Filosofia Clínica - Caderno A
Filosofia Clínica - Caderno A
Filosofia Clínica - Caderno A
Caderno A
Especialização em Filosofia Clínica
Instituto Packter
Cel. Lucas de Oliveira, 1937
conjuntos 301 / 302 / 303 / 304
Porto Alegre - RS
fone (fax) 051 330 66 34
www.filosofiaclinica.com.br
Filosofia Clínica – Instituto Packter 2
ADVERTÊNCIA
Estes escritos são destinados aos filósofos diplomados em escolas reconhecidas
pelo Ministério da Educação que cursam Filosofia Clínica no Instituto Packter.
São colagens, ilustrações e fragmentos de textos que têm o objetivo de auxiliar
nossas aulas práticas.
Não documentam, apenas complementam a Filosofia Clínica.
Os escritos aqui contidos fazem parte de centenas de horas/aula, mais
exposições em vídeo, pré-estágio, estágio, prática clínica em aula.
Por isso o nome de Caderno: de A até R, num total de 18.
Fora desse contexto, não nos responsabilizamos pelo uso destes ensinamentos,
o que condenamos sob o ponto de vista ético.
Lúcio Packter
#1
Os escritos que seguem foram retirados da tese de graduação e pós-graduação,
ante projeto de doutorado, intitulada “Filosofia Clínica: Uma Introdução à
Psicoterapia Filosófica”, de Lúcio Packter.
#2
“A Filosofia Clínica é assim definida:
a) O uso do conhecimento filosófico à psicoterapia.
b) A atividade filosófica aplicada à terapia do indivíduo.
c) "As teorias filosóficas empregadas às possibilidades do ser
humano enquanto se realiza por si mesmo.”
#3
[Psicoterapia Filosófica] “A psicoterapia tem uma concepção anômala na
versão filosófico clínica: a vivência da circunstância relacional objetivando remeter às
pessoas envolvidas diferentes opções às questões por elas propostas; isso, com base nos
procedimentos filosóficos clínicos. Especificamente, o filósofo situa-se entre as
amizades de quem partilha uma trajetória de vida tendo-se nisso a busca de opções às
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#4
[Identidade do filósofo clínico] “O filósofo clínico é inicialmente o
estudante de filosofia disposto a compartilhar um caminho incerto com outras pessoas,
a atuar filosoficamente em cada endereço desse caminho tal, pois é em cada endereço
que sua identidade se modela. Partilhando um período da existência de outro ser, sob
a responsabilidade que o nomeou filósofo, sua identidade reside em sua posição dentro
da situação vivenciada.”
#5
[Características do filósofo clínico] “Basicamente podemos caracterizar o
filósofo clínico em sua atividade e através dela:
a) Um amigo a usar seus conhecimentos filosóficos à serviço da
psicoterapia.
b) Um partilhante emprestando as teorias filosóficas a pessoas em
suas especificidades.
c) "Um pesquisador das filosofias terapêuticas.”
#6
[Indicações] “A Filosofia Clínica é indicada a partir das psicologias,
designada a lidar com questões metapsicológicas. Uma ilustração estaria em Sócrates,
um dos pais da Filosofia Clínica, ao administrar a maiêutica como recurso de
conhecimento interno.
Ocorre também a indicação deste trabalho simultaneamente a tratamentos
médicos mentais por acompanhar os desdobramentos existenciais da pessoa: as
psicoses, por exemplo, podem ser incluídas em seu campo de atividades.
Mas, insistentemente, seu foco tende a iluminar as questões fundamentais que
há muito seguem o indivíduo: éticas, axiológicas, antropológicas, científicas, artísticas
e, no somatório, essencialmente filosóficas.”
#7
[Sobre o procedimento clínico] “Os modos com os quais o filósofo
estrutura o trabalho relacionam-se às vertentes de reflexão que segue. Por citar,
questões éticas ou axiológicas justamente lecionam um parecer diferente diante da
mesma questão quando um examinador existencialista e um outro, cético nominalista,
opinam e atuam.”
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#8
[Propriedade do local de atendimento] “A limitação imposta pelo
consultório logo é derrubada quando a vivência em Filosofia Clínica demonstra que
muitos lugares são sujeitos a bons espaços de trabalho.
Ao ter como partilhante um estudante com graves dificuldades de
relacionamento na escola, por exemplo, o filósofo provavelmente deixará o consultório
e pesquisará o local onde julga encontrar algumas respostas.
Nesse e em outros casos seria desaconselhável limitar o trabalho filosófico
clínico a um laboratório fechado, o consultório. De fato, a maior parte do trabalho em
Filosofia Clínica parece ser realizada longe do ambiente original.”
#9
[Relação entre o filósofo clínico e a pessoa (partilhante) que o
procura] “...basicamente, o filósofo permite livre cursar à manifestação, ao conteúdo
que o partilhante traz e que surge sempre mais, ao ser em seus exercícios de coisa, e
tudo isso oscilando conforme um discurso prático.
No intuito de dividir uma realidade que se lhes apresenta, nada se sabe sobre
algum retorno do filósofo junto aos seus partilhantes e nem se esses o farão por outros
meios. Os partilhantes podem efetuar várias transmutações: em um grau adiantado
dos trabalhos às vezes é difícil divisar quem é o filósofo e quem são os partilhantes.
Assim, sendo também um processo de identificação, e considerando que observamos
sempre a partir de um ponto de vista que determina as possibilidades do que podemos
conhecer, segundo Karl Popper, torna-se notório que durante tal processo associativo
haja um câmbio de concepções, problemas e pontos de vista entre o filósofo e os
partilhantes.
Quanto a isso, existe uma surpresa inicial quando os partilhantes se descobrem
alienados aos elos escravagistas governados por conceitos rígidos da conduta clássica
da saúde aos quais seguem as ciências médicas. Livres de tais categorias
classificatórias, surge outro posicionamento, de uma forma tal que as pessoas
envolvidas aqui podem pesquisar, sob a orientação filosófica, perspectivas de
diferentes morais.
Exemplificando, a relação filósofo-partilhante é uma relação essencialmente de
amizade. Cabe ao filósofo ter os cuidados de somente aceitar como partilhante alguém
que em sua existência ocuparia de certo modo um tal lugar, reservado à amizade.
Para tanto, existe a entrevista inicial, uma vez que o filósofo não pode
determinar tal aceite a priori, na acepção dada por Kant, na segunda parte da Crítica
da Razão Pura, na Lógica Transcendental, quando mostra que a intuição traz apenas
o modo como somos afetados pelo objeto; já o entendimento é a nossa capacidade de
pensar esse objeto da intuição sensível. “O entendimento nada pode intuir e os
sentidos nada podem pensar. Só pela reunião se tem conhecimento”, afirma Kant.
