A Escola e A Cidadania Apontamentos Incómodos
A Escola e A Cidadania Apontamentos Incómodos
A Escola e A Cidadania Apontamentos Incómodos
APONTAMENTOS INCMODOS
Antnio Nvoa
Universidade de Lisboa
Este texto retoma as ideias principais apresentadas, sem grande elaborao, durante a mesa-redonda que
teve lugar no Congresso da Cidadania. Ele conserva as marcas da oralidade, no pretendendo ser mais do
que um contributo imperfeito para uma reflexo que julgo necessria.
se, intencionalmente, num registo polmico e, at, provocador. Mas parece-me que
chegou o momento de nos despirmos das carapaas, abrindo-nos com frontalidade a um
debate necessrio sobre o papel da escola nas sociedades do sculo XXI.
Sobre este conceito, ver Antnio Nvoa, Evidentemente Histrias da educao, Porto, Edies ASA,
2005.
3
A verso integral da carta pode ser consultada no stio s.huet.free.fr/paideia/paidogonos/jferry3.htm
Portugal foi um dos primeiros pases a decretar a obrigatoriedade escolar, atravs de sucessivos
documentos legislativos publicados por Rodrigo da Fonseca Magalhes (1835), Passos Manuel (1836) e
Costa Cabral (1844). Mas, como sabido, foi um dos ltimos pases europeus a concretizar este desgnio.
5
Pierre Bourdieu, Esprits dtat - Gense et structure du champ bureaucratique, Actes de la Recherche
en Sciences Sociales, n 96-97, 1993, p. 54.
6
Pierre Bourdieu, Raisons pratiques - Sur la thorie de laction. Paris, ditions du Seuil, 1994, p. 115.
para cumprirem como cidados de corpo inteiro a misso de defesa da ptria. Na fase
final da Monarquia criam-se os batalhes escolares: as fotografias da poca mostram as
crianas, perfiladas, nos recreios das escolas, com espingardas (de madeira) ao ombro.
A Repblica trouxe-nos essa novidade curricular que dava pelo nome de instruo
militar preparatria. O Estado Novo inventou a Mocidade Portuguesa e as suas paradas
fazem parte do imaginrio do regime. Mas outros exemplos se poderiam colher, do lado
da moral, laica ou religiosa, para ilustrar esse desejo de uma educao totalizante.
No espanta, por isso, o sucesso do conceito de educao integral, sem dvida aquele
que melhor traduz o projecto da modernidade escolar. Ao marcar o desejo de alargar o
esforo educativo ao conjunto das actividades do indivduo em formao, ele revela a
desmedida da ambio pedaggica. Num primeiro momento, a referncia educao
integral consagra a necessidade de articular a educao fsica, intelectual e moral. Na
viragem do sculo XIX para o sculo XX, este movimento adquire uma segunda
dimenso, racional, que tem por fim criar em cada criana, no um ser mutilado, mas
um indivduo socialmente completo, conhecedor de todos os seus direitos, tendo uma
conscincia social integral 7. Nesta mesma poca, insiste-se cada vez mais na ateno
vida fsica e vida psquica, ao bem-estar material e ao equilbrio afectivo dos alunos.
Estamos perante uma terceira acepo do princpio da educao integral, que legitima a
interveno, no espao educativo, de um exrcito de especialistas da alma
(higienistas, mdicos, psiclogos). Apesar de distintas, estas perspectivas fazem parte
de uma mesma atitude pedaggica que procura assegurar a socializao plena e o
desenvolvimento total dos alunos.
Em Portugal, o autor que melhor traduz esta amlgama de discursos, que junta as
ambies reformadoras do sculo XIX com o programa do Movimento da Educao
Nova 8, o pedagogista Antnio Srgio. A sua Educao cvica, colectnea de artigos
vrios escritos em 1914, durante a sua estadia no Instituto Jean-Jacques Rousseau 9,
sintetiza crenas que, de uma ou de outra maneira, marcam o sculo XX:
[O civismo] no uma cincia terica, mas uma arte de aco, uma arte
prtica; to disparatado se me antolha o querer incuti-lo s com livros,
apotegmas, preleces, como ensinar por esse modo o jogo do pau, a
dactilografia ou a guitarra; a educao cvica meramente terica parece um
ensino de esgrima em que se no empunhasse uma arma, ou uma aprendizagem
de piano em que os dedos se no mexessem: um absurdo 10.
Adolfo Lima, Educao e ensino Educao integral, Lisboa, Guimares & C Editores, 1914.
A Liga Internacional Pr-Educao Nova foi formalmente criada no Congresso de Calais, em 1921. Mas
as ideias centrais da Educao Nova organizam-se na transio do sculo XIX para o sculo XX,
designadamente aps a criao, em 1899, do Bureau International des coles Nouvelles.
