometido, abrindo espaço para a conscientização:
O preço desta crise acadêmica foi muito grande. Numa só noite são presos 1.200 estudantes. Os que ocupavam a Cantina e os gr
de patriotas, os moços vão para um campo militar, ao ar livre, e as moças para o calabouço civil. A triagem policial conservará a
os processos disciplinadores que expulsam da Universidade mais de 43 estudantes líderes. Alguns ficam impossibilitados de pro
país.27
O movimento estudantil, retratado na obra por meio do personagem Pierre Avice, teve um papel importante na desagregação do
de repressão sabiam que a resolução de seus problemas concentrava-se no fim da ditadura, quer dizer, que o final desse regime p
ofensiva, era necessário responder à violência com violência revolucionária. E Pierre Avince representava essa força revolucion
isolamento e o desprezo de todos aqueles que representavam o autoritarismo e os ideais do regime opressor.
O personagem Capitão Oliveira, o já mencionado Porca, como era chamado por seus subordinados, merece, ainda, um maior de
ironia a uma causa, e essa causa era a guerra colonial. A Porca assumiu o lugar do comandante Pássaro nos Serviços da Conjuga
d'Avince reconheceu no comandante um aliado para realizar seus desmandos. O comandante era, segundo o Conde, "rechonchu
como braguilha" (LM, P. 63).
Logo que chegou a Guiné, nomeou sua ordenança o cantor Fernando Laito, era o sublime Laito que cantava na Emissora Nacion
quotidianamente as bandeirinhas multicolores e heróicas que, sobre o mapa do passado, assinalavam os territórios africanos dom
se lia "Proibida a entrada" nunca mais abandonou a porta do comandante Porca, "o qual Laito salvaguardava a civilização ocide
A preferência homossexual do Capitão não caracteriza um desrespeito perante a causa que o mesmo representa, o desrespeito se
aproveita-se de seu cargo para vivenciar experiências sexuais com seus subordinados. Nessas circunstâncias, é possível verificar
não possui subsídios, nem valores, perante os portugueses.
Esse sentido de descrédito da causa que mobilizou a guerra colonial evidencia-se, assim, quer seja pela forma como comandante
exército, por meio de ações que depõe contra a validade de suas atitudes, quer seja por personagens como Conde d'Avince e Enx
representavam, pois lidavam com vidas alheias, e , ao mesmo tempo, demonstravam ser superiores racialmente, preocupando-se
perdiam-se em orgias e festas, e, desrespeitavam e manipulavam o destino de outros soldados, quando estes tentavam manifesta
O despreparo e a despreocupação dos soldados portugueses caracterizam uma causa sem motivação. A falta de credibilidade da
visualizar como o regime de dominação não representava uma causa respeitosa nem para os próprios soldados que, a princípio,
povoações litorâneas de Guiné de Moçambique onde havia portugueses era o reflexo do despreparo de Portugal para a aventura
Com o passar do tempo, o número de militares portugueses que desejavam abandonar a guerra colonial era cada vez maior; toda
sentido de manter e reforçar as estruturas de um capitalismo dependente, cuja arrogância encobriu a subserviência real ante os m
sobrevivência estava ligada à do sistema colonial. E para tanto, "a terra martirizada por uma guerra sem fim, um povo dividido e
cabecilhas saídos desse mesmo povo, cientes de que as bombas de napalme não conseguiriam roubar-lhes o futuro."(LM, p. 68)
Os soldados que eram contra o regime fascista e contra a exploração colonial, lutavam apenas por imposição, eram enviados par
representavam muito para a elite portuguesa. É o caso de Pierre Avince, como verifica-se na passagem,
Quando as luzes se acenderam, doentes, horríveis, junto ao matagal selvagem , ouvia-se dar vivas a Pierre, , director-geral do Ci
pobre rapaziada que, heroicamente enfastiada e deprimida, garantia a permanência de uma bolinha azul no mapa da vitória, a qu
povoação fiel, onde o inimigo só penetraria por sobre os cadáveres daqueles exemplares defensores do nada. (LM, p. 102)
Os soldados portugueses que lutavam na Ponta do Inglês, segundo a passagem acima, estavam relegados ao esquecimento, apen
permanência de uma bolinha azul no mapa da vitória".
De acordo com Simões,
As formas de resistência à postura colonizadora, assumida pela ficção portuguesa contemporânea, podem ser vistas assim, como
dos mitos cultuados pelo centro. No primeiro caso, dos focos temáticos, há que ser referido os horrores da guerra colonial: a jov
qual não concordava ou acreditava.28
Outras diversas manifestações de contrariedade permeiam a representação da insatisfação dos soldados portugueses com a guerr
Miguel, "Tenta demonstrar a um colonialista que ele é um chato tão idiota que nem consegue desenvencilhar-se das "malhas que
fuzilarem. O ser humano é o ser mais estúpido de quantos habitam essa merda de planeta!"(LM, p. 121).
Após experimentar vivências traumáticas em um ambiente de guerra, presenciar a morte de centenas de soldados, ser transferido
não obter respostas, perder sua juventude, seu trabalho, Pierre Avince continuou vivo. Ao embarcar de volta a Portugal, depois d
sentimento alienante, segundo suas colocações, "com um gato podre amarrado à memória", ainda ganhou um tratamento neurop
benefício "da desintegração psíquica". Seu diagnóstico foi reação vivencial depressiva. Durante anos mais tarde, Pierre Avince c
que denunciavam sua permanência naquele lugar de massacres. De sua vida anterior à guerra, já não lembrava de nada, nem da
subterrâneo".
Foi, no entanto, com um brado, "Filhos da puta!" (LM, p. 37), que Pierre Avince deixou o hospital, referindo-se às fardas que en
mortos, e os vivos com patentes elevadas. Aqueles que festejavam, eram para Avince, suínos que grunhiam no entrecochar de co
sem condição. Seligmann aborda uma concepção freudiana que vem ao encontro da situação representada pelo personagem Pier
A experiência traumática é, para Freud, aquela que não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre. Os exemplos de evento
narração não tanto desses fatos violentos, mas da resistência à compreensão dos mesmos.29
A desterritorialização, ocasionada pela independência colonial, provocou a revisão do entendimento de nação e de identidade cu
nos portugueses: a partir da vivência dos retornados que, de maneira direta ou indiretamente, vivenciaram o processo da guerra
conseqüências, seja opondo-se ideologicamente a uma condição centralizadora. De acordo com Said, "a cultura está na frente da
processo cultural posto em marcha com o colonialismo e, sobretudo, na condição pós-colonial, acaba ultrapassando a dicotomia
sujeitos, um hibridismo nas relações culturais; isso sem contar a própria consciência crítica dos portugueses contrários ao regim
colonizador e as guerras de libertação dos países africanos.
A obra Lugar de Massacre resgata, assim, a problemática vivenciada não apenas pelas nações africanas vitimadas pela exploraç
portuguesa que sofreu com os desmandos autoritários provenientes de uma minoria que possuía o poder. Esses soldados portugu
mesmo defendiam, foram desautorizados em seus direitos mínimos, como o da livre escolha ideológica, afora, questões ligadas
Avince, centenas de sobreviventes da guerra carregaram esse trauma por toda suas vidas.
Portanto, cabe também à escrita literária, a função de resgatar o passado de todas essas pessoas que, de alguma forma, sofreram
colonial expressa pela ficção portuguesa contemporânea por escritores que ficcionalizaram as vivências em África, afirma a imp
ótica crítica e de denúncia.
A resistência em não aceitar a dominação e a violência persiste na insistência de alguns em não permitirem que a memória se ap
escamoteando as vozes daqueles portugueses e africanos que resistiram ao poder ditatorial e colonizador, Tal visão será igualme
subseqüentemente, Terra Sonâmbula.

III. Terra Sonâmbula: o resgate do passado african


É possível definir a literatura produzida em Moçambique, Guiné, ou qualquer outro país ou povo que possua sua herança históri
este termo for entendido como expressão de uma produção teórica e intelectual que reflete e discute criticamente essa herança e
um conjunto de questões teóricas, como a tentativa de compreender os problemas postos pela colonização européia e suas conse
independente à idéia da própria cultura, misturando-se com as práticas discursivas do Ocidente. A partir da década de 70, uma q
entre hegemonia dos discursos ocidentais e as possibilidades de resistência e sobre a formação dos sujeitos coloniais e pós - colo
Terra Sonâmbula, o primeiro romance do autor moçambicano Mia Couto narra, por meio de três personagens principais, a histó
internas ainda destruíam o pouco que restou após a guerra de libertação. O romance é composto de duas narrativas que, inicialm
partida que desencadeia os fatos que compõe o romance, que é o machimbombo queimado, um ônibus queimado na beira da est
seguem. Os protagonistas, fugindo de um campo de concentração, adentram ao ônibus como intuito de conseguir um abrigo par
Na primeira narrativa, as cenas são mais lentas, pois a Terra está "sonâmbula", a esperar um novo tempo no qual renasceria. No
um cenário de guerra, com descrições desoladoras de uma estrada que não possui mais vida, apenas cinzas, poeira, carros incend
são um velho chamado Tuahir e um menino chamado Muidinga, que são sobreviventes da guerra colonial em Moçambique. Am
recolhera Muidinga quando esse ainda era pequeno, e todos o haviam abandonado, o velho ensinou-o a andar, a falar, a pensar e
Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A p
se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo az
acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte.31
A guerra "mata" a Terra e faz com que os habitantes tornem-se estrangeiros em seu próprio território. Mas a Terra, na verdade, n
que faz com que a Terra se movimente lentamente. O tempo nessa narrativa também movimenta-se lentamente, quase parado. T
há perspectiva de futuro. Muidinga, o miúdo, e Tuahir, o velho, seguem estrada fora, em busca de um outro continente dentro da
Na narrativa desses protagonistas, ambos representam, numa simbologia, a confluência dos velhos e dos novos tempos. Estão di
um lugar habitável, convivendo com os espíritos dos mortos que devem ser enterrados, conforme a tradição, em respeito a todos
justificativas e, para que os sobreviventes prossigam, preservando a memória dos que se foram, resgatando a identidade e o pass
vez que Tuahir e Muidinga parecem lutar contra a indignação por tudo aquilo que vivem e por tudo aquilo que vêem, num deses
A história do menino e do ancião não deixa de se configurar em um testemunho doloroso sobre a guerra, de memórias perdidas
passado que não poderá ser esquecido.
Concordando-se com a noção de que as culturas nacionais constroem identidades ao produzirem símbolos e sentidos com os qua
contadas e nas imagens criadas sobre uma nação, percebe-se a relevância do interesse de Muidinga em recuperar seu passado, m
Sempre insistiu para que Tuahir contasse sobre suas origens, sua família, enfim, sua vida, até que um dia, o velho decidiu contar
E conta: ele estava no campo de deslocados, vindo de sua aldeia distante. Uma noite lhe pediram para enterrar seis crianças recé
vindo, a que famílias pertenciam. Estavam despidas, suas roupas tinham sido roubadas mal as crianças perderam força para se d
agarravam`a vida, lutando contra o abismo. Aquela criança ainda respirava. Era a mais clara e a mais raquítica de todas.

- Parem, aquele miúdo ainda está vivo! (TS, p. 65)