Assim, a empatia torna-se determinante.”
#10
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#11
Fundamentação Teórica da Filosofia Clínica
Nossas raízes vão ao período grego em que pipocaram os pré-socráticos, uma
leva de pensadores ocupados em analisar mais ou menos tudo o que lhes surgia. A
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~
d. Interseção Indefinida: aquela que oscila com freqüência
suficiente a tal modo que não se pode entendê-la como nenhuma das
anteriores.
i
Tudo o mais está na dependência direta à interseção.
Você pode dominar perfeitamente os submodos, os tópicos da Estrutura de
Pensamento da pessoa, Autogenia e ainda mais - e tudo isso de nada servirá se a
qualidade de interseção for ruim à atividade clínica. Quando me referir à boa
qualidade de interseção estarei me referindo à empatia, sintonia, harmonia, amizade,
interesse mútuo em proveito de uma causa, basicamente. É suficiente saber que toda a
interseção deste mundo sem direcionamento clínico também conduz a muito pouco.
O logicismo formal é o início imediato de nossa clínica.
Como nada sei a respeito da pessoa que me procura, sem contar os pré-juízos
(ufa!), preciso estabelecer critérios a esse conhecimento.
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Evidentemente que a pesquisa pode colocar esses quatro itens por terra logo em
seguida quando associarmos o empirismo inglês e a analítica da linguagem ao
trabalho.
Bem, associamos o empirismo e a analítica da linguagem ao processo divisório
que fazemos logo imediatamente após a colheita do histórico por várias razões:
a. Para saber a correspondência entre forma e conteúdo (termo e conceito). Ou
seja, quando a pessoa me diz “água pura” quero entender o que se passa
conceitualmente à malha intelectiva dela: a pessoa viu rolar água puras de cachoeira,
sentiu a língua tocar um cubo de gelo, lembrou de um poema sobre água pura ?
b. Quero, talvez, conforme o caso, outras informações: associações fundas
entre os conceitos, vivências, o uso específico e contextual do conceito, dados
epistemológicos, éticos, emocionais etc etc etc...
O positivismo lógico de Karl Popper e os pré-juízos de Gadamer entram aqui
como uma funda advertência ao filósofo, no sentido do limite de nosso conhecimento,
suas limitações, as noções agarradas umas às outras, cracas, que servem ao que vem
depois. Um duro golpe a velhas ambições filosóficas de ter o mundo à palma da mão.
Acredito que somente isso bastaria a uma excelente clínica.
Mas a filosofia é exigente com seus filósofos.
E, assim, coloquei uma segunda grande parte que denominei Esteticidade.
Ela engloba coisas como o gosto, a intuição, a arte, mecanismos instantâneos
da malha intelectiva, intencionalidade e dados extraordinários. Aqui consideramos a
fundo os aspectos da Somaticidade.
Por último, a Matemática Simbólica. O marco final e vital de toda a Filosofia
Clínica.
A fundamentação teórica sobre a Esteticidade e a Matemática Simbólica virá
encartada nos próximos Cadernos.
#12
Métodos da Filosofia Clínica
Há métodos, e não um método.
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#13
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Bibliografia
O que é básico consta no currículo acadêmico, nos quatro anos do curso de
graduação em filosofia que as faculdades lecionam.
Como os alunos de São Paulo e Salvador têm pedido, segue agora uma
pequena biblioteca de grande valor. Confira...
Sobre Protágoras e seus afins temos The Sophists, de Harold Barrett; e também
Great Sophists in Periclean Athens, de J. DeRomilly. Socrates, de E. A. Taylor, é
providencial. De Platão, A República e os Diálogos. Depois, os escritos de lógica de
Aristóteles. Para quem gostar e entender e quiser maiores profundidades, os três
volumes de Principia Mathematica de Bertrand Russell e de Alfred North Whitehead.
Como complemento, o trabalho de J.W. Dauben chamado Georg Cantor: His
Mathematics and Philosophy at the Infinite, e o livro de Robert L. Vaughan chamado
Set Theory.
Schopenhauer com The World as Will and Representation fica por conta da
boa vontade de cada um.
John Locke e George Berkeley podem ser diretamente estudados em David
Hume: A Treatise of Human Nature e Philosophical Essays Concerning Human
Understanding.
Em seguida, Crítica da Razão Pura, de Kant, e desta vez sem timidez. Chega
um dia na vida em que Kant precisa ser lido e pronto.
Então há uma série de boas pesquisas filosóficas, já na área da analítica da
linguagem.
O ensaio de Isaiah Berlin chamado Essays on J.L.Austin é maravilhoso. Vale a
pena e vale o descanso. Há também um trabalho inicial de John Wisdom, Logical
Constructions, para ser lido no inverno. É claro que o Tractatus e Philosophical
Investigations do nosso mestre Wittgenstein nem preciso falar porque é simplesmente
obrigatório; leitura de cabeceira. E se você quiser emendar The Analysis of Mind e
The Analysis of Matter de Bertrand Russell, vá firme!
Uma síntese importante entre os primeiros trabalhos de Saussure e Roman
Jakobson pode ser apreciada através dos textos de Claude Levi-Strauss; depois, Roland
Barthes. Nesse mesmo caminho, Gilles Deleuze, Jacques Derrida e Michel Foucault.
Entre os norte americanos quero destacar um importante trabalho de Leonard
Bloomfield, de 1933: Language. Além disso há o escrito publicado em 1957 de Noam
Chomsky chamado Syntactic Structures.
Há ainda pequenos escritos de apoio como Interpretation Theory: discourse
and the surplus of meaning, de Paul Ricoeur; Minds, Brains and Science, de John
Searle; On Photography, de Susan Sontag; Sobre Espelhos, de Umberto Eco;
qualquer coisa de Aldous Huxley; Verdade e Método, de Hans Gadamer; Estrutura
das Revoluções Científicas, de Thomas Kuhn; A Derrota do Pensamento, de A.
Finkielkraut ; um pequeno e delicioso livro do antropólogo Edward T. Hall, publicado
em 1959, chamado The Silent Language; o mastodôntico A Montanha Mágica, de
Thomas Mann;
#14
Quanto à ordenação de conteúdos para a formação do filósofo clínico,
podemos aventar o que segue:
a. O mundo como representação.
b. Aspectos da lógica formal.
c. “do empirismo.
d. “da analítica de linguagem.
e. Estudo das categorias.
f. “da EP.
g. “dos submodos.
h. Esteticidade.
i. Somaticidade.
j. Aspectos médico-psiquiátricos.
k. Pré-estágio e estágio clínico.
l. Matemática Simbólica.