9
O Instituto Jean-Jacques Rousseau, em Genve, foi durante este tempo o verdadeiro epicentro da
Educao Nova.
10
Antnio Srgio, Educao cvica, Lisboa, Livraria S da Costa, 1984, pp. 41-42 [a primeira edio, em
livro, data de 1915].
8
16
O trabalho Six scenarios for the future of the school, preparado pelo CERI/OCDE, sob a coordenao
de David Istance, foi apresentado durante a 50 sesso do Conselho do Bureau International dducation
(Genve, 2003).
17
Ver Pierre Luisoni, David Istance & Walo Hutmacher, Lcole de demain : quel avenir pour nos
coles ?, Perspectives, vol. XXXIV, n 2, 2004, pp. 27-43 ; Bureau international dducation, Scnarios
pour lducation du XXIe sicle : rsum dun dialogue inachev et interrogations quant sa continuit ,
Perspectives, vol. XXXIV, n 2, 2004, pp. 45-63.
Cenrio 1.B.
2 eixo Re-escolarizao
Cenrio 2.A.
Cenrio 2.B.
3 eixo Des-escolarizao
Cenrio 3.A.
Cenrio 3.B.
No este o lugar apropriado para discutir estes seis cenrios e as suas implicaes para
o futuro da educao. O objectivo no definir modelos ideais, mas antes provocar
um debate e uma reflexo que no fiquem encerradas nas fronteiras do presente.
Nenhum destes seis cenrios existe, ou existir, no estado puro. Bem pelo contrrio,
muitas destas tendncias esto misturadas, combinadas de modos vrios em todos os
sistemas de ensino. Mas a sua separao, ainda que artificial, til do ponto de vista
analtico, pois permite-nos visualizar melhor o sentido de certas opes e escolhas.
Nos diversos inquritos promovidos pelos autores do estudo junto de actores
educativos (responsveis polticos, professores, pais, etc.) desenhou-se um consenso
em torno das evolues provveis e desejveis destes seis cenrios.
No que diz respeito probabilidade, h um relativo equilbrio entre os diferentes
cenrios. Os inquiridos consideram que todos eles tm uma razovel possibilidade de se
concretizarem num futuro prximo. No que diz respeito desejabilidade, a situao
totalmente distinta, pois a esmagadora maioria dos inquiridos (mais de 80%) apenas
encara positivamente uma evoluo no sentido dos dois cenrios do 2 eixo Reescolarizao: A escola no centro da colectividade e A escola como organizao
centrada na aprendizagem. Trata-se, no fundo, de recusar, por um lado, a manuteno
das actuais estruturas rgidas e burocrticas e, por outro lado, as lgicas de privatizao
e de mercado.
Mas a aposta num eixo de re-escolarizao no faz esquecer que as opinies se dividem,
por igual, entre o terceiro e o quarto cenrio, revelando uma clivagem muito
interessante entre duas vocaes da escola: o social e a aprendizagem. A reflexo
que vos proponho insere-se neste debate, adoptando um ponto de vista particular que
me conduzir resposta que venho procurando sobre a cidadania e a escola.
A escola no centro da colectividade remete para uma instituio fortemente empenhada
em causas sociais, assumindo um papel de reparadora da sociedade; remete para uma
escola de acolhimento dos alunos e, at, de apoio comunitrio s famlias e aos grupos
mais desfavorecidos; remete para uma escola transbordante, uma escola utpica que
procura compensar as deficincias da sociedade, chamando a si todas as misses
possveis e imaginveis. Num certo sentido, todos nos reconheceremos nesta escola, que
consagra muitas das nossas crenas e convices. Mas como evidente esta opo
estabelece prioridades. No possvel fazer tudo e a tudo dedicar a mesma ateno.
Concentrando-se nas dimenses sociais, esta escola acaba por conceder uma menor
ateno s aprendizagens. Primeiro esto os alunos, as suas necessidades e o seu
desenvolvimento; depois, vem o trabalho escolar propriamente dito. Estou a desenhar
uma caricatura, extremando intencionalmente posies, para deixar mais ntido o meu
argumento.
A escola como organizao centrada na aprendizagem sugere uma valorizao da arte,
da cincia e da cultura, enquanto elementos centrais de uma sociedade do
conhecimento. Esta perspectiva sustenta-se em trs argumentos principais: primeiro nas sociedades do conhecimento, mais ainda do que nas sociedades industriais, o pior
que podemos fazer s crianas, sobretudo s crianas dos meios mais pobres, deix-las
sair da escola sem uma verdadeira aprendizagem; segundo - ao olhar para muitos pases,
percebe-se o crescimento de uma escola a duas velocidades, isto , de uma escola
centrada na aprendizagem para os ricos e no acolhimento social para os pobres; terceiro
hoje, os novos conceitos de aprendizagem envolvem, para alm dos conhecimentos, as
emoes, os sentimentos e a conscincia, implicam o mtodo, o estudo e a organizao
do trabalho, incluem a criatividade, a capacidade de resolver problemas, a inteligncia e
a intuio.