E o miúdo a que Tuahir referia-se era Muidinga, que desde a mais tenra infância já sabia como funcionava a difícil luta pela sob
guerra, a procurar uma África de paz, onde pudessem preservar seus hábitos e tradições. De acordo com as colocações de Seligm
sucessão de episódios traumáticos pode ser explicada da seguinte forma,
Os sobreviventes e às gerações posteriores à guerra defrontam-se a cada dia com a tarefa de rememorar a tragédia e enlutar os m
confronto constante com a catástrofe, com a ferida aberta pelo trauma - e, portanto, envolve a resistência e a superação da negaç
alcançável.32
Em sua trajetória, os protagonistas encontram o corpo de um homem e, junto, uma mala com escritos que contam a vida de Kind
descoberta, o velho e o menino perambulam por caminhos que mostram uma África que evidencia o que sobreviveu de suas raíz
pelos Cadernos de Kindzu possui um tempo que se movimenta mais rapidamente, pois os relatos de Kindzu aconteceram antes d
o tempo da memória, permite que os acontecimentos articulem-se entre si, originando uma cadeia transmissora dos acontecimen
A trajetória de Muidinga e Tuahir é intercalada pela história de Kindzu que o menino lê em voz alta para o velho, para que ambo
os acompanhavam. Esses escritos trazem histórias de uma Terra adormecida, na qual o sono, o sonho, os pesadelos e as visões m
palmeira de onde saía o vinho preferido do pai, o velho Taímo, que o bebia até ficar inconsciente e ter sonhos reveladores.
Kindzu conta que a guerra havia chegado aos poucos: primeiro chegaram as notícias do que acontecia longe, depois os tiros fora
Kindzu, que nascera pouco depois da independência de Moçambique, chamou-se Junho, numa relação ao dia 25 desse mês, o m
sua família ser desfeita, estavam vivendo na miséria, ficavam a olhar o antigamente, seus corpos haviam emagrecido. Certa noit
decorrência da guerra pós-colonial, e esse era Junho; para que tal morte não ocorresse, Taímo esconde o filho em um galinheiro
de galinha, até cocoricava com perfeição, coberto por um saco de penas. Essa imagem alegórica remete ao processo de "indepen
assim como a autonomia moçambicana que, como o menino, não foi respeitada, foi posta de lado, transformada em algo que não
seu desaparecimento apontam, ironicamente, para a derrota dos nacionalistas traídos.
Segundo Pinheiro, "a tortura, o racismo, o aparelho repressor, não são transformados pelas transições, mesmo depois de constitu
a independência não foi respeitada e considerada, como é possível evidenciar no romance Terra Sonâmbula.
Na vila em que Kindzu vivia, restou apenas um único comerciante: Surendra Valá, um indiano que fora trabalhar em Moçambiq
conversando no estabelecimento de Surendra, o qual projeta o discurso crítico do romance sobre a desordem e o autoritarismo. O
administradores locais que o expulsam e tomam suas propriedades. Em oposição às práticas de segregação e violência impostas
parte do personagem Surendrá Valá, em que é criada uma partilha de sentimentos comuns e de um território que transcende as f
valores que a guerra carrega. Kindzu se expressa sobre o amigo indiano:
E ele me passava um pensamento: nós, os da costa, éramos habitantes não de um continente mas de um oceano. Eu e Surendra p
imenso mar se desenrolassem os fios da história, novelos antigos onde nossos sangues haviam se misturado. Eis a razão por que
comuns antepassados, flutuando sem fronteiras. Essa era a raiz daquela paixão de me encaseirar no estabelecimento de Surendra
Essa simbologia do mar estabelece, em Terra Sonâmbula, um contraponto com a terra assolada, assinalando a superação dos co
seja uma conquista difícil.
O preconceito de que Surendra é vítima pode parecer inexplicável em um meio que, historicamente, a presença indiana foi semp
históricos envolvendo Índia e Moçambique. Todavia, comportamentos segregacionistas existiram em Moçambique, seguindo pa
Bonnici,34 de um modo geral,
Iniciou-se o século XX com um triste panorama composto por dezenas de povos e nações, submetidos ao colonialismo europeu,
da população mundial vivendo num contexto patriarcal, pelo poder político e econômico nas mãos da raça branca, cristã e rica e
Ao deparar-se, no estabelecimento de Surendra, com um naparama que havia ajudado o comerciante indiano a livrar-se de um la
que trajava mínimas vestes, mas exibia colares, penas e enfeites. Surendra falou que os naparamas eram guerreiros tradicionais,
faziam a guerra, lutavam com lanças e zagaias. Kindzu, então, identificou-se com os guerreiros naparamas, integrados na tradiçã
com seus mitos.
Pelos ensinamentos que recebera, Kindzu considerava Surendra um sábio, pois representava a consciência crítica do excluído e
Lembrei as palavras de Surendra: tinha que haver guerra, tinha que haver morte. E tudo para quê? Para autorizar o roubo. Porqu
dava acesso às propriedades. Era preciso haver morte para que as leis fossem esquecidas. Agora que a desordem era total, tudo e
p. 126)
Posto que Kindzu estava tomado pela vontade de sair mundo afora atrás dos naparamas, já que a guerra havia destruído sua vila
conselhos para o pastor Afonso. Este desempenhava na vila em que o menino morava o papel de professor, proferia sermões qu
e Kindzu gostava muito de conversar com o pastor. Todavia, ao chegar lá, Kindzu deparou-se com uma cena chocante, a escola
pastor havia sido assassinado e pendurado em uma árvore, além de terem cortado suas mãos e pendurado em galhos, para que nu
perturbavam os detentores do poder. Tal circunstância é possível de ser associada a fatos reais, como verifica-se na seguinte cita
Bastam estas amostras reduzidas para ver como a Igreja nas colônias ficou subordinada - logo, comprometida - ao Estado. (...) O
em boa parte, financeiramente, dos donativos do Estado leva este a exigências, de subordinação e de silêncio incompatíveis com
Nesse caso, a força política e econômica, o controle ideológico e social deveriam estar centrados nas mãos, unicamente, do Esta
Pastor Afonso, viesse a discordar dos ideais perpetuados por aqueles que apoiavam a guerra colonial. Para terminar com o foco
anteriormente, utiliza-se de todo o seu autoritarismo, e encontra uma maneira de silenciar o discurso do pastor, com a sua morte
destruída e ir atrás dos naparamas, para juntar-se a eles e tentar por um fim à guerra que destruiu tudo aquilo de maior valor que
O percurso de Kindzu foi longo até chegar em Matimati, a terra da água. A cena que presenciou ao chegar caracteriza a fragilida
decorrentes da ganância e das imposições do Estado. Milhares de pessoas se concentravam na praia, vindas do interior já destruí
uma embarcação lotada de mantimentos que chegariam em Matimati, e os moradores se lançavam ao mar e tentavam pegar qual
sabiam quem eram os responsáveis, os governantes, que queriam as cargas de alimento para si, com o interesse de que a populaç
assaltado pela população faminta que é contida em nome da ordem pública, é um exemplo do desmando oficial perante a carênc
do governo deram ordens rigorosas. A recolha dos bens do navio devia ser organizada. Explicavam eles que apenas se pretendia
e obedecendo às hierarquias". (LS, p. 73). Dentro de um desses navios abandonados, Kindzu encontra uma mulher, seu nome er
de seu filho Gaspar, que gostaria de um dia encontrá-lo. Kindzu prometera que traria seu filho de volta, se apaixonara por Farida
Ao retornar à terra firme, Kindzu conversou com Assane, comerciante que estava tentando abrir uma pequena loja em Matimati
Kindzu ao saber que o comerciante era Surendra Valá, que também saíra da vila em que moravam, fugindo da perseguição dos a
guerra, a qual, para o povo africano, parecia não ter mais fim, nem justificativa. Assim falaram,
Comentei sobre a eternidade que demorava a guerra. Assane discordou:
- Nem isto guerra nenhuma não é isto é alguma coisa que ainda não tem nome. Se explicou: antes fosse uma guerra a sério. Se a
fantasma faz crescer um exército fantasma, salteado, desnorteado, temido por todos e mandado por ninguém. E nós próprios, ind
No fundo da latrina não pode haver guerra limpa. (LS, p. 134)
Teoricamente, Moçambique era uma nação independente, contudo, os acontecimentos que sucederam à independência mostrara
muito tempo, e, ainda hoje, que lutar por sua liberdade e por seus direitos. A guerra atesta contra o uso da inteligência, justifica-
daqueles que desejam o poder às custas do sofrimento e da exploração de outros povos.
De acordo com Pinheiro,
transição, passagem, mudança de um lugar ou estado ou ato ou conjunto de circunstâncias para outro. Quem já viveu sob uma d
opressão termina, de que mudanças efetivamente ocorreram. (...) Impossível negar, no entanto, que a reconquista da democracia
Estado, abrindo as possibilidades para que as lutas e as resistências populares possam se materializar, aumentando suas condiçõ
Quando Kindzu sai de Matimati, em busca dos naparamas e do filho de Farida, Gaspar, no caminho de seus objetivos, Kindzu d
suas histórias, suas maneiras de não permitir que as tradições se percam. Em um campo de concentração, Kindzu descobre Euzi
entristece Kindzu, segundo suas palavras, eram milhares de camponeses que se concentravam, famintos, esperavam a morte, na
De fato, era coisa de pasmar a tristeza. O centro se espalhava como ruínas da própria terra, castanhas da dor do chão. Aquela ge
cobriam com cascas de árvores, vegetantes cheios de poeira. No meio da multidão estava Euzinha, a idosa tia de Farida. (TS, p.
Os campos de concentração caracterizam uma das maiores formas de indignidade com o ser humano, constitui-se num aglomera
violência, são pessoas separadas de suas famílias, que perdem seus direitos mínimos em nome da ganância dos detentores do po
forma mais cruel, por meio de um depoimento de um ex-cabo que serviu ao exército português, e fala sobre as atrocidades come
No interior de cada zona de controle existem campos de concentração. São campos de concentração no sentido tradicional da pa
submetidas a trabalhos forçados. Toda pessoa que chega à zona de controle é automaticamente encaminhada para os campos de
O autoritarismo presente nas citações acima evidencia o caráter degradante da guerra, esse legado deixado por esta forma de imp
obra Terra Sonâmbula. A repressão se reveste de conteúdos hieráquicos autoritários indispensáveis à reprodução das relações de
são os detentores do poder, de forma violenta e submissa. Segundo Pinheiro, "A ameaça física que pesa sobre cada um é menos
seu aparelho repressivo, a organização monopolista da coerção física age sobre a maioria da população como uma ameaça direta
Com a morte de tia Euzinha, Kindzu retorna a Matimati. Lá chegando recebe a notícia de que Farida está morta; logo, nada mais
entra num machimbombo e segue pela estrada; só que no caminho, os tiros terminam em sangue, Kindzu sai do machimbombo
vê um menino correndo e levando seus cadernos, ele ainda grita: - Gaspar! E, o menino olha, ao mesmo tempo em que cai no ch
Movidas por um vento que nascia não do ar mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por u
meus escritos se vão transformando em páginas da terra". (TS, p. 245)
A mobilidade do espaço remete à utopia da transformação do mundo, enquanto a vida corre perigo, faz-se da leitura dos caderno
contam as histórias de um povo que tenta sobreviver à morte e ao caos, de modo que os dois sobreviventes se identificam com o
prefigura "a mansa ordem, conforme esperas e sofrências", resistindo ao caos através de uma escritura.
Da leitura das estórias lidas pelo menino, desponta a guerra pela perspectiva de um personagem que gozava de alguns privilégio
de Kindzu como "confusão de fora, trazida por aqueles que tinham perdido seus privilégios", compondo um inferno que brusca
colonialismo português. Na leitura dos cadernos a sensação que se vive é a de instabilidade permanente, experimentada por Kin
fome, pelas epidemias, pela corrupção de uma administração interna que detém privilégios e assalta os minguados recursos dest
Durante o caminho de Tuahir e Muidinga, diversos personagens representam o resgate da cultura africana: um velho solitário ch
foram e que pede para o menino gravar o seu nome no tronco de uma árvore para que ela se fecundasse dele; um fazedor de rios
homem morre num furioso regato formado pelas águas de uma tempestade. E, ainda, mulheres que, em pleno ritual para afastar
pela sua intromissão no ritual.
Nesse espaço marcado por diferenças culturais, lingüísticas e sociais, despontam os personagens de Terra Sonâmbula que se en
os sonhos dos mortos ou sobreviventes de uma guerra que, parecia interminável. Nas sociedades africanas, os velhos exercem u
história de seu povo, transmitindo seus ensinamentos aos mais jovens. O resgate do passado africano permite, segundo Benjami
Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos." 39

IV. Os textos em diálogo: as convergências acerca d


em Lugar de Massacre e Terra Sonâmbula.
As obras em análise, Lugar de Massacre, de José Martins Garcia, e Terra Sonâmbula, de Mia Couto, na presente pesquisa possu
problemática do autoritarismo dentro da realidade pós-colonial dos países africanos destacados.
Em Terra Sonâmbula é representada a situação pós-independência em Moçambique, a procura de uma identidade quando um pa
e a nativa sobrevivente torna-se uma forma de resgatar o passado marcado pela guerra e a cultura local. Mia Couto recria, com t
Moçambique, onde o mar, as cores, as tradições fazem parte de um ritual só e, ao mesmo tempo, misturam-se com os horrores d
É comum se falar em resistência dos povos ex-colonizados, que resulta na retomada das suas raízes naquilo que foi sufocado, em
oriundas da convivência com a cultura branca. Tal resistência inclui os portugueses-africanos, como é o caso de Mia Couto que,
as atrocidades cometidas na guerra posterior à libertação nacional de Moçambique. É o que se lê na seguinte passagem, em que
continua ecoando os desmandos da dominação colonial:
-Às vezes quase desisto de vocês, massas populares. Penso: não vale a pena, é como pedir a um cajueiro para não entornar seus
limpar os pés nas nossas costas"40
No trecho, "a História há de limpar os pés nas nossas costas", é possível verificar quanto o conceito de História está ligado à his
consideração deve ser desfeita, pois cada momento da história forma uma unidade em si, dotada do mesmo valor que as outras,
adequada se o historiador deixar de lado qualquer opinião preconcebida sobre o curso global da história, para mergulhar sem pre
segundo seus próprios critérios.41
Para Benjamin, a tarefa do historiador será a de saber ler e escrever uma outra história, uma espécie de anti-história, uma históri
sobre a qual se impõe a cultura triunfante, pois os dominantes do momento são herdeiros daqueles que uma vez venceram. Porta
respectivamente os dominantes do momento.
Na obra Terra Sonâmbula aborda-se a questão da resistência do povo africano, resgata-se a memória daqueles que foram explor
possibilita a construção de uma consciência de que se a situação do povo africano, hoje, é de subdesenvolvimento, deve-se a ano
relegados ou esquecidos.
Em Lugar de Massacre, também evidencia-se o sofrimento dos africanos com a guerra, mas a crítica maior recai sobre, justame
em território africano, os soldados portugueses que, na maioria das vezes, defendiam uma causa que vai de encontro às suas ideo
soldados perderem a juventude e a vida lutando pela causa colonialista constituem a crítica nessa obra. A carta escrita por Pierre
indignação por toda a causa autoritária que era o colonialismo, uma causa amparada no interesse da exploração,
Ex.mo. Senhor
Tendo chegado ao meu conhecimento que a minha peregrinação por este martirizado território foi motivada por sórdidos interes
meu conhecimento que alguém cobardemente nos confundiu, dignos e indignos, à sombra do uniforme do Exército Português; a
homem e de militar, solicito que V. Ex. se digne ordenar um inquérito referente às condições de da minha peregrinação neste ter
legitimar o assassinato duma juventude.
Respeitosamente
Aguarda deferimento.42
Portanto, o enfoque crítico modifica-se nas obras, mas elas possuem, em comum, o propósito de retratar e denunciar o autoritari
Guiné, quer seja pela população africana, quer seja pela insatisfação dos soldados portugueses que foram obrigados a representa

Conclusão
Seguindo-se algumas concepções da Escola de Frankfurt, bem como as atuais perspectivas dos estudos pós-coloniais, procurou-
inscritos em diferentes realidades culturais sobre o recente passado de duas nações africanas. De um lado, uma criação literária a
colonial, evidenciando as arbitrariedades vivenciadas no embate entre guienenses e portugueses, enfocando as conseqüências tra
ao regime salazarista. De outro, uma obra literária moçambicana enfocando essa mesma realidade de arbitrariedade e barbárie h
Dessa conjunção de pontos de vistas, constrói-se uma similar crítica e denúncia sobre o drama da colonização, e os seus alicerce
ameaças, a tentativa de resistência do dominado, a intransigência e, por fim, o poder de mover a guerra. À violência da coloniza
a guerra transforma-se na recorrente e triste resposta desse processo.
Distantes espacial e temporalmente, levando-se em conta os dezessete anos que separam a publicação dos romances Lugar de M
diálogo que se compõe de diferentes vozes formando um sentido de complementaridade na dimensão crítica que constroem sobr
Diálogo que, sobretudo, mantém-se atual na sua importância de não silenciar a memória de uma época que, de outro modo, pode
horror. De forma mais ampla, essas obras atestam o poder da literatura de, diante de inimigos como a injustiça, as desigualdades
inimigos, infelizmente, não têm cessado de vencer.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SIMOES, Maria de Lourdes Netto. Literatura Portuguesa e Pós-Colonialismo. Santa Maria: Palloti, 2002.

1
 Desenvolvimento do Projeto Final de Graduação.
2
 Acadêmica do Curso de Letras - Português / Inglês do Centro Universitário Franciscano.
3
 Professora Doutora do Centro Universitário Franciscano.
4
 Esse termo associa uma função social à literatura, em que as obras são vistas como espaço de conscientização, a partir da ênfas
5
 ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ars Poética, 1992.
6
 REIS, Carlos. Introdução aos estudos literários. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. p. 353.
7
 Idem, ibidem.
8
 SAID, E. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 34.
9
 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 1985. p. 224.
10
 GAGNEBIN, Jeanne - Marie. Walter Benjamin: os cacos da história. São Paulo: Brasiliense, 1982. p.65.
11
 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 1985. p.224.
12
 ADORNO, Theodor. Engajament. In: Notas de literatura. 1991. p. 53.
13
 PAZ E TERRA - 43 Anos de Fascismo em Portugal. 1989. p.4.
14
 BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs). Teoria literária: abordagens históricas contemporâneas. Maringá: Eduem,
15
 BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.). Teoria literária: abordagens históricas contemporâneas. Maringá: Eduem,
16
 CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Trad. Sandra G. Vasconcelos. São Paulo: Becca, 1999. p .125.
17
 BENJAMIN, Walter. Teorias do Fascismo alemão. Sobre a coletânea Guerra e guerreiros, editada por Ernest Jünger. In: ____
18
 SELIGMANN, Márcio José. Históruia, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. São Paulo: Unicamp. 2003.
19
 BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.). Teoria literária: abordagens históricas contemporâneas. 2003. p. 218.
20
 DOUGLASS, F. Narrative of the life of Frederick Douglass, an American slave, written by himself. Harmondsworth: Penguin
21
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22
 GARCIA, José Martins. Lugar de Massacre. Portugal: Printer Portuguesa. 1975. p. 9. Todas as demais citações foram retirada
páginas, sucedidos de abreviatura LM.
23
 WALTER, Benjamin. Sobre o conceito da história. In: _____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense. 1985. p
24
 BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.). Teoria literária: abordagens históricas contemporâneas. Maringá: Eduem
25
 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Autoritarismo e transição. São Paulo: USP. 1991, p.50.
26
 BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.) Teoria literária: abordagens históricas contemporâneas. Maringá: Eduem,
27
 CARVALHO, Joaquim Barradas de. 43 anos de fascismo em Portugal. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1969. p. 79.
28
 SIMÕES, Maria de Lourdes Netto. Resistência e diferença cultural: a ficção portuguesa contemporânea, como exemplo. In: L
e Cultura. Santa Maria, 1991. p. 26.
29
 SELIGMANN, Silva Márcio (Org). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes . São Paulo: Unicamp,
30
 SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. p. 225.
31
 COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1995. p. 9. Todas as demais citações foram retiradas dessa e
seguidos de abreviatura TS.
32
 SELIGMANN, Márcio Silva (Org.). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. São Paulo: Unicamp
33
 PINHEIRO, Sérgio Paulo. Autoritarismo e transição. São Paulo: USP, 1991. p. 50.
34
 BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs). Teoria literária: abordagens históricas contemporâneas. Maringá: Eduem,
35
 ARAGÃO, Augusto. 43 anos de fascismo em Portugal. São Paulo: Paz e Terra, 1969. p. 93.
36
 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Autoritarismo e transição. São Paulo: USP, 1991. p. 46.
37
 ARAGÃO, Augusto. et al. 43 anos de fascismo em Portugal. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969. p. 215.
38
 PINHEIRO, Sérgio Paulo. Autoritarismo e transição. São Paul: USP, 1991. p. 53.
39
 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: _____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.p.
40
 COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1955. p. 69.
41
 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Walter Benjamin: os cacos da história. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 62.
42
 GARCIA, José Martins. Lugar de Massacre. Portugal: Printer Portuguesa. P. 159.