#15
Exames Categoriais - Aspectos Gerais
Explorando as cinco categorias (Assunto, Circunstância, Lugar, Tempo e
Relação), o filósofo forma um conceito bem estruturado do mundo da outra pessoa:
uma representação para si mesmo da representação do outro.
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Ouça bem: mesmo as pessoas mais iguais são profundamente diferentes entre si
mesmas.
Outras vezes, e agora me atrevo a dizer que são muitas e até a maioria
dos casos, acontece que a pessoa aprendeu a se guiar por parâmetros que estão
corretos, ordenados e bem estruturados sob o ponto de vista do logicismo formal.
Por exemplo: a moça tem um modelo de retidão moral e existencial que
segue com prazer e que lhe dá uma boa vida (!). Até que encontra um rapaz por quem
se apaixona e que afronta sua concepção tão bem estruturada. Ela entra em conflitos,
pois ama o rapaz e quer viver com ele, mas é casada, tem filhos, e tal possibilidade se
choca contra as idéias complexas que lhe posicionam existencialmente na vida. Por
sua lógica formal interna ela acredita que pode ser feliz seguindo seu modelo moral
contra o amor que chegou à revelia em sua vida, mas nada se resolve assim no caso
dela. A moça começa então a viver um inferno pessoal que a confunde, uma vez que
para ela nada mais está fazendo sentido.
Ou seja: às vezes ordenamos os conceitos de modo correto do ponto de
vista logicista formal aristotélico Kantiano em nossas vidas...
O homem ético é feliz na maturidade
Eu sou um homem ético e estou na maturidade
Portanto eu sou um homem feliz.
Note que logicamente está correto, só que isso pode se chocar duramente contra
a realidade do dia-a-dia, quando não é nada certo que um homem ético será feliz na
maturidade. Só que a pessoa que se estruturou assim pode ter baseado,
involuntariamente, de modo cabal, toda a própria vida neste processo. Ela pode tê-lo
como um dogma de fé, sua prova de humanidade diante da vida.
Ora, imagine você o que acontece quando isso não se verifica do modo como
era profetizado nela por ela mesma...!
O choque pode assumir uma importância tal que impeça a pessoa do exercício
de sua existência, o que talvez cause de acidentes psicóticos, a episódios suicidas ou
sabe-se lá o que mais.
Em outras ocasiões pode haver uma bagunça conceitual tal na malha
intelectiva da pessoa que ela simplesmente não tem como manifestar de modo coerente
ao filósofo o que se passa com ela.
E ainda há muitas outras causas para o fato de nem sempre se poder começar
de um Assunto Imediato claramente definível. Não se preocupe com isso. Esta e
questões mais urgentes serão consideradas com demora quando for oportuno ao nosso
estudo.
Primeiro, o filósofo pedirá à pessoa para que ela reporte do modo como julgar
mais adequado (veremos isso mais tarde nos dados de Semiose) um relato superficial,
panorâmico de sua existência até aqui.
Pelo que venho acompanhando os filósofos clínicos em formação em meu
Instituto, noto que inicialmente há dificuldades naturais que quero explicar aqui, ao
menos as principais.
Como compendiar os dados colhidos entre as cinco categorias?
Bem, de início a colheita e distribuição dos termos que a pessoa expressa são
sempre apreendidos no sentido literal! Isso é fundamental!
Quando a pessoa dizer: “eu amo esta gatinha” - isso será arquivado
inicialmente pelo filósofo como “eu amo esta gatinha”, e não, nunca mesmo, “eu
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gosto, tenho carinho, eu me afino etc”, simplesmente porque não foi isso o que a
pessoa expressou, ainda que por “amor” ela quisesse na verdade dizer “carinho”.
Durante todo o logicismo formal, a primeira parte da Filosofia Clínica, essa
norma será freqüente (na Esteticidade e na Matemática Simbólica teremos opções,
como a Epistemologia, para ir além do formalismo).
Compendiar, ordenar clinicamente os dados é algo fácil e simples de ser feito,
mas especialmente dá ao filósofo uma compreensão íntima do modo de estar no
mundo da pessoa; sempre condicionado à qualidade das interseções.
0..1..2...3..4..5...6..7..8..9..10..11...12..13...14....15...16...17...18...19...20....21.
#16
O que é a Estrutura de Pensamento?
É o modo como a pessoa está existencialmente no ambiente.
Note que a pessoa é anterior à Estrutura de Pensamento, pois é somente através
dela que tal Estrutura tem possibilidade de existir.
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Quando o filósofo clínico considerar o outro ser que o procura, ele terá diante
de si mesmo a pessoa ou Estrutura de Pensamento?
Se você quer saber o que eu acho basta reler as linhas acima.
Agora, já percebi que não há aqui, como em quase tudo o mais, um dado
consensual: alguns filósofos certamente considerarão a pessoa como sendo apenas
uma Estrutura de Pensamento, outros saberão distanciar uma da outra; sem contar
aqueles que entenderão tudo, Pessoa & EP, como um todo. Em suma, entenda como
quiser.
Elaborar a Estrutura de Pensamento da pessoa exige cuidados e critérios que
passo a explicar a seguir.
Bem, você sabe que a pessoa pode estar em um mau dia, daqueles em que tudo
parece dar errado, e eu pergunto então se ao fazer todos os exames categoriais e em
seguida, com base neles, elaboramos a Estrutura de Pensamento da pessoa, será que
não teremos em resposta apenas a Estrutura de Pensamento que a pessoa tem naquele
dia, e apenas naquele dia? O que você acha?
Como já estudamos em aula, a Estrutura da pessoa não é algo fixo e imóvel
como a estrutura de ferro e concreto de uma casa.
Na pessoa, a Estrutura é móvel, plástica, poética como as cores de um
caleidoscópio; a cada instante vão se processando milhares de modificações à malha
intelectiva da pessoa! Neste momento exato enquanto você acompanha este escrito
essas e outras milhares de interseções ocorrem em você: algumas amistosas, suaves,
calmas e outras nem tanto. Acompanhar a todas é algo que não se pode conceber
clinicamente.
Ao filósofo importa pesquisar o que de importante está acontecendo nessas
milhares de interseções.
Às vezes é o somatório delas o que é urgente a considerar, ou algumas em
relação a outras, ou ainda uma confusão ou simplesmente nada há que pareça ter
valor clínico...!