Muitos educadores e professores, sem negarem a importncia das aprendizagens,
reconhecem-se mais facilmente no terceiro cenrio A escola no centro da
colectividade que se adapta melhor histria da modernidade escolar. fcil alinhar
evidncias em prol deste cenrio: Algum acredita que possvel ensinar uma criana
com fome ou sujeita a maus tratos? Algum imagina que as questes da sade e do
bem-estar, fsico e psicolgico, no interferem no desenvolvimento e na aprendizagem
das crianas? Algum se atreveria a pr em causa o papel da escola na preveno da
toxicodependncia ou na promoo de comportamentos saudveis? Algum ousaria
negar a importncia da escola na educao sexual de adolescentes, que vivem por vezes
dramas de enorme intensidade? Algum seria capaz de escrever que a escola no tem
qualquer responsabilidade na formao de cidados activos, conscientes dos seus
direitos e dos direitos dos outros? E assim por diante
Mas, ao produzir estas justificaes, estamos permanentemente a remeter para dentro da
escola um conjunto de tarefas e de misses que so da responsabilidade primeira de
outras instncias e instituies. Na transio do sculo XIX para o sculo XX, quando a
concepo de uma escola transbordante se imps, estvamos, sobretudo no caso
portugus, perante uma sociedade muito frgil: nveis de analfabetismo que atingiam os
80%, inexistncia de redes culturais e cientficas, situaes de pobreza acentuada, taxas
altssimas de mortalidade e de morbilidade infantil, etc. Hoje, um sculo mais tarde, a
imagem da escola como templo de saber irradiando a sua influncia sobre uma
sociedade inculta j no tem sentido. Hoje, no s as famlias possuem nveis
culturais e educacionais mais elevados, como h um conjunto diversificado de
instituies que podem, e devem, assumir as suas responsabilidade prprias na rea da
cultura, do desporto, da arte, da sade, da cincia, da cidadania.
Por isso, tenho vindo a defender que, se a modernidade escolar se definiu por
transbordamento, a contemporaneidade escolar se definir por retraimento. E esta opo
conduz-me, naturalmente, a valorizar o quarto cenrio, a escola como organizao
centrada na aprendizagem. Claro que ningum me ver reproduzir as dicotomias
habituais, gastas e inteis: liberdade ou autoridade, ensino ou aprendizagem, instruo
ou educao, esforo ou interesse, etc. Em educao, estes termos funcionam sempre
simultaneamente, pois a aprendizagem no separvel da vida das crianas, dos seus
contextos sociais, dos seus processos de desenvolvimento, dos seus dilemas, daquilo
que lhes acontece na vida para alm da escola.
O trabalho escolar tem duas grandes finalidades: por um lado, a transmisso e
apropriao dos conhecimentos e da cultura; por outro lado, a compreenso da arte do
encontro, da comunicao e da vida em conjunto. isto que a Escola sabe fazer, isto
que a Escola faz melhor. nisto que ela deve concentrar as suas prioridades, sabendo
que nada nos torna mais livres do que dominar a cincia e a cultura, sabendo que no h
dilogo nem compreenso do outro sem o treino da leitura, da escrita, da comunicao,
sabendo que a cidadania se conquista, desde logo, na aquisio dos instrumentos de
conhecimento e de cultura que nos permitam exerc-la.
Uma coisa dizer que a escola deve recentrar-se na aprendizagem, no ignorando que
ela s possvel se atendermos a um conjunto de circunstncias da vida pessoal e social
das crianas. E outra, bem diferente, dizer que a escola deve assumir como
responsabilidade sua essa vastido de tarefas que lhe fomos atribuindo. No ignoro o
risco destas afirmaes, que vo contra a esmagadora maioria das crenas dominantes,
mas estou convencido de que esta a nica sada possvel para a crise da escola.
A minha proposta de retraimento exige o reforo de um novo espao pblico da
educao, um espao mais amplo do que o espao escolar, um espao de redes e de
instituies no qual se concretiza a educao integral das crianas e dos jovens, seja
no que diz respeito formao religiosa ou cvica, ou aquisio de um conjunto de
competncias sociais, ou ainda preparao do momento de transio entre a escola e
o trabalho.