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Terra Sonâmbula

Daniela Diana
Professora licenciada em Letras

Terra Sonâmbula é um romance do escritor africano Mia Couto, que foi


publicado em 1992. É considerada uma das melhores obras africanas do
século XX.

O título da obra faz referência à instabilidade do país e, portanto, à falta de


descanso da terra que permanece “sonâmbula”.

A realidade e o sonho são dois elementos fundamentais na narrativa. No


prefácio do livro, temos o trecho:

"Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homens dormiam, a terra
se movia espaços e tempos afora. Quando despertavam, os habitantes olhavam o novo
rosto da paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados pela fantasia
do sonho. (Crença dos habitantes de Matimati)"

Estrutura da Obra
Terra Sonâmbula está dividida em 11 capítulos:

 Primeiro Capítulo: A Estrada Morta (que inclui o “Primeiro caderno de


Kindzu”: O Tempo em que o Mundo tinha a nossa idade)
 Segundo Capítulo: As Letras do Sonho (que inclui o “Segundo caderno
de Kindzu”: Uma Cova no Tecto do Mundo”)
 Terceiro Capítulo: O Amargo Gosto da Maquela (que inclui o “Terceiro
caderno de Kindzu”: Matimati, A Terra da Água)
 Quarto Capítulo: A Lição de Siqueleto (que inclui o “Quarto caderno de
Kindzu”: A Filha do Céu)
 Quinto Capítulo: O Fazedor de Rios (que inclui o “Quinto caderno de
Kindzu”: Juras, Promessas, Enganos)
 Sexto Capítulo: As Idosas Profanadoras (que inclui o “Sexto caderno de
Kindzu”: O Regresso a Matimati)
 Sétimo Capítulo: Moços Sonhando Mulheres (que inclui o “Sétimo
caderno de Kindzu”: Um Guia Embriagado)
 Oitavo Capítulo: O Suspiro dos Comboios (que inclui o “Oitavo caderno
de Kindzu”: Lembranças de Quintino)
 Nono Capítulo: Miragens da Solidão (que inclui o “Nono caderno de
Kindzu”: Apresentação de Virgínia)
 Décimo Capítulo: A Doença do Pântano (que inclui o “Décimo caderno
de Kindzu”: No Campo da Morte)
 Décimo Primeiro Capítulo: Ondas Escrevendo Estórias (que inclui o
“Último caderno de Kindzu”: As Páginas da Terra)
Personagens Principais
 Muidinga: protagonista da história que perdeu a memória.
 Tuahir: velho sábio que guia Muidinga depois da guerra.
 Siqueleto: velho alto e último sobrevivente de uma aldeia.
 Kindzu: menino morto que escreveu seu diário.
 Taímo: pai de Kindzu.
 Junhito: irmão de Kindzu.
 Farida: mulher com quem Kindzu tem uma relação.
 Tia Euzinha: tia de Farida.
 Dona Virgínia: portuguesa e mãe de consideração de Farida.
 Romão Pinto: português e pai de consideração de Farida.
 Gaspar: filho desaparecido de Farida e que foi feito pelo abuso de seu
pai adotivo: Romão.
 Estêvão Jonas: administrador e marido de Carolinda.
 Carolinda: mulher do administrador e que dorme com Kindzu.
 Assane: antigo secretário administrador da região de Matimati.
 Quintino: guia de Kindzu.
Resumo
Muidinga é um menino que sofreu amnésia e tinha a esperança de encontrar
seus pais. Tuahir é um velho sábio que tenta resgatar toda a história do
menino, lhe ensinando novamente tudo sobre o mundo. Eles estão fugindo dos
conflitos da guerra civil em Moçambique.

Logo no início, enquanto os dois estão caminhando pela estrada, eles


encontram um ônibus que foi queimado na região de Machimbombo. Junto a
um cadáver, eles encontram um diário. Nos “Cadernos de Kindzu”, o menino
conta detalhes de sua vida.

Dentre outras coisas, o garoto descreve sobre seu pai que era um pescador e
sofria de sonambulismo e alcoolismo.

Além disso, Kindzu menciona sobre os problemas da falta de recursos que sua
família sofria, a morte de seu pai, a relação carnal que tem com Farida e o
início da guerra.

Abandonado pela mãe, Kindzu vai relatando em seu diário momentos de sua
vida. Da mesma forma, ele fugiu da guerra civil no país.

Assim, vai se narrando a história dos dois, intercalada com a história do diário
do menino. Os corpos encontrados foram enterrados por eles e o ônibus serviu
de abrigo por um tempo a Muidinga e Tuahir.

Adiante, eles caíram numa armadilha e foram feitos prisioneiros por um velho
chamado Siqueleto. No entanto, logo eles foram libertados. Por fim, Siqueleto,
um dos sobreviventes de sua aldeia, se mata.
Tuahir revela a Muidinga que ele foi levado a um feiticeiro para que sua
memória fosse apagada e com isso evitar muitos sofrimentos. Tuahir tem a
ideia de construir um barco para seguirem a viagem pelo mar.

No último caderno de Kindzu, ele narra o momento em que encontra um ônibus


queimado e sente a morte. Chegou a ver um menino com seus cadernos na
mão, o filho de Farida que ele tanto procurava: Gaspar. Assim, podemos
concluir que Gaspar era, na verdade, o garoto que sofreu amnésia: Muidinga.

"Me apetece deitar, me anichar na terra morna. Deixo cair ali a mala onde trago os
cadernos. Uma voz interior me pede para que não pare. É a voz de meu pai que me dá
força. Venço o torpor e prossigo ao longo da estrada. Mais adiante segue um miúdo com
passo lento. Nas suas mãos estão papéis que me parecem familiares. Me aproximo e,
com sobressalto, confirmo: são os meus cadernos. Então, com o peito sufocado, chamo:
Gaspar! E o menino estremece como se nascesse por uma segunda vez. De sua mão
tombam os cadernos. Movidas por um vento que nascia não do ar mas do próprio chão,
as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por uma, se vão convertendo
em grãos de areia e, aos poucos, todos meus escritos se vão transformando em páginas
de terra."

Análise da Obra
Escrito em prosa poética, o foco central do escritor é fazer um panorama de
Moçambique após anos de guerra civil no país.

Essa guerra sangrenta, que durou cerca de 16 anos (1976 a 1992), deixou 1
milhão de mortos.

O objetivo central é revelar os horrores e desgraças que envolveram a guerra


no país. Os conflitos, o cotidiano, os sonhos, a esperança e a luta pela
sobrevivência são os pontos mais relevantes do enredo.

Grande parte da obra, o escritor narra os acontecimentos e as aventuras de


Muidinga e Tuahir. Isso tudo paralelo à história de Kindzu.

Mia Couto acrescenta um toque de fantasia e surrealismo no romance,


mesclando assim a realidade com a fantasia (realismo mágico). O foco
narrativo da obra demostra também essa mescla, ou seja, ora é narrado em
terceira pessoa, ora em primeira.

Alguns termos locais são utilizados na linguagem da obra, marcando a


oralidade. Além das descrições, o discurso indireto é muito utilizado, com
inclusão da fala dos personagens.

O enredo não é linear, ou seja, momentos da história dos personagens são


intercalados com outros.

Trechos da Obra
Para conhecer melhor a linguagem utilizada pelo escritor, confira abaixo alguns
trechos da obra:
Capítulo 1
“Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se
arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de
tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão
sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar
asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se
acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte.”

Capítulo 2
“Por cima da página, Muidinga espreita o velho. Ele está de olhos fechados,
parece dormido. Fim ao cabo, tenho estado a ler apenas para minhas orelhas,
pensa Muidinga. Também há já três noites que vou lendo, é natural o cansaço
do velho, condescende Muidinga. Os cadernos de Kindzu se tinham tornado o
único acontecer naquele abrigo. Procurar lenha, cozinhar as reservas da mala,
carretar água: em tudo o rapaz se apressava.”

Capítulo 3
“Muidinga acorda com a primeira claridade. Durante a noite, seu sono se
estremunhara. Os escritos de Kindzu lhe começam a ocupar a fantasia. De
madrugada até lhe parecera ouvir os tais cabritos embriagados de Taímo. E
sorri, ao se lembrar. O velho ainda ressona. O miúdo se espreguiça ao sair do
machimbombo. O cacimbo é tão cheio que mal se enxerga. A corda do cabrito
permanece atada aos ramos da árvore. Muidinga puxa por ela para trazer o
bicho às vistas. Então, sente que a corda está solta. O cabrito fugira? Mas, se
assim tinha sido, qual a razão daquele vermelho tintando o laço?”

Capítulo 4
“Uma vez mais Tuhair decide explorar os matos vizinhos. A estrada não traz
ninguém. Enquanto a guerra não terminasse era mesmo melhor que nenhuma
pessoa estradeasse por ali. O velho sempre repetia:
- Alguma coisa, algum dia, há-de acontecer. Mas não aqui, emendava
baixinho.”
Capítulo 5
“Muidinga pousou os cadernos, pensageiro. A morte do velho Siqueleto o
seguia, em estado de dúvida. Não era o puro falecimento do homem que lhe
pesava. Não nos vamos habituando mesmo ao nosso próprio desfecho? A
gente vai chegando à morte como um rio desencorpa no mar: uma parte está
nascendo e, simultânea, a outra já se assombra no sem-fim. Contudo, no
falecimento de Siqueleto havia um espinho excrescente. Com ele todas as
aldeias morriam. Os antepassados ficavam órfãos da terra, os vivos deixavam
de ter lugar para eternizar as tradições. Não era apenas um homem mas todo
um mundo que desaparecia.”

Capítulo 6
“À volta do machimbombo Muidinga quase já não reconhece nada. A paisagem
prossegue suas infatigáveis mudanças. Será que a terra, ela sozinha,
deambula em errâncias? De uma coisa Muidinga está certo: não é o arruinado
autocarro que se desloca. Outra certeza ele tem: nem sempre a estrada se
movimenta. Apenas de cada vez que ele lê os cadernos de Kindzu. No dia
seguinte à leitura, seus olhos desembocam em outras visões.”
Capítulo 7
“A chuva timbilava (Timbilar: tocar marimba, de mbila (singular), tjmbila (plural))
no tecto do machimbombo. Os dedos molhados do céu se entretinham naquele
tintintilar. Tuahir está embrulhado numa capulana. Olha o miúdo que está
deitado, de olhos abertos, em sincero sonho.
- Charra, faz frio. Agora, nem se pode fazer uma fogueira, a lenha toda está
molhada. Você me anda a ouvir, miúdo?
Muidinga continuava absorto. Segundo a tradição, ele se devia alegrar: a chuva
era um bom prenúncio, sinal de bons tempos batendo à porta do destino.
- Te falta é uma mulher, disse o velho. Estiveste a ler sobre essa mulher, a tal
Farida. Devia ser bonita, a gaja.”
Capítulo 8
“- Lhe vou confessar miúdo. Eu sei que é verdade: não somos nós que
estamos a andar. É a estrada.
- Isso eu disse desde há muito tempo.
- Você disse, não. Eu é que digo.
E Tuahir revela: de todas as vezes que ele lhe guiara pelos caminhos era só
fingimento. Porque nenhuma das vezes que saíram pelos matos eles se tinham
afastado por reais distâncias.
- Sempre estávamos aqui pertinho, a reduzidos metros.”
Capítulo 9
“Olhando as alturas, Muidinga repara nas várias raças das nuvens. Brancas,
mulatas, negras. E a variedade dos sexos também nelas se encontrava. A
nuvem feminina, suave: a nua-vem, nua-vai. A nuvem-macho, arrulhando com
peito de pombo, em feliz ilusão de imortalidade.
E sorri: como se pode jogar com as mais longínquas coisas, trazer as nuvens
para perto como pássaros que vêm comer em nossa mão. Se recorda da
tristeza que o manchara na noite anterior.”
Capítulo 10
“O jovem nem sabe explicar. Mas era como se o mar, com seus infinitos, lhe
desse um alívio de sair daquele mundo. Sem querer ele pensava em Farida,
esperando naquele barco. E parecia entender a mulher: ao menos, no navio,
ainda havia espera. Por isso, ele enfrenta aquela marcha pelo pântano.
Chapinham numa imensidão: lodos, lamas e argilas fedorosas.”

Capítulo 11
“As ondas vão subindo a duna e rodeiam a canoa. A voz do miúdo quase não
se escuta, abafada pelo requebrar das vagas. Tuahir está deitado, olhando a
água a chegar. Agora, já o barquinho balouça. Aos poucos se vai tornando leve
como mulher ao sabor de carícia e se solta do colo da terra, já livre, navegável.
Começa então a viagem de Tuahir para um mar cheio de infinitas fantasias.
Nas ondas estão escritas mil estórias, dessas de embalar as crianças do inteiro
mundo.”
Quem é Mia Couto?

Antônio Emílio Leite Couto, conhecido como Mia Couto, nasceu em 1955 na
cidade de Beira, Moçambique, África. "Terra Sonâmbula" (1992) foi seu
primeiro romance publicado.

Além de escritor, ele trabalhou também como jornalista e biólogo. Mia Couto
possui uma vasta obra literária que inclui romances, poesias, contos e crônicas.

Com a publicação de "Terra Sonâmbula" recebeu o "Prêmio Nacional de Ficção


da Associação dos Escritores Moçambicanos" em 1995. Além disso, foi
agraciado com "Prêmio Camões" em 2013.

Filme
O longa metragem “Terra Sonâmbula” foi lançado em 2007 e dirigido por
Teresa Prata. O filme é uma adaptação do romance de Mia Couto.

Se quiser saber mais sobre o continente africano, leia os artigos:

 Aspectos Gerais da África


 Cultura Africana
 África Portuguesa
 Fim do Império Português na África
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Um breve estudo sobre Terra Sonâmbula, bela obra do escritor Mia
Couto
Terra sonâmbula
O estudo das relações de espaço

Ana Gomes

... é um país que está em estado de ficção. E é muito jovem. Moçambique está agora a
tentar encontrar um espaço de comunhão. Sou mais velho que meu próprio país(...)Há
processos que se sedimentarão como tempo. Tenho certeza de que iremos nos encontrar
e, como fazem as famílias, nos juntaremos para fazer um retrato e dizer: “isto é
Moçambique”. (PEREIRA-JÚNIOR, Luiz Costa. A voz de Moçambique [Entrevista
com Mia Couto). Língua Portuguesa. São Paulo, Ano III, nº 33, p. 12-16, julho de
2008.])