E então, o que fazer?
Considere primeiro a plasticidade deste processo.
É evidente que quem nos procura para a clínica vem se enfrentando em uma
situação qualquer que é necessariamente circunstancial e que, de um jeito ou de outro
qualquer, tem sua vida útil. Estou falando da questão a ser trabalhada em clínica.
Mas isso, por si somente ainda é pouco para uma resposta mais ampla; a
resposta de fato, é que o filósofo precisa ir tão próximo quanto possível daquilo que é
urgente, emergencial, fundamental e determinante na vivência da pessoa - e aí, via
interseção, trabalhar no que é realmente essencial.
Por que fazer uma clínica para coisas que não terão conseqüências maiores na
vida da pessoa?
Procure ser íntimo das questões fundamentais.
Você logo vai constatar que elas se apresentam com evidência na Estrutura de
Pensamento da pessoa de maneiras desde simples até complexas. Por exemplo:
a. Choques diretos entre tópicos estruturais.
b. Choques indiretos.
c. Associações caóticas entre tópicos.
d. Problemas na própria Estrutura e não na interseção entre os tópicos.
e. Problemas na interseção entre Estruturas e não entre os tópicos.
f. Ausência de tópicos que são existencialmente exigidos em uma circunstância.
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dinheiro e uma vida que lhe é fútil e quer ocupar todo esse imenso nada enchendo de
tédio a vida do terapeuta; há gente que tem uma questão bem definida e sabe
exatamente o motivo de estar em clínica, mesmo que mais tarde tenha a surpresa de
descobrir que não era nada daquilo...; portanto, procure estudar bem a criatura que
está em interseção com você, antes de sair pregando enormes e prováveis bobagens.
Curioso é que há terapeuta que precisa de muito estudo para dizer essas mesmas
bobagens...
Acho divertido verificar como há postulados sérios, ameaças veladas, silêncios
fundos e grandes perigos que se anunciam em tantas escolas terapêuticas quando se
trata da terapia da pessoa. Estou falando em termos gerais e não universais, ok?
Acho muito simples e me agrada muito o trabalho em Filosofia Clínica.
Basta ter os cuidados éticos e saber empregar os procedimentos preconizados
que toda a atividade se torna linda, fácil e agradável. Agora, é evidente que isso é
assim para mim. Não posso afirmar que meus alunos terão a mesma experiência que
tive e tenho.
Somente consigo entender a terapia desta maneira.
As perguntas que um aprendiz em Filosofia Clínica comumente faz, pelo que
tenho notado, se respondem na maioria dos casos com o próprio trabalho clínico:
quanto tempo dura a terapia; como lidar quando a pessoa parece que vai explodir; o
que fazer em casos inesperados; quando e como terminar os trabalhos em clínica;
quanto cobrar; quanto tempo pode ter uma consulta; como lidar com os familiares da
pessoa; o que dizer quando não se pode falar o que se pensa; o que anotar como
relevante e como irrelevante; quais os efeitos próximos e distantes de um erro grave em
clínica; até onde ir existencialmente com a pessoa; ser amigo e profissional junto à
pessoa ou ser somente profissional ; quais os limites da relação filósofo & pessoa;
quem deve ou pode dirigir o processo; como delimitar os objetivos; como funciona a
relação interdisciplinar (o atendimento simultâneo filosófico e psiquiátrico); até onde
se pode ou se deve interferir na vida da pessoa; quando se sabe que a terapia está
tendo resultados efetivos; como confrontar pessoas e fatos; quando procurar
assessoria jurídica; quais os fatores aleatórios que podem agravar ou condicionar um
tratamento clínico; o trato com pessoas encarceradas, doentes terminais, com crianças
e com pessoa idosas; a interseção junto à casais; a interseção junto à famílias; o que
fazer diante de interseções ruins, dolorosas, aflitivas etc; um tratado em oito volumes
ainda não responderia a metade dessas questões, simplesmente porque elas necessitam
da prática! A maioria se resolve facilmente na prática clínica.
Filosofia Clínica tive todos os cuidados que me ocorreram nesse sentido. Ocupei-me
muito com meus estudos para que meus alunos tivessem a segurança que no início eu
não tive.
Então, deixe-me listar aqui, tendo em consideração somente o pouco que
estudamos nestes dois primeiros Cadernos A e B, onde provavelmente você identificará
as questões médicas psiquiátricas com as quais o filósofo não pode lidar legalmente
(sob pena de incorrer em exercício ilegal de profissão e falsidade ideológica):
— Exame físico (apresentação geral da pessoa). Modo de gesticular; roupas;
meios de expressão. Tudo isso durante a colheita da categoria Assunto Imediato.
— Histórico. Na categoria Circunstância, quando você e a pessoa estiverem
elaborando ordenadamente o histórico, aparecerão sinais característicos do que em
psiquiatria se denomina psicose, desvios esquizóides etc. Lembre aqui que teremos um
Caderno especial contendo informações que nos ajudarão a detectar tais variações.
— Ao apurar os dados da categoria Lugar, que é como a pessoa está
sensorialmente em cada endereço existencial, os referenciais do corpo que indicam
situações de risco como esquizofrenias precoces logo se farão anunciar.
— Na categoria Tempo, confusões temporais, contradições e elaborações
desestruturadas logo se prenunciam.
— Por último, na categoria Relação tudo se torna ainda mais evidente.
Ao ter como a pessoa se relaciona consigo mesma e com quem está em
interseção com ela, praticamente o filósofo tem à disposição os dados que a medicina
exige para sua tipologia - algo tão estranho a nós filósofos.
ficado enormes para o negrinho, ele então as ofereceu a Dora. Assim mesmo estavam grandes para ela,
teve que as cortar nas pernas para que dessem. Amarrou com cordão, seguindo o exemplo de todos, o
vestido servia de blusa. Se não fosse a cabeleira loira e os seios nascentes todos a poderiam tomar por um
menino, um dos Capitães da Areia.
No dia em que, vestida como um garoto, ela apareceu na frente de Pedro Bala, o menino
começou a rir. Chegou a se enrolar no chão de tanto rir. Por fim conseguiu dizer:
— Tu tá gozada...
Ela ficou triste, Pedro Bala parou de rir.
— Não tá direito que vocês me dê de comer todo dia. Agora eu tomo parte no que vocês fizer.
O assombro dele não teve limites:
— Tu quer dizer...
Ela o olhava calma, esperando que ele concluísse a frase.
— ...que vai andar com a gente pela rua batendo coisas...
— Isso mesmo - sua voz estava cheia de resolução.
