Capítulo XI Da
Capítulo XI Da
Capítulo XI Da
João I'
🔺 Assunto do capítulo
Neste capítulo, Fernão Lopes narra a forma como a população de Lisboa,
incitada pelos apelos do Pajem e de Álvaro Pais para que acudissem ao Mestre, porque
o estavam a matar nos Paços da Rainha, se armou, saiu em multidão pelas ruas da
cidade e se dirigiu em grande alvoroço para aqueles, a que quis lançar fogo e arrombar
as portas. Os seus intentos só foram travados quando, aconselhado pelos seus
partidários, o Mestre apareceu a uma janela à multidão, que, reconhecendo, se
acalmou, aclamando-o e insultando o conde Andeiro e a rainha.
🔺 Título
O título do capítulo (“Do alvoroço que foi na cidade cuidando que matavom o
mestre, e como aló foi Alvoro Paez e muitas gentes com ele”) apresenta as linhas
gerais do texto.
🔺 Estrutura interna
Alexandre Dias Pinto e Patrícia Nunes (in Entre nós e as Palavras 10,
Santillana, p. 75) prop~eom outra divisão do capítulo.
. 1.ª parte (de “O Page do Meestre que estava aa porta…” a “… que matam sem por
quê.”) – Os partidários do Mestre percorrem Lisboa para mobilizar a população (a
favor do Mestre), que os segue.
. 4.ª parte (de “E estando eles por se assentar…” a “… desta guisa que se segue.”) – D.
João é informado de que o Bispo de Lisboa está em perigo, mas é aconselhado a não
intervir.
Por seu turno, Célia Cameira, Fernanda Palma e Rui Palma (in Mensagens 10)
apresentam outra proposta.
. 1.ª parte – O Pajem do Mestre sai dos Paços da Rainha, em direção à casa de Álvaro
Pais, e lança o boato de que o estão a matar, conforme combinado.
. 2.ª parte – O povo sai à rua juntamente com Álvaro Pais para acorrer ao Mestre.
. 3.ª parte – A fúria do povo, agora em multidão, cresce e ele quer saber notícias do
Mestre.
. 4.ª parte – O Mestre acede aos apelos dos seus partidários e surge a uma janela do
Paço, acalmando o povo.
🔺 Desenvolvimento do capítulo
. O Pajem do Mestre grita repetidamente pela cidade que querem matar D. João,
informando e incitando o povo (com o boato que lança), dando, assim, início a um
plano político previamente definido, cujo objetivo é a criação de uma atmosfera
favorável à aclamação daquele como rei de Portugal.
. O plano / a estratégia foi delineado pelo Mestre e por Álvaro Pais, com a colaboração
do Pajem, no sentido de intensificar a oposição popular à Rainha e ao conde Andeiro e
convertê-la em revolta a favor dos intuitos de D. João e dos seus aliados.
. Por outro lado, não restam dúvidas de que o plano foi previamente combinado, como
se comprova pela expressão “segundo já era percebido”. De facto, o Pajem estava à
porta aguardando que o instruíssem a iniciar o plano e, quando recebe a ordem, parte
a cavalo, percorrendo as ruas a galope, gritando que acudam ao Mestre, pois querem
assassina-lo.
. O referido plano estava sujeito a um secretismo total. Dele têm conhecimento
somente o Pajem, Álvaro Pais, o Mestre e os seus partidários. O objetivo é claro:
anunciar o perigo que D. João corre, para levar a população de Lisboa a apoiá-lo.
. Álvaro Pais, prestes e armado, desempenha o seu papel: junta-se aos seus aliados e ao
Pajem e cavalga pelas ruas, gritando ao povo que acuda ao Mestre, que “filho he
delRei dom Pedro”. Atente-se neste pormenor e na forma subtil como Álvaro Pais
alude a D. Pedro, explorando o simbolismo da sua figura e da sua história de amor com
Inês de Castro no imaginário popular.
. Soam vozes pela cidade que matam o Mestre e o povo dirige-se, armado e
apressadamente, para o local onde ele se encontra, para o defenderem e salvarem.
. A multidão concentra-se em número muito grande: não cabe pelas ruas principais e
atravessa lugares recônditos, desejando cada um ser o primeiro a chegar ao Paço.
. Enquanto se desloca para lá, questiona-se quem desejará matar o Mestre e várias
vozes anónimas apontam o nome do conde João Fernandes, a mando da Rainha D.
Leonor Teles. O clima de agitação e excitação do povo foi preparado cuidadosamente e
está a resultar em pleno.