Há uma terra que não descansa, que nela revolvem estórias, espantos, sonhos e memórias. Terra que,
por sua história, não consegue dormir e “sonâmbula” busca , incessantemente, refazer-se lugar.
Assim é Moçambique que Mia Couto apresenta em Terra sonâmbula  (2007) e que este trabalho
“revisita”.
Em Terra sonâmbula o espaço assume importância acentuada, tanto no que se refere ao
desenvolvimento da narrativa, quanto ao relacionamento dos personagens com este lugar e que
revelam os aspectos históricos, sociais, ideológicos e humanos.
A narrativa tem início apresentando a trajetória do velho Tuahir e o menino Muidinga caminhando
por um “estrada morta pela guerra”, onde “só as hienas se arrastavam” e os vivente se acostumaram
ao chão , em resignada aprendizagem da morte.” Velho e menino, passado e futuro, caminham em
busca de saber e de memória e do seu lugar de pertença, como também caminham por esta toda
Moçambique. Esse espaço geográfico destroçado é ao mesmo tempo, o resultado da guerra e a
representação da experiência emocional desse povo sem caminho e sem esperança.
Outro espaço fundamental deste romance de Mia Couto é o machimbombo ( autocarro, ônibus) que
se torna o abrigo do menino e do velho. O lugar está cheio de cadáveres, e novamente esbarram-se as
referências simbólicas daquele momento que representam que também estão mortas as relações
afetivas entre os dois e em toda a nação, onde as destruições da guerra trazem contradições tão
profundas quanto as que fazem os pais não quererem ter seus filhos vivos.

Lhe peço, tio Tuahir. É que estou farto de viver entre os mortos.
O velho se apressa a emendar: não sou seu tio! E ameaça: o moço que não abuse de
familiaridade. Mas aquele tratamento é só maneira da tradição, argumenta Muidinga.
 Em você eu não gosto.
 Não lhe chamo nunca mais.
 E me diga: você quer encontrar seus pais porque?
 Já expliquei tantas vezes.
 Desconsigo de entender. Vou lhe contar uma coisa : seus pais não vão lhe quer é
ver nem vivo:
 Porque?
 Em tempos de guerra filhos são um peso que trapalha maningue.
(Couto,2007,p.11 e 12).
Neste ponto é possível observar o que aponta José Pires Laranjeiras(2001 ) como uma das marcas da
escrita de Mia Couto que é o de explorar as variadas temáticas e conflitos surgidos como
consequência da Guerra Civil, observando seus meandros simbólicos assim como os
desnorteamentos que atingiram e afligiram a população.
Naquele espaço de devastidão , enquanto enterram cadáveres eles encontram uma mala com comidas
e caderno. O velho prefere o alimento do corpo e o jovem opta pelos cadernos e passa a saciar com
elas as necessidades psicológicas.
A partir deste pontos duas estórias são narradas e entrelaçadas. A de Tuahir e Muidinga em onze
capítulos e a de Kindzu em onze cadernos. Abrem-se concomitantemente os espaços e paisagens de
tradição e renovação, de saber, de cultura e de memória por onde se aprende e se reconstrói a vida
desses personagens. Aqui começam também as transformações na paisagem que, muitas vezes, se
confundem com seus sonhos.

O miúdo entorta o nariz, decidido a desobedecer. Não queriaque o animal escapasse.


Procura nas redondezas um ramo à altura de receber um nó. Então se admira: aquela
árvore,um djambalaueiro, estava ali no dia anterior? Não, não estava. Como podia ter-
lhe escapado a presença de tão distinta árvore?E onde estava a palmeira pequena que, na
véspera, dava graça aos arredores do machimbombo? Desaparecera! A única árvore que
permanecia em seu lugar era o embondeiro, suportando a testa do machimbombo. Seria
coisa de crer aquelas mudanças na paisagem?” (Couto,p. 36)
Os espaços apresentados na narrativa de Mia Couto ultrapassam a paisagem. Avançam para os
interiores dos personagens ( espaço psicológico), as relações comunitárias ( espaços sociais), porque
é no espaço, e nunca fora dele que as pessoas e sociedades formam e consolidam seus patrimônios
materiais e imateriais. Paulo Daniel Farah , em sua tese de doutorado afirma que:

Em primeira instância , integra os componentes físicos que servem de cenário ao


desenrolar da ação e a movimentação das personagens; cenários geográficos , interiores
etc; em segunda instância, o conceito de espaço pode ser entendido em sentido translato,
abarcando tanto as atmosferas sociais como as psicológicas( FARAH apud BELO).

Em Terra sonâmbula nada é estático. A terra não para e vai se modificando pela ação do tempo e
também na medida que a estrada imaginária de Kindzu vai ganhando amplitude na imaginação do
menino e do velho de tal forma que a paisagem real talvez não existisse se não houvesse a paisagem
imaginada. Numa apresentação dicotômica e ao mesmo tempo dialética o paisagem simboliza a
preservação da memória, da história , da cultura, da identidade e do conhecimento humano como um
todo.

Bibliografia:
BELO, Juliana Morais. Terra Sonâmbula de Mia Couto: uma terra da paisagem e da memória.
Deller/UFMA. Revista Littera, v.1,n1, 2010.

COUTO, Mia. Terra sonâmbula. São Paulo. Companhia das Letras, 2007.


LARANJEIRAS, José Pires. Mia Couto e as literaturas africanas de Língua Portuguesa . Anejo.
Revista de Filologia Românica.p. 85-205, 2001.

OLIVEIRA, Ana Maria Abraão dos Santos. As impermanências da paisagem em Terra sonâmbula.
Sonho e resistência.  Revista do núcleo de história portuguesa e africana,vol.2 n2, 2009.

PEREIRA-JÚNIOR, Luiz Costa. A voz de Moçambique [Entrevista com Mia Couto). Língua
Portuguesa. São Paulo, Ano III, nº 33, p. 12-16, julho de 20 
quarta-feira, 22 de março de 2017

Terra Sonâmbula - Mia Couto Análise literária/


Vestibular UFU 2017

Mia Couto, em seu livro Terra Sonâmbula, mistura realidade e fantasia


de forma mágica, criando um entrelaçamento entre a tradição e o moderno. Em
Terra Sonâmbula, a oralidade perpetua a tradição que faz nascer o futuro
sonhado. Na busca por sua identidade o personagem Muidinga vai adentrando
no conhecimento ancestral e unindo a tradição à cultura moderna, através de
oralidade.

Uma história marcada por guerras e sofrimentos é o que se percebe no


imaginário moçambicano. Em 1975, após dez anos de guerra, Moçambique
conseguiu sua independência, através de um acordo assinado pela Frente de
Libertação de Moçambique (FRELIMO) e Portugal. No entanto, a guerra civil
permaneceu até 1992, quando foi assinado o Acordo Geral de Paz, em Roma a
4 de outubro, pelo Presidente da República, Joaquim Chissano, e pelo
Presidente da RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana). Enfim, uma
história entremeada por lutas, e que serve como pano de fundo no romance
Terra Sonâmbula (1993), de Mia Couto.

Antônio Emilio Leite Couto, Mia Couto, nasceu na Cidade da Beira,


província de Sofala, Moçambique, a 5 de julho de 1955. É formado em Biologia
e trabalhou como jornalista. Filho de poeta, Mia Couto nunca abandonou a
poesia, pois suas narrativas unem a poesia e a prosa. É um autor engajado nas
mudanças de seu país, fez parte da FRELIMO. Autor de mais de 15 livros,
sendo que só o primeiro foi de poemas, Raiz de orvalho (1983) ganhou vários
prêmios com Terra Sonâmbula (1993), entre eles o de um dos 12 melhores
livros de África do século XX.

Em Terra Sonâmbula (1993), vemos um mundo de sonhos que se


mistura a uma realidade caótica, de guerras e devastação. Seus personagens
caminham entre a certeza e a dúvida, entre o onírico e a realidade. Sentem-se
perdidos e confusos denotando uma situação de abandono, que é a forma
como se encontra o país. É nesse espaço limítrofe entre a realidade e a
imaginação que vivem os personagens de Terra Sonâmbula (1993).

Tuahir e Muidinga são os primeiros a serem apresentados como


viajantes nesse périplo de aventuras e sonhos, num país destroçado pela
guerra. Muidinga, um adolescente e Tuahir um ancião. Na verdade, Muidinga
está em busca de seus pais, pois fora salvo da morte por Tuahir e não se
recordava de sua infância. Durante a narrativa descobre-se que Tuahir havia
salvo Muidinga de ser enterrado vivo, porque havia ingerido um tipo de
mandioca que é venenosa e ficara como morto. Nesse sentido, observa-se que
o adolescente empreende uma viagem iniciática, conduzido pelo mais velho,
Tuahir, pois nos ritos de iniciação, segundo Van Gennep, o noviço é separado
da mãe e, durante o ritual, seu corpo é enfraquecido até a perda da memória,
sendo então ‘ressuscitado’ para iniciar uma nova vida na fase adulta, Muidinga
é considerado morto por sua tribo e depois ‘ressuscitado’ por Tuahir que lhe
inicia nos ensinamentos da vida adulta. É interessante observar que a iniciação
de Muidinga se dá em etapas, nas quais ele tanto vai sendo ensinado, por
Tuahir, quanto vai ensinando. Aos poucos Muidinga vai mesclando a sua
cultura que tem com a de Tuahir.

Observe-se que Tuahir não sabia ler nem escrever, enquanto que o
garoto sabia. Há uma referência muito explícita a cultura tradicional e a nova
imposição da cultura letrada. No entanto, em Terra Sonâmbula (1993) não há
uma sobreposição da segunda sobre a primeira, pois se bem observado se
verá que, apesar de o letramento estar ligado a Muidinga, este dá continuidade
a tradição da oralidade quando conta as estórias dos cadernos de Kindzu a
Tuahir. Esse contar é feito ritualisticamente à beira da fogueira, como nas
comunidades arcaicas.

Assim, há um reconhecimento da necessidade do novo andar de mãos


dadas com o velho; o passado com o presente.

Essa integração do velho ao novo se observa também no capítulo em


que é narrada a história de Siqueleto, um ancião que ficara só numa das
aldeias abandonadas. Tuahir e Muidinga o encontram porque caem numa
armadilha e são salvos por ele. Siqueleto fala a língua local e Muidinga não
entende, Tuahir serve de intérprete. Assim, observa-se aqui a dependência do
novo ao velho. No final, Siqueleto pede que Muidinga escreva seu nome numa
árvore, mostrando agora a dependência do velho ao novo. Logo, esses
acontecimentos corroboram para reafirmar o que foi dito: o novo anda de mãos
dadas com o velho. Em Terra Sonâmbula (1993), mostra-se que o
conhecimento ancestral é necessário para que se possa construir um novo
paradigma.

Durante a narrativa, Muidinga e Tuahir viajam pela estrada e encontram


um local de parada, um ônibus queimado. Decidem permanecer no ônibus, que
é um símbolo da modernidade, do deslocamento; um transporte coletivo, que
se encontra sem movimento, contrariando a sua representação para o mundo
moderno: “o meio de transporte representa a possibilidade, para o homem, de
uma locomoção rápida (que designa o esforço de compensação, o anseio de
ganhar espaço perdendo menos tempo, caracterizando assim, que na narrativa
o que importa é o tempo transcorrido e não o espaço percorrido.

No momento em que chegam ao local onde está o machimbombo, como


é chamado o ônibus na narrativa, Muidinga encontra os cadernos de Kindzu.
Nestes cadernos, temos uma viagem contada em suas minúcias, a qual
Muidinga lê para Tuahir. Segundo IANNI (1990, p.3), “Mesmo os que
permanecem, que jamais saem do seu lugar, viajam imaginariamente ouvindo
estórias, lendo narrativas, vendo coisas, gentes e signos do outro mundo.
Os dois personagens, conforme o que diz Seixo, estabelecem a
renovação da viagem na paragem, pois sua viagem pelos cadernos de Kindzu
cria um novo vínculo com o real, transmudando-o de tal forma, que Muidinga vê
a paisagem ao redor do ônibus se modificando: “De fato, a única coisa que
acontece é a consecutiva mudança da paisagem. Mas só Muidinga vê essas
mudanças. Tuahir diz que são miragens, frutos do desejo de seu companheiro”.
(COUTO, 1993, p. 77)

Desejo de mudança, esperança de vida, era isso que Muidinga buscava


nos cadernos de Kindzu. Nestes cadernos, o protagonista se acha também
numa viagem em busca de transformação. Kindzu quer ser um naparama, um
guerreiro mágico, nos cadernos apresenta seu pai, o velho Taímo, que tinha
sonhos premonitórios e fantásticos. O velho Taímo morre após a
independência de Moçambique. Kindzu, assim como o pai, também tem
sonhos que se misturam à realidade. Sonhos que são premonitórios. Ter
sonhos, aqui, significa como ter ainda esperança. O sonho está ligado à utopia,
ao desejo de mudar. Isso se configura logo nas primeiras páginas de Terra
Sonâmbula (1993), pelas epígrafes que abrem o livro.

Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homens


dormiam, a terra se movia espaços afora. Quando despertavam, os habitantes
olhavam o novo rosto da paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham
sido visitados pela fantasia do sonho.
Crença dos habitantes de Matimati.
 O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a
estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos
fazerem parentes do futuro. Fala de Tuahir (COUTO, 1993, p. 6)

As duas epígrafes são comprovadas logo em seguida pela abertura do


primeiro capítulo que se intitula “A estrada morta” e que na primeira linha se lê:
“Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada.” (COUTO, 1993, p. 9). Dessa
forma, comprova-se ser o sonho o elemento que faz seguir adiante, nele reside
a esperança. E a guerra, que mata os sonhos, traz consigo a desesperança e o
sentimento de desencanto. Numa terra assolada por esse conflito, seus
habitantes já perderam a esperança na vida, por isso deixaram de sonhar.
Esse mundo dos sonhos é buscado na narrativa, pois, através da fantasia,
Muidinga cria e recria o universo de Kindzu. Vive intensamente cada aventura
narrada nos cadernos, a ponto de misturar a realidade e a fantasia; o seu
mundo e o de Kindzu. Isso é bastante evidente, no momento em que Muidinga
propõe a Tuahir brincarem de Kindzu e seu pai: Tuahir faria o papel do velho
Taímo, mas a brincadeira chega ao ponto de se confundir com o real.

E Muidinga se atrapalha em totais confusões. É como se qualquer coisa,


lá fundo de seu peito, se estivesse rasgando. E se apercebe que, em seu rosto,
desliza o frio das lágrimas. Depois, sente a mão de seu pai lhe afagando a
cabeça. Olha o seu rosto e vê que, afinal, seus olhos eram sábios. Foi como
se, de repente, toda a bondade dele ficasse visível, redonda. (COUTO, 1993, p.
188)

Logo, Kindzu é Muidinga e vice-versa, através do relato contado, Kindzu


reencontra o pai e com ele se reconcilia, e Muidinga encontra em Tuahir o pai
que procurava. A cada momento as narrativas de Kindzu e Muidinga vão se
tocando e se entrelaçando. Sente-se esse entrelaçamento a partir do momento
em que surge no relato a personagem Farida. Ela aparece nos cadernos de
Kindzu, conta a sua história e diz que está a procura de seu filho Gaspar.
Kindzu se apaixona por Farida. Levada pelos acontecimentos, Farida se isola
em um barco que se encontra encalhado, abandonado, como se fosse um
barco fantasma. Nesse navio, os dois se encontram e relatam seus sonhos um
para o outro. Esse navio pode simbolizar os sonhos impossíveis, uma vez que
se encontra encalhado e abandonado como um navio fantasma: “O navio
fantasma simboliza os sonhos, de inspiração nobre, mas irrealizáveis, do ideal
impossível. ” (CHEVALIER, 1999, p. 632). Além disso, “a metáfora do barco à
deriva, símbolo da morte, representa o sentimento de der (rota) que impregna o
modernismo e se acirra no pós-modernismo – a modernidade lato sensu”.
(LOBO, 1988, p.)