— Tu endoidou...
— Não sei por quê.
— Tu não tá vendo que tu não pode? Que isso não é coisa pra menina. Isso é coisa para homem.
— Como coisa que vocês fosse tudo uns homão. É tudo uns menino.
— Mas a gente veste calça, não é saia...
— Eu também - mostrou as calças.
De momento ele não encontrou nada que dizer. Olhou para ela pensativo, já não tinha vontade
de rir.
Depois de algum tempo falou:
— Se a polícia pegar a gente não tem nada. Mas se pegar tu?
— É igual.
— Te metem no orfanato. Tu nem sabe o que é...
— Tem nada não. Eu agora vou com vocês.
Ele encolheu os ombros num gesto de quem não tinha nada com aquilo. Havia avisado. Mas ela
bem sabia que ele estava preocupado. Por isso ainda disse:
— Tu vai ver como eu vou ser igual a qualquer um...
— Tu já viu uma mulher fazer o que um homem faz? Tu não agüenta um empurrão...
— Posso fazer outras coisas.
Pedro Bala se conformou. No fundo gostava da atitude dela, se bem que tivesse medo dos
resultados.”
#17
Exames Categoriais - Aspectos Específicos
A primeira categoria denomina-se Assunto, o objeto de que se trata.
Posso afirmar que o Assunto refere-se ao envolvimento ativo da menina Dora
no trabalho do grupo de meninos liderados por Pedro Bala. Esse é o Assunto Imediato,
o que é próximo, evidente, sintomático.
O Assunto Último o que se relaciona às questões existenciais de Dora de um
modo mais abrangente, desde seu histórico até a condição de ser-aí (dasein), é sempre
resultante de pesquisa que o clínico faz junto à pessoa, e deve ser determinado pela
pessoa, ainda que o clínico tenha suas opiniões a respeito.
Então o Assunto Último no caso de Dora poderia ser a busca de aceitação por
parte do grupo; aproximação e demanda de amor em relação à Pedro Bala; sentir-se
útil; desejo de exercitar sua vivência social; engajar-se em seu ambiente
harmoniosamente ou ainda várias opções.
A categoria Assunto nos informa rapidamente a questão e o jogo comunicativo
em curso.
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A pessoa que vem até nós traz um Assunto Imediato a ser tratado: um
casamento que está em ruínas, um amor magoado, um abandono, uma situação
existencial incômoda, inadequações sociais que para ela são importantes, medos,
conflitos etc. Bom, neste primeiro contato, você cuidará de colher todas as
circunstâncias relacionadas ao Assunto Imediato, poderá mesmo fazer chover
perguntas sobre a pessoa.
De minha prática em clínica, quero informar a você que com muita freqüência
o Assunto Imediato é algo que nos é apresentado meio solto no ar, envolto em
confusões, dúvidas e incoerências; quase sempre é apenas a resultante que incomoda
de algo maior.
Assim, a sensação de abandono, de medo ou solidão, de aflições, conflitos ou
seja lá o que for, quase sempre isso é como a febre...assim como pode ser por si
somente, pode ser a resultante de arranjos orgânicos crônicos e até irremediáveis.
O Assunto Imediato é somente um referencial de começo. Pode conter toda a
resposta que se procura e pode ter muito pouco a ver com tal resposta.
O Assunto Último, então, é o que verdadeiramente deve ocupar as ocupações de
nossa filosofia aplicada à clínica, embora ambos, Assunto Imediato e Assunto Último
possam calmamente coincidir. Por que não?
Por analogia, se você vai a um médico com dores abdominais é
contraproducente que lhe dê algum analgésico e antitérmico dando o caso por
completo. De modo algum ele fará isso! Pode esta colocando a vida da pessoa em
perigo.
Da mesma forma, o filósofo clínico pesquisará as variáveis associadas para ter
um parecer.
Em clínica, no entanto, encontramos peculiaridades que quero mencionar.
Por exemplo, muitas vezes não teremos objetividade em caracterizar o Assunto
Imediato ou não saberemos exatamente qual o Assunto Último. Isso pode acontecer.
Nem por isso há impedimento ao nosso trabalho, pois pode estar aí a própria questão a
ser trabalhada, ou pode estar implícito no processo que seja esta a condição para a
atividade clínica.
Bem, seguindo então.
Mesmo que não haja um Assunto Imediato, o que é raro, em seguida o filósofo
deve continuar o estudo que localizará existencialmente a pessoa.
Vocês ouviram bem o que eu disse: um estudo que localizará existencialmente a
pessoa.
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#18
A segunda categoria é a Circunstância, o somatório de singularidades que
acompanham uma situação.
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Se, por exemplo, deixasse à pessoa que ela me desse qualquer tipo de
manifestação desde o princípio, teria um histórico (se e quando houvesse) repleto de
saltos, omissões, enredamentos confusos que provavelmente me colocariam à margem
de minha terapêutica.
No entanto, há vezes em que a pessoa me chega em tal estado existencial que
não tenho melhor escolha a não ser deixar que se expresse conforme a confissão e o
tumulto que a habita. Mais tarde estudaremos na Esteticidade como isso é processado
em clínica.
Por agora, importa o fato de que ao me contar sua versão existencial por si
mesma seguindo uma orientação cronológica, a pessoa tem a chance de colocar seu
Assunto Imediato em um contexto do qual certamente é parte, tem a oportunidade de
fazer uma interpretação ordenada e sistemática de sua própria vida, e fornece ao
filósofo a possibilidade de entender, via interseção, mais completamente a pessoa que
com ele trabalha.
O filósofo precisará de talvez duas ou três consultas, é comum, para que isso se
processe: o exame da categoria Circunstância.
Acredito que você encontra desde gente monossilábica até a mais verborrágica.
A prática clínica ensinará a você como lidar com tais pessoas.
Cabe perguntar se ao pedir à pessoa para me relatar sua história
ordenadamente, sem saltos temporais, não estou fazendo a priori uma intervenção
clínica.
A minha resposta a isso é afirmativa.
Até onde estudei a respeito em minha vida, desconheço um modo clínico de ser
que desdenhe da interseção. Aliás, acho isso impossível.
O que pretendo aqui não é uma espécie de redução em Husserl, mas sim um
Agendamento Mínimo que me dê referenciais mais ou menos seguros de modo a
iniciar a minha atividade clínica.
Na verdade, no instante em que a pessoa pensa em me procurar para realizar
um trabalho em Filosofia Clínica, já há implícito, um agendamento; o segundo ocorre
quando temos contato: o ambiente do consultório em suas disposições, meu modo de
vestir e de ser como sou, o clima, a época, enfim...desde muito cedo, a clínica inicia
com milhões de agendamentos aos quais não quero aumentar de outros milhões.
