3511 11682 1 PB
3511 11682 1 PB
3511 11682 1 PB
Resumo: Buscando entender a relação musical entre Milton Nascimento e Wayne Shorter
encontramos o primeiro contato entre eles através da canção “Vera Cruz”, de Milton e Márcio
Borges, gravada por Milton 1968, e regravada por Wayne em 1970. Para isso analisamos os aspectos
musicais das duas gravações no contexto biográfico e histórico de ambas as carreiras, e percebemos
como cada versão expressava musicalmente as instabilidades e ambiguidades do momento político,
cultural e pessoal que viviam, além da construção de uma particular náusea na versão de Wayne
Shorter, resultado de sua relação com a cultura jazzística daquela época.
Vera Cruz: Between Instability, Ambiguity, and Nausea in Milton Nascimento and Wayne
Shorter’s Recordings
Abstract: In order to understand the musical relationship between Milton Nascimento and Wayne
Shorter, we found a first contact between them through the song “Vera Cruz”, by Milton and Márcio
Borges, first recorded in 1968 by Milton and after that by Wayne Shorter in 1970 of which musician.
For this, we analyze the musical aspects of the two recordings in the biographical and historical
context of both careers, and we noted how each one musically express the instabilities and the
ambiguities of their political, cultural and personal moment. Beside that, we noted the construction
of a particular nausea in Shorter's version, arising from his relationship with the jazz culture of the
time
1. Introdução
No prefácio do livro Os sonhos não envelhecem: Histórias do Clube da Esquina de
Márcio Borges, Caetano Veloso afirma que Milton Nascimento “sugeriu uma fusão que –
partindo de premissas muitas outras e de uma perspectiva brasileira – confluía com a fusão
inaugurada por Miles Davis” (VELOSO, apud, BORGES, 2009, p. 14). Essa confluência de
fato é perceptível em 1974, no disco Native Dancer do compositor e saxofonista Wayne Shorter
– parceiro de Miles no início do fusion1 –, no qual Milton participa de forma marcante, cantando
e tocando violão em cinco canções suas. Esse disco também marcou o início de um duradouro
relacionamento musical entre ambos2, além de ter sido fundamental para a carreira internacional
do brasileiro (MERCER, 2004, p. 173 e DOLORES, 2009, p. 187).
Quando Wayne Shorter lança esse álbum no período em que integrava o Weather
Report – um dos grupos mais representativos do fusion, em franca ascensão nesse período –
atrai os olhares para uma sonoridade singular, consequência dessa parceria estreita com Milton.
O resultado desse trabalho, mostrou uma interação entre duas musicalidades marcadas pelo
desenvolvimento de hibridismo musical, especificamente a mistura de gêneros como o jazz, o
rock, o funk, a salsa, o samba, a rhumba, a guarânia, entre outros gêneros da música popular.
Buscamos entender o início dessa relação musical entre dois importantes
compositores, especificamente o desenvolvimento da maneira como realizavam essas misturas
de gêneros, como essa relação atuou nesse desenvolvimento, bem como as questões às quais os
trabalhos deles estão atrelados. Nessa busca, encontramos um primeiro ponto de contato entre
ambos, anterior ao disco Native Dancer: a canção “Vera Cruz”, de Milton Nascimento em
parceria com Marcio Borges e Ronaldo Bastos, gravada nos EUA, em 1968, no seu segundo
disco, Courage, e também gravada por Wayne Shorter em 1970, em seu disco Moto Grosso
Feio, um ano antes da formação do grupo Weather Report. O momento dessas gravações se
mostra privilegiado para entender algumas formulações desse período.
O que deveria acontecer depois daquilo? [da experiência com Miles] Qualquer
coisa que Wayne fosse fazer, ele não queria fazer da mesma maneira.
Qualquer coisa menos a velha rotina dos bares. E por algum tempo, ele sequer
tinha algum interesse no saxofone. “Eu não queria tocar,” ele disse, “eu apenas
olhava para o instrumento de vez em quando. Então comecei a tocar um monte
de outras coisas, não do jazz, mas coisas de Yma Sumac, músicas do Peru, um
monte de coisas latinas”. (MERCER, 2004, p.138,139)
Fig.3 – Melodia e harmonia da Introdução da 1ª versão, com análise intervalar do movimento dos acordes, e com
acordes de Gm marcados.
A melodia feita pela voz de Milton, de certa forma, também trabalha essas
características. Na introdução, a melodia reforça tanto a instabilidade da rítmica como da
harmonia 11 , mas também carrega na curvatura melódica que ascende e descende, em um
movimento ondulante que progressivamente se acentua com a estrutura arpejada do final desse
trecho (ver Fig. 3).