Farida pede a Kindzu que encontre seu filho Gaspar, e ele parte
novamente para o continente em busca do filho de Farida. Começa então uma
outra viagem, agora de resgate. Interessante observar que em ambas as
viagens, tanto de Muidinga quanto de Kindzu, há uma vontade de construir
uma identidade. Muidinga para isso quer encontrar seus pais, Kindzu quer se
tornar um naparama, um guerreiro que poderia lutar por seu povo. Ambos
personagens acabam voltando a lugares já percorridos, no entanto, nunca os
veem com o mesmo olhar. Sempre há uma mudança, não no lugar e sim no
observador, no viajante. Segundo IANNI (1990, p.19) o viajante “tanto se perde
como se encontra, ao mesmo tempo que se reafirma e modifica. No curso da
viagem há sempre alguma transfiguração, de tal modo que aquele que parte
não é nunca o mesmo que regressa.

Tanto Muidinga, quanto Kindzu vão se transformando durante suas


viagens e modificando a maneira como percebem as coisas. Tudo vai se
tornando diferente ao olhar de quem, de alguma forma, sofreu uma
transformação, uma influência no contato com o outro “A viagem pode ser uma
longa faina destinada a desenvolver o eu. [...] um eu que se move, podendo
reiterar-se e modificar-se, até mesmo desenvolvendo a sua autoconsciência;
ou aprimorando a sua astúcia. ” (IANNI, 1990, p. 14). Nada do que foi visto
ontem será olhado da mesma forma hoje, porque já não se é mais a mesma
pessoa.

Ao avistar a praia de Matimati, comprovei como são nossos olhos que


fazem o belo. Meu estado de paixão puxava um novo lustro àquela terra em
ruínas. Aquelas visões, dias antes, já tinham estado em meus olhos. Porém,
agora tudo me parecia mais cheio de cores, em assembleia de belezas.
(COUTO, 1993, p. 127)

Vidas que se modificam no contato com o outro. A construção da


identidade como parte da viagem. Isso é o que se percebe nas páginas de
Terra Sonâmbula (1993). Personagens que transitam do sonho para o
pesadelo da realidade, que choca e paralisa. Percepções que vão se
modificando, à medida que a narrativa avança. O olhar já não é mais o mesmo
porque, no caminho, algo foi modificado, não fora, mas dentro do indivíduo que
caminha. É o viajante que se modifica e não a paisagem ou o outro.

Nessa modificação do ser, percebe-se que a tradição é vista como algo


necessário para que haja uma perfeita harmonia entre o indivíduo e o meio em
que vive. É necessário que se conheça o passado para que se possa interferir
no presente. Será através da aliança entre o passado e o presente que o
indivíduo poderá construir o seu futuro, sem renegar suas tradições, sua cultura
e a sabedoria que foi armazenada em cada pequena partícula da tradição de
seu povo. Hoje, devido a globalização, a tendência que se observa é a
massificação da cultura. Globalizar, criar um mercado comum, com
consumidores que sejam fáceis de serem manipulados pela mídia. Ao mesmo
tempo, esse mecanismo, que procura uniformizar, cria separações abissais
entre os indivíduos, classificando-os em participantes ativos dessa sociedade
globalizada ou marginalizados. Estar à margem, no sentido de não ser um
consumidor em potencial, não poder fazer parte da grande ciranda de
frustrações que o mercado globalizado procura vender: “A sedução do mercado
é, simultaneamente, a grande igualadora e a grande divisora.” (BAUMAN,
1998, p. 55). Afinal, o que se vende não são sonhos, mas frustrações.

Nesse sentido, a tradição vem na contramão, mostrando ao indivíduo


que a cultura local é primordial nesse mundo globalizado. Preservar as
tradições e delas tirar proveito para seu crescimento como indivíduo e,
consequentemente, como cidadão participante de uma nação, é o que se
percebe nas entrelinhas de Terra Sonâmbula (1993). Isso não significa viver no
passado, mas conseguir unir as duas pontas que são presente e passado para
através delas construir um futuro concreto, real. Logo, Tuahir e Muidinga
aparecem aqui como partes de um mesmo círculo, são imprescindíveis um ao
outro “O ancião liga o novo ao velho, estabelecendo as pontes necessárias
para que a ordem se mantenha e os destinos se cumpram. ” (PADILHA, 1995,
p. 21). É o passado dando as mãos ao futuro. Muidinga representa a
inteligência, a esperteza, aquele que detém o conhecimento do novo, vínculo
estabelecido com a sociedade moderna do homem branco e capitalista. Tuahir
é a continuidade da tradição, representa a sabedoria acumulada através
daquela.

Nesse ponto, fica cabal a importância da oralidade nessa viagem. É ela,


a oralidade, o meio pelo qual se realiza a viagem. É através da voz de
Muidinga que se dá a história de Kindzu. Em cada linha do romance, percebe-
se que o contar é importante, conserva-se a tradição não só no conteúdo, mas
também na forma, na estrutura da narrativa. Adentra-se na história de Kindzu
em capítulos separados da realidade de Muidinga, narrativas encaixadas que
se mesclam através da voz deste. A tradição, portanto, perpassa todo o
romance, até mesmo na sua construção. Assim, percebe-se aqui a oralidade
como símbolo de preservação de uma tradição, da mesma forma que Laura
Cavalcante Padilha (1995) aponta nos missossos de Angola.

A viagem é outro elemento que está sempre presente na narrativa, tanto


na iniciação de Muidinga como nos cadernos de Kindzu. São várias viagens.
Em seus cadernos, Kindzu empreende uma viagem iniciativa, assim como
Muidinga ao lê-los. E este, juntamente com Tuahir, viaja nos escritos dos
cadernos, e nos ensinamentos de Tuahir, a fim de completar a sua viagem. No
final, ainda se tem a viagem de Tuahir para a morte, que é caracterizada de
uma forma ritualística, pois Muidinga o coloca em uma canoa para que ele seja
levado pelo mar. “A barca é o símbolo da viagem, de uma travessia realizada
seja pelos vivos, seja pelos mortos. ” (CHEVALIER, 1999, p. 121).
Poeticamente construída, essa passagem de Terra Sonâmbula (1993)
consegue transformar a morte em um momento mágico e sublime ao som do
mar e das gaivotas. Liberado desse mundo real, Tuahir agora é embalado pela
fantasia que se espalha pelas águas de um mar de sonhos.

“ As ondas vão subindo a duna e rodeiam a canoa. A voz do miúdo


quase não se escuta, abafada pelo requebrar das vagas. Tuahir está deitado,
olhando a água chegar. Agora, já o barquinho balouça. Aos poucos se vai
tornando leve como mulher ao sabor de carícia e se solta do colo da terra, já
livre, navegável. Começa então a viagem de tuahir para um mar cheio de
infinitas fantasias. Nas ondas estão escritas mil estórias, dessas de embalar as
crianças do inteiro mundo. “(COUTO, 1993, p. 235)

Atente-se que não é o mundo inteiro, mas o “inteiro mundo”. A colocação


desse adjetivo, antecedendo ao substantivo, tem nessa narrativa uma sutil
diferença, que traz um importante significado ao contexto. É um mundo que se
faz inteiro ao aliar a fantasia, o sonho, as estórias contadas, a tradição, à
realidade circundante do presente mundo globalizado. Ao fazer essa junção,
tem-se um mundo completo e não fragmentado, um “inteiro mundo”. É nas
crianças, que conseguem mesclar a fantasia e a realidade, que reside a
esperança desse mundo que se fará inteiro. Nelas é que estão os sonhos de
esperança para essa terra escalavrada pela guerra. Então, a viagem
empreendida pelos personagens de Terra Sonâmbula (1993) ultrapassa o
romance e se configura como uma viagem coletiva. Participa dessa viagem
cada leitor que se detenha em suas paragens, na busca dessa individualidade,
que se transforma na coletividade da nação.

Esse individual que se transforma em coletivo, dentro do romance, parte


de um princípio diferente do individualismo globalizante. Neste, o indivíduo se
faz único pela competitividade, pela busca da superioridade egocêntrica. Já na
viagem que se configura em Terra Sonâmbula, o indivíduo se faz único porque
percebe de maneira diferente o mundo ao seu redor, através da interiorização
dos costumes de seu povo e, ao mesmo tempo, ao fazer essa interiorização se
percebe integrado a essa comunidade, a essa nação: “A viagem é sempre
realizada por uma personagem em busca de uma situação de melhoramento
para si própria ou para o grupo” (PADILHA, 1995, p. 38).

 Estrutura que remete ao conteúdo, as viagens empreendidas por Kindzu


e Muidinga correm paralelas para no final se entrelaçarem. Muidinga percebe-
se partícipe da narrativa de Kindzu e este toma parte da história de Muidinga.
Descobrem-se unidos por um ponto comum: Farida. Muidinga, na verdade, é o
filho de Farida, Gaspar, por quem Kindzu procurava. Na narrativa que se
encontra nos cadernos, Muidinga lê a visão premonitória de Kindzu, no
momento de sua morte, na qual ele, Kindzu, se vê frente a Gaspar e grita seu
nome. Nesse momento Muidinga adentra nos cadernos, lê sobre si mesmo na
narrativa que conta. A história de Kindzu acaba por influenciar a vida de
Muidinga. É neste que foram semeadas as esperanças de continuidade de uma
tradição que se vê dilacerada. Em Muidinga se percebe a semente lançada na
terra. Seus sentimentos fazem agora parte dessa terra porque se sente unido a
ela, uma vez que vivenciou, através dos relatos de Kindzu, o encontro com as
tradições, com os mitos dessa terra de Moçambique. Percebe-se, então, que
Muidinga é a semente plantada nas “páginas de terra” de Kindzu.

“Mais adiante segue um miúdo com passo lento. Nas suas mãos estão
papéis que me parecem familiares. Me aproximo e, com sobressalto, confirmo:
são os meus cadernos. Então, com o peito sufocado, chamo: Gaspar! E o
menino estremece como se nascesse por uma segunda vez. De sua mão
tombam os cadernos. Movidas por um vento que nascia não do ar, mas do
próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por
uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos meus
escritos se vão transformando em páginas de terra.” (COUTO, 1993, p. 245)

No final dessa viagem, há o encontro do velho com o novo. A tradição


que é semeada no futuro. Nasce junto com Muidinga a esperança de um
tempo. Um tempo repleto de sonhos, de fantasias, no qual a estrada esteja viva
e dê passagem aos sonhadores, viajantes da terra. Muidinga nasce de novo ao
descobrir a sua identidade; e Moçambique precisa reafirmar sua identidade
descobrindo novamente sua cultura, suas tradições, não deixando morrer o
velho em detrimento do novo: ao contrário, fazendo com que toda uma
sabedoria do passado seja terreno fértil para receber as sementes do futuro.
Nas páginas de Terra Sonâmbula (1993), Mia Couto semeia a esperança de
um futuro, no qual Moçambique, seja a terra dos sonhos de cada
moçambicano: unidos e fortificados pela tradição, ligados à cultura global. Na
fala de Tuahir residia a existência de um conhecimento ancestral, assim como
nos cadernos de Kindzu que tem suas histórias reveladas através da fala de
Muidinga. Assim, a oralidade representa, na narrativa, o elo de ligação entre a
tradição e o moderno, pois Muidinga é partícipe da cultura letrada, mas
também da cultura que se perpetua pela oralidade. Então, é em Muidinga, que
reside a esperança de um futuro de paz e sonhos para essa terra. A criança
que une o passado e o presente, através do que lhe contam seus
antepassados e através da literatura escrita. Assim como o sonho faz viver a
estrada é o contar histórias que cria os sonhos. Mia Couto conta uma história
em que o personagem sonha, e é sonhado pelo leitor, pelo ouvinte. Tuahir e
Muidinga são ao mesmo tempo narrador e ouvinte. Muidinga é também leitor,
assim como o leitor de Mia Couto será leitor, ouvinte e sonhador dessa
narrativa. São sonhos de esperança alimentados por cada leitor, cada
sonhador que se percebe como um ouvinte das histórias contadas pelas
personagens, sente-se então a força da oralidade que perpassa a narrativa. É
dessa forma, que se percebe, na viagem por essa Terra Sonâmbula, os sonhos
de esperança que nascem dessas “páginas de terra”.

Temos todas as aná lises das obras indicadas pelos vestibulares, UFU, IMEPAC,
UNICAMP

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Letras de Hoje
Print version ISSN 0101-3335On-line version ISSN 1984-7726

Let. Hoje vol.51 no.4 Porto Alegre Oct./Dec. 2016


http://dx.doi.org/10.15448/1984-7726.2016.4.22976 

LITERATURA HIPERCONTEMPORÂNEA

Dos sonhos de Kindzu e da produção dialética de


lugares e não lugares em Terra sonâmbula, de Mia
Couto

Of Kindzu's Dreams and of Dialectical Production of Places and


Non-Places in Mia Couto's Sleepwalking Land

Jorge Alves Santana1 

1
Universidade Federal de Goiás – Goiânia – Goiás – Brasil

RESUMO:
“Naparama? Nunca eu tinha ouvido falar em gente dessa.” Com essa pergunta, o
narrador Kindzu, criado pelo escritor moçambicano Mia Couto, apresenta-nos um dos
eixos políticos e psicossociais do romance Terra sonâmbula (1992). Acompanharemos,
nesse estudo, Kindzu, perspectivado pelos simbolismos, pela razão prática e poética dos
Naparamas, dinamizando estratégias multiculturais através de suas ações e da escrita
de diários, para compreender seu lugar no complexo processo pós-colonial de
Moçambique. Através dos diários do filho de Taímo, em narrativa mise en abyme, o
velho Tuahir e o adolescente Muindiga terão elementos tradicionais e contemporâneos
para a coexistência nas espacialidades tensionadas de lugares e não lugares (AUGÉ,
2010 2012
;  ), com o objetivo de sobreviver ao corolário da guerra civil e para compreender
possíveis mecanismos de reconstrução de sua nação.

Palavras-chave: Mia Couto; Terra sonâmbula; Espacialidade; Descolonização

ABSTRACT:

“Naparama? Never have I heard of such people.” With this question, the narrator
Kindzu, created by the Mozambican writer Mia Couto, introduces us to one of the
political and psychosocial center lines of the novel Sleepwalking Land (1992). We'll
follow, in this study, Kindzu, by the prospect of symbolism, practical reason and the
poetic of Naparamas, giving dynamism to multicultural strategies through his actions
and journal writing, to understand his place in the complex Post-Colonial process in
Mozambique. Through the journals of Taímo's son, in mise en abyme narrative, the old
Tuahir and the teenager Muindiga will have traditional and contemporary elements to
coexist in tense spatiality of places and non-places (AUGÉ, 2010; 2012), with the purpose of
surviving the corollary of the civil war and understanding possible mechanisms of the
nation's reconstruction.

Keywords: Mia Couto; Sleepwalking Land; Spaciality; Decolonisation

Meu pai sofria de sonhos, saía pela noite de olhos transabertos. Como dormia fora,
nem dávamos conta. Minha mãe, manhã seguinte, é que nos convocava:

–Venham: papá teve um sonho!