. Perante afirmações de que o Mestre tinha sido morto, são sugeridas diversas ações
tendentes a forçar a entrada no Paço: arrombar as portas cerradas, lançar fogo ao
edifício para queimar o conde e a Rainha, escalar os muros com escadas.
. Gera-se uma grande confusão e o povo não se entende acerca da atitude a adotar,
enquanto várias mulheres transportam feixes de lenha e carqueja para queimar os
muros dos Paços e a Rainha, a quem dirigem muitos insultos.
. Dos Paços, vários bradam que o Mestre está vivo e o conde Andeiro morto, mas a
“arraia miúda” não acredita e quer provas concretas, isto é, vê-lo, de que é assim.
Receando que o povo, devido à sua fúria e ao desejo de vingança, invada o palácio, se
torne incontrolável e o destrua, aconselham D. João a mostrar-se-lhe.
. O Mestre mostra-se a uma grande janela e fala ao povo, que fica extremamente
emocionado / perturbado ao constatar que está efetivamente vivo e o conde morto,
quando muitos criam já no contrário. Essa fala tem como finalidade tranquilizar o povo
e dar-lhe esperança, mostrando-se seu aliado (a apóstrofe “Amigos…”).
. Nesta fase do texto, é apresentado uma imagem muito negativa de D. Leonor Teles,
vista popularmente como adúltera e traidora, chegando a ser acusada pela morte de
D. Fernando (ll. 53-54). O narrador não deixa grandes dúvidas: se a população tivesse
entrado no Paço, teria assassinado a Rainha.
. O Mestre, consciente da sua segurança e, no fundo, de que o plano arquitetado tinha
resultado na perfeição, desce e cavalga com os seus, acompanhado pelos populares,
que lhe perguntam o que quer que façam. D. João responde que não precisa mais
deles e dirige-se para o Rossio ao encontro do conde D. João Afonso, irmão da Rainha,
enquanto é saudado pelas “donas ca çidade”.
. Quando se prepara para comer com o conde, vêm dizer-lhe que tencionam matar o
Bispo de Lisboa, por isso faria bem em lhe acudir. No entanto, aconselhado pelo
Conde, acaba por não o fazer.
🔺 Personagens
. Presentes:
- O Pajem e Álvaro Pais, no início do capítulo;
- O Mestre de Avis, mencionado deste o início na boca de outras personagens, surge
fisicamente apenas na parte final do capítulo;
- O conde D. João Afonso, que se encontra com o Mestre na parte final do capítulo;
- Outros fidalgos: Afonso Eanes Nogueira, Martim Afonso Valente, Estevão Vasques
Filipe e Álvaro do Rego.
. Ausentes:
- O conde Andeiro, que se sabe ter sido morto;
- A rainha, retratada muito negativamente;
- O bispo de Lisboa, acusado de traição e que será morto.
* a curiosidade (“As gentes que esto ouviam saíam aa rua para ver que cousa era.”);
* a mobilização e a unidade na ação – age como um todo e acorre aos Paços para acudir
ao Mestre ("todos feitos dum coraçom, com talente de o vingar"): traziam lenha,
queriam carqueja para lançar o fogo ao Paço ou uma escada para verem o que se
passava dentro;
* o poder (“não lhes poderiam depois tolher de fazer o que quisessem”; “E sem dúvida,
se eles entraram dentro, nom se escusara a rainha de morte, e fora maravilha quantos
eram da sua parte e do conde poderem escapar”).
🔺 Personagens individuais
. Pajem: informa o incita o povo, gritando e lançando o boato que alguém quer matar o Mestre,
como previamente combinado.
. Álvaro Pais
Álvaro Pais é o estratego que conduz o povo para um fim preconcebido:
preparar psicologicamente o povo a aceitar e mesmo aplaudir o assassínio do conde de
Andeiro. O pajem, com quem colaborou na divulgação do boato da morte do Mestre,
dirigiu-se a sua casa, porque tudo estava previamente combinado ("segundo já era
percebido"). Fernão Lopes não deixa dúvidas: Álvaro Pais foi o cérebro que tudo
planeou, nada deixando ao acaso.
Ele mesmo insiste na divulgação do boato junto do povo, de modo a
“convocá-lo” e a criar um clima favorável à aceitação do Mestre, da morte do conde
Andeiro e à sua confirmação como legítimo herdeiro do trono português.
Álvaro Pais é uma figura com visão política e inteligência; é matreiro, astuto,
manipulador, mentiroso até (por exemplo, grita que matam o Mestre, quando, na
verdade, é este quem assassina o conde Andeiro; grita, igualmente, excitando e
iludindo as pessoas), para atingir os seus fins.