Então, de tudo o que aprendi em minha vida desde as psicologias e a psicanálise,
acredito que os exames categoriais são um ótimo começo clínico.
Observe que o que a pessoa relatar é uma interpretação dela sobre o que
vivenciou - e isso é de fato muito diferente do que deve ter mesmo acontecido. Isso
pode ter uma importância decisiva ou nenhuma importância, mas até aqui o que pode
o filósofo afirmar?
Normalmente também há pequenos saltos inevitáveis: a pessoa pula dos dez
para os dezoito anos, depois fala ordenadamente, ano a ano, até os vinte e cinco,
quando então há mais um salto até os trinta etc.
Minha sugestão é que você permita ao menos este tipo de salto temporal, mas
em hipótese alguma permita algo como um ‘efeito pipoca’: 1,2,4,6, depois 2 de novo,
aí 20, e então 15,14,13 e direto para os 40 etc...
Pense comigo uma coisa: que tal se eu lhe contasse, logo no seu primeiro
contato com a história da humanidade, mais ou menos, que neste século tivemos duas
grandes guerras; em seguida lhe dou dezenas de dados e situações avulsas, aleatórias,
desses dois embates, depois vou ao Renascimento e ao movimento romântico nas artes,
Filosofia Clínica – Instituto Packter 28
não sem antes contar de quando os homens desceram das árvores e depois criaram a
agricultura; a tudo isso, trato de, volta e meia, divagar sobre as religiões animistas, e
encerro com um marxismo eclético e confuso que serve como desculpa às ansiedades
que me habitam etc etc. Dou saltos temporais (e de raciocínios) que tornam minha
história tão compreensível quanto compreende uma criança de três anos que se meta a
estudar a matemática de Georg Cantor.
Que tal?
Por mais pobre e lacônica que seja a história da pessoa, o filósofo deve ajudá-
la a contar de um modo que seja compreensível a ambos.
Através disso, o filósofo fará um estudo sobre algumas possibilidades iniciais
em clínica, saberá se a pessoa precisa procurar um psiquiatra, um neurologista, um
clínico geral, conhecerá seu passado médico, social, pessoal etc. Terá alguns
parâmetros que lhe darão uma base mais segura para iniciar a clínica.
Pois bem, mas o que fazer com os saltos temporais inevitáveis.
Por exemplo: a pessoa pode não se recordar de coisa alguma na fase que vai
dos vinte aos vinte e cinco anos.
Em tal caso, a primeira recomendação é entender que isso não é um vácuo; é
algo que está ali por uma razão qualquer. A pessoa pode ter esquecido um fato como
sua maneira íntima de lidar com algo que lhe é insuportável lembrar. Ou seja, é esse o
modo como ela resolveu, bem ou mal, o que a afligia! Um filósofo desavisado pode
achar por bem trabalhar isso, sem os demais exames categoriais e a montagem da
Estrutura de Pensamento da pessoa, e, fazendo isso, provocar danos de fato até muito,
muito graves mesmo. Havendo muitos saltos no histórico da pessoa, o clínico pode
usar a Divisão (não como submodo, mas como instrumento de coletar os exames
categoriais).
Assim, dos 25 aos 30 anos, promove-se novamente um histórico nos mesmos
moldes que fizemos até aqui: Agendamentos Mínimos e evitando os saltos temporais.
Se a pessoa apresentar movimentos de aversão, nesta parte, pare
imediatamente, e se dê por satisfeito, em caráter provisório, com o material colhido.
Anote o que houve e siga adiante. Mais tarde, na Esteticidade, você aprenderá melhor
a lidar com isso.
Quero que você anote também o quanto é comum a pessoa se sentir
subjetivamente bem, confortada, após a apuração destas duas primeiras categorias por
parte do filósofo; e, além disso, observe com atenção a abundância de dados que
começam a surgir de uma consulta para a seguinte. A pessoa traz mais e mais
material, afirma que se lembrou de coisas que nem imaginava terem lhe acontecido
etc. Isso é bem comum. Mas se a quantidade de novos dados for de fato enorme,
proceda ordenadamente e novamente cuidando os saltos temporais: “muito bem,
conte-me a partir daqui” - você pode dizer e retomar então sistematicamente o
processo.
Observe que este início da Filosofia Clínica via logicismo formal, em minha
opinião, é árido quando comparado à plasticidade e riqueza que encontraremos em
seguida na Esteticidade.
Há obviamente aqui um excesso de cuidados.
Acho que é assim que precisa ser, especialmente porque a filosofia acadêmica
parece ensinar à larga a fazer metafísicas que são deliciosas enquanto poesia
filosófica, mas podem ocasionar seqüelas graves se aplicadas à clínica sem critérios e
sem um trabalho prévio prático e experimental.
Filosofia Clínica – Instituto Packter 29
#19
A terceira categoria, Lugar: especificamente, mensuramos como a pessoa se sente
(portanto, suas sensações) e o que pensa (portanto, a representação mental, intelectiva, que
criou para si mesma) a propósito do ambiente onde está inserida.
Filosofia Clínica – Instituto Packter 30
“Estamos habituados pela tradição cartesiana, a nos desprendermos do objeto: a atitude reflexiva
purifica simultaneamente a noção comum do corpo e da alma definindo o corpo como uma soma de
partes sem interior e a alma como um ser presente inteiramente em si mesmo sem distância. Estas
definições correlativas estabelecem a clareza em nós e fora de nós: transparência de um objeto sem
ondulações, transparência de um sujeito que só é o que pensa ser. O objeto é objeto de um lado a outro e
a consciência de um lado a outro. Há dois sentidos, e somente dois, da palavra existir: existe-se como
coisa ou existe-se como consciência. A experiência do corpo próprio, pelo contrário, nos revela um modo
de existência ambíguo. Se tento pensá-lo como um feixe de processos na terceira pessoa - visão,
motricidade, sexualidade - percebo que estas “funções” não podem estar unidas entre si e ao mundo
exterior por relações de causalidade, elas são todas confusamente retomadas, e implicadas num drama
único. O corpo não é pois um objeto. Pela mesma razão a consciência que tenho não é um pensamento,
quer dizer que não posso decompô-lo e recompô-lo para formar dele uma idéia clara. Sua unidade é
sempre implícita e confusa. Ele é sempre outra coisa além do que é, sempre sexualidade ao mesmo
tempo que liberdade, enraizando na cultura, no momento em que se transforma pela cultura, nunca
fechando sobre si mesmo, e nunca ultrapassando. Se se trata do corpo de outro ou de outro ou de meu
próprio corpo, não tenho meio de conhecer o corpo humano senão vivendo-o, quer dizer, retomar por
minha conta o drama que o atravessa e me confundir com ele. Sou pois meu corpo, ao menos em toda a
medida em que tenho uma aquisição e reciprocamente meu corpo é como um sujeito natural, como um
esboço provisório de meu ser total. Assim, a experiência do corpo próprio se opõe ao movimento
reflexivo que liberta o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que só nos dá o pensamento do corpo ou o
corpo em idéia e não a experiência do corpo ou o corpo na realidade...O corpo próprio está no mundo
como o coração no organismo: ele mantém continuamente em vida o espetáculo visível, ele o anima e o
nutre interiormente, forma com ele um sistema...