(Terra sonâmbula. Mia Couto, 2007, p. 6)

– Mas na estrada não é mais perigoso, Tuahir? Não é melhor esconder no mato?

– Nada. Aqui podemos ver os passantes. Está-me a compreender?

– Você sempre sabe, Tuahir.

– Não vale a pena queixar. Culpa é sua: não é você que quer procurar seus pais?

(Terra sonâmbula. Mia Couto, 2007, p. 2)

Pensar a mobilidade é pensá-la em diversas escalas para tentar compreender as


contradições que minam nossa história.

(Por uma antropologia da mobilidade. Marc Augé, 2010, p. 99)

INTRODUÇÃO
O escritor moçambicano Mia Couto publica seu romance Terra sonâmbula no ano de
1992. Época singular que coincide com o relativo término de uma das mais
sangrentas guerras civis contemporâneas do Continente Africano.1 Tensionada
entre o projeto político afro-marxista e o neoliberal de Moçambique pós-
independência de Portugal, sendo que o primeiro assume o governo ao final da
independência oficial, a engenharia de tal romance é montada pelos destroços do
imperialismo luso-tropical. Fato que aponta para necessidades e possiblidades da
reconstrução nacional, tendo em vista a desejada democracia multipartidária.

Neste contexto de múltiplos projetos políticos, sociais e culturais, acompanharemos


essa narrativa literária no que ela nos sugere e fornece elementos para
compreendermos, mesmo que de modo relativo, os dispositivos de produção de
identidades psicossociais. Tais dispositivos estão ontologicamente dispostos em
uma espacialidade complexa, e parecem estar em transe diante das novas
responsabilidades de se pensar e ativar, na coexistência necessária, estratégias de
reconstrução e imaginação da nação. Observamos, pois, produções individuais e,
sobretudo, coletivas múltiplas e heterogêneas da sociedade moçambicana,
particularmente em suas disposições de lugares e não lugares, no período pós-
colonial.

Terra sonâmbula traz-nos dois grupos de moçambicanos neste contexto de guerra


civil: um dos grupos é constituído por um velho, Tuahir, e por um garoto, Muidinga;
o outro, por Kindzu e sua família, bem como por amigos de sua aldeia e
companheiros de vários lugares pelos quais passa em sua procura pelos lendários
guerreiros Naparamas. Essa narrativa romanesca é montada por suas linhas de
ação dramática, dispostas em doze capítulos, sendo que há uma divisão simétrica
para as duas narrativas encaixadas. Na primeira, acompanhamos Tuahir e
Muidinga, que vagam por uma estrada afundada nos destroços da guerra e
encontram diários de um moçambicano morto. Na segunda, Kindzu, o
moçambicano que escreve os diários, narrando sua vida envolta em variadas
aventuras em torno de sua vida familiar e de certa coletividade da vida
moçambicana em guerra civil. Os primeiros lerão os diários do segundo, em
dinâmica de mise em abyme, que unirá universos diversos na necessária situação
de se compreender e de se construir as espacialidades e identidades dos lugares,
dos não lugares e dos tempos pós-coloniais. Vejamos o início do romance:

Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se


arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de
tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão
sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas
pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao
chão, em resignada aprendizagem da morte. (COUTO, 2007, p. 2).

Uma estrada moçambicana é elevada à categoria de personagem de base para os


núcleos acionais desse universo diegético. Transformando-se, pois, em espaço no
qual os viventes predominantemente seriam ensinados a se resignarem à
aprendizagem da morte. Trata-se, então, uma espacialidade em guerra civil que
desconheceria os seus próprios filhos, negando lhes possibilidades de reconstrução
e de reinvenção da nação, após a independência ocorrida em 25 de junho de 1975.
No entanto, mais que um não lugar impeditivo da rememoração de memórias
coletivas e planos para o futuro, tal estrada, e outros lugares correlatos, também
possibilitarão encontros das tradições moçambicanas com crenças e valores
contemporâneos.

Estes encontros entre os diversos segmentos da coletividade nacional,


principalmente aqueles em crônica vulnerabilidade de direitos humanos, serão
também responsáveis pela necessidade de se construir novos lugares
antropológicos, nos quais os agentes sociais são chamados a se posicionarem de
modo ativo e crítico em relação a si próprios, as suas relações sociopolíticas e à
imaginação e às razões práticas para a reconstrução do país.

Intergeracionalidade e reconstrução/reinvenção da nação

Os conflitos civis vivenciados por Moçambique, principalmente no período pós-


colonial, concorrem para o desmonte pragmático dos laços intergeracionais 2 que
mantêm variadas heranças institucionais mantenedoras da estratificada cultura
nacional. Dessa forma, a diáspora populacional para fora do país e também para
dentro dele mesmo, ocasiona principalmente a desestruturação dos núcleos
familiares. Nesse quadro acompanhamos, em Terra sonâmbula, a derrocada da
família de nosso narrador homodiegético, que é o jovem Kindzu.

Quando dos ataques cruzados entre as duas bélicas forças políticas que exigem o
domínio do governo nacional, essa família fomenta a estratégia de se tornar
invisível, para preservar sua ordem social e suas próprias vidas. No entanto, tal
postura estratégica não os impedirá de sofrer as consequências da fragmentação
sociocultural na qual o país está imerso. Kindzu, uma espécie de indivíduo que
funciona como arrimo para o núcleo parental, estará impedido de localizar-se na
rede intergeracional3 capaz de preservar e disseminar os elementos da cultural
regional para planos mais macroculturais. Através de seus diários, vemos que o
rapaz, em consequência do ambiente de guerra no qual está inserto/incerto, já não
confia tanto nos valores e nas crenças ensinados pelas pessoas idosas de sua
coexistência. Também já não acredita tanto na educação recebida pela instituição
cristã, através das relações mantidas com o pastor Afonso. Tanto os velhos
feiticeiros de sua etnia, quanto a religiosidade lusitana são colocados na berlinda,
quando a terra é envolvida pelos rigores da guerra civil por tantos anos.

O núcleo acional de Tuahir e de Muindiga, no entanto, encaminha-se para o resgate


dialético dessa dinâmica intergeracional. O velho havia resgatado o garoto quase
morto de um campo de refugiados. Cura-o e o insere novamente no fluxo das vidas
possíveis. Constrói, então, como que uma nova parentalidade que, mesmo entre
dois indivíduos desconhecidos, terá a potencialidade de resgatar as estórias sociais
e culturais tanto da tradição, quanto aquelas de sua contemporaneidade nebulosa.
Vejamos como esse quadro se instaura:

Quem o recolhera fora o velho Tuahir, quando todos outros o haviam abandonado.
O menino estava já sem estado, os ranhos lhe saíam não do nariz mas de toda a
cabeça. O velho teve que lhe ensinar todos os inícios: andar, falar, pensar.
Muidinga se meninou outra vez. Esta segunda infância, porém, fora apressada pelos
ditados da sobrevivência. (COUTO, 2007, p. 2).

Dois desconhecidos, premidos pelo imperativo da sobrevivência pessoal, que


notadamente também dependem do conhecido das situações que ocorrem em suas
proximidades pessoais e por todo o país. Estórias pessoais implicam, pois, o
conhecimento das estórias familiares e, de modo mais estrutural e funcional, da
coletividade heterogênea e ampliada. O velho Tuahir será capaz de criar certo
contexto intergeracional, necessário aos encontros entre cronotopias passadas,
cronotopias do presente e, sobretudo, as do futuro. A espacialidade de tal encontro,
entre o velho e o garoto, é aquela da provisoriedade que a época possibilita: a
estrada dos movimento diaspóricos do país:

– Estou-lhe a dizer, miúdo. Vamos instalar casa aqui mesmo.


– Mas aqui? Num machimbombo (autocarro) todo incendiado?

– Você não sabe nada, miúdo. O que já está queimado não volta a arder. Muidinga
não ganha convencimento. Olha a planície, tudo parece desmaiado. Naquele
território, tão despido de brilho, ter razão é algo que já não dá vontade. Por isso ele
não insiste. Roda à volta do machimbombo. O veículo se despistara, ficara meio
atravessado na rodovia. A dianteira estava amassada de encontro a um imenso
embondeiro. Muidinga se encosta ao tronco da árvore e pergunta:

– Mas na estrada não é mais perigoso, Tuahir? Não é melhor esconder no mato? –
Nada. Aqui podemos ver os passantes. Está-me compreender?

– Você sempre sabe, Tuahir.

– Não vale a pena queixar. Culpa é sua. Não é você que quer procurar seus pais?
(COUTO, 2007, p. 2).

Percebemos como o desejo de segurança física se alia ao registro aventureiro que a


necessidade de compreensão das bases identitárias ocasiona. Os dois personagens
andarão por uma estrada, referencial temporário da opressão e da morte provável,
e usarão um ônibus, que fora atacado e estava cheio de corpos carbonizados, como
tentativa de resgate e de sobrevivência para si mesmos. Muindiga deseja conhecer
sua origem e isso ocorrerá através do encontro com os diários de Kindzu, 4 um dos
anônimos mortos em volta do ônibus destruído.

A narrativa literária instala-se, pois, em um lugar de densa provisoriedade: uma


estrada que parece não se cruzar com qualquer outra e um ônibus incendiado que
ainda apresentava, e simbolizava, os frescos sinais da morte de tantos
moçambicanos deslocados de suas casas, de suas famílias, de suas culturas. Que
vontade seria capaz de manter tais vidas em curso? Os diários encontrados
sugerem e apontam novos caminhos, como observamos:

O miúdo se levanta e escolhe entre os papéis, receando rasgar uma folha escrita.
Acaba por arrancar a capa de um dos cadernos. Para fazer fogo usa esse papel.
Depois se senta ao lado da fogueira, ajeita os cadernos e começa a ler. Balbucia
letra a letra, percorrendo o lento desenho de cada uma. Sorri com a satisfação de
uma conquista. Vai-se habituando, ganhando despacho.

– Que estás a jazer, rapaz?

– Estou a ler.

– É verdade, já esquecia. Você era capaz ler. Então leia em voz alta que é para me
dormecer.

O miúdo lê em voz alta. Seus olhos se abrem mais que a voz que, lenta e
cuidadosa, vai decifrando as letras. Ler era coisa que ele apenas agora se
recordava saber. O velho Tuhair, ignorante das letras, não lhe despertara a
faculdade da leitura. A lua parece ter sido chamada pela voz de Muidinga. A noite
toda se vai enluarando. Pratinhada, a estrada escuta a estória que desponta dos
cadernos. Quero pôr os tempos… (COUTO, 2007, p.4-5).

Muidinga, apesar de seu passado desconhecido e de sua presente recuperação


psicofísica, vai descobrindo-se ser leitor de textos escritos. É capaz de acompanhar,
pois, a escrita deixada pelo morto Kindzu. Tuahir sabe-se analfabeto e se entrega a
ouvir o exercício informativo e libertário de leitura que o garoto lhe oferece.
Conhecerão juntos as estórias vivenciadas e registradas de modo meticuloso pelo
autor de tais diários. Os tempos passados e presentes estão guardados e, de certa
forma, exigem ser colocados em interação com os vários presentes experimentados
por aqueles que ainda estão vivos. Desses passados, destaca-se a necessidade de
reflexão sobre si mesmo e sobre os meios vivenciais nos quais Kindzu vê-se
inserido.

A ação de colocar os tempos, como observamos no final da citação acima, em


realidades concretas, une de modo dialógico e dialético as duas narrativas
encaixadas. Os dois núcleos de personagens e ações se encontram, mesmo que de
modo não intencional, em contexto colaborativo para a compreensão e a
reengenharia de seu socius. Kindzu procura por outridades que lhe expliquem o
contexto bélico que o atinge, bem como a sua família e a sua coletividade
moçambicana. Porém, parece não encontrar referenciais seguros no meio dos
escombros da guerra. No entanto, coloca a si próprio como uma dessas fontes
necessárias para se conhecer e dar certa ordem aos tempos e aos lugares, como
acompanhamos:

Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as
lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me
roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos,
serei de novo uma sombra sem voz. Sou chamado de Kindzu. É o nome que se dá
às palmeiritas mindinhas, essas que se curvam junto às praias. Quem não lhes
conhece, arrependidas de terem crescido, saudosas do rente chão? Meu pai me
escolheu para esse nome, homenagem à sua única preferência: beber sura (Sura:
aguardente feita dos rebentos de palmeira), o vinho das palmeiras (COUTO, 2007, p. 6).

Uma espécie de psicogênese é colocada em curso nos diários de Kindzu. Há como


que um resgate de crenças e valores, como por exemplo, da cultura animista que
vincula os seres humanos à natureza. O seu próprio nome está vinculado a um dos
elementos fundadores de sua cultura, que é uma palmeira. Este narrador remonta
a origem de seu pai, Taímo, que outrora era produtor de uma bebida derivada do
coco de uma palmeira regional, encontrava-se inativo devido à repressão que a
polícia nacional fazia ao seu trabalho artesanal. É um homem, pois, que não pode
mais viver de seu trabalho ancestral. Diante disso, recolhe-se a uma condição de
quase inação, na qual praticamente se restringe a deambulações em seu quintal e
aos variados e instigantes sonhos que tem e que insiste em comunicar, mesmo que
de modo enviesado, a sua família.

Dos vários ecos culturais que Kindzu ainda consegue perceber de sua cultura, um
dos que moverá sua diáspora psicossocial será o das estórias dos lendários
guerreiros Naparamas. Tais guerreiros, um tanto lendários e também de
referencialidade pragmática, seria capazes de trazer a paz a certos segmentos
moçambicanos, vítimas dos conflitos colonialistas e pós-colonialistas. Quem eram
tais guerreiros, o jovem perguntava a um de seus poucos amigos, o comerciante
indiano Surendra Valá:

– Esse quem era?

– Esse é um Naparama.

Naparama? Nunca eu tinha ouvido falar em gente dessa. Surendra me explicou


vagamente. Eram guerreiros tradicionais, abençoados pelos feiticeiros, que lutavam
contra os fazedores da guerra. Nas terras do Norte eles tinham trazido a paz.
Combatiam com lanças, zagaias, arcos. Nenhum tiro lhes incomodava, eles
estavam blindados, protegidos contra balas.

– E esse o que veio aqui fazer?

– Veio pedir panos. Precisam deles para iniciar outros que se oferecem para ser
Naparamas (COUTO, 2007, p. 13).

Os guerreiros Naparamas representarão, na economia dessa narrativa, uma


possibilidade real de se conhecer, reconhecer, resgatar e difundir valores culturais
que o projeto político de uma África lusitana e suas consequências pós-coloniais
desconstruíram, de modo sistemático, através de séculos. Kindzu, mesmo com o
não consentimento de sua família, sairá à procura de tais guerreiros, tanto para
lutar ao lado deles, quanto para tentar criar o equilíbrio entre as tradições
fragmentadas e os novos valores dos complexos tempos presentes que exigem a
reinvenção da nação.5 Para tanto, há de se trilhar uma espacialidade cuja existência
encontra-se em transe. Quais lugares e não lugares estariam dispostos nessa
espacialidade sonâmbula?

Latências na tensão entre lugares e não lugares

A procura que Kindzu faz dos guerreiros Naparamas, supõe uma intricada
cartografias de lugares e de não lugares. A espacialidade de tais lugares é expressa
pela estrada que só aparentemente não levaria as pessoas a destino algum. De
início teríamos que:

A estrada que agora se abre a nossos olhos não se entrecruza com outra nenhuma.
Está mais deitada que os séculos, suportando sozinha toda a distância. Pelas
bermas apodrecem carros incendiados, restos de pilhagens. Na savana em volta,
apenas os embondeiros contemplam o mundo a desflorir. Um velho e um miúdo
vão seguindo pela estrada. Andam bambolentos como se caminhar fosse seu único
serviço desde que nasceram. Vão para lá de nenhuma parte, dando o vindo por não
ido, à espera do adiante. Fogem da guerra, dessa guerra que contaminara toda a
sua terra. Vão na ilusão de, mais além, haver um refúgio tranquilo (COUTO, 2007, p.2).