. Mestre de Avis
* É uma figura carismática e populista (mostra-se à população para obter o seu apoio);
* É, de certa forma, uma personagem dual: é amigo do povo e seu herói, mas revela
alguma fraqueza e incapacidade para tomar decisões autonomamente, dependendo
da opinião dos seus conselheiros.
ha D. Leonor Teles: o narrador coloca, estrategicamente, na boca do povo a acusação de que é uma
traidora e adúltera, chegando a ser acusada da morte de D. Fernando.
🔺 Narrador
🔺 Espaços
. Abertos, públicos, frequentados pelo povo e pelos intervenientes que com ele
interagem: ruas da cidade de Lisboa.
. Fechado, privado, de acesso condicionado: o palácio, frequentado pelos nobres e pelos
detentores do poder.
. Janela do palácio, em que o Mestre surge e se mostra ao povo, apaziguando a sua
fúria, e é por ele aclamado.
O espaço evolui da dispersão para a concentração: o povo salta das ruas da cidade
para a rua principal, que conduz ao Paço da rainha e ali se concentra em torno do
Mestre.
. Comparação: "assi como viuva que rei nom tinha, e como se lhe este ficara em logo de marido, se
moverom todos com mão armada, correndo... escusar morte": sugere a ligação, o
carinho e o empenhamento do povo na defesa do Mestre, que não queria perder,
aproximando-o de uma figura familiar. Por outro lado, esta comparação sugere o
desgoverno e desproteção a que a cidade (representada pela mulher) ficaria sujeita
sem rei, tal como acontece com as viúvas.
. Metáforas:
- "Cada vez se acendia mais": contribui para recriar a tensão que vai aumentando em
volta do Paço; o alvoroço popular vai aumentando de intensidade, provocando ruído,
agitação e movimento entre a população, tal como sucede com uma fogueira que se
acende e vai aumentando de intensidade; acresce que esta fogueira já estava acesa há
algum tempo, estando prestes a atingir o seu clímax.
- “Todos feitos de um coraçom”: sublinha a união do povo e a comunhão de
sentimentos.
. Hipérbole:
-» realça o grande alvoroço e o tumulto da multidão: "e em todo isto era o arroído atam
grande que se nom entendiam uns com os outros";
-» caracteriza o comportamento das multidões: "E tanta era a torvaçam deles (...) que
taes avia i que aperfiavom que nom era aquele".
. Apóstrofes:
- “Ó Senhor, como vos quiserom matar…”: acentua o respeito, a veneração e a amizade
do povo para com o Mestre e o alívio pela proteção de Deus o ter livrado da traição do
conde Andeiro.
- “Amigos…”: a amizade entre o Mestre e o povo.
. Exclamações.
. Pormenor:
- do vestuário de Álvaro Pais: "está prestes e armado com uma coifa na cabeça, um
cavalo que anos havia que non cavalgava";
- da "janela que vinha sobre a rua" para recriar o espaço e nos fazer comungar de todo
aquele ambiente.
Plano 2
. Espaço: ruas de Lisboa.
. Atores: pajem, Álvaro Pais e povo.
. Estado de espírito: revolta e preocupação.
Plano 3
. Espaço: portas do Paço da Rainha.
. Atores: povo e Mestre.
. Estado de espírito: vingança.
Plano 4
. Espaço: janela do Paço.
. Atores: Mestre e povo.
. Estado de espírito: emoção, alívio e contentamento.
Plano 5
. Espaço: ruas do Paço.
. Atores: Mestre, donas e povo.
. Atitude do povo: disponibilidade para apoiar a causa do Mestre.
Plano 6
. Espaço: Paço do Almirante.
. Atores: Mestre, partidários e fidalgos.
. Ação: refeição do Mestre e decisão de os fidalgos matarem o bispo de Lisboa.
Em conclusão, podemos afirmar que Fernão Lopes marca o primeiro grande
momento da prosa portuguesa. São, sobretudo, admiráveis os seus quadros descritivos
dos grandes movimentos populares. Nas suas crónicas, há verdadeiros painéis, onde
a arraia miúda se manifesta em toda a sua pujança emocional. A grande força desta
prosa está sobretudo na organização das ideias, segundo planos espácio-temporais,
que nos dão a visão do conjunto sem esquecer o rigor dos pormenores, e tudo isto
numa linguagem que, sendo por vezes arcaizante, é dotada de uma vivacidade e
visualismo admiráveis.
1. Pelo conteúdo:
* o contexto histórico (a crise de 1383-85):
- o assassinato do conde Andeiro;
- a movimentação do povo de Lisboa para apoiar o Mestre, liderado por Álvaro Pais;
* a componente política do episódio:
- a criação de uma atmosfera favorável à aclamação do Mestre como rei de Portugal;
- a legitimação de uma dinastia nacional, embora por via bastarda.