Do ponto de vista de meu corpo não vejo nunca igualmente as seis faces de um cubo, mesmo se
ele for de vidro, e entretanto a palavra “cubo” tem um sentido, o próprio cubo, o cubo verdadeiro, além
de suas aparências sensíveis, tem suas seis faces iguais. Na medida em que rodo em torno dele, vejo a
face frontal, que era um quadrado, se deformar, depois desaparecer, enquanto os outros lados aparecem e
tornam-se cada um por sua vez quadrados... E mesmo, para que meu passeio em torno do cubo motive o
julgamento “eis um cubo”, é necessário que meus deslocamentos estejam eles mesmos localizados no
espaço objetivo e, longe da experiência do movimento próprio, condicionar a posição de um objeto, é ,
pelo contrário, pensando em meu próprio corpo como um objeto móvel que posso decifrar a aparência
perceptiva e construir o cubo verdadeiro...
O objeto e meu corpo formariam um sistema, mas tratar-se-ía de um feixe de correlações
objetivas e não de um conjunto de correspondências vividas...
Filosofia Clínica – Instituto Packter 31
Merleau-Ponty mostra o corpo como uma atividade expressiva que precisa ser
vivida para dar conhecimento a um sentido. Nós vivemos nas coisas e nas idéias;
estamos no corpo enquanto tocamos os objetos e os habitamos.
Toda a forma de expressão, de relação, tudo o que posso querer, ser ou estar,
tudo o que me faz ser no mundo está vinculado ao meu corpo.
As maneiras inversivas que pesquisamos nos submodos mostram a qualidade
desta relação.
Quando o filósofo estiver pesquisando a categoria Lugar (formações do
intelecto e sensações relacionadas ao meio onde a pessoa vive) deve considerar que o
corpo da pessoa é o somatório de seus modos de existência. Então, em conformação
com a interseção estabelecida, o clínico pode constatar se a pessoa se move com
liberdade ou com dificuldade de expressão, se apresenta um corpo devastado por
moléstia e ocupações da mente com assuntos polutos, se há confirmação do corpo às
assertivas verbais, qual a qualidade da relação com o ambiente; enfim, se é onde a
alma está encarcerada (Platão) ou se é justamente o meio que nos liberta para a
confortável alegria de apenas viver.
Pesquisa em aula:
1. Considere inversamente seu corpo.
Considere descritivo o que tem vivenciado enquanto corpo, enquanto
bodymind.
Basta que o filósofo use os passos da Desconstrução e tudo isso ficará tranqüilo
como água de poço e claro como o sol dos pampas ao meio-dia.
Além disso, a categoria Lugar não é considerada isoladamente, o que seria um
erro clínico grave.
Em conformação às demais categorias bem cedo se torna evidente ao filósofo o
que de fato acontece, pode estar certo! Mas também é comum existir uma
correspondência freqüente sobre tais dados; palavras, termos, expressões físicas etc
que se referem diretamente aos sentidos tendem a remeter a isso mesmo, embora seja
bom estar atento às exceções.
A categoria Lugar informará o quanto de sua somaticidade a pessoa viveu em
cada época de sua vida e em cada situação que tenha importância pesquisar melhor.
Às vezes a pessoa pode ter aprendido a viajar longe em idéias complexas sempre
que houve uma ameaça de perder o amor de alguém querido em sua vida, assim
conseguiu se solucionar em sua dor de modo muito eficaz. Outras vezes vamos
descobrir indivíduos que sofreram sensorialmente suas idéias complexas ; por
exemplo, a cada queda na bolsa de valores o sujeito ameaça infartar. Talvez uma
outra criatura tenha aprendido a amar sensorialmente sua mulher e no entanto não
consegue expressar em termos tal vivência ao filósofo, o que pode levar este a
considerar a abstração onde existiu um forte dado sensorial. Enfim, vão às centenas as
exemplificações. Quero muito que você saiba que isso existe!
#20
Tempo, a quarta categoria. Interessa saber qual o relacionamento entre o
tempo convencionado (afixado no relógio) e o tempo subjetivo. Em seu escrito Três
Diálogos Entre Hilas e Filonous, no primeiro diálogo, Berkeley expõe:
“F. Um movimento real num corpo externo poderá ser ao mesmo tempo muito lento e
muito rápido?
H. Não, não pode.
F...,um corpo que percorre uma milha em uma hora está animado de um movimento três
vezes mais rápido do que se percorresse uma milha durante três horas.
H. Concordo convosco.
F. E não será verdade que o Tempo é medido pela sucessão das idéias na nossa mente?
H. Assim é.
F. E não seria acaso coisa possível que as idéias se sucedessem na vossa mente duas
vezes mais rápidas que na minha própria, ou na de algum espírito de outra espécie que nós?
F. A uma outra pessoa, por conseguinte, pode parecer que o mesmíssimo corpo realiza o
percurso de certo espaço em metade do tempo que vos parece a vós. E para outra relação qualquer o
mesmo raciocínio seria válido. Quer isso dizer: pelos vossos princípios (admitindo que os movimentos
perpecionados existem ambos no próprio objeto), é possível que um só e mesmo corpo se mova
realmente ao mesmo tempo com muita rapidez e com muito vagar.”
É fato comum constatar que para alguns a vida passa com muita pressa,
enquanto a outros ela transcorre serena e parece sempre em atraso. O tempo
realmente considerável é o que a pessoa tem representado em si mesma.
“Tu tá gozada”, disse Pedro Bala; usou o presente do indicativo para expressar
que achava isso no momento em que falava: o presente.
Filosofia Clínica – Instituto Packter 34
Podemos saber também pelo verbo se uma pessoa pratica ou sofre uma ação.