Para fugir da guerra que contamina a terra e a todos que dela são feitos e nela
estão imersos, há de se reconstituir as espacialidades da tradição. Nesse ponto,
lembramo-nos do velho Taímo, que aconselha ao filho que ele não deixe a casa de
sua família. Mas que lugar familiar é esse? Na casa de Kindzu, as possibilidades de
vivenciar os espaços dados estão em crise. O pai já não dorme mais dentro de
casa, por exemplo. Dorme do lado de fora da casa, pois não se sente confortável no
simulacro de um lar que reflete intimamente as consequências do estado de guerra
civil. Em certa altura dos acontecimentos, o irmão Junhito (nome dado ao menino
em homenagem à data da Independência de Moçambique: 25 de junho de 1975),
que em uma estratégia alegórica dessa narrativa, é disfarçado de galo e colocado
no galinheiro da casa, para safar-se de uma possível morte ocasionada pelas forças
nacionais de repressão policial. Sendo que tal morte fora sonhada pelo seu pai.
Soma-se a isso, o espaço inessencial representado pela canoa mortuária em que o
velho pai é depositado, ao fim da desestruturação intensa na qual o espaço familiar
é lançado.

Esse lugar familiar, transformado em não lugar pela guerra, é disposto em uma
estrutura maior que a viagem de formação de Kindzu proporciona. Acompanhamos
o rapaz chegar à comunidade de Matimati, na qual interagirá com variados
segmentos humanos que representam a heterogeneidade social de Moçambique. Aí,
também o vemos relacionar-se com a personagem Farida, outra singular
subjetividade diaspórica do romance, envolvida com a ambiência marítima em sua
relação com uma ilha e um farol, e na constante busca de seu filho desaparecido.
Sendo que esse último elemento dará certa tônica de suspense ao enredo, no
sentido de que a personagem Farida também estará diretamente envolvida na
narrativa de Tuahir e Muidinga.

Temos, ainda nessa cartografia múltipla, mesmo que em movimentos narrativos


analépticos, a casa do casal de portugueses, os campos de refugiados e a constante
estrada, na qual se queimam ônibus e pessoas em procura de refúgios; sem no
entanto, se queimar diários que funcionam como elos cronotópicos entre as duas
realidades. A realidade de tal estrada, porém, é redimensionada de não lugar,
espacialidade na qual seria relativamente difíceis os enraizamentos
antropológicos,6 a lugares, nos quais as estórias pessoais e coletivas tomam corpo,
mesmo que provisoriamente, para que as resistências sejam produzidas e sejam
criadas novas condições de coexistência pacífica. Quase ao final da narrativa, em
um dos capítulos pertinentes aos diários de Kindzu, acompanhamos o que se pensa
sobre essa estrada transformada em lugar de convivência e, paradoxalmente, de
resistência:

– Por isso eu digo: não é o destino que conta mas o caminho. Que ele falava de
uma viagem cujo único destino era o desejo de partir novamente. Essa viagem,
porém, teria que seguir o respeito de seu conselho: eu deveria ir pelo mar,
caminhar no último lábio da terra, onde a água faz sede e a areia não guarda
nenhuma pegada. Eu que levasse o amuleto dos viajeiros e o guardasse em velha
casca do fruto ncuácu. E procurasse os confins onde os homens não amealham
nenhuma lembrança. Para me livrar de ser seguido por meu pai eu não podia
deixar sinais do meu percurso. Minha passagem se faria igual aos pássaros
atravessando os poentes (COUTO, 2007, p. 162).

O protagonista lembra-se de um ensinamento recorrente feito por sua mãe: o de


que há de ser invisível nos lugares tomados pela violência da guerra. No entanto,
mesmo quando se tem a estrada como marcações de ações supostamente não
comprometidas com os lugares antropológicos e históricos, tal protagonista o
registra de modo a reterritorializar as tradições culturais dos povos e espaços com
os quais cruza em sua procura. A busca do espaço no qual os homens se
silenciariam sobre seus tempos presentes também é, pois, contaminada pelos
lugares que exigem que os homens se mostrem posicionados de modo firme diante
desses mesmos lugares e tempos.

A narrativa, assim, tensiona o diálogo entre as temporalidades capazes de se dirigir


não para o silêncio, mas para os chamados de uma terra desejosa de reconstrução,
mesmo com sua aparente inoperância quanto a esses projetos libertários. Apesar
da condição de sonâmbula desta terra, os variados e heterogêneos registros
pessoais e coletivos insertos nos diários, bem como a realização pragmática e
dialógica de sua leitura, exigem e proporcionam novos horizontes, como
observamos:

À volta do machimbombo Muidinga quase já não reconhece nada. A paisagem


prossegue suas infatigáveis mudanças. Será que a terra, ela sozinha, deambula em
errâncias? De uma coisa Muidinga está certo: não é o arruinado autocarro que se
desloca. Outra certeza ele tem: nem sempre a estrada se movimenta. Apenas de
cada vez que ele lê os cadernos. (COUTO, 2007, p. 58).

Tal enfrentamento, sistemático ou assistemático, às condições adversas vivenciadas


pelos personagens desse romance, não lhes tiram, no entanto, as vontades de
evasão para espacialidades utópicas. Nas duas narrativas, observamos esse
movimento de tentativa de afastamento da terra. Deseja-se ir, por exemplo, para o
elemento aquático que envolve grande parte da fronteira oceânica de Moçambique.
Tal elemento, além do seu caráter simbólico de imersão no além-África, talvez até
procure compactuar-se com a proposta político-cultural de certo pan-africanismo.
Ou, então, representa/ expressa a concretização daquele silêncio cautelar e
protetivo frente mecanismos autoritários de forças bélicas em plena operação de
destruição. Tanto na narrativa de Tuahir, quando esse velho formador e cuidador
morre, quanto na narrativa de Kindzu, temos tal movimentação aparentemente de
evasão. Na primeira:

As ondas vão subindo a duna e rodeiam a canoa. A voz do miúdo quase não se
escuta, abafada pelo requebrar das vagas. Tuahir está deitado, olhando a água a
chegar. Agora, já o barquinho balouça. Aos poucos se vai tornando leve como
mulher ao sabor de carícia e se solta do colo da terra, já livre, navegável. Começa
então a viagem de Tuahir para um mar cheio de infinitas fantasias. Nas ondas estão
escritas mil estórias, dessas de embalar as crianças do inteiro mundo. (COUTO, 2007,
p.115).

Na segunda:

O que queria mesmo era ir mar adentro, como Assma, empurrado num barquinho
sem destino. Ou fazer como minha mãe me ensinou: ser a mais delicada sombra. É
isso que desejo: me apagar, perder voz, desexistir. Ainda bem que escrevi, passo
por passo, esta minha viagem. Assim escritas estas lembranças ficam presas no
papel, bem longe de mim. Este é o último caderno. Depois, arrumo tudo na mala
que me deu Surendra. No final, Surendra é o único de quem eu aceito companhia.
O indiano mais sua nação sonhada: o oceano sem nenhum fim. (COUTO, 2007, p. 117).

Mesmo com as latências dos simbólicos lugares aquáticos, presentes nas últimas
esperanças dos personagens, eles só são assumidos quando a finitude física de fato
ocorre. Os corpos mortos são neles lançados, talvez confirmando crenças místicas
de que suas almas andarão a procura de metafísicos portos seguros. No entanto,
essa metafísica da consolação não é a tônica do romance. Nele, os lugares e não
lugares7 formam os palcos reais, nos quais tais personagens são instigadas a
assumir seus papéis de agentes sociais, montando seus enredos com certo
conhecimento, mesmo que ainda de modo irregular e provisório, de seus contextos
vivenciais.

Se o lugar real dos guerreiros Naparamas, aqueles que derrotariam os senhores da


guerra, não é encontrado de modo referencial, nossos protagonistas se encontrarão
na necessidade da construção premente de tal lugar desejado. A escrita e as
tradições orais das culturas moçambicanas, mesmo que fortemente silenciadas,
formarão os dispositivos para a construção/invenção de tais lugares, evitando
assim a tensão solitária comumente produzida pelos não lugares.

O último sonho de Kindzu

O pensador e ativista Frantz Fanon, em elucidativo e ainda pertinente estudo sobre


os processos de colonização e de pós-colonização, reflete, entre tantas outras
temáticas de cunho político-cultural, sobre as características que envolvem o
belicismo da vida dos sujeitos em processo de libertação nacional. Particularmente
sobre as ambiências e possibilidades do processo de descolonização, temos que:

A descolonização, que se propõe mudar a ordem do mundo, é, está visto, um


programa de desordem absoluta. Mas não pode ser o resultado de uma operação
mágica, de um abalo natural ou de um acordo amigável. A descolonização,
sabemo-lo, é um processo histórico, isto é, não pode ser compreendida, não
encontra a sua inteligibilidade, não se torna transparente para si mesma senão na
exata medida em que se faz discernível o movimento historicizante que lhe dá
forma e conteúdo. A descolonização é o encontro de duas forças congenitamente
antagônicas que extraem sua originalidade precisamente dessa espécie de
substantificação que segrega e alimenta a situação colonial. Sua primeira
confrontação se desenrolou sob o signo da violência, e sua coabitação – ou melhor,
a exploração do colonizado pelo colono – foi levada a cabo com grande reforço de
baionetas e canhões. O colono e o colonizado são ve1hos conhecidos. E, de fato, o
colono tem razão quando diz que ‘os’ conhecelo. O colono que fez e continua a
fazer o colonizado. O colono tira a sua verdade, isto é, os seus bens, do sistema
colonial.

A descolonização jamais passa despercebida porque atinge o ser, modifica


fundamentalmente o ser, transforma espectadores sobrecarregados de
inessencialidade em atores privilegiados, colhidos de modo quase grandioso pela
roda viva da história. Introduz no ser um ritmo próprio, transmitido por homens
novos, uma nova linguagem, uma nova humanidade. A descolonização é, em
verdade, criação de homens novos. (FANON, 1979, p. 26).

A citação de Fanon nos é útil para destacamos o contexto no qual, ele nos aponta
que “A descolonização, sabemo-lo, é um processo histórico complexo e de longa
duração, isto é, não pode ser compreendida, não encontra a sua inteligibilidade”. O
processo político e cultural não é tão perceptível em si mesmo. A transparência do
processo de descolonização exige, pois, maior atenção e perspectivações múltiplas
e heterogêneas dos colonizados. Tais sujeitos são colocados na posição de agentes
sociais que resgatam, desconstroem e reconstroem as estruturas e funcionalidades
de seu socius em sistemática. E nessa ação necessária “espectadores
sobrecarregados de inessencialidade devem ser transformados atores privilegiados,
colhidos de modo quase grandioso pela roda viva da história”.

Vimos acima como nossos protagonistas são chamados constantemente pelo


elemento aquático, que perfaz a geopolítica da costa oceânica de Moçambique. Essa
realidade mítica, mística e social talvez lhes possibilitem certo lenitivo quanto aos
horrores da guerra e as condições de refugiados internos. Tais horrores foram e
ainda são bem concretos no país, tais como: destruição de plantações nas zonas
rurais, de estradas e de vários outros lugares repletos de minas com alto poder
destrutivo, de pontes detonadas, de populações inteiras colocadas em condição de
refugiados crônicos, de economias locais monitoradas e cerceadas em sua
produtividade e distribuição de renda, entre tantos outros horrores. Ou seja, sob
domínio de políticas públicas de viés esquerdistas ou neoliberais, o povo
moçambicano, representado esteticamente no romance de Mia Couto que aqui
estudamos, olha também desejoso para espacialidades utópicas, como que a
procura de refrigério vital para a manutenção de sua vida e de sua rede
coexistencial.

Evasão da espacialidade infernal. Pulsão básica da vida diante outra pulsão básica
que nos dirige para a morte, como promessa de equilibração psicossocial. Para
preservar o frágil equilíbrio individual e coletivo é que os pais de Kindzu o exortam
a continuar no território da casa familiar, mesmo que essa casa já se trate de um
lugar inclementemente hibridizado pelas potências dos não lugares antropológicos.

Quando o rapaz decide tornar-se um Naparama, recusa, pois, os conselhos da


tradição cautelar e protetiva, lançando-se no enfrentamentos dos espaços e dos
tempos distópicos. No caminho, é perseguido por sonhos e age como um homem
sonâmbulo, em consonância com a terra também sonâmbula. De seus vários
sonhos, vão surgindo contextos de derrota ou de acomodação ao caos. O pai Taímo
é reconstruído em tais sonhos, como aquele que amaldiçoa o filho que o
desobedeceu e partiu, deixando a casa-raiz abandonada. Através desse sonho
primeiro, o da suposta maldição paterna criada por Kindzu, grande parte de sua
caminhada será envolta por desconfianças e falta de esperança nas relações
humanas diante da necessidade de se criar meios para neutralizar a guerra civil e
suas consequências.

Taímo, no entanto, não amaldiçoara o filho. Ao contrário, apesar de seus desvarios


proféticos e conselhos para a sobrevivência da família e de sua coletividade, o pai
acabava por instigar o filho a procurar seu lugar no mundo e a compreender como
sua condição humana era produzida no entrelugar da tradição e dos novos valores,
crenças e comportamentos da contemporaneidade imersa nos processos de
descolonização político-cultural.

Essa ambiguidade formacional, que envolve nosso protagonista, pode ser


acompanhada no último sonho do rapaz, já em densa peregrinação pela terra
sonâmbula da guerra civil. Já bem perto de sua morte, observamos que Kindzu tem
um longo sonho, no qual o feiticeiro de sua aldeia dirige uma longa fala ao seu
povo. Essa fala inicialmente é envolta por um forte tom escatológico, no sentido de
que o fim dos tempos está próximo e nada salvará aquela comunidade das
selvagerias dos conflitos civis pós-coloniais. Vejamos tal registro onírico:

O feiticeiro subiu a um morro de muchém e contemplou a planície. Ajeitou o chapéu


feito de penas e enroscou melhor a sarapilheira como se aquele calor lhe esfriasse
os ossos. Então, levantando o seu cajado sentenciou: – Que morram as estradas,
se apaguem os caminhos e desabem as pontes!8 Depois, começou o discurso,
desfiando palavras lentas, rasgando a voz de encontro ao vento: – Chorais pelos
dias de hoje? Pois saibam que os dias que virão serão ainda piores. Foi por isso que
fizeram esta guerra, para envenenar o ventre do tempo, para que o presente
parisse monstros no lugar da esperança. Não mais procureis vossos familiares que
saíram para outras terras em busca da paz. Mesmo que os reencontreis eles não
vos reconhecerão. Vós vos convertêsseis em bichos, sem família, sem nação (COUTO,
2007
, p. 118).

O feiticeiro, como depositário da sabedoria de grande parte da comunidade, alerta


o seu povo para a falta de futuro que o aguarda. Seu ceticismo é baseado nas
transformações dos seres humanos em animais, como aconteceram com Junhito, o
irmão de Kindzu. Sua exortação ressalta o fracasso das tentativas de busca por
familiares, por outras terras, pelo auxílio das tradições cautelares. Para ele, todos
estão fatalmente convertidos em bichos, sem família e sem nação.