Na parte A, ela reforça a clareza rítmica constante, usualmente com frases que vão
de notas longas a semínimas, acompanhando o pulso e o novo andamento, mas sem qualquer
figura rítmica que possa caracterizar um gênero específico, mantendo a ambiguidade de gênero.
No que tange a relação com a harmonia, exatamente nos acordes que tem notas estranhas ao
modo de Sol eólio ou Mi bemol lídio, a melodia se concentra nas notas que são comuns ao
modo e ao mesmo tempo importantes na caracterização desses acordes, reforçando a presença
do acorde estranho ao modo, ao mesmo tempo que reforça a sonoridade modal. A curvatura
melódica se desenvolve em cada frase em torno de alguma nota, com exceção da última frase
descendente, que conclui na sétima de Gm7 no primeiro A e na fundamental nas outras
repetições.
Toda essa configuração de instabilidade e ambiguidade se soma às figuras que a
letra apresenta nessa versão12:
As letras das canções de Milton, em sua maioria, eram feitas após a música pelos
parceiros dele. Nesse caso, no entanto, não foi assim. Márcio Borges nos conta em seu livro
que concebeu o tema da letra três anos antes da gravação: “uma mulher-pátria, porto seguro
como útero, mas também oceano de marés traiçoeiras, uma imensa mulher-pátria-mãe, mas
também uma moça – ‘Vera Cruz’! Linda, mas perdida.”(BORGES, 2009, p.118). Algum tempo
depois, escrevera um esboço, que depois haveria de ser finalizado por Ronaldo Bastos e logo
gravado nessa versão. Podemos perceber que essa ideia central se manteve, tomando a forma
de “Vera Cruz”, figura ambígua de mulher e lugar ao mesmo tempo, perdida e buscada
insistentemente, onde o eu-lírico se entrega totalmente, mas ao perdê-la, perde também o rumo,
o “norte”, tendo seu “corpo sem lugar”.
Portanto, nos parece que a música desenvolve alguns sentidos comuns às ideias
centrais da letra, através da instabilidade do pulso e da tonalidade da introdução – na qual as
ideias centrais são a perda, o corpo sem lugar e a inevitável busca de algo distante e perdido–
bem como da ambiguidade na percepção do gênero e dos modos da parte A – na qual é
trabalhada a figura da moça-Vera Cruz, através do desnorteamento que seu olhar comporta.
círculos indicam as regiões depressivas do fluxo harmônico nos acordes fora do campo.
Essa passagem do livro de Márcio Borges está no final do capítulo intitulado “Vera
Cruz”. É em meio a um cenário político turbulento em seus próprios países e no mundo, que
Milton Nascimento e Wayne Shorter constroem cada qual sua versão dessa canção inicialmente
pensada por Marcio Borges.
Milton grava a sua versão nos EUA, dialogando com outra cultura, expressando em
sua música a instabilidade de um viajante em mares distantes e turbulentos e a ambiguidade de
sua amada moça-Brasil que se perdia cada vez mais com os Atos Institucionais da ditadura.
Wayne por sua vez, de seu próprio lugar, expressa hiperbolicamente a instabilidade
dessa cultura, mas expressa também o movimento insistente e letárgico da melodia de “Vera
Cruz”, imerso em uma rotina que se repetia e na qual expandia as suas fissuras com fragmentos
de novas sonoridades e musicalidades. Em meio a esse caos e sem saídas satisfatórias ainda,
uma náusea sartreana 14 parece surgir através de uma consciência da contingência de sua
identidade e cultura, em inevitáveis processos de ruptura e transformação.
Referências
BORGES, Márcio. Os sonhos não envelhecem: Histórias do Clube da Esquina. 5ª ed., São
Paulo, Geração editorial, 2009.
DOLORES, Maria. Travessia: a vida de Milton Nascimento. 3ª ed., Rio de Janeiro, Record,
2009
FREITAS, Sérgio de. Que acorde ponho aqui? Harmonia, práticas teóricas e o
estudo de planos tonais em música popular. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes,
Unicamp, 2010.
MERCER, Michelle. Footprints: The Life and Work of Wayne Shorter. New York,
Tarcher/Penguin, 2004.
PIEDADE, Acácio. Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo, musicalidades
e tópicas. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.103-112.
TAGG, Philipp. Everyday Tonality II(towards a tonal theory of most people hear). New York
& Huddersfield, MMMSP, 2014.
RAWLINGS, Robert, BAHHA, Nor Eddine. Jazzology: The encyclopedia of jazz theory for all
musicians, NY, Hal Leonard, 2005
SARTRE, Jean-Paul. A Náusea. 10 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
SOUZA, Thana Mara de. A Presença da História no primeiro Sartre. Princípios, Natal, v.16,
n.26, p.87-105, 2009.