Por isso vos digo que a primeira condio da cidadania a aprendizagem. Uma escola
que no fornece aos seus alunos, a todos os seus alunos, os instrumentos bsicos do
conhecimento e da cultura, no uma escola cidad 18, por muito que se enfeite com
chaves de emancipao, de libertao ou de cidadania.
preciso inscrever, na realidade, a igualdade prevista na lei. Na escola, isso significa,
como se escreve numa recente proposta de reforma apresentada em Frana, faire
vraiment russir tous les lves (fazer com que todos os alunos tenham verdadeiramente
sucesso) 19. Julgo que til acrescentar que este sucesso no necessariamente igual
para todos os alunos. Mas que da nossa responsabilidade concebermos modos e
percursos que assegurem o sucesso de todos os alunos, cada um sua medida 20.
O desafio que temos pela frente romper com uma excessiva uniformizao escolar,
que no consegue dar respostas teis aos alunos e s distintas necessidades e projectos
de vida de que eles so portadores. Hoje, talvez mais do que nunca, impe-se reabilitar
os modelos da diversificao pedaggica como referncia para uma escola centrada
na aprendizagem.
Mais sociedade
A segunda condio da cidadania, na escola, mais sociedade. O que que isto quer
dizer? Permitam-me que recorra a uma distino feliz proposta por Philippe Meirieu
entre comunidade e sociedade 21. Diz ele que o que caracteriza uma comunidade so
os afectos, as tradies, os laos. Que h uma escolha na adeso a uma determinada
comunidade (de jovens, de msicos, de bairro, etc.). Que o essencial so as ligaes
afectivas entre os membros e o seu chefe, so as foras centrpetas que a reforam e lhe
do sentido.
Acrescenta Philippe Meirieu que uma escola no deve ser encarada como uma
comunidade. Desde logo, porque as pessoas no se escolhem entre si, estando reunidas
naquele lugar, de forma mais ou menos arbitrria, com o objectivo de trabalharem
18
Retomo aqui a expresso, feliz, de um movimento com fortes razes no Brasil, em particular na Rede
Municipal de Ensino de Porto Alegre (Brasil).
19
Ver a segunda parte do relatrio apresentado pela Comisso presidida por Claude Thlot, Pour la
russite de tous les lves, Paris, La Documentation Franaise, 2004.
20
Recentemente, deparei-me com um escrito que criticava uma afirmao idntica que acabo de
proferir, ignorando o seu autor que eu estava a reportar-me ao conhecidssimo relatrio francs.
Indignava-se ele com esta ideia absurda de todos terem sucesso, sem compreender o significado da
expresso cada um sua medida, que se destina justamente a encontrar alternativas que dem uma
resposta til, do ponto de vista pessoal e social, formao e qualificao das crianas, dos jovens e dos
adultos. Argumentava este autor, Nuno Crato, que o normal que muitos alunos tenham apenas sucesso
parcial, conceito que no deixa de ser uma verdadeira prola, digna de figurar na galeria do eduqus,
essa lngua de pau dos antigos e dos novos tecnocratas da educao (ver Nuno Crato, O eduqus em
discurso directo, Lisboa, Gradiva, 2006). Para quem imagina a escola como uma instituio uniforme,
burocratizada, igual para todos, surge como uma evidncia que uns tm mais e que outros tm menos
sucesso. Mas a escola de hoje deve assegurar a formao de todos, adoptando princpios de diversidade
que permitam responder de maneira diferente s diferentes necessidades e possibilidades de cada aluno.
21
Ver Philippe Meirieu e Mrc Guiraud, Lcole ou la guerre civile, Paris, Plon, 1997.
Retomo aqui uma ideia de Andy Hargreaves, Professionals and Parents: Personal adversaries or public
allies?, Prospects, 30(2), 2000, pp. 201-213.
Curiosamente, este estatuto mais modesto, mais retrado, que lhe permitir adquirir
uma credibilidade que foi perdendo. A contemporaneidade exige que tenhamos a
capacidade de recontextualizar a escola no seu lugar prprio, valorizando aquilo que
especificamente escolar, deixando para outras instncias actividades e responsabilidades
que hoje lhe esto confiadas.
Em sntese: mais aprendizagem, mais sociedade, mais comunicao.
Por tudo isto, insisto que no h cidadania se os alunos no aprenderem, se no formos
capazes de integrar todos numa escola com regras claras e democrticas de
funcionamento, se a escola no comunicar com o exterior e no prestar contas do seu
trabalho sociedade.
Dito de outro modo: no podemos pregar cidadania, sem sermos cidados. Impe-se
uma abordagem pragmtica (e no retrica). Como dizia Antnio Srgio, num texto
desconhecido em Portugal, a liberdade e a cidadania devem ser alimentadas todos os
dias, pacientemente recriadas, sempre reconquistadas, pois se no realizarmos este
treino dirio perdemos a forma, perdemos a pujana, e no conseguiremos construir o
futuro que ambicionamos 23.
23