A distopia inclemente, dessa forma, avançaria pelos campos dos projetos feitos
pela razão prática da reconstrução do homem moçambicano e de seus lugares
antropológicos, construídos por seus desejos e interesses próprios.

O longo sonho final, entretanto, não termina no ponto da esperança perdida. Ao


contrário, continua e tem seu registro deslocado. O feiticeiro, como que ressurgido
das cinzas da descrença, aponta futuros possíveis, nos quais a população terá
condições de sair da zoomorfização imposta de modo autoritário. No libertário
deslocamento identitário e político, sua fala explicita e autoriza que:

No final, porém, restará uma manhã como esta, cheia de luz nova e se escutar uma
voz longínqua como se fosse uma memória de antes de sermos gente. E surgirão
os doces acordes de uma canção, o terno embalo da primeira mãe. Esse canto, sim,
ser nosso, a lembrança de uma raiz profunda que não juram capazes de nos
arrancar. Essa voz nos dar a força de um novo princípio e, ao escutá-la, os
cadáveres sossegarão nas covas e os sobreviventes abraçarão a vida com o
ingénuo entusiasmo dos namorados. Tudo isso se fará se formos capazes de nos
despirmos deste tempo que nos fez animais. Aceitemos morrer como gente que já
não somos. Deixai que morra o animal em que esta guerra nos converteu (COUTO, 2007,
p. 118-119).

Os doces acordes de uma canção, os embalos maternos, os registros das várias


linguagens haverão de ter enraizamentos profundos e aplacarão as almas dos
mortos. A condição para isso é a luta contra a animalização imposta pelos senhores
da guerra, sejam eles de que frente política forem. Tal luta, nesse último sonho, é
alegorizada pela transformação do irmão de Kindzu, de galo para ser humano
novamente. Lembremo-nos de que Junhito fora disfarçado/transformado em galo
pelo pai, com a finalidade de ter, mesmo que em vão, sua vida preservada. Com o
irmão retornando à condição humana, várias pessoas do espaço onírico do
protagonista também passam por tal mudança.

O fenômeno alegórico da volta à condição humana também atinge o velho Tuahir e


o garoto Muidinga. De pessoas imersas na invisibilidades dos processos políticos e
culturais e sua sociedade em crise, passam a agentes sociais capazes de alterar a
ordem de seu socius. A narrativa ainda nos revela o segredo sobre a identidade
familiar do garoto; no que não há muita importância para a economia narrativa. O
mais importante aí, para nosso contexto analítico, parece ser o deslocamento
estrutural da instituição que é a família, para a instituição maior, que é a
coletividade heterogênea moçambicana, na qual o garoto é lançado, através da
leitura que faz dos diários de Kindzu.

Nesse ponto final de nossa análise, voltamos às reflexões de Frantz Fanon sobre a
condição do negro, em suas tentativas de desalienação diante contextos de crítica
repressão estruturada tanto por condições etnorraciais e políticas:

O preto não é. Não mais do que o branco. Todos os dois têm de se afastar das
vozes desumanas de seus ancestrais respectivos, a fim de que nasça uma autêntica
comunicação. Antes de se engajar na voz positiva, há a ser realizada uma tentativa
de desalienação em prol da liberdade. Um homem, no início de sua existência, é
sempre congestionado, envolvido pela contingência. A infelicidade do homem é ter
sido criança. É através de uma tentativa de retomada de si e de despojamento, é
pela tensão permanente de sua liberdade que os homens podem criar as condições
de existência ideais em um mundo humano. Superioridade? Inferioridade? Por que
simplesmente não tentar sensibilizar o outro, sentir o outro, revelar-me outro? Não
conquistei minha liberdade justamente para edificar o mundo do Ti? […] Minha
última prece: Ô meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona! (FANON,
2008
, p. 191).

CONCLUSÃO

Terra solâmbula, romance incluso em várias listas dos melhores livros africanos do
Século XX, traça-nos um panorama vigoroso e dialógico da sociedade
moçambicana, em seu período pós-colonial. Nele, acompanhamos os protagonistas,
Kindzu, Tuahir e Muindiga/Gaspar em dinâmica de composição subjetiva inclusiva e
espelhada. Esta dinâmica supõe estratégias de sobrevivência psicossocial no
período da guerra civil que dizimará grande parte da população local.

Os núcleos acionais são movimentados pelas constantes negociações multiculturais


entre saberes tradicionais e inovações culturais dos tempos presentes. Entre lendas
e folclores, os personagens se deslocarão para campos de resistência, nos quais a
escrita/leitura assume seu papel educativo e dinamizador de ações críticas e ativas
no contexto intergeracional, capacitando os agentes sociais a reconstruir/imaginar a
nação que se deseja e que se pode ter.

Quanto à questão da formação de uma nova comunidade, que necessariamente


atravessa os produtos culturais também vistos como produtos educativos, voltamos
aqui, a Marc Augé. Este pensador, que também é reconhecido por suas vivências
nos espaços africanos contemporâneos, reflete sobre a necessidade de uma
mobilidade humana mais construtiva de espaços revolucionários em nossa época de
regionalismos e globalizações em tensos diálogos. Para ele:

A educação deve inicialmente ensinar a todos a mudar o tempo para sair do eterno
presente fixado pelas imagens em círculo, e fazer mudar o espaço, isto é, a mudar
no espaço, a sempre ir ver mais de perto e a não se nutrir exclusivamente de
imagens e mensagens. É preciso aprender a sair de si, a sair de seu entorno, a
compreender que é a exigência do universal que relativiza as culturas e não o
inverso. (AUGÉ, 2010, p. 109).

Ir mais perto dos variados fatos das realidades multidimensionais nas quais
estamos imersos. Deslocarmo-nos de nossos entornos para compreendermos os
movimentos multiculturais que nos conformam como agentes sociais capazes de
co-autoriarmos nossos destinos. Essas são das camadas semânticas também
responsáveis pela engenharia da diáspora psicossocial e das
reconstruções/imaginações de Kindzu, que afetam diretamente os demais
personagens da narrativa.

Se de início há o desejo da evasão de não lugares para lugares historicamente


reconhecidos, do silêncio e da invisibilidade cautelar perante as desgraças da
guerra, em seguida há a assumência dos lugares da resistência, demonstrada pela
escrita dos diários. Pelos diários, volta-se à terra sonâmbula. Há, também, como
que um despertar dessa terra que destruída e sonâmbula, nunca parara de se
movimentar em transformações variadas que incluem historicamente as
possibilidades de a humanidade também ressignificá-la, como ocorre nas ações e
reações finais de Kindzu:

Me apetece deitar, me anichar na terra morna. Deixo cair ali a mala onde trago os
cadernos. Uma voz interior me pede para que não pare. É a voz de meu pai que me
dá força. Venço o torpor e prossigo ao longo da estrada. Mais adiante segue um
miúdo com passo lento. Nas suas mãos estão papéis que me parecem familiares.
Me aproximo e, com sobressalto, confirmo: são os meus cadernos. Então, com o
peito sufocado, chamo: Gaspar! E o menino estremece como se nascesse por uma
segunda vez. De sua mão tombam os cadernos. Movidas por um vento que nascia
não do ar mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as
letras, uma por uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos
meus escritos se vão transformando em páginas de terra. (COUTO, 2007, p. 119-120).

1
Do ponto de vista estatístico e também qualitativo sobre a independência e a
guerra civil de Moçambique, fomos influenciados pelos estudos de João Paulo
Borges Coelho (jun. 2016), da Universidade Eduardo Mondlane, das mais
reconhecidas do país. Para perspectivamos as questões através de estudos de
africanistas, acompanhamos, mesmo que de modo indireto, Alice Dinerman (2006).
Seguimos também a homepage oficial do governo moçambicano (jun. 2016), com a
finalidade de compreendermos como algumas questões aqui abordadas se
encontram atualmente.
2
As relações multiculturais e intergeracionais são uma constante na literatura de
Mia Couto. Exemplo disso é o conto Nas águas do Tempo, do livro Terra
Abensonhada (2009), no qual seguimos um avô educando seu neto sobre uma
figura lendária da tradição do lugar, que é o Namwetxo Moha: um ente que surgia à
noite, feito só de metades: um olho, uma perna, um braço. Essa alegoria particular
do Namwetxo apontaria para a necessária dinâmica de inclusão, mesmo que de
elementos diferentes e contraditórios, que produz seres e fenômenos. Para
acompanhar outros tantos levantamentos culturais feitos por Mia Couto, queira ver
a home-page oficial do autor (07 jun. 2016), que é prolífica e militante no propósito
de divulgar tais materiais moçambicanos e dos demais países africanos para a
aldeia global.

3
Por geração, seguimos os estudos do sociólogo húngaro Karl Mannheim (1982), que
compreende essa realidade tal qual um fundante dispositivo de formação social,
disposto no tempo e no espaço, envolvendo indivíduos de faixa etária diferenciada.
Tal dispositivo pode ser medido por aspectos de temporalidade quantitativa; ou
seja, pelo conjunto de pessoas que vive em certa medida temporal e que possuem
ainda a semelhança de compartilharem de situações socioculturais semelhantes.
Disso, surge uma espécie de enteléquia, o que seria o espírito da época, que
homogeneizaria o leque de ações e compreensão de ações que se pode ter em
comum. Os estudos de Karl Mannheim também recolocam o conceito de geração
nos moldes de um fato social inserido nas variáveis temporais, sociais, psicológicas,
culturais e outras. Dessa forma, o que seria a clássica unidade geracional é vista
sob variáveis formações discursivas que constrói um fenômeno ontologicamente
heterogêneo. Baseados nesses estudos é que discutimos aqui o dispositivo social da
geração e das relações intergeracionais.

4
O diários de Kindzu, escritos através da focalização homodiegética autotélica, dão
o tom da voz relativamente própria deste protagonista. Ou seja, um jovem negro
moçambicano dominando a escrita oficial e representando o mundo no qual se
insere, de acordo com sua formação psicossocial. Sobre tal estratégia
composicional, a de dar voz a uma personagem marginalizada, efetivada por Mia
Couto, lembramo-nos de Gayatri C. Spivak (2008; 2010) que nos alerta para a necessidade de
o intelectual/artista esforçar-se por permitir que o subalterno fale por conta de seu
próprio estrato sociocultural. Para ela, é comum defendermos uma causa política de
um povo vulnerabilizado, considerando-o como coletividade homogênea. Que
devemos nos preocupar, Spivak ainda insiste, em deixar o povo subjugado ter
condições de construir e consolidar sua própria capacidade de fala. Assim, a
codificação de identidades heterogêneas, mesmo que através de estratégias do uso
de certos essencialismos, seria uma necessidade para se tensionar os vários
interesses presentes em contextos pós-coloniais, no que diz respeito à autonomia e
independência dos agentes sociais envolvidos no processo.

5
No que diz respeito à invenção/reinvenção e imaginação da nação/ nacionalidade,
embasamo-nos em Benedict Anderson (1989; 2008). Este pensador desnaturaliza o que de fato
é a construção diacrônica do fenômeno nação/nacionalidade, em sua moldura
sociopolítica. Anderson nos ensina que: “Afirmei, fundamentalmente, que a
possibilidade mesma de se imaginar a nação só surgiu historicamente quando, e
onde, três conceitos culturais básicos, todos extremamente antigos, deixaram de
ter domínio axiomático sobre o pensamento dos homens. O primeiro deles era a
ideia de que uma determinada língua escrita oferecia acesso privilegiado à verdade
ontológica, precisamente por ser parcela inseparável daquela verdade. […] O
segundo era a crença de que a sociedade era organizada de maneira natural em
torno de e sob centros elevados — monarcas que eram pessoas distintas dos outros
seres humanos e que governavam por alguma forma de disposição cosmológica
(divina). […] Em terceiro lugar, a concepção de temporalidade, em que a
cosmologia e a história não se distinguiam, sendo essencialmente idênticas as
origens do mundo e dos homens.” (ANDERSON, 2008, p. 45).

6
Estes enraizamentos antropológicos dizem respeito ao conceito de lugar
antropológico, refletido por Marc Augé, quando o autor nos ensina que:
“Reservamos o termo ‘lugar antropológico’ àquela construção concreta e simbólica
do espaço que não poderia dar conta, somente por ela, das vicissitudes e
contradições da vida social, mas à qual se referem todos aqueles a quem ela
designa um lugar, por mais humilde e modesto que seja. […] Esses lugares têm
pelo menos três características comuns. Eles se pretendem (pretendem-nos)
identitários, relacionais e históricos. O projeto da casa, as regras de residência, os
guardiões da aldeia, os altares, as praças públicas, o recorte das terras
correspondem para cada um a um conjunto de possibilidades, prescrições e
proibições cujo conteúdo é, ao mesmo tempo, espacial e social. Nascer é nascer
num lugar, ser designado à residência.” (AUGÉ, 2012, p. 51-52).

7
Por serem importantes para o desenvolvimento de nosso estudo, convém
explicitarmos que os conceitos de lugar e de não lugar são desenvolvidos por Marc
Augé, como começamos a desenvolver anteriormente. O autor reflete sobre os dois
conceitos vinculados à ideia da sobremodernidade (surmodernité); ou seja, o que é
nossa época contemporânea, composta por excessos temporais, espaciais e
identitários. Assim, as espacialidades estariam dispostas em lugares e não lugares,
sendo que o espaços possíveis são produzidos pelas relações sociais históricas. Para
o autor, não lugar diz respeito a “um espaço empiricamente identificável (um
aeroporto, um hipermercado ou um monitor de televisão), mas como o espaço
criado pelo olhar que o toma como objeto, podemos admitir que o não lugar de uns
(por exemplo, os passageiros em trânsito num aeroporto) seja o lugar de outros
(por exemplo, os que trabalham nesse aeroporto).” (AUGÉ, 2012, p. 116). Enquanto que
para um lugar, teríamos que: “Se um lugar pode se definir como identitário,
relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário,
nem como relacional, nem como histórico definirá um não-lugar. A hipótese aqui
defendida é a de que a sobremodernidade é produtora de não-lugares, isto é, de
espaços que não são em si lugares antropológicos e que, contrariamente à
modernidade baudelairiana, não integram os lugares antigos: estes, repertoriados,
classificados e promovidos a ‘lugares de memória’, ocupam aí um lugar circunscrito
e específico. (AUGÉ, 2012, p. 73). Os dois tipos de espaços podem ser intercambiáveis
ou hibridizados, o que não lhes confere, pois, essencialidade ontológica excludente.
Aqui, enfatizamos o que seriam os não lugares cotidianos, a estrada e os campos
de refugiados, bem como as consequências que esses dois lugares produzem nas
trajetórias dos personagens, em condição diaspórica em seu próprio país. Tais não
lugares são evidenciados como lugares antropológicos temporários, nos quais se
produzem/imaginam narrativas pessoais e coletivas, alicerces para a nova nação,
com seus lugares construídos de modo coletivo.

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“– Que morram as estradas, se apaguem os caminhos e desabem as pontes!”
Sobre tal passagem, vale aqui lembrar que essa fala nos remete quase a um slogan
de guerra de certa frente política moçambicana. Tal frente objetivava atacar as
estruturas sociais de produção do primeiro governo do período pós-independência.
A hipótese, aqui, é a de que Mia Couto tenta apresentar os dois projetos políticos
para Moçambique pós-independência – o socialista inicial e o neoliberal que tentam
manter diálogos ainda contemporaneamente. Tal representação tende a ser
dialética no sentido de que a paz no país seria atingida quando tais forças políticas
conseguissem produzir um governo inclusivo, expresso talvez por plataformas
políticas multipartidárias, como relativamente vem acontecendo no país.
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Recebido: 15 de Abril de 2016; Aceito: 02 de Julho de 2016

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