1
Wayne Shorter, um dos ícones do jazz de sua geração, participa em 1969 dos discos de Miles Davis In a Silent
Way e Bitches Brew, exatamente os considerados como inaugurantes do fusion. Esse subgênero surgiu em meados
da década de 60 a partir do jazz, propunha uma integração com elementos de outros gêneros da música popular,
em especial o rock, o soul e o funk, mas também com gêneros musicais de outras partes do mundo, como da
América latina e da Índia.
2
São constantes os álbuns e shows de Milton que tem a participação do saxofonista desde esse momento até os
dias de hoje, como por exemplo, em 30 de abril do ano passado ambos se apresentaram em Istambul como parte
das comemorações do Dia Internacional do Jazz sob a curadoria da ONU, como consta em
http://www.miltonnascimento.com.br/site/noticias.php?id=199 (acessado em 20/04/2015)
3
Especificamente o segundo grande quinteto, de 1964 a 1968, e o início da fase elétrica em 1968 a 1970
4
Wayne Shorter usa instrumentos mais característicos de outros gêneros como a marimba, o violão, cuíca,
berimbau, steeldrum, o cello, mas também a guitarra e baixo elétrico e cita vários ritmos e gêneros. Além de
“Vera Cruz”, ele grava “De Pois do Amor o Vazio” de seu amigo Bobby Thomas em Odyssey of Iska, e “Dindi”
de Tom Jobim, esta última numa versão que cria uma textura rítmica densa com a percussão de Airto Moreira e
vários músicos, improvisando sobre uma base de samba.
5
Como, por exemplo, seu trabalho com latin-jazz e afro-jazz com o grupo Art Blakey and the Jazz Messengers, e
sua versão de “Black Orpheus” / “Manhã de Carnaval” de Luiz Bonfá.
6
Discutindo o hibridismo musical, Acácio Piedade constrói essa ideia de fricção de musicalidade, como
contraposição à ideia de fusão de musicalidade mais difundida, descrevendo um contato conflituoso entre duas
musicalidades, de forma a serem perceptíveis os núcleos duros de cada uma, apesar das trocas existentes.
7
Nesse trecho o violão parece fazer um ritmo de marchinha ou de ciranda, na bateria o baião, no triângulo a
sonoridade de gêneros nordestinos (porém em figura rítmica não característica), e no baixo o afoxé ou a ciranda.
8
Philip Tagg através do estudo de Carlos Vega define bimodalidade como “um tipo de tonalidade na qual dois
diferentes modos, e, portanto, duas diferentes tônicas, podem ser ouvidas simultaneamente ou em sucessão, um
após a outro” (TAGG, 2014, p.481).
9
O Contrapuntual Embeleshment of Static Harmony ocorre quando alguma nota de um acorde que se mantêm
por algum tempo, caminha realizando alterações na qualidade do acorde, (RAWLINGS and BAHHA, 2005) Um
exemplo muito conhecido desse procedimento na música popular é a harmonia da introdução e dos doze
primeiros compassos de “Carinhoso”, que caminha entre a 5a justa, a 5a aumentada e a 6a maior dos acordes.
10
Alterando a sétima e a sexta, confundindo com a sonoridade do modo dórico, do eólio com sétima maior, e do
eólio com sexta e sétima maior.
11
A melodia integra o caráter rubato do ritmo, conduzindo o ritardando e a fermata e respeitando o início dos
compassos e se desenvolve em notas importantes dos acordes, realizando algumas antecipações e reforçando
assim o cromatismo harmônico,
12
Em outras versões existem mais duas estrofes distintas na parte A.
13
É o caso de Dave Holland que executa o violão, Ron Carter o violoncello, e Chick Corea a marimba, bateria e
percussão. Além desses casos específicos, temos Miroslav Vitous no contrabaixo acústico – que juntamente com
Wayne e Joe Zawinul daria início ao grupo Weather Report no ano seguinte –, John MacLaguhin na guitarra de
doze cordas, e a desconhecida Michellin Prell na bateria. Parece haver também um não mencionado steeldrum.
14
No seu primeiro livro “A Náusea”, Jean-Paul Sartre descreve a sensação desagradável de Roquentin que “aos
poucos se torna a Náusea, a descoberta da total contingência do mundo e de si mesmo” (SOUZA, 2009, p. 98).
Dessa forma o personagem historiador relata: “os objetos não deveriam tocar, já que não vivem. (...) E a mim
eles tocam – é insuportável. Tenho medo de entrar em contato com eles exatamente como se fossem animais
vivos (...) uma metamorfose insinuante e delicadamente horrível de todas as sensações; era a náusea” (SARTRE,
2000, p.26)”.