Filho bastardo do rei D. Pedro I e de uma dama galega de nome Teresa
Lourenço, D. João nasce em Lisboa, em 11 de abril de 1357. Aos seis anos é armado
cavaleiro por D. Pedro e levado para Avis, onde passa a adolescência. D. Pedro faz-lhe
doação de casas em Avis, ao lado de outros bens. O jovem mestre de Avis continua em
terras alentejanas e a sua influência vai crescendo, acompanhando de perto os atos da
governação de D. Fernando.
Preso no castelo de Évora na Primavera de 1382, devido a intrigas contra D.
Leonor Teles/conde de Andeiro, é solto por D. Fernando, seu irmão, garças à eficaz
intervenção do conde de Cambridge, chefe do contingente inglês em Portugal. Virá a
ser amigo do duque de Lencastre e casará com a sua filha D. Filipa. Morto D. Fernando
em 22 de outubro de 1383, o partido do conde de Andeiro, amante de D. Leonor Teles,
toma o poder. D. João é envolvido nos acontecimentos que levam ao assassinato,
praticado por si, do conde de Andeiro em 6 de dezembro de 1383. É aclamado pelo
povo de Lisboa Regedor e Defensor do Reino. Nas Cortes de Coimbra, de 6 de abril de
1385, é aclamado rei de Portugal, não por méritos seus, mas sobretudo por influência
de homens de coragem como Nun'Álvares Pereira ou João das Regras.
Em fevereiro de 1387, casa-se com D. Filipa de Lencastre, dando origem à
chamada Ínclita Geração. Viveu um longo período de paz interna e externa,
preparando as expedições marítimas. Conquistou Ceuta em 1415.
Faleceu em Lisboa, a 14 de agosto de 1433. Foi autor do Livro da Montaria,
obra literária notável do século XV. Casou todos os seus filhos e filhas, à excepção de
D. Henrique e de D. Fernando, e deu a todos, como também aos netos, casa opulenta.
O sentimento geral que anima a Crónica de D. João I é o amor da terra, a base
do novo direito, incompatível com o direito senhorial. Fernão Lopes sente o amor da
terra como os homens das vilas, e assim como em nome dele estes atacavam e
incendiavam os castelos, assim Fernão Lopes castiga duramente os seus alcaides e
processa a nobreza portuguesa em geral, acusando-a de "desnaturada". Esta terra que
merece todo o amor dos seus naturais aparece-lhe especialmente personificada na
cidade de Lisboa, que ele qualifica de “mãe e ama dos feitos” que levaram à vitória do
mestre de Avis. É decerto caso único entre todos os cronistas medievais este atribuir a
uma cidade colectivamente o papel principal nos acontecimentos que levam à derrota
do invasor.
É graças a esta mentalidade, a este ponto de vista de quem mora não no
castelo, mas ao rés da praça, que nós possuímos este monumento literário,
certamente singular, que é a história de uma revolução popular medieval feita com
consciência de revolucionário. Fernão Lopes é já único quando conta metodicamente e
fazendo-nos acompanhar os múltiplos e complexos fios da intriga, como foi preparado
e como se desencadeou, nos conselhos secretos e na praça pública, o golpe
revolucionário que Álvaro Pais gizou em sua casa e que o povo consumou apinhado
junto aos paços da rainha. Esta parte da Crónica de D. João I é uma estupenda lição
sobre a arte de desencadear uma revolução popular, nos seus diversos aspectos,
desde o pretexto à criação do clima emocional, e passando pelosslogans eficazes como
esse de "acudi ao Mestre que é filho de el-rei D. Pedro", que associa a personalidade
do chefe proposto à popularidade do rei que precedera os tempos calamitosos de D.
Fernando. Mas mais significativo é que o nosso Autor se integra na consciência da
massa insurreccionada e é capaz de traduzir comoventemente o seu estado de
espírito. [...]
É esta integração nos movimentos massivos que dá à sua pena um
entusiasmo épico quando se ocupa de tais assuntos. É então que ele atinge os
momentos supremos da sua prosa, ou melhor, que transpõe os limites da prosa para
entrar nos da poesia épica.
Em troca, mostra-se frio e objectivo, embora sempre eloquente, quando fala
de pessoas e casos individuais. Então o entusiasmo cede o lugar a uma análise sem
ilusões, impressionantemente despreconceituosa e desmascaradora. Herói para ele, só
o povo e Nuno Álvares. Do Mestre depois rei para baixo há só criaturas humanas que
obedecem fundamentalmente a dois estímulos: o medo e a ambição, às vezes também
a concupiscência.