“A moça beijou o rapaz.” Na voz Ativa o sujeito pratica a ação.
“O rapaz foi beijado pela moça. Na voz Passiva o sujeito sofre a ação.
“A moça felicitou-se”. Na voz Reflexiva o sujeito pratica e sofre a ação.
Para o nosso trabalho cabe lembrar também o Infinitivo Impessoal: ‘Vamos
deixar disso’; ‘Amar’; ‘O viver em paz’. A ação é manifestada de maneira
indeterminada, sem definição precisa de tempo e sujeito.
Eu - o sujeito.
amei - pretérito perfeito; indica ação consumada. Portanto, a pessoa não ama
agora o que amou.
muito - palavra que nos indica a alta intensidade.
“Depois que a minha filha caçula casou a casa ficou vazia. E nós perdemos o
ar saudável da vida”, confessa certa pessoa.
Ao usar o pretérito para comunicar o Assunto, entendo por isso o forte vínculo
que essa pessoa estabelece com o passado. Em outra pessoa, o vínculo pode dar-se no
futuro: ‘Quando a minha filha casar a casa ficará vazia. E nós perderemos o ar
saudável da vida’.
Pesquisa de aula:
Vamos exercitar alguns jogos lingüísticos de utilidade em nosso trabalho
clínico.
1. Traduza em direção a maior distância das sensações simples e depois em
direção a menor distância o poema chamado Tempo, de Mario Quintana.
“O despertador é um objeto.
Nele mora o Tempo. O Tempo não pode viver sem nós, para não parar.
E todas as manhãs nos chama freneticamente como um velho paralítico
a tocar a campainha atroz.
Filosofia Clínica – Instituto Packter 35
não, é inútil responder às pessoas. Muito provavelmente o principal objetivo das repartições do
governo é salvar o prestígio dos funcionários. Se mais tarde meu professor quiser continuar, posso
arranjar a coisa fazendo-o investir algum dinheiro na escola de modo que continue a ensinar como
EMPREGADOR de mão-de-obra. Seja como for, você já fez muito. Muito obrigado. Penso que na
próxima vez votarei nos conservadores!
Recebi hoje uma carta da viúva de Norman Macmun. Ela parece estar sem dinheiro e me pede
um emprego de zeladora. Não posso dar-lhe um e acho que você também não pode. Aconselhei-a a
recorrer aos nossos amigos milionários em Dartington Hall. Sempre mando para lá os necessitados... mas
nem por isso deixo de odiar aquela gente por causa da riqueza dela. Quando Elmhirst precisa de uma
nova ala passa um cheque para Heals... Heals! E eu aqui sem saber como arranjar dinheiro para levantar
um galpão de tijolo. O pioneirismo é um fracasso completo, meu caro. Estou cansado de pôr em ordem a
trapalhada que os pais fazem. Atualmente tenho um garoto de seis anos que caga nas calças seis vezes
por dia... a mamãezinha dele “curou-o” obrigando-o a comer a merda. Não conto com a gratidão de
ninguém... quando, após anos de esforços, eu curar esse rapazinho, a mãe irá então mandá-lo para uma
“boa” escola. Não vale a pena... indiferença oficial ou inimizade potencial, ciúme dos pais... a única
alegria está nos próprios garotos. Um dia acabo com tudo isso e monto um bonito hotel nos arredores de
Salisburgo.
Você está vendo que eu estou um pouco chateado esta manhã. Gostaria de me encontrar
novamente com você e conversar um bocado. Hoje minha Stimmung se deve em parte à notícia de outro
calote... ao todo 150 libras no ano passado.
Tudo isso de pais cujos problemas eu minorei.
Seu
A.S.Neill”
#21
A quinta categoria é denominada Relação: o comportar-se de determinada
maneira em referência a alguma coisa, segundo Aristóteles. Para efeito de nosso
estudo, a relação é a qualidade estabelecida quando da interseção.
A relação é uma especialização dos jogos comunicativos. Em sua relação com
os meninos de rua, Dora mantinha uma atitude maternal, a não ser quanto a Pedro
Bala, por quem sentia um amor de outra natureza.
Em conformação com o Lugar, Tempo e Circunstância, a Relação é sempre
específica e individual. Se Dora acabasse em um orfanato e fosse adotada por uma
família abastada, todo o jogo comunicativo usado por ela sofreria modificações porque
a forma de relacionamento possível seria então diversa.
Uma boa notícia é que quanto mais o filósofo se tornar íntimo freqüentador da
estruturação da pessoa, mais facilmente ele reconhecerá manobras dessa natureza e de
outras mais intrincadas.
Então vamos recapitular o que temos até aqui quanto às categorias: Assunto
(Imediato e Último), Circunstância, Lugar, Tempo e Relação.
Pois bem, é comum também a pergunta a propósito da segmentação do estudo
em tópicos da Estrutura da pessoa; por que não podemos conceber diretamente a
Estrutura como um todo, e só então depois fazermos o trabalho de segmentação?
Ao invés de ir das partes ao todo, ir do todo às partes.
Bem, tenho notado que alguns filósofos clínicos consideram, em um primeiro
contato com a pessoa, alguns tópicos que para ele, filósofo, são mais importantes; por
exemplo, como a pessoa se relaciona emocionalmente com a própria família...
Há filósofos também que preferem o uso da Esteticidade, com o intuito de
“limpar o terreno de entulhos”, somente depois fazendo os exames categoriais; é
possível também que se demore com a pessoa em um longo histórico (categoria
Circunstância), usando de muitas Divisões, até que ao ter uma apreciação do modo
geral de funcionamento da pessoa, o todo, a começar daí, então, obtém uma clínica
das principais partes (tópicos) em relação determinante à pessoa.
Você pode ainda escolher por caminhos raros:
- Colher dados junto à família (escola, sociedade etc...) da pessoa.
- Após os exames categoriais, fazer um salto e pesquisar fundo os Princípios de
Verdade (tópico), ou fazer uma clínica toda em cima da Epistemologia (tópico e
submodo) da pessoa.
- Alternar a Somaticidade à Esteticidade.
- Em casos extremos, sob autorização escrita da pessoa ou, em caso de
impedimento, de quem for o responsável, não realizar os exames categoriais e a
Estrutura de Pensamento, indo diretamente aos submodos, sendo então mais ou
menos, o que Deus quiser...
Acho que o mais importante em tudo é a qualidade da Interseção que se
estabelece entre o filósofo e a pessoa. Mas a Interseção, por si somente, não levará a
algo promissor se não se fizer acompanhar de procedimentos clínicos aos quais deve se
remeter.